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|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
1,750,896,000,000
|
CONFIRMADA A DECISÃO
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127203/23.0YIPRT.P1
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127203/23.0YIPRT.P1
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JUDITE PIRES
|
I - A competência material, afere-se em função da forma como o autor configura e estrutura a acção, analisando o pedido e a factualidade concreta que lhe serve de fundamento (causa de pedir).
II - São os tribunais administrativos e fiscais – e não os tribunais comuns – os materialmente competentes para apreciar e decidir as acções em que, apresentado requerimento de injunção por entidade concessionada municipal para cobrança de taxas relativas ao estacionamento na via pública, vem a ser deduzida oposição.
|
[
"ESTACIONAMENTO AUTOMÓVEL",
"CONCESSIONÁRIA",
"COMPETÊNCIA MATERIAL",
"TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS"
] |
Processo n.º 127203/23.0YIPRT.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Local Cível do Porto – Juiz 9
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I. RELATÓRIO.
A..., S.A. instaurou acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias contra AA, pedindo a condenação da ré no pagamento da quantia de 843,95 euros.
Fundamenta a sua pretensão alegando, em síntese ser “(…) uma sociedade que se dedica, além do mais, à exploração e prestação de serviços na área do parqueamento automóvel. No âmbito da referida exploração, a Requerente adquiriu e colocou, em vários locais da cidade de Matosinhos, máquinas para pagamento de estacionamento automóvel, com a indicação dos preços e condições de utilização dos mesmos. A Requerida é proprietária do veículo automóvel com a matrícula ..-VQ-...
Enquanto utilizadora do referido veículo, a Requerida estacionou o referido veículo, nos vários parques de estacionamento que a Requerente explora na cidade de MATOSINHOS, sem se dignar a proceder ao pagamento do tempo de utilização, conforme regras devidamente publicitadas no local (…)”.
Suporta, pois, a sua pretensão na responsabilidade civil contratual decorrente da execução de um contrato de concessão de exploração e fiscalização de lugares de estacionamento na via pública.
Regularmente citada, a ré contestou, impugnando a pretensão da autora e, defendendo-se por excepção, invocou a prescrição do crédito da Autora referente ao período de 10.01.2020 a 18.03.2022.
Ordenou-se a notificação da Autora para, querendo, no prazo de 10 dias, se pronunciar, querendo, sobre a matéria da excepção arguida pela Ré.
A Autora respondeu, pugnando pela improcedência da excepção deduzida.
Por despacho de 25.09.2024, determinou-se que fosse solicitado ao processo n.º 42546/24.4YIPRT, a correr termos também no tribunal recorrido, cópia certificada do contrato de concessão/exploração celebrado com a Câmara Municipal de Matosinhos.
Junta a referida cópia, foi proferido o seguinte despacho:
“Por se nos afigurar ser este tribunal incompetente em razão da matéria, notifique as partes para, querendo, no prazo de 10 dias, se pronunciarem (art.º 3.º, n.º 3 do Código de Processo Civil)
[...]”.
Cumprindo o contraditório, respondeu a Autora, defendendo a competência material dos tribunais comuns.
Seguidamente, foi proferida decisão com o seguinte dispositivo:
“...declaro absolutamente incompetentes para conhecer do pedido formulado os tribunais judiciais e, em consequência, absolvo a ré da instância.
Custas a cargo da autora – art.º 527.º do Código de Processo Civil.
Valor da causa (art.º 306.º do Código do Processo Civil): o indicado na petição inicial.
Registe e notifique
”.
Não se resignando a Autora com tal decisão, dela interpôs recurso de apelação para esta Relação, formulando com as suas alegações as seguintes conclusões:
“a) Vem o presente recurso apresentado contra o Douto Despacho A Quo, que decidiu julgar a incompetência material do Juízo Local Cível de Matosinhos, para cobrança dos créditos da Autora e A. A... SA.
b) No âmbito da sua atividade, a A. celebrou um contrato de concessão com a Câmara Municipal de Matosinhos, através do qual lhe foi cedida a exploração particular de zonas de estacionamento automóvel na cidade sem cedência de quaisquer poderes de autoridade, ou de disciplina.
c) No seguimento deste contrato de concessão, a A... adquiriu e instalou em vários locais da cidade de Matosinhos, onerosas máquinas para pagamento dos tempos de estacionamento automóvel, para as quais desenvolveu o necessário software informático.
d) Enquanto utilizadora do veículo automóvel ..-VQ-.., a Ré estacionou o mesmo em diversos Parques de Estacionamento que a A. explora comercialmente na cidade de Matosinhos, sem, contudo, proceder ao pagamento dos tempos de utilização, num total em dívida de € 6898,10 que a Ré recusa pagar.
e) Para cobrança deste valor, a Recorrente viu-se obrigada a recorrer aos tribunais comuns, peticionando o seu pagamento, pois a sua nota de cobrança está desprovida de força executiva, não podendo, portanto, dar lugar a um imediato processo de execução, seja administrativo ou fiscal.
f) A natureza jurídica da quantia paga pelos utentes em contrapartida da prestação do serviço de parqueamento é a de um preço e não de um encargo ou contrapartida com natureza fiscal ou tributária.
g) As ações intentadas pela A. contra os proprietários de veículos automóveis inadimplentes, que não tenham procedido ao pagamento dos montantes devidos, não se inserem em prorrogativas de autoridade pública munida de ius imperii, mas sim no âmbito da gestão enquanto entidade privada.
h) A recorrente ao atuar perante terceiros, não se encontra munida de poderes de entidade pública, e sim com poderes de entidade privada, pelo que, e contrariamente ao entendimento do Tribunal “a quo”, o contrato estabelecido entre si e os automobilistas, relativo à utilização dos parqueamentos explorados, é de direito privado, cuja violação é suscetível de fazer o utilizador incorrer em responsabilidade contratual por incumprimento do contrato.
i) A doutrina qualifica este tipo de contrato como uma relação contratual de facto - em virtude de não nascer de negócio jurídico - assente em puras atuações de facto, em que se verifica uma subordinação da situação criada pelo comportamento do utente ao regime jurídico das relações contratuais, com a eventual necessidade de algumas adaptações.
j) O estacionamento remunerado, apresenta-se como uma afloração clara da relevância das relações contratuais de facto e a relação entre o concessionário e o utente resulta de um comportamento típico de confiança.
k) Comportamento de confiança, que não envolve nenhuma declaração de vontade expressa, e sim uma proposta tácita temporária de um espaço de estacionamento, mediante retribuição.
l) Proposta tácita temporária da A., que se transforma num verdadeiro contrato obrigacional, mediante aceitação pura e simples do automobilista, o qual, ao estacionar o seu automóvel nos parques explorados pela A., concorda com os termos de utilização propostos pela A., amplamente publicitados no local.
m) Essencial para se determinar a competência dos tribunais administrativos é, a existência de uma relação jurídica administrativa.
n) Sabendo-se que a concretização de tal conceito constitui tarefa difícil, podemos, no entanto, definir a relação jurídica administrativa como aquela que «por via de regra confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares, ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a Administração».
o) O conceito de relação jurídica administrativa pode ser tomado em diversos sentidos, seja numa aceção subjetiva, objetiva, ou funcional, sendo certo que nenhuma das acessões permite englobar a presente situação.
p) Caso contrário, teríamos de entender como públicas quaisquer relações jurídicas, já que todo o interesse de regulação, é em si mesmo um interesse público e nessa medida, tudo seria público, até à mais ténue e simples regulamentação de relações entre particulares, desde que geradoras de direitos e obrigações suscetíveis de ser impostos coativamente.
q) A A... SA., não efetua atos de fiscalização, não tendo poderes para autuar coimas ou multas por incumprimento das regras estradais, tarefa que está exclusivamente atribuída às autoridades públicas de fiscalização do espaço rodoviário da cidade.
r) Nos termos do disposto no artigo 2º do DL 146/2014 de 09 de outubro, a atividade de fiscalização incide exclusivamente na aplicação das contraordenações previstas no artigo 71º do Código da Estrada, o qual estabelece as coimas aplicáveis às infrações rodoviárias ali identificadas.
s) Os montantes cobrados pela A... SA., não consubstanciam a aplicação de quaisquer coimas, nem a empresa processa quaisquer infrações praticadas pelos utentes dos parqueamentos.
t) Verificada a violação da obrigação contratual de pagamento do tempo de imobilização dos seus veículos, nos parqueamentos explorados pela A... SA., são os automobilistas posteriormente notificados para procederem ao pagamento omitido, sendo então cobrado o tempo máximo de utilização, por falta de referência concreta ao tempo efetivo de utilização.
u) Quaisquer infrações ou coimas que devam ser aplicadas aos automobilistas prevaricadores de regras estradais, ficam a cargo da Autarquia, sem qualquer intervenção ou conexão com a atividade da empresa concessionária.
v) A A..., ao contrário o que vem referido na douta sentença, nunca atuou em substituição da autarquia, munida de poderes concessionados.
w) Que poderes de autoridade? Se a Recorrente estivesse investida em poderes de autoridade, após audição prévia, executaria o património dos devedores.
Mas não é assim!
x) Entender, como pretende, o Tribunal a Quo que os tribunais competentes são os administrativos e que, de entre estes, por se tratar de putativas Taxas de utilização, seriam os fiscais os tribunais competentes, corresponde a esvaziar de conteúdo e utilidade o Contrato de Concessão de Exploração dos Parqueamentos da cidade de Matosinhos, por retirar à concessionária o poder de reclamar judicialmente os seus créditos, que ficariam na discricionariedade, de muito improvável realização, dos poderes públicos.
y) Fundamental é que a Recorrente carece, em absoluto, de poderes de autoridade, fiscalização ou ordenação efetiva, apenas podendo registar os incumprimentos de pagamento e tentar recuperar judicialmente, sem acesso direto a um título executivo, os valores que tiverem sido sonegados, em violação da relação contratual de confiança, pelos utentes.
z) Por tudo o que se alegou, mal andou o Tribunal “a quo” ao declarar-se incompetente em razão da matéria, pois, o Tribunal recorrido é o competente, motivo pelo qual foram violados, entre outros, os artigos 96º, al. a), 278º, Nr.1 al. a), 577º al. a) e 578º do CPC, quer o artigo 4º nr.1, al. e) do ETAF, quer ainda o artigo 40º da Lei 62/2013 de 26 de agosto.
Termos em que, deve o presente recurso ser julgado procedente, e em consequência, ser a douta sentença recorrida substituida por outra, que julgando competente o Juízo Local Cível de Matosinhos, ordene o prosseguimento dos autos, conforme é do direito e da J u s t i ç a”.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar.
II. OBJECTO DO RECURSO.
A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.
B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pela recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar se o tribunal recorrido é ou não materialmente competente para conhecer da acção aí instaurada pela Autora.
III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
Os factos/incidências processuais relevantes à apreciação do objecto do recurso são os descritos no relatório introdutório, e, além destes, o seguinte, documentalmente comprovado:
1. Entre a autora e o Município de Matosinhos foi celebrado, em 7 de Março de 2016, contrato denominado
“de concessão, gestão, exploração, manutenção e fiscalização dos lugares de estacionamento pago na via pública e de dois parques públicos de estacionamento para viaturas”
, no qual consta, entre o mais:
“(…) E pelo primeiro outorgante foi dito que em execução das deliberações da Assembleia Municipal e Câmara Municipal tomadas, respetivamente, em sessão extraordinária de quinze de dezembro de dois mil e catorze e reunião de três de novembro do ano findo, é celebrado o presente contrato que se regerá pelas cláusulas seguintes:
PRIMEIRA – O Município de Matosinhos concede à sociedade representada pelo segundo outorgante a “Gestão, exploração, manutenção e fiscalização dos lugares de estacionamento pago na via pública e de dois parques públicos de estacionamento para viaturas”, de acordo com a cláusula 11.ª e Anexo I do caderno de encargos que me foi apresentado e fica a fazer parte integrante deste contrato;
SEGUNDA – O prazo de concessão é de dez anos, não renováveis, contado a partir de hoje;
TERCEIRA – A concessionária entregará trimestralmente ao Município o valor que resultar da aplicação da fórmula constante da cláusula 31.ª do caderno de encargos e de acordo com a proposta apresentada datada de três de Julho do ano findo;
QUARTA – O Município, por justificado interesse público e decorridos três anos e meio da data de início da concessão, pode proceder ao resgate da mesma, mediante aviso prévio, com pelo menos seis meses de antecedência.
QUINTA – O Município pode, mediante sequestro da concessão, tomar a seu cargo o desenvolvimento das atividades concedidas, designadamente nas situações previstas no Código dos Contratos Públicos, bem como adotar todas e quaisquer medidas que considere necessárias para a normalização da situação;
SEXTA – A concessionária não pode ceder, alienar, trespassar, ou por qualquer forma transmitir ou onerar, no todo ou em parte, a concessão sem prévia autorização do Município.
SÉTIMA – A retribuição auferida pela concessionária corresponderá ao total do produto recolhido através dos métodos de pagamento disponibilizados aos utentes no âmbito da Concessão incluindo o valor arrecadado com os “Avisos de Pagamento” ou outros métodos de pagamento voluntário que venham a ser implementados durante o prazo de vigência do contrato;
OITAVA – A concessionária deve manter ao seu serviço uma estrutura de pessoal técnico e administrativo que permita dar cabal satisfação e que possibilite a boa execução das obrigações por si assumidas no âmbito da concessão;
NONA – A concessionária fica sujeita à fiscalização do concedente, que pode, para o efeito, exigir as informações e documentos que considere necessários e a quem será facultado livre acesso a todas as infraestruturas e equipamentos afetos à concessão, bem como às instalações da concessionária;
DÉCIMA – A concessionária fica obrigada a observar as regras constantes do Anexo II relativas à exploração da concessão, bem como os deveres acessórios previstos nos Anexos III, IV, V e VI, todos do caderno de encargos;
DÉCIMA PRIMEIRA – No final da concessão reverterão para o Município, livre de quaisquer encargos, a totalidade dos bens afetos à concessão, fornecidos pela concessionária;
DÉCIMA SEGUNDA – Em tudo mais não previsto neste contrato ou no caderno de encargos, serão aplicadas as disposições do Código dos Contratos Públicos. (…)”.
IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
Segundo Manuel de Andrade
[1]
, “
a competência, como medida de jurisdição atribuída a cada tribunal para conhecer de determinada questão a ele submetida, e enquanto pressuposto processual, determina-se pelos termos em que a acção é proposta, isto é, pela causa de pedir e pedido respectivos
”.
A competência em razão da matéria determina-se, pois, pela natureza da relação material controvertida, tal como é configurada pelo autor, independentemente do seu mérito ou demérito.
O mesmo é dizer, a competência material, afere-se em função da forma como o autor configura e estrutura a acção, analisando o pedido e a factualidade concreta que lhe serve de fundamento (causa de pedir).
De acordo com o artigo 211.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.
E o artigo 64.º do Código de Processo Civil determina que “
são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional
”.
O carácter residual da competência dos tribunais comuns encontra expressão no artigo 40.º, n.º 1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto, quando estabelece: “
Os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional
”.
Por sua vez, o artigo 212.º, n.º 3 da Lei Fundamental delimita o campo de intervenção jurisdicional dos tribunais administrativos, os quais têm por objectivo a resolução de litígios de natureza administrativa e fiscal.
Dispõe, também no mesmo sentido, o artigo 1.º, n.º 1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro
[2]
que “
os tribunais da jurisdição administrativa são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais
”.
Freitas do Amaral
[3]
caracterizava a relação jurídico - administrativa como sendo a que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a Administração.
Vieira de Andrade
[4]
enquadra no mesmo conceito as relações “…
em que um dos sujeitos, pelo menos, é uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido
”.
Por regra, à jurisdição administrativa só interessam as relações administrativas públicas, as reguladas por normas de direito administrativo, aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, actue na veste de autoridade pública, munido de um poder de
imperium,
com vista à realização do interesse público legalmente definido.
No regime legislativo anterior à entrada em vigor
[5]
do actual ETAF, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro a qualificação dos actos praticados pelos titulares de órgãos ou agentes de uma pessoa colectiva pública, (de gestão pública ou de gestão privada) constituía o critério basilar para a delimitação do âmbito de actuação (competência) das duas ordens de jurisdição (tribunais administrativos/tribunais comuns).
O Prof. Marcello Caetano qualificava de gestão pública a actividade da Administração regulada por normas que conferem poderes de autoridade para a prossecução de interesses públicos, disciplinam o seu exercício ou organizam os meios necessários para esse efeito, sendo actos de gestão privada
os que surjam no âmbito da actividade desenvolvida pela Administração no exercício da sua capacidade de direito privado, procedendo como qualquer outra pessoa no uso das faculdades conferidas por esse direito, ou seja, pelo direito civil ou comercial
[6]
.
Para o Prof. Antunes Varela
[7]
, "
actividades de gestão pública são todas aquelas em que se reflecte o poder de soberania próprio da pessoa colectiva pública e em cujo regime jurídico transparece, consequentemente, o nexo de subordinação existente entre os sujeitos da relação, característico do direito público". E esclarece: "simplesmente, nem todos os actos que integram gestão pública representam o exercício imediato do jus imperii ou reflectem directamente o poder de soberania do próprio Estado e das demais pessoas colectivas. Essencial para que seja considerada de gestão pública é que a actividade do Estado (ou de qualquer outra entidade pública) se destine a realizar um fim típico ou específico dele, com meios ou instrumentos também próprios do agente
".
Como salientam os Professores Freitas do Amaral e Mário Aroso de Almeida
[8]
, “
nas propostas de lei que o Governo apresentou à Assembleia da República, foi assumido o propósito de pôr termo a essas dificuldades
” - quanto à delimitação do âmbito da jurisdição administrativa em matéria de responsabilidade civil e de contratos -, “
consagrando um critério claro e objectivo de delimitação nestes dois domínios. A exemplo do que (…) acabou por suceder em matéria ambiental, o critério em que as propostas se basearam foi o critério objectivo da natureza da entidade demandada: sempre que o litígio envolvesse uma entidade pública, por lhe ser imputável o facto gerador do dano ou por ela ser uma das partes no contrato, esse litígio deveria ser submetido à apreciação dos tribunais administrativos. Propunha-se, assim, que a jurisdição administrativa passasse a ser competente para a apreciação de todas as questões de responsabilidade civil que envolvessem pessoas colectivas de direito público, independentemente da questão de saber se tais questões se regem por um regime de direito público ou por um regime de direito privado (...). Em defesa desta solução, sustentava-se na Exposição de Motivos do ETAF que, se a Constituição faz assentar a definição do âmbito da jurisdição administrativa num critério substantivo, centrado no conceito de “relações jurídicas administrativas e fiscais”,
a verdade é que ela “
não erige esse critério num dogma
”, pois “
não estabelece uma reserva material absoluta
”. Por conseguinte, “
a existência de um modelo típico e de um núcleo próprio da jurisdição administrativa e fiscal não é incompatível com uma certa liberdade de conformação do legislador, justificada por razões de ordem prática, pelo menos quando estejam em causa domínios de fronteira, tantas vezes de complexa resolução, entre o direito público e o direito privado (...). O art. 4º do ETAF só veio a consagrar, no essencial, estas propostas no domínio da responsabilidade civil extracontratual. Já não no que toca aos litígios emergentes de relações contratuais”.
O artigo 4.º do citado diploma delimita, no seu n.º 1, o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, ao determinar que “
compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto:
a) Tutela de direitos fundamentais, bem como dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares directamente fundados em normas de direito administrativo ou fiscal ou decorrentes de actos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal;
b) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos emanados por pessoas colectivas de direito público ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal, bem como a verificação da invalidade de quaisquer contratos que directamente resulte da invalidade do acto administrativo no qual se fundou a respectiva celebração;
c) Fiscalização da legalidade de actos materialmente administrativos praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas, ainda que não pertençam à Administração Pública;
d) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos praticados por sujeitos privados, designadamente concessionários, no exercício de poderes administrativos;
e) Questões relativas à validade de actos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público;
f) Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público;
g) Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa;
h) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos;
i) Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público;
j) Relações jurídicas entre pessoas colectivas de direito público ou entre órgãos públicos, no âmbito dos interesses que lhes cumpre prosseguir;
l) Promover a prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, ambiente, urbanismo, ordenamento do território, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas, e desde que não constituam ilícito penal ou contra-ordenacional;
m) Contencioso eleitoral relativo a órgãos de pessoas colectivas de direito público para que não seja competente outro tribunal;
n) Execução das sentenças proferidas pela jurisdição administrativa e fiscal
”.
Com a entrada em vigor do aludido ETAF, o acto de gestão pública, quer na sua vertente teleológica, quer por referência ao exercício do
jus imperii
por parte do agente ou órgão da pessoa colectiva de direito público, deixou de ser o critério exclusivo para a atribuição da competência dos tribunais administrativos: não estão hoje excluídos da jurisdição administrativa os recursos e as acções que tenham por objecto questões de direito privado, bastando que ambas ou uma das partes seja ente de direito público.
Como se extrai do n.º 1 do citado normativo, que encerra em si uma cláusula geral positiva de atribuição de competência aos tribunais administrativos para apreciação dos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas, esta constitui a regra nuclear para a delimitação do âmbito jurisdicional dos tribunais administrativos em relação aos demais órgãos jurisdicionais.
Deste modo, a definição do âmbito da jurisdição administrativa assenta num critério substantivo, ancorado no conceito de “
relações jurídicas administrativas
”, critério que, todavia, como dá conta a jurisprudência do Tribunal Constitucional
[9]
e do Tribunal de Conflitos
[10]
, não se assume como absoluto.
Em todo o caso, como antes se assinalou, a competência em razão da matéria deve ser aferida em função da forma como o autor configura e estrutura a acção [ou o procedimento], o que pressupõe uma análise da relação jurídica nela discutida, tendo em conta os pedidos nela formulados e a causa de pedir que lhe serve de amparo.
A decisão recorrida estribou-se na alínea e) do normativo acima transcrito para concluir pela competência material, no caso em apreço, dos tribunais administrativos, afastando dos tribunais comuns tal competência.
Pode ler-se, com efeito, na decisão aqui sindicada: “
Conforme resulta dos documentos apresentados pela autora, esta, no ano de 2016, celebrou com a Câmara Municipal de Matosinhos um contrato de concessão gestão, exploração, manutenção e fiscalização dos lugares de estacionamento pago na via pública e de dois parques públicos de estacionamento para viaturas, no âmbito do qual o Município de Matosinhos concedeu à ré, pelo período de 10 anos, renovável, gestão, exploração, manutenção e fiscalização dos lugares de estacionamento pago na via pública e de dois parques públicos de estacionamento para viaturas, mediante a entrega trimestral da quantia acordada. Mais acordaram que no fim da concessão reverteriam para o Município a totalidade dos bens afetos à concessão e que o contrato celebrado estava sujeito às disposições dos contratos públicos.
O contrato de concessão celebrado entre a autora e o Município de Matosinhos rege-se pelo conteúdo das suas disposições e das disposições do caderno de encargos referido, onde se encontra a forma como será fiscalizado o seu cumprimento. No âmbito do contrato celebrado, a autora obrigou-se a cumprir a regras impostas pelo Município e a agir no âmbito dos poderes que lhe foram conferidos, nomeadamente ena sua relação com terceiros/particulares que usufruem do estacionamento concessionado sujeitando-se às suas regras e condições, entre elas, o pagamento da taxa de utilização.
Do exposto, é-nos permitido concluir que os atos praticados pela autora revestem-se de natureza pública, porquanto praticados no exercício de um poder público, isto é na realização de funções públicas no domínio de atos de gestão pública”.
A interpretação da dita alínea e) tem merecido especial atenção da doutrina
[11]
, que dá conta que a técnica do ETAF, para a delimitação de competências dos tribunais administrativos e fiscais, radica em formulação de critérios de qualificação dos contratos, designadamente por apelo a um critério substantivo que se mostra vertido na citada al. e), nos termos do qual a jurisdição administrativa é competente para apreciar todas as questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente acerca dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos do respectivo regime substantivo, ou de contratos que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público.
De acordo com esse entendimento, aquela alínea apela a três critérios distintos:
- contratos de objecto passível de acto administrativo;
- contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulam aspectos próprios do respectivo regime substantivo;
- contratos em que, pelo menos, uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público.
No primeiro critério enquadram-se os contratos que têm por objecto um exercício contratualizado de poderes administrativos de autoridade. Pressupõem uma típica relação jurídica administrativa em que a Administração Pública é a autoridade e o particular o administrado e envolve-se a mesma com a forma de contrato.
O segundo critério integra contratos em que o legislador opta por os submeter, pelo menos em determinados pontos específicos, a normas de direito público, assim procedendo à sua regulamentação.
Relativamente ao último critério, a determinação do âmbito jurisdicional administrativo desenvolve-se a partir de dois níveis: um deles reporta-se à qualidade das partes, exigindo-se que, pelo menos, uma delas seja “entidade pública” ou “concessionário no âmbito da concessão”; o outro respeita à possibilidade de as partes submeterem expressamente o contrato que celebraram a um regime substantivo de direito público.
No caso em apreço, na sequência e por efeito do contrato de concessão
[12]
celebrado entre o Município de Matosinhos e a Autora, assumiu esta a qualidade de concessionária de um serviço reconhecidamente de interesse público, actuando, nessa medida, em “substituição” da autarquia, com os poderes inerentes, que lhe foram concessionados.
Nestas circunstâncias, independentemente da natureza jurídica de que possam revestir os contratos ou acordos tácitos estabelecidos sempre que os utentes utilizam para estacionamento os espaços públicos concessionados à Autora, tanto esta como os referidos utentes (como, no caso, a Ré) estão submetidos às regras do Regulamento Municipal que disciplina esses estacionamentos
[13]
, o que justifica o direito reconhecido àquela de proceder à cobrança das respectivas taxas
[14]
de utilização fixadas nesse instrumento normativo
[15]
e de exercer a respectiva actividade de fiscalização
[16]
.
Por outro lado, tendo a recorrente, por conta do contrato de concessão que celebrou com o Município de Matosinhos, se vinculado expressamente ao cumprimento do dito Regulamento de Estacionamento, sobre ela recai o ónus de conformar a sua actuação com as normas do mencionado diploma e agir em conformidade com os poderes que o mesmo lhe confere, nomeadamente na sua relação com os terceiros particulares que usufruem do estacionamento concessionado e como tal passam a estar sujeitos às respectivas regras e condições.
Ora, como tal Regulamento contém normas de direito público, que fixam o regime substantivo de tais contratos ou acordos tácitos, a execução dos mesmos enquadra-se na previsão do que dispõe a al. e), do nº 1 do artigo 4.º do ETAF, tal como defende a decisão recorrida, pelo que são materialmente competentes para a preparação e julgamento do presente litígio os tribunais administrativos e não os tribunais comuns.
Assim o tem, de resto, entendido a generalidade da jurisprudência
[17]
, nomeadamente em situações em que é demandante a aqui recorrente, sendo idêntico o objecto do litígio.
Ainda recentemente o Tribunal de Conflitos
[18]
decidiu no seu acórdão de 8.05.2025:
I - A concessionária da gestão e exploração do serviço público de estacionamento nas vias municipais, mediante contrato de concessão de serviços públicos, nesse âmbito, atua em substituição da autarquia, munida dos poderes que a esta são legalmente atribuídos nesse domínio.
II - As relações que estabelece com os utilizadores do estacionamento naquelas zonas consubstancia uma relação jurídica administrativa/tributária, subsumível ao disposto nas al.ªs e) e o) do n.º 1 do art.º 4.º do ETAF.
III - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa conhecer da ação intentada pela empresa a que o Município adjudicou a gestão e exploração do estacionamento de veículos em ZEDL, requerendo de particular o pagamento da contraprestação devida pela utilização do referido estacionamento
.
Confirma-se, por consequência, o decidido, assim improcedendo o recurso.
*
Síntese conclusiva:
………………………………
………………………………
………………………………
*
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação, na improcedência da apelação, em confirmar a decisão recorrida.
Custas: pela apelante, nos termos do disposto no artigo 527.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.
Notifique.
Porto, 26.06.2025
Acórdão processado informaticamente e revisto pela 1.ª signatária.
Judite Pires
Ana Luísa Loureiro
João Venade
____________________________
[1]
“Noções Elementares de Processo Civil”, pág. 91.
[2]
Sucessivamente alterada pela Lei nº 4-A/2003, de 19 de Fevereiro, Lei 107-D/2003, de 31 de Dezembro, Lei nº 1/2008, de 14 de Janeiro, Lei nº 2/2008, de 14 de Janeiro, Lei nº 26/2008, de 27 de Junho, Lei nº 52/2008, de 28 de Agosto, Lei nº 59/2008, de 11 de Setembro, Decreto - Lei nº 166/2009, de 31 de Julho, Lei nº 55-A/2010, de 31 de Dezembro, Lei nº 20/2012, de 14.05 e Lei n.º 114/2019, de 12.09.
[3]
“Direito Administrativo”, vol. III, p. 439.
[4]
“A Justiça Administrativa”, Lições, 3ª ed., 2000, págs. 79.
[5]
1 de Janeiro de 2004: artigo 9º, na redacção introduzida pela Lei nº 4-A/2003, de 19 de Fevereiro.
[6]
“Manual de Direito Administrativo”, tomo I, 10ª edição, pág. 431.
[7]
“RLJ”, 124º, 59.
[8]
“Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo”, 3ª ed., págs. 34, 35.
[9]
Cfr., designadamente, acórdãos nºs 347/97, de 25.07.97 e 284/2003, de 29.05.2003,
www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos
.
[10]
Entre outros, cfr. acórdão de 27.11.2008, processo n.º 19/08.
[11]
Cfr., nomeadamente, Mário Aroso de Almeida, “O novo regime do Processo nos Tribunais Administrativos”, 2ª edição revista e atualizada, págs. 96 e seguintes; Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, “Código de Processo nos Tribunais Administrativos e Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais Anotados”, Vol. I e Vieira de Andrade, “Justiça Administrativa – Lições”.
[12]
Que, de acordo com o disposto no artigo 429.º do Código dos Contratos Públicos, tem natureza de contrato público.
[13]
Regulamento das Zonas de Estacionamento de Duração Limitada no Concelho de Matosinhos, aprovado pela Câmara e Assembleia Municipal e publicado no Diário da República, em 8 de Março de 2016, e que foi objecto de várias alterações, a última das quais pelo Regulamento nº 494/2018, publicado no Diário da República, 2ª série, nº 147, de 1.08.2018.
[14]
E não preço como contrapartida pela prestação do serviço de parqueamento, como a recorrente sustenta, designadamente, na alínea f) das conclusões alegatórias: o Decreto-Lei nº 146/2014, de 9.10, estabelece as condições em que as empresas privadas concessionárias de estacionamento sujeito ao pagamento de taxa em vias de jurisdição municipal podem exercer a atividade de fiscalização do estacionamento nas zonas que lhe estão concessionadas.
[15]
Cfr. artigo 4.º.
[16]
Cfr. art. 7º do DL nº 146/2014, de 9.10, artigo 16º do Regulamento e cláusula 1ª do contrato de concessão.
[17]
Além da indicada na decisão sob recurso, cfr., no mesmo sentido, acórdão da Relação de Lisboa de 4.02.2025, proc.º 118032/24.5YIPRT.L1-7; da Relação de Évora de 30.01.2025, proc.º 42537/24.5YIPRT.E1, e, de forma unânime, nesta Relação do Porto: acórdãos de 11.12.2024 (rel. Isabel Peixoto), de 28.01.2025 (rel. Alberto Taveira), de 10.02.2025 (rel. José Eusébio), de 20.02.2025 (rel. Isabel Peixoto), de 11.03.2025 (rel. Artur Oliveira), de 20.03.2025 (rel. Isabel Peixoto), de 8.05.2025 (rel. Carlos Carvalho), de 26.05.2025 (rel. Ana Olívia Loureiro); de 26.05.2025 (rel. Nuno Araújo), todos em
www.dgsi.pt
.
[18]
Processo n.º 0126592/24.4YIPRT.P1.S1,
www.dgsi.pt
.
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TRP
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https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/c8d401cadf34fb6880258cc0003c17f0?OpenDocument
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1,740,528,000,000
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PROCEDENTE
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1927/23.7T8BRR.L1-4
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1927/23.7T8BRR.L1-4
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ALEXANDRA LAGE
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I.
Apenas os factos materiais são suscetíveis de prova e, como tal, podem considerar-se provados, sendo que as conclusões, envolvam elas juízos valorativos ou um juízo jurídico, devem decorrer dos factos provados, daí que quando um determinado ponto da matéria de facto integre uma afirmação ou a valoração de factos que se inscrevam na análise das questões jurídicas a decidir, contendo uma resposta àquelas questões, deverá ser daquela eliminado.
II.
A justa causa de despedimento pressupõe a existência de uma determinada ação ou omissão imputável ao trabalhador a título de culpa, violadora de deveres emergentes do vínculo contratual estabelecido entre si e o empregador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a manutenção desse vínculo.
III.
O exercício de funções no sector bancário implica, por via de regra, o desempenho de tarefas exigentes e qualificadas que, pela sua natureza, pressupõem que a relação de confiança seja o fundamento nuclear da subsistência do vínculo laboral, sendo a sua violação suscetível de acarretar prejuízos avultados para o bom nome, imagem e credibilidade da instituição bancária.
IV.
Resultando provado que todas as operações de crédito que foram preparadas pela trabalhadora foram objeto de reverificação da regularidade do processo e do cumprimento das condições exigidas pelo empregador e por si aprovadas, por intermédio da Direção de Risco de Crédito, há que concluir que o desvalor da sua conduta, consistente na ausência de relacionamento dos dez clientes envolvidos com referências aos quais se verificava o mesmo padrão (data de abertura das contas, pedidos de crédito) surge francamente mitigado.
V.
A sanção de despedimento surge, neste contexto, como desadequada e desproporcional, sobretudo quando em causa estava trabalhadora com quase vinte anos de antiguidade, ausência de antecedentes disciplinares e desempenho das suas funções, ao longo do tempo, com qualidade, proficiência e proatividade, merecedor de classificações positivas e atribuição de prémios pecuniários.
|
[
"JUSTA CAUSA DE DESPEDIMENTO",
"TRABALHADOR BANCÁRIO",
"CRÉDITO BANCÁRIO",
"SANÇÃO DISCIPLINAR",
"PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE"
] |
Acordam os Juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa
I- Relatório
1.
AA apresentou, em 16.08.2023, formulário para impulsionar ação especial de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento contra Banco XX, SA manifestando oposição ao seu despedimento e tendo procedido à junção de cópia de decisão proferida em procedimento disciplinar.
2.
Realizada a audiência de partes e frustrada a conciliação, o empregador foi notificado para juntar procedimento disciplinar e articulado motivador, o que veio fazer.
Alega, em síntese, que a trabalhadora violou de forma grave e culposa os seus deveres contratuais e profissionais, na preparação, análise, parecer e decisão de dez créditos que totalizam o montante de € 305.152,22. Mais elencou os créditos em causa e quais os factos que deveriam ter alertado a trabalhadora para a possibilidade de fraude externa, nomeadamente o facto de todos os clientes em causa residirem no Reino Unido, terem curso superior, casa própria sem ónus, procederem à abertura de conta bancária, com um único titular, e contratarem crédito de imediato. Refere, ainda, que foram cumpridas todas as formalidades do procedimento disciplinar instaurado e termina pugnando pela declaração da licitude do despedimento da trabalhadora, por estar demonstrada a necessária justa causa inerente a este.
3.
A trabalhadora apresentou contestação, com reconvenção peticionando que:
“A
) fosse declarada a ilicitude do seu despedimento, e por consequência que o Réu fosse condenado a reintegrar a Autora ou no pagamento de compensação de antiguidade nos termos do artigo 391º do Código de Trabalho, conforme opção desta até sentença, liquidado em € 42.312,24 em sede de contestação;
B) o Réu fosse condenado no pagamento à Autora das retribuições vencidas, desde 16 de Julho de 2023, liquidado em € 5.876,70 em sede de contestação, e nas retribuições vincendas;
C) O Réu fosse condenado no pagamento à Autora das horas de trabalho suplementar decorrente da sua prestação em 1h diária em cada semana de trabalho, pela formação profissional obrigatória e/ou das horas devidas e não ministradas, no período de janeiro de 2020 a Junho de 2023, a liquidar em sentença;
D) O Réu/Reconvindo fosse condenado no pagamento à Autora/Reconvinte de uma indemnização a título de danos patrimoniais no valor € 140,52;
E) O Réu/Reconvindo fosse condenado no pagamento à Autora/Reconvinte de uma indemnização a título de danos não patrimoniais no valor de € 2.500,00;
F)[…] juros de mora à taxa legal de 4% ano, que na presente data totalizam a quantia de € 260,93. “
Alegou, em resumo, que desde sempre trabalhou com afinco e dedicação, mas que o volume de serviço que lhe estava adstrito excedia o seu horário de trabalho, o que levava a que trabalhasse, regularmente, para além da hora de saída, que não existem ferramentas para verificação das situações como o IBAN ou a soma dos extractos bancários, pelo que não podem servir de fundamento para o seu despedimento. Após a análise do processo por si seguia-se a análise pela gerência do balcão e, ainda, pela direção de risco de crédito e só então era concedido o crédito. Mais alegou que enviou emails para celebração de contratos de seguro sob instruções dos clientes que mudaram a morada para Portugal para aqui receberem os cartões e a correspondência e contestou os demais factos e fundamentação utilizada para o seu despedimento. Deduziu pedido reconvencional pedindo o pagamento das horas de trabalho suplementar, formação profissional e danos patrimoniais.
4.
O empregador respondeu, impugnando o alegado quanto ao horário de trabalho, já que a trabalhadora estava abrangida pelo regime de isenção de horário de trabalho, carecendo a prestação de trabalho suplementar de autorização prévia e expressa que não foi dada. No que concerne à formação, a mesma é comunicada com o período de 4 meses para que os funcionários a façam, não sendo determinado que a realizem fora dos dias úteis. Termina pugnando pela improcedência do pedido reconvencional.
5.
Foi proferido despacho saneador onde foi admitido o pedido reconvencional, fixado objeto do litígio, enunciados os temas de prova, admitidos os requerimentos probatórios e designada data para julgamento.
6.
Procedeu-se a julgamento, na sequência do qual foi proferida decisão que julgou a ação improcedente por não provada, declarando lícito o despedimento da trabalhadora, por procedência da justa causa, e absolvendo ainda o empregador dos demais pedidos formulados. Foi fixado à ação o valor de € 32.151,17.
7.
A trabalhadora, inconformada com a decisão proferida, interpôs recurso para este Tribunal apresentando as seguintes conclusões, após convite de aperfeiçoamento:
“
1. Vem o presente recurso interposto da sentença que julgou improcedente a impugnação do despedimento apresentado pela ora Apelante, julgando-o regular e lícito, e em consequência julgou improcedentes os pedidos formulados de declaração de ilicitude, de condenação do Apelado no pagamento da indemnização e dos salários intercalares, e ainda do valor fixado à acção de 32.151,17€;
2. O presente recurso de apelação tem por objecto a selecção e julgamento da matéria de facto e, por conseguinte, a reapreciação da prova gravada e bem assim a interpretação e aplicação da lei aos factos dados como provados e não provados, seguindo as regras do ónus da prova;
3. À presente acção deve ser atribuído o valor de € 73.969,90
1
, sob pena de violação do disposto nos artigos 98ºP, nº 2 CPT e 390º e 391º do CT;
4. A sentença recorrida julgou incorrectamente a matéria de facto provada dos pontos 13, 24, 25 e 31 e das alíneas x), dd) e hh) dos factos não provados;
5. O facto provado 13, contém expressões de conteúdo técnico-jurídico e de cariz conclusivo, devendo ser considerado como não escrito/inexistente;
6. A redacção dos factos provados 24, 25 e 31 deve ser alterada, passando a ser a que consta supra, na alegação, em face dos depoimentos das testemunhas BB ((cfr. gravação digital do Tribunal, conforme CD–34m52 e CD– 02h40, e acta da sessão de julgamento do dia 02.04.2024)e CC (cfr. gravação digital do Tribunal, conforme CD–18m21, e acta da sessão de julgamento do dia 05.06.2024);
7. A matéria que consta nas alíneas x), dd) e hh) nos factos não provados deve ser aditada à matéria de facto provada, de modo a ser coerente com os depoimentos das testemunhas DD (cfr. gravação digital no Tribunal a quo CD– 51m14 e acta da sessão de julgamento do dia 29.05.2024) e EE (cfr. gravação digital no Tribunal a quo CD – 01h07 e acta da sessão de julgamento do dia 05.06.2024);
8. A Apelante não cometeu nenhum ilícito disciplinar, não havendo por isso culpa, e na falta destes elementos não pode haver sanção e menos ainda a de despedimento;
9. O Apelado não suspendeu preventivamente a Apelante; manteve a Apelante a trabalhar e, no exercício habitual das suas funções, pelo que não se verificou a imediata impossibilidade da subsistência da relação de trabalho com a Apelante;
10. A conduta da Apelante não lesou os interesses patrimoniais do Apelado.
11. O despedimento da Apelante foi ilícito, o que tem de ser declarado,
12. Deve o Apelado ser condenado no pagamento da indemnização de antiguidade pelo máximo e nos salários intercalares;
13. A sentença recorrida violou o disposto nos artigos 53º da CRP, e artigos 328º, 330º, 338º, 351º, 391º nº 1 e 3 todos do CT, artigos 607º nºs 3 e 4 do CPC, aplicável ex vi artigo 1º nº 2 alínea a) do CPT e ainda o artigo 98º-P nº 2 do CPT, padecendo da nulidade prevista no artigo 615º nº 1 alínea c)do CPC.
Concluiu a trabalhadora no sentido de que deve ser “[revogada] a sentença apelada que absolveu o Réu da ilicitude do despedimento com as consequências legais daí decorrentes, com o reconhecimento do direito a receber a indemnização legal, (…).”
8
. O empregador apresentou contra-alegações ao recurso interposto, concluindo, a final, pela sua improcedência aí referindo que:
“ 1. O presente recurso vem interposto pelo Autor, ora Recorrente, da douta sentença de Fls. , que julgou “a acção improcedente por não provada e, consequentemente, declarou lícito o despedimento da Autora, AA, por procedência da justa causa”, mais absolvendo “o Réu dos demais pedidos formulados pela Autora” e fixando o valor da acção em “€ 32.151,17 (atento o valor da retribuição actual de 1.107,89€, face à utilidade manifestada no valor da indemnização eventualmente em causa, artigos 98ºP, n.º 2, do CPT e 391º, ns.º 1 e 3, do CT)”.
2. A Recorrente insurge-se contra a douta sentença recorrida, impugnando o valor fixado à acção, impugnando a matéria de facto – factos provados 13, 24, 25 e 31 e as alíneas x), dd) e hh) dos factos dados como não provados – e, bem assim, a decisão de Direito que conduziu à absolvição do ora Recorrida nos termos supra descritos.
3. No que se refere à impugnação do valor da acção, embora a Recorrente tenha razão no que se refere a que a remuneração mensal considerada pela douta sentença recorrida – 1.107,89 € - não corresponder à remuneração da Recorrente, a verdade é que a Recorrente não indica qual o valor que deveria ser dado a acção, razão pela qual, s.m.o., tal impugnação não deve proceder.
4. A douta sentença recorrida não merece a censura que lhe faz a Recorrente e representa uma justa decisão absolutória, que decorre quer de uma correcta fixação da matéria de facto, quer de uma correcta aplicação do Direito aos factos provados.
5. O recurso deve, por isso e como se passa a expor, improceder.
6. Quanto ao Facto n.º 13, importa dizer que o dever de diligência é um dever legal dos trabalhadores, como expressamente do disposto no artigo 128.º, n.º 1, alínea c) do Código do Trabalho: “(…) o trabalhador deve: c) Realizar o trabalho com zelo e diligência”.
7. A Recorrente estava pois, como é bom de ver, sujeita ao dever de diligência na análise, preparação e parecer dos 10 processos de crédito.
8. A Recorrente fez uma análise, preparação e parecer desses dez processo de crédito de forma profundamente negligente, o que foi muitíssimo bem fundamentado na douta sentença recorrida, fundamentação que, pela forma completa e exaustiva que lhe não pode deixar de ser reconhecida, se dá aqui por integralmente reproduzida.
9. O facto n.º 13 deverá manter-se assim entre os factos provados, improcedendo a impugnação deduzida pela Recorrente nesta Apelação.
10. No que respeita ao Facto n.º 24, a sua prova decorre, além dos anexos 7 a 13, do documento que consta a Fls. 64 do procedimento disciplinar, onde se constata que a Recorrente enviou, no dia 28/07/2022, às 18:27h, um email a FF relativo ao cliente GG, pelo que improcede a impugnação nesta parte.
11. No mais, a Recorrente também não tem razão, pois o entendimento dos órgãos internos quanto à violação do sigilo bancário consta do Relatório da Auditoria e, bem assim, da prova testemunhal produzida, em concreto do depoimento da testemunha BB, Ficheiro áudio – DIA 02/04/2024, às 9:09h, e da testemunha HH, ficheiro áudio – DIA 02/04/2024, às 14:50h, nos trechos acima transcritos que aqui se dão por reproduzidos.
12. Do exposto decorre que ao Facto n.º 24 deve manter-se.
13. Quanto ao Facto n.º 25, deve a impugnação improceder porquanto por um lado, no dia 31/05/2022 a Recorrente enviou efectivamente quatro emails relativos àqueles dois clientes, como se pode confirmar dos documentos que fazem Fls. 64, 64 verso, e 65 do Procedimento disciplinar: às 13:07h, às 14:09h, às 14:49 e às 15:01h, e, por outro lado, não foi produzida qualquer prova que sustente o demais alegado pela Recorrente, ou seja, não há qualquer prova – e a Recorrente não a refere, como não podia referir –que sustente que o envio dos emails foi feito com o conhecimento e consentimento e de acordo com informações prestadas pelos clientes.
14. No que se refere ao Facto n.º 31 a impugnação deve, igualmente, improceder pois a alteração de morada tem de ser comprovada, até por imposição do Banco de Portugal, tal como resultou da prova produzida, em concreto do depoimento da testemunha BB, Ficheiro áudio –DIA 02/04/2024, às 9:09h, no trecho acima transcrito que aqui se dá por reproduzido
15. Relativamente à Alínea x) dos factos não provados, o depoimento transcrito pela Recorrente não permite, s.m.o., provar o facto como pretende a Recorrente, pelo que o facto deve manter-se como não provado ou, quando muito, com redacção que corresponda ao afirmado pela testemunha.
16. Quanto à Alínea dd) dos factos não provados, a alegação da Recorrente tem suporte na prova por si invocada, pelo que o Recorrido não se opõe à pretensão da Recorrente.
17. Por fim, no que respeita à Alínea hh) dos factos não provados, o depoimento testemunhal mencionado pela Recorrente não permite provar-se o facto, pois o que dele consta é exactamente o contrário do pretendido pela Recorrente, isto é, a Direcção de Compliance é contactada quando há dúvidas e, nesse contexto emite alertas ou não aceita o risco do cliente, razão pela qual o facto deve manter-se como não provado.
18. Em suma: improcede a impugnação da matéria de facto no que respeita aos factos provados 13, 24, 25 e 31 e às alíneas x) e hh) dos factos dados como não provados, admitindo-se a sua procedência no que respeita à alínea dd) dos factos não provados.
19. Para efeitos da justa causa de despedimento, verifica-se a impossibilidade prática da subsistência da relação laboral quando, à luz de todas as circunstâncias relevantes, mediante o balanço dos interesses em presença, e através de um juízo objetivo, segundo um critério de razoabilidade, se conclua que a ruptura é irremediável na medida em que nenhuma outra sanção se revela susceptível de sanar a crise contratual aberta por aquele comportamento culposo do trabalhador.
20. Os factos imputados à Recorrente, provados nestes autos, revestem-se de profunda gravidade e censurabilidade não sendo exigível ao Recorrido a manutenção do contrato de trabalho, por total e absoluta perda da confiança na Recorrente.
21. Como vem afirmando o Supremo Tribunal de Justiça, a actividade bancária, atenta a sua natureza, pressupõe um especial grau de confiança nos trabalhadores bancários.
22. Neste sentido, entre outros, veja-se o Acórdão do STJ, de 02/12/2004, o Acórdão do STJ de 08/01/2013, e, ainda, o Acórdão do STJ de 22/02/2017, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
23. A conduta da Recorrente, tal como provada estes autos, é incompatível com o exercício da actividade bancária e importa a quebra absoluta da confiança que nela o Recorrido depositava.
24. A Apelação deve, assim, improceder, confirmando-se nesse Venerando Tribunal a decisão absolutória do Recorrido.”
9.
A Exma. Procuradora-Geral Adjunto emitiu Parecer no sentido de não ser concedido provimento ao recurso interposto, com a ressalva quanto ao valor da ação e ao constante da matéria não provada dd).
10.
Ouvidas as partes, recorrente e recorrida pronunciaram-se no sentido já afirmado nas suas alegações e contra-alegações, respetivamente.
II – Objeto de recurso
Resulta das disposições conjugadas dos arts. 639.º, n.º 1, 635.º e 608.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis por força do disposto pelo art.º 1.º, n.ºs 1 e 2, al. a) do Código de Processo do Trabalho (CPT), que as conclusões delimitam objetivamente o âmbito do recurso, no sentido de que o tribunal deve pronunciar-se sobre todas as questões suscitadas pelas partes (delimitação positiva) e, com exceção das questões do conhecimento oficioso, apenas sobre essas questões (delimitação negativa).
Assim sendo fixam-se as seguintes questões a resolver:
i. O valor da causa;
ii. Impugnação da matéria de facto quanto aos factos provados 13,24,25 e 31 e factos não provados das alíneas), dd) e hh);
iii. Licitude do despedimento da trabalhadora e consequências a extrair, em caso de se concluir pela sua ilicitude.
III – Valor da causa.
Na sentença recorrida o valor da causa foi fixado em
“€ 32.151.17 (atento o valor da retribuição actual de €1.107,89, face à utilidade manifestada no valor da indemnização, eventualmente em causa, artigos 98ºP, n.º 2 e 391º, n.º 1 e 3 do CT)”.
A recorrente refere erro do Tribunal ao fixar o valor da retribuição na quantia de €1707,89, quando de acordo com a prova produzida nos autos (facto provado 40), a retribuição é de €1512.44, correspondendo à soma da retribuição base e das diuturnidades, sendo este o valor que, nos termos do art. 391º n.º1 e 3 do CT, releva para a determinação do valor da indemnização e consequente utilidade económica da sentença e, ainda que, na sentença não é explicado o “
iter
” lógico-racional que permitiu ao Tribunal obter o valor de €1.107,89.
Nas conclusões do recurso aperfeiçoadas, no ponto 3., a recorrente procedeu à indicação do valor da causa que, em seu entender, deveria ser fixado em € 73.969,90, o que não havia feito aquando da apresentação das primeiras conclusões.
Tendo a recorrente extravasado o âmbito do convite ao aperfeiçoamento, deverá considerar-se não escrito o montante referido, mantendo-se, nesta parte, o que consta das primeiras conclusões, esclarecendo-se, ainda, que a ausência de indicação do montante que deva ser fixado em alternativa não obsta ao conhecimento da impugnação.
Na ação especial de impugnação da regularidade e licitude do despedimento está em causa a declaração da licitude ou ilicitude do despedimento e as consequências daí decorrentes, designadamente, pedido de reintegração ou, em substituição, pedido de indemnização de antiguidade, pedido de pagamento das retribuições intercalares. Na reconvenção, o trabalhador pode ainda reclamar o pagamento de outros créditos laborais incluindo a indemnização prevista na alínea a) do n.º 1 do art. 389 do CT, como decorre do disposto no art. 98º-L, nº 3, do CPT.
De acordo com o art. 98º P n.º 2 do CT o valor da causa é sempre fixado a final pelo juiz tendo em conta a utilidade económica do pedido, designadamente o valor de indemnização, créditos e salários que tenham sido reconhecidos.
No caso, a recorrente formulou na contestação/reconvenção cinco pedidos, a saber: a declaração da ilicitude do seu despedimento, com a consequente condenação da ré a reintegrá-la ou a pagar-lhe a compensação de antiguidade, nos termos do artigo 391º do CT, que liquidou em € 42.312,24; a condenação da ré no pagamento das retribuições intercalares vencidas desde 16.07.2023 que liquidou em € 6.876,70; a condenação da ré no pagamento de trabalho suplementar e formação profissional não ministrada a liquidar em execução de sentença; a condenação da ré no pagamento da quantia de € 140,52 a título de danos patrimoniais, e da quantia de € 2500.00 a título de danos não patrimoniais e, ainda, de € 260,93 de juros.
Aos mencionados pedidos corresponde uma utilidade económica e será essa utilidade económica que determina o valor da ação
2
o que sempre sucederia mesmo no caso de não ter havido qualquer reconhecimento de créditos.
Considerando que não houve recurso quanto à reconvenção o valor a atribuir será o que resulta da soma dos pedidos, cfr. art. 297 n.º 1, 1ª parte do CPC, ou seja, de € 2640,52.
Relativamente à ação e por o seu montante estar dependente da sorte do recurso interposto pela recorrente será o mesmo fixado a final.
IV- Fundamentação de facto.
4.1. -
O artigo 607º, n.º 5, do CPC dispõe que o tribunal aprecia livremente as provas e fixa a matéria de facto em conformidade com a convicção que haja firmado acerca de cada facto controvertido, salvo se a lei exigir para a existência ou prova do facto jurídico qualquer formalidade especial, caso em que esta não pode ser dispensada.
De acordo com o disposto no n.º 1 do artº 662º, do CPC sob a epígrafe “Modificabilidade da decisão de facto” refere-se que “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Como se pode ler no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 07.12.2023
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“(…), os recursos da decisão da matéria de facto podem visar objetivos distintos, a saber:
a)a alteração da decisão da matéria de facto, considerando provados factos que o tribunal a quo considerou não provados, e vice-versa, com base na reapreciação dos meios de prova ou quando os elementos constantes do processo impuserem decisão diversa (no caso de ter sido apresentado documento autêntico, com força probatória plena, para prova de determinado facto ou confissão relevante) ou em resultado da apreciação de documento novo superveniente (nº 1 do artº 662º do Código de Processo Civil);
b)a ampliação da matéria de facto, por ter sido omitida dos temas da prova, matéria de facto alegada pelas partes e que se mostre essencial para a boa resolução do litígio (art. al. c) do nº 2 do artº 662º, do Código de Processo Civil);
c)a apreciação de patologias que a decisão da matéria de facto enferma, que, não correspondendo verdadeiramente a erros de apreciação ou de julgamento, se traduzam em segmentos total ou parcialmente deficientes, obscuros ou contraditórios (também nos termos da al. c) do nº 2 do artº 662º, do Código de Processo Civil).”
António Santos Abrantes Geraldes
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refere que
“(…) fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à indicação dos pontos de discórdia”.
E, ainda que, “
sendo a decisão do tribunal a quo o resultado da valoração de meios de prova sujeitos à livre apreciação tais como depoimentos testemunhais, documentos particulares sem valor confessório, relatórios periciais ou declarações de parte a que não corresponda confissão, desde que a parte interessada cumpra o ónus de impugnação prescrito pelo art. 640º, a Relação assumindo-se como um verdadeiro tribunal de instância, está em posição de proceder à sua reavaliação, expressando, a partir deles, a sua convicção com total autonomia. Afinal, nestes casos, as circunstâncias em que se inscreve a sua atuação são praticamente idênticas às que existiam quando o tribunal de 1ª instância proferiu a decisão impugnada, apenas cedendo nos fatores de imediação e oralidade
.”
À Relação competirá, então, reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, atendendo ao conteúdo das alegações da recorrente, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados.
Importará, ainda, aferir se o recorrente que veio impugnar a decisão da matéria de facto, quanto a determinados pontos da matéria de facto provada e não provada, cumpriu os requisitos de ordem formal que permitem a este Tribunal apreciar aquela impugnação
,
a saber, se
especifica, como a lei impõe, os concretos pontos da matéria de facto que pretende ver apreciada e os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa para cada um dos pontos da matéria de facto impugnada, indicando com exatidão as concretas passagens da gravação dos depoimentos em que se funda o recurso, cfr. art. 640º do CPC.
Cumprindo ao recorrente indicar os pontos de facto que impugna, esta pretensão, delimitando o objeto do recurso, deve ser inserida também nas conclusões, art. 635º do CPC.
“
Com relevo (…) mais se acrescenta que no âmbito do recurso com impugnação da decisão da matéria de facto impõe-se que a matéria dela objeto seja essencial ou relevante para a decisão de mérito na qualidade de factos concretizadores dos pressupostos constitutivos do direito a que o autor se arroga ou da defesa excetiva invocada pelo réu, por contraposição com os factos de natureza instrumental que, conforme da própria designação resulta, apenas relevam para fundamentar raciocínios lógicos-indutivos que concluam ou não pela existência dos próprios factos fundamentadores do direito ou da exceção, tarefa que tem o seu lugar próprio na valoração ou julgamento da matéria de facto
”.
5
E que
“ não se deverá proceder à reapreciação da matéria de facto quando os factos objecto de impugnação não forem susceptíveis, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação, de ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe ser inútil, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processuais (arts. 2º, nº 1, 137º e 138º, todos do C.P.C.)
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Finalmente refere-se que só os factos materiais são suscetíveis de prova e, como tal, podem considerar-se provados, sendo que as conclusões, envolvam elas juízos valorativos ou um juízo jurídico, devem decorrer dos factos provados.
Conforme é entendimento pacífico as conclusões apenas podem extrair-se de factos materiais, concretos e precisos que tenham sido alegados, sobre os quais tenha recaído prova que suporte o sentido dessas alegações.
No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-03-2014
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, refere-se, ainda, que “
só acontecimentos ou factos concretos podem integrar a seleção da matéria de facto relevante para a decisão, sendo, embora, de equiparar aos factos os conceitos jurídicos geralmente conhecidos e utilizados na linguagem comum, verificado que esteja um requisito: não integrar o conceito o próprio objeto do processo ou, mais rigorosa e latamente, não constituir a sua verificação, sentido, conteúdo ou limites objeto de disputa das partes
”
Em consonância com o que se vem de referir, as afirmações de natureza conclusiva devem ser excluídas do elenco factual a considerar, se integrarem o
thema decidendum
, ou seja, o conjunto de questões de natureza jurídica que integram o objeto do processo a decidir. Assim, quando um ponto da matéria de facto integre uma afirmação ou valoração de factos que se insira na análise das questões jurídicas a decidir, contendo uma resposta àquelas questões, tal ponto da matéria de facto deve ser desconsiderado.
Este entendimento não pode ser, no entanto, absoluto, já que como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14-07-2021
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“
« [m]as mesmo sem ir tão longe e admitindo que o Tribunal possa excluir factos genuinamente conclusivos, importa ter em conta que, como já referiu este Supremo Tribunal: “Torna-se patente que o julgamento da matéria de facto implica quase sempre que o julgador formule juízos conclusivos, obrigando-o a sintetizar ou a separar os materiais que lhe são apresentados através das provas. Insiste-se: o que a lei veda ao julgador da matéria de facto é a formulação de juízos sobre questões de direito, sancionando a infração desta proibição com o considerar tal tipo “[de juízos como não escritos. Conforme já pusemos em relevo noutra ocasião (Ac. de 7.4.05, proferido na Revª 186/05,….), não pode perder‑se de vista que é praticamente impossível formular questões rigorosamente simples, que não tragam em si implicados, o mais das vezes, juízos conclusivos sobre outros elementos de facto; e assim, desde que se trate de realidades apreensíveis e compreensíveis pelos sentidos e pelo intelecto dos homens, não deve aceitar‑se que uma pretensa ortodoxia na organização da base instrutória impeça a sua quesitação, sob pena de a resolução judicial dos litígios ir perdendo progressivamente o contacto com a realidade da vida e assentar cada vez mais em abstrações (e subtilezas jurídicas) distantes dos interesses legítimos que o direito e os tribunais têm o dever de proteger. E quem diz quesitação diz também, logicamente, estabelecimento da resposta, isto é, incorporação do correspondente facto no processo através da exteriorização da convicção do julgador, formada sobre a livre apreciação das provas produzidas” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/11/2007, processo n.º 07A3060, NUNO CAMEIRA).»
4.2. Impugnação da matéria de facto dada como provada.
No que concerne ao cumprimento dos ónus de impugnação a que se alude supra e, sem prejuízo de se assinalar quanto tal não suceder, consideramos, em regra, cumpridos os mesmos.
4.2.1.A
recorrente insurge-se quanto à factualidade constante do facto provado 13. devendo ser considerado como não escrito/inexistente.
O facto em causa tem a seguinte formulação:
“
13 - A Autora não usou da diligência que lhe era legal e normativamente exigida, na preparação, análise e parecer de 10 (dez) créditos pessoais, que totalizam o montante de € 305.152,22, ao não ter relacionado os diversos clientes, não haver questionado a repetição do seu padrão sócio económico e, deste modo, não tendo percecionado potencial fraude externa levada a efeito por aqueles, com os inerentes riscos e prejuízos para o Banco.“
Para o efeito, a recorrente refere que contém matéria técnico-jurídico e de cariz conclusivo, que da análise da prova documental dos autos não existe qualquer normativo onde constem as regras a que estava adstrita, impondo-se ao Tribunal que identifique a norma jurídica e qual o concreto normativo que possa ter sido violado.
Acrescenta que, dos depoimentos das testemunhas que identifica, também não resultou prova de que exista normativo que determine ser exigível à recorrente que relacione características idênticas entre clientes novos.
Na motivação do facto em causa pode ler-se o seguinte:
“
O facto sob o n.º 13 foi considerado demonstrado após análise cuidada dos apensos 7 a 9 e 21 a 30 do processo disciplinar, correspondente aos emails trocados entre a Autora e FF e à impressão dos processos de crédito dos clientes II (apenso 20), JJ (apenso 21), KK (apenso 22), LL (apenso 23), MM (apenso 25), NN (apenso 26), OO (apenso 27), PP (apenso 28), QQ (apenso 29) e RR (apenso 30). Da conjugação dos apensos verifica-se que no primeiro dos processos, de II, a mesma começa por pedir € 42.500,00 e quando são levantadas dúvidas e pedidas outras garantias, no mesmo dia, 15 de Fevereiro de 2022, a Autora, responde às várias dúvidas e sugere a diminuição do montante do empréstimo, para que não sejam necessárias as garantias adicionais. Nos demais empréstimos que se seguem, os valores pedidos aparecem já pelo montante que não levantariam pedidos de garantias adicionais. Mais, apesar de todos os clientes terem bacharelatos ou cursos superiores, desempenhavam no Reino Unido funções de encarregados de limpeza, vigilantes ou empregados de mesa, o que seria um desaproveitamento das suas habilitações e capacidades, não se afigurando lógico que, emigrando para outro país, com formação superior, com conhecimentos mínimos da língua, presume-se, para aí poderem residir, não conseguissem, pelo menos, trabalhos administrativos ou medianamente qualificados. Mais, as mudanças de morada para Portugal, que no articulado da Autora se deveriam ao desenvolvimento de actividade em regime de teletrabalho, não são possíveis, tendo em conta as actividades indicadas, de encarregados de limpeza, vigilantes ou empregados de mesa. Os anexos referidos conjugados ainda com os anexos 7 a 9, os emails nos quais a Autora envia elementos dos contratos dos clientes SS, QQ e RR a FF, com o cumprimento de “maninha”, demonstra que a Autora sabia que estas pessoas estavam, de algum modo relacionadas e que tinham as mesmas condições e deveria ter atentado se o padrão se estabelecia, ou que padrão se estabelecia e se haveria algo por detrás de tantos empréstimos semelhantes. Apesar do volume de serviço que a Autora também demonstrou, é certo que estes empréstimos impunham à Autora que a mesma depois tivesse de fazer actividades extra: mandar emails, ou para a FF, ou para obter o seguro junto da empresa “...”, ou seja, actividades que por saírem do normal do resto do seu trabalho, deveriam ter-lhe chamado a atenção para o padrão. Acresce que, sabendo que os clientes vinham recomendados pelos outros clientes, teria também de ter estranhado que um grupo de amigos tivesse exactamente as mesmas necessidades de crédito e pelo mesmo valor, cerca de € 30.000,00 e para obras em casa própria.”
Ao contrário do referido pela recorrente as normas em vigor no empregador vêm referidas no Relatório de Auditoria – N: 2022-1014, o que não significa que devam constar da factualidade provada.
Como já se referiu supra, só os factos materiais são suscetíveis de prova e, como tal, podem considerar-se provados, sendo que as conclusões, envolvam elas juízos valorativos ou um juízo jurídico, devem decorrer dos factos provados.
Assim, não temos dúvidas em que afirmar que no teor do art. 13º, a utilização de expressões como “
não usou da diligência que lhe era legal e normativamente exigida
” e
“ e deste modo, não tendo percecionado potencial fraude externa levada a efeito por aqueles, com os inerentes riscos e prejuízos para o Banco”
comporta expressões de cariz jurídico e conclusivo que devem por isso ser eliminadas.
Já quanto, ao “não relacionar os diversos clientes” e a “repetição do seu padrão” entende-se que, neste segmento existe conteúdo fáctico, relacionado com uma atividade e, constando já do facto provado 26 que não foi impugnado, não se vê utilidade na sua repetição.
Assim sendo terá de proceder parcialmente a pretensão da recorrente mantendo-se no facto provado apenas a factualidade de preparação, análise e parecer pela autora dos 10 créditos pessoais que totalizam o montante de € 305.152,22.
Na medida em que está diretamente relacionado com a matéria de facto impugnada, há a relevar que, na matéria de facto não provada, consta da alínea a`) que“
A Autora não usou da diligência que lhe era legal e normativamente exigida na decisão de 10 (dez) créditos pessoais, que totalizam o montante de € 305.152,22”,
matéria que terá também de ser eliminada, atento o seu pendor conclusivo.
Procede, assim, parcialmente o pedido da recorrente procedendo-se, ainda, à eliminação da alínea a`) dos factos não provados.
4.2.2.
Insurge-se, ainda, a recorrente quanto à matéria de facto constante do facto provado 24 cuja redação deverá ser alterada.
O facto tem o seguinte teor:
24 – A Autora enviou quatro emails, datados de 03 de Junho de 2022 e 28 de Julho de 2022 a FF, não cliente, com informação relativa aos clientes MM, RR, QQ e GG (APS, FII, NIB e IBAN), o que não foi qualificado como violação de dados pessoais mas foi qualificado como violação do dever de sigilo bancário internamente.
Para o efeito, a recorrente refere que na motivação da sentença se refere que o facto provado assentou nos anexos 7 a 13 dos autos sendo que compulsados os mesmos não consta o envio de qualquer email sobre o cliente GG. Refere, ainda, que na comunicação com terceiros, no meio da azáfama que constituía o seu dia-a-dia- e agindo sob um certo automatismo, não se apercebeu que não havia recolhido as autorizações escritas dos clientes que lhe deram instruções. O mesmo se diga relativamente à mediadora de seguros que foi contactada apenas a pedido dos clientes E só se poderia falar de quebra de sigilo bancário se não houvesse autorização dos clientes para o envio da documentação e informação.
Propõe a seguinte redação:
“ 24 – A Autora enviou três emails, datados de 03 de Junho de 2022 e 28 de Julho de 2022 a FF, não cliente, com informação relativa aos clientes MM, RR, QQ (APS, FII, NIB e IBAN) o que não foi qualificado como violação de dados pessoais.”
Na sentença recorrida, na motivação e a propósito, escreveu-se:
“Os factos sob os números 24 e 25 foram considerados provados cm base nas cópias dos emails juntos como anexos 7 a 13 do processo disciplinar, conjugado com o relatório final do processo disciplinar quanto à conclusão dos órgãos internos do Réu quanto à qualificação de tais condutas.”
Verificados os documentos juntos com o requerimento com a ref.ª citius 37065068 encontram-se os seguintes emails enviados pela recorrente a FF: email de 28 de julho de 2022 enviado às 18.24 referente ao cliente RR( anexo 7/1); email de 25 de julho de 2022 enviado às 15.50 referente à cliente QQ( anexo 8/1); email de 3 de junho de 2024 enviado às 12.04 referente ao cliente SS ( anexo9/1).
Sucede porém que, como refere a recorrida, no documento que consta a fls. 64 do procedimento disciplinar, junto sob a ref.ª citius 37062936 e que integra o Relatório de Auditoria – N:2022-1014 de fls. 49 e ss. constata-se que a recorrente enviou, ainda, a FF em 28 de julho às 18.27 um email referente ao cliente GG, razão pela qual se mantém o envio de quatro emails, sendo um deles referente ao cliente GG e apesar de não constar dos anexos 7 a 13.
Improcede, assim, o pedido da recorrente mantendo-se o facto provado 24. com exceção do último segmento do facto provado, “
o que não foi qualificado como violação de dados pessoais mas foi qualificado como violação do dever de sigilo bancário internamente”
por conter, nesta parte, matéria de direito e/ou conclusiva, já que a qualificação de uma conduta com integradora de violação de dados pessoais ou de sigilo profissional resulta da subsunção de factos à sua integração jurídica, pelo que será eliminado.
4.2.3.
A recorrente discorda também da redação dada ao facto provado 25 que deve ser alterada.
Para o efeito, a recorrente refere que a motivação do facto provado 25 assentou nos anexos 7 a 13 e dos quais consta que apenas enviou dois emails à seguradora “...” e que os demais emails não foram enviados por si. Mais refere que os dois emails enviados foram por instruções dos clientes, com o respetivo conhecimento e consentimento, e de acordo com as informações prestadas pelos clientes que solicitaram a sua ajuda.
Indica o depoimento da testemunha CC
9
.
Propõe a seguinte redação:
25 – A Autora enviou dois emails, datados de 31 de Maio de 2022, à mediadora “...” com informação relativa aos clientes TT e KK, a pedido, com conhecimento, consentimento e de acordo com informações por eles prestadas
O facto provado 25 tem o seguinte teor:
25 – A Autora enviou quatro emails, datados de 31 de Maio de 2022, à mediadora “...” com informação relativa aos clientes TT e KK.
A motivação do facto em causa foi efetuada em conjunto com o facto provado 24 e já foi acima referida.
No anexo 10 ( ref.ª citius 37065068), concretamente do anexo 10/1 constam os emails enviado pela recorrente em 31 de maio de 2022, pelas 14.49 e pelas 15.01, para a seguradora e referentes à cliente TT. No anexo 11/1 encontram-se os emails enviados à seguradora pela recorrente em 31 de maio de 2022, às 12.20 e às 13.07, referentes a KK.
Ou seja, há quatro emails que foram enviados pela recorrente para a seguradora.
Vejamos, agora, se do depoimento da testemunha CC resulta que o envio dos emails foi efetuado no contexto que alega a recorrente.
Do depoimento da testemunha, a cuja audição procedemos, resulta ser sócio-gerente da seguradora mas sem que tenha qualquer conhecimento direto das circunstâncias em que foram enviados os emails, incidindo o seu depoimento na
análise
das condições de subscrição de seguro, designadamente quanto à morada ou residência em Portugal que passaria pela indicação de uma morada em território nacional, cobertura do risco, justificando, ainda, a preferência pela sua agência pela proximidade com o balcão.
Não há, assim, qualquer declaração da qual se possa concluir que a testemunha sabia que os clientes a que a recorrente alude nos emails não só tinham conhecimento dos emails como consentiram e concordaram com o seu envio fornecendo informações, enfim, que tenham solicitado a ajuda da recorrente.
Tudo visto e ponderando não se afigura dever introduzir-se qualquer alteração na decisão do facto provado 25 por a prova apresentada pela requerente não impor distinta decisão e constar do anexo 10 e 11 prova do envio de quatro emails.
Improcede, assim, o pedido da recorrente
4.2.4.
Quanto ao facto provado 31, a recorrente pretende que seja alterada o seu teor.
Para o efeito, a recorrente sustenta que do depoimento da testemunha BB resulta claro que a recorrente não incumpriu qualquer dever contratual por não ser necessária a apresentação de documento de suporte para criação de morada alternativa.
Propõe a seguinte redação:
“31 – No processo de crédito n.º ..., titulado por PP foi detetada a criação de uma morada alternativa, pela Autora em 15 de Julho de 2022.”
No facto provado 31 afirma-se:
“
31 – No processo de crédito n.º ..., titulado por PP foi detetada a criação de uma morada alternativa, pela Autora em 15 de Julho de 2022, sem que tenha sido localizada a “APS” de suporte ou carta de instruções, o que viola o processo “Clientes e Contas | Manutenção de Pessoa e Conta | Alteração/Confirmação de Dados de Pessoa”, na medida em que aí se determina a necessidade de “Receber do Cliente o pedido de alteração de dados de Pessoa e respetivos documentos identificativos e comprovativos conforme a alteração a efetuar.”.
Na motivação e quanto a este facto pode ler-se na sentença:
“Os factos sob os números 31 e 32 resultam provados com base na análise da impressão dos processos de crédito destes dois clientes que constituem apensos 28 e 30 do processo disciplinar, nos quais é evidenciada a falta de tais elementos de suporte para a alteração da morada pela Autora, conjugado com o teor do ponto n.º 2.2.45 do relatório final do processo disciplinar, que dá conta que no caso de RR tal situação foi sanada na pendência do processo disciplinar.”
Procedendo à audição do depoimento da testemunha indicada, BB, do mesmo resulta – como referido pela recorrente - que as moradas alternativas não são objeto de comprovação, não se tendo detetado que esta afirmação seja alterada ao longo do seu depoimento, designadamente no segmento transcrito em sede de contra-alegação.
Porém, o problema da comprovação da morada não é relevante, no contexto do processo, por a questão se centrar na ausência de instruções do cliente.
Por outro lado, não encontramos documentos dos quais se pudesse concluir que existiu instrução ou carta do cliente para se proceder à criação de morada alternativa, designadamente no anexo 28 (cfr. requerimento citius 37065074) apesar de fraca qualidade de digitalização de alguns dos documentos.
Assim, mantém-se o facto provado 31, com exceção do segmento final “
o que viola o processo “Clientes e Contas | Manutenção de Pessoa e Conta | Alteração/Confirmação de Dados de Pessoa”, na medida em que aí se determina a necessidade de “Receber do Cliente o pedido de alteração de dados de Pessoa e respetivos documentos identificativos e comprovativos conforme a alteração a efetuar”,
por conter matéria de direito e/ou conclusiva, por um lado, e, por outro, por corresponder à transcrição de norma/processo violado que, naturalmente, não enquadra qualquer facto.
4.3. Impugnação da matéria de facto dada como não provada.
4.3.1
Insurge-se a recorrente quanto ao facto não provado x) que deverá passar a constar do elenco dos factos provados.
Para o efeito, a recorrente invoca o depoimento da testemunha DD sobre as instalações e condições de trabalho onde funciona a Direção de Risco de Crédito.
O facto não provado x) tem a seguinte redação:
“x) Sendo esta análise da Direcção de Risco de Crédito um trabalho que exige minucia e concentração elevada, estes trabalhadores, desenvolvem a sua actividade em gabinete, sem interrupções telefónicas ou presenciais de clientes, como sucede com a gerência de um Balcão, e mais concretamente com a Autora, como se deixou alegado supra.”
Na motivação escreveu-se na sentença recorrida que:
“Os factos sob as alíneas x) e y) foram considerados não provados porquanto não se fez nenhuma prova da forma de trabalho da Direcção de Risco de Crédito, se em gabinete ou de outra forma, nem da sua formação”.
No que concerne a esta pretensão, a par de não poder deixar de se reconhecer o seu caráter vago e impreciso, nenhuma mais valia poderá trazer para a decisão, sendo que o princípio da utilidade dos atos, consignado no art. 130º do CPC, impõe que da factualidade a apreciar se possa retirar e beneficio útil para a decisão final, o que não se verifica tanto mais que resulta já do facto provado 51 como é efetuado o trabalho da Direção de Risco de Crédito.
Improcede, assim, o pedido da recorrente.
4.3.2.
A recorrente não se conforma, ainda, com a factualidade dada como não provada na alínea dd) que deverá passar a integrar o elenco dos factos provados.
Para o efeito, a recorrente invoca a documentação constante do Anexo 20, fls. 2 e 2 v e da qual resulta que a decisão é da trabalhadora UU que integra a Direção de Risco de Crédito que corresponde ao nível decisório ( ND) 5.
O facto não provado dd) tem a seguinte redação:
“dd) Não foi a Autora, mas sim a decisora UU, da Direcção de Risco de Crédito quem colocou como condição para a aprovação do crédito, que a subscrição de seguro de vida em entidade congénere no processo n.º ....”
Na motivação escreveu-se na sentença recorrida que:
“Os factos sob as alíneas cc) e dd) foram considerados não provados por não se ter feito qualquer prova dos mesmos.”
Em sede de contra-alegações a recorrida afirma que a alegação da recorrente tem suporte na prova por si invocada pelo que não se opõe à pretensão da recorrente.
Verificando-se o Anexo 20 ( requerimento com a ref.ª citius 37065071) assiste razão à recorrente pelo que se passará o facto não provado a integrar o elenco dos factos provados.
4.3.3.
O inconformismo da recorrente abrange, ainda, o facto provado hh) que deverá integrar o elenco dos factos provados.
Para o efeito, a recorrente invoca o depoimento da testemunha EE referindo que do mesmo é possível concluir que é a Direção de Compliance da recorrida que controla e decide a abertura das contas e que quando entende que há algum risco emite instruções para o Balcão.
O facto não provado hh) tem a seguinte redação:
“hh) Existe no Réu a Direcção de Compliance, que controlava todos os movimentos de todas contas, e quando da sua análise mais minudente surgiam dúvidas, enviavam uma comunicação de correio electrónico ao Balcão respectivo a solicitar esclarecimentos sobre os movimentos efectuados nas contas.”
Na motivação escreveu-se na sentença recorrida que:
“Os factos sob as alíneas gg) a jj) foram considerados não provados por não se ter junto qualquer prova documental quanto aos mesmos e nenhuma testemunha os ter concretizado nos seus depoimentos.”
Analisado o depoimento da testemunha EE resulta que a testemunha afirmou não ter experiência em abertura de contas ao Balcão há muitos anos tendo, no entanto, referido, quanto ao procedimento, que se o Balcão considerar que o cliente é de alto risco, pode decidir não abrir a conta e pode, ainda, contactar a área da Direção de Compliance se tiver dúvidas. Referiu também a testemunha que esta área da Direcção de Compliance pode emitir um alerta em determinadas situações que o justifiquem ainda que não as tenha esclarecido.
Deste depoimento resulta que a Direcção de Compliance intervém quando solicitada (o que nem sequer consta do facto em causa) e, ainda, que tem intervenção de
motu
próprio noutras situações, sem esclarecer, contudo, quais sejam estas, designadamente se abrangem o movimento de contas ( segmento de intervenção a que se alude no facto não provado). De qualquer modo, a testemunha referiu-se ao tema da abertura de contas, o que sempre seria distinto da pretensão da recorrente, a qual se refere aos movimentos de contas.
Improcede, por isso, nesta parte, o pedido da recorrente.
4.3.4.
“
Na lei processual civil atualmente em vigor inexiste preceito igual ou similar ao art. 646.º, n.º 4, do CPC revogado, de acordo com o qual se tinham «por não escritas as respostas do tribunal coletivo sobre questões de direito e bem assim as dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes».
Sem prejuízo, a separação entre facto e direito continua a estar, como sempre esteve, presente nas várias fases do processo declarativo, quer na elaboração dos articulados, quer no julgamento, quer na delimitação do objecto dos recursos. O direito aplica-se a um conjunto de factos que têm que ser realidades demonstráveis e que, por isso, não podem ser juízos valorativos ou conclusivos e ou jurídicos.
Por isso o actual art. 607.º, n.º 3, do CPC, nos diz que na sentença deve o juiz «discriminar os factos que considera provados», acrescentando-se, no n.º 4, do mesmo preceito, que «[n]a fundamentação da sentença o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que foram admitidos por acordo, provados por documento ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou pelas regras de experiência».
O art. 663.º, n.º 2, do CPC, estatui que, na elaboração do acórdão, observar-se-á, na parte aplicável, o preceituado nos arts. 607.º a 612.º, pelo que o comando normativo do art. 607.º, relativo à discriminação dos factos, se aplica, também,
ao Tribunal da Relação, impedindo-o de fundar o seu juízo sobre afirmações constantes do elenco de facto e que se traduzam em juízos valorativos ou de direito, quer estes se evidenciem, desde logo, da matéria de facto provinda da 1.ª instância, quer sejam, em sede de recurso de facto, sugeridos pelas partes
.”
10
Analisada a matéria de facto fixada pela 1.ª instância e, para além da que a propósito da impugnação de facto deduzida pela recorrente fomos expurgando, constatamos que muita dela é conclusiva, encerrando juízos de valor, referências a normas ou a entendimentos quando é evidente que tais realidades não se traduzem numa prática ou num facto propriamente dito.
No uso oficioso dos poderes que competem a esta Relação, no âmbito da matéria de facto e que derivam dos preceitos que constam da citação acima efetuada, eliminar-se-ão os seguintes factos e expressões desses factos do elenco dos que estavam provados e não provados:
- o facto provado 2, por conter matéria conclusiva;
-
do facto provado 16 a expressão “o qual, no entendimento do réu não abrangia as pessoas não residentes em Portugal”, por o entendimento não ser facto;
- do facto provado 17 a expressão “o qual, no entendimento do réu não abrangia as pessoas não residentes em Portugal” pela razão que consta a propósito do facto 16;
- do facto provado 18 a expressão “o qual, no entendimento do réu não abrangia as pessoas não residentes em Portugal” pela razão que consta a propósito do facto 16;
- do facto provado 19 a expressão “o qual, no entendimento do réu não abrangia as pessoas não residentes em Portugal” pela razão que consta a propósito do facto 16;
- do facto provado 20 a expressão “o qual, no entendimento do réu não abrangia as pessoas não residentes em Portugal” pela razão que consta a propósito do facto 16;
- do facto provado 21 a expressão “o qual, no entendimento do réu não abrangia as pessoas não residentes em Portugal” pela razão que consta a propósito do facto 16;
- do facto provado 23 a expressão “o qual, no entendimento do réu não abrangia as pessoas não residentes em Portugal” pela razão que consta a propósito do facto 16;
- do facto provado 28 a expressão “o que contradiz a informação espelhada nos Pedidos de decisão de créditos, onde se lê que os Proponentes residem e trabalham no RU,” por ser conclusiva;
- do facto provado 31 a expressão “
reiterando o incumprimento do Processo “Clientes e Contas | Manutenção de Pessoa e Conta | Alteração/Confirmação de Dados de Pessoa”, na medida em que aí se determina a necessidade de “Receber do Cliente o pedido de alteração de dados de Pessoa e respetivos documentos identificativos e comprovativos conforme a alteração a efetuar.”,
por conter matéria de direito e/ou conclusiva, por um lado, e, por outro, por corresponder à transcrição de norma/processo violado que, naturalmente, não enquadra qualquer facto;
- do facto provado 32 a expressão “
reiterando o incumprimento do Processo “Clientes e Contas | Manutenção de Pessoa e Conta | Alteração/Confirmação de Dados de Pessoa”, na medida em que aí se determina a necessidade de “Receber do Cliente o pedido de alteração de dados de Pessoa e respetivos documentos identificativos e comprovativos conforme a alteração a efetuar.”,
pela razão que consta a propósito do facto 32;
- do facto provado 33 a expressão “
Existem indícios de fraude externa reforçados pelo facto de”,
por conter conteúdo conclusivo e de direito;
- do facto 35 a expressão “
o que viola o Normativo “Clientes e Contas – Princípios Gerais e Boas Práticas”) que determina que “Por regra, os documentos que apresentem rasuras, evidência de utilização de borracha ou tinta corretiva, sobreposição de carateres, alterações ou emendas devem ser sempre devolvidos e solicitado novo preenchimento, bem como não devem ser inscritas quaisquer notas ou mensagens internas, ainda que efetuadas a lápis.”,
pelas mesmas razões que constam a propósito do facto 31;
- eliminação do facto 36 por conter matéria conclusiva;
- eliminação do facto 37 por se tratar, por um lado, de repetição (parcial) do facto 25, e, por outro, por corresponder a matéria conclusiva;
- eliminação do facto 39 por conter matéria conclusiva;
- do facto 40 as expressões “mista” e “ a parte variável era composta”, por conter matéria conclusiva e de direito;
- do facto 46 as expressões “ muito sobrecarregados” e “elevado, por conter matéria conclusiva e de direito;
- do facto 62 a expressão ”e se o fez foi por as considerar regulares”, por conter matéria conclusiva e de direito;
- do facto não provado b) a expressão “
reiterando o incumprimento do Processo “Clientes e Contas | Manutenção de Pessoa e Conta | Alteração/Confirmação de Dados de Pessoa”, na medida em que aí se determina a necessidade de “Receber do Cliente o pedido de alteração de dados de Pessoa e respetivos documentos identificativos e comprovativos conforme a alteração a efetuar.”,
por conter matéria de direito e/ou conclusiva, por um lado, e, por outro, por corresponder à transcrição de norma/processo violado que, naturalmente, não enquadra qualquer facto;
- eliminação do facto não provado c) por conter matéria conclusiva;
- eliminação do facto não provado e) por conter matéria conclusiva;
-do facto não provado kk) a expressão “O despedimento da autora assente em argumentos de autoridade ou por ter obedecido a ordens legítimas do réu/reconvinte, além de injusto e ilícito feriu profundamente”.
- do facto não provado mm) as expressões “ilicitamente” apenas por que cumpriu os seus deveres” por conter matéria conclusiva;
5. É, assim, a seguinte a matéria de facto provada e não provada relevante para a decisão da causa:
Factos provados:
1 - A Autora foi admitida ao serviço do Réu em 27 de Junho de 2005, detendo à data dos factos a categoria de Gestor de Cliente, com o n.º de colaborador e operador ..., no Balcão ...– ....
2 – ( eliminado)..
3 - Por deliberação do Comité de Incidências Laborais de 25 de Janeiro de 2023, com base no teor da Informação nº ... da DAI, foi mandado instaurar processo disciplinar com intenção de despedimento à Colaboradora AA, sendo nomeado Instrutor ao mesmo.
4 - Foi junta aos autos cópia da ficha curricular da Autora.
5 - Em 02 de Fevereiro de 2023 foi deduzida contra a Autora a nota de culpa, a qual lhe foi remetida a coberto da comunicação entregue em 14 de Fevereiro de 2023. Da nota de culpa e da referida comunicação foi remetida cópia à Comissão de Trabalhadores.
6 - Em 28 de Março de 2023 foi recebida a resposta à nota de culpa de culpa subscrita pelo mandatário da Autora.
7 - Em 10 de Abril de 2023 foi inquirida a testemunha arrolada na resposta à nota de culpa, VV.
8 - Na resposta à nota de culpa, o Autora requereu a junção dos documentos de delegação de competência para o exercício do poder disciplinar, documentos que se encontram juntos aos autos.
9 - Em 17 de Abril de 2023 foi inquirida a testemunha arrolada na nota de culpa Dr. WW.
10 - Em 20 de Abril de 2023, foi elaborado o Relatório Final do Instrutor do processo disciplinar.
11 - A Comissão de Trabalhadores, notificada para o efeito, emitiu o seu parecer.
12 - A Comissão Executiva do Conselho de Administração do Réu deliberou aplicar à Autora a sanção disciplinar de despedimento com justa causa, tendo proferido, em reunião de 15/06/2023 a seguinte deliberação:
“Deliberação da Comissão Executiva do Conselho de Administração Ata de 15 de junho de 2023 Para conhecimento e devidos efeitos, transmitimos a seguinte deliberação da Comissão Executiva do Conselho de Administração: Processo Disciplinar AA – ...- ... Analisado o Processo Disciplinar instaurado contra o Colaborador em epígrafe, designadamente o parecer emitido pela Comissão de Trabalhadores, a Comissão Executiva do Conselho de Administração deu o seu acordo aos fundamentos de facto e de direito constantes do relatório final elaborado pelo Instrutor. A Comissão Executiva do Conselho de Administração considerou, assim, integralmente provados todos os factos como tal considerados pelo Instrutor do processo no mencionado relatório, o qual aqui se dá por reproduzido, constituindo, pois, parte integrante da presente deliberação. Deste modo, atentos os factos apurados, tendo em conta o elevado grau de culpa imputável à arguida e ponderadas todas as circunstâncias do caso, foi deliberado aplicar à Colaboradora AA (nºemp. 180130) a sanção disciplinar de despedimento com justa causa.”
13 – A Autora procedeu à preparação, análise e parecer de 10 (dez) créditos pessoais que totalizam o montante de € 305.152,22,
14 - No processo de crédito n.º ..., relativo à cliente II, cuja conta de depósitos à ordem foi aberta em 27 de Janeiro de 2022, o pedido de crédito foi realizado em 15 de Fevereiro de 2022 foram detectadas as seguintes incidências, em sede de auditoria:
- […] erros de cálculos dos saldos;
- venda de um produto prestígio.
15- No processo de crédito n.º ..., relativo ao cliente JJ, cuja conta de depósitos à ordem foi aberta em 08 de Abril de 2022, o pedido de crédito foi realizado em 29 de Abril de 2022 foram detectadas as seguintes incidências, em sede de auditoria:
- […] erros de cálculos dos saldos;
- Alteração da morada – sem um suporte ou carta de instrução;
- venda de um produto prestígio.
16 – No processo de crédito n.º ..., relativo ao cliente KK, cuja conta de depósitos à ordem foi aberta em 11 de Maio de 2022, o pedido de crédito foi realizado em 17 de Maio de 2022 foram detectadas as seguintes incidências, em sede de auditoria:
- A morada estaria por comprovar;
- a validação do IBAN no site
https://pt.iban.com/
era inválida;
- a descrição dos movimentos de abril de 2022 era praticamente igual aos movimentos do mês de março de 2022;
- alteração da morada em 06 de Junho de 2022 e celebração de seguro Stand alone.
17 - No processo de crédito n.º ..., relativo à cliente TT, cuja conta de depósitos à ordem foi aberta em 11 de Maio de 2022, o pedido de crédito foi realizado em 17 de Maio de 2022 foram detectadas as seguintes incidências, em sede de auditoria:
- A morada estaria por comprovar; a validação do IBAN no site
https://pt.iban.com/
era inválida;
- faltava a sigla I na palavra IBAN;
- A página 5 evidencia semelhanças com a página 7 e a página 6 com a página 8; - foram detectados erros de cálculos dos saldos;
- alteração da morada em 01 de Junho de 2022 e celebração de seguro Stand alone,
- venda de dois produtos prestígio.
18 - No processo de crédito n.º ..., relativo ao cliente MM, cuja conta de depósitos à ordem foi aberta em 03 de Junho de 2022, o pedido de crédito foi realizado em 13 de Junho de 2022 foram detectadas as seguintes incidências, em sede de auditoria:
- A morada estaria por comprovar;
- alteração da morada em 21 de Junho de 2022 e celebração de seguro Stand alone, ;
- venda de dois produtos prestígio, através de cartão de crédito.
19 - No processo de crédito n.º ..., relativo à cliente NN, cuja conta de depósitos à ordem foi aberta em 07 de Junho de 2022, o pedido de crédito foi realizado em 07 de Junho de 2022 foram detectadas as seguintes incidências, em sede de auditoria:
- foram detectados erros de cálculos dos saldos;
- alteração da morada em 09 de Junho de 2022 e celebração de seguro Stand alone;
- venda de dois produtos prestígio, com recurso a cartão de crédito.
20 - No processo de crédito n.º ..., relativo à cliente XX, cuja conta de depósitos à ordem foi aberta em 29 de Junho de 2022, o pedido de crédito foi realizado em 29 de Junho de 2022 foram detectadas as seguintes incidências, em sede de auditoria:
- foram detectados erros de cálculos dos saldos;
- alteração da morada em 30 de Junho de 2022 e celebração de seguro Stand alone,
- venda de um produto prestígio.
21 - No processo de crédito n.º ..., relativo ao cliente PP, cuja conta de depósitos à ordem foi aberta em 14 de Julho de 2022, o pedido de crédito foi realizado em 15 de Julho de 2022 foram detectadas as seguintes incidências, em sede de auditoria:
- […] erros de cálculos dos saldos;
- A morada estaria por comprovar;
- Alteração da morada – sem um suporte ou carta de instrução em 15 de Julho de 2022 e celebração de seguro Stand alone;
- venda de dois produtos prestígio, com recurso a cartão de crédito.
22 - No processo de crédito n.º 6074492, relativo à cliente QQ, cuja conta de depósitos à ordem foi aberta em 25 de Julho de 2022, o pedido de crédito foi realizado em 25 de Julho de 2022 foram detectadas as seguintes incidências, em sede de auditoria: - foram detectados erros de cálculos dos saldos; - venda de um produto prestígio.
23 - No processo de crédito n.º ..., relativo ao cliente RR, cuja conta de depósitos à ordem foi aberta em 28 de Julho de 2022, o pedido de crédito foi realizado em 28 de Julho de 2022 foram detectadas as seguintes incidências, em sede de auditoria:
- alteração da morada em 02 de Agosto de 2022, sem suporte ou carta de instrução e celebração de seguro Stand alone, sendo posteriormente regularizada a situação da falta de documento para alteração da morada;
- venda de um produto prestígio.
24 – A Autora enviou quatro emails, datados de 03 de Junho de 2022 e 28 de Julho de 2022 a FF, não cliente, com informação relativa aos clientes MM, RR, QQ e GG (APS, FII, NIB e IBAN).
25 – A Autora enviou quatro emails, datados de 31 de Maio de 2022, à mediadora “...” com informação relativa aos clientes TT e KK.
26 – A Autora não relacionou os diversos clientes envolvidos e relativamente a todos eles repetia-se um mesmo padrão:
a. Todos são residentes no Reino Unido (RU);
b. Todos figuram como tendo Bacharelato/Curso Superior;
c. Todos são detentores de casa própria sem ónus; e
d. Todos abriram conta com um único titular, para contração de créditos pessoais com a mesma finalidade (melhoramentos no lar) com prazos iguais (84 meses) e alteração de moradas (residência e/ou alternativas) do RU para moradas em Portugal distantes do balcão:
- Processo n.º ..., relativo a II, natural de..., com apenas um titular, com bacharelato ou curso superior, casa própria e residente no Reino Unido onde exerce a sua profissão.
- Processo n.º ..., relativo a JJ, natural de ..., com apenas um titular, com bacharelato ou curso superior, casa própria e residente no Reino Unido onde exerce a sua profissão.
- Processo n.º ..., relativo a KK, natural de ..., com apenas um titular, com bacharelato ou curso superior, casa própria e residente no Reino Unido onde exerce a sua profissão.
- Processo n.º ..., relativo a TT, natural de ..., com apenas um titular, com bacharelato ou curso superior, casa própria e residente no Reino Unido onde exerce a sua profissão.
- Processo n.º ..., relativo a MM, natural de ..., com apenas um titular, com bacharelato ou curso superior, casa própria e residente no Reino Unido onde exerce a sua profissão.
- Processo n.º ..., relativo a NN, natural de ..., com apenas um titular, com bacharelato ou curso superior, casa própria e residente no Reino Unido onde exerce a sua profissão.
- Processo n.º ..., relativo a XX, natural de ..., com apenas um titular, com bacharelato ou curso superior, casa própria e residente no Reino Unido onde exerce a sua profissão.
- Processo n.º ..., relativo a PP, natural de ..., com apenas um titular, com bacharelato ou curso superior, casa própria e residente no Reino Unido onde exerce a sua profissão.
- Processo n.º ..., relativo a QQ, natural de..., com apenas um titular, com bacharelato ou curso superior, casa própria e residente no Reino Unido onde exerce a sua profissão.
- Processo n.º ..., relativo a RR, natural de ..., com apenas um titular, com bacharelato ou curso superior, casa própria e residente no Reino Unido onde exerce a sua profissão.
27 - A data de abertura das contas à ordem e de criação dos pedidos de decisão (pedidos de crédito) foram coincidentes no mês e, nalguns casos ocorreram no próprio dia:
- Processo n.º ..., relativo a II, cuja conta foi aberta em 27 de Janeiro de 2022 e o pedido de decisão de crédito foi de 15 de Fevereiro de 2022.
- Processo n.º ..., relativo a JJ, cuja conta foi aberta em 08 de Abril de 2022 e o pedido de decisão de crédito foi de 29 de Abril de 2022.
- Processo n.º ..., relativo a KK, cuja conta foi aberta em 11 de Maio de 2022 e o pedido de decisão de crédito foi de 17 de Maio de 2022.
- Processo n.º ..., relativo a TT, cuja conta foi aberta em 11 de Maio de 2022 e o pedido de decisão de crédito foi de 17 de Maio de 2022.
- Processo n.º ..., relativo a MM, cuja conta foi aberta em 03 de Junho de 2022 e o pedido de decisão de crédito foi de 13 de Junho de 2022.
- Processo n.º ..., relativo a NN, cuja conta foi aberta em 07 de Junho de 2022 e o pedido de decisão de crédito foi de 07 de Junho de 2022.
- Processo n.º ..., relativo a XX, cuja conta foi aberta em 29 de Junho de 2022 e o pedido de decisão de crédito foi de 29 de Junho de 2022.
- Processo n.º ..., relativo a PP, cuja conta foi aberta em 14 de Julho de 2022 e o pedido de decisão de crédito foi de 15 de Julho de 2022.
- Processo n.º ..., relativo a QQ, cuja conta foi aberta em 25 de Julho de 2022 e o pedido de decisão de crédito foi de 25 de Julho de 2022.
- Processo n.º ..., relativo a RR, cuja conta foi aberta em 28 de Julho de 2022 e o pedido de decisão de crédito foi de 28 de Julho de 2022.
28 – Nos processos n.º ... (II), n.º ... (JJ), n.º ... (KK) e n.º... (TT) foi definida a condição de subscrição de seguro de vida em congénere, resultando das Condições Particulares de cada uma das quatro apólices que as moradas das pessoas seguras estão localizadas em território nacional (..., ..., ... e ..., respectivamente).
29 – Nos seguintes clientes foi definida como condição de subscrição a comercialização de Seguros Stand Alone:
- Processo n.º ..., relativo a MM, Seguro BPI Vida Familiar Valor Mais, no montante de € 105.000,00, contratado em 21 de Junho de 2022, tendo alterado a morada para Portugal na mesma data.
- Processo n.º ..., relativo a NN, Seguro BPI Vida Familiar Valor Mais, no montante de € 100.000,00, contratado em 09 de Junho de 2022, tendo alterado a morada para Portugal na mesma data.
- Processo n.º ..., relativo a PP, Seguro BPI Vida Familiar Valor, no montante de € 55.000,00, contratado em 15 de Julho de 2022, tendo alterado a morada para Portugal na mesma data.
- Processo n.º ..., relativo a QQ, Seguro BPI Vida Familiar Valor Premium, no montante de € 60.000,00, contratado em 26 de Agosto de 2022, tendo alterado a morada para Portugal na mesma data.
- Processo n.º ..., relativo a RR, Seguro BPI Vida Familiar Valor, no montante de € 40.000,00, contratado em 02 de Agosto de 2022, tendo alterado a morada para Portugal na mesma data.
30 – A Autora procedeu a sete alterações de morada, para moradas em Portugal, em datas coincidentes com a celebração de seguros (Seguro BPI Vida Familiar -Módulos: Valor, Valor Mais e Premium, [… ]oferta não está disponível para Pessoas Seguras Não Residentes) quando resulta dos processos para contratação dos créditos pessoais que todos os proponentes/clientes têm morada no Reino Unido:
- Processo n.º ..., relativo a KK em 06 de Junho de 2022;
- Processo n.º ..., relativo a TT, em 01 de Junho de 2022;
- Processo n.º ..., relativo a MM, em 21 de Junho de 2022;
- Processo n.º ..., relativo a NN, em 09 de Junho de 2022;
- Processo n.º ..., relativo a XX, em 30 de Junho de 2022;
- Processo n.º ..., relativo a PP, em 15 de Julho de 2022;
- Processo n.º ..., relativo a RR, em 02 de Agosto de 2022.
31 – No processo de crédito n.º ..., titulado por PP foi detetada a criação de uma morada alternativa, pela Autora em 15 de Julho de 2022, sem que tenha sido localizada a “APS” de suporte ou carta de instruções.
32 – No processo de crédito n.º ..., titulado por RR, a Autora procedeu à alteração da morada de residência (de morada localizada no RU para morada localizada em Portugal), em 02 de Agosto de 2022, sem que tenha sido localizada, num primeiro momento, a “FII” de suporte ou carta de instruções, sendo posteriormente sanada tal situação durante a pendência do processo disciplinar.
33 - YY [é] (titular única do NUC n. º ..., que foi abert[a] em 26/04/2021 no Balcão de ... (0326) pela Autora, tendo [a autora] figurado como gestora até 01/07/2022) [e foi a ] beneficiária de transferências, com origem nas contas à ordem de sete dos Clientes envolvidos:
- transferência de € 4.500,00 de KK;
- Transferências de € 3,75; € 2.000,00 e € 3.750,00 de XX;
- Transferência de € 5.000,00 de ZZ;
- Transferência de € 5.500,00 de PP;
- Transferências de € 5.000,00 e € 250,00 de JJ;
- Transferência de € 5.000,00 de II;
- Transferência de € 5.500,00 de RR.
34 - As transferências com origem nos NUC’s n.º ... (KK) e n.º ... (PP) em benefício da Cliente YY, foram realizadas no Balcão e processadas pela Autora.
35 - Relativamente à transferência com origem no NUC n.º ..., no valor de €4.500,00 foi detetada no impresso “Carta de Instruções” a rasura do montante, observando-se junto à mesma a rubrica da Autora.
36 – ( eliminado)
37 – ( eliminado)
38 - Das dez propostas preparadas pela Autora e referidas no facto sob o n.º 26, três registavam situação de atraso ou mora à data de 09 de Dezembro de 2022.
39 – ( eliminado)
40 - À data do despedimento, a Autora auferia a seguinte retribuição mensal:
a) A título de retribuição base, a quantia de 1.385, 83 €;
b) A título de diuturnidades, a quantia de 128,61 €;
c) A título de 1h diária de subsídio de isenção de horário de trabalho, a quantia de 346,41 €;
d) A título de subsídio de deslocação, a quantia de 8,10 € diário processado mensalmente em função dos dias de trabalho efetivamente prestado;
e) A título de subsídio de alimentação, quantia diária de 10,50 €;
f) Um prémio trimestral, cujo último que conhece se refere ao 4º trimestre e 2021, e foi no valor ilíquido de 1.090,00€.
41 - A Autora, ao longo da sua relação de trabalho de 18 anos com o Réu sempre executou as funções que lhe foram sendo atribuídas, […] com elevada qualidade, proficiência e proactividade.
42 – A prestação da Autora foi reconhecida pelas suas diversas hierarquias, através das avaliações de desempenho onde sempre obteve classificação positiva e dos prémios pecuniários que recebia trimestralmente, designados por prémios SIM.
43 - À data do despedimento, a Autora detinha a categoria profissional de Gestor de Cliente, funções que exercia no Balcão do Réu em ..., pese embora na pendência do procedimento disciplinar, tivesse sido alocada ao Balcão do ....
44 – As funções da Autora implicavam funções de natureza administrativa e funções de natureza comercial, e na vertente comercial, a Autora além de vender produtos bancários, também convencia os clientes a adquirirem telemóveis, televisores, seguros.
45 – A Autora recolhia os originais da documentação exigida em função da operação que tivesse de realizar, digitalizava e colocava-a no sistema, recolhia a informação, que não obrigasse à apresentação de documentação inseria-a no sistema, remetia à gerência os processos que exigissem a sua análise, designadamente pedidos de crédito.
46 - O trabalho do Balcão de ... ficou mais intenso, a partir de Janeiro de 2021, quando o Réu decidiu passar as contas das empresas dos balcões de ..., ... e ... para o Balcão de ..., passando este último
a par do volume de trabalho que existia, a ter que fazer todo o acompanhamento inerente a esses clientes empresariais».
47 - E tudo isto sem que o Réu tivesse reforçado o número de trabalhadores no Balcão de ....
48 – O Réu ministrava formação profissional obrigatória através de plataformas informáticas.
49 - O Réu não dispõe de ferramentas que permitissem à Autora e aos demais trabalhadores do Balcão de ..., proceder à pesquisa de tais siglas e ou IBAN’s.
50 - Os processos, devidamente instruídos eram digitalizados e carregados em sistema, ficando integralmente disponíveis no sistema informático do Réu, a que se seguia o percurso das análises pela gerência e depois pela Direcção Risco Crédito, a qual é composta por dois decisores de crédito.
51 - Os trabalhadores do Réu que integram a Direcção Risco Crédito, procedem à análise crítica do parecer elaborado pela gerência do Balcão de ..., onde se integra a Autora e reapreciam, com maior acuidade, os documentos que serviram de suporte à emissão de cada um dos pareceres emitidos pela gerência do Balcão de ....
52 - A Direcção de Risco de Crédito tem o poder de, aprovar a operação de crédito se concluir que o processo está em conformidade com as regras legais e profissionais e se concordar com o parecer emitido por aquela gerência; a Direcção de Risco de Crédito pode igualmente de solicitar à gerência do Balcão de ... mais informação e/ou documentação; pode aprovar a operação de crédito condicionalmente, se entender deverem ser praticados actos ou obtidos mais elementos, solicitando-os à gerência do Balcão de ... e, pode, por fim, recusar a operação de crédito.
53 - Todas as operações de crédito identificadas foram objecto de reverificação da regularidade do processo de pedido de crédito e do cumprimento das condições exigidas pelo Réu.
54 – A Direcção de Risco de Crédito teve a oportunidade de verificar que se tratavam de clientes residentes no Reino Unido e também em Portugal, todos com Bacharelato/Curso Superior, todos detentores de casa própria em Portugal sem ónus, todos figuravam como únicos titulares das respectivas contas bancárias e todos contratavam créditos pessoais ao consumo e com a finalidade de fazerem melhoramentos no lar, todos os créditos tinham iguais prazos (84 meses) e alteração de moradas (residência e/ou alternativas) do Reino Unido para moradas em Portugal distantes do Balcão de ....
55 – A Direcção de Risco de Crédito aprovou todas as operações de crédito pedidas pelos clientes referenciados nos autos.
56 - Não existe normativo que impusesse à Autora a verificação das siglas e os IBAN’s (International Bank Account Number) relativos a instituições bancárias estrangeiras.
57 - Não existia normativo que impusesse à Autora que procedesse à soma dos valores dos extractos bancários apresentados pelos clientes.
58 - Se a apólice não estivesse em conformidade era recusada.
59 - A Autora não tem nenhum tipo de relação pessoal, amizade e/ou interesse financeiro com a mediadora de seguros “...”, e não é do seu conhecimento que exista qualquer relacionamento com nenhum dos trabalhadores do Balcão de ..., pelo que agiu apenas e só em virtude da proximidade com aquela.
60 - Não existe normativo que exija a apresentação ou entrega de qualquer documento comprovativo das informações prestadas pelos clientes quanto às habilitações literárias, regime de habitação, estado civil, que são carregados de acordo com a informação do cliente.
61 - Toda a informação sobre as apólices de seguros dos clientes foi analisada pela Direcção de Operações (DOC Seguros) do Réu, esta Direcção teria de confrontar as condições particulares da apólice com a informação que se encontrava em sistema referente ao pedido de crédito e onde constava a informação de estes serem também residentes no Reino Unido.
62 - A Direcção de Operações – DOC seguros – analisou e validou as apólices.
63 – A Autora subscreveu um seguro de saúde para si, pelo qual suportou um valor de prémio de € 140,52.
64- Não foi a Autora, mas sim a decisora UU, da Direcção de Risco de Crédito, quem colocou como condição para a aprovação do crédito a subscrição de seguro de vida em entidade congénere no processo n.º ....
( facto aditado em razão do decidido em 4.3.2)”
Factos não provados:
a’)( eliminado)
a) Nos seguintes clientes foi definida como condição de subscrição a comercialização de Seguros Stand Alone:
- Processo n.º ..., relativo a KK, Seguro BPI Vida Familiar Valor, no montante de € 35.000,00, contratado em 06 de Junho de 2022, tendo alterado a morada para Portugal na mesma data.
- Processo n.º ..., relativo a TT, Seguro ..., no montante de € 55.000,00, contratado em 01 de Junho de 2022, tendo alterado a morada para Portugal na mesma data.
- Processo n.º ..., relativo a XX, Seguro BPI Vida Familiar Valor Premium, no montante de € 125.000,00, contratado em 30 de Junho de 2022, tendo alterado a morada para Portugal na mesma data.
b) Por recurso à Aplicação “SIP” foi consultado o histórico de destinos de correspondência, sendo que no que diz respeito ao NUC n.º ..., em 09/05/2022, a Autora procedeu à criação de uma morada alternativa que passou a figurar como destino de correspondência, sem que tenha sido localizada a respetiva “Adesão a Produtos e Serviços (APS)” ou carta de instruções de suporte.
c) (eliminado).
d) O horário de trabalho da Autora era de 2ª a 6ª feira, das 08:30h às 16:30h, das 08:30h às 16:30h, com interrupção de 1h para almoço, entre as 12h e as 13h, acrescido de 1 hora de isenção de horário de trabalho que o Réu pagava.
e) (eliminado).
f) Dado o elevadíssimo volume de trabalho, o período de interrupção para almoço entre as 12h e as 13h, era utilizado para em escassos 30 minutos, almoçar e os restantes, para despachar algum trabalho de cariz administrativo, dado que nesse período o Balcão se encontrava encerrado ao público.
g) Dentro do horário e logo pela manhã ocorria um briefing com a gerência e os demais trabalhadores do Balcão de ..., em que eram incentivados a aumentar as vendas de todos os produtos, bancários e outros, orientando-os a melhorar os procedimento a ter em cada dia com vista à concretização dos diversos objectivos do Réu, a Autora informada dos descobertos e incumprimentos dos clientes da sua vasta carteira com cerca de 800 clientes, de seguida estabelecia contactos com os clientes com vista a solucionar as situações de incumprimento, comentava os resultados dos contactos feito, na aplicação dos Descobertos e Incumprimentos.
h) A Autora recebia e respondia a comunicações de correio electrónico, dos Clientes, das Imobiliárias, efectuava e enviava simulações de Crédito habitação e ao consumo, carregamento de propostas de crédito pessoal, habitação e cartões de crédito, revisões de spread, etc
i) A Autora tinha de dar ainda resposta na aplicação chat criada pelo Réu que permite interação entre o Gestor de Conta e o Cliente, designada “Comunicação com o Gestor” respondia ainda a múltiplos contactos através de SMS, ou do aplicativo Whatsapp.
j) Após o fecho do Balcão realizava-se o […]briefing ou seja, a Autora avalia o desempenho do Balcão no final de cada dia e depois fazia contactos telefónicos com clientes que compunham a sua carteira de clientes, repartindo essa tarefas ao longo semana de trabalho, dado que a sua carteira era composta por um total de 800 clientes.
k) As actividades profissionais vindas de descrever eram desenvolvidas diariamente pela Autora, impondo-lhe que prolongasse o seu dia de trabalho até cerca de 19h, de modo a conseguir executá-las.
l) Os clientes empresariais estavam, por força da crise pandémica iniciada a partir de Março de 2020, a braços com a recuperação económico-financeira, decorrente da menor actividade, e por consequência com maiores dificuldades de cumprimento das suas obrigações para com o Réu, o que exigia, mais trabalho e menor possibilidade de apoio entre os gestores.
m) As formações ocorriam, umas em dias úteis, mas depois do horário de trabalho, inclusive da hora abrangida pelo subsídio de isenção do horário de trabalho e outras eram ministradas aos fins-de-semana.
n) Os trabalhadores do Balcão, e em concreto a Autora solicitava aos clientes que, e à sua frente, entrassem no home banking associado à conta bancária que tinham no Reino Unido, de forma a poderem validar informação que considerada relevante.
o) O que os clientes referenciados nestes autos, sempre fizeram.
p) A captação dos clientes referenciados nos autos decorreu de factos ocorridos há mais de 10 anos ainda no Balcão do Réu na ..., onde, e como resultado do elevado grau de satisfação de um cliente português, o Sr. AAA, que trabalhava na ZZ, em ....
q) Com o decurso dos anos, a relação profissional do Sr. AAA com o Réu, também na pessoa da Autora e da gestora de clientes AA, fortaleceu-se e aquele cliente apresentou as suas filhas e genros.
r) A Sra. Banco XX, SA, filha do referido cliente, é residente no Reino Unido, e em quando em 2021 procedeu à aquisição de um imóvel com o seu marido, com recurso ao crédito à habituação junto do Réu, processo que se iniciou no Balcão de ....
s) Tendo esta cliente, ficado muita agradada com a relação comercial estabelecida com o Réu no Balcão de ..., sugeriu-o a diversas pessoas da comunidade portuguesa no Reino Unido em que está inserida, sucedendo-se as recomendações para outros cidadãos portugueses igualmente residentes no Reino Unido.
t) É pois neste contexto, que, posteriormente ao ano de 2021 vão surgindo os novos clientes que se encontram referenciados nestes autos.
u) Relativamente aos pedidos de crédito pessoal com os NUC’s nº ..., nº ..., nº ..., nº ..., nº ..., nº ..., nº ..., nº ..., nº ... e nº 6074492, a Autora criou as propostas com base nos documentos entregues pelos clientes, analisou-os com base no que consta no respectivo Normativo Interno.
v) A Autora executou algumas verificações que não constam do normativo, quando quis precisar dados, como por exemplo, pesquisando o nome do empregador de alguns clientes, em motores de busca, como o Google, fazendo corresponder o Insurance Number do P60 com o que constava nos recibos de vencimento, confrontava o crédito da retribuição nos extratos bancários apresentados e exibidos na consulta que o cliente fazia ao home banking na presença da Autora.
w) A Autora, reverificava que estava na posse de toda a documentação obrigatória, que, quando não era entregue presencialmente, os clientes faziam chegar ao Balcão de ... através da transportadora WW.
x) Sendo esta análise da Direcção de Risco de Crédito um trabalho que exige minucia e concentração elevada, estes trabalhadores, desenvolvem a sua actividade em gabinete, sem interrupções telefónicas ou presenciais de clientes, como sucede com a gerência de um Balcão, e mais concretamente com a Autora, como se deixou alegado supra.
y) Para o exercício das suas funções, os trabalhadores que procedem a essa tarefa, têm formação específica para análise e respectiva decisão dos processos que envolvem operações de crédito no Réu.
z) As comunicações de correio electrónico sobre a realização de seguros, foram feitas pela Autora por instruções dos clientes e com o respectivo conhecimento e consentimento e de acordo com as informações prestadas por eles, que solicitaram a ajuda da Autora para garantir que os seguros eram feitos em conformidade com o que era exigido pelo Réu, evitando delongas, equívocos e outras entropias que muitas vezes sucedem nestas ocasiões.
aa) A Autora disse aos clientes que se poderiam dirigir a uma qualquer companhia de seguros ou a um mediador para esse efeito, mas os clientes insistiram e a Autora de modo a satisfazer a solicitação dos clientes, anuiu e por uma questão de proximidade com a mediadora “...”, estabeleceu o contacto e prestou as informações necessárias à celebração dos seguros.
bb) A Autora também não conhece a Sra. FF, tendo sido os clientes que facultaram o endereço de correio electrónico desta à Autora para o colocasse nas comunicações referentes aos seguros, por ser pessoas da confiança daqueles.
cc) A Sra FF fazia parte de uma comunidade forte no Reino Unido onde alguns destes Clientes estavam inseridos, e a Sra. FF, era quem tratava e trabalhava na área de tratamento de documentos quando estes clientes chegavam ao Reino Unido, assim, e a pedido daqueles, a mesma constava nos destinatários dessas comunicações de correio electrónico.
dd) (eliminado)
ee) Na mesma ocasião em que os clientes iam assinar os contratos de crédito, os clientes pediram alteração da morada, para aí receberem o cartão multibanco, a carta contendo o código e demais correspondência postal na morada em Portugal, dado que exerciam funções em regime de teletrabalho a partir de Portugal, pelo que se procedeu à alteração das moradas.
ff) Tendo então os clientes morada em Portugal, foi-lhes feita a proposta a subscrição do seguro Stand Alone, apenas e só de modo a criar maior envolvimento comercial destes com o Réu, sendo que este seguro de vida teria como beneficiário quem o cliente quisesse, caso se verificasse a morte ou invalidez permanente do cliente.
gg) Diariamente no Balcão era tirada uma listagem dos movimentos diários superiores a 5.000,00 €, para análise pela gerência, e quando surgiam dúvidas, solicitavam ao gestor do cliente que o contactasse a fim de obter algum esclarecimento para o referido movimento.
hh) Existe no Réu a Direcção de Compliance, que controlava todos os movimentos de todas contas, e quando da sua análise mais minudente surgiam dúvidas, enviavam uma comunicação de correio electrónico ao Balcão respectivo a solicitar esclarecimentos sobre os movimentos efectuados nas contas.
ii) Apenas a partir de Abril de 2023 surgiu uma instrução do Réu em que tornou obrigatória a classificação no sistema do Réu, dos movimentos superiores a 5.000,00 €.
jj) quando a gerência do Balcão de ... tirava a listagem dos movimentos tinha de preencher o espaço destinado à classificação do movimento, ou seja, se se tratava de compra/venda de imóveis, de pagamento a fornecedores, etc.
kk) Que a decisão referida em 12. haja ferido a auto estima da Autora/Reconvinte, deixando-a ansiosa, angustiada, triste sem ânimo para a vida familiar.
ll) A conduta da Réu/Reconvindo provocou e continuar a provocar já reflexos evidentes no agregado familiar da Autora/Reconvinte, causando-lhe particular consternação e ansiedade.
mm) A Autora sente uma enorme insegurança no futuro e uma profunda tristeza de quem se vê afastada de um projecto profissional.”
6. Fundamentação de direito.
6.1.
No caso sub judice a decisão proferida no procedimento disciplinar instaurado pela entidade empregadora fez assentar o despedimento da trabalhadora, fundamentalmente, nas circunstâncias de:
- não ter relacionado 10 clientes, nem questionado a repetição do padrão sócio económico quanto à residência ( todos residiam no Reino Unido), habilitações literárias (todos figuram como tendo bacharelato /curso superior), detenção de bens ( todos são proprietários de casa própria sem ónus); condições e propósitos de abertura de conta «todos abriram conta com um único titular, prazos iguais ( 84 meses), alteração de moradas ( residência e/ou alternativas) do Reino Unido para locais em Portugal distantes do balcão;
- não ter detetado manipulação dos extratos de contas OIC dos clientes nomeadamente erros nas somas, nos IBAN, siglas incompletas e extratos de diferentes meses semelhantes entre si;
- em 4 operações preparadas pela trabalhadora foi definida a condição de subscrição de seguro de vida em congénere constando como das moradas das pessoas localidades em território nacional quando a informação da decisão dos créditos consta que os proponentes residem e trabalham no Reino Unido;
- relativamente a sete clientes a trabalhadora definiu como condição de subscrição a comercialização de Seguros Stand Alone, seguros que exigem residência em Portugal e a fim de contornar a exigência de morada procedeu indevidamente a alteração da morada desses clientes;
- a trabalhadora procedeu a criação de moradas alternativas sem ter sido localizada a “APS” de suporte ou carta de instruções;
- existência de transferências para uma conta de um cliente aberta pela recorrente e da qual foi gestora até 01.07.2022 com origem nas contas à ordem de clientes envolvidos sendo duas das operações realizadas ao balcão e processadas pela trabalhadora;
- carta de instruções rubricada pela trabalhadora;
- a trabalhadora enviou informação de clientes a terceiros e a uma mediadora de seguros, com informação pessoal e confidencial;
- das 10 propostas preparadas pela trabalhadora três estão em situação de atraso com reporte a 09.12.2022.
De acordo tal decisão, os referidos comportamentos demonstram ter a trabalhadora incumprido de forma culposa, reiterada e grave as regras usuais de deontologia da profissão, tal como estas se encontram previstos na alínea b) do nº1 da clausula 34ª do ACT para o setor Bancário, o Princípio do “Cumprimento da Legislação” e "Qualidade" consagrado na “Ordem de Serviço | CTR | 1298 | Código Ético e Princípios de Atuação do Banco XX, SA” e no artigo 128º do Código do Trabalho (alíneas c) e e) do nº1.
E ali se concluiu que, atenta a sua gravidade e consequências, designadamente ao nível da quebra da confiança que o contrato de trabalho pressupõe, a conduta da trabalhadora integrava a previsão do disposto no nº1 do artigo 351º do mesmo Código (justa causa de despedimento).
A sentença de primeira instância considerou que os comportamentos da recorrente não eram compatíveis com a imagem de confiança, idoneidade e seriedade que um Banco e os trabalhadores têm que ter, por um lado, e, por outro lado, que a atividade bancária tem de assentar em transparência, no cumprimento rigoroso das regras definidas, bem como num exercício de funções com zelo e diligência, de forma a existir total confiança entre os clientes e a entidade bancária, o que não sucedeu e, por isso decidiu existir justa causa para despedir a trabalhadora.
No recurso, a trabalhadora recorrente vem essencialmente alegar que foi despedida sem justa causa na medida em que não cometeu nenhum ilícito disciplinar, não havendo culpa, e na falta de elementos, não pode haver sanção, muito menos a do despedimento e, tendo a recorrida mantido o exercício das suas funções não se verifica a imediata impossibilidade de subsistência da relação laboral, nem lesou interesses patrimoniais da recorrida.
6.2.
O art. 53º da CRP (Constituição da República Portuguesa) consagra o princípio da estabilidade no emprego proibindo os despedimentos sem justa causa, princípio este que cede quando a permanência do trabalhador na empresa ponha em causa a existência ou a eficácia da estrutura produtiva, fruto de um seu comportamento culposo ou ilícito.
Nos termos do artigo 351.º, n.º 1 do CT, constitui justa causa de despedimento «o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho», enunciando-se, depois, no respetivo n.º 2 e a título meramente exemplificativo (nomeadamente), diversos comportamentos suscetíveis de constituírem justa causa do despedimento de um trabalhador pela sua entidade patronal.
Não basta, porém, a demonstração de qualquer comportamento imputável ao trabalhador para que se julgue integrado aquele conceito.
Com efeito, e conforme decorre do referido dispositivo legal, a justa causa de despedimento exige a verificação cumulativa de três requisitos ou pressupostos:
a) a existência de um comportamento culposo do trabalhador (requisito subjetivo);
b) a verificação da impossibilidade de manutenção da relação laboral entre o trabalhador e o empregador (requisito objetivo);
c) a existência de um nexo de causalidade entre aquele comportamento e esta impossibilidade.
A justa causa de despedimento, pressupõe, portanto, a existência de uma determinada ação ou omissão imputável ao trabalhador a título de culpa, violadora de deveres emergentes do vínculo contratual estabelecido entre si e o empregador e que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a manutenção desse vínculo.
Como vem sendo entendimento pacífico ao nível da jurisprudência, quer a culpa, quer a gravidade da infração disciplinar, hão-de apurar-se, na falta de um critério legal, pelo entendimento de um “bom pai de família” ou de “um empregador normal, médio”, colocado em face do caso concreto, utilizando-se, para o efeito, critérios de mera objetividade e razoabilidade e não o
“sentir”
do empregador.
Por outro lado, quanto à impossibilidade prática de subsistência da relação laboral, citando, por todos
11
, o Acórdão do STJ de 30.04.2003, Processo n.º 02S568, acessível na íntegra na base de dados de jurisprudência do IGFEJ,
in
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/
, a mesma verifica-se «
(…) quando ocorra uma situação de absoluta quebra de confiança entre a entidade patronal e o trabalhador, suscetível de criar no espírito da primeira a dúvida sobre a idoneidade futura da conduta do último, deixando de existir o suporte psicológico mínimo para o desenvolvimento dessa relação laboral (…)
». Ainda de acordo com o mesmo acórdão, «
(…) Não se trata, evidentemente, de uma impossibilidade material, mas de uma inexigibilidade, determinada mediante um balanço in concreto dos interesses em presença – fundamentalmente o da urgência da desvinculação e o da conservação do vínculo (…). Basicamente, preenche-se a justa causa com situações que, em concreto, (ou isto é, perante a realidade das relações de trabalho em que incidam e as circunstâncias específicas que rodeiam tais situações), tornem inexigível ao contraente interessado na desvinculação o respeito pelas garantias de estabilidade do vínculo (…)
».
Sendo o despedimento a sanção disciplinar mais gravosa para o trabalhador, por ser a única que quebra, desde logo, o vínculo laboral até aí existente entre as partes contratantes, a mesma só deve ser aplicada relativamente a casos de real gravidade, isto é, quando o comportamento culposo do trabalhador for de tal forma grave em si e pelas suas consequências que se revele inadequada para o caso a adoção de uma sanção corretiva mas conservatória da relação laboral.
Conforme refere JOÃO LEAL AMADO, “Contrato de Trabalho”, 2.º ed., Coimbra Editora, esta análise deverá ser casuística, guiado por uma ideia de proporcionalidade e de justiça individualizante, devendo atender-se, de acordo com o n.º 3 do artigo 351.º, “…
no quadro da gestão da empresa, ao grau de lesão dos interesses do empregador, ao carácter das relações entre as partes … e às demais circunstâncias que no caso se mostrem relevantes
».
Prescreve o art. 126º do CT , sob a epígrafe «deveres gerais das partes», que o «empregador e o trabalhador devem proceder de boa fé no exercício dos seus direitos e no cumprimento das despectivas obrigações», sendo que «na execução do contrato de trabalho, as partes devem colaborar na obtenção da maior produtividade, bem como na promoção humana, profissional e social do trabalhador».
Do contrato de trabalho resultam, também, para as partes, determinados deveres específicos, sendo que para o trabalhador esses deveres estão elencados nas diversas alíneas do n.º 1 do art. 128º do CT, que prescreve:
«
1 – Sem prejuízo de outras obrigações, o trabalhador deve:
a) Respeitar e tratar o empregador, os superiores hierárquicos, os companheiros de trabalho e as pessoas que se relacionem com a empresa, com urbanidade e probidade;
b) Comparecer ao serviço com assiduidade e pontualidade;
c) Realizar o trabalho com zelo e diligência;
d) Participar de modo diligente em ações de formação profissional que lhe sejam proporcionadas pelo empregador;
e) Cumprir as ordens e instruções do empregador respeitantes a execução ou disciplina do trabalho, bem como a segurança e saúde no trabalho, que não sejam contrárias aos seus direitos ou garantias;
f) Guardar lealdade ao empregador, nomeadamente não negociar por conta própria ou alheia em concorrência com ele, nem divulgando informações referentes à sua organização, métodos de produção ou negócios;;
g) Velar pela conservação e boa utilização dos bens relacionados com o trabalho que lhe forem confiados pelo empregador;
h) Promover ou executar os atos tendentes à melhoria da produtividade da empresa;
i) Cooperar para a melhora da segurança e saúde no trabalho, nomeadamente por intermédio dos representantes dos trabalhadores eleitos para esse fim;
j) Cumprir as prescrições sobre a segurança e saúde no trabalho que decorram de lei ou instrumento de regulamentação colectiva de trabalho.»
«2 – O dever de obediência respeita tanto a ordens ou instruções do empregador como de superior hierárquico do trabalhador, dentro dos poderes que por aquele lhe forem atribuídos.»
A licitude ou ilicitude do despedimento da recorrente está dependente da existência ou inexistência de justa causa (art.º 381º, al. b) do CT) incumbindo à recorrida, entidade empregadora, a prova dos factos que motivaram o despedimento constantes da decisão disciplinar.
6.4.
A questão que agora se coloca, e que passaremos a apreciar, consiste em saber se o comportamento da trabalhadora que veio a provar-se é disciplinarmente censurável, no contexto da relação laboral e se, em face da sua gravidade e consequências, justifica o despedimento.
6.4.1.
Em face da factualidade provada resulta que a recorrente procedeu à criação de morada alternativas sem que tenha sido localizada a respetiva adesão a “APS” ( Adesão a Produtos e Serviços) ou carta de instruções ( factos 31 e 32 ) embora quanto ao cliente RR a situação haja sido sanada posteriormente Este comportamento configura o incumprimento do processo “Clientes e Contas | Manutenção de Pessoa e Conta | Alteração/Confirmação de Dados de Pessoa”
12
, que determina a necessidade de “Receber do Cliente o pedido de alteração de dados de Pessoa e respetivos documentos identificativos e comprovativos conforme a alteração a efetuar, o mesmo sucedendo quanto à existência de dados por comprovar relativamente à morada ( cfr. factos 16,17,18 e 21) que configura de igual forma o incumprimento do processo já referido.
6.4.2.
Da matéria apurada resulta, ainda, que foram comercializados seguros Stand Alone ( cfr. facto provado 29) e ainda que a autora procedeu a sete alterações das moradas em datas coincidentes com a celebração destes seguros ( facto provado 30).
De acordo com a ficha do Produto Seguro BPI Vida Familiar esta oferta não está disponível para pessoas seguras não residentes no país, considerando a entidade empregadora que a alteração das moradas efetuada pela recorrente teve em vista a comercialização dos seguros Stand Alone.
A atuação da recorrente seria contrária ao pilar básico da “Qualidade” que se encontra consagrado na “
Ordem de Serviço /CTR/ 1298 / Código ético e Princípios de Atuação do Banco XX, SA
“ e que refere “
Qualidade” vontade de servir os Clientes garantindo-lhes um tratamento de excelência e oferecendo-lhes produtos e serviços mais adequados às suas necessidades
” e, ainda, à luz da mesma Ordem de Serviço “, ter desconsiderado que “
O Banco XX, SA tem como missão a satisfação das necessidades financeiras dos seus Clientes, através de uma oferta de produtos e serviços adequada e completa e de uma excelente qualidade de serviço, com o compromisso de acrescentar valor a Clientes, Colaboradores e à sociedade no seu todo”
e que “
O Banco XX, SA atua sempre de maneira lícita, ética e profissional, tanto no interesse dos seus Clientes como da comunidade e de todos aqueles com quem se relaciona”
e, ainda, que não se mostrou harmonizada com o princípio de atuação relacionado com o “
Cumprimento da Legislação”
que estatui que “
Banco XX, SA e todas as Pessoas Sujeitas ao presente Código deverão cumprir a legislação e normas em vigor, em cada momento, assim, como qualquer norma ou circular interna do Banco XX, SA
” e onde se consigna que
“ O Banco XX, SA rejeita determinantemente qualquer conduta de caráter ilícito, criminoso ou que implique o incumprimento do normativo interno sob a premissa que se está a atuar em benefício da instituição”, pelo que “ No desempenho das suas funções, as Pessoas Sujeitas deverão atuar sempre de maneira lícita e profissional, cumprindo a legislação, regulamentos e normas internas aplicáveis.”
Ora, a par coincidência das datas de alteração das moradas e celebração dos seguros Stand alone que apenas poderiam ser subscritos para residentes em Portugal quando resulta dos processos de contratação dos créditos pessoais que os proponentes tinham morada no Reino Unido, a recorrente não podia ignorar que os seguros apenas poderem ser comercializados para residentes, o que implicava o cumprimento da legislação surgindo a alteração das moradas como a forma de a contornar.
No entanto, ainda que haja a violação de dever laboral por parte da recorrente fica-se sem saber a sua repercussão, designadamente na dimensão de prejuízo para a empregadora.
6.4.2.
Decorre, ainda, do contexto factológico apurado ( facto provado 26) que a recorrente não relacionou os diversos clientes envolvidos e em relação aos quais se verificava o mesmo padrão e, ainda, que a data de abertura das constas e a criação dos pedidos de decisão ( pedidos de crédito) foram coincidentes no mês e nalguns casos ocorreram no próprio dia ( facto provado 27) tendo sido a recorrente que procedeu à preparação, análise e parecer dos dez pedidos de créditos pessoais ( facto provado 13).
Em relação esta factualidade há a destacar a importância da relação de confiança do empregador no trabalhador, dado que a prestação de atividade pelo trabalhador no sector bancário é baseada essencialmente numa relação de confiança e lealdade, podendo a violação destes deveres acarretar prejuízos avultados para o bom nome, imagem e credibilidade da instituição bancária.
E, por esta razão entendemos que com a conduta em causa se mostra violado o dever de zelo e diligência previsto na alínea c) do art. 128 do CT de acordo com o qual o trabalhador deverá realizar a prestação com atenção, esforço, empenhamento de vontade e cuidado exigíveis a um trabalhador colocado na sua situação.
Mas quanto a estes deveres importa fazer uma precisão quanto ao grau de violação, já que a trabalhadora não era a responsável pela aprovação dos créditos, situando-se num primeiro nível, incumbindo à Direção de Risco de Crédito proceder a uma análise crítica do parecer elaborado pela gerência do Balcão onde se incluía a trabalhadora, sendo também a quem compete a aprovação ( factos provados 51 e 52). No caso dos autos todas as operações de crédito que foram preparadas pela trabalhadora foram objeto de reverificação da regularidade do processo e do cumprimento das condições exigidas pela ré ( facto provado 53) e por si aprovadas ( facto provado 55)e, mais, no caso concreto a Direção de Risco de Crédito teve a oportunidade de relacionar os clientes e o padrão ( facto provado 54.) o que mitiga francamente o desvalor laboral desta conduta da recorrente.
6.4.4
Relativamente à transferência com origem no NUC n.º ..., no valor de €4.500,00 foi detetada no impresso “Carta de Instruções” a rasura do montante, observando-se junto à mesma a rubrica da recorrente( facto 35) o que viola o Normativo “
Clientes e Contas – Princípios Gerais e Boas Práticas
” que determina que “
Por regra, os documentos que apresentem rasuras, evidência de utilização de borracha ou tinta corretiva, sobreposição de carateres, alterações ou emendas devem ser sempre devolvidos e solicitado novo preenchimento, bem como não devem ser inscritas quaisquer notas ou mensagens internas, ainda que efetuadas a lápis
mas sem que se percecione o impacto resultante desta conduta.
6.4.5.
O envio de quatro emails pela recorrente à FF que não era funcionária da empregadora com informação relativa a clientes ( facto provado 24) configura a violação do dever de guarda do sigilo bancário bem como o incumprimento da
“ Ordem de Serviço | SPO | 1162| Sigilo Bancário”,
o mesmo sucedendo com os quatro emails enviados à mediadora de seguros “ ...”, afigurando-se que esta conduta, por envolver informação pessoal e confidencial de clientes, assume particular relevância.
6.4.6
No que concerne às sete transferências efetuadas para a conta de YY apurou-se que foi esta conta aberta pela recorrente em 26.04.2021, no Balcão de ..., da qual foi gestora até 01.07.2021, e em que duas das transferências foram realizadas por KK e PP ao balcão e processadas pela recorrente (factos provados 33 e 34) mas, não tendo, a entidade empregadora referido as normas que entende terem sido violadas não conseguimos efetuar o seu enquadramento em ilícito disciplinar.
6.4.7
Quanto à pesquisa de siglas e IBAN apurado que foi que o Banco não tem ferramentas que permitam a sua pesquisa mostra-se afastada conduta suscetível de integrar a violação de dever laboral.
Quanto aos erros de cálculos nos extratos apresentados entende-se, a par da que se reputa ser a difícil verificação pela trabalhadora, que tais erros não se mostram devidamente concretizados nos factos provados.
A mera prova da existência de erros de cálculos nos extratos não permite afirmar o seu relevo e/ou a sua dimensão, de onde resulta a ausência de relevo disciplinar desta conduta.
6.5.
No contexto analisado, mesmo considerando que a recorrente exerce as suas funções no sector bancário, com a categoria profissional de gestor de cliente que implica funções exigentes e qualificadas e, em que a relação de confiança é bastante acentuada e constitui fundamento nuclear da subsistência do vínculo laboral, entendemos que nenhum dos factos, seja individualmente considerado, seja em conjunto, assume gravidade suficiente para se integrar no conceito de justa causa de despedimento, tal como previsto no artigo 351.º do CT, principalmente num cenário em que não está demonstrada a prévia censura disciplinar de qualquer outra conduta que a recorrente haja praticado no decurso da relação laboral iniciada em 27 de junho de 2005.
Conforme constitui jurisprudência pacífica, a sanção expulsiva deve ser reservada a situações extremas, em que não seja razoavelmente equacionável a aplicação de uma qualquer outra sanção conservatória.
No juízo sobre a gravidade e consequências do comportamento da recorrente, na perspetiva do reflexo do seu apurado comportamento sobre a inexigibilidade da subsistência da relação laboral, à luz do modelo objetivo do empregador razoável, de um “bom pai de família” não podemos confirmar o entendimento da empregadora e da sentença recorrida de que a sanção de despedimento aplicada é adequada e proporcional à gravidade da infração cometida.
É que, não obstante a conduta descrita ser, em alguma medida, disciplinarmente relevante, não é portadora de uma carga de desvalor tal que conduza a um juízo de inviabilidade da relação laboral, não se justificando a aplicação da sanção mais grave das previstas no elenco do art. 328.º, n.º 1 do CT.
Em face do já ponderado desvalor de cada um dos comportamentos adotados, e tendo também em consideração que em nenhum deles se vislumbra algum envolvimento pessoal da recorrente e que dele tenha obtido ou pretendesse obter um qualquer benefício pessoal com a sua prática – que é afastado pelos factos e pela própria recorrida – e, onde a Direção de Gestão de Risco a quem incumbe proceder à “ analise crítica”, “com maior acuidade” dos processos preparados pela recorrente e que “ procedeu à reverificação da regularidade do processo de pedido e das condições exigidas” tendo aprovados os mesmos e que “também teve oportunidade de verificar” o padrão comum aos clientes, outro sancionamento disciplinar adequado, mas de cariz corretivo ou conservatório, seria apto.
Para a aplicação de uma medida de cariz corretivo ou conservatória à trabalhadora contribuía a antiguidade da trabalhadora a execução das funções que lhe foram sendo atribuídas com elevada qualidade, proficiência e proatividade ( cfr. facto provado 41.) , com classificações positivas e prémios pecuniários ( cfr. facto provado 42) equacionando-se, ainda que, a menor atenção da trabalhadora poderá advir do aumento da quantidade de trabalho ( cfr. facto provado 46).
Em suma, da factualidade apurada não resulta que a recorrente tenha prosseguido um comportamento que tornasse imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho o que impõe a conclusão que a recorrida procedeu a um despedimento ilícito, nos termos do artigo 381.º, alínea b) do Código do Trabalho, por ser improcedente a justa causa invocada, impondo-se a revogação da sentença recorrida, nesta parte.
6.6.
Revogando-se a sentença da 1ª instância, no que diz respeito à ilicitude do despedimento, cabe extrair as consequências dessa ilicitude.
De acordo com o art. 389º, do CT o empregador é condenado:
“a) a indemnizar o trabalhador por todos os danos causados, patrimoniais e não patrimoniais;
b) na reintegração do trabalhador no mesmo estabelecimento da empresa, sem prejuízo da sua categoria e antiguidade, salvo nos casos previstos nos artigos 391º e 392º
(…);”.
Dispõe o n.º 1 do art.º 391.º do CT que:
“Em substituição da reintegração, o trabalhador pode optar por uma indemnização, até ao termo da discussão em audiência final de julgamento, cabendo ao tribunal fixar o montante, entre 15 e 45 dias de retribuição base e diuturnidades por cada ano completo ou fração de antiguidade, atendendo ao valor da retribuição e ao grau de ilicitude decorrente da ordenação estabelecida no art.º 381.”
No caso, em apreço, a trabalhadora, em sede de audiência de julgamento e, em momento oportuno, optou pelo pagamento de indemnização, em substituição da reintegração.
Do citado art. 391º, n.º 1 do CT resulta que na graduação temporal da indemnização se atende ao valor da retribuição e ao grau de ilicitude do despedimento.
Por outro lado, o art.º 381º do CT. estabelece as causas de ilicitude do despedimento da iniciativa do empregador ao prescrever o seguinte: “sem prejuízo do disposto nos artigos seguintes e em legislação específica, o despedimento por iniciativa do empregador é ilícito: a)Se for devido a motivos políticos, ideológicos, étnicos ou religiosos, ainda que com invocação de motivo diverso; b) Se o motivo justificativo do despedimento for declarado improcedente; c) Se não for precedido do respetivo procedimento; d) Em caso de trabalhadora grávida, puérpera ou lactante ou de trabalhador durante o gozo de licença parental inicial, em qualquer das suas modalidades, se não for solicitado o parecer prévio da entidade competente na área da igualdade de oportunidades entre homens e mulheres”.
Os critérios fornecidos pela lei são assim vagos e genéricos, razão pela qual o seu cálculo terá de ser efetuado de forna casuística, ponderada e equilibrada.
No que concerne ao valor da retribuição é de entender que a lei quis sugerir que será de atribuir uma indemnização maior aos casos de retribuições mais baixas, visando assim alcançar um valor absoluto que seja compensador do prejuízo causado com a perda do posto de trabalho. Neste sentido cfr. António Monteiro Fernandes, “Direito do Trabalho”, 12ª edição, pág. 564, No caso em apreço, a trabalhadora auferia uma importância que é de considerar de valor médio.
Quanto ao grau de ilicitude, por força da remissão prevista no disposto no art.º 391º, 1, do CT, para o art.º 381.º do CT, no qual se encontram ordenadas as causas de ilicitude de despedimento, temos o despedimento com motivo julgado improcedente, elencado em segundo lugar, sendo assim apenas precedido dos motivos políticos, ideológicos, étnicos ou religiosos. Apesar das causas de ilicitude de despedimento se encontrarem apenas elencadas e não hierarquizadas, o certo é que não podemos deixar de considerar de “menor” grau de ilicitude o despedimento com base num vício procedimental e com “maior” grau de ilicitude um despedimento com motivo julgado improcedente.
Há, ainda, a considerar que a indemnização de antiguidade, para além do cariz reparatório inerente à ideia de obtenção pelo trabalhador de uma compensação pela perda do emprego, assume também uma natureza sancionatória da atuação ilícita do empregador, que mais se salienta na situação a que os autos se reportam, ou seja na situação de despedimento com invocação de justa causa subjetiva imputável ao trabalhador, pois o grau de ilicitude nestas situações é particularmente influenciado pelo nível de censurabilidade da atuação do empregador na preparação, motivação ou formalização da decisão de despedimento.
No caso em apreço, o grau de ilicitude resultante do facto de o motivo do despedimento ser improcedente afigura-se-nos de moderado, encontrando-se a improcedência dos motivos justificativos do despedimento elencada em segundo lugar como causa da sua ilicitude no artigo art.º 381º do CT.
Assim, considerando, o moderado grau de ilicitude da conduta do empregador e o valor da retribuição mensal da trabalhadora mostra-se justo, equitativo, adequado ao comportamento do empregador e às circunstâncias em que ocorreu o despedimento, fixar a indemnização de antiguidade em 30 dias de retribuição de base por cada ano de antiguidade ou fração.
Por fim refira-se que para o efeito relevam apenas a retribuição base e as diuturnidades, não sendo atendíveis outras prestações pecuniárias auferidas pelo trabalhador, ainda que integrem a sua retribuição nos termos do art. 258.º do CT.
Tendo a recorrente sido admitida ao serviço, em 27 de junho de 2005, tem a mesma direito a receber a indemnização em substituição da reintegração no montante de € 30.288,80(€1.514,44 x 20 anos), calculada, para já, até à data de hoje « 20 anos ( 19 anos mais fração) nos termos do nº 1, do art.391º do CT».
Retribuições intercalares.
Por seu turno prescreve o art.º 390 do CT que:
“1 - Sem prejuízo da indemnização prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo anterior, o trabalhador tem direito a receber as retribuições que deixar de auferir desde o despedimento até ao trânsito em julgado da decisão do tribunal que declare a ilicitude do despedimento.
2 - Às retribuições referidas no número anterior deduzem-se:
a) As importâncias que o trabalhador aufira com a cessação do contrato e que não receberia se não fosse o despedimento;
b) A retribuição relativa ao período decorrido desde o despedimento até 30 dias antes da propositura da acção, se esta não for proposta nos 30 dias subsequentes ao despedimento;
c) O subsídio de desemprego atribuído ao trabalhador no período referido no n.º 1, devendo o empregador entregar essa quantia à segurança social.”
Da notificação do despedimento à trabalhadora junta com o formulário resulta que esta a recebeu em 20.06.2023, pelo que será esta a data considerada como data do despedimento. A recorrente intentou esta ação no dia 16.08.2023 pelo que será desde o dia 16.07.2023, art. 390.º, n.º 2, al. b) do CT e até ao trânsito em julgado do presente acórdão, que terá direito a que seja pago, o valor das retribuições intercalares, onde se incluem as férias, subsídios de férias e de Natal.
Para o respetivo cálculo serão relevantes, a retribuição base no valor de € 1.385,83, as diuturnidades no valor mensal de € 128,61 e, ainda, o subsídio de isenção de horário de trabalho na quantia de € 346,41, em função da periodicidade em que foi pago. O subsídio de deslocação e de alimentação, na medida em que não são contrapartida específica da prestação de trabalho mas tão só destinados a custear as despesas que incorre por causa do trabalho, deverão ser excluídos do cômputo das denominadas retribuições intercalares, o mesmo sucedendo com o prémio trimestral (art. 260.º, n.º 1, als. a) e b), do CT).
Das deduções a que aludem as várias alíneas do n.º 2 do art.º 390.º do CT., o empregador não alegou e por isso não provou tal como lhe incumbia
13
, a existência de importâncias a deduzir ao abrigo da alínea a) do citado preceito legal, sendo que, no que respeita à dedução a que alude a al. c) do n.º 2 do art.º 390.º do CT, que terá de ser efetuada, os elementos que constam dos autos não nos permitem com segurança afirmar se a recorrente esteve ou está a receber subsídio de desemprego.
Por se desconhecer, neste momento os valores recebidos pela recorrente a título de subsídio de desemprego ou mesmo se os recebeu e, ainda, a periodicidade do subsídio de isenção do horário relega-se a liquidação das retribuições intercalares para incidente próprio, nos termos dos arts. 609.º, n.º 2 e 358º, n.º2, do CPC.
*
A estas quantias acrescem os juros de mora que se destinam a compensar o trabalhador pelo atraso no pagamento das retribuições intercalares devidas em consequência do despedimento levado a cabo pelo empregador.
*
No que concerne aos demais danos patrimoniais e não patrimoniais peticionados pela recorrente e não tendo sido os mesmos objeto do recurso nada há a decidir, sendo que, de todo o modo, os factos provados não consentiriam pela sua procedência.
*
7.
Resta fixar o valor à presente ação.
Neste valor será contabilizado o valor da indemnização pela antiguidade já fixada de € 30.288,80 e ainda das retribuições intercalares. Como relativamente a este montante se relegou a sua fixação para incidente próprio, será o seu valor provisoriamente fixado até à data de prolação do presente acórdão, em € 40.990,22.
Assim fixa-se à ação o valor de € 71.270,02.
8.
Responsabilidade pelas custas.
Tendo a recorrente obtido provimento no recurso da ação (não tendo relevo autónomo na decisão final as partes em que não obteve vencimento) as custas desta deverão ser suportadas pela ré/recorrida, art. 527 n.º 1 e 2 do CPT.
9.
Decisão
Em face do exposto decide-se:
a) Fixar o valor da ação em € 71.270,02 e o da reconvenção em € 2640,52.
b) Julgar parcialmente procedente o recurso da decisão de facto, interposto e, em consequência:
i. alterar a redação do facto 13. nos termos sobreditos
ii. aditar aos factos provados a alínea dd) dos factos não provados;
c. Alterar a redação dos factos provados constantes dos pontos provados 16, 17, 18, 19, 20, 21, 23, 24, 28, 31, 32, 33, 35, 40, 46, 62 e ainda do facto não provado da alínea b, kk) e mm).
a. Eliminar do elenco dos factos provados os factos 2, 36, 37 e 39 e dos factos não provados os factos das alíneas a`), c) e e).
b. revogar a sentença recorrida, na parte em que considerou lícito o despedimento e julgando ilícito o despedimento da recorrente condenar o Banco XX, SA a pagar-lhe:
i. a quantia de € 30.288,80 de indemnização pela antiguidade, vencida até à presente data e sem prejuízo do que se vencer, a este título, até à data do trânsito em julgado da decisão;
ii. as retribuições mensais nos termos acima assinalados (incluindo retribuições de férias, subsídios de férias e Natal) vencidas desde 16.07.2023 e vincendas até ao trânsito em julgado do presente acórdão, a que se deverão deduzir as quantias que haja recebido, nesse período, a título de subsídio de desemprego, que deverão ser entregues pela recorrida à Segurança Social, em conformidade com o estabelecido na al. c), do n.º2, do art. 390º do CT, tudo a liquidar em oportuno incidente de liquidação.
Custas a cargo da recorrida.
Lisboa, 26 de janeiro de 2025
Alexandra Lage
Paula Pott
Susana Silveira
_______________________________________________________
1. A recorrente extravasou o convite que lhe foi feito e concretizou o valor da causa ao contrário do que havia feito nas conclusões
iniciais.
2. Ver Ac. do Tribunal da Relação do Porto, de 21.11.2016, proferido no processo 12128/14.5 T8PRT-B.P1 disponível in
www.dgsi.pt
onde se pode ler no sumário que “ o valor da ação deve corresponder à utilidade económica do pedido”.
3. Proferido no processo n.º 331/19.6T8FAF.G1 disponível in www.dgsi.pt
4. in “Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2022”, 7ª ed ,pág. 334, 337 e 338.
5. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no processo n.º 10912/21.2T8LSB.L1-1, de 20.02.2024 disponível in
www.dgsi.pt
.
6. Acórdão da Relação de Lisboa (ver sumário, ponto I) proferido no processo nº 144/15.4T8MTJ.L1-2, 26.09.2019, disponível in
www.dgsi.pt
7. Ver Acórdão proferido no processo n.º 590/12.5TTLRA.C1.S1, disponível em
www.dgsi.pt
8. Ver Acórdão proferido no processo n.º 19035/17.8T8PRT.P1.S1, disponível in www.dgsi.pt.
9. A recorrente identifica a testemunha como sendo CC mas tratar-se-á de lapso de escrita, já que da ata de julgamento de 05 de junho aparece a identificação da testemunha com o nome de CC e assim se identificou a testemunha na audição da gravação a que procedemos.
10. Ver Acórdão desta Relação, proferido no processo 13884/23.5T8LSB.L1, relatado pela Sr.ª Desembargadora, Susana Silveira, aqui adjunta e disponível in www.dgsi.pt.
11. Tal impossibilidade prática de manutenção do vínculo laboral existirá, pois, como se lê no Ac. RP de 18/09/2006, processo n.º 0542236 acessível in www.dgsi.pt «
quando se consubstancie uma situação de quebra absoluta ou abalo profundo na relação de confiança entre o trabalhador e o empregador, tornando inexigível ao contraente interessado na desvinculação o respeito pelas garantias da estabilidade do vínculo, o que sucederá sempre que a ruptura da relação laboral seja irremediável, na medida em que nenhuma outra sanção seja susceptível de sanar a crise contratual aberta por aquele comportamento culposo
».
12. A referência às normas em vigor na empregadora consta do Relatório de Auditoria - N 2022-1014 e sem que a recorrente tenha contestado a sua existência.
13. Ver neste sentido o Acórdão proferido no processo n.º 16995/17.2T8LSB.L2.S1, de 17.03.2022, disponível in www.dgsi.pt.
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TRL
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https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/669e8c1562b1869c80258c4b004a6ef2?OpenDocument
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1,757,376,000,000
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IMPROCEDENTE
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3230/21.8T8FNC.L1-7
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3230/21.8T8FNC.L1-7
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ANA MÓNICA MENDONÇA PAVÃO
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Sumário
: (da responsabilidade da relatora - art. 663º/7 CPC):
I - Diversamente da excepção do caso julgado (que exige a tripla identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir), é dispensável quanto à autoridade do caso julgado, a verificação das três identidades a que se reporta o art. 581º do Código de Processo Civil.
II - Não pode estender-se a terceiros o caso julgado sobre factos adquiridos num processo em que não hajam sido parte, sob pena de violação do princípio do contraditório.
III – Não estando demonstrada a verificação do dano/prejuízo para a autora, não pode proceder a sua pretensão indemnizatória.
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[
"AUTORIDADE DO CASO JULGADO",
"EFICÁCIA QUANTO A TERCEIROS"
] |
Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
*
I. RELATÓRIO
Silva & Coelho, S.A.
intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra
AA
, pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de €6.703,73, acrescida de juros moratórios vencidos e vincendos até efectivo pagamento, a título de perda patrimonial por actos ilícitos e culposos desta, fundando o seu pedido na responsabilidade civil contratual.
Alega, para tanto, que é proprietária de um terreno confinante com a ré, que ambas contrataram a execução de um muro de partilha a executar por terceiro e, pelo facto de a ré não ter procedido ao pagamento da parte que lhe competia (50%), a autora teve que suportar integralmente o mesmo a fim de garantir a conclusão da obra. Mais alega que, por ter a ré deixado de cumprir a obrigação que lhe competia (pagamento de 50% da construção do muro), incorreu em mora, que se converteu em incumprimento definitivo em virtude do decurso do tempo, pelo que se constituiu na obrigação de indemnizar a autora no valor correspondente à parte que aquela suportou para a conclusão da obra.
A autora requereu a ampliação do pedido decorrente da conclusão da obra que sofreu alterações ao valor inicialmente orçamentado, tendo vindo a pagar o montante global de €16.057,07 pela obra, razão pela qual considera que o prejuízo sofrido corresponde a €8.028,54, e não apenas os €6.703,73 que inicialmente tinha pedido, requerendo a condenação da ré a pagar-lhe o valor actualizado.
A ré apresentou defesa por excepção (excepção de não cumprimento da obrigação) e por impugnação, alegando em síntese, que não cumpriu o orçamentado em virtude da relação privilegiada que a autora mantinha com a empresa executante, não tendo sido respeitado o contratado, designadamente no que respeita a altura de escavação que coloca em causa a segurança da habitação da ré, a qualidade da construção do muro (60% de betão simples e 40% de pedra), e ainda, a localização da construção do muro que se encontra no terreno da ré, a dois metros da linha de partilha, beneficiando a autora com uma área de 33m2.
Alega a ré que oportunamente expôs junto da autora e da empresa executante os problemas por si verificados na construção do muro, mas sem que tenha surtido qualquer resolução, pelo que considera haver um incumprimento por parte da empresa executante do orçamentado e, em consequência, nega estar em mora quanto ao pagamento, tendo resolvido o contrato de empreitada oportunamente junto da aludida empresa executante, pugnando pela improcedência do pedido.
Mais, alega a ré que se encontra pendente contra si acção proposta pela empresa executante, que corre termos nos Julgados de Paz, processo n.º 189/..., cujo objecto visa apreciar se houve incumprimento da ré (pagamento) ou incumprimento pela empresa executante (orçamento), que constitui causa prejudicial, requerendo a suspensão da presente instância.
Notificada a autora para se pronunciar quanto à requerida suspensão da instância em virtude da causa prejudicial, veio manifestar a sua oposição por considerar que o objecto da aludida acção em nada influi os presentes autos, já que respeitam a primeira fase da obra e aqui está em causa a segunda fase da obra, mais, veio impugnar a matéria quanto à exceção de não cumprimento da obrigação invocada pela ré.
A presente acção foi inicialmente proposta junto dos Julgados de Paz do Agrupamento de Concelhos de Câmara de Lobos, Funchal e Santa Cruz, a que foi atribuído o número de processo .../..., que fixou o valor da causa em € 41.393,37 (quarenta e um mil, trezentos e noventa e três euros e trinta e sete cêntimos), declarando a sua incompetência em razão do valor e, remetendo os autos para o Juízo Local Cível do ... (ref. 4254438).
A ré não se opôs à ampliação do pedido da autora, tendo o mesmo sido admitido ao abrigo do disposto no art. 264.º do Código de Processo Civil.
Foi junta aos autos certidão extraída do processo n.º ..., que correu termos no Juízo Local Cível do ..., figurando como autora Linetype Projects, Lda. e como ré AA (ref. 4419312).
Foi realizada audiência prévia tendo em vista a conciliação das partes, que não se mostrou possível (ref. 51192127), tendo sido proferido despacho saneador por escrito (ref. 52092338), sendo dispensada a identificação do objecto do litígio e a enunciação dos temas da prova.
A decisão da matéria da excepção invocada pela ré (excepção de não cumprimento da obrigação), foi relegada para final.
Foi realizada audiência de julgamento, com observância do formalismo legal.
*
Foi proferida
sentença
, com o seguinte dispositivo:
«Julgo totalmente improcedente a exceção de autoridade de caso julgado invocada pela autora, por falta de fundamento legal;
Julgo totalmente improcedente a presente ação, por não provada, e em consequência, decido absolver a ré AA do pedido contra si deduzido pela autora.
Condeno a autora nas custas do processo.»
Inconformada com a sentença, veio a autora dela interpor o presente recurso de apelação, formulando as seguintes
conclusões
[transcrição]:
a) Nos presentes autos, está em causa a construção de um muro de partilha, contratado por Recorrente e Recorrida a sua execução por terceiro.
b) É exigido pela Recorrente o pagamento de 50% por centro da construção do muro, referente ao segundo troço, na qual esta suportou para efeitos de conclusão da obra e que a Recorrida acabou por não pagar, tendo resolvido o contrato unilateralmente, sem qualquer fundamento para o fazer e entrando em incumprimento definitivo.
c) O presente processo está associado a um outro com o n.º ..., do qual não houve recurso e já havia transitado em julgado, em que a sentença foi aqui junta, cuja matéria releva para os presentes autos, por força do Caso Julgado Material, quer quanto à inexistência de fundamentos para resolução unilateral do contrato por parte da Recorrida, quer quanto à boa execução do muro, que releva para a sua continuidade e no qual a Recorrente viu-se obrigada a prosseguir, no sentido de cumprir com o contratualizado com terceiros e, ao mesmo tempo, por força do risco eminente de danos, caso ocorresse a sua não execução.
d) Pelo que existe erro na interpretação dos factos (em virtude da autoridade de caso julgado) que, para a presente causa, são manifestamente relevantes, mormente no que tange aos factos provado com os números 14, 15, 31 a 38 e 40, bem como quanto aos factos não provados, mais precisamente alíneas a) e g).
e) Também o risco ficou provado na presente ação, mormente no que tange com os factos 28 e 29 dados como provados na ação da Sentença.
f) Pelo que, andou mal o tribunal ao não julgar a exceção de Autoridade de Caso Julgado procedente, e, ainda, existe um erro claro e evidente de julgamento, quanto à incursão dos factos no direito, na medida em que se encontram verificados todos os pressupostos da responsabilidade civil contratual, quer pela aludida exceção, quer pelos factos dados como provados.
g) Razão pela qual o presente Recurso só poderá proceder, dando provimento à exceção de autoridade do caso julgado, nos termos dos Artigos 613.º n.º 1, 615.º n.º 1, alínea c), e 625.º n.º 2, ambos do CPC.
h) Deverá ainda ser julgado procedente o pedido formulado pela Recorrente, com a consequente alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto e decisão final, impondo-se a condenação da Recorrida por força da responsabilidade civil contratual, o que se requer ao abrigo do disposto no art. 662.º n.º 1 do CPC.
i) A decisão recorrida violou os Artigos 613.º n.º 1, 615.º n.º 1, alínea c), e 625.º n.º 2, 581.º n.º 4, 607.º n.º 5 (na parte a que refere “a livre apreciação não abrange os factos … que estejam plenamente provados, quer por documento …”, ou seja a sentença supra invocada e já junta aos presentes autos) todos do CPC bem como o Artigo 2.º da CRP (princípio implícito e decorrente do princípio do Estado de Direito consagrado).
Conclui a recorrente que deve ser revogada a sentença recorrida.
A recorrida contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso e requerendo a ampliação do objecto do recurso através da impugnação da matéria de facto.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
*
II. QUESTÕES A DECIDIR
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados nos artigos 635º/4 e 639º/1 do Código de Processo Civil, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importa, no caso, apreciar e decidir das seguintes questões:
- impugnação da matéria de facto;
- autoridade do caso julgado;
- verificação dos pressupostos da responsabilidade civil (contratual) conducentes à responsabilização da ré/apelada pelo pagamento da indemnização peticionada pela autora/apelante.
- ampliação do âmbito do recurso.
*
III. FUNDAMENTAÇÃO
III.1. Factos
Factos provados
O tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos [transcrição]:
1. A autora é uma sociedade anónima que se dedica, entre outras atividades, à administração de imóveis próprios e por conta de outrem, arrendamento de bens imobiliários e manutenção de propriedades e escritórios.
2. A autora é dona e legítima proprietária do prédio rústico, sito ao ..., na freguesia do ..., concelho do Funchal, inscrito na matriz predial respetiva sob o artigo 50 da secção “AC” (anterior artigo ... da secção “AC”, com a área de 680 m2 (na matriz) e 700 m2 (no registo predial), descrito na ... sob o n.º .../20040310, com o valor patrimonial atribuído de € 10,00.
3. A ré é dona e legítima proprietária do prédio urbano, sito ao ..., inscrito na matriz predial respetiva sob o artigo 4430 (anterior prédio rústico com o artigo ... da secção “AC” que por sua vez provinha do artigo ... da secção “AC”), com a área total de 880 m2 (na matriz e no registo predial), descrito na ... sob o n.º .../20170221, com o valor patrimonial atribuído de € 129.340,00.
4. Os prédios melhor descritos em 2. e 3. são contíguos, sendo que o prédio agora inscrito na matriz sob o artigo 4430, propriedade da ré, confronta em toda a sua extensão a Sul com o prédio rústico agora descrito na matriz predial respetiva sob o artigo ...da secção “AC”, propriedade da autora.
5. A autora e a ré celebraram um contrato de promessa de compra e venda com assunção de dívida, em 14.02.2017, no qual declararam, além do mais, que a primeira aceita comprar à segunda, uma fração de terreno com a área efetiva de 90 m2, já totalmente paga aquando da celebração do aludido contrato, cuja transmissão fica dependente da atuação por parte da ré depois de assegurar os pressupostos contidos no contrato.
6. Acordaram a autora e a ré em contratar os serviços da empresa Linetype Projects, Lda., empreiteiros de construção civil com o Alvará emitido pelo IMPIC com o n.º..., titular do NIPC ..., com sede na ..., que abordaram por intermédio do seu gerente, BB, entre janeiro e fevereiro de 2020, para a construção de um muro divisório e de partilha das duas propriedades, que seria financeiramente e de forma equitativa suportado pelas partes.
7. Foi inicialmente a autora, na pessoa do seu administrador CC e, posteriormente a ré, que contactaram a Linetype para a construção de muro divisório e partilha, tendo comunicado o que era pretendido, quer quanto à altura dos muros a construir, quer quanto à delimitação e localização dos muros.
8. A Linetype procedeu à elaboração em 24.02.2020 e envio do orçamento n.º 0035.18.A com o valor global de € 33.928,99, contendo a descrição dos trabalhos e dos materiais a incorporar na obra, bem como a volumetria e acabamentos, que foi precedido da elaboração de uma “proposta de preço para execução da empreitada designada por execução de trabalhos numa moradia no caminho de ..., no Funchal – arranjos exteriores – 1.ª fase (muro de partilha a norte)”, a que atribuiu a referência n.º PP ... – NM, datada de 24.02.2020, que dirigiu exclusivamente à autora.
9. O orçamento melhor identificado em 8. previa a realização dos seguintes trabalhos: “MOVIMENTAÇÃO DE TERRAS: escavação mecânica, com regularização manual, em terreno normal na abertura de caboucos para as fundações dos muros, considerando a cota máxima de 1,00 m de profundidade; aterro regado e compactado por camadas não superiores a 0,20 m de espessura, com terras provenientes de fundação, em tardoz de muros e na criação de plataformas; BETÕES: fornecimento e execução de muros de suporte em betão ciclópico constituído por 60% de betão simples da classe C16/20 e 40% de pedra limpa, incluindo enchimento, elevação, vibração, cura e execução de cofragens, descofragens e escoramentos; muro de partilha a norte; ALVENARIAS: Fornecimento e execução de paredes simples em alvenaria de blocos ocos de betão, com 0,20 m de espessura no tosco, assentes com argamassa de cimento e areia ao traço 1:5, incluindo execução de meio-fio e pilares de reforço em betão ligeiramente armado; muro de partilha a norte.”
10. Em 04.05.2020 a Linetype remeteu, por comunicação eletrónica exclusivamente dirigida à autora, ambas as faturas correspondentes ao valor da adjudicação (25% do valor orçamentado), ou seja, a FT 2020/36 (da autora) e a FT 2020/37 (da ré).
11. Em resposta à comunicação descrita em 10. a autora solicitou à Linetype que remetesse a fatura da ré, FT 2020/37, no valor de € 5.174,18 com IVA incluído, diretamente para os e-mails que indicou, o que veio a fazer, em ato contínuo, no mesmo dia, com o seguinte teor: “conforme combinado com o Sr. CC, enviamos em anexo a nossa fatura n.º 2020/37, referente aos 25% da adjudicação de metade do orçamento do muro de partilha. (…)”.
12. Do orçamento mencionado em 8., constava que a adjudicação da obra implicava o pagamento imediato de 25% do valor global estimado dos trabalhos a realizar, sendo que o remanescente seria faturado mensalmente, mediante a apresentação de auto de medição dos trabalhos realizados, a pagar no prazo de 7 dias após a data da fatura, e o acerto final seria apurado em mapa final de trabalhos realizados a pagar no prazo de 7 dias após a emissão da fatura correspondente.
13. A autora e a ré efetuaram o pagamento, cada uma, à Linetype, correspondente à adjudicação, tendo sido emitidos os correspondentes recibos n.º RC 2020/38 (€ 2.500,00) e RC 2020/41 (€ 2.674,18) à ré em 05 e 07 de maio de 2020, respetivamente, e o recibo n.º RC 2020/39 (€ 4.241,13) à autora em 05.05.2020.
14. Em 06.07.2020, já se encontrava concluída a escavação e a betonagem de 3 dos 4 bancos de muros (muro tinha aproximadamente 3 m de altura e 10 m de comprimento), sendo que a base do mesmo havia sido preparada para a altura total de 4 metros, a ré, por intermédio de DD, com quem vive em união de facto, solicitou uma reunião presencial no local da obra, com a presença do gerente da Linetype, BB.
15. Na reunião referida em 14. a ré, representada por DD, manifestou as suas reservas quanto às regularidades do muro, designadamente para o facto de o mesmo não estar a ser preparado para o escoamento de águas, não ter altura suficiente para ficar ao nível das terras e estar a ser projetado sem a proporção de betão e pedra que estava orçamentado, o que poderia trazer problemas de segurança com risco de queda.
16. A autora no dia 07.07.2020, abordada pela ré e pelo DD, manifestou a sua discordância com a alteração proposta e a Linetype desaconselhou o aumento de 1 metro, por dois motivos: 1) pelo facto de a base do muro já construída não estava executada para um perfil de muro superior a 4 metros de altura e 2) o aumento de 1 metro não permitira à ré a pretensão de evitar a construção de um muro recuado, por forma a elevar a cota de soleira da sua moradia, pois, tal implicaria, no mínimo um aumento de 4 metros.
17. Na ocasião indicada em 14. foi sugerido pela Linetype a construção de um muro paralelo e recuado em relação ao já executado, com cerca de 3 a 4 metros de altura, de modo a vencer a diferença de cotas entre o coroamento do muro executado e a cota da soleira da moradia daquela cujo orçamento a ré solicitou.
18. Após a reunião indicada em 14. e 15. os trabalhos prosseguiram, com a construção do muro, concluindo-se o primeiro troço, de 21,5 metros de comprimento, em 23.07.2020.
19. A Linetype remeteu as faturas respeitantes aos trabalhos, até então executados, tendo emitido em 31.07.2020 a fatura n.º FT 2020/88 à ré, no valor total de € 6.890,07 (IVA incluído), e a fatura n.º FT 2020/85, em 31.07.2020 no valor de € 5.467,60 (sem IVA incluído) à autora.
20. Em 05.08.2020 a Linetype solicitou uma reunião presencial com a autora e a ré para definir a continuação da construção do muro do segundo troço e a eventual subida da cota do mesmo, antes de iniciar a escavação e betonagem, tendo a autora manifestado que não se opunha ao aumento da altura e volumetria do muro divisório desde que os custos fossem assumidos pela ré.
21. Em data não concretamente apurada a ré solicitou orçamento à Linetype para o aumento da altura do muro e o orçamento para o muro recuado junto ao troço já realizado.
22. Em 18.08.2020 a ré, representada por DD, remeteu à Linetype um e-mail a informar que não ia proceder ao pagamento da fatura indicada em 19. uma vez que “(…) não foi feito o que foi falado (na reunião do dia 05.08.2020) relativamente ao muro e o mesmo se for para ficar assim, ainda carece (…) de soluções para minimizar a falta de cumprimento de algumas normas da arte e bem construir, pelo que, aguardam serenamente a resolução da situação com toda a boa vontade demonstrada desde sempre.”
23. Em resposta, e no mesmo dia 18.08.2020, a Linetype esclareceu a ré que o valor mencionado na fatura se reporta aos trabalhos já executados em julho e não se tratam de valores adicionais, mais referiu que “o muro executado está de acordo com o que estava previsto inicialmente (4 metros de altura), e aquando da sua solicitação para aumentar a altura do muro em mais 1 metro, já se encontrava concluída a escavação e a betonagem da base preparada para a altura prevista. Recordamos que ficou combinado, aquando desta solicitação, de orçamentarmos um novo muro mais recuado em relação ao executado, com cerca de 3 metros de altura, de modo a vencer a diferença de cotas entre o coroamento do muro executado e a cota da plataforma da sua moradia, sendo que esta solução seria mais económica do que executar apenas um muro com cerca de 7 metros de altura.” Mais refere que aguarda pagamento da fatura remetida a fim de serem apresentados os orçamentos.
24. Em 30.09.2020 a Linetype remeteu nova comunicação eletrónica à ré, por intermédio de DD, com o seguinte teor “na sequência da nossa conversa por telefone no passado 17 de Setembro, em que nos informou que não pretendia continuar com execução da empreitada nos moldes em que foi adjudicada (divisão de valores com a moradia de baixo), vimos pelo presente enviar os seguintes documentos: nota de crédito n.º 2020/2, referente à totalidade da fatura n.º 2020/88; fatura n.º 2020/120, que se refere à totalidade dos trabalhos executados (7.530,13 € + IVA) com a dedução da totalidade da fatura de adjudicação/adiantamento n.º 2020/37 (4.241,13 € + IVA), ficando assim pendente o valor de 3.289,00 € + IVA = 4.012,58 €.”
25. A autora reuniu com a Linetype, a pedido desta, em data não concretamente apurada, mas após a posição da ré de não querer continuar com a execução da empreitada, para discutir a continuação da construção do muro, respeitante ao segundo troço, da qual resultou que a autora iria acionar os meios judiciais para ver ressarcidos os danos resultantes do incumprimento contratual da ré, ficando a Linetype encarregada de promover o acerto e faturação dos montantes em falta pelo troço já construído e proceder à elaboração de novo orçamento para a construção do muro em falta, mas agora a executar só no terreno da autora, com uma altura mínima necessária (parcialmente reduzida face ao anteriormente projetado pois que aquele visava servir os intuitos e interesses conjuntos da autora e da ré).
26. A Linetype, em consequência da emissão dos documentos melhor descritos em 24., emitiu à autora uma nota de crédito n.º 2020/1, referente à totalidade da fatura n.º 2020/85 e procedeu à emissão da fatura n.º 2020/119, que se referia à totalidade dos trabalhos efetivamente executados e terminados em 23.07.2020, no valor de € 7.530,13, tendo ficado com um crédito no valor de € 2.358,60, na medida em que já tinha efetuado o pagamento de € 4.241,13 da adjudicação e de € 5.647,60 relativa à fatura n.º 2020/85.
27. Na sequência da comunicação eletrónica remetida à ré, e melhor descrita em 24., esta não contestou nem procedeu ao seu pagamento de forma voluntária.
28. No período compreendido entre o dia 03.08.2020 até ao dia 17.09.2020, a obra permaneceu parada, encontrando-se parte da escavação realizada e o acesso ao terreno da autora desprotegido.
29. Com a aproximação do inverno, e consequentemente, com a aproximação da época das chuvas, encontrando-se parada a execução do muro verificava-se o aumento do perigo de uma eventual derrocada o que fez com que a autora tivesse perdido o interesse na prestação a que a ré se obrigara e decidiu suportar, no imediato, a totalidade dos custos da continuação do muro, no valor de € 13.407,46, a que corresponde ao orçamento n.º 0035.18.E, datado de 01.10.2020.
30. Por conta do novo orçamento, referido em 29., que respeita o segundo troço, a autora efetuou o pagamento à Linetype da fatura n.º FT 2020/125 no valor de € 3.289,00, emitida em 01.10.2020, e ainda, em 06.11.2020, efetuou o pagamento do montante de € 12.768,07, referente à fatura n.º FT 2020/142, emitida 30.10.2020.
31. Quanto ao descrito em 28. e 29. a autora não informou, nem interpelou, a ré do que tinha decidido.
32. A Linetype procedeu à escavação do terreno da autora de uma altura não concretamente apurada, mas superior a um metro de profundidade em relação à configuração inicial do terreno.
33. Ao longo da execução do primeiro troço a configuração natural do terreno da autora, formado por um declive gradual, foi alterado pela escavação operada pela Linetype, tendo a ré contratado um Engenheiro Civil para proceder à elaboração de uma vistoria técnica ao local para apreciar a sua regularidade, que documentou com fotografias do local no seu relatório, datado de 28.08.2020, do qual se extrai, além do mais, que “(…) de acordo com o levantamento topográfico apresentado e observado aquando das vistorias, a intervenção na parcela confinante localizada a sul, não se limitou a remover terras depositadas pelos requerentes (ré), o perfil natural do terreno foi interrompido de forma abrupta e profundou-se a fundação. No levantamento topográfico é possível verificar marcas do balde da máquina que confirmam a existência de terreno firme e bem compactado. A escavação que está a ser feita já aprofundou mais do que uma vez, aumentando a altura dos taludes entre as parcelas o que vai aumentando a possibilidade de ocorrência de fenómenos de instabilidade na parcela dos requerentes (ré).(…)” conclui propondo a construção de um muro de sustentação de terras com uma altura de 6 metros de altura tendo em consideração a cota atual da parcela confinante localizada a sul que é de aproximadamente 369,50 metros e a cota média do perfil natural do terreno é de 375,50 metros.
34. Em 15.10.2020 a autora rececionou uma comunicação dirigida pelo Ilustre Mandatário da ré, em sua representação, a remeter o relatório elaborado pelo Engenheiro que contratou para fazer a vistoria do muro, manifestando a sua preocupação nas irregularidades que menciona e solicita a correção das mesmas para salvaguarda da integridade das pessoas e bens que possam ser afetadas.
35. O muro construído pela Linetype, correspondente ao primeiro troço, situa-se no terreno da ré, melhor identificado em 3., a cerca de 2 metros acima da linha de partilha, em toda a sua extensão de 21,5 metros de comprimento, não totalmente perpendicular, mas numa diagonal descendente de norte para sul, beneficiando o terreno confinante, pertence da autora, de uma área de cerca de 33 m2.
36. As escavações realizadas pela autora visam colocar a configuração do seu terreno, melhor identificado em 2., ao nível da cota previamente existente no seu logradouro onde se encontra edificada uma piscina aumentando a área útil de utilização.
37. A ré solicitou orçamentos à Linetype, conforme indicado a 21., apenas com intuito de obter soluções perante a obra que estava a ser executada, de modo a que o muro ficasse ao nível das terras a montante e que este permitisse contê-las para não as deixar a descoberto.
38. Não foi acordado, nem orçamentado a altura de 4 metros de altura para o muro.
39. No seguimento do ocorrido em 14., a ré em 26.08.2020, comunicou à Câmara Municipal do Funchal que estava ser executado um muro com desconformidades, por não possuir escoamento de águas e estar abaixo das cotas existentes com risco para a segurança de pessoas e bens.
40. O muro respeitante ao primeiro troço não se encontra na linha de partilha das propriedades contíguas da autora e da ré, nem tem pontos de escoamento de águas, nem altura suficiente para estar ao nível da cota das terras sobranceiras.
41. Em 11.04.2022 foi proferida sentença, transitada em julgado, no processo n.º ..., que correu termos neste Juízo Local Cível do Funchal, Juiz 3, do Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, que decidiu, além do mais, condenar a ré no pagamento da quantia de € 4.012,58 à Linetype Projects, Lda., que figura como autora, a título de incumprimento contratual, acrescida de juros de mora, desde a data do vencimento da fatura n.º FT 2020/120 (30.09.2020), acrescida de sete dias, e até efetivo e integral pagamento.
42. Em 07.06.2022 a ré efetuou o pagamento de € 4.012,58 à Linetype, a qual emitiu o recibo n.º RC 2020/162, em 14.06.2022.
43. O projeto de arquitetura submetido pela autora junto da Divisão de Apreciação Urbanística da Câmara Municipal do Funchal, no que respeita o seu terreno, melhor descrito em 2., prevê a edificação de muros de suporte para evitar deslizamentos de terras.
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Factos não provados
a) O prédio da ré, melhor descrito em 3. inscrito na matriz predial respetiva sob o artigo ... (anterior prédio rústico com o artigo ... da secção “AC” que por sua vez provinha do artigo ... da secção “AC”), tem a área total de 900 m2 (na matriz e no registo predial).
b) Quando a ré confrontou a autora, na pessoa do seu legal representante, CC, do motivo da escavação ultrapassar a altura definida no orçamento aquele respondeu que era para plantar árvores de fruto.
c) A qualidade do muro não respeita o orçamento nem o previsto nas artes de bem construir, neste caso a proporção do betão e de pedra que compõe o muro.
d) A altura do muro do primeiro troço prevista e solicitada pela autora e pela ré era no total de 4 metros.
e) A altura do muro era determinada pela escavação máxima de 1m de profundidade na linha de partilha até ao topo sobranceiro do terreno escavado naquele local.
f) Na reunião referida em 14., BB, em representação da Linetype, garantiu que não havia problema quanto ao escoamento das águas, que subiriam se fosse preciso um metro do muro e que as águas passavam por baixo do muro, não se pronunciando quanto às proporções de betão e pedra utilizados no muro.
g) No período compreendido entre o dia 03.08.2020 até ao dia 17.09.2020, a ré não informou, nem explicou à autora ou à Linetype os motivos do que entendia ser “(…) a falta de cumprimento de algumas normas da arte e bem construir”.
h) A autora tem conhecimento do incumprimento objetivo da Linetype por via das alterações introduzidas na execução da obra.
i) A obra não parou e continuou na zona do muro, na zona do logradouro da propriedade da autora onde se encontra a piscina.
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O tribunal de 1ª instância consignou que:
“A restante matéria alegada não foi considerada por se tratar de matéria conclusiva, de Direito ou por não se mostrar relevante para a boa decisão da causa.”
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III.2. Mérito do recurso
III.2.1. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto
Embora sem autonomizar a questão da impugnação da matéria de facto, nem no corpo da motivação, nem nas conclusões do recurso, tratando-a em conjunto com as demais considerações em matéria de direito, podemos inferir que a recorrente pretende impugnar a decisão sobre a matéria de facto, sustentando que, em virtude da invocada autoridade do caso julgado, existe erro na interpretação dos factos dados como provados nºs 14, 15, 31 e 40 e alíneas a) a g) dos factos não provados.
Nos termos do disposto no art. 662º/1 do Cód. Proc. Civil,
“A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Dispõe, por sua vez, o art. 640º/1 do Cód. Proc. Civil que: “Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
“a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”
O n.º 2 do mesmo preceito exige, quanto aos meios probatórios invocados, que incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o recurso, podendo transcrever os excertos tidos por relevantes.
Tais ónus são de cumprimento cumulativo, sob pena de imediata rejeição do recurso, não sendo legalmente admissível a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento quanto ao recurso da decisão da matéria de facto (neste sentido, v. António Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª edição, Almedina, pág. 199; e os seguintes acórdãos: do STJ de 27/10/2016, Ribeiro Cardoso; de 27/09/2018, Sousa Lameira; de 3/10/2019, Maria Rosa Tching; e de 2/2/2022 - revista n.º 1786/17.9T8PVZ.P1.S1-1ª Secção, Fernando Samões; e do TRG de 19/06/2014, Manuel Bargado; de 18/12/2017, Pedro Damião e Cunha; e de 22/10/2020, Maria João Matos – todos acessíveis em www.dgsi.pt.)
Acresce que, a reapreciação do julgamento de facto pela Relação, destina-se primordialmente a corrigir invocados erros de julgamento que, atento o preceituado no citado artigo 662º/1 do CPC, se evidenciem a partir dos factos tidos como assentes, da prova produzida ou de um documento superveniente, impondo decisão diversa. Significa que não basta que a prova produzida nos autos permita decisão diversa, necessário é que a imponha.
Por esta razão, a lei exige ao recorrente que motive as alegações de recurso, dizendo as razões que determinam, em seu entender, diverso juízo probatório, para que a Relação possa aquilatar se os meios de prova por aquele indicados impõem ou não decisão diversa da recorrida quanto aos concretos pontos de facto impugnados.
No que tange à rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, Abrantes Geraldes, ob. cit., p. 200-201, elenca as situações em que deve verificar-se tal rejeição:
“a) Falta de conclusão sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (arts. 635º, nº 4, e 641º, nº 2, al. b));
b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (art. 640º, nº 1, al. a));
c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.):
d) Falta de indicação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação.”
Como sustenta o mesmo autor, estas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor, sendo “uma decorrência do princípio de autorresponsabilidade das partes, impedindo que a decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo” (ob. cit. pág. 201).
Conforme se afirmou no acórdão do STJ de 24.04.2018 (P.140/11.0TBCVD.E1, disponível em www.dgsi.pt), «o art. 640º, nº 1 do CPCivil impõe um certo número de ónus à parte que impugne a decisão sobre a matéria de facto. Compreendem-se sem dificuldade estas exigências legais, pois o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não está concebido em termos de reescrutínio indiscriminado ou global da materialidade subjacente à causa, mas sim em termos de aferição de pontuais erros de julgamento (os concretamente identificados pelo recorrente). E, de outro lado, visa a lei o rigor na forma de acusação do mau julgamento dos factos, de modo a obviar a impugnações dilatórias, levianas ou carecidas de fundamento probatório objectivo».
À luz deste enquadramento, cumpre verificar se a ora apelante deu cumprimento aos ónus previstos no art. 640º do Código de Processo Civil.
É manifesto que a apelante se insurge genericamente contra a decisão sobre a matéria de facto, invocando erro na interpretação dos factos dados como provados sob os nºs 14, 15, 31 e 40 e alíneas a) a g) dos factos não provados, embora nem sequer explicite o seu conteúdo.
Da leitura conjugada do corpo e das conclusões da alegação extrai-se que toda a
pretensa
impugnação dos factos é feita em função da invocada questão da autoridade do caso julgado, que adiante se apreciará.
Por outro lado, a recorrente não indica os concretos meios probatórios que determinariam uma decisão diversa, nada dizendo a este respeito, remetendo para a questão da autoridade do caso julgado.
Por conseguinte, a apelante não procedeu à apreciação crítica dos meios de prova, em momento algum fazendo referência à prova produzida em audiência ou à motivação da decisão de facto vertida na sentença.
Acresce que a apelante não indica, em sede de conclusões, o concreto sentido da modificação pretendida, o que de acordo com a jurisprudência recentemente firmada pelo STJ [no AUJ nº 12/2023, de 17/10/2023, publicado no DR, 1ª série, de 14/11/2023, rectificado pela Declaração de rectificação nº 25/2023, de 28/11/2023, passando o sumário do aresto a ter a seguinte redacção: “«Nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações»], não constitui violação do ónus da alínea c) do nº 1 do art. 640º/1 do CPC,
desde que se possa retirar da motivação do recurso a decisão alternativa pretendida
.
Sucede que no caso vertente, não retiramos das alegações o sentido da decisão alternativa, porque tal não é minimamente explicitado.
Flui de todo o exposto que a apelante incumpriu claramente os ónus a que se reportam as citadas alíneas b) e c) do art. 640º/1.
Ora, impendendo sobre a recorrente o cumprimento das apontadas exigências legais e não o tendo feito, não delimitou o objecto do recurso.
Como sumariado no acórdão do TRE de 12/7/2018 (P. nº 581/15.4T8ABT.E1, relatado por Albertina Pedroso, publicado in www.dgsi.pt), que se subscreve:
“(…) III - Ao tribunal da Relação não incumbe ir identificar de entre aqueles pontos de facto, provados e não provados, onde previsivelmente se poderia encontrar o dissentimento do Recorrente relativamente à matéria de facto que vem fixada da primeira instância.
IV - De facto, não só isso significaria obrigar o tribunal ad quem a substituir-se ao recorrente na concretização do objeto do recurso, como se nos afigura que a tal sempre obstaria o princípio do pedido que enforma todo o processo civil e não pode deixar de ser aplicado na fase de recurso, sob pena de potencial violação de outros princípios processuais como seja o princípio da igualdade das partes.”
Acresce que, como se escreveu no acórdão do TRP de 4/11/2011, P. 3319/17.8T8PRT.P1, Jerónimo Freitas,
“o recorrente não cumpre os ónus impostos pelo art. 640º/1 do Código Processo Civil quando procede a uma mera indicação genérica da prova que, na sua perspetiva, justifica uma decisão diversa daquela a que chegou o Tribunal de 1.ª Instância, em relação a um conjunto de factos, sem especificar quais as provas produzidas quanto a cada um dos factos que, por as ter como incorretamente apreciadas, imporiam decisão diversa, fazendo a apreciação crítica das mesmas”
(no mesmo sentido, v. acórdão do TRG de 22/10/2020, P. n.º 5397/18.3T8BRG.G1-Maria João Matos).
É este o caso dos autos, em que a recorrente mal indica que facto/s quer impugnar, não procede à necessária apreciação crítica dos meios probatórios capazes de justificar uma decisão diversa (que também não indica), sendo manifesto que a apelante não concorda, isso sim, com a valoração dos factos efectuada na sentença, em sede de fundamentação jurídica, o que, porém, não constitui fundamento de impugnação dos factos.
A tudo isto acresce que igualmente não foi cumprido pela ora recorrente o ónus da indicação exacta das passagens da gravação do/s depoimento/s que se pretendia ver analisado/s, ou seja, mostra-se também violado este ónus secundário previsto no art. 640/2 a) e b) do CPC.
Pelo exposto, atento o incumprimento pela ora apelante dos ónus a que alude o citado artigo 640º/1 alíneas b) e c) e nº 2 alínea a) do mesmo preceito, impõe-se a imediata rejeição do recurso na parte relativa à impugnação da matéria de facto, o que se decide.
*
III.2.2. Apreciação jurídica
a) Autoridade de caso julgado
Insurge-se a autora/recorrente contra a decisão que julgou improcedente a excepção da autoridade do caso julgado que invocou no seu requerimento de 13/10/22, estribando-se nos artigos 613º/1, 615º/1 alínea c) e 625.º n.º 2 todos do Código de Processo Civil.
Sustenta que o presente processo está interligado com o processo nº ..., que correu termos no Juízo Local Cível do ..., no âmbito do qual foi proferida sentença, já transitada em julgado, cuja matéria releva para os presentes autos, por força do caso julgado material, quer quanto à inexistência de fundamentos para resolução unilateral do contrato por parte da recorrida, quer quanto à boa execução do muro de partilha dos terrenos confinantes das partes, para cuja construção acordaram em contratar a empresa “Linetype Projects Lda”.
Mais refere que aquela sentença versa sobre várias questões prejudiciais ou prévias face às que estão em discussão nos presentes autos, nomeadamente estabelece a existência da relação contratual entre a ora A. e a R. (que contratara conjuntamente a ali autora Linetype para a construção de um muro) e conclui que se verificou a resolução do contrato por parte da R. sem fundamento legalmente atendível, com a consequente condenação desta no pagamento à ali A. Linetype da quantia por esta reclamada. Aduz ainda que tal conclusão é premissa lógica e intrínseca para o pedido da aqui autora que se viu obrigada a assumir os custos com a continuação do citado muro e que pretende ser ressarcida da metade dos custos assumidos com a continuação daquele, face à resolução da Ré.
A recorrida contra-alegou pugnando pela improcedência da excepção da autoridade do caso julgado, que além de considerar que foi arguida intempestivamente (em momento posterior à contestação), entende que a decisão proferida no P. nº ... é supervenientemente ineficaz, face ao pagamento entretanto efectuado pela R.. Por outro lado, aduz que não existe qualquer relação de prejudicialidade, porquanto a relação jurídica material em causa nestes autos é completamente distinta da que foi apreciada naquele outro, já que no P. nº ..., foi apreciado o cumprimento do contrato entre a Linetype e AA relativo a um
primeiro troço da obra
, enquanto que no presente processo, está em causa o cumprimento do acordado entre a A. Silva & Coelho e a aqui Ré AA e por referência a um
segundo troço da obra
(construído, única e exclusivamente, pela Silva & Coelho), sendo que a primeira relação contratual não é pressuposto ou condição de definição da relação jurídica entre a ora Autora e a ora Ré.
A questão foi apreciada na sentença sob recurso seguintes termos:
«A autora veio proceder à junção da sentença, transitada em julgado, proferida no âmbito do processo n.º ..., que corre termos neste Tribunal e Juízo, e invocar a exceção de autoridade de caso julgado (ref.: 4913887).
Por outro lado, a ré veio opor-se, alegando, em síntese e, além do mais, que não há identidade dos sujeitos para conferir à aludida sentença a força da autoridade de caso julgado (ref.: 4937741).
Aquando do início da audiência final (ref.: 52695187) o Tribunal decidiu remeter para momento oportuno posterior o conhecimento da exceção invocada pela autora.
Assim, cumpre apreciar e decidir.
A exceção de caso julgado pressupõe a repetição de uma causa quando a primeira causa já foi decidia por sentença transitada em julgado, conforme se extrai do disposto no n.º 1 do art. 580.º do Código de Processo Civil.
O caso julgado material produz os seus efeitos por duas vias, assumindo uma vertente negativa, por via da exceção de caso julgado no sentido de impedir a reapreciação da relação ou situação jurídica material que já foi definida por sentença transitada em julgado, e, por outro lado, pode assumir uma vertente positiva, por via da autoridade do caso julgado, vinculando o Tribunal e as partes a acatar o que ficou definido na sentença transitada em julgado.
São pressupostos cumulativos para a verificação da exceção de caso julgado a tríplice identidade, ou seja, a causa repete-se quando a segunda ação, em relação à primeira, é idêntica quanto aos sujeitos, quanto ao pedido e quanto à causa de pedir, conforme dispõe o art. 581.º do Código de Processo Civil.
Contudo, é hoje pacífico na jurisprudência e na doutrina o entendimento de que a autoridade de caso julgado dispensa a identidade do pedido e da causa de pedir, desde que o objeto definido na segunda ação e o objeto definido na primeira ação se encontre numa relação de conexão ou dependência.
Se é certo que é mitigada a identidade do pedido e da causa de pedir na relação entre as duas ações (primeira e segunda), o mesmo não sucede quanto ao pressuposto da identidade de sujeitos.
A identidade de sujeitos pressupõe que as partes sejam as mesmas nas duas ações, sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica, conforme se extrai do n.º 2 do art. 581.º do Código de Processo Civil.
Ora, sem necessidade de maiores considerandos, vertendo para o caso em análise, nos presentes autos são partes a autora Silva & Coelho, S.A., e é ré AA; e no processo n.º ..., que correu termos neste Tribunal e Juízo, são partes a autora Linetype Projects, Lda. e ré AA. Se é certo que a ré é parte em ambas as ações, o mesmo não sucede quanto às autoras, não se encontrando verificado o pressuposto da identidade dos sujeitos nas duas ações.
Nestes termos, porque não se mostra preenchido o pressuposto da identidade dos sujeitos no que respeita os presentes autos e os autos n.º 3496/21.3T8FNC, que correram termos neste Tribunal e Juízo, não se atribui à sentença transitada em julgado proferida naqueles autos autoridade de caso julgado, julgando-se improcedente a exceção invocada pela autora.
Destarte, consigna-se que a sentença junta aos autos, proferida no aludido processo n.º ..., que correu termos neste Tribunal e Juízo, se afigura relevante para a boa decisão da causa, pelo que, será apreciada de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, em conformidade com a primeira parte do n.º 5 do art. 607.º do Código de Processo Civil.
Consigna-se, ainda, que apesar de não ter sido até então apreciado por este Tribunal o pedido de suspensão da instância por causa prejudicial, conforme requerido inicialmente pela ré, em face da junção da aludida sentença mostra-se prejudicado o requerido, ficando dispensado o Tribunal de se pronunciar quanto ao mesmo».
Concordamos inteiramente com o entendimento do tribunal
a quo,
que enquadrou correctamente a figura da autoridade do caso julgado (v.g. o seu efeito positivo de impôr a primeira decisão proferida, como pressuposto da segunda decisão; e o objectivo de proibição de contradição da decisão transitada), distinguindo-a do caso julgado.
Com efeito, no caso vertente não se verifica, desde logo, a identidade de sujeitos que é pressuposto quer do caso julgado, quer da autoridade do caso julgado.
É certo que é hoje praticamente unânime na doutrina e jurisprudência que, diversamente da excepção do caso julgado (que exige a tripla identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir), é dispensável quanto à autoridade do caso julgado, a verificação das três identidades a que se reporta o art. 581º do Código de Processo Civil.
Acresce que, para efeitos da identidade dos sujeitos, na autoridade do caso julgado não se exige que os sujeitos sejam exactamente os mesmos em ambas as acções, bastando que os sujeitos da segunda acção estejam compreendidos no elenco dos sujeitos da primeira acção, ainda que em menor número. Neste sentido, veja-se o acórdão do TRP de 20/6/24, P. 154/22.5T8VFR.P2, relator Paulo Dias da Silva, acessível em
www.dgsi.pt
, em cujo sumário se pode ler:
“I - A expressão “caso julgado” é uma forma sincopada de dizer “caso que foi julgado”, ou seja, caso que foi objecto de um pronunciamento judicativo.
II - O instituto do caso julgado exerce duas funções: uma função positiva e uma função negativa. A primeira manifesta-se através de autoridade do caso julgado, visando impor os efeitos de uma primeira decisão, já transitada (fazendo valer a sua força e autoridade), enquanto que a segunda de manifesta-se através de excepção de caso julgado, visando impedir que uma causa já julgada, e transitada, seja novamente apreciada por outro tribunal, por forma a evitar a contradição ou a repetição de decisões, assumindo-se, assim, ambos como efeitos diversos da mesma realidade jurídica.
III - Enquanto na excepção de caso julgado se exige a identidade dos sujeitos, do pedido e da causa de pedir em ambas as acções em confronto, já na autoridade do caso julgado a coexistência dessa tríade de identidades não constitui pressuposto necessário da sua actuação.
IV - Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica; há identidade do pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico e há identidade da causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico.
V - A identidade de sujeitos não exige que eles sejam exactamente os mesmos em ambas as acções. Destarte, desde que os sujeitos da segunda acção estejam compreendidos no elenco dos sujeitos da primeira acção há identidade de sujeitos processuais, ainda que sejam em menor número.
VI - A identidade de pedidos pressupõe que em ambas as ações se pretende obter o reconhecimento do mesmo direito subjectivo, independentemente da sua expressão quantitativa e da forma de processo utilizada, não sendo de exigir, porém, uma rigorosa identidade formal entre os pedidos. Os pedidos não têm que coincidir ponto por ponto, mas apenas que visar essencialmente o mesmo efeito.
VII - Sendo a causa de pedir um facto jurídico concreto, simples ou complexo, do qual emerge a pretensão deduzida, haverá que procurá-la na questão fundamental levantada nas duas acções.
VIII - No caso vertente, verifica-se a tríplice identidade prevista no artigo 581.º do Código de Processo Civil e, consequentemente, mostram-se preenchidos os pressupostos da excepção de caso julgado.”
Na mesma linha, encontramos o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/1/21, P. 2030/11.8TBFLG-C.P1.S1, relator Fernando Samões (in www.dgsi.pt), com o seguinte sumário:
“I. A função positiva do caso julgado, designada por autoridade do caso julgado, tem a ver com a existência de prejudicialidade entre objectos processuais, tendo como limites os que decorrem dos próprios termos da decisão, como se depreende dos art.ºs 619.º e 621.º, ambos do CPC, e implica o acatamento da decisão proferida em acção anterior cujo objecto se inscreve, como pressuposto indiscutível, no objecto de uma acção posterior, obstando a que a relação jurídica ali definida venha a ser contemplada, de novo, de forma diversa.
II. A autoridade do caso julgado não requer a tríplice identidade de sujeitos, de pedidos e de causas de pedir, podendo estender-se a outros casos, designadamente quanto a questões que sejam o antecedente lógico necessário da parte dispositiva do julgado.
III. Relativamente à eficácia subjectiva do caso julgado, embora a regra geral seja a de que ele só produz efeitos em relação às partes, também se estende àqueles que, não sendo partes, se encontrem legalmente abrangidos por via da sua eficácia directa ou reflexa, beneficiando do efeito favorável, como sucede, designadamente, nas situações de solidariedade entre devedores, de solidariedade entre credores e de pluralidade de credores de prestação indivisível, respetivamente nos termos dos artigos 522.º, 2.ª parte, 531.º, 2.ª parte, e 538.º, n.º 2, do CC.”
Como ensina o Prof. Teixeira de Sousa, in Blog di IPPC de 9/11/21 (citado por Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, vol II, 3ª ed.,
“(…) não pode estender-se a terceiros o caso julgado sobre factos adquiridos num processo em que não hajam sido parte.”
Volvendo ao caso
sub judice
e não obstante naquele outro processo estar em causa o contrato (de empreitada) que é objecto dos presentes autos, constatamos que a ora A. não foi parte no referido P. 3496/21.3T8FNC, que foi movido pela sociedade Linetype contra a ora R. Donde, não ocorre identidade dos sujeitos, que constitui pressuposto da autoridade do caso julgado, sob pena de violação do princípio do contraditório (art. 3º/3 do Código de Processo Civil), princípio estruturante do nosso processo civil.
São despiciendas maiores considerações para se concluir que bem andou o tribunal
a quo
ao julgar improcedente a invocada autoridade do caso julgado.
Termos em que improcede o recurso neste segmento.
*
b) Erro de julgamento – pressupostos da responsabilidade civil contratual
Remetendo para o facto provado 25 e convocando o art. 808º do Código Civil, a recorrente entende que houve incumprimento definitivo por parte da R., sendo desnecessária a interpelação desta pela A., imputando ao tribunal de 1ª instância erro de julgamento de direito ao considerar obrigatória a interpelação da ré.
Por outro lado, sustenta que se encontram verificados todos os pressupostos da responsabilidade civil contratual, face à relação contratual provada (facto 5), ilicitude do comportamento da ré e culpa da mesma, por ter incumprido o contrato sem motivo atendível, para além do dano correspondente ao montante suportado pela recorrente para a continuação da construção do muro e nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Sobre esta matéria o tribunal recorrido, após correcto enquadramento da responsabilidade civil contratual (à luz dos art.s 798º do Código Civil), pronunciou-se da seguinte forma:
“Vertendo para o caso em apreciação, da factualidade considerada provada, constata-se que a autora logrou demonstrar que celebrou com a ré um contrato do qual resultava a obrigação de edificarem um muro de partilha, para dividir as suas propriedades que são contíguas, suportando ambas o seu pagamento na proporção de metade.
Para o efeito, resultou demonstrado que autora e ré aceitaram o orçamento apresentado e contrataram a sociedade Linetype para proceder à execução do muro, efetuando o respetivo pagamento da adjudicação.
Mais, resultou demonstrado que a autora e a ré contrataram a execução de um muro de partilha/suporte, nas condições descritas no orçamento, relevando-se, no essencial, que a abertura de caboucos para as fundações dos muros teria uma cota máxima de 1 m de profundidade.
Ora, a ré logrou demonstrar que as escavações operadas pela autora no seu terreno foram muito superiores a 1m de profundidade, pese embora não tenha demonstrado em concreto qual a sua profundidade, mas foram suficientemente profundas para determinar a alteração da configuração inicial do terreno, o que não era de prever aquando da aceitação do orçamento.
De facto, contando a ré com a execução do muro de partilha, aproveitando o declive pré-existente no terreno, ao ser confrontada com as escavações no terreno da autora, a uma profundidade superior a 1 m, a mesma procurou obter respostas e encetar diligências no sentido de perceber se a execução do muro, nos moldes em que se encontrava a ser edificado, poderia ou não colocar em risco a sua segurança e a da sua habitação.
Com efeito, da factualidade considerada provada resulta, inequivocamente, que o orçamento aprovado pela ré não se mostra executado, ou melhor, a escavação que foi realizada pela Linetype ultrapassa 1 m de profundidade e não respeitou a configuração natural do terreno, tendo ao invés, alterado a mesma, procedendo à sua escavação, não só para a abertura de caboucos, mas tendo em vista a redução da sua cota, pois, a cota média do perfil natural do terreno era de 375,50 metros, tendo resultado numa cota, aproximadamente, de 369,50 metros, após a escavação.
Ora, a intervenção que a autora fez operar com a escavação, naquela ordem de grandeza, implicou a movimentação de terras e, tratando-se de um terreno inclinado, acentuando-se aquela inclinação, o risco de deslizamento de terras, de acordo com as regras da lógica e da experiência comum, é patente e iminente.
Não pode o Tribunal olvidar que a própria autora revelou preocupação na execução rápida dos muros por forma a evitar o risco de deslizamentos de terra, contando com a aproximação do inverno e, consequentemente, com a aproximação da época das chuvas, e esses deslizamentos só têm razão de ser em virtude das escavações que a mesma operou unilateralmente.
Em face de tal factualidade dada como provada, importa reconhecer que assiste razão à ré para a preocupação manifestada. Mas mais, a ré não deixou de cumprir com o pagamento da parte que lhe competia para a execução do muro de forma voluntária, fê-lo depois de ter tentado obter uma solução para o problema com que se deparava (rebaixamento significativo da cota do terreno da autora), tendo contratado engenheiros para realizar uma vistoria e apresentando soluções com a possível edificação de um muro de sustentação de terras com 6m de altura.
Informada a autora das preocupações da ré, e dos fundamentos dessa preocupação, mediante a entrega do relatório de vistoria realizada por um técnico especializado, a autora optou por ignorar, por completo, não só as preocupações da ré, como as soluções por ela
apresentadas, decidindo ao invés, prosseguir com a execução da obra nos moldes que idealizou, renegociando novo orçamento, para a execução de um muro, integrado exclusivamente no seu terreno, a uma altura que a mesma entendeu.
Ora, tendo a ré logrado demonstrar, como lhe competia, que a culpa não lhe pode ser imputada, forçoso é concluir que a mesma ilidiu a presunção de culpa no incumprimento do contrato, não podendo recair sobre esta a obrigação de indemnizar a autora.
Por outro lado, mesmo que a ré não tivesse ilidido a presunção, o certo é que a autora em nenhum momento interpelou a ré para o cumprimento da obrigação resultante do contrato, para legitimar a sua falta de interesse na prestação, nem resultaram apurados danos concretos que aquela suportou em consequência do incumprimento contratual da ré.
Com efeito, o dano é um pressuposto da responsabilidade civil que consiste “em todo o prejuízo, desvantagem ou perda que é causado nos bens jurídicos de carácter patrimonial ou não”, sendo que o dano patrimonial é o reflexo do dano real sobre a situação patrimonial do lesado.
Da factualidade considerada provada não resultou qualquer dano concreto, ou prejuízo para a autora, decorrente do incumprimento contratual da ré. Com efeito, a autora, enquanto proprietária do terreno, procedeu à execução de um muro para seu proveito próprio, encontrando-se o mesmo edificado na sua parcela de terreno, pelo que sempre recairá no âmbito do n.º 5 do art. 1371.º do Código Civil, pertencendo o muro exclusivamente a esta, já que foi quem ordenou a sua construção.
Não se pode olvidar que a ré, sempre se podia eximir de proceder à construção do muro, renunciando ao direito de compropriedade sobre o mesmo, em face do disposto no n.º 5 do art. 1375.º e n.º 1 do art. 1411.º, ambos do Código Civil.
Pelo que, o facto de a autora ter suportado exclusivamente os custos para a construção do muro, respeitante o segundo troço, não consubstanciam um dano suscetível de ser indemnizado pela ré, mas sim o reconhecimento por parte da ré de que a autora é titular do direito de propriedade sobre o muro edificado.
Assim sendo, não se encontrando preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil contratual por incumprimento contratual da ré, contando que esta logrou provar que a falta de cumprimento da obrigação não procede de culpa sua, forçoso é concluir que não assiste o direito à autora de exigir a restituição do pagamento que satisfez, e por isso, deverá a ré ser absolvida do pedido deduzido pela autora.»
O tribunal considerou, portanto, não verificados os requisitos da responsabilidade da ré pelo incumprimento do contrato.
Entendemos que a factualidade apurada não permite extrair conclusão diferente.
Na verdade, resulta dos factos assentes que no âmbito do acordo estabelecido entre ambas, A. e R. contrataram a empresa Linetype para a construção de um muro de partilha das suas propriedades, contíguas, sendo o respectivo custo suportado de forma equitativa por A. e R. (facto provado 6).
De acordo com o orçamento (facto 8), as partes procederam ao pagamento do valor da adjudicação da obra, correspondente a 25% do valor global, conforme recibos emitidos em Maio de 2020 (facto 10,12 e 13).
Sucede que, em 6/7/20, aquando da construção da escavação e betonagem de três dos quatro bancos do muro, a ré solicitou reunião com a Linetype, apontando irregularidades do muro (“designadamente para o facto de o mesmo não estar a ser preparado para o escoamento de águas, não ter altura suficiente para ficar ao nível das terras e estar a ser projetado sem a proporção de betão e pedra que estava orçamentado, o que poderia trazer problemas de segurança com risco de queda” – facto 15), tendo a A. manifestado em 7/7/20, a sua discordância com a alteração proposta e tendo a Linetype desaconselhado o aumento de 1 metro na altura do muro, ao que a R. apresentou soluções alternativas (facto 16).
Após a aludida reunião, os trabalhos prosseguiram com a conclusão do primeiro troço do muro em 23/7/20 (facto 18), tendo a Linetype remetido à A. e à R. as respectivas facturas, sendo a da R. (factura 2020/88) no valor de €6890, 07 (facto 19).
Em 18/8/20 a ré informou a Linetype de que não iria proceder ao pagamento da referida factura, em virtude de o muro não ter sido feito conforme acordado (facto 22) e perante a posição da R. de não pretender continuar com a execução da empreitada nos moldes em que foi adjudicada, a Linetype enviou-lhe a documentação mencionada no facto 24 [nota de crédito n.º 2020/2, referente à totalidade da fatura n.º 2020/88; fatura n.º 2020/120, que se refere à totalidade dos trabalhos executados (7.530,13 € + IVA) com a dedução da totalidade da fatura de adjudicação/adiantamento n.º 2020/37 (4.241,13 € + IVA), ficando assim pendente o valor de 3.289,00 € + IVA = 4.012,58 €.”], ficando pendente o pagamento do valor de €4 012,58 (facto 24).
Nesta sequência, a A. reuniu com a Linetype, a pedido desta, para discutir a continuação da
execução do muro relativamente ao segundo troço
, sendo acordado que esta iria apresentar novo orçamento para construção do muro em falta,
mas agora a executar só no terreno da autora
, com uma altura mínima necessária (facto 25).
A obra esteve parada entre 3/8/20 e 17/9/20 (facto 28), após o que a A., face à aproximação do inverno e das chuvas e consequente aumento do risco de derrocada e tendo perdido interesse na prestação da R.,
decidiu suportar de imediato a totalidade dos custos
, no valor de €13 407,46, correspondente ao orçamento de 1/10/20, relativo ao segundo troço (facto 29). Não tendo a A. informado ou interpelado a R. (facto 31).
Resulta do objecto da presente acção (atendendo ao respectivo pedido e causa de pedir), que a A. pretende ser ressarcida pelos danos que lhe foram causados em consequência da conduta da R., à qual imputa o incumprimento contratual, ilícito, culposo e gerador dos invocados danos.
Tal como o tribunal recorrido, entendemos que não se mostram verificados os requisitos da invocada responsabilidade (contratual) da R.
Alega a A. que a R. resolveu o contrato, sem fundamento para tanto.
É certo que a R., pelo menos antes da instauração da presente acção, não pagou à Linetype o referido montante de €4012,58, vindo a proceder a esse pagamento em 7/6/22 (facto 42), na sequência da decisão proferida no P. 3496/21.3T8FNC, que condenou a R. no pagamento à ali A. Linetype Projects, Lda, a título de incumprimento contratual, da quantia de €4012, 58, acrescida de juros de mora, desde a data do vencimento da factura nº 2020/129 (30/9/20) até efectivo e integral pagamento (facto 41).
Quer dizer que o pagamento devido pela R. à empresa Linetype já foi efectuado, tendo esta relação contratual sido objecto de apreciação e decisão na mencionada acção (P. 3496/21.3T8FNC), não constituindo objecto da presente, nem se verificando qualquer relação de prejudicialidade entre as duas causas.
O que se discute aqui não é a responsabilidade da R. perante o empreiteiro (que nem sequer é parte nesta acção) nem a validade da resolução do contrato por parte da R., mas sim a responsabilidade desta pelos danos invocados pela ora A., decorrentes do alegado incumprimento definitivo daquela perante esta, que levou a A. a proceder ao pagamento integral dos custos do segundo troço do muro de partilha.
Ora, a decisão de custear integralmente as despesas do segundo troço do muro foi uma decisão que a A. tomou unilateralmente, sem o acordo ou consentimento da ré, após esta ter informado a Linetype que, devido às irregularidades do muro (oportunamente denunciadas e objecto de reunião tendo em vista a sua resolução), não pretendia continuar com a execução da empreitada.
Não podemos confundir as obrigações que para a ré (e autora) emergiram do contrato (de empreitada) celebrado com a Linetype (designadamente o pagamento do preço) com as obrigações assumidas entre a A. e a R., cujo acordo foi contratarem os serviços da Linetype para a construção do muro.
Como resulta do acervo provado, durante a execução do primeiro troço do muro, a ré perdeu o interesse na prestação, conforme comunicou à empreiteira, após o que a autora acordou com a referida empresa que esta lhe apresentaria
novo orçamento
para a construção do muro em falta, muro que agora seria executado
só no terreno da A
.
Assim, concordamos com a sentença, ao afirmar que
“o facto de a autora ter suportado exclusivamente os custos para a construção do muro, respeitante ao
segundo troço
, não consubstanciam um dano susceptível de ser indemnizado pela ré, mas sim o reconhecimento por parte da ré de que a autora é titular do direito de propriedade sobre o muro edificado
.”, convocado o tribunal o disposto no art. 1371º/5 do Código Civil.
Por outras palavras, entendemos que não resultou demonstrado qualquer dano concreto ou prejuízo para a A. decorrente da conduta da R., o que é, só por si, bastante para conduzir à improcedência da pretensão indemnizatória deduzida na presente acção.
A questão de saber se a A. pagou a mais à empreiteira, a qual, por sua vez, já recebeu o valor que à R. competia pagar (na sequência do decidido no P. 3496/21.3T8FNC), é matéria que extravasa o objecto da presente acção.
Em face de todo o exposto, improcede este ponto do recurso.
*
c) Ampliação do âmbito do recurso
Em sede de contra-alegações a recorrida/ré pugna pela rejeição do recurso da A. sobre a matéria de facto e, a título subsidiário, requer a ampliação do objecto do recurso ao abrigo do art. 636º/2 CPC, impugnando a matéria de facto (quanto a factos não impugnados pela recorrente), de forma a prevenir a procedência das questões suscitadas pela recorrente/autora.
Vejamos.
O art. 636º do CPC (sob a epígrafe “ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido”) permite à parte recorrida suscitar nas contra-alegações do recurso a reapreciação dos fundamentos em que tenha decaído, prevenindo os riscos de uma eventual resposta favorável do tribunal de recurso às questões que tenham sido suscitadas pelo recorrente ou mesmo a outras questões de conhecimento oficioso. Pode ainda requerer a ampliação do objecto do recurso no que respeita à matéria de facto provada ou não provada com relevo para a defesa dos interesses do recorrido (v. António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Almedina, 2ª edição, vol I, pág. 790).
Atendendo à função e utilidade da ampliação do recurso prevista no art. 636º, o que se pretende é evitar que o recorrido possa ser prejudicado pela resposta do tribunal
ad quem
em face do recurso interposto pela outra parte (vencida), se acaso reconhecer razão aos fundamentos invocados quanto às questões suscitadas nesse recurso (v. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina, 7ª edição, pág. 144/145).
No caso
sub judice
, foram considerados totalmente improcedentes os fundamentos do recurso interposto pela A., sendo rejeitada a impugnação da matéria de facto por inobservância dos ónus previstos no art. 640º do Código de Processo Civil, razão pela qual se mostra prejudicada, por inútil, a apreciação da ampliação do âmbito do recurso nos termos do art 636º/2, cujo objecto se circunscreveu à impugnação da matéria de facto.
*
Em síntese conclusiva, tendo improcedido na totalidade a impugnação da decisão relativa à matéria de facto e não merecendo censura a análise jurídica da sentença, impõe-se a sua confirmação.
*
IV. DECISÃO
Pelo exposto, acordam em julgar improcedente a apelação e, consequentemente, confirmar a sentença recorrida.
Custas pela apelante (artigo 527º do CPC).
Registe e notifique.
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Lisboa, 9 de Setembro de 2025
Ana Mónica Mendonça Pavão
João Bernardo Peral Novais
José Capacete
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TRL
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https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/21d7ce47c30ed1ec80258d0e0055d947?OpenDocument
|
1,750,809,600,000
| null |
111/24.7PBTMR.S1.E1
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111/24.7PBTMR.S1.E1
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CARLA FRANCISCO
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Impugna correctamente a matéria de facto o recorrente que aponta na decisão recorrida os segmentos que impugna, que os coloca em relação com as provas, concretizando as partes da prova gravada que pretende que sejam ouvidas, os documentos que pretende que sejam reexaminados e os outros elementos probatórios que pretende ver reproduzidos, demonstrando
a verificação do erro judiciário a que alude.
Preenche a circunstância qualificativa do crime de homicídio prevista no art.º 132º, nº 2, alínea j) do Cód. Penal o arguido que antes de se dirigir ao local do crime, municiou a sua espingarda caçadeira com pelo menos três cartuchos de calibre 12, colocou roupas, bens pessoais e medicação no interior de um saco, antevendo a sua detenção, formulou o seu desígnio criminoso e persistiu na intenção de matar por mais de 24 horas, matou um sobrinho, motivado por razões de partilhas de terras e agindo na frente do filho da vítima e de um sobrinho que a vítima tratava como um filho e, após a prática do crime, foi para casa, ligou para a PSP e esperou que o fossem buscar.
No crime de homicídio são muito intensas as exigências de defesa do ordenamento jurídico e da paz social, dada a extrema sensibilidade da comunidade em relação a este crime e a premente necessidade de o prevenir, a fim de reforçar a confiança da colectividade na lei e de garantir a tranquilidade e a segurança do respeito pela vida humana.
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[
"HOMICÍDIO",
"CIRCUNSTÂNCIA QUALIFICATIVA DO CRIME"
] |
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
1– Relatório
No processo nº 111/24.7PBTMR do Tribunal Judicial da Comarca de …, Juízo Central Criminal de … - Juiz …, por acórdão datado de 8/01/2025, foi o arguido AA condenado:
- pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts.º 131º e 132º, nºs 1 e 2, alínea j) do Cód. Penal, agravado pelo art.º 86º, nº 3 do Regime Jurídico das Armas e suas Munições (Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro) na pena de 23 anos de prisão;
- a pagar a BB, CC e DD a quota parte que a cada um cabe da quantia de 80.000,00€, a título de dano pela perda do direito à vida, no pagamento das quantias de 25.000,00€, 40.000,00€ e 20.000,00€, respectivamente, a título de danos não patrimoniais, e no pagamento da quantia de 2.000,00€, a título de danos patrimoniais, acrescidas de juros de mora, às taxas legais, contados desde a data da notificação do pedido cível e da data trânsito em julgado da decisão, respetivamente, tudo até efetivo e integral pagamento;
- a pagar a EE a quantia de 4.000,00€, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, às taxas legais, contados desde a data trânsito em julgado da decisão até efetivo e integral pagamento.
*
Inconformado com a decisão condenatória, veio o arguido interpor recurso, pugnando pela sua absolvição e formulando as seguintes conclusões:
“A. O recorrente pretende a reapreciação das seguintes questões: a Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, o erro na apreciação da prova a errónea Qualificação Jurídica dos Factos, a excessividade da medida da pena concreta aplicada e do Pedido de Indemnização Civil em que foi condenado
B. Quanto à Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada o recorrente impugna o Recorrente os factos dados como provados em 6, 9 e 18.
C. Pois que a ponderação da prova produzida impunha decisão diversa da que se determinou assente e que consta no Acórdão sob a epigrafe de factos provados considerando-se os supra citados factos incorretamente julgados.
D. Porquanto inexiste suporte probatório que permita concluir tal, existindo clara insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
E. Desde logo é referido no Acórdão recorrido que a convicção do tribunal quanto ao factos provados assentou no depoimento das testemunhas da Acusação que presenciaram os factos, a testemunha EE e CC e nas declarações prestadas pelo arguido.
F. Ora por todo o supra transcrito é notório que os três depoimentos se encontram em consenso, quer o do arguido quer dos demandantes que presenciaram os factos.
G. O arguido é peremptório em dizer que não se apercebeu da presença de nenhuma das testemunhas, apenas ter visto a vitima, naquela manhã no terreno, nunca tendo visto qualquer outra pessoa.
H. Também o demandante EE e CC, referem que não o viram, inclusivamente o demandante CC refere que do seu ângulo não tinha visibilidade, até porque o seu pai, a vitima, se teria deslocado do local onde estavam os três para ter melhor visibilidade e ver quem se estaria a aproximar.
I. Sendo nesse momento que se desloca desse local alguns metros e percebe que se tratava do arguido que o interpela dizendo” o que é que foi agora?”
J. Também o demandante EE, no momento em que é confrontado com as fls 92 dos autos relativos a uma fotografia do local, descreve o local, afirmando tratar-se de um monte mais elevado de terra com cerca de 3 metros, que impede a visibilidade quer do local onde estam as testemunhas para a estrada, onde se encontrava o arguido, quer da estrada para o local onde estes se encontravam.
K. Questionado diretamente sobre se da estrada, local onde estava o arguido, era possivel ter visibilidade para onde a testemunha estava, este diz que não, se conseguisse apenas se via o tejadinho do trator, se fosse possivel sequer.
L. Ora é notório que não existe qualquer elemento probatório que corrobore que o arguido viu e sabia da presença destas testemunhas, sobrinho e filho da vitima, quando iniciou os disparos contra a vitima mortal.
M. Existindo desta forma insuficiência para a matéria dada como provada.
N. Tal e qualmente também o facto dado como provado em 6, não tem acolhimento em qualquer matéria probatória produzida em sede de Audiência de Discussão e Julgamento.
O. Ora, as testemunhas inquiridas não referem qualquer tipo de interação do arguido com a vitima nos dias anteriores aos factos, nem qualquer facto que pudesse basear probatoriamente tal facto dado como provado.
P. Sendo que a “resolução criminosa” pressupõe sempre a representação pelo agente dos factos concretos que vão ser praticados.
Q. A resolução criminosa advém de algo pessoal do agente, do momento em que decide consciente ou inconcientemnete praticar tal facto criminoso.
R. Ora para essa acertividade teriamos de partir das declarações do arguido e da sua prespetiva sobre o momento em que tal resolução começou a ganhar ânimo no seu pensamento.
S. Sucede que o arguido confessou os factos e prestou declarações, que foram valoradas pelo Douto Tribunal Coletivo, tendo sempre de se dar valor a tal.
T. Não existindo suficiência na matéria para dar tal facto como provado.
U. Pelo contrário, e pelas declarações proferidas pelo arguido quer em sede de primeiro interrogatório quer nas prestadas em Audiência de Discussão e Julgamento, o arguido refere que durante a madrugada de dia 29 de Fevereiro teve uma noite em que não dormiu e acordou sobressaltado várias vezes com a ideia de que a vítima andava de volta da sua habitação com uma pistola para o matar.
V. É portanto notório que tal resolução criminosa foi tomada durante aquela manhã de 29 de Fevereiro e não anteriormente, quando viu a vitima.
W. Desta forma, não existe matéria probatória suficiente para dar tal facto como provado, devendo o mesmo ser dado como não provado.
X. Quanto ao erro na apreciação da prova impugham-se os factos dados como não referidos nas alineas h) e i)..
Y. Decorre do supra exposto que tais factos dados como não provados não são corroborados pelo arguido quer pelos demandantes, impondo que deveriam ter sido dados como provados, existindo matéria probatória nesse sentido.
Z. É notório pelo que foi testemunhado pelos demandantes EE e CC que tal como eles não viram o arguido, era impossivel ele também os ver, pelo que este nunca viu as testemunhas no terreno, tal como os trabalhos se encontravam terminados, conforme é dito pela testemunha EE.
AA. Ora é da combinação com o que foram as declarações prestadas pelo arguido que refere que estava completamente transtornado, nervoso, desorientado que o seu estado de espirito estava desconetado com a realidade.
BB. Além de que é referido que o arguido se encontrava sem a sua medicação, que controlaria o seu sistema nervoso, e que tinha tido alucinações na noite anterior, sendo que via a vitima a rondar a sua casa com uma pistola, com a intenção do matar.
CC. Ora tal situação é notória da descompensação mental que o arguido estaria a vivenciar nesses momentos, pelo que mais uma vez determinaria que os factos h) e i) dados como não provados fossem inversamente dados como provados.
DD. Pelo que se impõe que os factos não provados que foram impugnados, sejam dados como provados.
EE. Relativamente à errónea qualificação jurídica dos factos, o arguido foi condenado pela prática em autoria material, na forma consumada e em concurso real de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelo artigo 131.º e 132.º, n.º 1 e 2 alínea j), do Código Penal, agravado pelo artigo 86.º, n.º 3, do Regime Jurídico das Armas e suas Munições (Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro), na pessoa de FF.
FF. Quanto à sua qualificação taxa o artigo 132º do Código Penal o seguinte : “1 – Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos. 2 – É suscetível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente: (…) j) Agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas”.
GG. Concluindo então o Douto Tribunal que o facto de o arguido ter disparado por três vezes agiu com reflexão sobre os meios empregados e persistiu nessa intenção por mais de 24 horas, enquadrando a actuação do arguido na alinea j) do nº2 do artigo 132º do Código Penal.
HH. Ora como foi possivel perceber pela escrutinio pela factualidade, não existe matéria suficiente para o facto provado que impõe a manutenção da resolução criminosa por um período superior a 24 anos.
II. O que se retira da factualidade discutida em Audiência de Discussão e Julgamento é o inverso, ou seja o arguido propôs-se à prática do facto ilicito na manhã da data dos factos, e portanto nem estaremos a falar de um periodo superior a 12 horas, muito menos mais do que 24 horas.
JJ. Assim sendo, desconhecendo-se o momento em que o arguido formou a intenção de matar, também há que a afastar a verificação da circunstância qualificativa da premeditação, ou seja, da circunstância prevista na parte final da alínea j) do n.º 2 do artigo 132º do Código Penal.
KK. Pelo que não existe qualificação pela manutenção da conduta por mais de 24 horas.
LL. Quanto à frieza de animo ou reflexão sobre os meios empregados é referido no Comentário do Código Penal de Paulo Pinto de Albuquerque ao artigo 132º que a “premeditação revela uma atitude de elaboração mental e reflexão no próposito criminoso do agente, que merece uma censurabilidade acrescida da conduta. São indicios dessa atitude a frieza de ânimo, a refelexão sobre os meios empregados e a presistência na intenção de matar por mais de 24 horas. “
MM. No nosso ordenamento jurídico o crime de homicídio qualificado não é um tipo legal autónomo, com elementos constitutivos específicos, constituindo antes uma forma agravada de homicídio , em que a morte é produzida em circunstâncias reveladoras de especial censurabilidade ou perversidade.
NN. Como doutamente refere Figueiredo Dias, depende de uma imagem global do facto agravada que corresponda ao especial tipo de culpa que aqui se deve ter em conta.
OO. Conquanto se reconheça que a mesma é susceptível de se mostrar objectivamente preenchida, face ao comportamento deliberado, aparentemente reflexivo, frio e persistente assumido pelo arguido, a verdade é que a conduta daquele terá de ser analisada e julgada, como atrás se deixou consignado, sem perder de vista a imagem global do facto.
PP. Vem provado que o arguido tem anomalias psiquicas, de acordo com os Relatórios médicos juntos nos autos e de acordo com o Relatório de Medicina legal efetuados nos presentes autos, ademais é ainda provado que desde os anos 90 que o mesmo era acompanhado por psiquiatria e deveria tomar medicação para o efeito.
QQ. Medicação esta que foi deixada de tomar bruscamente, apesar da sua necessidade para a toda a vida do arguido.
RR. Vem ainda provado, nos factos provados do Douto Acórdão, que arguido e a vitima detinham quezilias devido a partilhas já há várias decadas, sendo estas constante alvo de diversos processos em Tribunal.
SS. Foi também provado que a vitima encontrava-se no local a cumprir ordem judicial para realização de obras de acesso ao caminho para a casa do arguido, no âmbito desses mesmos processos de partilhas.
TT. O quadro factual transcrito revela-nos que o arguido é portador de anomalia psíquica, caracterizada por fases depressivas, devendo usar medicação durante toda a sua vida.
UU. Daqui decorre que o arguido conquanto imputável, é portador de anomia que de algum modo afecta a sua capacidade de entender e de se determinar, circunstância que não pode deixar de influir no juízo de culpa sobre o seu comportamento delituoso, neutralizando a aparência calculista, reflexiva e insensível da conduta assumida.
VV. A agravante encontra-se conexionada com a actuação calma ou imperturbada reflexão, no assumir pelo agente da resolução de matar a que se alia a firmeza dessa mesma resolução criminosa.
WW. O homicídio simples já é um crime grave, e por isso a sua qualificação corresponde a situações excepcionais.
XX. A qualificação do homicídio tem como fundamento a culpa agravada que o agente revela com a sua actuação sendo um tipo de culpa.
YY. A culpa consiste no juízo de censura dirigido ao agente pelo facto deste ter actuado em desconformidade com a ordem jurídica quando podia, e devia, ter actuado em conformidade com esta, sendo uma desaprovação sob a conduta do agente.
ZZ. Em suma, o agente actua culposamente quando realiza um facto ilícito podendo captar o efeito de chamada de atenção da norma na situação concreta em que desenvolveu a sua conduta e, possuindo uma capacidade suficiente de auto controlo, e poderia optar por uma alternativa de comportamento. O especial tipo de culpa do homicídio qualificado é conformado através da especial censurabilidade ou perversidade do agente.
AAA. Por outras palavras dir-se-á que, sendo sempre o objecto da mais viva reprovação jurídico criminal, o homicídio pode ter na sua origem uma situação que face á experiência comum poderia conduzir àquele desenlace .
BBB. No caso vertente é evidente a censurabilidade da conduta do recorrente procurando, através da lesão do bem fundamental, todavia, a vingança pelas próprias mãos que é procurada em termos de imediação temporal não se afigura como algo de incompreensível ou portador duma carga de culpa ou de ilicitude que exceda aquela que normalmente está inscrita neste tipo legal de crime.
CCC. É evidente que o quadro factual descrito revela um primitivismo de reacções em que emergem pulsões primárias que indicam a desproporcionalidade entre o motivo que despoleta o itinerário criminoso, ou seja, entre a ofensa e a reacção, mas não se pode apontar a ausência de racionalidade ou, dito por outras palavras, uma ausência de um processo compreensível que, minimamente, convoque a lógica como explicação da conduta do arguido.
DDD. A actuação do arguido convoca um dos motivos mais habituais neste tipo de crime que é a procura da vingança.
EEE. Nos presentes autos não existe qualquer elementos probatório ou resulta da fundamentação do Acórdão qualquer circunstância que nos indique a premeditação e que o arguido tenha estado com a resolução criminos no seu âmago durante mais de 24 horas.
FFF. O que resulta dos autos é que o arguido acordou sobressaltado durante a madrugado do dia 29 de Fevereiro de 2024, alucinando com a presença da vitima a rondar a sua habitação com uma pistola.
GGG. Ademais, foi apenas naquela manhã por volta das 8h15 que o arguido viu a vitima e neste seguimento vai buscar a sua caçadeira e se dirige ao local onde a vitima se encontrava, ora este periodo de tempo consustancia cerca de 1hora, até à prática dos factos.
HHH. Face à experiência comum é curial a conclusão de que o arguido agiu sob o efeito do estado de espirito descontrolado, sem que naquele espaço de tempo tivesse a possibilidade duma reflexão serena sobre o seu propósito.
III. Não existindo aquela frieza e imperturbabilidade perante os factos mas sim um propósito tomado “a quente”.
JJJ. Assim entende-se que não existe a referida agravante qualificativa de que o arguido vem condenado.
KKK. Nos presentes autos encontramos-nos pois perante a prática de um crime de homicidio previsto e punido pelo artigo 131º do Código Penal que já é um crime bastante grave, atendendo até à sua moldura penal, e ao bem juridico que se protege.
LLL. Pelo que mal andou o Douto Tribunal de 1ª Instância ao condenar o arguido pela qualificação prevista na alinea j), tendo em conta que não existe qualquer elemento que suporte tal inclusão, muito antes pleo contrário, é notório que não.
MMM. Pelo que considera o arguido estarmos perante uma errónea qualficação juridica, devendo a qualificação não ser observada e o arguido ser absolvido da prática de um crime de homicidio qualificado e ser condenado pela prática de um crime de homicidio, nos termos do previsto e punido no artigo 131º do Código Penal.
NNN. Quanto à execssividade da medida concreta da pena a pena só tem natureza preventiva, de prevenção geral, como meio de protecção de bens juridicos, e de prevenção especial, como meio de reintegração do agente na sociedade.
OOO. Não olvidando o supra mencionado, e reputando pela alteração da qualificação juridica, cuja moldura penal é de oito a dezasseis anos, sempre teria de se reavaliar tal pena de acordo com a moldura penal do ilicito criminal, o que se pugna.
PPP. Contudo, e por mera obrigação de patrocinio, sempre terá de se dizer o seguinte:
QQQ. O art. 71.º do CP estabelece o critério da determinação da medida concreta da pena, dispondo que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção geral e especial.
RRR. As imposições de prevenção geral são determinantes na fixação da medida das penas, reafirmação da validade das normas e dos valores que protegem, para fortalecer as bases da sociedade e para tranquilizar os sentimentos afectados na perturbação da normalidade da vivência do quotidiano.
SSS. Impõe-se no entanto a ponderação de tais valores com outras exigências quer de prevenção especial , quer de prevenção ao nivel da integração do agente do facto no caminho do direito, com a ressocialização do agente infrator.
TTT. Devendo o Tribunal a quo ter realizado uma ponderação fundamentada de tais exigências, aplicando medidas consentâneas com as mesmas.
UUU. Ora, quanto a tal vemos que, de acordo com a fundamentação constante do Acórdão o seguinte,
VVV. Valorando o ilícito globalmente perpetrado, ponderando os factos e a personalidade do arguido.
WWW. O arguido tem 67 anos de idade.
XXX. Durante toda a sua vida, foi uma pessoa trabalhadora, tendo imigrado para a ….
YYY. Nunca teve qualquer contacto com a justiça, não tendo registo criminal.
ZZZ. Encontra-se socialmente integrado, embora seja uma pessoa recatada, fazendo a sua vida em liberdade dentro da sua habitação, apenas tendo alguns convivios semanais.
AAAA. Em meio institucional tem revelado condutas adequadas, revelando uma personalidade que não refuta a normatividade vigente.
BBBB. O arguido sofre de uma anomália psiquica grave, tendo tido alguns traumatismos cranianos, derivados de acidentes na Suiça e sendo acompanhado em psiquiatria desde os anos 90.
CCCC. Todos estes factores deveriam ter sido tomados em conta para a determinação da pena concreta, denotando que os factos foram um infeliz acontecimento isolado na vida do agente, atendendo até ao seu registo criminal e à sua idade.
DDDD. Sendo de concluir que procede um juízo de prognose favorável à sua reinserção social em liberdade, e por isso, face à personalidade do arguido, às suas condições de vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste.
EEEE. Uma pena tão longa, de 23 anos, perto do limite máximo permitido por lei, não permite de forma alguma alcançar a finalidade das penas no seu efeito de reintegração do agente da sociedade.
FFFF. Pois que atendendo à idade do arguido e à pena concreta em que foi condenado, o mesmo sairá em liberdade quando tiver 90 anos, o que será francamente inexpetável.
GGGG. Frustando-se por completo a sua reintegração na sociedade.
HHHH. Não se pode considerar que a aplicação de uma pena de 23 anos, de acordo com a fatualidade concreta, seja adequada e não seja excessiva até à culpa do arguido, atendendo ainda ao que é o panorama nacional nas penas aplicadas a este tipo de crime e à homogeneidade de penas.
IIII. Sendo certo que encontramos variadissimos Acórdãos proferidos inclusivamente pelas instâncias superiores, onde a factualidade enquadra actos perversos, altamente censuráveis, descabidos, com motivos fúteis e de circustância, com um maior número de vitimas mortais e onde são aplicadas penas de prisão substancialmente inferiores à que foi aplicada ao arguido.
JJJJ. Tal pena concreta em que foi condenado o arguido é completamente desadequada, despropocional e inconstitucional, ultrapassando claramente todos os limites da culpa do agente e ainda colocando em causa o previsto no artigo 40º do CP colocando de forma óbvia em causa as fnalidades das pena e a reintegração do agente na sociedade.
KKKK. No que concerne ao pedido de indemnização civil em que foi condenado , tudo no total que ascende a quantia de 171.000,00€.
LLLL. Entende-se ainda, porque a morte absorve todos os outros prejuízos não patrimoniais, que o montante da sua indemnização deve ser superior à soma dos montantes de todos os outros danos, devendo a indemnização ser fixada a um nível superior, pois a morte é um dano acrescido.
MMMM. Ora no caso que nos ocupa, revisitada a factualidade provada, de resto valorada pelo tribunal recorrido, sem olvidar a jurisprudência dos tribunais superiores nesta matéria, não podemos deixar de considerar que é, na verdade, excessiva a indemnização atribuída aos três demandantes a título de danos morais.
NNNN. Por todo o explando é inequivoco que os valores a que o arguido foi condenado a pagar a título de indemnização civil são amplamente excessivos tendo em conta a factualidade e o panorama nacional aplicado em casos semelhantes.
OOOO. Quanto à indemnização pelo dano vida em que foi condenado no valor de 80.000,00€ considera-se um valor excessivo e que não tem suporte na realidade da jurisprudência portuguesa, tendo em conta até a idade da vitima, sendo que em casos semelhantes os valores aplicados são os 60.000,00€
PPPP. Ademais, estes valores sobre o dano de morte englobam já os valores não patrimoniais reclamados pelos familiares, em que se tenta de alguma forma colmatar a sua dor e o seu sofrimento pela ausência de um ente querido.
QQQQ. Apesar de não se olvidar a dor e o sofrimento que a esposa e os filhos possam sentir, não é compaginável com a realidade ser determinada a condenação de uma indemnização de 40.000.00 € para um filho, 20.000,00€ para outro e para ainda 25.000.00€ para a esposa do falecido.
RRRR. Ora tais valores, devem ser claramente reduzidos, para valores mais consensuais até porque todos os filhos são já maiores de idade, um deles já a estudar em Universidade e por isso já fora da sua habitual residência familiar e em plena idade de emancipação, sendo que os valores idênticos aplicados em Portugal são para filhos de diminuta idade, ainda em primeira infância.
SSSS. Ainda para mais, sempre terá de dizer que tal discrepância de valores em que foi condenado o arguido a pagar ao demandante CC, em cerca de 20.000,00€ a mais ao seu irmão, é justificado pelo Douto Acórdão devido à presença dos factos por este.
TTTT. Contudo, também o outro demandante que presenciou os factos, é arbitrada a quantia de 4.000,00€.
UUUU. Pelo exposto devem tais valores serem reduzidos, para quantias mais harmoniosas, situadas entre os 10.000,00 e 20.000,00€.
VVVV. Ademais quantos aos danos não patrimoniais, sempre terá de se dizer que não existiu qualquer prova produzida quanto ao demandante DD, sendo que o mesmo não prestou qualquer tipo de declarações, não teve qualquer tipo de intervenção no presente processo, não tendo o Douto Tribunal qualquer tipo de base fatual para dar suporte à condenação por essa indemnização a titulos de danos não patrimoniais.
WWWW. Até porque todas as testemunhas que foram ouvidas se referenciaram à esposa do falecido, ao seu filho CC e ao seu sobrinho, como as pessoas que passaram por uma experiência traumática.
XXXX. Pelo que não existe qualquer fundamento probatório para arbitrar uma indemnização ao demandante DD, devendo esta ter sido improcedente.
YYYY. Por ultimo, sempre terá de se pronunciar quanto à indemnização a título de danos não patrimoniais ao demandante EE.
ZZZZ. Ora, tal valor é suportado em parte pela ofensa que o demandante diz ter sofrido, contudo o arguido submetido a julgamento e julgando-se tais factos, foi absolvido da prática dos mesmos, uma vez que não existe qualquer nexo de causalidade entre os factos perpetrados pelo arguido e o ferimento de que o demandante diz ter sido vitima.
AAAAA. Ora não existe qualquer responsabilidade criminal por parte do arguido pelo que não existe a sua subsunção de responsabilidade civil, não devendo ser condenado a indemnizar o demandante por ofensas que não cometeu.
BBBBB. Desta forma, e tendo sido peticionado tal valor pelo demandante englobando a responsabilidade criminal do arguido pelo cometimento de um crime que o mesmo foi absolvido, sempre teria de ser reduzido e adaptado o pedido de indemnização formulado.
CCCCC. Pelo que se considera justa e proporcional que seja dividido a metade, ou seja reduzido o valor da quantia em que o arguido foi condenado a 2.000,00€.
DDDDD. Por todo o exposto supra, considera humildemente o arguido que a condenação nos PIC formulados foram amplamente excessivas, devendo os mesmos ser reduzidos, além de não se considerar procedente o pedido efetuado pelo demandante DD quanto aos danos não patrimonais tendo em conta que não existiu qualquer produção de prova nesse sentido.”
*
O recurso foi admitido com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo para o Supremo Tribunal de Justiça, que o reenviou para este Tribunal da Relação, por entender ser este o competente, face à impugnação da matéria de facto.
*
A assistente BB apresentou resposta ao recurso do arguido, pugnando pela manutenção da decisão recorrida e pela improcedência do recurso, para o que formulou as seguintes conclusões:
“1 – Seguindo os depoimentos de EE e CC, facilmente se conclui que não há insuficiência para a decisão da matéria de facto provada relativamente aos pontos 6, 9 e 18 dos factos dados como provados.
2 - Ou seja, o arguido viu e sabia que o sobrinho e filho da vítima estavam no local quando iniciou os disparos, o que não o demoveu de praticar este crime hediondo.
3 – Dos mesmos depoimentos retira-se de forma cristalina que não houve qualquer ameaça da vítima ao arguido no dia 28/4/2024.
4 – Ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova, nos termos do artigo 127 do CPP, que o douto Acordão seguiu de forma legitima, foi dada credibilidade aos depoimentos das testemunhas supra identificadas.
5 - Ao contrário do que o arguido alega, facilmente se conclui que não há insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e muito menos erro na apreciação da prova.
6 - O arguido, ao atuar do modo violento, intenso, decidido e persistente, revelou qualidades particularmente desvaliosas e censuráveis e uma atitude profundamente distanciada em relação a uma determinação normal com os valores, apresentando um comportamento que revela um egoísmo abominável, merecedor de grande reprovação, o que só pode levar ao enquadramento na figura do crime de homicídio qualificado por se mostrarem preenchidos os pressupostos da especial censurabilidade e perversidade.
7 - O arguido agiu imbuído numa clara frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados e persistiu na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas, conforme foi dado como provado, mostrando-se integrada a previsão do artigo 132 do Código Penal.
8 – Agiu também imbuído de um motivo claramente fútil, e por isso, de importância mínima, o que reforça a aplicação do artigo 132 do Código Penal.
9 - Acresce ainda em prejuízo da conduta do arguido que o disposto no artigo 86, nº3, do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, quando refere que as penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo, exceto se o porte ou uso de arma for elemento do respetivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma. Sofre, ainda, a mesma agravação quem se encontrar autorizado ou dentro das condições legais ou prescrições da autoridade competente quanto ao uso da arma – conferir artigo 86.º, n.º 4, do Regime Jurídico das Armas e suas Munições.
10 - A escolha da cabeça como zona corporal privilegiada para objeto da agressão, manifesta uma crueldade ínsita na utilização de uma arma de caça ao javali, pelo que, a ilicitude e a culpa são assim muito intensas.
11 - Nenhumas atenuantes de relevo se apuraram, a confissão foi parcial e pouco significativa, a ausência de antecedentes criminais também tem escasso valor atenuativo, por corresponder à situação de normalidade das pessoas fiéis ao direito, o mesmo se dirá da integração social, já que este tipo de crime não está normalmente associado á marginalidade ou a um comportamento socialmente desviante, e não menos importante, a inexistência de arrependimento.
12 - Conclui-se que é justo, adequado e razoável, em face da personalidade, da culpa do arguido e bem assim das razões de natureza preventiva, a fixação de uma pena de 23 anos de prisão.
13 - Os valores arbitrados a título de danos não patrimoniais e patrimoniais são justos, proporcionais e adequados à situação concreta dos autos.”
*
O Ministério Público apresentou resposta ao recurso do arguido, também pugnando pela sua improcedência e pela manutenção da decisão recorrida e formulando as seguintes conclusões:
“1 Pretendendo, como pretende o recorrente, impugnar a matéria de facto, na sua motivação, AA não observou escrupulosamente o disposto no artigo 412.º, n.º 3 do CPPenal quanto à necessidade de especificar: a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) as provas que devem ser renovadas.
2. O recorrente limita-se a transcrever, avulsamente, trechos das suas declarações e das dos demandantes para, a final, os reputar de coerentes entre si e, por isso, determinantes de que os factos descritos sob os Pontos 6., 9. e 18. da matéria de facto provada não possam ser dados como assentes.
3. Uma modalidade de ponderação discricionária da prova é a utilizada pelo recorrente, ao fazer uma leitura sincopada apenas de parte das declarações do arguido e dos demandantes – absolutamente inócuas, porque a negação do arguido acerca da percepção da presença de EE e CC é frontalmente contrariada pela circunstância de estes se encontrarem a dois ou três metros do malogrado FF – e ao menosprezar a prova emergente da globalidade dessas mesmas declarações, dos depoimentos das testemunhas GG e HH e dos elementos documentais e periciais, em lugar de proceder a uma análise objectiva e a uma crítica imparcial e contextualizada de tais elementos de prova, análise que, pelas razões aduzidas na fundamentação, à luz das regras da experiência comum, foi decisiva para formar a convicção do tribunal.
4. No segmento da matéria de facto questionado pela recorrente, o tribunal a quo seguiu um processo lógico e racional na apreciação da prova, sendo que a prova livre tem também como pressupostos valorativos critérios da experiência comum e de normalidade, critérios esses que foram devidamente observados.
5. A insuficiência da matéria de facto para a decisão só se poderá afirmar quando os factos provados não permitem as ilações do tribunal a quo, ou seja, quando a premissa menor do silogismo judiciário, relativa ao facto, não permitir a conclusão que o julgador retirou da sua subsunção à matéria de direito aplicável.
6. Da leitura da matéria de facto dada como assente resulta claro ser esta perfeitamente suficiente para perfectibilizar o crime de homicídio qualificado agravado pelo qual AA foi condenado.
7. O acórdão recorrido não enferma do vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a) do CPPenal.
8. A decisão do tribunal a quo de imputar o crime de homicídio qualificado agravado pela alínea j) do n.º 2 do artigo 132.º do CPenal a AA escora-se nos factos correctamente dados como assentes sob os Pontos 1., 3., 7., 8., 9., 10. e 11. dos factos provados.
9. É imperioso concluir que, ao dirigir-se à residência para se munir da sua caçadeira quando se apercebeu que a vítima estava em determinado local, ao prevenir a sua detenção, reunindo pertences essenciais numa mala, ao disparar mortalmente sobre o ofendido diante de entes queridos e ao se certificar de que a este não quedaria uma réstia de vida, a conduta elevadamente censurável de AA integra o exemplo-padrão do da alínea j) do n.º 2 do artigo 132.º do CPenal.
10. Atendendo às contínuas frequência e ressonância social de condutas como a que é objecto dos autos, as necessidades de prevenção geral são, obviamente, de tomo.
11. Quanto às necessidades de prevenção especial, as mesmas não deixam de ser muitíssimo expressivas. Pese embora AA não tenha antecedentes criminais, dir-se-ia que a sua frieza de ânimo persistiu em julgamento: o arguido não só se manteve imperturbável enquanto descrevia os factos, como admitiu, sem rebuço, que, em consequência deles, apenas lamentava não estar com filhos e netos, demonstrando total ausência de arrependimento e, bem assim, de compaixão pelos familiares próximos do falecido.
12. A censurabilidade da conduta de AA, mesmo no contexto de crime qualificado por circunstância agravante da culpa, é elevada: o arguido consumou o crime indiferente à presença de um filho e de um sobrinho do falecido, que este tratava como se filho fosse, não o matando com um tiro único e, certificando-se, mediante um terceiro disparo, que esfacelou o rosto de FF, que este não teria qualquer hipótese de sobreviver.
13. Importa valorar, contra o arguido, o dolo enquanto elemento subjectivo do ilícito que, de harmonia com os factos nessa matéria assentes na sentença recorrida, se expressou na sua forma mais intensa e que corresponde ao dolo directo – a realização do tipo penal foi posta pelo arguido como o fim a atingir.
14. Considerando as circunstâncias do caso concreto, à luz dos critérios dos artigos 40.º e 71.º do CPenal, a pena de 23 (vinte e três) anos de prisão mostra-se justa e equilibrada, de molde a permitir a tutela retrospectiva bem jurídico supremo protegido pelas normas incriminadoras e, do mesmo passo, a “emenda” e ressocialização do arguido.
15. O acórdão recorrido não violou quaisquer normas, nem está ferido de qualquer nulidade.”
*
Nesta Relação, o Ministério Público emitiu parecer, acompanhando a posição assumida na primeira instância.
*
Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 417º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, nada tendo o recorrente vindo acrescentar ao já por si alegado.
*
Proferido despacho liminar, teve lugar a conferência.
*
2 – Objecto do Recurso
Conforme o previsto no art.º 412º do Cód. Proc. Penal, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do recurso, as quais delimitam as questões a apreciar pelo tribunal ad quem, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cf. neste sentido, Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, vol. III, 1994, pág. 320, Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos Penais”, 9ª ed., 2020, pág. 89 e 113-114, e, entre muitos outros, o acórdão do STJ de 5.12.2007, no Processo nº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt).
À luz destes considerandos, são as seguintes as questões que cumpre decidir:
- Vícios previstos no art.º 410º, nº 2, alíneas a) e c) do Cód. Proc. Penal;
- Erro de julgamento;
- Qualificação jurídica dos factos apurados;
- Medida da pena;
- Quantum indemnizatório.
*
3- Fundamentação:
3.1. – Fundamentação de Facto
A decisão recorrida considerou provados e não provados os seguintes factos e com a seguinte motivação:
“Com interesse para a decisão da causa, provaram-se os seguintes factos:
I)
1. AA é tio paterno de FF.
2. (…) ambos residiam na Rua … em …, a cerca de 100 metros de distância.
3. (…) e desde há vários anos que AA e FF tinham quezílias relacionadas com partilhas de terrenos.
4. (…) pelo menos desde o dia 14 de fevereiro de 2024 que FF, o seu filho CC e o seu sobrinho EE se encontravam diariamente a fazer obras na serventia existente entre o terreno de AA e da vítima FF.
5. (…) durante este período, AA passou na referida serventia por diversas vezes, não tendo interagido com a vítima.
6. Em data não concretamente apurada, mas anterior ao dia 29 de fevereiro de 2024, AA, movido pelas referidas desavenças familiares mantidas com a vítima sobre a serventia do terreno, decidiu pôr termo à vida de FF.
7. (…) para o efeito, AA municiou a sua espingarda caçadeira … calibre 12 com pelo menos três cartuchos de calibre 12 com as inscrições “…” no corpo e “…” na base, e colocou roupas, bens pessoais e medicação no interior de um saco, antevendo a sua detenção.
8. (…) na concretização do propósito que formulara anteriormente, AA, pelas 8 horas e 15 minutos do dia 29 de fevereiro de 2024, muniu-se da arma nas condições acima referidas e deslocou-se na sua viatura com a matrícula … até à serventia do terreno que fica a 100 metros da sua habitação, local onde sabia que FF se encontrava a realizar as referidas obras.
9. (…) aí chegado, e mesmo apercebendo-se que a vítima FF se encontrava no terreno acompanhado de CC, seu filho, e EE, seu sobrinho, saiu do veículo empunhando a espingarda caçadeira na direção de FF.
10. (…) e, de imediato, a cerca de 17 metros de FF, efetuou um disparo que lhe atingiu a zona do ombro direito e do tórax, tendo o mesmo caído ao chão de costas.
11. (…) já com a vítima prostrada no chão, efetuou dois disparos na face de FF, atingindo um a zona orbitária esquerda e outro a zona orbitária direita.
12. Na sequência dos disparos efetuados pelo arguido, FF sofreu as seguintes lesões: A) Hábito externo: - Feridas perfuro-contundentes na cabeça (com exposição dos tecidos moles subjacentes, de esquirolas ósseas, de massa encefálica e dos globos oculares), no tórax e no membro superior direito; - Laceração dos globos oculares (com perda da sua forma esférica); - Escoriações de caraterísticas recentes no tórax; - Tecidos moles na face interior de peças de vestuário. B) Hábito interno: - Lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas: Esfacelo do tecido celular subcutâneo e dos músculos da face; Solução de continuidade epicraniana; Infiltrações sanguíneas epicranianas e do músculo temporal direito; Fraturas do crânio (abóbada, base e face); Lacerações meníngeas; Hemorragia meníngea (subaracnóide); Esfacelo cerebral e cerebeloso; Lacerações encefálicas; Sangue nos ventrículos laterais e no IV ventrículo; Edema encefálico. - Lesões traumáticas torácicas (incluindo raqui-meningo-medulares): Soluções de continuidade do tecido celular subcutâneo, de músculos, pleurais (bilateralmente) e pulmonares (bilateralmente); Fraturas de costelas (bilateralmente) e da escápula esquerda; Contusão pulmonar (à direita); Hemotórax (bilateralmente); Fraturas da coluna vertebral (D7 e D8), com hemorragias meníngeas (epidural, subdural e subaracnóide) e mielomalácia a esse nível. - Lesões traumáticas do membro superior direito: Soluções de continuidade do tecido celular subcutâneo e de músculos do braço.
13. (…) tais lesões foram causa direta da morte de FF.
14. Após, AA ausentou-se do local em direção à sua habitação, local onde, pelas 8 horas e 25 minutos e 8 horas e 26 minutos, efetuou duas tentativas de contacto para a PSP de …, para os números … e …, que não logrou efetuar por se tratarem de números desativados.
15. (…) assim, ficando em casa, a aguardar a chegada da Polícia junto à garagem da sua habitação.
16. (…) onde, junto do saco com roupa que AA prepara anteriormente, foi apreendida a arma … calibre 12 com o n.º de série …, utilizada para disparar contra a vítima.
II)
17. Ao atuar da forma supra descrita, disparando uma arma de fogo em direção ao tórax e à cabeça de FF e a uma distância que lhe garantia acertar no alvo, AA quis tirar-lhe a vida, bem sabendo que a natureza do meio utilizado e as zonas do corpo que pretendia atingir, por alojarem órgãos vitais, poderia causar lesões suscetíveis de provocar a morte daquele, resultado esse que quis, representou e logrou alcançar.
18. (…) praticou os factos acima descritos de forma refletida e planeada, indiferente à presença do filho e sobrinho de FF no local, que não o demoveu de disparar sobre aquele várias vezes, sendo a última na face, com FF prostrado no chão e incapaz de reagir ou praticar qualquer ato de defesa.
19. (…) agindo de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.
III)
20. EE tinha uma relação muito próxima com FF, vendo o seu tio como um pai, por quem nutria sentimentos de afeto idênticos.
21. (…) vivia na casa do tio, juntamente com a tia e os primos.
22. (…) tendo a morte do tio causado muito nervosismo, tristeza e instabilidade emocional, porque as imagens dos factos estão sempre muito presentes na sua memória.
23. FF tinha à data da morte 46 anos de idade, exercia a profissão de manobrador de máquinas numa empresa … há 17 anos e gozava de boa saúde.
24. (…) estava casado com BB há 22 anos, casamento que se pautava por uma boa vivência.
25. BB ficou muito perturbada e sofreu um grande desgosto, que se prolonga desde o dia 29 de fevereiro de 2024, e ainda se mantém, por ter perdido o seu marido de forma tão trágica e violenta.
26. (…) tinha uma vida alegre, de boa companhia com o seu marido e filhos.
27. (…) constituía com o marido um casal que se dava bem, sem atritos e incompreensões, tendo a expectativa de uma vida de casada e de felicidade com o seu marido por muitos anos.
28. (…) era feliz e vivia quase exclusivamente para o seu marido e para os seus filhos.
29. (…) em virtude da morte do marido, ficou num estado depressivo e sorumbático, sem vontade de trabalhar, de falar com outras pessoas, chorando muitas vezes sozinha em virtude da perda da pessoa que amou toda a vida, sofrendo de forma muito intensa.
30. CC e DD tinham uma relação muito estreita e intensa com o pai, com quem privavam de forma contínua e reiterada.
31. (…) e, ao perderem o seu pai de forma violenta e brutal em idade ainda muito jovem, com 21 e 19 anos, respetivamente, ficaram ambos muito abalados, tristes, nervosos e ansiosos.
32. (…) nos meses seguintes ao falecimento do pai, não dormiam de noite, acordando muitas vezes extremamente ansiosos e chorosos.
33. (…) ainda hoje, choram quando falam do pai ou quando o recordam.
34. (…) CC assistiu ao assassínio do pai, sendo imagens que perduram na mente do demandante, que jamais esquecerá e que o acompanharão toda a vida, causando-lhe tristeza muito intensa.
35. BB trouxe os bens pessoais de FF para Portugal, tendo o seu custo de transporte ascendido a 2.000,00€.
IV)
36. AA foi emigrante na … durante aproximadamente 42 anos, onde trabalhou no setor da construção civil como carpinteiro de tosco e pedreiro.
37. (…) o seu regresso definitivo a Portugal ocorreu em 2023, tendo constituído agregado próprio aos 30 anos naquele país com uma cidadã portuguesa oriunda da zona norte do país o qual durou cerca de 17 anos, tendo nascido dois filhos, ambos maiores de idade e autónomos, sendo II, residente na … com o respetivo agregado constituído, o único elemento familiar referenciado em termos de relacionamento de maior proximidade.
38. (…) à data dos factos, residia sozinho, em casa própria, uma habitação de construção antiga, anteriormente pertencente aos pais, e cuja titularidade refere ter sido legitimada através de processo de partilha por morte dos mesmos.
39. (…) está reformado por invalidez na sequência de um acidente de trabalho na década de 90, e desde essa altura que não desenvolve qualquer atividade laboral.
40. (…) a sua subsistência apresenta-se exclusivamente decorrente do valor correspondente à pensão de reforma de que é beneficiário, montante que no último ano indica correspondente ao valor aproximado de 2.000,00 €.
41. (…) desde o seu regresso definitivo à localidade de residência, as rotinas mantinham-se associadas a um quotidiano organizado em torno da execução de alguns trabalhos agrícolas e da ligação a amigos e conhecidos com quem convivia, ligados à atividade de caçador desportivo, não se identificando, para além destas, outras formas de atividade ocupacional ou de lazer estruturada.
42. (…) para além de eventuais vulnerabilidades relacionadas com o consumo excessivo de álcool e do facto de se encontrar numa situação de isolamento familiar, o seu discurso aponta para dificuldades de gestão emocional em situações de tensão e de resolução de problemas, défices que, assinalando o antagonismo com a vítima identificada nos autos desde há vários anos, não se mostram suficientemente minorados para sustentar uma prognose positiva no que concerne à sua reintegração no meio social.
43. (…) em termos económicos, os seus gastos de uso pessoal apresentam-se suportados pela creditação mensal regular por operação bancária de importâncias no fundo de uso pessoal, o qual conta com um total de 6.936,58 €.
44. (…) em últimas declarações, quando instado pelo Tribunal para refletir sobre a conduta, manifestou com desagrado a circunstância de se ver afastado dos seus netos, em consequência da prisão preventiva que lhe foi imposta.
45. (…) não tem antecedentes criminais.
§3.2
E não se provaram os seguintes factos:
a. Na sequência dos disparos efetuados por AA, EE, que se encontrava a distância inferior a 10 metros de FF, veio a ser atingido por um fragmento de um dos projéteis deflagrados na zona interior da coxa esquerda, causando-lhe ferida sangrante.
b. AA sabia ainda que ao disparar na direção de FF, ciente de que EE estava próximo daquele, os fragmentos dos projéteis deflagrados podiam atingi-lo, como atingiram, resultado que podia e devia ter previsto e não previu, não se conformando com a sua verificação.
c. (…) agindo sem o cuidado a que estava obrigado e que era capaz, sabendo que os cartuchos deflagrados pela arma de fogo por si disparada podiam e tinham potencialidade para atingir não só a vítima para a qual direcionou o disparo, mas também, pela natureza da munição, as pessoas que estivessem próximas deste, circunstância que o arguido não considerou, mas que era capaz de prever.
d. No dia anterior aos factos, FF terminou a obra que tinha sido obrigada pelo tribunal, sendo que tal obra não cumpria com os requisitos impostos por este, sendo que estava a realizar a serventia com pó de pedra, sem cumprir a espessura de touvenant e sem cimento.
e. (…) ao final da tarde, AA percecionou tal situação e interpelou FF dizendo que tal não estava de acordo com o exigido, que não tinha os 7 cm de espessura e que não estava a descair para as bordas.
f. (…) ao que este retorquiu, afirmando que AA já sabia que quem mandava ali era ele, que não tinha medo dele e que se fosse preciso que quem o limpava era ele, remetendo-se a alegadas ameaças proferidas anteriormente por este.
g. (…) perante tal situação, AA recolheu-se em sua casa, tenho tomado vários comprimidos de índole psiquiátrica que lhe foram receitadas na ….
h. Durante toda a noite, AA passou a ter alucinações, recordando-se de momentos traumáticos da sua infância, onde era vítima de maus tratos pelo seu pai, tendo entrado em situação de desespero e de desconexão com a realidade, com receio de que FF cumprisse as ameaças que lhe tinha feito ou que mais uma vez deixasse o trabalho da forma imperfeita como estava, acarretando mais processos e mais problemas e esperas típicas dos tribunais para resolver a situação, ficando como sempre com os problemas.
i. Durante a manhã, quando se deslocou ao … para comprar tabaco, viu que FF se encontrava no terreno já em processo de limpeza, dando o trabalho por concluído, sem nunca ter visto qualquer outra pessoa, além deste, no terreno, momento em que se apresentava num estado de espírito completamente alterado, dissonante da realidade e toldado o seu pensamento pelo desespero.
j. FF tinha uma casa arrendada na …, completamente mobilada e equipada, pagando uma renda mensal de 740,00€, pelo que BB teve de se deslocar à … para revogar o contrato de pagamento, tendo que pagar três meses de renda correspondentes ao pré-aviso em falta, ou seja, 2.220,00€.
k. (…) teve que doar um veículo marca …, no valor de 5.000,00€, pertencente ao marido, que era usado para se deslocar na …, porque não teve tempo de obter um comprador nos poucos dias que esteve no país para resolver as situações pendentes.
l. (…) viu-se obrigada a deixar todo o mobiliário e eletrodomésticos na casa, com o valor de 25.000,00€, porque ficava muito dispendioso deslocá-los para Portugal.
§3.3
Visando a motivação da factualidade relevante, o Tribunal baseou a sua convicção na conjugação e análise crítica da prova produzida devidamente descrita na acusação, carreada documentalmente para os autos e resultante das atas de julgamento, gerada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo e, salvaguardadas as presunções legais e naturais, valorada em harmonia com o princípio da livre apreciação da prova e de acordo com as regras da experiência.
O Arguido prestou declarações e consideraram-se reproduzidas as anteriormente prestadas perante juiz de instrução criminal. Ouviram-se os demandantes EE e CC. Ouviram-se as testemunhas arroladas pelo Ministério Público: GG, HH e JJ (cujo depoimento foi oficiosamente determinado pelo Tribunal), as arroladas pelos Demandantes: KK, LL, MM e NN, e as arroladas pelo Arguido: OO, PP e QQ. Considerou-se a seguinte prova documental: relatório de exame pericial n.º …, do Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária – Inspeção Judiciária/Local do Crime – de fls. 89 a 146, relatório de exame pericial n.º …, do Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária – Setor Físico-Química – de fls. 265, relatório de exame pericial n.º …, do Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária – Balística – de fls. 349 a 356, relatório de autópsia médico-legal n.º …, do Gabinete Médico-Legal e Forense do …, fls. 396 a 404, relatório da Perícia Psiquiátrica Forense, fls. 407 a 415, auto de notícia por detenção fls.174 a 177, aditamento, fls. 187 e 188, 191, autorização busca, fls. 189, auto de apreensão, fls. 59, 190, relatório de inspeção judiciária, fls. 79 a 88, assentos nascimento, fls. 161 e 162 e informação da PSP – NAE, fls. 249.
Os elementos circunstanciais e de contexto espácio-temporal não são controvertidos, assim como os disparos efetuados na direção de FF. AA admitiu, num discurso essencialmente concordante com as declarações já anteriormente prestadas, ter matado o sobrinho com três tiros de espingarda, alegando que o fez porque a obra que o sobrinho estava a fazer não estava bem feita e que ele se sentia prejudicado financeiramente, procurando sustentar que andou a noite inteira com receio que o sobrinho o quisesse matar e que andava a rondar a casa para o efeito. Refere que não viu mais ninguém junto da vítima mortal e que todos os tiros foram disparados à mesma distância de, sensivelmente, 20 metros. No mais, descreve em detalhe o planeamento e execução do crime, incluindo a forma como municiou a arma e se deslocou até ao local, ali disparando três tiros, sendo que o primeiro atingiu o sobrinho no braço, o segundo na cabeça e o terceiro também na cabeça, admitindo inclusivamente que fez pontaria a este órgão. Nega, porém, ter disparado contra EE.
Resulta com evidência das declarações dos demandantes EE e CC que o Arguido, ao contrário do que afirmou, não pôde deixar de ter perceção da presença dos mesmos, pois que estavam ao lado da vítima mortal (dois a três metros ao seu lado), tanto assim que tiveram que fugir. Por outro lado, também a realidade apurada da distância relativa entre o local dos disparos e o local onde estava a vítima afigura-se mais consentânea com o relatório elaborado pela Polícia Judiciária e respetiva corroboração pela testemunha GG, do que com a versão do Arguido, porquanto a mesma não se coaduna com os invólucros deixados e a distância assim apurada. Seja como for, o Arguido admitiu ter feito pontaria à cabeça, o que ficou facilitado com a pouca distância a que, decerto, estava da vítima, nos dois últimos disparos.
A testemunha HH atestou as diligências no local e o auto de apreensão. A testemunha JJ explicou cabalmente algum equívoco que pudesse ser gerado pelo relatório pericial psiquiátrico e que apontava para perturbação do foro psíquico capaz de em “abstrato” fundar um estado de inimputabilidade, a qual em concreto é perentoriamente afastada.
Pelos motivos acima expendidos e documentação já evidenciada, o Tribunal respondeu aos factos enunciados a I e II (factos 1 a 19), retirando-se com particular singeleza a presunção acerca do elemento subjetivo, plenamente confessado por AA.
Ainda no que tange com as declarações do Arguido e as declarações do demandante EE quanto ao ferimento por este sofrido, resultou inteiramente claro e inequívoco o desconhecimento acerca do respetivo processo causal. O Arguido diz que não o atingiu. O Demandante diz que fugiu até chegar a esconder-se atrás de uma oliveira, ouve um segundo disparo e sente que é atingido na coxa, sendo que já não ouviu o terceiro disparo. A douta acusação descreve que o Arguido haveria de ter a perceção que a natureza da munição poderia ferir as pessoas que estivessem próximas da vítima mortal. Primeiro, o que a natureza da munição permite concluir, sendo um cartucho bala e não um cartucho composto de pequenos chumbos é exatamente o oposto. Segundo, ainda admitindo que se tratam de fragmentos, se só foram efetuados três disparos e se os três atingiram a vítima FF, não se percebe como poderão ter havido fragmentos com a potencialidade de atingir outra pessoa. Assim, outra não pode ser a conclusão que não o total desconhecimento do modo como EE acabou ferido, afigurando-se como certo que não pode ter sido do modo como é sugerido na douta acusação, sempre soçobrando, fosse qual fosse a perspetiva, como não provado o elemento subjetivo. Por esta razão, os factos enunciados em a., b. e c. resultaram não provados.
Além das declarações dos Demandantes, também os depoimentos credíveis de KK, LL, MM e NN fundaram a convicção do Tribunal quanto aos factos enunciados a III (factos 20 a 35) e que respondem à matéria alegada nos pedidos de indemnização civil. Resultou claro o afeto que percorria a relação emocional entre os Demandantes e FF. Impõe-se como inequívoco o abalo provocado nas vidas dos Demandantes com o desaparecimento brutal e violento do marido, do pai e do tio. Porém, não foi feita prova séria e consistente, acerca, quer da cessação do contrato de arrendamento, quer da doação do veículo automóvel e mobiliário, menos ainda dos valores pecuniários envolvidos, daí os factos não provados e enunciados em j., k. e l.
Os factos descritos de d. a i. não coincidem nem com as próprias declarações do Arguido, o qual desmente a ingestão de comprimidos, nem com a restante matéria de facto, já atrás escalpelizada, e que impede as ilações sustentadas na douta contestação.
Quanto aos factos enunciados sob o ponto IV, resultam das declarações do Arguido, das testemunhas por si arroladas (OO, PP e QQ) e cujo conhecimento sobre a vivência do Arguido se afigurou muito parco, do relatório social, cujo teor é em boa parte reproduzido nos factos, bem como do certificado do registo criminal.
E mais não foi levado à matéria de facto por não oferecer relevo, por ser de teor conclusivo ou por configurar juízos de Direito.”
*
3.2.- Mérito do recurso
A) Vícios previstos no art.º 410º, nº 2, alíneas a) e c) do Cód. Proc. Penal
Como fundamento do seu recurso invoca o recorrente os vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de erro notório na apreciação da prova.
Dispõe o art.º 410º, nº 2 do Cód. Proc. Penal que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do Tribunal a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) O erro notório na apreciação da prova.
Tratam-se de vícios da decisão sobre a matéria de facto que são vícios da própria decisão, como peça autónoma, e não vícios de julgamento, que não se confundem nem com o erro na aplicação do direito aos factos, nem com a errada apreciação e valoração das provas ou a insuficiência destas para a decisão de facto proferida.
Estes vícios são também de conhecimento oficioso, pois têm a ver com a perfeição formal da decisão da matéria de facto e decorrem do próprio texto da decisão recorrida, por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum, sem possibilidade de recurso a outros elementos que lhe sejam estranhos, mesmo constantes do processo (cfr., neste sentido, Maia Gonçalves, in “Código de Processo Penal Anotado”, 16. ª ed., pág. 873; Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª ed., pág. 339; Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, 6.ª ed., 2007, pág. 77 e seg.; Maria João Antunes, RPCC, Janeiro-Março de 1994, pág. 121).
Há insuficiência da matéria de facto para a decisão quando os factos dados como assentes na decisão são insuficientes para se poder formular um juízo seguro de condenação ou absolvição, ou seja, são insuficientes para a aplicação do direito ao caso concreto.
No entanto, tal insuficiência só ocorre quando existe uma lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para a decisão de direito, porque não se apurou o que é evidente e que se podia ter apurado ou porque o Tribunal não investigou a totalidade da matéria de facto com relevo para a decisão da causa, podendo fazê-lo.
Esta insuficiência da matéria de facto tem de existir internamente, no âmbito da decisão e resultar do texto da mesma.
Neste sentido decidiu o STJ no Ac. de 5/12/2007, proferido no processo nº 07P3406, em que foi relator Raúl Borges, in www.dgsi.pt, onde se pode ler que: “Ocorre o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando esta se mostra exígua para fundamentar a solução de direito encontrada, quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para que se possa formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição. Ou, como se diz no acórdão deste STJ de 25-03-1998, BMJ 475.º/502, quando, após o julgamento, os factos colhidos não consentem, quer na sua objectividade, quer na sua subjectividade, dar o ilícito como provado; ou ainda, na formulação do acórdão do mesmo Tribunal de 20-12-2006, no Proc. 3379/06 - 3.ª, o vício consiste numa carência de factos que permitam suportar uma decisão dentro do quadro das soluções de direito plausíveis e que impede que sobre a matéria de facto seja proferida uma decisão de direito segura.”
No mesmo sentido se decidiu no Ac. do TRC de 12/09/18, proferido no processo nº 28/16.9PTCTB.C1, em que foi relator Orlando Gonçalves, in www.dgsi.pt, onde se escreveu que: “ (…) Como resulta expressamente mencionado nesta norma, os vícios nela referidos têm que resultar da própria decisão recorrida, na sua globalidade, mas sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, designadamente a segmentos de declarações ou depoimentos prestados oralmente em audiência de julgamento e que se não mostram consignados no texto da decisão recorrida. O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada existe quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem dados e elementos para a decisão de direito, considerando as várias soluções plausíveis, como sejam a condenação (e a medida desta) ou a absolvição (existência de causas de exclusão da ilicitude ou da culpa), admitindo-se, num juízo de prognose, que os factos que ficaram por apurar, se viessem a ser averiguados pelo tribunal a quo através dos meios de prova disponíveis, poderiam ser dados como provados, determinando uma alteração de direito. Existirá insuficiência para a decisão da matéria de facto se houver omissão de pronúncia pelo tribunal sobre factos relevantes e os factos provados não permitem a aplicação do direito ao caso submetido a julgamento, com a segurança necessária a proferir-se uma decisão justa.”
No que concerne ao erro notório na apreciação da prova, segundo o disposto no art.º 410º, nº 2, alínea c) do Cód. Proc. Penal, o mesmo releva como fundamento de recurso desde que resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum.
Pese embora a lei não o defina, o «erro notório» tem sido entendido como aquele que é evidente, que não escapa ao homem comum, de que um observador médio se apercebe com facilidade e que ressalta do teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, só podendo relevar se for ostensivo, inquestionável e percetível pelo comum dos observadores ou pelas faculdades de apreciação do «homem médio».
Há «erro notório» quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum e ainda quando determinado facto provado é incompatível, inconciliável ou contraditório com outro facto, positivo ou negativo, contido no texto da decisão recorrida (cf. neste sentido, LEAL-HENRIQUES e SIMAS SANTOS, in “Código de Processo Penal anotado”, II volume, 2ª edição, 2000, Rei dos Livros, pág. 740).
Este é um vício do raciocínio na apreciação das provas, de que nos apercebemos apenas pela leitura do texto da decisão, o qual, por ser tão evidente, salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de particular exercício mental, em que as provas revelam claramente um sentido e a decisão recorrida extraiu uma ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria fáctica provada ou excluindo dela algum facto essencial (cf. entre muitos outros, Acs. TRC de 09.03.2018, proferido no processo nº 628/16.7T8LMG.C1, em que foi relatora Paula Roberto, e de 14.01.2015, proferido no processo nº 72/11.2GDSRT.C1, em que foi relator Fernando Chaves, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).
Quanto ao que se deva entender por erro notório na apreciação da prova, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 410º, nº 2, alínea c) do Cód. Proc. Civil, discorreu largamente o STJ, no seu Ac. de 7/07/21, proferido no processo nº 128/19.3JAFAR.E1.S1, em que foi relator Nuno Gonçalves (in www.dgsi.pt) e onde se pode ler: “ (…) A decisão de julgar provado um acontecimento da vida na convicção de que foi demonstrado por uma versão que é manifestamente ilógica, contrariada pelas regras da física e ao mesmo tempo pelas máximas da experiência, padece do vício que o legislador consagrou no art.º 410º n.º 2 al.ª c) do CPP. Este é, como os demais aí previstos, um defeito da decisão em matéria de facto. Não devendo confundir-se nem com a errada aplicação do direito aos factos, nem com a escassez da prova para suportar o julgado. A sua deteção ou verificação não permite o recurso a elementos externos ao texto da decisão recorrida. Não assim, evidentemente, ao que constar da motivação do julgamento da matéria de facto. Se é certo que um determinado facto ou acontecimento da vida, simplesmente pelo modo como vem narrado, pode apresentar-se visivelmente irracional, notoriamente impossível, manifestamente desconforme às regras da experiência comum, todavia, mais comumente o erro notório na apreciação da prova deteta-se pela motivação do julgamento da facticidade, designadamente pelo exame critico dos elementos de prova. (…)”
No caso dos presentes autos, o recorrente alega que existe insuficiência da matéria de facto apurada para a decisão e erro notório na apreciação da prova, porquanto os factos dados como provados em 6, 9 e 18 deveriam ter sido dados como não provados e os factos dados como não provados nas alíneas h) e i) deveriam ter sido dados como provados.
Porém, o que daqui decorre é que o recorrente se limita a discordar da apreciação da prova feita pelo Tribunal a quo, no que concerne à sua condenação pela prática do crime de homicídio, pretendendo não ser punido ou ser punido com uma pena mais leve do que aquela que lhe foi aplicada.
Ora, analisada a decisão recorrida, verificamos que não resulta da mesma que padeça de erro notório, nem de insuficiência da matéria de facto para a decisão, pois os factos estão descritos de forma clara e perceptível, não existe qualquer contradição entre a matéria de facto provada e não provada, todos os factos se mostram fundamentados, de forma lógica, e a decisão do Tribunal funda-se na prova produzida, estando em conformidade com a mesma.
Os factos dados como provados permitem concluir pelo preenchimento pelo arguido dos elementos objectivos e subjectivos do crime de homicídio qualificado pelo qual foi condenado, em moldes que infra se apreciarão.
Não se tendo apurado a existência de um qualquer vício de raciocínio evidente para um observador médio ou uma qualquer desconformidade intrínseca e evidente no raciocínio exposto na decisão do Tribunal recorrido, o que também não foi alegado pelo recorrente, impõe-se julgar este recurso improcede quanto a este fundamento, sem necessidade de mais considerandos.
B) Erro de julgamento
O recorrente considera incorrectamente julgados os factos provados sob os nºs 6, 9 e 18, bem como os factos não provados referidos nas alíneas h) e i), pretendendo não ser punido pelo crime de homicídio qualificado ou ser-lhe aplicada uma pena inferior, bem como a redução dos montantes indemnizatórios arbitrados.
Alega, para tanto, que a ponderação da prova produzida impunha decisão diversa, designadamente as suas declarações, na parte em que referiu que só disparou contra a vítima porque não dormiu bem, por no dia anterior a vítima o ter ameaçado e por ter passado a noite nervoso e a sonhar que a vítima andava à sua procura com uma pistola, tudo isto em resultado de um longo período de desavenças familiares, para além do que das suas declarações decorre também que no local do crime só viu a vítima.
Mais alegou que do depoimento das testemunhas EE e CC resulta que não era possível o arguido saber que as mesmas se encontravam presentes no local do crime, por não estarem visíveis, pelo que os factos 9 e 18 deveriam ter sido dados como não provados.
Também o facto dado como provado em 6, não tem acolhimento em qualquer prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, pois as testemunhas inquiridas não referem qualquer tipo de interação do arguido com a vítima nos dias anteriores aos factos, sendo que a “resolução criminosa” pressupõe sempre a representação pelo agente dos factos concretos que vão ser praticados.
Entende o arguido que não pode ser dado como facto provado que em data não concretamente apurada, mas anterior a dia 29 de Fevereiro, decidiu por termo à vida da vítima, porque resulta das declarações que prestou em sede de primeiro interrogatório e em julgamento que durante a madrugada de dia 29 de Fevereiro teve uma noite em que não dormiu e acordou sobressaltado várias vezes com a ideia de que a vítima andava de volta da sua habitação com uma pistola para o matar, sendo notório que a resolução criminosa foi tomada durante a manhã de 29 de Fevereiro e não anteriormente.
Já quanto aos factos não provados referidos nas alíneas h) e i), entende que a sua prova resulta das suas declarações, bem como das de EE e de CC, devendo os mesmos ser dados como provados.
Ora, a reapreciação da matéria de facto poderá ser feita no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no art.º 410º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, onde, como supra se referiu, a verificação dos mesmos tem que resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, mas sem recurso a quaisquer elementos exteriores, ou através da impugnação ampla da matéria de facto, feita nos termos do art.º 412º, nos 3, 4 e 6 do mesmo diploma, caso em que a apreciação se estende à prova produzida em audiência, dentro dos limites fornecidos pelo recorrente. O recurso em que se impugne amplamente a decisão sobre a matéria de facto destina-se a despistar e corrigir determinados erros in judicando ou in procedendo, razão pela qual o art.º 412º, nº 3 do Cód. Proc. Penal impõe ao recorrente a obrigação de indicar: “ a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas.” A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados.
A especificação das «concretas provas» implica a indicação do conteúdo do meio de prova ou de obtenção de prova e a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida. Por seu turno, a especificação das provas que devem ser renovadas impõe a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1ª instância cuja renovação se pretenda e das razões para crer que aquela renovação permitirá evitar o reenvio do processo previsto no art.º 430º do mesmo diploma. Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência. Havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao que tiver sido consignado na ata, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens das gravações em que fundamenta a impugnação, não bastando a simples remissão para a totalidade de um ou de vários depoimentos, pois são essas passagens concretas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo Tribunal de recurso, como é exigido pelo art.º 412º, nºs 4 e 6 do Cód. Proc. Penal. A este respeito, importa ter em atenção que o STJ, no seu Ac. nº 3/2012, publicado no Diário da República, 1.ª série, Nº 77, de 18 de abril de 2012, já fixou jurisprudência no seguinte sentido: «Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações».
Na verdade, o poder de apreciação da prova da 2ª Instância não é absoluto, nem é o mesmo que o atribuído ao juiz do julgamento, não podendo a sua convicção ser arbitrariamente alterada apenas porque um dos intervenientes processuais expressa o seu desacordo quanto à mesma.
Verifica-se, assim, que só se pode alterar o decidido se as provas indicadas obrigarem a uma decisão diversa da proferida. Nos casos de impugnação ampla da matéria de facto, o recurso não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, com base na audição de gravações, constituindo apenas um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorreções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, sempre em relação aos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. Para esse efeito, deve o Tribunal de recurso verificar se os concretos pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa ( neste sentido, cf. Ac. STJ de 14.03.2007 (no processo nº 07P21, Relator: Conselheiro Santos Cabral), de 23.05.2007 (no processo 07P1498, Relator: Conselheiro Henriques Gaspar), de 03.07.2008 (no processo nº 08P1312, Relator: Conselheiro Simas Santos), de 29.10.2008 (no processo nº 07P1016, Relator: Conselheiro Souto de Moura) e de 20.11.2008 (no processo nº 08P3269, Relator: Conselheiro Santos Carvalho), todos disponíveis em www.dgsi.pt).
A razão de ser desta forma de funcionamento do instituto do recurso, quanto à reapreciação da matéria de facto, decorre do princípio da oralidade, o qual implica uma imediação, um contacto direto, pessoal e presencial entre o julgador e os elementos de prova (sejam eles pessoas, coisas, lugares, sons, cheiros, timbre e entoação), que facilita a formação da livre convicção do julgador e que só existe na primeira instância.
A imediação permite ao julgador uma perceção dos elementos de prova muito mais próxima da realidade do que qualquer apreciação posterior, a realizar pelo Tribunal de recurso, mesmo que este se socorra da documentação dos atos da audiência.
A imediação revela-se também de importância fulcral para aferir da credibilidade de um depoimento, pois o seu desenrolar, a posição corporal, os gestos, as hesitações, o tom de voz, o olhar, o embaraço ou o desembaraço e todas as componentes pessoais ligadas ao ato de depor são insuscetíveis de serem registadas, mas ficam na memória de quem realizou o julgamento, são importantes na formação da convicção do julgador e são objetiváveis na fundamentação da decisão, mas não são suscetíveis de documentação para reapreciação em sede de recurso.
Segundo o previsto no art.º 127º do Cód. Proc. Penal, o Tribunal deve fixar a matéria de facto de acordo com as regras da experiência e a livre convicção do julgador, desde que não se esteja perante prova vinculada.
Impõe-se, assim, concluir que, nesta matéria, cabe apenas ao Tribunal de recurso verificar se o Tribunal a quo, ao formar a sua convicção, fez um bom uso do princípio de livre apreciação da prova, aferindo da legalidade do caminho prosseguido até se chegar à matéria fáctica dada como provada e não provada, devendo tal apreciação ser feita com base na motivação elaborada pelo Tribunal de primeira instância e na fundamentação da sua escolha, em cumprimento do disposto no art.º 374º, nº 2 do Cód. de Proc. Penal.
Para este efeito, como se escreveu no Ac. do TRL datado de 11/03/2021 ( proferido no processo nº 179/19.8JDLSB.L1-9, em que foi relator Abrunhosa de Carvalho, in www.dgsi.pt. ): «O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique «os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado».
E convém referir que quando o tribunal recorrido forma a sua convicção com provas não proibidas por lei, prevalece a convicção do tribunal sobre aquelas que formulem os recorrentes.
Normalmente, os erros de julgamento capazes de conduzir à modificação da matéria de facto pelo tribunal de recurso consistem no seguinte: dar-se como provado um facto com base no depoimento de uma testemunha que nada disse sobre o assunto; dar-se como provado um facto sem que tenha sido produzida qualquer prova sobre o mesmo; dar-se como provado um facto com base no depoimento de testemunha, sem razão de ciência da mesma que permita a referida prova; dar-se como provado um facto com base em prova que se valorou com violação das regras sobre a sua força legal; dar-se como provado um facto com base em depoimento ou declaração, em que a testemunha, o arguido ou o declarante não afirmaram aquilo que na fundamentação se diz que afirmaram; dar-se como provado um facto com base num documento do qual não consta o que se deu como provado; dar-se como provado um facto com recurso à presunção judicial fora das condições em que esta podia operar.»).
Sucede que: «O recorrente não impugna de modo processualmente válido a decisão proferida sobre matéria de facto se se limita a procurar abalar a convicção assumida pelo tribunal recorrido, questionando a relevância dada aos depoimentos prestados em audiência.» ( cf. Ac. do TRP de 6/10/2010, proferido no processo nº 463/09.9JELSB.P1, em que foi relatora Eduarda Lobo, in www.dgsi.pt).
O que o recorrente tem que fazer é apontar na decisão recorrida os segmentos que impugna e colocá-los em relação com as provas, concretizando as partes da prova gravada que pretende que sejam ouvidas, se for o caso, quais os documentos que pretende que sejam reexaminados, bem como quais os outros elementos probatórios que pretende ver reproduzidos, demonstrando a verificação do erro judiciário a que alude.
No caso dos autos, analisadas a motivação e as conclusões do recurso, verificamos que o recorrente indicou os concretos pontos da matéria de facto que considera terem sido mal julgados, os meios de prova que, na sua opinião, impunham decisão diversa e transcreveu as passagens do seu depoimento e dos depoimentos das testemunhas que, no seu entendimento, fundamentam a impugnação.
Pese embora o recorrente não tenha indicado as partes da gravação dos depoimentos que este Tribunal de recurso deveria ouvir, considera-se que cumpriu minimamente os requisitos legais da impugnação ampla da matéria de facto.
Porém, o que resulta da sua argumentação é que pretende que se dê como provado que só decidiu matar a vítima na manhã em que os factos ocorreram e quando a viu, que o seu estado de nervosismo lhe toldou o discernimento e que tal se ficou a dever a ter dormido mal, por a vítima o ter ameaçado no dia anterior e por não ter tomado os seus medicamentos, e ainda que quando disparou sobre a vítima não viu mais ninguém no local.
Tudo isto com fundamento nas suas declarações e nas das testemunhas EE e CC.
No entanto, constata-se, desde logo, que o entendimento do recorrente sobre o momento da tomada da “resolução criminosa” não é consentâneo com os factos provados descritos em 7, os quais não foram impugnados e de onde decorre que antes de se dirigir ao local do crime, o recorrente municiou a sua espingarda caçadeira … calibre 12 com pelo menos três cartuchos de calibre 12 e colocou roupas, bens pessoais e medicação no interior de um saco, antevendo a sua detenção.
Ora, esta factualidade assente e não impugnada não é compatível com a pretensão do recorrente de que só formulou a sua resolução criminosa quando viu a vítima na manhã do dia 29 de Fevereiro de 2024, no local do crime.
Ouvidas as declarações do recorrente, verifica-se que este confessou a quase totalidade dos factos, nomeadamente a forma como matou a vítima, qual a arma utilizada, o número de disparos que fez, a distância a que se encontrava da vítima, que antes de se dirigir ao local municiou a sua arma com cinco cartuxos e fez uma mala de roupa, onde pôs os medicamentos que tomava (dando para tal a justificação, não plausível, de que fez a mala para ir para a …), e explicou os motivos que o levaram a cometer o crime, sendo estes desavenças familiares antigas, motivadas por partilhas de terrenos.
Porém, ao contrário do pretendido pelo recorrente, das suas declarações decorre que praticou efectivamente o crime com frieza de ânimo, premeditação e reflexão sobre os meios empregues, o que resulta evidente da preparação antecipada da arma utilizada e de uma mala com roupa e artigos pessoais, prevendo a sua futura detenção.
Por outro lado, ouvidos os depoimentos das testemunhas EE e CC, também decorre dos mesmos que no dia anterior aos factos estiveram com a vítima no local e não a ouviram a falar com o arguido e muito menos a ameaçá-lo, tendo referido expressamente que a vítima não falava com o arguido e que no dia anterior a única pessoa que falou com o arguido foi o filho da vítima, DD.
Esta factualidade foi dada como provada em 5. e também não foi impugnada pelo recorrente.
Mais declararam que o arguido os viu no local, no dia da prática do crime, quando iniciou os disparos, o que não o demoveu de continuar a disparar sobre a vítima, e especificaram que ouviram o carro do arguido a vir pela estrada e a parar, que não estavam atrás de nenhuma máquina, que estavam visíveis para o arguido, em campo aberto, a 2/3 metros da vítima, e que o demandante CC ainda tentou auxiliar o pai logo após este ter levado o primeiro tiro, só tendo fugido depois, porque o pai lhe pediu, e antes deste ter sido atingido pelos restantes tiros.
O Tribunal a quo não deu como provado que o arguido praticou o crime por ter dormido mal, ter tido alucinações e ter sido ameaçado no dia anterior pela vítima, em nosso entender bem, pois tais factos configuram apenas uma tentativa de defesa do arguido, não foram corroborados por qualquer outro meio de prova e foram contraditados pelas testemunhas EE e CC, que negaram a ocorrência de qualquer ameaça da vítima para com o arguido.
Por outro lado, estes factos, mesmo que tivessem sido considerados provados, não configuram nenhuma causa de exclusão da ilicitude, nem permitem concluir que o arguido agiu com imputabilidade diminuida, sendo, como tal, inóquos para efeitos da sua desresponsabilização criminal, conforme infra se apreciará.
Em face do exposto, impõe-se concluir que a factualidade apurada foi apreciada segundo as regras da lógica e da experiência comum, conforme explanado na parte da decisão em apreço supra transcrita, de forma completa e transparente, tendo os depoimentos do arguido e das testemunhas inquiridas sido valorados em articulação com os restantes meios de prova, documentais e periciais.
O Tribunal a quo conferiu maior credibilidade aos depoimentos das testemunhas EE e CC do que ao depoimento do arguido, relativamente aos pontos da matéria de facto concretamente impugnados, em moldes que não nos merecem qualquer censura, porquanto o mesmo beneficiou da imediação na apreciação da prova e considerou que estas testemunhas depuseram de forma credível, isenta e convincente, o que este Tribunal de recurso confirmou pela audição das suas declarações.
Verifica-se, assim, que a argumentação do recorrente mais não é do que o resultado da sua apreciação da prova, daquilo que gostaria que se tivesse dado como provado, realçando aspectos dos depoimentos de algumas das testemunhas que, no seu entender, reforçam a sua tese, mas sem qualquer distanciamento imparcial e apenas com vista a conseguir a sua condenação pela prática de um crime de homicídio simples ou uma diminuição da pena aplicada e dos montantes indemnizatórios arbitrados.
Porém, constata-se que a decisão da matéria de facto está bem fundamentada, não sendo a prova produzida em julgamento geradora de dúvida e não se mostrando violados quaisquer preceitos legais ou constitucionais, nem o princípio da livre apreciação da prova, plasmado no art.º 127º do Cód. Proc. Penal, pelo que se impõe julgar o recurso improcedente quanto a esta matéria.
C) Qualificação jurídica dos factos apurados
O recorrente foi condenado pela prática em autoria material, na forma consumada e em concurso real de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos arts.º 131º e 132º, nºs 1 e 2, alínea j) do Cód. Penal, agravado pelo art.º 86º, nº 3 do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, aprovado pela Lei nº 5/2006, de 23/02.
Vem o mesmo pôr em causa a qualificação jurídica dos factos apurados, considerando que a sua actuação não se enquadra na alínea j) do nº 2 do art.º 132º do Cód. Penal, porquanto:
- não resultou provada a manutenção da resolução criminosa por um período superior a 24 horas;
- o arguido tem anomalias psíquicas, de acordo com os Relatórios médicos e com o Relatório de Medicina legal juntos aos autos;
- o arguido tem que tomar medicação e deixou de a tomar bruscamente, apesar da sua necessidade para a toda a vida;
- o arguido e a vítima tinham quezílias devido a partilhas já há várias décadas, sendo estas objecto de diversos processos em Tribunal;
- a vítima encontrava-se no local a cumprir uma ordem judicial para realização de obras de acesso ao caminho para a casa do arguido, no âmbito desses mesmos processos de partilhas;
- o arguido revela fragilidade ao nível afectivo e emocional, não possuindo uma retaguarda familiar que constitua um suporte ou referência de apoio;
- o arguido é portador de anomalia psíquica, caracterizada por fases depressivas, devendo usar medicação durante toda a sua vida;
- o arguido acordou sobressaltado durante a madrugada do dia 29 de Fevereiro de 2024, alucinando com a presença da vítima a rondar a sua habitação com uma pistola;
- foi apenas naquela manhã, por volta das 8h15, que o arguido viu a vítima e neste seguimento vai buscar a sua caçadeira e se dirige ao local onde a vítima se encontrava;
- o arguido agiu sob o efeito do estado de espírito descontrolado, sem que naquele espaço de tempo tivesse a possibilidade duma reflexão serena sobre o seu propósito.
Conclui o recorrente que desta factualidade decorre que a sua conduta não se enquadra na previsão da al. j) do nº 2 do art.º 132º do Cód. Penal, mas apenas na do art.º 131º do mesmo diploma.
Importa atentar em que não se procedeu a qualquer alteração da matéria de facto fixada na decisão recorrida, pelo que é a tal matéria que teremos que nos ater e não à factualidade alegada pelo recorrente, mas sem suporte na factualidade dada como provada na decisão recorrida.
Assim sendo, impõe-se desde já concluir que a matéria de facto provada não permite configurar a existência de uma causa de exclusão da ilicitude do comportamento do arguido, nem que o mesmo tenha actuado com imputabilidade diminuída, falecendo, assim dois dos argumentos pelo mesmo apresentados.
O crime de homicídio simples vem previsto no art.º 131º do Cód. Penal pela seguinte forma:
“Quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de oito a dezasseis anos.” (sublinhado nosso)
O crime é qualificado nos termos previstos no art.º 132º, nº 1 e nº 2, alínea j) do mesmo diploma quando:
“1- Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos.
2- É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente: (…)
j) Agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas;(…)” (sublinhados nossos)
Quanto à caracterização do tipo legal do crime de homicídio, constatamos que o elemento objectivo do tipo consiste em matar outra pessoa e a acção típica traduz-se num acto que seja apto a causar a morte.
Já o elemento subjectivo é preenchido com qualquer uma das modalidades do dolo, directo, necessário ou eventual, previstas no art.º 14º do Cód. Penal.
O bem jurídico protegido pela incriminação é a vida humana, consumando-se o crime com a produção do resultado morte.
Da matéria de facto provada resulta que o arguido ao atingir a vítima com três tiros disparados com uma arma de fogo, provocando-lhe lesões físicas de tal modo graves que lhe causaram a morte, sabendo que a sua conduta era apta a provocar a morte da vítima e querendo fazê-lo, preencheu os elementos objectivos e subjectivos do crime de homicídio, este último na modalidade de dolo directo.
Posto isto, cumpre apreciar se estão verificadas as circunstâncias qualificativas do homicídio previstas na alínea j) do nº 2 do art.º 132º do Cód. Penal.
O art.º 132º do Cód. Penal qualifica o crime de homicídio em virtude do maior grau de culpa que considera existir sempre que a morte seja causada em circunstâncias que revelem uma especial censurabilidade ou perversidade do agente, enumerando, a título exemplificativo, algumas dessas circunstâncias, as quais não são de funcionamento automático, querendo com isto significar que uma vez verificadas, não se pode desde logo concluir pela especial censurabilidade ou perversidade do agente.
No nosso ordenamento jurídico o crime de homicídio qualificado não é um tipo legal autónomo, com elementos constitutivos específicos, constituindo antes uma forma agravada de homicídio, em que a morte é produzida em circunstâncias reveladoras de especial censurabilidade ou perversidade.
Quanto à caracterização do crime de homicídio qualificado, pode ver-se o expendido no Acórdão do STJ datado de 3/04/19, proferido no processo nº 38/17.9JAFAR.E1.S1, também relatado por Manuel Augusto de Matos, in www.dgsi.pt, em moldes que subscrevemos:
“(…) O artigo 132 do Código Penal define o tipo de crime de homicídio qualificado constituindo uma forma agravada de crime em relação em relação ao tipo do artigo 131 do mesmo diploma. Objectivamente o tipo de crime assenta nos mesmos factos dos que estão previstos no artigo 131 funcionando a qualificação assente na combinação de um critério de culpa com a técnica dos exemplos padrão.
O critério da qualificação está definido no nº 1 do artigo 132 e consiste em tirar a vida a outrem em circunstâncias que revelem uma especial censurabilidade ou perversidade. Algumas das circunstâncias que são susceptíveis de revelar especial censurabilidade, ou perversidade, estão enumeradas no nº 1 do mesmo normativo.
A qualificação do homicídio tem como fundamento a culpa agravada que o agente revela com a sua actuação sendo um tipo de culpa. Seguindo Roxin, por tipo de culpa entende-se aquele que, na descrição típica da conduta, contem elementos da culpa que integra factores relativos á actuação do agente que estão relacionados com a culpa mais grave ou mais atenuada. A culpa consiste no juízo de censura dirigido ao agente pelo facto deste ter actuado em desconformidade com a ordem jurídica quando podia, e devia, ter actuado em conformidade com esta, sendo uma desaprovação sobe a conduta do agente. O juízo de censura, ou desaprovação, é susceptível de se revelar maior ou menor sendo, por natureza, graduável e dependendo sempre das circunstâncias concretas em que o agente desenvolveu a sua conduta, traduzindo igualmente um juízo de exigibilidade determinado pela vinculação de cada um a conformar-se pela actuação de acordo com as regras estipuladas pela ordem jurídica superando as proibições impostas. Em suma, o agente actua culposamente quando realiza um facto ilícito podendo captar o efeito de chamada de atenção da norma na situação concreta em que desenvolveu a sua conduta e, possuindo uma capacidade suficiente de auto controlo, e poderia optar por uma alternativa de comportamento.
O especial tipo de culpa do homicídio qualificado é conformado através da especial censurabilidade ou perversidade do agente. Como refere Figueiredo Dias a lei pretende imputar especial censurabilidade àquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção ao nível da atitude do agente de formas de realização do acto especialmente desvaliosas e à especial perversidade aquelas em que o juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades do agente especialmente desvaliosas. Enumera o normativo em análise um catálogo dos exemplos padrão e o seu significado orientador como demonstrativo do especial tipo de culpa que está associado à qualificação ».
Como se consigna em recente acórdão deste Supremo Tribunal, de 20-09-2017, proferido no processo n.º 596/12.4JABRG.G2.S1 – 3. ª Secção, também relatado pelo ora relator, o homicídio qualificado constitui, como tem sido unanimemente apontado, um tipo especial de culpa agravada, evidenciado nas circunstâncias enunciadas no n.º 2, que têm carácter exemplificativo, aí se referenciando contributos da doutrina e da jurisprudência relativos à qualificação do crime.
Assim, segundo FIGUEIREDO DIAS, «a qualificação deriva da verificação de um tipo de culpa agravado, assente numa cláusula geral extensiva e descrito com recurso a conceitos indeterminados: a “especial censurabilidade ou perversidade” do agente referida no n.º 1; verificação indiciada por circunstâncias ou elementos, uns relativos ao facto, outros ao autor, exemplarmente elencados no n.º 2». E que «a verificação desses elementos, por um lado, não implica sem mais a realização do tipo de culpa e a consequente qualificação; por outro lado, a sua não verificação não impede que se verifiquem outros elementos substancialmente análogos (não deve recear-se o uso da palavra “análogos”!) aos descritos e que integrem o tipo de culpa qualificador», concluindo: «Deste modo devendo afirmar-se que o tipo de culpa supõe a realização dos elementos constitutivos do tipo orientador - o Leitbildtatbestand (…) – que resulta de uma imagem global do facto agravada correspondente ao especial conteúdo de culpa tido em conta no art. 132º- 2».
E a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem mantido uma interpretação do tipo do artigo 132.º do Código Penal como sendo baseado estritamente na culpa mais grave, revelada pelo agente, tendo como fundamento o facto do agente revelar especial censurabilidade ou perversidade no seu comportamento, sendo ainda entendimento uniforme deste Supremo Tribunal o de que as circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, os chamados exemplos-padrão, são meramente exemplificativas, não funcionando automaticamente e devem ser compreendidas enquanto elementos da culpa, como se dá nota no acórdão de 02-4-2008, proferido no processo n.º 07P4730, onde se referencia abundante jurisprudência sobre este tópico.
No que especialmente releva para o caso agora em apreço, cumpre insistir, quanto à cláusula geral do n.º 1 do artigo 132.º do Código Penal, que, subjacente à especial censurabilidade ou perversidade está um maior grau de culpa que o agente manifesta nas circunstâncias elencadas, o que motiva a agravação.
Como considera TERESA SERRA, «a ideia de censurabilidade constitui o conceito nuclear sobre o qual se funda a concepção normativa da culpa. Culpa é censurabilidade do facto ao agente, isto é, censura-se ao agente o ter podido determinar-se de acordo com a norma e não o ter feito.
No artigo 132.º, trata-se de uma censurabilidade especial, que existe quando “as circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores”.
A especial perversidade supõe «uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade».
Dominantemente, refere a autora, entende-se que só se pode decidir que a morte foi causada em circunstâncias que revelam especial censurabilidade ou perversidade do agente através de uma ponderação global das circunstâncias externas e internas presentes no facto concreto.
Para FIGUEIREDO DIAS, «[o] especial tipo de culpa do homicídio doloso é em definitivo conformado através da verificação da «especial censurabilidade ou perversidade» do agente.
O pensamento da lei é o de pretender imputar à “especial censurabilidade” aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas, e à “especial perversidade” aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas.
Segundo FERNANDO SILVA, a especial censurabilidade prende-se essencialmente com a atitude interna do agente, traduzida em conduta profundamente distante em relação a determinado quadro valorativo, afastando-se dum padrão normal. O grau de censura aumenta por haver na decisão do agente o vencer de factores que, em princípio, deveriam orientá-lo mais para se abster de actuar, as motivações que o agente revela, ou a forma como realiza o facto, apresentam, não apenas um profundo desrespeito por um normal padrão axiológico, vigente na sociedade, como ainda traduzem situações em que a exigência para não empreender a conduta se revela mais acentuada.
A especial perversidade representa um comportamento que traduz uma acentuada rejeição, por força dos sentimentos manifestados pelo agente que revela um egoísmo abominável. A decisão de matar assenta em pressupostos absolutamente inaceitáveis. O agente toma a decisão sob grande reprovação atendendo à personalidade manifestada no seu comportamento. O agente deixa-se motivar por factores completamente desproporcionais, aumentando a intolerância perante o seu facto.
Por fim, o entendimento de AUGUSTO SILVA DIAS segundo o qual «[h]á unanimidade na doutrina e jurisprudência nacionais em torno da ideia de que, em último termo, a qualificação do homicídio assenta num especial tipo de culpa: toda a punição por homicídio qualificado tem de passar pela comprovação da especial censurabilidade ou perversidade do agente (n.º 1) e isso exige uma ponderação final da atitude deste».(…)”
No presente recurso é posto em causa o preenchimento pelo arguido da circunstância qualificativa referida na alínea j) do nº 2 do art.º 132º do Cód. Penal, segundo a qual é susceptível de revelar especial censurabilidade ou perversidade a circunstância de o agente agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas.
Segundo Paulo Pinto de Albuquerque, in “ Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos ”, 5ª edição atualizada, UCP, pág. 580 e 581, o que está previsto nesta norma é a agravação do crime por premeditação, a qual revela uma atitude de elaboração mental e reflexão no propósito criminoso do agente, que merece uma censurabilidade acrescida da conduta, sendo indícios dessa atitude a frieza de ânimo, a reflexão sobre os meios empregados e a persistência na intenção de matar por mais de 24 horas.
No caso em apreço, entendemos que esta circunstância qualificativa do crime de homicídio se encontra efectivamente preenchida, porquanto se apurou que o arguido, antes de se dirigir ao local do crime, municiou a sua espingarda caçadeira … calibre 12 com pelo menos três cartuchos de calibre 12 e colocou roupas, bens pessoais e medicação no interior de um saco, antevendo a sua detenção.
Por outro lado, não foi feita prova de que o mesmo tivesse dormido mal e estivesse num estado de nervosismo exacerbado que lhe toldasse o raciocínio e as faculdades de inibição da prática de comportamentos criminosos.
Pese embora da factualidade apurada não decorra necessariamente que o arguido formulou o seu desígnio criminoso e persistiu na intenção de matar por mais de 24 horas, o certo é que toda a sua actuação revela, pelo menos, frieza de ânimo e reflexão sobre os meios empregados, o que é, por si só, suficiente para o preenchimento da circunstância qualificativa em apreço.
Entendemos também que o arguido agiu com especial censurabilidade ou perversidade, pois o facto de matar um sobrinho, que é um familiar chegado, com preparação antecipada dos meios para a prática do crime, motivado por razões de partilhas de terras e agindo na frente do filho da vítima e de um sobrinho que a vítima tratava como um filho, indicia uma maior energia criminosa, a qual fez com que o arguido tivesse vencido as contra-motivações éticas determinadas pelas relações de família e pelos padrões moralmente aceites na comunidade, actuando com especial persistência, intensidade e violência na prossecução do desígnio criminoso.
A zona do corpo atingida – peito e cabeça e nesta, os olhos da vítima -, revela uma crueldade e uma intenção clara de desfigurar a vítima, para além de a matar.
Dos vários tiros disparados pelo arguido, dois deles foram dados com a vítima já no chão, o que revela também uma vontade séria de matar.
A conduta do arguido posterior ao homicídio da vítima é, por sua vez, indiciadora de uma frieza de ânimo especialmente preversa, dado que foi para casa, ligou para a PSP e esperou que o fossem buscar, tendo preparado previamente uma mala com roupa, medicamentos e artigos pessoais, antevendo a sua detenção.
Tudo isto é subsumível no disposto no art.º 132º, nºs 1 e 2, alínea j) do Cód. Penal, porquanto do comportamento do arguido decorre que o mesmo se mostrou capaz de vencer as contra-motivações éticas inerentes à relação de parentesco que o ligava à vítima, formulou antecipadamente o desígnio de matar e disparou três tiros sobre a vítima, na frente de dois jovens, filho e sobrinho da mesma, em completo desrespeito e insensibilidade pela vida humana e revelando, efectivamente, especial censurabilidade e perversidade no prossecução do desígnio criminoso ( cf. neste sentido, entre outros, o decidido nos Acórdãos do STJ datados de 4/11/2015, proferido no processo nº 122/14.0GABNV.E1.S1, em que foi relator João Silva Miguel, e de 10/12/2020, proferido no processo nº 757/18.2JACBR.C1.S1, em que foi relator António Clemente Lima, in www.dgsi.pt ).
A isto acresce a agravação da conduta do arguido por via do disposto no art.º 86º, nº 3 do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, aprovado pela Lei nº 5/2006, de 23/02, que o mesmo não contestou.
Conclui-se, assim, que não merece censura o enquadramento jurídico-penal dos factos efectuado no acórdão recorrido, devendo o recurso improceder também nesta parte.
D) Medida da pena
O arguido veio também impugnar a pena concreta que lhe foi aplicada, de 23 anos de prisão, por a considerar desadequada e excessiva, defendendo que lhe devia ter sido aplicada uma pena de prisão inferior, porquanto:
- tem 67 anos de idade;
- durante toda a sua vida, foi uma pessoa trabalhadora, tendo imigrado para a …;
- nunca teve qualquer contacto com a justiça, não tendo registo criminal;
- encontra-se socialmente integrado, embora seja uma pessoa recatada, fazendo a sua vida em liberdade dentro da sua habitação, apenas tendo alguns convívios semanais;
- em meio institucional tem revelado condutas adequadas, revelando uma personalidade que não refuta a normatividade vigente;
- sofre de uma anomalía psíquica grave, tendo tido alguns traumatismos cranianos, derivados de acidentes na … e sendo acompanhado em psiquiatria desde os anos 90.
Conclui que todos estes factores deveriam ter sido tomados em conta para a determinação da pena concreta, denotando que os factos foram um infeliz acontecimento isolado na vida do agente, sendo que uma pena tão longa, de 23 anos, perto do limite máximo permitido por lei, não permite de forma alguma alcançar a finalidade das penas no seu efeito de reintegração do agente da sociedade.
Mais uma vez aqui se impõe reforçar que não foi feita qualquer alteração à matéria de facto fixada na decisão recorrida.
Quanto à determinação da medida da pena, esta deve ser apurada em função dos critérios enunciados no art.º 71º do Cód. Penal, que são os seguintes: “ Artigo 71.º - Determinação da medida da pena
1 - A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
2 - Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
3 - Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena.”
Estes critérios devem ser relacionados com os fins das penas previstos no art.º 40º do mesmo diploma, onde se estabelece no seu nº 1 que: “A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”, e no seu nº 2 que: “Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”. As finalidades da punição e a determinação em concreto da pena, nas circunstâncias e segundo os critérios previstos no art.º 71º do Cód. Penal, têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena. Tais elementos e critérios contribuem não só para determinar a medida da pena adequada à finalidade de prevenção geral, consoante a natureza e o grau de ilicitude do facto tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação de valores, como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial, em função das circunstâncias pessoais do agente, idade, confissão e arrependimento e permitem também apreciar e avaliar a culpa do agente. Em síntese, pode dizer-se que toda a pena que responda adequadamente às exigências preventivas e não exceda a medida da culpa é uma pena justa (cf. Figueiredo Dias, in “ Direito Penal, Parte Geral “, Tomo I, 3ª Edição, 2019, Gestlegal, pág. 96). Na mesma linha, Anabela Miranda Rodrigues, no seu texto “ O modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, nº 2, Abril-Junho de 2002, págs. 181 e 182), apresenta as seguintes proposições que devem ser observadas na escolha da pena: «Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas.» Para Figueiredo Dias, in “ Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, edição de 1993, § 280, pág. 214 e nas Lições ao 5.º ano da Faculdade de Direito de Coimbra, 1998, págs. 279 e seguintes: «Culpa e prevenção são os dois termos do binómio com auxílio do qual há-de ser construído o modelo da medida da pena (em sentido estrito, ou de «determinação concreta da pena»). As finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade. A pena, por outro lado, não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa.
Assim, pois, primordial e essencialmente, a medida da pena há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto e referida ao momento da sua aplicação, protecção que assume um significado prospectivo que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção (ou mesmo no reforço) da validade da norma infringida. Um significado, deste modo, que por inteiro se cobre com a ideia da prevenção geral positiva ou de integração que vimos decorrer precipuamente do princípio político-criminal básico da necessidade da pena».
No entanto, do que se trata agora é de sindicar as operações feitas pelo Tribunal a quo com essa finalidade. Ainda segundo Figueiredo Dias, in “ Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, edição de 1993, págs. 196/7, § 255, é susceptível de revista a correcção do procedimento ou das operações de determinação da medida concreta da pena, bem como o desconhecimento ou a errónea aplicação pelo tribunal a quo dos princípios gerais de determinação da pena, a falta de indicação de factores relevantes para aquela ou a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis. Defende ainda que está plenamente sujeita a revista a questão do limite ou da moldura da culpa, assim como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção e a determinação do quantum exacto de pena, o qual será controlável no caso de violação das regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada.
Importa, assim, ter em conta que só em caso de desproporcionalidade manifesta na fixação da pena ou de necessidade de correcção dos critérios da sua determinação, atenta a culpa e as circunstâncias do caso concreto, é que o Tribunal de 2ª Instância deve alterar a espécie e o quantum da pena, pois, mostrando-se respeitados todos os princípios e normas legais aplicáveis e respeitado o limite da culpa, não há nada que corrigir.
Neste sentido decidiu o Acórdão do TRL de 11/12/19, proferido no processo nº 4695/15.2T9PRT.L1-9, em que foi relator Abrunhosa de Carvalho, in www.dgsi.pt, onde se pode ler que: “ A intervenção dos tribunais de 2ª instância na apreciação das penas fixadas, ou mantidas, pela 1ª instância deve ser parcimoniosa e cingir-se à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, à questão do limite da moldura da culpa, bem como a situação económica do agente, mas já não deve sindicar a determinação, dentro daqueles parâmetros da medida concreta da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, a desproporção da quantificação efectuada, ou o afastamento relevante das medidas das penas que vêm sendo fixadas pelos tribunais de recurso para casos similares.”
Também no mesmo sentido se pronunciou José Souto de Moura, in “ A Jurisprudência do S.T.J. sobre Fundamentação e Critérios da Escolha e Medida da Pena”, 26 de Abril de 2010, consultável em www.dgsi.pt, onde defende que: “ Sempre que o procedimento adoptado se tenha mostrado correcto, se tenham eleito os factores que se deviam ter em conta para quantificar a pena, a ponderação do grau de culpa que o arguido pode suportar tenha sido feita, e a apreciação das necessidades de prevenção reclamadas pelo caso não mereçam reparos, sempre que nada disto seja objecto de crítica, então o “quantum” concreto de pena já escolhido deve manter-se intocado.”
Voltando ao caso dos autos, o acórdão recorrido, fundamentou a aplicação da pena em apreço pela seguinte forma:
“(…) Como já acima se deixou expresso, à prática do crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelo artigo 131.º e 132.º, n.º 1 e 2 alínea j), do Código Penal, agravado pelo artigo 86.º, n.º 3, do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, corresponde uma pena de prisão entre 16 anos e 25 anos.
As necessidades de prevenção geral demandadas pelo crime estão, intrinsecamente, ligadas ao facto de ser um crime que atenta contra o bem supremo, assim como pela prevalência com que tais crimes são praticados em consequência de desavenças familiares.
As necessidades de prevenção especial encontram-se num patamar diminuído relativamente às expendidas acima, designadamente por ao Arguido não lhe ser detetada uma personalidade especialmente violenta, sem exibir qualquer averbamento no certificado do registo criminal.
Importa ponderar, outrossim, (i) o grau de ilicitude dos factos só pode ser reputado de muito elevado, visto o modo de perpetração do crime: AA desloca-se ao local com o propósito de tirar a vida ao seu sobrinho e a sua ação não é refreada pela presença do filho e do sobrinho no local. Mais, empreende os disparos numa clara equivalência com o ato da caça, isto é, um primeiro tiro a uma distância de segurança e dois outros em linear ato de execução; (ii) a intensidade dos respetivos elementos subjetivos, cumprindo salientar as circunstâncias já referenciadas quanto ao dolo direto; (iii) os sentimentos manifestados no cometimento dos crimes e os fins ou motivos determinantes devem ser devidamente valorados, assumindo aqui relevância, e não havendo pejo em afirmá-lo, a frieza demonstrada quanto à projeção da vítima enquanto mero objeto, plenamente patente quando o único remorso evidenciado no final é autocentrado no afastamento dos netos provocado pela prisão. Por outro lado, cabe atentar na justificação que o Arguido procura encontrar nas desavenças familiares perfeitamente espúrias e irrelevantes; (iv) as condições pessoais do Arguido é de evidente estabilidade pessoal; (v) a conduta anterior e posterior revela traços de personalidade adequados à vivência em sociedade, pese embora a dificuldade da gestão emocional quanto a aspetos que frustrem as suas expectativas.
Tudo visto e ponderado, afigura-se justo, adequado e razoável, em face da personalidade, da culpa do arguido AA e bem assim das invocadas razões de natureza preventiva, porque só a estas finalidades deve o julgador recorrer em sede de escolha e preferência por uma ou outra pena, fixar a pena em 23 anos de prisão, estando assim situada no último terço, como deve, mas abaixo do máximo legal, vistas as condições pessoais do Arguido, sopesada igualmente a sua idade, daqui se inferindo que foi pautando a sua vida de acordo com o dever ser jurídico. (…)” Analisada a decisão recorrida, verifica-se que o Tribunal a quo aplicou correctamente os princípios gerais de determinação da medida da pena, não ultrapassou os limites da moldura da culpa do agente e teve em conta os fins das penas nos quadros da prevenção geral e especial.
No crime de homicídio são muito intensas as exigências de defesa do ordenamento jurídico e da paz social, dada a extrema sensibilidade da comunidade em relação aos mesmos e a premente necessidade de os prevenir, uma vez que o bem jurídico tutelado pela norma incriminadora é, de entre todos, o mais elevado, ou seja, a vida.
Com efeito, a criminalidade especialmente violenta, em que se integra o crime de homicídio, assume uma preocupação comunitária crescente, pelo que são muito prementes as necessidades de prevenir a prática deste tipo de crimes, a fim de reforçar a confiança da colectividade na lei e de garantir a tranquilidade e a segurança do respeito pela vida humana, sobretudo em situações relacionadas com quezílias familiares e de vizinhança ou em que são utilizadas armas de fogo, como a dos autos.
No presente caso é também elevado o grau de ilicitude da actuação do recorrente, revelado, desde logo, pelo modo de execução do crime, tendo o arguido agido também com dolo directo.
O recorrente não tem antecedentes criminais, elemento que foi positivamente ponderado no acórdão da 1ª instância, não obstante tal circunstância seja quase sempre a regra em crimes de homicídio.
Apesar da objecção do recorrente, o Tribunal a quo ponderou todas as suas circunstâncias de vida.
De acordo com a matéria de facto provada, inexistem no percurso vivencial do arguido situações reveladoras de comportamento agressivo ou violento, sendo a situação aqui em causa inédita em face do seu comportamento dominante.
No entanto, pese embora a violência e a intensidade da conduta criminosa do arguido, este não demonstrou qualquer arrependimento, nem compaixão pela vítima, nem pelos seus familiares, em especial os que presenciaram o crime.
Nestes termos, salientando-se as exigências de prevenção geral que aqui se fazem sentir, tendo presente todo o percurso de vida do arguido, consideramos que se mostra justificada a pena de 23 anos de prisão que lhe foi aplicada, a qual satisfaz adequadamente as exigências de prevenção geral e, não obstante ser uma pena elevada, é ainda consentida pela culpa do agente.
Em face de tudo o exposto, considera-se não ser de alterar a pena concretamente aplicada nos autos, improcedendo também neste tocante o recurso.
E) Impugnação do quantum indemnizatório relativo aos danos não patrimoniais
Em consequência da prática do crime foi ainda o arguido condenado:
- a pagar a BB, CC e EE a quota parte que a cada um cabe da quantia de 80.000,00€, a título de dano pela perda do direito à vida, no pagamento das quantias de 25.000,00€, 40.000,00€ e 20.000,00€, respectivamente, a título de danos não patrimoniais, e no pagamento da quantia de 2.000,00€, a título de danos patrimoniais, acrescidas de juros de mora, às taxas legais, contados desde a data da notificação do pedido cível e da data trânsito em julgado da decisão, respetivamente, tudo até efetivo e integral pagamento;
- a pagar a EE a quantia de 4.000,00€, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, às taxas legais, contados desde a data trânsito em julgado da decisão até efetivo e integral pagamento.
Entende o recorrente que estes valores de indemnização são excessivos, devendo os demandantes BB e CC ser indemnizados por valores globais entre os 10 e os 20 mil euros, neles se incluindo indemnização pelo dano morte e por danos não patrimoniais próprios, não devendo o demandante DD receber qualquer indemnização, por não haver prova de que o mesmo tenha sofrido qualquer dano não patrimonial em consequência das condutas do arguido, e devendo o demandante EE receber apenas 2 mil euros de indemnização, por não ter sofrido qualquer ofensa perpetrada pelo arguido.
Relativamente aos montantes indemnizatórios em causa nos autos decidiu o Tribunal recorrido que:
“(…) EE deduziu pedido de indemnização civil contra AA, no qual reclama uma indemnização de 4.000,00€, seja pelos danos não patrimoniais atinentes à ofensa de que foi vítima, seja por iguais danos resultantes do evento traumatizante a que assistiu em consequência da morte do seu tio FF. BB, CC e DD, cônjuge e filhos do decesso FF, deduziram pedido de indemnização civil, impetrando pelo pagamento de uma quantia total de 224.220,00€, pelos danos patrimoniais sofridos, nestes se contando 34.220,00€ devidos à cessação abrupta do contrato de arrendamento na …, país onde a vítima trabalhava e residia, assim como a doação forçada do veículo automóvel e algum do mobiliário existente, acarretando o transporte do restante (não doado) um custo de 2.000,00€, e danos não patrimoniais, aqui se computando a perda do direito à vida, avaliado em 80.000,00€ e danos não patrimoniais sofridos por cada um dos familiares demandantes, avaliados em 40.000,00€ para BB e CC e em 30.000,00€ para DD.
O instituto da responsabilidade civil no ordenamento jurídico português tem as suas coordenadas definidas pela norma plasmada no artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil, postulando que aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.
A maioria da doutrina divide os pressupostos da responsabilidade civil do seguinte modo: (i) facto (controlável pela vontade do homem); (ii) ilicitude; (iii) imputação do facto ao lesante; (iv) dano; (v) nexo de causalidade entre o facto e o dano – conferir ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, Volume II, Tomo III, Almedina, p. 285.
A culpa desenha-se no nosso ordenamento jurídico sobre a conduta do agente, tendo como contraponto comparativo a figura do bonus pater familiae, em face das circunstâncias concretas da situação (conferir artigo 487.º, n.º 2, do Código Civil).
O princípio a observar no direito civil, em sede indemnizatória, é o que se encontra espelhado no artigo 562.º, do Código Civil, impondo-se que quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, caso não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação, ou quando tal não seja viável, deve a indemnização ser fixada em dinheiro, por recurso à teoria da diferença (entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos), nos termos do disposto no artigo 566.º, n.º 1 e 2, do mesmo Código.
No tocante aos danos não patrimoniais, prevê o artigo 496.º, do Código Civil: “Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.”.
Antunes Varela e Pires de Lima – conferir Código Civil Anotado, Volume I, Coimbra Editora 1987, p. 499 – referem, de forma impressiva e elucidativa, que “a gravidade do dano há de medir-se por um padrão objetivo (conquanto a apreciação deva ter em linha de conta as circunstâncias de cada caso), e não à luz de fatores subjetivos (de uma sensibilidade particularmente embotada ou especialmente requintada)”.
No caso sub judicio, avulta que todos os Demandantes sofreram danos diretamente resultantes da conduta do Arguido.
No que respeita aos danos emergentes da atuação do arguido, dispõe o artigo 495.º, do Código Civil que: “1. No caso de lesão de que proveio a morte, é o responsável obrigado a indemnizar as despesas feitas para salvar o lesado e todas as demais, sem excetuar as do funeral. 2. Neste caso, como em todos os outros de lesão corporal, têm direito a indemnização aqueles que socorreram o lesado, bem como os estabelecimentos hospitalares, médicos ou outras pessoas ou entidades que tenham contribuído para o tratamento ou assistência da vítima. 3. Têm igualmente direito a indemnização os que podiam exigir alimentos ao lesado ou aqueles a quem o lesado os prestava no cumprimento de uma obrigação natural.”.
Por seu turno, o artigo 496.º, do Código Civil dispõe que: “1. Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. 2 - Por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem. 3 - Se a vítima vivia em união de facto, o direito de indemnização previsto no número anterior cabe, em primeiro lugar, em conjunto, à pessoa que vivia com ela e aos filhos ou outros descendentes. 4 - O montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º; no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos dos números anteriores.”.
Em caso de morte, tal como se encontra consolidado na jurisprudência, podem ser atendidos, o dano perda do direito à vida, o dano sofrido pela vítima no lapso temporal que antecedeu o seu falecimento e os danos próprios sofridos pelos familiares. Nos termos do artigo 496.º, n.º 2, do Código Civil, a indemnização pelo dano morte (a que pode ainda adicionar-se a indemnização pelos danos sofridos pela vítima antes de falecer) é concedida conjuntamente e de forma sucessiva aos grupos de familiares aí identificados.
Desde já se refira que não foi formulado qualquer pedido quanto ao sofrimento da vítima antes do falecimento, pelo que nada cumpre dizer a respeito.
Quanto ao dano morte, importa salientar que a orientação seguida pelos tribunais superiores (conferir acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, datados de 03.03.2021 e de 23.11.2022, ECLI:PT:STJ:2021:3710.18.2T8FAR.E1.S1.97 e ECLI:PT:STJ:2022:8340.18.6T9PRT.P1.S1.DD, relatora: MARIA DO ROSÁRIO MORGADO e TERESA ALMEIDA, disponíveis eletronicamente) impele à consideração de valores que oscilam até um máximo relativo de 80.000,00€.
Ora, relevando a idade da vítima, a esperança média de vida, bem como a legítima expectativa de assistir ao crescimento dos seus filhos, não esquecendo a forma abrupta e violenta como a vida foi interrompida, afigura-se ajustado e proporcional fixar a indemnização num valor de 80.000,00€, a atender nos termos do disposto no artigo 496.º, n.º 2 e 3, do Código Civil.
No que tange aos danos não patrimoniais sofridos pelo cônjuge e filhos, importa enunciar os elementos factuais relevantes: FF tinha à data da morte 46 anos de idade, exercia a profissão de manobrador de máquinas numa empresa … há 17 anos e gozava de boa saúde. Estava casado com BB há 22 anos, casamento que se pautava por uma boa vivência. Tinha dois filhos, o CC, de 21 anos de idade, e o DD, com 19 anos. BB, em virtude dos factos, ficou num estado depressivo e sorumbático, sem vontade de trabalhar, de falar com outras pessoas, chorando muitas vezes sozinha em virtude da perda da pessoa que amou toda a vida, sofrendo de forma muito intensa. CC e DD tinham uma relação muito estreita e intensa com o pai, com quem privavam de forma contínua e reiterada. Ao perderem o seu pai, ficaram ambos muito abalados, tristes, nervosos e ansiosos. Têm dificuldade em dormir de noite e acordam muitas vezes extremamente ansiosos e chorosos. CC, em especial, assistiu à morte do pai, viu a sua agonia, sendo estas imagens que perduram na sua mente e que jamais esquecerá, com as inerentes consequências.
Os demandantes sofreram danos de natureza não patrimonial, os quais estão devidamente enunciados nos factos provados, danos esses, intuídos da factualidade de modo claro, inequívoco e manifesto, e revelam uma gravidade sensível que deverá merecer a tutela do direito, implicando uma compensatio doloris, que o Tribunal (conferir acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, datados de 03.03.2021 e de 23.11.2022, ECLI:PT:STJ:2021:3710.18.2T8FAR.E1.S1.97 e ECLI:PT:STJ:2022:8340.18.6T9PRT.P1.S1.DD, relatora: MARIA DO ROSÁRIO MORGADO e TERESA ALMEIDA, disponíveis eletronicamente) fixa em 25.000,00€ para BB, em 40.000,00€ para CC e em 20.000,00€ para DD.
A estas verbas, acrescem os danos patrimoniais resultantes do transporte dos bens pessoais de FF para Portugal, tendo o seu custo de transporte ascendido a 2.000,00€, quantia que haverá de ser ressarcida aos Demandantes por AA.
A par dos danos sofridos pelos demandantes BB, CC e DD, também a EE, o qual tinha uma relação muito próxima com o seu tio FF, que estava no local e presenciou a sua morte, representando tal imagem um trauma inapagável da sua memória, é devida indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos, não advindos da morte do familiar, mas antes pela presença do episódio que levou à morte do tio, havendo a mesma de fixar-se na quantia de 4.000,00€, tal como peticionada.
A estas quantias deve acrescer os respetivos juros de mora às respetivas taxas legais, tal como peticionado, nos termos do disposto no artigo 559.º, do Código Civil, contados desde a data da notificação do pedido cível quanto aos danos patrimoniais e do trânsito em julgado da decisão quanto aos danos não patrimoniais – conferir acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2002, de 9 de maio, a que aderimos, porquanto a presente decisão é “atualizadora”, isto é, tem em conta o momento presente.(…)”
Face ao decidido, vejamos se assiste razão ao recorrente, no que concerne aos montantes indemnizatórios a título de danos não patrimoniais fixados pelo Tribunal recorrido.
De acordo com o disposto no art.º 129º do Cód. Penal, a indemnização de perdas e danos emergentes de um crime é regulada pela lei civil.
Quanto à responsabilidade civil por factos ilícitos, dispõem os arts.º 483º, nº 1, 486º e 563º do Cód. Civil que tem a mesma os seguintes pressupostos:
a) o facto ilícito, enquanto acção voluntária, ou omissão, violadora de bens jurídicos patrimoniais ou pessoais de terceiros;
b) o nexo de imputação do facto ao lesante;
c) a existência de um dano ou prejuízo causado pelo facto ilícito;
d) o nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela vítima.
Segundo o disposto no art.º 496º, nº 1 do mesmo diploma, na fixação da indemnização por danos não patrimoniais deve-se atender aos danos que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
Ainda segundo o previsto no art.º 562º do Cód. Civil, a obrigação de indemnizar tem em vista a reconstituição da situação que existiria na esfera patrimonial do lesado se não tivesse ocorrido o facto causador da lesão.
A indemnização por danos morais, visando uma compensação do lesado pelo sofrimento, é fixada segundo critérios de equidade, nos termos previstos nos arts.º 496º, nº 4 e 566º, nº 3 do Cód. Civil, e actualizada ao momento do julgamento ( cf., neste sentido, Ac. STJ de 14/3/91, in BMJ 405, pág. 443 ).
Importa, no entanto, determinar quais são os danos não patrimoniais indemnizáveis.
Conforme é hoje unanimemente entendido, a gravidade do dano não patrimonial mede-se por um padrão objetivo, consoante as circunstâncias do caso concreto, devendo ser afastados fatores suscetíveis de traduzir uma sensibilidade exacerbada ou requintada do lesado (cf., neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, Vol. I, 4ª Edição, Coimbra Editora, 1987, pág. 499, nota 1).
O dano indemnizável deve ser assim um dano de tal modo grave que mereça a tutela do direito e justifique a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado, não relevando para efeitos de indemnização os simples incómodos ou contrariedades (cf., neste sentido, Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, vol. I, 6ª edição, pág. 576).
A gravidade do dano deve, pois, aferir-se com recurso a critérios objectivos, como sejam a dignidade e o valor intrínseco do bem ou interesse jurídico violado.
Não é, no entanto, possível estabelecer um paralelismo absoluto entre a gravidade do dano e a dignidade do bem jurídico violado, havendo outros factores que podem conferir gravidade ao dano, como por exemplo a intensidade da lesão, quer em termos temporais, quer em termos de afectação do bem ou interesse em causa, e a censurabilidade da conduta do agente, apta a justificar a qualificação como grave de um dano que pelos critérios da dignidade e da intensidade poderia ficar sem protecção.
Na determinação dos danos não patrimoniais indemnizáveis cabem ainda os decorrentes de uma especial sensibilidade do lesado, como sejam a doença, a idade e a maior vulnerabilidade ou fragilidade emocionais.
Não são, no entanto, atendíveis os meros incómodos e as pequenas contrariedades, que na perspectiva do lesado mereceriam a tutela do direito, mas que não passam no crivo de uma avaliação objectiva ou de mero bom senso.
Quanto à definição de quais sejam os danos não patrimoniais indemnizáveis, destaca-se o dano moral em sentido próprio ou subjectivo, ou seja, a humilhação, a angústia, a vergonha e a ansiedade, nele se incluindo também a própria dor, que no direito português abrange quer a dor física, quer o sofrimento moral.
É ainda possível a ofensa de bens de carácter imaterial, desprovidos de conteúdo económico e insuscetíveis de avaliação pecuniária, como sejam a integridade física, a saúde, a correcção estética, a liberdade, a honra ou a reputação.
A ofensa objectiva destes bens tem, em regra, um reflexo subjectivo na vítima, traduzido na dor ou sofrimento, de natureza física ou moral ( cf. neste sentido, Galvão Telles, in “Direito das Obrigações”, 6ª Edição, Coimbra Editora, 1989, pág. 375).
Também Antunes Varela identifica os danos não patrimoniais com os prejuízos, como as dores físicas, os desgosto morais, os vexames, a perda de prestígio ou de reputação e os complexos de ordem estética, que não são susceptíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens como a saúde, o bem-estar, a liberdade, a beleza, a perfeição física, a honra ou o bom nome, pelo que não integram o património do lesado e apenas podem ser compensados pecuniariamente (in “Das Obrigações em Geral, Vol. I, 6ª edição, Almedina, 2003, pág. 571 e seguintes).
Na senda da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, tem-se vindo também a autonomizar do dano moral em sentido estrito, o dano não patrimonial derivado da lesão da dignidade humana, decorrendo esta autonomização do reconhecimento de que os actos atentatórias da dignidade humana provocam angústia, amargura e desespero ( cf. neste sentido “Danos Não Patrimoniais”, in Comemorações dos 35 Anos do Código Civil e dos 25 Anos da Reforma de 1977, FDUC, Vol. III, Direito das Obrigações, 2007, págs. 505 a 512). No entanto, como sustenta Vaz Serra, in BMJ, vol. 83º, pág. 85: “ (…) a satisfação ou compensação dos danos morais não é uma verdadeira indemnização no sentido equivalente do dano, isto é, de um valor que reponha as coisas no seu estado anterior à lesão; trata-se de dar ao lesado uma satisfação ou compensação do dano sofrido, uma vez que este, sendo apenas moral, não é susceptível de avaliação”.
Assim sendo, uma vez que o ressarcimento dos danos não patrimoniais deriva da violação de direitos fundamentais, deve-se abandonar um critério miserabilista no que respeita à fixação dos respetivos montantes indemnizatórios. Uma vez que não existe a possibilidade de quantificar os danos morais, a sua ressarcibilidade tem que ser feita com recurso à equidade, ou seja, através de um critério de razoabilidade, ditado pelo bom senso. Face aos danos de natureza não patrimonial em apreço há que ter em conta que a indemnização deve ser significativa de modo a representar uma efetiva compensação pelos prejuízos sofridos, mas sem implicar um enriquecimento injustificado do lesado à custa do lesante.
No caso particular do dano morte, reconhece-se que assume particular dificuldade a quantificação da perda do direito à vida, por estar em causa a supressão de um bem único e irrepetível, que é a vida humana, o que explica a verificação de algumas disparidades na determinação do respectivo quantum indemnizatório pelos Tribunais.
Importa, no entanto, atentar em que a vida é o bem supremo de cada pessoa, não devendo a sua perda ser indemnizada em termos miserabilistas.
Em face disto, tem-se entendido na jurisprudência que a indemnização pela perda da vida humana nunca poderá ser fixada abaixo do preço normal de um veículo automóvel de gama média/alta.
No caso dos autos não foi posto em causa pelo recorrente o preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos, previstos nos arts.º 483º, nº 1, 486º e 563º do Cód. Civil, não havendo qualquer reparo a fazer à decisão recorrida na abordagem que fez desta questão, que se considera correcta.
Quanto aos montantes indemnizatórios, verifica-se que a indemnização pela perda da vida da vítima fixada em € 80.000,00, está perfeitamente justificada e consentânea com a mais recente orientação jurisprudencial relativa a esta matéria, tendo em conta a idade da vítima à data da morte e a esperança média de vida actual para indivíduos do sexo masculino.
Quanto aos beneficiários desta indemnização, diz-nos o art.º 496º, nº 2 do Cód. Civil que os mesmos são o cônjuge não separado de pessoas e bens e os filhos ou outros descendentes, pelo que nada há a apontar também a este respeito à decisão recorrida quando considerou como beneficiários deste segmento da indemnização a viúva e ambos os filhos da vítima.
Diferentes do dano morte são os danos não patrimoniais sofridos pela viúva e por cada um dos filhos da vítima em resultado da morte desta, que são danos autónomos daquele e se traduzem no trauma, desgosto, desespero, depressão, angústia, desanimo, desalento e em todos os outros sentimentos decorrentes da privação da vida de um ente tão querido como é um pai e um marido, com quem se partilha a vida diária.
Em face da factualidade apurada, consideram-se perfeitamente ajustados e não excessivos os montantes indemnizatórios atribuídos pelo Tribunal recorrido, a este título, a BB, CC e DD, nos valores de 25.000,00€, 40.000,00€ e 20.000,00€, respectivamente.
Importa referir que também se considera plenamente justificada a condenação do arguido no pagamento de uma quantia de valor superior a CC, porquanto este assistiu à agonia e à morte do seu pai, nas circunstâncias traumáticas apuradas nos autos, tendo ainda, em vão, tentado socorrê-lo.
Não tem qualquer razão o recorrente ao defender que DD não tem direito a receber uma indemnização pela morte do seu pai, por não ter assistido à mesma e por não ter sido ouvido em julgamento, porquanto da factualidade apurada resulta que ambos os filhos da vítima sofreram danos não patrimoniais decorrentes da morte desta, que merecem ser indemnizados, pois:
- tinham uma relação muito estreita e intensa com o pai, com quem privavam de forma contínua e reiterada;
- ao perderem o seu pai de forma violenta e brutal em idade ainda muito jovem, com 21 e 19 anos, respetivamente, ficaram ambos muito abalados, tristes, nervosos e ansiosos;
- nos meses seguintes ao falecimento do pai, não dormiam de noite, acordando muitas vezes extremamente ansiosos e chorosos;
- ainda hoje, choram quando falam do pai ou quando o recordam.
Quanto a EE apurou-se que tinha uma relação muito próxima com FF, vendo o seu tio como um pai, por quem nutria sentimentos de afeto idênticos, vivia na casa do tio, juntamente com a tia e os primos, tendo a morte do tio lhe causado muito nervosismo, tristeza e instabilidade emocional, porque as imagens dos factos estão sempre muito presentes na sua memória.
Em face desta factualidade não há qualquer reparo a fazer ao montante indemnizatório atribuído na decisão recorrida a este demandante, sendo o mesmo igualmente de manter, porquanto os danos que sofreu em consequência da conduta do arguido são graves, merecem a tutela do direito e o montante arbitrado não está desajustado face aos danos apurados, havendo ainda que ter presente que este jovem também assistiu à morte da vítima, sem nada conseguir fazer para a tentar salvar.
Constata-se, assim, que os danos morais sofridos por todos os demandantes em resultado da conduta do recorrente, tendo em conta a sua duração e intensidade, são de tal modo graves que merecem, efectivamente, a tutela do direito, impondo-se atribuir-lhes uma indemnização compensatória pelo sofrimento dos mesmos nos exactos moldes em que o Tribunal recorrido o fez. No caso concreto, face a tudo quanto antecede, à luz da equidade, consideram-se as quantias atribuídas pelo Tribunal recorrido como justas, adequadas e proporcionais, mostrando-se perfeitamente consentâneas com os valores atribuídos e os critérios seguidos pela jurisprudência dos nossos Tribunais superiores em casos que com este têm alguma similitude, sendo, por isso, de manter.
Por todo o exposto, impõe-se julgar totalmente improcedente o recurso e confirmar a decisão recorrida.
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4. DECISÃO:
Pelo exposto, acordam os Juízes que integram esta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente o recurso interposto por AA e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC´s.
Évora, 25 de Junho de 2025
(texto elaborado em suporte informático e integralmente revisto pela relatora)
Carla Francisco
(Relatora)
Jorge Antunes
Laura Goulart Maurício
(Adjuntos)
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TRE
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https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/f497a53385da64ee80258cf80039c925?OpenDocument
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1,758,585,600,000
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NÃO PROVIDO
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140/25.3T8MFR-A.L1-5
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140/25.3T8MFR-A.L1-5
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RUI COELHO
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Sumário:
I – A Lei de Saúde Mental visa permitir a sujeição do doente a um tratamento involuntário, ou seja, contra a sua vontade manifesta.
II - A actual lei consagra o direito de participação do requerido na sessão conjunta, presencialmente ou por meio de equipamento tecnológico. Diferente era o preceito na anterior lei anterior pelo que se mostra manifesta a vontade do legislador de tornar igualmente válida a regra da audição à distância.
III – Conclui-se que a lei actual estabelece um direito especial da pessoa com necessidade de cuidados de saúde mental, no âmbito do processo de tratamento involuntário: o direito de participar em todos os atos processuais que diretamente lhe digam respeito seja presencialmente seja por meio de equipamento tecnológico à distância.
IV – A recusa de sujeição a tratamentos médicos, acompanhada por automedicação, relacionadas com ideação delirante; negligência no autocuidado em termos de alimentação e saúde e ausência de crítica para a doença com recusa de tratamento proposto; são elementos fácticos que traduzem o concreto perigo que o Recorrente representa para si mesmo.
V - É à data da prolação da decisão que terão de verificar-se os pressupostos que justificam a aplicação de alguma medida, nada importando os eventos passados caso na atualidade não continue a manter-se o quadro justificativo invocado.
VI - Há que aferir da necessidade de internamento, pois este apenas pode ser determinado se não for viável prosseguir os fins do processo com uma intervenção ambulatória.
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[
"LEI DE SAÚDE MENTAL",
"TRATAMENTO INVOLUNTÁRIO",
"PRESSUPOSTOS",
"PARTICIPAÇÃO DO REQUERIDO"
] |
Acordam os Juízes Desembargadores da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
RELATÓRIO
No Juízo Local Criminal de Mafra do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:
«Por todo o exposto, julga-se estarem preenchidos todos os pressupostos legais para o tratamento involuntário de AA, em regime de internamento, determinando-se a sua manutenção, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 20.º, n.º 1, 4, 5 e 7, 21.º, n.º 1 e 2, 22.º, n.º 1, 2 e 3 e 23.º, n.º 1 e 33.º, todos da Lei de Saúde Mental.
Sem prejuízo das alterações de facto que, entretanto, possam ocorrer, a próxima revisão deverá ter lugar nos termos do artigo 25.º, n.º 2, da Lei de Saúde Mental, ou seja, decorridos dois meses sobre o início do tratamento ou sobre a decisão que tiver mantido o tratamento involuntário e, portanto, até ao dia .../.../2025. (…)»
- do recurso -
Inconformado, recorreu o Requerido formulando as seguintes conclusões (resumidas ao que respeita ao caso concreto):
«
(…)
p) Ora, em face do que fica exposto e do conteúdo dos relatórios de avaliação clínico-psiquiátrica aceita-se a patologia constante na sentença recorrida;
q) Atento o valor probatório pré-estabelecido nos termos supra explanados;
r) Mas não se aceita, nem se conforma o Internando/Recorrente que constitua um perigo para si ou para os outros, seja na vertente pessoal ou patrimonial,
s) Não se aceita igualmente que o internamento compulsivo fosse/seja necessário ou o único meio adequado para o tratamento, uma vez que se entende que por um lado este podia e devia ser feito em ambulatório e, por outro é aceite pelo Recorrente;
t) Uma vez que o tratamento nunca foi recusado e é aceite pelo Internando, é ilegal e inconstitucional o internamento compulsivo;
u) Aliás, já a manifesta ausência de perigo torna o internamento compulsivo ilegal e inconstitucional,
Mais,
v) Foi negado ao Internando/Recorrente o direito a comparecer pessoalmente na sessão conjunta e de ali ser ouvido pelo Tribunal;
w) Direito esse que o Internando/Recorrente pediu expressamente ao Tribunal a quo;
x) E cuja recusa viola o disposto na alínea e) do Artigo 5º, alíneas b) e c) do nº 3 e e) do nº 4 do Artigo 8º da LSM;
y) E a interpretação de tais disposições legais no sentido de que pode ser recusado ao Internando o pedido deste para comparecer pessoalmente e ser ouvido presencialmente na sessão conjunta é inconstitucional por violação do disposto nos Artigos 13º, 20º, 27º, nºs 1 e 2, 30º, nºs 2 e 5 e 71º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa, o que aqui se alega para todos os efeitos legais, nomeadamente para os previstos nos Artigos 16º e 18º da CRP e para os previstos nos Artigos 17º, 18º, 20º, nº 4 e 32º da CRP e artigos 70º nº 1, alíneas b) e f) e 72º, nº 2 da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro;
z) Em suma, o facto de se reconhecer que o Internando/Recorrente padece de uma psicose que requer a toma de medicamentos não implica, por si só, que tal psicose determine necessariamente o seu internamento compulsivo, pois que, face à natureza cumulativa dos pressupostos de que depende a decisão do internamento ou do tratamento ambulatório compulsivo, não basta haver uma patologia psiquiátrica, como uma psicose, para se justificar o internamento compulsivo. É sempre necessário que essa patologia determine um risco para o próprio ou para terceiros e que o internando careça de autocrítica para a doença, não aderindo ao tratamento ou recusando a tratar-se;
aa) Ora no caso a patologia do Recorrente não determina um risco para o próprio ou para terceiros, o Recorrente adere ao tratamento que lhe seja prescrito, conforme declarou na sessão conjunta que aceitava o tratamento que lhe fosse prescrito;
bb) Está impedido de fazer prova de que declarou aceitar o tratamento porque as suas declarações não se encontram gravadas; o que não o pode prejudicar por não lhe poder ser imputável;
cc) E quanto à
manifesta ausência de risco, diga-se que nem sequer algum, em concreto que lhe apontado, nem nenhum, em concreto consta da sentença recorrida e que na realidade o Recorrente não constitui qualquer risco para si ou para terceiros, como em 75 anos de vida nunca constitui qualquer risco.
dd) A interpretação do pressuposto previsto na alínea c) do nº 1 do Artigo 15º da LSM – “A existência de perigo para bens jurídicos pessoais ou patrimoniais” – no sentido de que basta a alusão a um perigo em abstracto para se considerar preenchido tal pressuposto do tratamento involuntário, na vertente de internamento compulsivo, é inconstitucional por violação dos Artigos 13º, 20º, 27º, nºs 1 e 2, 30º, nºs 2 e 5 e 71º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa, o que aqui se alega para todos os efeitos legais, nomeadamente para os previstos nos Artigos 16º e 18º da CRP e para os previstos nos Artigos 17º, 18º, 20º e 32º da CRP e artigos 70º nº 1, alíneas b) e f) e 72º, nº 2 da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro; »
- da resposta -
Notificado para tanto, respondeu o Ministério Público concluindo
«que a decisão encontra-se devidamente fundamentada e o Tribunal aplicou correctamente a legislação portuguesa, sendo inatacável»
entendendo
«dever ser negado provimento ao recurso e, consequentemente, manter-se a decisão recorrida nos seus precisos termos »
Admitido o recurso, foi determinada a sua subida imediata, nos autos, e com efeito meramente devolutivo.
Neste Tribunal da Relação de Lisboa foram os autos ao Ministério Público tendo sido emitido parecer no sentido da concordância com os termos da resposta.
Cumprido o disposto no art.º 417.º/2 do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta ao parecer.
Proferido despacho liminar e colhidos os vistos, teve lugar a conferência.
Cumpre decidir.
OBJECTO DO RECURSO
Nos termos do art.º 412.º do Código de Processo Penal, e de acordo com a jurisprudência há muito assente, o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação por si apresentada. Não obstante,
«É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito»
[Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 7/95, Supremo Tribunal de Justiça,
in
D.R., I-A, de 28.12.1995].
Desta forma, tendo presentes tais conclusões, são as seguintes as questões a decidir:
- o Recorrente constitui um perigo para si ou para os outros, na vertente pessoal ou patrimonial?
- o internamento compulsivo é necessário e adequado para o tratamento?
- tem o Recorrente o direito a comparecer pessoalmente na sessão conjunta e de ali ser ouvido pelo Tribunal, o qual não pode ser recusado?
- o entendimento de que pode ser recusado ao internando o pedido deste para comparecer pessoalmente e ser ouvido presencialmente na sessão conjunta é inconstitucional?
DA SENTENÇA RECORRIDA
Da sentença recorrida consta a seguinte matéria de facto provada:
«
1) AA nasceu em .../.../1949 e reside sozinho em casa arrendada sita em ....
2) Tem uma irmã, BB, residente em ... que o auxilia economicamente com compras de bens alimentares e de primeira necessidade, como gás.
3) O Internando beneficiou de uma consulta da especialidade de Psiquiatria na ... em .../.../2016, não comparecendo a consultas datadas de .../.../2012, .../.../2018 e .../.../2018.
4) O Internando é seguido na ... desde ... de 2019, pela Médica de Família Dra. CC.
5) Na primeira consulta, em ... de 2020, o Internando referiu padecer de doença psiquiátrica que não soube especificar, tendo sido instituído anti-psicótico (aripiprazol), que não cumpriu.
6) Em .../.../2024 o Internando foi novamente observado em consulta com a Médica de Família, Dra. CC, apresentando relato episódico isolado de maior agitação psico-motora, com atitude verbal alegadamente mais agressiva para com o secretariado clínico, sem agressividade física, culminando com indicação médica para agendamento de consulta de vigilância em psiquiatria.
7) Em .../.../2024, .../.../2024, .../.../2024 e .../.../2024 o Internando foi observado em consulta com a Médica de Família, apresentando-se calmo e colaborante, mantendo contacto sintónico, humor eutímico com afetos mobilizáveis, discurso fluente apesar de circunstanciado e apurando-se, em todos os contactos, ideias delirantes de teor persecutório, sempre relacionadas com a Igreja, o Governo e o Exército/Militares, com verbalização nos seguintes termos “andam sempre todos atrás de mim, mas eu já estou a tratar de lhes pôr um processo com a advogada. Estão todos feitos e as vacinas é a mesma coisa”.
8) Em .../.../2025 foi alvo de internamento de urgência no ... em Lisboa e, posteriormente, transferido para o ..., motivado por quadro psicótico de longa duração sem tratamento adequado, com impacto significativo no comportamento e no funcionamento, já com risco para o próprio, assente em recusa de tratamentos médicos e automedicação, em relação com as ideias delirantes, bem como negligência do autocuidado em termos de alimentação e saúde e ausência de crítica para a doença e recusa de tratamento proposto.
9) Durante o internamento o Internando não tem respondido de modo eficaz à medicação, mantendo quadro que motivou o seu internamento, designadamente ideias de conteúdo persecutório, com inclusão o corpo clínico que o acompanha, o qual fará parte da estrutura organizada que o quer prejudicar.
10) À data da sessão conjunta AA mantém o quadro psicótico as ideias de conteúdo persecutório e não apresenta qualquer crítica para a situação a sua situação mórbida e para a necessidade de tratamento, recusando-o.»
DA TRAMITAÇÃO SUBSEQUENTE
Por entendermos que relevará para a decisão que nos ocupa, foi feita consulta via CITIUS do processo principal a fim de conhecer a sua tramitação subsequente à subida em separado deste recurso. Assim, importa referir que em ........2025 foi realizada nova sessão conjunta, na qual o Requerido, ora Recorrente, foi ouvido em declarações, em conformidade com o agendado no despacho que também determinou a admissão deste recurso.
Na sequência das declarações da Médica Psiquiatra foi ordenada a junção do diário clínico do internado, que aconteceu em ........2025, após o que se seguiram tomadas de posição do Ministério Público e do Requerido sendo que nada está disponível desde ........2025.
FUNDAMENTAÇÃO
Tendo em consideração as questões que se colocam, importa ter presente o regime legal que nos estabelece os parâmetros da decisão. Como tal, desde já se aponta a necessidade de seguir o diploma conhecido por Lei de Saúde Mental, a Lei n.º 35/2023, de 21 de Julho.
Tendo em consideração os efeitos que a derrogação de uma exigência procedimental, com violação dos direitos do Requerido, poderá ter, abordaremos em primeiro lugar a matéria da audição do ora Recorrente.
- se tem o Recorrente o direito a comparecer pessoalmente na sessão conjunta e de ali ser ouvido pelo Tribunal, o qual não pode ser recusado
Os passos processuais do procedimento que nos ocupa estão regulados nos art.º 17.º e seguintes da Lei de Saúde Mental. A sessão conjunta (art.º 22.º) merce inclusivamente um artigo dedicado à sua preparação (21.º). Deste último resulta a necessidade de notificação do Requerido sendo que, porém, a sua presença não é obrigatória (22.º/1).
Caso esteja presente, o Requerido tem que ser ouvido (art.º 22.º/3), segundo o qual
«Após audição das pessoas notificadas e convocadas»
, ou seja, apenas após a sua audição deverá o Juiz dar a palavra para alegações.
No que toca ao requerido, mais relevante se torna tal audição porque, se nessa diligência o mesmo aceitar o tratamento e não houver razões para duvidar dessa aceitação, está aberto o caminho para o arquivamento do processo (n.º 4).
Vejamos, pois, o que ocorreu, consultando as actas da sessão conjunta, a primeira de ........2025 e a segunda para a continuação de ........2025.
Na primeira, o Requerido esteve presente via Webex, ou seja,
«por meio de equipamento tecnológico»
, como previsto no art.º 22.º/2 da Lei de Saúde Mental. Conforme resulta da acta,
«Prestou declarações, tendo as mesmas sido gravadas através do sistema integrado
de gravação digital disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal»
.
Perante este quadro, desde já se adianta que foi garantido o direito de audição do Requerido.
A única questão é a de saber se há alguma diferença na sua audição presencial ou via meio de comunicação à distância com imagem e som.
Cientes das questões relativas ao princípio da imediação, entendemos que estes se mostram particularmente relevantes em sede de prova e poderão, ainda que assim não seja em todos os casos, revelar-se essenciais para apurar a credibilidade do depoente, a veracidade do testemunho, a espontaneidade das suas reacções.
Neste processo o Requerido não é ouvido como testemunha. A sua audição está delimitada por uma condição clínica, cujo juízo médico está subtraído à livre apreciação do Juiz (art.º 20.º/6 da Lei de Saúde Mental), e visa apenas permitir ao decisor aferir da viabilidade de um tratamento voluntário.
O quadro normativo da Lei de Saúde Mental visa permitir a sujeição do doente a um tratamento involuntário, ou seja, contra a sua vontade manifesta. Navegamos em águas de limitação de direitos fundamentais e, por isso, todo o quadro legislativo aplicável se mostra garantístico e desenhado de acordo com um princípio de intervenção mínima. De tal é sintomático o art.º 15.º/4 da Lei de Saúde Mental, segundo o qual
«
As restrições aos direitos, vontade e preferências das pessoas com necessidade de cuidados de saúde mental decorrentes do tratamento involuntário são as estritamente necessárias e adequadas à efetividade do tratamento, à segurança e à normalidade do funcionamento da unidade de internamento do serviço local ou regional de saúde mental, nos termos do respetivo regulamento interno»
.
Mais, estabelece a própria Lei de Saúde Mental um conjunto de direitos e deveres que, no que toca aos primeiros e ao Requerido em processo de tratamento involuntário, consagram expressamente o direito de (art.º 8.º/3 al. b)
«Participar em todos os atos processuais que diretamente lhe digam respeito, presencialmente ou por meio de equipamento tecnológico, podendo ser ouvido por teleconferência a partir da unidade de internamento do serviço local ou regional de saúde mental onde se encontre; »
.
A actual lei consagra o direito de participação presencial ou por meio de equipamento tecnológico. Diferente era o preceito na anterior lei, Lei n.º 36/98, de 24 de Julho, que no seu art.º 10.º previa o direito
«b) Estar presente aos actos processuais que directamente lhe disserem respeito, excepto se o seu estado de saúde o impedir;»
, ou seja, estabelecendo a regra de presença física do Requerido [Ac. Tribunal da Relação do Porto de 26.06.2029, Desembargador William Themudo Gilman - ECLI:PT:TRP:2019:674.16.0T8OVR.Q.P1.CF].
Contudo, a lei mudou. Operando a leitura comparada dos dois preceitos, mostra-se manifesta a vontade do legislador de tornar igualmente válida a regra da audição à distância, o que fica demonstrado pela utilização do “ou” entre as duas possibilidades [cfr. Ac. Tribunal da Relação do Porto de 13.11.2024, Desembargador Francisco Mota Ribeiro - ECLI:PT:TRP:2024:1164.11.3TBPRT.A.P1.1A];
Assim, consagrada que foi a possibilidade de participação à distância, se no decurso desta o Juiz precisar de maior imediação, poderá sempre lançar mão da interrupção da diligência para a retomar com a presença do Requerido. Não foi esse, manifestamente, o caso.
Mais invoca que manifestou o seu consentimento durante a audição e que o mesmo foi desconsiderado na decisão. Que a ligação à distância foi entrecortada e deficiente, violando o seu direito de participação.
Tal não decorre, porém, do registo da diligência. Representado por defensor, seguramente este teria forçado alguma alteração se tais deficiências se verificassem e o Tribunal as ignorasse, olimpicamente prosseguindo em atropelo ao direito do Requerido a ser ouvido.
Nada consta da acta, nada consta do acto.
Apenas se pode retirar, portanto, que o Requerido não manifestou tal consentimento. Porque, se assim fosse, a discussão com os médicos e peritos passaria a ser a da validade do consentimento cabendo ao defensor assegurar-se que o Tribunal encaminhava os autos para o seu arquivamento, como já apontado.
Por isso, é desprovido de fundamento o ensejo do ora Recorrente.
- se o entendimento de que pode ser recusado ao internando o pedido deste para comparecer pessoalmente e ser ouvido presencialmente na sessão conjunta é inconstitucional
Como vimos no ponto anterior, a Lei de Saúde Mental sofreu uma alteração recente, consagrando um conjunto de alterações nas quais se inclui esta de permitir a audição do Requerido por meios de comunicação à distância. Previu igualmente a audição de quem já está internado ou sujeito a tratamento involuntário aquando das revisões periódicas da medida, permitindo a sua participação pelos mesmos meios.
Ou seja, a lei em causa estabelece como direito especial da pessoa com necessidade de cuidados de saúde mental, no âmbito deste processo de tratamento involuntário, o direito de participar em todos os atos processuais que diretamente lhe digam respeito seja presencialmente seja por meio de equipamento tecnológico, à distância. Aliás, como escrito no Ac. Tribunal da Relação do Porto de 13.11.2024 citado
«No tocante à audição em presença da pessoa necessitada de cuidados de saúde mental, a opção legislativa assim plasmada na nova Lei da Saúde Mental dá ainda cumprimento à Recomendação 818 (1977), da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, dirigida ao Comité de Ministros, no seu ponto 17. iii., na qual se recomenda o convite aos governos dos Estados membros no sentido de diligenciarem para que as decisões dos tribunais não sejam tomadas com base apenas em relatórios médicos, mas que a pessoa doente, como qualquer outra pessoa, tenha o direito efetivo de ser ouvida. »
Assim, ainda que o Requerido tenha pedido para que a sua audição seja presencial, não tem o Tribunal, sequer, que justificar a opção por ouvi-lo à distância posto que a lei não distingue ambas. O que se exige é a garantia de um verdadeiro direito de audição (de viva voz) e não apenas um direito de pronúncia, mediante notificação para se fazer chegar aos autos a sua posição.
Constata-se igualmente que a invocação de inconstitucionalidade aponta, sem qualquer fundamentação, para diversos direitos fundamentais que julga violados. Não se vê como. Não se vislumbra como este regime possa pôr em causa o princípio da igualdade (art.º 20.º da Constituição da República Portuguesa) se nenhuma situação análoga comparável é invocada com solução mais garantística. O mesmo se diga para o direito de acesso ao direito e tutela jurisdicional que não vislumbra limitado à luz do consagrado neste diploma e à sua amplitude desenhada no art.º 20.º da Constituição da República Portuguesa. De igual forma se sustenta o respeito pelo princípio da liberdade, tal como consagrado no art.º 27.º da Constituição da República Portuguesa.
Invoca ainda o Recorrente violações a dois princípios que não são tocados pela lei em causa, na medida em que os mesmos se destinam a pessoas que não têm cabimento no caso que nos ocupa. O Requerido não está sujeito a uma condenação em pena ou a uma medida de segurança privativa ou restritiva da liberdade (art.º 30.º da Constituição da República Portuguesa) nem é cidadão portador de deficiência mental (art.º 71.º da Constituição da República Portuguesa).
Destarte, não se vislumbra a inconstitucionalidade invocada, razão pela qual se subscreve o entendimento explanado no ponto anterior.
- se o Recorrente constitui um perigo para si ou para os outros, na vertente pessoal ou patrimonial
Decorre da argumentação recursiva que o Recorrente entende que no quadro provado estamos perante uma situação de manifesta ausência de risco. Para tanto, invoca que dos factos não resulta qualquer facto concreto que lhe possa ser apontado, do qual se retire que constitui risco para si ou para terceiros. Aliás, argumenta que nunca constitui qualquer risco, pelo que nada permite concluir que agora assim seja.
Olhando a factualidade acima transcrita, são os factos 8 e 10 que traduzem tal perigo,
in casu
para o próprio, não estando demostrada qualquer conduta que represente perigo para terceiros. Com efeito, provou-se que o Recorrente foi internado de urgência, em ........2025, no ... em Lisboa apresentando quadro psicótico de longa duração sem tratamento adequado, com impacto significativo no comportamento e no funcionamento,
já com risco para o próprio
.
Tal condição surge como resultado de uma recusa de sujeição a tratamentos médicos, acompanhada por automedicação, relacionadas com ideação delirante. Simultaneamente, o Recorrente evidenciava negligência no autocuidado em termos de alimentação e saúde e ausência de crítica para a doença com recusa de tratamento proposto, elementos fácticos que traduzem o concreto perigo que representa para si mesmo.
Mais se provou que, não obstante o tempo decorrido, aquando da sessão conjunta manteve o quadro psicótico as ideias de conteúdo persecutório e não apresentou qualquer crítica para a situação a sua situação mórbida e para a necessidade de tratamento, recusando-o. Conforme apontado na sentença recorrida, é à data da prolação da decisão que terão de verificar-se os pressupostos que justificam a aplicação de alguma medida, nada importando os eventos passados caso na atualidade não continue a manter-se o quadro justificativo invocado.
Assim, foi claramente definido no art.º 14.º da Lei de Saúde Mental que
«O tratamento involuntário é orientado para a recuperação integral da pessoa, mediante intervenção terapêutica e reabilitação psicossocial»
.
Nessa medida, o artigo seguinte define os pressupostos dessa intervenção, sendo um deles a existência de perigo par bens jurídicos pessoais, nomeadamente do próprio quando este exiba doença mental e, em razão desta e da recusa de tratamento, tal se revele um perigo para si mesmo.
Assim, com base nos apontados factos provados, cuja impugnação não ocorreu (o Recorrido limita-se a dizer que não constitui perigo), decidiu o Tribunal
a quo
«
(…) da factualidade provada ressalta a verificação, in casu, de todos os pressupostos para o tratamento involuntário, como a doença mental de que padece o Internado, a necessidade do tratamento para prevenir ou eliminar o perigo para bens jurídicos pessoais, maxime do próprio, causado pela recusa de tratamento adequado para a sua condição clínica, a recusa do tratamento medicamente prescrito, bem como a ausência de discernimento necessário para avaliar o sentido e alcance de consentimento.
É também claro que a intervenção terapêutica nos termos prescritos se destina à recuperação do Internado.»
.
Com efeito, perante o quadro de factos provados apontado, outro entendimento não é sustentável. Pelo exposto, está reconhecido o perigo justificativo para a decisão proferida, sendo improcedente a objecção do Recorrente.
- se o internamento compulsivo é necessário e adequado para o tratamento
De igual modo, questiona o Recorrente que o internamento não era uma medida necessária, pois estava disposto a aceitar prosseguir com o mesmo em regime de ambulatório o que seria, desde logo, determinante para que a decisão não pudesse trilhar o caminho seguido.
A Lei de Saúde Mental visa permitir a sujeição do doente a um tratamento involuntário, ou seja, contra a sua vontade manifesta. Navegamos em águas de limitação de direitos fundamentais e, por isso, todo o quadro legislativo aplicável se mostra garantístico e desenhado de acordo com um princípio de intervenção mínima.
São duas as modalidades previstas para tal tratamento involuntário: o tratamento em ambulatório, a regra, e o internamento, a excepção de
ultima ratio
(art.º 15.º/3). Nessa medida, é particularmente importante aferir da necessidade de internamento, pois este apenas pode ser determinado se não for viável prosseguir os fins do processo com uma intervenção ambulatória.
Sumariamente consta da sentença
«Na verdade, o tratamento involuntário em regime de internamento continua a apresentar-se, no presente caso, como a única forma de garantir o tratamento medicamente prescrito, sendo adequado a prevenir a existência de perigo para bens jurídicos pessoais ou patrimoniais do próprio e/ou de terceiros, sendo proporcional à gravidade da doença diagnosticada, ao grau do perigo e à relevância do bem jurídico, razão por que será de manter referido tratamento nos mesmos termos.»
.
Atentemos, mais uma vez, aos factos para aferir se tal conclusão neles encontra respaldo.
Provou-se que em ... de 2020 foi o ora Recorrente medicado com anti-psicótico (aripiprazol), mas não cumpriu os termos da sua toma. Em 2024 foi consultado quatro vezes pela sua médica de família mantendo sintomas da sua perturbação mental. Certo é que, quando finalmente internado em ... de 2025 evidenciava agravamento do quadro sintomático assente em recusa de tratamentos médicos e automedicação. Ora, mesmo internado, o Recorrente não tem respondido de modo eficaz à medicação, pelo que, na data da sessão conjunta mantinha o quadro psicótico, as ideias de conteúdo persecutório e não apresentava qualquer auto crítica para a sua situação mórbida e para a necessidade de tratamento, recusando-o.
Neste quadro, torna-se manifesto que o tratamento em ambulatório não se mostra a solução eficaz para prosseguir com a intervenção determinada nestes autos. Primeiro terá o internamento e a medicação que nele vier a ser apurada, tornar-se eficiente e permitir ao Recorrente tomar consciência da sua situação e da necessidade de prosseguir com tal abordagem química para, então, ser minimamente viável a possibilidade de, em ambulatório, prosseguir com o tratamento.
Tal é matéria que cabe no âmbito da revisão periódica da medida ou, a todo o tempo, se devidamente comunicada ao Tribunal onde corre termos o processo.
Até então, mostra-se devidamente fundamentada, sustentada, a decisão recorrida.
DECISÃO
Nestes termos, e face ao exposto, decide o Tribunal da Relação de Lisboa julgar improcedente o recurso, mantendo inalterada a decisão recorrida.
Custas pelo Recorrente, fixando-se em 3 UC a respectiva taxa de justiça.
Lisboa, 23.09.2025
Rui Coelho
Ana Cristina Cardoso
Manuel Advínculo Sequeira
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TRL
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https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/06e4193930a3357d80258d100050ccde?OpenDocument
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1,748,822,400,000
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PROVIDO
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1368/20.8PASNT.L2-9
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1368/20.8PASNT.L2-9
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PAULA CRISTINA BIZARRO
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I. O crime de violência doméstica protege uma multiplicidade de bens jurídicos, designadamente a integridade física, a saúde física, psíquica e psicológica, a dignidade do ser humano.
II. Maus tratos reconduzem-se a comportamentos, por acção ou omissão, que importem a sujeição da vítima a violência física ou psíquica, a abusos de qualquer natureza, incluindo psicológica, de modo a afectar a sua dignidade enquanto ser humano, colocando em risco ou atingindo de modo efectivo a sua saúde.
III. A humilhação reiterada assume especial significância no seio de uma relação de coabitação e conjugalidade, ainda que as condutas, se isoladamente consideradas ou deslocadas dessa relação, possam ser consideradas de pouca gravidade.
IV. Perante a factualidade em concreto provada e na ausência de demonstração da concretização temporal e do número de vezes em que as condutas tiveram lugar, a par do desconhecimento do seu circunstancialismo concreto, não é possível concluir que, durante o relacionamento, a ofendida tenha sido sujeita a insultos vexatórios, a um estado de sujeição ao outro, de modo a afectar a sua dignidade enquanto ser humano, com a relevância e significância necessárias ao preenchimento do elemento objectivo típico de maus tratos psíquicos.
V. Se é verdade que um único acto isolado poderá integrar uma situação de maus tratos físicos ou psíquicos, para que assim seja e para que esse acto constitua um plus relativamente àqueles que integram a multiplicidade de tipos de crime que poderão integrar a violência doméstica (ofensa à integridade física, ameaça, injúria, coacção, difamação, e outros), terá esse acto de revestir uma gravidade acrescida ao nível da ilicitude, quer pela forma como é executado, quer pelas suas consequências, de modo a justificar a censurabilidade acrescida inerente ao tipo legal em análise, evidenciado na moldura penal que lhe é abstractamente aplicável.
VI. A conduta em concreto perpetrada não fundamenta a conclusão de que o arguido tratou a ofendida de forma desprimorosa, que a inferiorizou, ou que a humilhou de forma continuada e persistente, de modo a ter-se como verificado o preenchimento de uma situação objectiva de maus tratos psíquicos para efeitos do tipo legal em causa.
VII. Os factos concretamente provados, não consentem a afirmação de que as condutas do arguido julgadas provadas ofenderam integridade física da ofendida, nem que atingiram a sua dignidade enquanto ser humano, designadamente, que esta se tenha sentido desprezada e rebaixada na sua pessoa, que se tenha sentido receosa, nem que a sua tranquilidade familiar haja sido abalada e beliscada por essas condutas. Não é possível afirmar perante a factualidade provada um tratamento cruel, degradante ou desumano da vítima.
(sumário da responsabilidade da relatora).
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[
"VIOLÊNCIA DOMÉSTICA",
"MAUS TRATOS",
"CONDUTA ÚNICA"
] |
Acordam em conferência os Juízes da 9ª secção criminal deste Tribunal da Relação
I. RELATÓRIO
Inconformado com a sentença proferida em 11-09-2024, depositada nessa mesma data, nestes autos de processo comum com intervenção de tribunal singular com o n.º 1368/20.8PASNT, do Juízo Local Criminal de Sintra - Juiz 3, em que é arguido
AA, nascido a ... de ... de 1983, natural de ..., filho de BB e CC, casado, operário da construção civil, com residência na Rua ... 438, Corpo C2, l.º C, em ...,
veio o Ministério Público interpor recurso de tal decisão, na qual, após da comunicação da alteração da qualificação jurídica dos factos (cfr. acta com a ref.ª
citius
150510434), foi decidido o seguinte, nos termos que constam do respectivo dispositivo (transcrição):
a) Absolver o arguido AA da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, n.º 1, alínea a), do Código Penal e com a pena acessória de proibição de contacto com a vítima prevista nos números 4 e 5 do mesmo dispositivo;
b) Homologar a desistência de queixa apresentada pela ofendida e declarar extinto o procedimento criminal instaurado contra o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de perseguição e um de injúria previstos e punidos, respetivamente, pelos artigos 154.º-A, nºs 1 e 3 e 181.º, do Código Penal.
(…)
(fim de transcrição)
*
As razões de discordância do Ministério Público encontram-se expressas nas conclusões extraídas da motivação de recurso, que em seguida se transcrevem:
1- O tribunal considerou como fixada a seguinte matéria de facto relevante para a condenação do arguido:
1. O arguido e a vítima DD casaram entre si a 27 de novembro de 2013.
2. O casal estabeleceu residência familiar na ....
3. O arguido e DD tiveram dois filhos, que viviam com o casal: o EE, nascido a ...-...-2014; e FF, nascido a ...-...-2019.
4. Durante a sua relação com a ofendida o arguido foi ciumento e controlador,
5. Em dias não concretamente apurados, o arguido disse à ofendida: “não prestas!”; “és má mãe!”; “não vales nada!”.
6. O que aconteceu, por vezes, na frente dos filhos.
7. Durante uma discussão, o arguido agarrou no braço de DD com força.
8. No dia 20 de dezembro de 2020, pelas 20h00, o arguido dirigiu-se ao local de trabalho da vítima com os filhos de ambos e caminharam apeados para casa.
9. Já na habitação, o arguido chamou a ofendida ao terraço e retirou-lhe o telemóvel.
10. A ofendida foi atrás dele para recuperar o telemóvel e, de forma não apurada, magoou-se, tendo sentido dores e ficado com duas equimoses na perna esquerda e uma equimose na perna direita.
11. Com a prática das condutas descritas, o arguido quis e conseguiu que a vítima se sentisse controlada e humilhada.
12. O arguido sabia que por ser casado com a vítima tinha para com ela um especial dever de a tratar com dignidade, ainda assim quis atuar da forma descrita, afetando-a na sua saúde psíquica e na sua liberdade, com desprezo pela sua dignidade pessoal, o que conseguiu.
13. O arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal, e tinha capacidade e liberdade para se determinar de acordo com esse conhecimento.
2- No entanto considerou que durante a sua relação com a vítima o arguido passou a importuná-la, controlando-a nos seus movimentos e humilhando-a.
No entanto, tal circunstancialismo afasta-se, na perspetiva do Tribunal, dos moldes caracterizadores da violência doméstica.
3- Determinou a absolvição pela prática de um crime previsto e punido nos termos do artigo 152º nº 1 a), nº 2 a), 4 e 5 do Código Penal, e a homologação da desistência de queixa apresentada pela ofendida pela prática de um crime de perseguição e um de injúrias previsto e punido nos termos do artigo 154 A nº 1 e 3 e 181º do Código Penal.
4- Dispõe o artigo 152.º do Código Penal, sob a epígrafe “violência doméstica” que:
“1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psicológicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
(a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
5- Perante a matéria factual provada vertida não restam como dúvidas que do ponto de vista objectivo e subjectivo as condutas do arguido constituem a perpetração de actos de violência que afectaram a saúde psíquica e emocional da vitima, dirigir-se a uma mulher com quem partilha a sua vida , mãe dos seus filhos, por diversas vezes em frente dos filhos dizer-lhe que é uma má mãe consubstanciam actos de violência psicológica, vexatórios afectando a sua dignidade enquanto pessoa, e mãe.
6- Por sua vez retirar o telemóvel da mulher meio de comunicação sem fundamento constitui um acto de violência gratuito.
7- Ser controlador e ciumento numa relação amorosa entre duas pessoas constitui um acto de violência psicológica.
8- Numa discussão agarrar o braço com força constitui um acto de violência física.
9- Concluímos, assim, que as descritas condutas do arguido preenchem, objetiva e subjetivamente, o crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152º, nº. 1, al. a) nº 2 a) e nº 4, 5 do Código Penal, não se verificando quaisquer causas de exclusão da ilicitude da culpa ou da punibilidade do arguido.
10 - Pelo exposto a douta sentença deve ser revogada, e substituída por outra que determine a condenação do arguido pela prática de um crime previsto e punido nos termos do artigo 152º nº 1 a), nº 2 a) e nº 4, 5 do Código Penal.
No entanto Vossas Excelências farão como for de lei e justiça.
(fim de transcrição)
*
O arguido respondeu ao recurso interposto, apresentando as seguintes conclusões (transcrição):
1 - O presente recurso apresentado pelo M.P. está centrado na impugnação da decisão de Direito que a meritíssima juíza a quo tomou relativamente aos factos provados;
2 - Salvo o devido respeito, entendemos que tal decisão não merece qualquer censura;
3 - “Os factos que resultaram provados não são suficientes para enquadrar a conduta do arguido no crime de violência doméstica”;
4 - Para a sua decisão o tribunal a quo socorre-se, além do mais, num acórdão do TRE que entende que … “a intervenção penal deve manter, também aqui, a sua função de protecção de última ratio…”
5 - “Condição para a intervenção penal é sempre a defesa efectiva de um bem jurídico (digno de protecção penal e que não a obtenha de outra forma menos lesiva), não a perseguição de comportamentos que se afastem de determinados padrões socialmente dominantes”;
6 - “as situações de violência familiar em causa têm que ser concretamente reveladoras de um abuso de poder na relação afectiva”;
7 - Também André Lemos Leite, 2010, pág. 45, sustenta que “os maus tratos físicos e psíquicos devem ser interpretados como lesões graves, pesadas da incolumidade corporal e psíquica do ofendido”;
8 - “O comportamento de maus tratos tem que comprometer gravemente o desenvolvimento da personalidade da pessoa atingida” (C.P. Anotado, M.M Garcia e L.M. Castelo Rio, pág. 649);
9 - “Faltando estes aspectos conformadores de uma maior ilicitude, os respectivos factos serão elementos de ofensa à integridade física simples, ameaça, crime contra a hora, ofensa sexual ou privação da liberdade – e não mais do que isso” (idem);
10 - “Os maus tratos traduzem-se em actos que revelam sentimentos de crueldade, vingança, especial desejo de humilhar e fazer sofrer a vítima” (Ac. do TRG de 18-03-2013 (78/12.4GDVCT.G1);
11 - Nada disto se passou do caso em análise;
12 - Razão pela qual o tribunal a quo procedeu a uma alteração da qualificação jurídica de violência doméstica para um crime de perseguição e um crime de injúrias.
13 - Como a ofendida manifestou a sua intenção de desistir do procedimento criminal, o que foi aceite pelo arguido, e como se trata de crimes que dependem de queixa outra não podia ser a decisão que não a de absolvição;
14 - Assim, concluímos dizendo que a decisão recorrida não merece qualquer censura, antes pelo contrário, e, em consequência, deve o presente recurso interposto pelo M.P. ser considerado improcedente e confirmada a decisão do tribunal a quo.
Mas V. Exªs farão, como sempre, JUSTIÇA.
(fim de transcrição)
*
Neste Tribunal da Relação, pela Ex.
ma
Procuradora-Geral Adjunta foi emitido Parecer nos termos seguintes (transcrição parcial):
(…) Nesta Instância, o Ministério Público acompanha a argumentação aduzida nas motivações do recurso, aditando o seguinte:
A violência doméstica é uma grave violação dos direitos humanos e uma forma de discriminação com impacto não apenas nas vítimas, mas na sociedade no seu conjunto.
O crime de violência doméstica visa proteger muito mais do que a soma dos bens jurídicos tutelados pelos diversos ilícitos típicos que o podem preencher. O legislador quis tutelar mais do que a saúde física ou psíquica da vítima, ainda que de forma secundária ou reflexa a esta.
O crime de violência doméstica é um crime específico impróprio, cuja ilicitude é agravada em virtude da relação familiar, de namoro, parental ou de dependência entre o agente e a vítima.
No seu tipo objetivo, incluem-se as condutas de violência física, psicológica, verbal, sexual e patrimonial que não sejam puníveis com pena mais grave por força de outra norma.
O crime de violência doméstica configura-se, assim, complexo, porquanto abarca uma multiplicidade de situações de facto, quer quanto ao tipo de comportamento (maus tratos físicos e/ou psíquicos), quer quanto aos específicos agentes que o podem cometer e aos específicos sujeitos que podem dele ser vítimas, quer, por último, no que concerne às consequências jurídico-penais (penas principais e penas acessórias).
O elenco de maus-tratos previsto no preceito incriminador é claramente exemplificativo (crime de execução não vinculada). Tendo em conta a diversidade de condutas que estão previstas no típico crime de violência doméstica, podemos estar em presença, de forma isolada ou simultânea, de crime de resultado, de mera atividade, de dano e também de perigo.
Os maus-tratos não têm de ser reiterados, podendo tratar-se de um ato isolado.
A supressão da distinção entre maus tratos reiterados e intensos, dependendo de todo o circunstancialismo do caso concreto, permite sustentar que um único ato ofensivo, sem reiteração, pode e deve ser considerado «Maus Tratos», preenchendo o tipo objetivo do artigo 152.º, do Código Penal, desde que o desvalor, da ação e do resultado, seja apto e suficiente para molestar o bem jurídico protegido – mediante ofensa da saúde física, psíquica, emocional ou moral.
Tem sido entendido pela jurisprudência que o bem jurídico protegido pelo crime de violência doméstica é complexo ou multifacetado, podendo nele ser integrado uma série de comportamentos que, isoladamente, também são alvo de tutela penal, como sejam as ofensas à integridade física, difamação ou injúrias, simples ou qualificadas, ameaça simples ou agravada, coação simples, etc.
Porém, o crime de violência doméstica visa proteger muito mais do que a soma dos diversos ilícitos típicos que o podem preencher, uma vez que o legislador quis tutelar algo mais do que a saúde da vítima, ainda que de forma secundária ou reflexa, devendo entender-se que o bem jurídico a proteger terá de estar relacionado com o núcleo dos vínculos que se estabelecem no seio familiar e doméstico.
O bem jurídico a proteger está também intimamente relacionado com o núcleo dos vínculos que se estabelecem no seio familiar e doméstico, e ainda em todas as relações de confiança tuteladas pela norma incriminadora.
O bem jurídico a proteger terá de conectar-se com o núcleo de vínculos que se estabelecem no seio familiar e doméstico. Dito de outro modo, só serão subsumíveis ao artigo 152º condutas de pouca gravidade, quando as mesmas comprometerem a pacífica convivência familiar ou doméstica; então, nesta linha de pensamento, o tipo penal em causa é assim constituído, a título principal, pela saúde da vítima e, ainda, de forma secundária ou reflexa, pela pacífica convivência familiar ou doméstica.
Daí que, uma conduta materialmente não grave perpetrada no âmbito familiar e doméstico, como sejam uma simples bofetada ou soco, ou injúrias/insultos e críticas, no caso, dirigidas pelo agente no domicílio comum à companheira ou à filha menor desta, encerra uma danosidade social distinta da ofensa praticada em contexto não-doméstico, pois semeia o medo, a desconfiança, a insegurança sentimentos que são contrários àqueles que são costumeiros no seio familiar, primeiro e último reduto de proteção do indivíduo.
Concorrem para esta conceção do bem jurídico (pluriofensivo) protegido, a natureza pública do crime de violência doméstica, o agravamento da incriminação quando o crime é praticado no domicílio comum, a consagração das penas acessórias de proibição de contacto com a vítima, o afastamento da residência desta e a frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica, o que demonstra que o legislador na redação da hipótese e da estatuição desta norma, vislumbra uma perspetiva de futuro que vai muito para além da expetativa de proteção individual, da vítima em concreto, para assumir um escopo protetor da própria família, ou da comunidade doméstica, enquanto tal, desde que a conduta típica em concreto, haja colocado em crise a pacífica convivência familiar, para-familiar ou doméstica.
Esta interpretação será a tipicamente mais adequada, face aos elementos interpretativos do artigo 9.º do Código Civil, do tipo de crime previsto no artigo 152.º do Código Penal tendo em conta os princípios da legalidade, tipicidade e máxima determinação do tipo, vigentes em Direito Penal.
Uma conduta isolada, que até nem assuma especial intensidade do ponto de vista material da saúde da vítima, pode comprometer a pacífica convivência familiar ou doméstica, pode corromper toda a relação de confiança preexistente e, logo, ser enquadrável no artigo 152º.
Por essa razão, uma conduta materialmente não grave, como por exemplo uma simples bofetada, poderá afrontar o bem jurídico protegido, porque poderá abalar as bases de confiança em que se funda aquela relação familiar ou a convivência doméstica, mas também porque uma conduta materialmente não grave perpetrada no âmbito familiar e doméstico encerra uma danosidade social distinta da ofensa praticada em contexto não-doméstico , pois semeia o medo, a desconfiança, a insegurança sentimentos que são contrários àqueles que são costumeiros no seio familiar, primeiro e último reduto de proteção do indivíduo.
Uma ofensa física ou psíquica, dita juridicamente simples (artigo 143.º, do Código Penal), em face do contexto em que foi praticada, pode pôr em causa a pacífica convivência familiar ou de qualquer um dos vínculos tutelados pela norma, abalar irremediavelmente a confiança da vítima no seu agressor. E essa específica dimensão não encontra proteção em outro tipo legal, à exceção do artigo 152.º do Código Penal.
Visa-se, assim e ainda, com o art.º 152.º do Código Penal uma tutela reforçada da pacífica convivência familiar ou doméstica, face a condutas que, sem aparente gravidade ou intensidade, isoladas ou não reiteradas, são suscetíveis de corromper toda a relação desconfiança pré-existente.
IV. Assim,
Aderindo, no mais, aos fundamentos da Exmª Magistrada do Ministério Público, junto da 1ª instância, bem como aos elementos em que os mesmos se suportam, teremos de concordar
com o MP, junto da 1ª instância, que entende que os factos dados como provados e praticados pelo arguido preenchem, objetiva e subjetivamente, o crime de violência doméstica. p. e p. pelo artigo 152º, nº. 1, al. a) nº 2 a), 4, 5 do Código Penal, não se verificando quaisquer causas de exclusão da ilicitude da culpa ou da punibilidade do arguido.
Pelo que deve a Sentença impugnada ser revogada e substituída por outra determine a condenação do arguido pela prática de um crime p. e p. nos termos do artigo 152º nº 1 a), nº 2 a) e nº4, 5 do Código Penal.
Mas a final, não obstante, melhor se dirá.
(fim de transcrição)
*
Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta.
*
Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, teve lugar a conferência.
*
II. FUNDAMENTAÇÃO
1. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
Dispõe o artigo 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal que “
a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido
”.
Daí o entendimento pacífico de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo que apenas as questões aí resumidas deverão ser apreciadas pelo tribunal de recurso, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, designadamente os vícios previstos no n.º 2 do art.º 410º do mesmo Código.
Em conformidade, atentas as conclusões formuladas pelo Recorrente, a única questão a decidir é a seguinte:
- da subsunção dos factos provados ao tipo legal de crime de violência doméstica.
*
2. DA SENTENÇA RECORRIDA
2.1. Na sentença recorrida, foram julgados provados e não provados os seguintes factos (transcrição):
1. O arguido e a vítima DD casaram entre si a 27 de novembro de 2013.
2. O casal estabeleceu residência familiar na Rua ...º 37, 3.º Esq, em ....
3. O arguido e DD tiveram dois filhos, que viviam com o casal: EE, nascido a ...-...-2014; e FF, nascido a ...-...-2019.
4. A determinado momento da sua relação com a ofendida o arguido começou a ser ciumento e controlador.
5. Em dias não concretamente apurados, o arguido disse à ofendida: “
não prestas
!”; “
és má mãe
!”; “
não vales nada
!”.
6. O que aconteceu, por vezes, na frente dos filhos.
7. Durante uma discussão, o arguido agarrou no braço de DD com força.
8. No dia 20 de dezembro de 2020, pelas 20h00, o arguido dirigiu-se ao local de trabalho da vítima com os filhos de ambos e caminharam apeados para casa.
9. Já na habitação, o arguido chamou a ofendida ao terraço e retirou-lhe o telemóvel.
10. A ofendida foi atrás dele para recuperar o telemóvel e, de forma não apurada, magoou-se, tendo sentido dores e ficado com duas equimoses na perna esquerda e uma equimose na perna direita.
11. Com a prática das condutas descritas, o arguido quis e conseguiu que a vítima se sentisse controlada e humilhada.
12. O arguido sabia que por ser casado com a vítima tinha para com ela um especial dever de a tratar com dignidade, ainda assim quis atuar da forma descrita, afetando-a na sua saúde psíquica e na sua liberdade, com desprezo pela sua dignidade pessoal, o que conseguiu.
13. O arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal, e tinha capacidade e liberdade para se determinar de acordo com esse conhecimento.
14. O arguido vive sozinho em casa arrendada por € 600, 00 mensais.
15. Trabalha na construção civil e retira, por mês, cerca de € 1100, 00 dessa atividade.
16. Convive com os filhos quinzenalmente, ao fim-de-semana.
17. Contribui para o sustento daqueles com uma pensão de alimentos de € 200,00 por mês.
18. Tem o 4.º ano de escolaridade.
19. E não regista antecedentes criminais.
Factos não provados:
A. Desde o início do relacionamento que, ao longo do dia, o arguido telefonava para a vítima diversas vezes e questionava-a com quem ela estava acabando por lhe dizer que estava a mentir, que ela estava com algum homem.
B. O arguido assumiu os comportamentos acima descritos em 4, 5 e 6 desde o início do seu relacionamento com a vítima.
C. O arguido não permitia que a ofendida se relacionasse com os seus amigos, sobretudo se fossem homens.
D. Quando lhe telefonava dizia-lhe que estava a mentir e com algum homem.
E. O arguido disse na frente dos filhos para verem “
a merda de mãe que tinham
!”.
F. No último trimestre de 2018, em data não concretamente apurada, na residência familiar, o arguido iniciou uma discussão com a ofendida, quando ela tinha o filho mais velho ao colo, à data com 4 anos de idade.
G. E, na sequência dessa discussão, disse-lhe “
tu não me conheces
!”.
H. À data, DD estava grávida do segundo filho e o arguido tinha conhecimento disso.
I. No dia 20 de dezembro de 2020, pelas 20h00, a ofendida estava a sair acompanhada de um colega.
J. Nessa data, o arguido, na frente dos menores, empurrou-a fazendo-a cair no chão.
K. Nessa noite, o arguido saiu de casa, mas antes de sair disse “
eu saio, mas vocês vão arrepender-se do que me fizeram
!”.
L. Com a prática das condutas descritas, o arguido quis e conseguiu que a vítima se sentisse num constante estado de ansiedade, receando estar a ser controlada e humilhada, bem como receando pelas atitudes que o arguido pudesse tomar em relação a si, nomeadamente que a ofendesse na sua integridade física.
M. O arguido quis atingir a ofendida na sua saúde física.
(fim de transcrição).
*
2.2. Na sentença recorrida, a decisão sobre a matéria de facto foi motivada nos seguintes termos (transcrição):
No apuramento da factualidade provada, o Tribunal formou a sua convicção com base na análise conjunta e crítica da prova produzida em audiência, a qual foi apreciada livremente (artigo 127.º, do CPP) e de acordo com critérios de racionalidade e das regras da experiência comum.
A título introdutório, cumpre referir que o arguido negou a prática dos factos descritos na acusação.
Ouvida, por sua vez, a ofendida, esta descreveu os factos que vieram a ser dados como provados e que enquadrou, de forma considerada espontânea, numa atuação controladora, ciumenta e de desconfiança (patente, aliás, no Print de mensagens telefónicas de fls. 57-59 dos autos) que o arguido foi assumindo para consigo de forma crescente e que levou ao desgaste da relação de ambos e, após, à sua separação. Sendo certo que, ao mesmo tempo que descrevia a factualidade dada como assente, a vítima foi expondo outras queixas relativamente ao arguido, sem qualquer relevância criminal, como seja o facto de o mesmo pretender ter sempre tudo arrumado e de discutir por “coisas fúteis” - o que desde logo criou reservas no Tribunal, quanto ao facto de estarmos perante uma situação de efetiva violência doméstica. Os factos não provados assim resultaram porquanto não foram referidos pela ofendida, sendo certo que, quanto ao episódio ocorrido em dezembro de 2020, relativamente ao qual existe documentação clínica (fls. 56) que atesta a produção de lesões no seu corpo (hematomas), DD esclareceu que no calor da discussão que manteve nessa data com o arguido e do seu envolvimento físico com o mesmo, para recuperar o telemóvel que aquele lhe havia retirado para controlar as suas mensagens, não chegou a compreender como se magoou, não podendo, assim, afirmar, ter sido então vítima de uma agressão.
Os assentos de nascimento de fls. 94-95, 96 e 97 permitiram extrair os factos referentes ao casamento e aos filhos do casal.
Os elementos psicológicos e volitivos imputáveis ao arguido, aquando da prática dos factos, assim se fixaram a partir dos elementos probatórios analisados supra, que, à luz da lógica e das regras da experiência comum, revelaram que outro não podia ser o seu conhecimento e a sua intenção senão não aqueles dados como assentes e enquadráveis no dolo, ainda que em crimes diversos pelos quais vinha acusado.
Os factos relativos às condições pessoais e aos antecedentes criminais do arguido resultaram dos esclarecimentos por este prestados em audiência do certificado de registo criminal junto aos autos.
(fim de transcrição)
*
2.3. Na sentença recorrida, o enquadramento jurídico-penal dos factos encontra-se fundamentado nos seguintes termos (transcrição):
(…) Dispõe o artigo 152.º do Código Penal, sob a epígrafe “violência doméstica” que:
“1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psicológicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
(a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
(b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
(c) A progenitor de descendente comum em 1º grau;
(d) A pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite.
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 – No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.
3 - Se dos factos previstos no n.º 1 resultar:
a) Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de dois a oito anos;
b) A morte, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos.
4 - Nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.
5 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima pode incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento pode ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.
6 - Quem for condenado por crime previsto neste artigo pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser inibido do exercício do poder paternal, da tutela ou da curatela por um período de um a dez anos.”.
Constituem elementos objetivos deste tipo legal de crime, quando estejam em causa maus tratos físicos, as ações que, por qualquer modo, provoquem uma ofensa no corpo ou na saúde de outrem, ou que de algum modo perturbem, modifiquem ou alterem desfavoravelmente o estado de equilíbrio psicossomático da pessoa. Para além disso, a ação típica poderá ainda traduzir uma ofensa ao equilíbrio psíquico da vítima (ou seja, atos que afetem a integridade moral ou o sentimento de dignidade).
Já o elemento subjetivo deste tipo-de-ilícito restringe-se ao conhecimento dos elementos objetivos típicos e à vontade de agir por forma a preenchê-los, isto é, dolo genérico – artigos 13º e 14º do Código Penal.
Além disso, na medida em que se trata de um crime específico, pressupõe um agente que se encontra numa determinada relação para com o sujeito passivo daqueles comportamentos.
No círculo das vítimas de violência doméstica surge, na al. a), n.º 1 do art.º 152.º do Código Penal, o cônjuge.
Ora, desde logo resultou provada a existência prévia de uma relação entre arguido e ofendida, com as características supra descritas.
Por outro lado, também se provou que no decurso dessa relação, o arguido assumiu comportamentos desconformes para com a vítima – fazendo-lhe acusações insultuosas e assumindo para com as mesmas atitudes persecutórias.
Todavia, e por isso se comunicou previamente tal alteração da qualificação jurídica, é nosso entendimento que os factos que resultaram provados não são suficientes para enquadrar a conduta do arguido no crime de violência doméstica.
Vejamos.
Olhando à sequência dos factos provados vemos que durante a sua relação com a vítima o arguido passou a importuná-la, controlando-a nos seus movimentos e humilhando-a.
No entanto, tal circunstancialismo afasta-se, na perspetiva deste Tribunal, dos moldes caracterizadores da violência doméstica.
A este respeito, e da destrinça que se impõe fazer, aquando da subsunção jurídico-penal de factos que, à partida, seriam integráveis tanto na violência doméstica como em outros ilícitos criminais, olhemos ao Acórdão do Tribunal da Relação Évora de 30.06.2015:
“a fronteira entre as condutas que têm dignidade punitiva e merecem punição à luz do tipo da violência doméstica e aquelas que não devem ser aqui relevantes para o direito penal, nem sempre é fácil de traçar, na prática.
(…) Porém, a intervenção penal deve manter, também aqui, a sua função de proteção de ultima ratio, resistindo-se a prosseguir, através dela, a modelagens de comportamentos (aqui, no âmbito de relações de conjugalidade), que apenas sejam merecedores de censura ético-moral.
Condição necessária para a intervenção penal é sempre a ofensa efetiva de um bem jurídico (digno de proteção penal e que não a obtenha de outra forma menos lesiva), não a perseguição de comportamentos que se afastem de determinados padrões de comportamento socialmente dominantes.
O artigo 152.º do CP protege determinado tipo de vítima, de determinado tipo de agressor, com quem aquela se encontre em determinada relação (atual ou passada), mas as situações de violência familiar em causa têm que ser concretamente reveladoras de um abuso de poder na relação afetiva”.
Pois bem, no caso em apreço, olhando à imagem global do facto, entende-se não ter ficado provado um verdadeiro abuso de poder do arguido sobre a pessoa da ofendida, mas sim uma ação controladora e ofensiva sobre a mesma e que culminou na separação de ambos, mas que não chega a enquadrar-se no crime de violência doméstica.
Sem prejuízo, as expressões proferidas pelo arguido e a atuação de controle e importunação que exerceu sobre a vítima merecem censura penal, mas sim num crime de perseguição p. e p. pelo artigo 154.º-A, nºs 1 e 3, do Código Penal e num crime de injúria p. e p. pelo artigo 181.º, do mesmo diploma.
Dispõe o primeiro preceito incriminador que: “1 - Quem, de modo reiterado, perseguir ou assediar outra pessoa, por qualquer meio, direta ou indiretamente, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 3 anos ou pena de multa, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal. […] 3 - Nos casos previstos no n.º 1, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima pelo período de 6 meses a 3 anos e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção de condutas típicas da perseguição.”.
Trata-se de um crime relativamente recente, aditado pela Lei n.º 83/2015, de 5 de Agosto, com início de vigência em 05.09.2015.
Na exposição de motivos do projeto de lei n.º 647/XII pode ler-se que: “A perseguição – ou stalking – é um padrão de comportamentos persistentes, que se traduz em formas diversas de comunicação, contacto, vigilância e monitorização de uma pessoa-alvo. Estes comportamentos podem consistir em ações rotineiras e aparentemente inofensivas (como oferecer presentes, telefonar insistentemente) ou em ações inequivocamente intimidatórias (por exemplo, perseguição, mensagens ameaçadoras).
Pela sua persistência e contexto de ocorrência, este padrão de conduta pode escalar em frequência e severidade o que, muitas vezes, afeta o bem-estar das vítimas, que são sobretudo mulheres e jovens. A perseguição consiste na vitimização de alguém que é alvo, por parte de outrem (o assediante), de um interesse e atenção continuados e indesejados (vigilância, perseguição), os quais são suscetíveis de gerar ansiedade e medo na pessoa alvo”.
A norma em causa tutela a paz jurídica da vítima, a sua tranquilidade, a sua ausência de medo e inquietação.
Nas palavras de Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques, “Trata-se de um crime de perigo. A conduta de perseguição ou assédio, deve revestir carácter reiterado repetido, portanto, deve ser direta ou indiretamente adequado, isto é idóneo, capaz e provocar medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação da pessoa perseguida ou vítima de assédio. Perseguir significa ir no encalço de seguir ou procurar (alguém) com uma insistência que incomoda e/ou assusta; procurar prejudicar sempre que possível; é o mesmo que importunar, buscando afincadamente estabelecer contacto. Trata-se de um assédio, ou seja, “uma perseguição insistente com propostas”, “um conjunto de operações que visam a conquista de uma posição inimiga”, um cerco, marcado pelo abuso, pela insistência impertinente. Pode o perseguidor rondar o espaço vivencial da vítima, aparecendo inesperadamente a cada passo, pode usar os mais variados modos de comunicação (SMS, cartas, encomendas, e-mail, telefone), pode servir-se de terceiros, que agem inocentemente, pode servir-se das redes sociais e desvendar “segredos”; tanto pode enviar presentes, como uma ambulância ou um carro funerário…”
O crime pode ser cometido por qualquer pessoa imputável e por qualquer meio, desde que suscetível de desencadear na vítima de perseguição ou assédio, medo, inquietação, prejuízo da sua liberdade de determinação.
Assim, o crime tem como elementos objetivos: i) a ação do agente, consubstanciada na perseguição ou assédio da vítima, por qualquer meio, direto ou indireto; ii) a adequação da ação a provocar naquela medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação; iii) e a reiteração da ação.
O tipo subjetivo pressupõe por parte do agente uma conduta dolosa, em qualquer das modalidades previstas no artigo14.º, do Código Penal.
Quanto à injúria, prescreve o artigo 181º, n.º 1, do Código Penal que “Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até três meses ou com pena de multa até 120 dias”.
O bem jurídico protegido pela incriminação é a honra e consideração da pessoa, preenchendo-se o tipo objetivo quando o agente imputa diretamente a outrem (assistente) factos ou juízos desonrosos, lesivos da sua consideração e o elemento subjetivo, através do dolo, em qualquer das suas modalidades (artigo 14º do Código Penal).
Olhando à factualidade provada, vemos que o comportamento controlador exercido pelo arguido contra a vítima foi de molde a causar-lhe inquietação, assim como a imputação feita de factos desonrosos (má mãe, não prestas), causadora de ofensa da honra e dignidade.
Tudo de forma consciente e intencional.
Deste modo, entende-se que, com a sua conduta, o arguido cometeu tais ilícitos criminais.
No entanto, tendo sido manifestada pela ofendida em audiência a sua intenção de desistir do procedimento criminal, o que foi aceite pelo arguido, revestindo aqueles crimes, respetivamente, natureza semi-pública e particular (cfr. artigos 154.º - A, n.º 5 e 188.º, do Código Penal), importa proceder à homologação da desistência apresentada, declarando extinto o procedimento criminal aqui instaurado contra o arguido.
(fim de transcrição)
*
Importa ainda considerar que em 11-07-2024, por esta Relação de Lisboa foi proferido acórdão, no qual foi decidido o seguinte:
(…) declarar nula a sentença recorrida, devendo ser proferida nova sentença pelo mesmo tribunal, que supra a apontada omissão de pronúncia quanto à matéria de facto relevante para a decisão, se necessário com reabertura da audiência e produção de prova.
Na sequência do assim decidido, foi proferida a sentença ora recorrida.
*
III. APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO
Da subsunção dos factos ao tipo legal de crime de violência doméstica
Dispõe o art.º 152º do Código Penal, para o que aqui releva, que:
Violência doméstica
1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
(…)
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 - No caso previsto no número anterior, se o agente:
a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima;
b) (…);
é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.
(…)
O crime de violência doméstica protege uma multiplicidade de bens jurídicos, designadamente a integridade física, a saúde física, psíquica e psicológica, a dignidade do ser humano.
No entanto, como decorre dos elementos objectivos do tipo legal descritos naquele normativo, a distinção entre o crime de violência doméstica e outros tipos de crime, como a ofensa à integridade física, a injúria, a ameaça, reside no conceito de
maus tratos
físicos ou psíquicos.
Maus tratos reconduzem-se a comportamentos, por acção ou omissão, que importem a sujeição da vítima a violência física ou psíquica, a abusos de qualquer natureza, incluindo psicológica, de modo a afectar a sua dignidade enquanto ser humano, colocando em risco ou atingindo de modo efectivo a sua saúde.
Este tipo legal previne e pune condutas perpetradas por quem afirme e atue, dos mais diversos modos, um domínio, uma subjugação, sobre a pessoa da vítima, sobre a sua vida ou (e) sobre a sua honra ou (e) sobre a sua liberdade e que a reconduz a uma vivência de medo, de tensão, de subjugação
(
in
Acórdão da Relação de Guimarães de 2-11-2015, proferido no processo n.º 77/14.1TAAVV.G1 [Relatora: Manuela Paupério], disponível em
www.dgsi.pt
, assim como os demais
infra
citados).
Por esse motivo, como explanado no Ac. da Relação de Évora de 11-07-2019, proferido no processo n.º 627/17.1GDSTB.E1:
não é suficiente qualquer ofensa à saúde física, psíquica, emocional ou moral da vítima, mas sim, e apenas, que os actos atinentes, analisados à luz do contexto especialmente desvalioso em que são perpetrados, se consubstanciem em maus tratos, isto é,
quando revelem uma conduta maltratante especialmente intensa, uma relação de domínio que deixa a vítima em situação degradante ou um estado de agressão permanente
.
(destacado nosso)
No Ac. da Relação de Coimbra de 18-05-2022, proferido no processo n.º 924/19.1PBLRA.C1 decidiu-se que:
Os factos praticados, isolados ou reiterados, integrarão o tipo legal de crime de violência doméstica se, apreciados à luz do circunstancialismo concreto da vida familiar e sua repercussão sobre a mesma,
transmitirem um quadro de degradação da dignidade de um dos elementos, incompatível com a dignidade e liberdade pessoais inerentes ao ser humano
.
(destacado nosso)
No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11-03-2021, proferido no Processo n.º 75/20.6JAFAR.S1 (Relatora: Margarida Blasco) explicita-se o seguinte:
a ratio do preceito deriva da especial relação entre o agente e o ofendido e não está, pois somente na protecção da comunidade familiar, conjugal, educacional, mas sim e também na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana. (...) Inclui, além da agressão física (mais ou menos violenta, reiterada ou não), a agressão verbal, a agressão emocional (coagindo a vítima a praticar actos contra a sua vontade), a agressão sexual, a agressão económica (impedindo-a de gerir os seus proventos) e a agressão às liberdades (de decisão, de acção, de movimentação, etc.), que, analisadas no contexto específico em que são produzidas e face ao tipo de relacionamento concreto estabelecido entre o agressor e a vítima
indiciam uma situação de maus tratos, ou seja, um tratamento cruel, degradante ou desumano da vítima
. (destacado nosso)
Para fundamentar a discordância com o entendimento vertido na sentença recorrida, na motivação de recurso, o Ministério Público argumenta essencialmente o seguinte:
- O bem jurídico protegido pelo crime de violência doméstica é a saúde, abrangendo, na sua complexidade, a saúde física, psíquica e mental, que pode ser afectada por toda uma multiplicidade de comportamentos que atinja a dignidade da pessoa visada, seja por acção, seja por omissão;
- A ratio deste tipo de ilícito não está na protecção da comunidade familiar, mas sim na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana, incluindo os comportamentos reiterados que lesem o seu bem-estar físico, psíquico e mental, sem descurar que se admite, para integração no tipo, que o comportamento configure acto isolado desde que, ao nível do desvalor da acção e do resultado, pela sua especial gravidade, seja apto a molestar o bem jurídico protegido;
- O bem jurídico protegido pela incriminação são a integridade física e psíquica, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual e até a honra;
- Dirigir-se a uma mulher com quem partilha a sua vida, mãe dos seus filhos, por diversas vezes em frente dos filhos dizer-lhe que é uma má mãe consubstanciam actos de violência psicológica, vexatórios afectando a sua dignidade enquanto pessoa, e mãe;
- Por sua vez retirar o telemóvel da mulher meio de comunicação sem fundamento constitui um acto de violência gratuito;
- Ser controlador e ciumento numa relação amorosa entre duas pessoas constitui um acto de violência psicológica;
- No âmbito de uma discussão agarrar o braço com força constitui um acto de violência física.
Conclui o recorrente que
a descrita conduta do arguido preenche, objetiva e subjetivamente, o crime de violência doméstica.
Porém, analisada a factualidade em concreto provada, com todo o respeito que nos merece a posição defendida pelo Recorrente e reiterada pela Ex.
ma
Procuradora-Geral Adjunta no seu douto Parecer, afigura-se-nos que a mesma se mostra insuficiente para integrar os elementos típicos de tal tipo de crime.
Com efeito, se atentarmos nos factos julgados provados pelo tribunal
a quo
, factos esses definitivamente assentes porquanto não mereceram qualquer impugnação, as condutas perpetradas pelo arguido, com relevância para a questão em análise, resumem-se ao seguinte:
4. A determinado momento da sua relação com a ofendida o arguido começou a ser ciumento e controlador.
5. Em dias não concretamente apurados, o arguido disse à ofendida: “
não prestas
!”; “
és má mãe
!”; “
não vales nada
!”.
6. O que aconteceu, por vezes, na frente dos filhos.
7. Durante uma discussão, o arguido agarrou no braço de DD com força.
8. No dia 20 de dezembro de 2020, pelas 20h00, o arguido dirigiu-se ao local de trabalho da vítima com os filhos de ambos e caminharam apeados para casa.
9. Já na habitação, o arguido chamou a ofendida ao terraço e retirou-lhe o telemóvel.
Afirma o Recorrente que:
Ser controlador e ciumento numa relação amorosa entre duas pessoas constitui um acto de violência psicológica.
Sucede que no caso concreto nenhum facto provado concretiza em que se traduzia aquele comportamento controlador e ciumento.
Tais afirmações acabam por traduzir meras conclusões de facto de cariz vago e genérico, sem qualquer concretização na sua materialidade e localização temporal.
Provou-se, por outro lado, que em dias não concretamente apurados, o arguido disse à ofendida: “
não prestas
!”; “
és má mãe
!”; “
não vales nada
!”, o que aconteceu, por vezes, na frente dos filhos.
Porém, igualmente quanto a este comportamento, nada se apurou quanto à frequência com que tal sucedeu, desde quando e até quando.
Perante o tempo de relacionamento estabelecido entre a ofendida e o arguido, que terá durado vários anos, pelo menos até 20 de Dezembro de 2020, data em que situam os factos descritos sob o ponto 8., aquelas afirmações dirigidas pelo arguido à ofendida poderão ter-se verificado duas vezes, três vezes ou muitas mais vezes.
O arguido, ao dizer à ofendida que a mesma não valia nada e que não prestava, afirmou que a ofendida é alguém sem valor, que é um ser desprezível, uma inútil, uma pessoa insignificante, um ser inferior, pois é esse o significado de tais afirmações.
Inequívoco ainda que ao dizer à ofendida que era uma má mãe, o arguido a ofendeu na sua honra, como mãe e como pessoa, como se conclui na sentença recorrida:
a imputação feita de factos desonrosos
(má mãe, não prestas
),
(é)
causadora de ofensa da honra e dignidade.
Como se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25-01-2023, no Processo n.º 564/19.5PIPRT.P1 (Relator: Donas Botto):
I
-
São maus tratos psíquicos, entre outros, os insultos, críticas e comentários destrutivos, achincalhantes ou vexatórios, a sujeição a situações de humilhação, as ameaças, as privações da liberdade, provocar estados de angústia e sentimentos de sujeição, opressão, que apesar do sua baixa intensidade quando considerados avulsamente são adequados a causar graves transtornos na personalidade da vítima quando se transformam num padrão de comportamento no âmbito da relação.
II - Por isso, constituem danos suficientemente graves para ofender a saúde psíquica e emocional da vítima, incompatível com a dignidade da pessoa humana, representando um aviltamento e humilhação da vítima que não são suficientemente protegidos pelo tipo de crime de injúria
.
Ora, perante a factualidade em concreto provada e na ausência de demonstração da concretização temporal e do número de vezes em que aquelas condutas tiveram lugar, a par do desconhecimento do seu circunstancialismo concreto, não é possível concluir que, durante o relacionamento, a ofendida tenha sido sujeita a insultos vexatórios, a um estado de sujeição ao outro, de modo a afectar a sua dignidade enquanto ser humano, com a relevância e significância necessárias ao preenchimento do elemento objectivo típico de
maus tratos psíquicos
.
É certo que aqueles comportamentos foram assumidos pelo arguido, por vezes, na presença dos filhos menores de ambos.
Como se evidenciou no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13-0-2018, proferido no Processo n.º 189/17.0GCOVR.P1 (Relatora: Eduarda Lobo):
É especialmente humilhante um pai ou uma mãe ser agredido na presença dos filhos, sendo a humilhação agravada se o agressor for o outro progenitor. O comportamento revela um desejo de abaixamento do ofendido, sendo que as regras mínimas de civilidade impõem que cada um dos progenitores preserve a imagem do outro, perante os filhos menores de ambos
.
Tal entendimento, que aqui perfilhamos, é válido quer se trate de agressões físicas, quer se trate de agressões de ordem verbal, sendo ambas especialmente humilhantes quando perpetradas na presença dos filhos menores do agressor e da vítima.
É certo igualmente que a humilhação reiterada assume especial significância no seio de uma relação de coabitação e conjugalidade, ainda que as condutas, se isoladamente consideradas ou deslocadas dessa relação, possam ser consideradas de pouca gravidade.
Contudo, no caso concreto, perante os factos em concreto provados, não poderá ser afirmada uma conduta reiterada e persistente ao longo dos anos da vida em comum, porquanto é de todo desconhecido o número de vezes em que a mesma ocorreu ou a sua frequência.
E se é verdade que um único acto isolado poderá integrar uma situação de maus tratos físicos ou psíquicos a que alude o normativo legal em causa, para que assim seja e para que esse acto constitua um
plus
relativamente àqueles que integram a multiplicidade de tipos de crime que poderão integrar a violência doméstica (ofensa à integridade física, ameaça, injúria, coacção, difamação, e outros), terá esse acto de revestir uma gravidade acrescida ao nível da ilicitude, quer pela forma como é executado, quer pelas suas consequências, de modo a justificar a censurabilidade acrescida inerente ao tipo legal em análise, evidenciado na moldura penal que lhe é abstractamente aplicável.
Reproduzindo o plasmado no citado Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 2-11-2015 no processo n.º 77/14.1TAAVV.G1:
as ações ou omissões, têm de ser particularmente graves, quer porque constantes ou reiteradas, traduzindo um padrão comportamental, quer porque particularmente intensas ou desvaliosas, prescindindo-se então dessa reiteração
.
Ora, sempre com todo o respeito que a opinião contrária nos merece, a conduta levada a cabo pelo arguido não atinge um nível de ilicitude acrescido relativamente ao tipo legal de injúria e ao tipo legal de perseguição, constatados na decisão recorrida.
A conduta em concreto perpetrada não fundamenta a conclusão de que o arguido tratou a ofendida de forma desprimorosa, que a inferiorizou, ou que a humilhou de forma continuada e persistente, de modo a ter-se como verificado o preenchimento de uma situação objectiva de maus tratos psíquicos para efeitos do tipo legal em causa.
Tão pouco se poderá ter como demonstrada a existência de maus tratos físicos.
É certo que se provou que,
durante uma discussão
, o arguido
agarrou no braço da ofendida com força
e que
no dia 20 de dezembro de 2020, no terraço, lhe retirou o telemóvel.
Afirma o Recorrente que
retirar o telemóvel da mulher meio de comunicação, sem fundamento, constitui um acto de violência gratuito
, bem como que
no âmbito de uma discussão, agarrar o braço com força constitui um acto de violência física.
Porém, não se encontra demonstrada a concreta motivação do arguido quando retirou o telemóvel à ofendida, nem o tempo em que dele ficou privada, quando é certo que se encontra provado que:
A ofendida foi atrás dele para recuperar o telemóvel e, de forma não apurada, magoou-se
(ponto 10. dos factos provados).
Deste modo, não poderá inferir-se dos factos provados que o arguido privou a ofendida do seu meio de comunicação.
Note-se, por outro lado, que não resultou provado, além do mais, que:
- o arguido quis e conseguiu que a vítima se sentisse num constante estado de ansiedade, receando estar a ser controlada e humilhada, bem como receando pelas atitudes que o arguido pudesse tomar em relação a si, nomeadamente que a ofendesse na sua integridade física.
- o arguido quis atingir a ofendida na sua saúde física.
Deste modo, os factos concretamente provados, não consentem a afirmação de que as condutas do arguido julgadas provadas ofenderam integridade física da ofendida, nem que atingiram a sua dignidade enquanto ser humano, designadamente, que esta se tenha sentido desprezada e rebaixada na sua pessoa, que se tenha sentido receosa, nem que a sua tranquilidade familiar haja sido abalada e beliscada por essas condutas
Não é possível afirmar perante a factualidade provada um
tratamento cruel, degradante ou desumano da vítima
, nos termos a que se alude no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11-03-2021 atrás citado, nem que possa ser sequer proximamente adjectivado a esse nível.
Como refere a Ex.
ma
Procuradora-Geral Adjunta no seu douto Parecer:
uma conduta materialmente não grave perpetrada no âmbito familiar e doméstico, como sejam uma simples bofetada ou soco, ou injúrias/insultos e críticas, no caso, dirigidas pelo agente no domicílio comum à companheira ou à filha menor desta, encerra uma danosidade social distinta da ofensa praticada em contexto não-doméstico, pois semeia o medo, a desconfiança, a insegurança, sentimentos que são contrários àqueles que são costumeiros no seio familiar, primeiro e último reduto de proteção do indivíduo.
No caso em apreço, não se descortina na factualidade provada que as condutas perpetradas pelo arguido, visando a ofendida, tenham tido consequências ao nível do seu sentimento de segurança no lar, que por causa delas aí tenha sido semeado o medo e a desconfiança, que a tenha passado a ter uma vida imbuída de intranquilidade, de receio ou temor de que algo de negativo lhe pudesse acontecer.
Em síntese, que a conduta do arguido
haja colocado em crise a pacífica convivência familiar, para-familiar ou doméstica
, nos termos a que se alude naquele Parecer.
Assim, perpectivada a conduta do arguido na sua globalidade, entendemos que a mesma não integra os elementos objectivos típicos do crime de violência doméstica, desde logo por não se subsumir ao conceito de
maus tratos físicos ou psicológicos
a que se reporta o art.º 152º/1 do Código Penal.
Em conformidade, improcede o recurso interposto.
*
IV. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes da 9ª secção criminal do Tribunal desta Relação em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, confirmando a sentença recorrida.
Sem custas.
Notifique.
Lisboa, 6 de Fevereiro de 2025
(anterior ortografia, salvo as transcrições ou citações, em que é respeitado o original)
Elaborado e integralmente revisto pela Relatora (art.º 94.º n.º 2 do C.P. Penal)
Paula Cristina Bizarro
Jorge Rosas de Castro
Manuela Trocado
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TRL
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https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/e56c6aeff8fc6a1c80258c45005c0fea?OpenDocument
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1,743,897,600,000
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REVOGADA A SENTENÇA
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3155/23.2T8AVR.P1
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3155/23.2T8AVR.P1
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CARLOS CUNHA RODRIGUES CARVALHO
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I - Nos termos do artigo 311.º do Código da Propriedade Industrial são requisitos da Concorrência Desleal:
(I)
a existência de uma relação de concorrência;
(II)
a deslealdade (contrariedade às normas ou usos honestos da atividade económica;
(III)
a culpa.
II -
(I)
O que seja concorrência apela ao conhecimento de duas das posições mais sustentáveis: (a) uma concepção intermédia para a qual é suficiente a possibilidade factual de desvio de clientela, admitindo-se concorrência não só entre produtos ou serviços substitutos, mas também entre aqueles que se encontrem em relação de complementaridade desde que as necessidades que se visam satisfazer se insiram no mesmo mercado; (b) uma concepção restrita que exige disputa concreta da mesma clientela.
III - O que está em jogo na
relação de concorrência
é a disputa da mesma clientela, na expressão de Carlos Olavo, são próximas as actividades quando se revelam idênticas ou afins.
IV - É ajustado o recurso a certos critérios típicos do direito das marcas para se aferir o que sejam produtos (e serviços) afins para efeito do referido no ponto anterior, concretamente os critérios a propósito dos requisitos quanto à proibição da reprodução ou imitação de marca que, nos seus requisitos, exige a sintonia de produtos ou serviços (identidade e afinidade) – art.º 232.º, n.º 1, al.a e b) do CPI.
V - Deve entender-se como tal os produtos ou serviços que apresentam entre si um grau de semelhança ou proximidade suficiente para permitir, ainda que parcialmente, uma procura conjunta, para satisfação de idênticas necessidades dos consumidores.
VI -
(II
)
«..a concorrência desleal visa obstar a atos contrários aos usos honestos do comércio, repudiados pela boa consciência dos agentes do mercado e capazes de causar prejuízos a concorrentes, que se assomam como ilegítimos, injustificados, resultantes não das competências próprias, mas do aproveitamento, usurpação ou clonagem de competências alheias.»
VII -
(III)
A culpa é apreciada em abstrato com recurso à figura do homem médio (art.º487.º, n.º2.º, do CC), devendo esse padrão ser adaptado, na CD, ao concorrente médio do sector onde intervêm os concorrentes.
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[
"CONCORRÊNCIA DESLEAL",
"REQUISITOS"
] |
Apelação 3155/23.2T8AVR.P1
I.
[1]
Pâtisserie A...
com sede em ... Paris, França, inscrita no Registo Comercial e Comercial ...40, intentou ação declarativa, sob a forma comum, contra
B..., Lda.”,
com sede na Rua ..., ..., Aveiro e NIPC ...05, na qual peticionou que a ré fosse condenada a:
i. alterar e abster-se de utilizar as cores rosa-pálido, verde-pálido e azul-pálido nas caixas de embalagem dos seus produtos de confeitaria;
ii. alterar e abster-se de voltar a usar o tom de verde-pálido, rosa-pálido e azul-pálido usado pela autora na pintura do mobiliário de loja;
iii. alterar e abster-se de voltar a utilizar a inicial “P” num círculo nos seus balcões, em cópia do “L” num círculo dos balcões da autora, tal como consta da página principal do website da Ré;
iv. promover as alterações requeridas na presente ação em todo o marketing, websites, vestuário, publicidade e futuras referências à autora como fonte que serviu de referência na remodelação, pelo grupo “C...” que detém a ré.
v. proceder às alterações necessárias nas suas lojas para cumprimento do peticionados nos pontos i., ii. iii. e iv., no prazo máximo de 30 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, bem como, nos termos do artigo 829.º-A do CC, ser condenada em sanção pecuniária compulsória de 100,00 € (cem euros) por cada dia de atraso no respetivo cumprimento.
Mais requereu que fosse oficiosamente extraída certidão dos presentes autos para instauração do processo de contraordenação pela prática suprarreferida, que consubstancia contraordenação muito grave, nos termos do artigo 18.º do Regime Jurídico das Contraordenações Económicas, por remissão do artigo 330.º do Código da Propriedade Industrial.
Para o efeito, alegou, em síntese, que:
- se dedica à produção de confeção de pastelaria, da qual se destacam os “
macarons
” e que se trata de uma marca de projeção internacional, presente em muitos países e reconhecida, designadamente, pelos consumidores;
- é igualmente conhecida pela disposição interna dos seus produtos e pelo layout dos seus estabelecimentos, em conjunto com a utilização de cores específicas que a demarcam da concorrência e que são uma alusão à decoração interna dos palácios franceses do tempo do Rei Luís XIV;
- a ré é a sociedade proprietária e gestora da denominada “Confeitaria D...”, uma confeitaria antiga situada em Aveiro, conhecida pela venda de doçaria, destacando-se os seus ovos-moles e que foi objeto de uma profunda e total renovação, tendo reaberto ao público a 8-08-2018;
- a renovação do interior da loja da ré em Aveiro apresenta uma inequívoca semelhança com o padrão por si utilizado, desde a utilização das cores cor-de-rosa pálido, o verde-pálido, azul-pálido, à disposição das caixas, à utilização da primeira letra do nome, neste caso “P” nos balcões, a própria cor do balcão, exatamente da mesma forma e disposição encontrada nos seus balcões;
- a ré abriu uma loja no Aeroporto de Lisboa, onde se torna mais patente a cópia dos seus estabelecimentos e que é vista por milhares e milhares de turistas estrangeiros que passam por este aeroporto;
- solicitou à ré que cessasse a utilização da cor verde no mobiliário de loja, na montra e no logótipo e a alteração das cores utilizadas nas caixas, contudo, esta não atendeu ao seu pedido;
- várias notícias, websites e comentários fazem alusão à cópia de toda a estética das suas confeitarias;
- a utilização, inequivocamente propositada, dos layouts, de cores com códigos iguais às cores por si utilizadas, do conceito das caixas e da disposição interna e externa dos produtos em loja, a imitação do logótipo nos balcões, constitui conduta suscetível de criar confusão com a sua empresa, o seu estabelecimento e os seus produtos;
- apesar da sua loja de Lisboa ter sido fechada, tem intenção de voltar a ter um ou mais estabelecimentos em Portugal;
*
A ré,
B..., Lda.
deduziu
contestação
defendendo-se: por excepção, alegando a incompetência absoluta deste Tribunal, por entender que a mesma pertence ao tribunal da propriedade industrial e por impugnação, invocando, em suma, que:
- não tem atividade em nenhum dos países em que a autora está presente, e esta não tem atividade em Portugal, pelo que os consumidores não tem a possibilidade de adquirirem os mesmos produtos no estabelecimento de uma ou de outra, nem os seus estabelecimentos se apresentam como alternativa aos da autora e não disputam a mesma clientela, inexistindo concorrência entre ambas;
- os estabelecimentos estão devidamente identificados com nomes diferentes, vendem produtos diferentes e apresentam igualmente características inconfundíveis;
- ainda que os estabelecimentos em causa partilhassem alguma característica comum, esta diria respeito a elementos que podem ser usados livremente por qualquer comerciante, na medida em que não podem ser objeto de apropriação exclusiva pela autora;
- a Confeitaria D... é um estabelecimento fundado em 1856, que se dedica exclusivamente ao fabrico e comercialização de doçaria regional aveirense, nomeadamente os ovos-moles;
- a remodelação da Confeitaria D... pretendeu obter uma ligação entre o espaço comercial e a história através da decoração do espaço que procurou evocar o estilo Arte Nova e mediante a exibição, à entrada da loja, de um raro exemplar da primeira edição d'Os Maias, de Eça de Queiroz;
- apenas o estabelecimento de Aveiro, por razões técnicas, que resultam do facto de o balcão de atendimento se localizar num corredor estreito, tem o “P” de “D...” nas almofadas do mesmo;
- a letra “P” usada é gráfica e foneticamente totalmente distinta da letra “L” usada pela autora nos seus estabelecimentos e trata-se da sigla de “D...”;
- os seus estabelecimentos têm em grande destaque anunciado o principal produto comercializado e a sua especialidade: “OVOS MOLES DE AVEIRO”;
- apenas comercializa nos seus estabelecimentos doces tradicionais de Aveiro, não comercializando macarons;
- o seu estabelecimento é antigo, bem conhecido do público consumidor, não havendo qualquer possibilidade de os consumidores se dirigirem a este estabelecimento convencidos de que se trata de um estabelecimento da autora;
- a autora não tem nenhum monopólio sobre a utilização de cores, nem sobre a letra “L” ou do uso de letras individuais.
*
Dispensou-se a realização de audiência prévia, definiu-se o valor da causa, e foi proferido
despacho saneador
, no qual se julgou improcedente a exceção de incompetência absoluta do Tribunal invocada pela ré e se fixou o objeto do litígio e se enunciaram os temas da prova.
*
Realizada a
audiência de julgamento
foi proferida sentença, decidindo-se a final:
« Face ao exposto,
julga-se totalmente improcedente
a presente ação e, em conformidade, decide-se,
ABSOLVER
a ré dos pedidos formulados pela autora
.»
*
Do assim decidido interpôs a A. recurso de apelação oferecendo alegações e formulando as seguintes CONCLUSÕES:
1. A Recorrente pugna pela revogação da sentença recorrida, por entender que o Tribunal
a
quo
apreciou incorretamente a matéria de facto e de direito.
2. Os factos A) e B) da Sentença recorrida deverão constar da factualidade dada como provada.
3. Relativamente ao facto A), a partir dos factos provados, é evidente que a Confeitaria D..., após ter integrado o grupo “C...” em 2018, copiou a identidade visual da marca Ladurée, tanto em termos de decoração como de apresentação dos seus produtos.
4. O próprio presidente do grupo, AA, admitiu publicamente a intenção de replicar o
modus
operandi
da Ladurée, fazendo uma comparação direta entre os dois estabelecimentos, antes sequer de se dar a reabertura da Confeitaria D... ao público.
5. Apesar disso, o Tribunal
a
quo
não reconheceu a existência de uma intenção de copiar a imagem da Recorrente, baseando-se em testemunhos contraditórios.
6. As evidências apresentadas – como a semelhança nos elementos decorativas cores e o
layout
dos estabelecimentos – evidenciam claramente uma tentativa de usurpação da imagem da Recorrente, configurando um caso de "parasitismo", onde a Recorrida beneficia, indevidamente, do prestígio da Recorrente.
7. Antes da renovação, os códigos de cores da Confeitaria D... assentavam em tons de castanho e bege, como se vê nas imagens juntas com a Petição Inicial, diferenciando-se completamente dos tons usados desde a aquisição da Recorrida, o que apenas acentua a vontade de copiar a identidade e a imagem da Recorrente, ao invés de continuar a sua própria história.
8.A imagem e reconhecimento internacional da Ladurée foi devidamente testemunhada em Tribunal pela testemunha BB, por depoimento prestado na sessão de Discussão e Julgamento da Causa de dia 31.05.2024, gravado em sistema Habilus, como
supra
transcrito, para além da prova documental junta aos autos.
9. Esta óbvia semelhança foi confirmada pelo Tribunal
a
quo
, tendo, no entanto, falhado esse Tribunal em extrair a conclusão que se impunha dessa manifesta semelhança.
10. Entende a Recorrente que da factualidade dada como demonstrada, resulta claro e evidente para qualquer homem médio que foi efetivamente copiada pela Recorrida a imagem pela qual a Recorrente é internacionalmente reconhecida – vide factos provados 2, 6, 8, 9 e 12.
11. Sempre se poderá recorrer
in
casu
à presunção judicial para dar como demonstrada a matéria constante deste ponto dos factos.
12. Resulta à saciedade que o presidente do grupo que adquiriu a Recorrida tinha a intenção expressamente e publicamente confessada de aplicar nas lojas da Recorrida o conceito e imagem da Ladurée e o resultado dessa mudança de imagem é demonstrativo do sucesso desse desígnio.
13. Portanto, é questionável a decisão do Tribunal, que não considerou suficientemente estas provas, favorecendo uma interpretação que minimiza a evidência de cópia e do consequente aproveitamento da projeção internacional da Recorrente.
14. Termos em que se requer seja alterada a resposta dada pelo Tribunal
a
quo
ao facto não provadoA), passando o mesmo a ter a resposta de provado.
15. Relativamente ao facto B), relevam igualmente as declarações do presidente do grupo“C...”, queassumiuaintenção de imitar a A..., oque demonstra claramente que a estratégia de renovação visava atrair clientes através das semelhanças com a referida marca, o que induz em confusão o consumidor.
16. Esse fenómeno de imitação, configurando um "parasitismo", foi ratificado por diversos artigos e comentários que associaram a Confeitaria D... à Ladurée.
17. A prova produzida, incluindo o facto 15) da sentença, revela que os consumidores associam a Recorrida à marca francesa.
18. Para além disso, atente-se ainda ao testemunhado pela testemunha BB, por depoimento prestado na sessão de Discussão e Julgamento da Causa de dia 31.05.2024, gravado em sistema Habilus, como
supra
indicado.
19. Note-se que até uma funcionária da Recorrida, a testemunha CC, filha dos anteriores proprietários da confeitaria D..., confirmou ter tido clientes que fizeram a comparação entre a Ladurée e o estabelecimento da Recorrida, conforme excerto de depoimento prestado na sessão de Julgamento de dia 20.06.20224 e gravado em sistema Habilus, como
supra
referido.
20. Resulta dos factos já provados e dos depoimentos das testemunhas indicados, que mal andou o Tribunal
a
quo
ao dar como não provado facto B), o qual deverá passar a ter a resposta de provado.
21. Considera a Recorrente que o Tribunal
a
quo
fez uma errada interpretação e aplicação de vários pontos da factualidade dada como provada.
22. Ainda que a Recorrida tenha alegado que o seu estabelecimento é antigo, a data a ser tida em conta deverá ser sempre o ano de 2018, ano este em que a Confeitaria D... foi adquirida pelo grupo “C...” a qual, após uma renovação total, reabriu ao público em agosto desse mesmo ano.
23. Embora a Confeitaria D... seja anterior à Ladurée, a renovação recente e a imitação clara da imagem de uma marca internacionalmente famosa evidenciam um aproveitamento desleal da sua projeção, configurando uma prática desleal e desonesta.
24. Quanto à discussão que o Tribunal
a
quo
destaca sobre as letras “L” e “P”, cabe-nos referir que o pedido da Recorrente na Petição Inicial visava a proibição do uso da letra "P" em círculo nos balcões da Recorrida, de forma semelhante à letra "L" dos balcões da Recorrente.
25. O Tribunal
a
quo
focou-se indevidamente nas diferenças gráficas e fonéticas entre as letras, quando o que estava em causa era a identidade na utilização da letra inicial de cada marca, e na identidade visual como um todo;
26. Isto é, ambos os estabelecimentos utilizam uma letra – que corresponde à inicial do sinal da respetiva marca – dourada em círculos dourados, dentro de linhas retas douradas, em balcões verde-pálidos, criando uma semelhança clara na sua identidade visual.
27. A questão não é a fonética das letras, mas a cópia da identidade visual da Recorrente, configurando uma imitação desleal.
28. Quanto à associação do conjunto de símbolos da Ladurée pela Confeitaria D..., o Tribunal
a
quo
cometeu um erro ao analisar de forma fragmentada os elementos imitados pela Recorrida, quando a avaliação deveria ser feita de forma holística, considerando a "impressão de conjunto", como preconizado pela doutrina e jurisprudência.
29. A Recorrida copiou claramente a identidade visual da Recorrente, uma vez que são vários os elementos que aquela usurpou: as letras iniciais da denominação das marcas (Ladurée e D...) que está, em maiúscula, inserida num círculo dourado, que está por sua vez entre linhas retas douradas, num balcão verde-pálido; os produtos concorrentes que são
mignardises
, apresentando-se como congéneres, substituíveis e intercambiáveis; ambas serem marcas de monoproduto; as caixas de embalamento terem exactamente as mesmas cores cor-de-rosa, verde e azul pálidos, sendo que o elemento que mais sobressai é a própria cor da caixa; a exposição das caixas coloridas por detrás do balcão; a utilização das cores cor-de-rosa pálido, verde-pálido e azul- pálido na decoração do estabelecimento; o uso do verde-pálido no balcão; e os candeeiros do balcão que são demasiado semelhantes aos da Recorrente.
30. A Recorrente é amplamente conhecida pelo seu
layout
único – como consta da factualidade provada –, que foi indevidamente usurpado pela Recorrida, configurando um ato de concorrência parasitária.
31. Toda a factualidade apurada nestes autos e dada como provada, aliada aos factos por cuja resposta de provado se pugnou
supra
, não se pode aceitar a decisão de Direito alcançada pelo Tribunal
a
quo
, a qual é manifestamente incorreta.
32. Especialmente quando este conclui que a Recorrente e a Recorrida não podem ser consideradas como concorrentes.
33. Relativamente à suposta não concorrência, foi dado como provado o facto de a Ladurée e a Confeitaria D... visarem a mesma clientela, i.e., turistas.
34. Turistas esses que passam logicamente pelo Aeroporto de Lisboa.
35. Como invocado nos Artigos 79º e ss. da Petição Inicial, os países de onde viajaram mais passageiros para Portugal, no primeiro semestre de 2022, foram o Reino Unido, a França e a Alemanha,
36. Países nos quais existem lojas Ladurée, pelo que os clientes da Recorrida conhecerão, com grande probabilidade, a marca da Recorrente, até porque a Ladurée é uma marca notória.
37.Não se pode, então, deixar de concluir que a clientela da Recorrida é a mesma
da Recorrente, contrariamente ao que o Tribunal
a
quo
entendeu, como aliás foi dado como provado nos factos 7), 18) e 19) da Sentença.
38. E dada a globalização e o aumento do turismo, não pode, mais uma vez, a Recorrente concordar com o facto 20) da Sentença.
39. O Tribunal
a
quo
desconsiderou que, mesmo que a Recorrida não tenha atividade em outros países, a competição entre as marcas é clara e ocorre no mesmo mercado e, dado o renome da marca da Recorrente, tal agrava ainda mais o risco de confusão.
40. Adicionalmente, ainda que se chegasse a outra conclusão, o que se rejeita e por mera cautela de patrocínio se equaciona, foi dado como provado, no facto 17), que a Recorrente voltará a ter estabelecimentos em Portugal.
41. Assim o Direito não pode permitir que a Recorrente e a Recorrida dispute entre si e no mesmo espaço territorial a mesma clientela.
42. Os produtos da Recorrente e da Recorrida são da mesma categoria, i.e., são produtos de doçaria em pequeno formato ou miniatura, muito doces, usualmente ambos designados como
mignardises,
sendo notório que os
macarons
e os ovos-moles em hóstias têm um formato, em termos de dimensão, muito idêntico.
43. Ambos os produtos cumprem a mesma função e satisfazem a mesma necessidade ou a mesma conveniência do consumidor, pelo que os
macarons
e os ovos-moles em hóstias da Recorrida são congéneres, substituíveis e intercambiáveis, ou seja, são produtos concorrentes.
44. A Recorrida beneficia indevidamente do prestígio da marca Ladurée, um fenómeno configurado como parasitismo.
45. A legislação de concorrência desleal, tanto nacional quanto internacional, protege contra a imitação do "
trade
dress
" ou a aparência visual de produtos e estabelecimentos, sendo que tal imitação pode gerar confusão no consumidor, o que configura uma situação de concorrência desleal, nos termos do Artigo 311º nº1 a) do CPI.
46. A Doutrina e a jurisprudência – nacional e europeia –,
supra
invocadas sustentam, igualmente, a mesma posição.
47. Basta o mero perigo de confusão para se concluir como concorrência desleal.
48. Não pode a Recorrente concordar com o Tribunal
a
quo
, quando o mesmo considera que a Recorrida não se aproveitou indevidamente do prestígio da marca da Recorrente.
49. A imitação do “
trade
dress
” da Ladurée pela Confeitaria D... configura um ato de aproveitamento, ou “
free
riding
”, que visa beneficiar da reputação e prestígio da Recorrente, sem os custos e o esforço que a marca original investiu ao longo dos anos.
50. Mesmo que não se verifique confusão – o que ainda não se concebe –, a utilização não autorizada de elementos distintivos da Ladurée é um ato de concorrência desleal, conforme o Artigo 311º nº1 alínea c) do CPI, configurando parasitismo.
51. A jurisprudência europeia sustenta que tal aproveitamento, sem mérito próprio, é desleal, pois explora indevidamente a imagem construída pela outra marca.
52. A concorrência desleal, ao aproveitar indevidamente a reputação e o prestígio de outro, prejudica não só a marca original, mas também os concorrentes que agem de forma honesta.
53. Aceitar a sentença proferida pelo Tribunal
a
quo
é abrir um precedente para que mais marcas procedam à imitação servil de outras – como faz a Recorrida
in
casu
–, num puro ato de parasitismo, uma vez que se apercebem que saem impunes de tal comportamento não-ético, desleal e desonesto, comportamento esse que o Direito não pode tolerar.
54. Uma vez que improcederam os pedidos de condenação da Recorrida, crê a Recorrente que, por parte do Tribunal
a
quo
sempre deveriam ter sido tidas em conta as normas previstas e contempladas nos Artigos 311º e 330º do CPI.
55. A Recorrida, ao praticar atos de concorrência desleal, ao usurpar o "
trade
dress
" da Recorrente, cometeu uma contraordenação económica muito grave, que deve ser punida nos termos do regime jurídico aplicável.
56. Assim, deve ser ordenada à Recorrida a cessação imediata do uso indevido das cores nas caixas de embalagem dos seus produtos e no mobiliário da loja; do uso indevido da inicial P num círculo dourado nos seus balcões, em cópia do L num círculo dourado dos balcões da Recorrente; promover as alterações requeridas na presente ação em todo o marketing, websites, vestuário, publicidade e futuras referências à Recorrente como fonte que serviu de referência na remodelação, pela Recorrida; além de ser condenada a realizar as alterações necessárias nas suas lojas no prazo máximo de 30 diasa contar do trânsito em julgado da sentença, sob pena de sanção pecuniária compulsóriade € 100,00 (cem euros) por cada dia de atraso no respetivo cumprimento, nos termos doArtigo 828º-A do CC.
57. A Sentença recorrida faz uma errada e não fundamentada aplicação do direito, violando o disposto nos Artigos 311º nº1 alíneas a) e c) e 330º do CPI.
58. Por todo o supra exposto, não pode a Recorrente aceitar o entendimento do Tribunal
a
quo
, pelo que terá de ser revogada a Sentença recorrida, e substituída por outra que condene a Ré nos termos supra requeridos.
*
A R. contra-alegou, subsidiariamente, apenas na eventualidade de as questões suscitadas pela Recorrente terem provimento, requerendo a ampliação do objecto de recurso nos termos do art.º 636.º n.º 2, do Cód. Proc. Civil.
Conclui
nos seguinte termos:
A. A sentença proferida pelo Juiz 2 Local Cível do Tribunal Judicial de Aveiro que julgou totalmente improcedente a acção intentada pela Recorrente não merece qualquer censura, tendo procedido à correta aplicação da doutrina, jurisprudência e do Direito ao caso concreto.
B. Contrariamente ao pretendido pela Recorrida, os factos A e B da matéria de facto não provada devem manter-se como não provados, verificando-se correcta aplicação do Direito à matéria de facto provada.
C. O facto A deve manter-se como não provado, porquanto não só não existiu qualquer cópia da Recorrida em relação à Ré, como, logicamente, nenhuma intenção de copiar a imagem ou qualquer elemento da Recorrente.
D. A Recorrente não explica porque é que os meios de prova que fundamentaram a decisão do Tribunal devem ser descartados, ou que contrariedade existe, não cumprindo o ónus da especificação que sob ela impende.
E. Em todo o caso, resulta dos factos provados que inexiste cópia dos estabelecimentos da Recorrente, até porque nem estes são idênticos entre si, mas também porque ficou provado que são projectos distintos, com inspirações arquitectónicas distintas (Luís XIV, da parte da Recorrente, Arte Nova de Aveiro, da parte da Recorrida), que resultaram em diferenças entre os estabelecimentos das diferentes partes.
F. Sempre inexistiria qualquer intenção de cópia, porquanto a Recorrida adotou um projeto de inspiração arquitectónica na Arte Nova de Aveiro, com elementos decorativos próprios (como a ilustração nas caixas e parede), tendo algumas das opções decorativas sido ditados por questões espaciais e técnicas.
G. Não existe qualquer intenção de aproveitamento de qualquer projecção internacional (não provada) que a Recorrente pudesse ter, considerando que a Recorrida comercializa um produto totalmente distinto que é tradicional de um local específico de Portugal (ovos-moles de Aveiro), fazendo-o com recurso a elementos nacionais, produto esse que a Recorrente não comercializa.
H. Inexistiu qualquer assunção de intenção de cópia dos estabelecimentos da Recorrente por parte de AA na entrevista editada que a Recorrida apresentou como meio de prova, não só porque não correspondem a declarações, como também da frase selecionada não surge qualquer manifestação de cópia de estabelecimento ou decoração, nem comparação com outrem, mas antes a intenção de focar e elevar um produto a níveis de excelência, tal como já feito nos restantes estabelecimentos do Grupo.
I. Esta visão é corroborada e explicada pelo testemunho de DD: Diligencia_3155-23.2T8AVR_2024-05-31_16-30-05 00:01:51, 00:01:58 a 00:02:11, 00:02:22, 00:02:28 a 00:02:38, 00:12:40, 00:12:49 a 00:12:59, 00:13:58 a 00:14:13, 00:14:22 a 00:14:28, 00:14:38 a 00:14:51, 00:15:01 a 00:15:18.
J. O facto B deve também manter-se na matéria de facto não provada, porquanto não resulta de nenhum depoimento ou documento que tenha ocorrido confusão ou suscetibilidade de confusão entre estabelecimentos e/ou produtos, nem qualquer escolha feita por um consumidor do estabelecimento da Recorrida por causa de qualquer decoração de estabelecimento, muito menos da Recorrente.
K. Os comentários e artigos juntos pela Recorrente demonstram que os intervenientes distinguem bem ambas as entidades, procurando de antemão a Recorrida pelos ovos-moles e não demonstrando qualquer atracção pela Recorrida por outro motivo que não seja esse.
L. A Recorrente não especifica como é que o testemunho de BB deve sustentar a não inclusão deste facto na matéria não provada, incumprindo o ónus de especificação; em todo o caso o mesmo não se revela credível, atendendo a que não visitou os locais, nem sabe quantos estabelecimentos são operados pela Recorrida (Diligencia_3155-23.2T8AVR_2024-05-31_13-55-01, 00:27:46, 00:28:21 a 02:28:22, 00:29:08 a 00:29:10).
M. As referências nas notícias juntas como prova são a
parisiense
ou à Arte Nova de Aveiro o que, conjugado com os restantes depoimentos e documentos, firmou correctamente a convicção do Tribunal.
N. Do testemunho de CC, não resulta qualquer confusão ou associação entre as entidades por parte dos clientes, nem qualquer decisão de compra destes por causa da Recorrente.
O. Contrariamente ao defendido pela Recorrente, o Tribunal aplicou corretamente a doutrina, Direito e jurisprudência ao caso concreto.
P. A teoria da impressão de conjunto invocada pela Recorrente não se aplica ao caso concreto, mas a marcas e sinais distintivos registados, cujos elementos se encontram determinados e sendo o exclusivo dos mesmos balizado pela publicação dos sinais distintivos.
Q. Relativamente aos elementos das letras P e L, o Tribunal não afirmou apenas a diferença fonética, mas igualmente a óbvia diferença gráfica e visual, seja das próprias letras em si, seja da forma estilizada com que são representadas, distinta e inconfundível.
R. O Tribunal também julgou correctamente que existe justificação legítima para o uso da letra P no caso da Recorrida, inexistindo exclusivo da Recorrente em usar uma inicial de um nome num local de comércio.
S. No que diz respeito à cor verde, a Recorrida escolheu uma cor de um catálogo de tintas de uma empresa (verde Calke green da E...) e a Recorrente afirma usar um verde único o qual, apesar de não ter sido definido pela Recorrente, tem necessariamente de ser diferente.
T. O Tribunal aplicou correctamente a jurisprudência Europeia que determina a incapacidade de ligação entre uma cor e uma entidade empresarial, obstando ao monopólio de uma cor através de uma marca registada e, por maioria de razão, por qualquer outra via como a do instituto da concorrência desleal.
U. Inexiste o elemento “exposição das caixas coloridas por detrás do balcão” por parte da Recorrente, nem qualquer cópia por parte da Recorrida, porquanto nenhuma das imagens escolhidas pela Recorrente demonstra qualquer disposição semelhante à adoptada pela Recorrida.
V. A Recorrente usa outras cores nas caixas dos seus produtos, não sendo titular de qualquer exclusivo sobre as caixas e/ou sobre as cores das caixas, sendo visível o nome de cada uma das entidades por extenso.
W. Nenhum dos estabelecimentos da Recorrente é idêntico entre si ou repete os mesmos elementos, nem o estabelecimento que se encontrou aberto em Lisboa da Recorrente é semelhante aos restantes.
X. Não existe concorrência entre as partes, porquanto a Recorrente não tem qualquer actividade em Portugal e não provou qualquer plano ou preparativo sério de entrada no mercado, nem que voltará a ter qualquer estabelecimento.
Y. Também não existe concorrência entre as partes, porquanto a concorrência não é abstracta e existe em relação a um produto concreto, sendo que os produtos de cada uma das partes são completamente distintos, na medida em que os ovos-moles são de uma região de Portugal e não fornecidos ou associados à Recorrente, encontrando-se devidamente identificados por extenso na loja do aeroporto.
Z. Nenhuma notoriedade ou alegada reputação da Recorrente ficou provada, pelo que deve ser desconsiderada no caso em apreço, sendo que a jurisprudência e doutrina invocadas pela Recorrente são apenas aplicáveis a marcas registadas, que são realidades distintas das que se encontram em discussão.
AA. A Recorrida é já conhecida e procurada por um produto que não é fornecido nem associado à Recorrente.
BB. A Recorrente baseia a sua alegada projecção internacional em elementos históricos distintos dos da Recorrida e que, ou são do domínio público, ou de que não é titular exclusiva.
CC. A Recorrente não provou que qualquer consumidor tenha escolhido a Recorrida ou o seu produto por causa de qualquer elemento da Recorrente.
DD. Inexiste qualquer parasitismo da Recorrida ou aproveitamento por parte da Recorrida.
EE. A doutrina portuguesa aplicável acima identificada permite concluir que a concorrência desleal deve ser
intolerável
, e que nem toda a imitação deve ser reprimida ou sancionada, relevando apenas a confusão juridicamente relevante, sob pena de se impossibilitar qualquer concorrência. No caso concreto não se verifica a existência de qualquer concorrência ou imitação, muito menos intolerável ou qualquer confusão juridicamente relevante.
FF. Também permite concluir que aquilo que é do domínio público não pode ser protegido, muito menos pela via da concorrência desleal, pelo que aquilo a que a Recorrente se arroga como titular não merece uma protecção eterna ou exclusiva a seu favor.
GG. A proibição da evocação não se aplica na concorrência desleal, pelo que nunca se aplicaria, caso se verificasse no caso concreto.
HH. A Recorrente pretende um exclusivo sem ser titular de um direito privativo (nem podendo sê-lo) e que se encontra no domínio público, não merecendo a protecção do instituto da concorrência desleal.
II. Os modelos de negócio não têm tutela por via da concorrência desleal, nem a utilização de projetos técnicos que não se encontrem titulados por um direito exclusivo, pelo que muito menos no caso em apreço mereceria acolhimento, na medida em que existiu um projecto específico distinto encomendado com dispêndio de meios e esforços.
JJ. A regra é a da liberdade de imitação e da livre iniciativa, que não pode ser coartada injustificadamente sem a existência de qualquer direito privativo ou tutela exclusiva.
KK. Nenhuma das pretensões da Recorrente merece a tutela da concorrência desleal, seja porque falham os pressupostos no caso concreto, seja porque não merece a sua protecção.
LL. Inexistindo acto de concorrência desleal, também não se verifica a prática da contraordenação respectiva, falhando o preenchimento de todos os pressupostos.
MM. Deve a sentença da primeira instância ser totalmente confirmada.
NN. A Recorrida requer, subsidiariamente, a ampliação do objecto de recurso nos termos do art.º 636.º n.º 2 do CPC, pretendendo impugnar pontos da matéria de facto não impugnados pela Recorrente e na eventualidade de as questões suscitadas por esta procederem.
OO.A Recorrida impugna o ponto 3 da matéria de facto provada, requerendo a sua exclusão dos factos provados.
PP. O
reconhecimento
internacional
é provado documentalmente com estudos de mercado, decisões de Tribunais, auditorias, ou outros elementos documentais imparciais e não apenas por depoimento testemunhal.
QQ. Das imagens dos estabelecimentos da Recorrente não resulta corroborado o depoimento da testemunha, na medida em que nem todos os estabelecimentos são iguais, nem reproduzem todos os elementos dos pontos 3.1, 3.2 e 3.3, ditando as regras da experiência e da lógica que o consumidor não identificaria imediatamente uma entidade por aqueles elementos, a não ser que fossem sempre idênticos.
RR. A Recorrente impugna o ponto 8.4 da matéria de facto, devendo passar a ler-se “A cor Calke Green, n.º 34 do catálogo da E...”, o que resulta do depoimento de EE (00:21:45 e 00:21:57 a 00:22:20) conjugado com o documento n.º 3 junto com a Contestação.
SS. A redacção do facto A da matéria de facto não provada deve ser alterada, passando a ler-se: “A renovação mencionada em 8) tenha sido efetuada com o intuito de copiar e aproveitar da imagem da autora”, eliminando-se a referência a projecção internacional, porquanto a Recorrente não provou a mesma com recurso a documentos aptos para tal prova (como estudos de mercado, prémios e reconhecimentos, ou decisões).
TT. Deverá ser incluído no elenco dos factos provados o seguinte facto: “
Constitui
política
comercial
do
grupo
C...
a
valorização
e
diferenciação
das
suas
marcas
e
estabelecimentos,
tendo
sempre
em
consideração
a
história,
a
cultura
e
o
património
português
procurando,
desta
forma,
conciliar
a
história
e
a
tradição
de
cada
marca
e
estabelecimento
com
a
ousadia,
a
criatividade
e
a
inovação.”,
com fundamento no testemunho de DD (Diligencia_3155-23.2T8AVR_2024-05-31_16-30-05, 00:01:51, 00:01:58 00:02:20, 00:02:22, 00:02:28 a 00:03:10, 00:03:40 a 00:03:56, 00:04:13 a 00:04:42, 00:11:26 a 00:16:08), conjugado com o documento mencionado no ponto 12 da matéria de facto e correspondente à entrevista do Diário de Notícias.
*
A A. respondeu à ampliação do objecto de recurso nos termos do art.º 636.º n.º 2, do Cód. Proc. Civil.,
concluindo:
1. A Recorrida impugna subsidiariamente alguns pontos da matéria de facto considerados provados, ampliando o âmbito do recurso, por precaução face à eventual procedência do recurso da Recorrente.
2. Aimpugnação da Recorrida baseia-se em três aspetos: (i) a discordância quanto à prova dos factos 3 e 8.4; (ii) a redação atribuída ao facto A) na lista de factos não provados; e (iii) a omissão de um parágrafo sobre a alegada política comercial do grupo “
C...
”.
3. A Recorrente, no exercício do contraditório, contesta a impugnação da Recorrida, visando, a final, que seja nestes pontos mantida a decisão proferida em primeira instância.
4. Relativamente ao facto 3) da matéria de facto provada, o reconhecimento e projeção internacionais da marca Ladurée são factos notórios, pelo que não carecem de prova, nos termos do Artigo 412º nº 1 do CPC.
5. A Ladurée é uma marca de grande prestígio reconhecida mundialmente, com presença em diversos países e aeroportos – locais de grande afluência turística –, facto amplamente conhecido e aceite.
6. Nomeadamente no Canadá, Estados Unidos da América, Irlanda, Inglaterra, França,Alemanha, Luxemburgo, Suíça, Egito, Azerbaijão, Qatar, Mónaco, China, Omã, Kuwait, Índia,Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos.
7. É igualmente facto notório que a Ladurée é uma marca de grande prestígio, prestígio esse que nutre desde a sua fundação, em França, no ano de 1862.
8. O prestígio da Ladurée é tal que o presidente do grupo “C...” demonstrou intenção de replicá-la, conforme consta dos factos provados 3) e 8) e da sua própria declaração de 3 de julho de 2018.
9. A jurisprudência nacional –
supra
mencionada – confirma que marcas de prestígio são aquelas com excecional notoriedade e atratividade junto do consumidor, requisitos que a Ladurée cumpre inequivocamente.
10. Mesmo que se não considerasse a notoriedade da Ladurée como facto notório (o que se rejeita), foram juntos aos autos diversos meios de prova válidos, nomeadamente: depoimentos testemunhais (ex. BB e CC); notícias, artigos e entrevistas nacionais e internacionais; entre outros.
11.Ainda que o próprio website do Instituto da Propriedade Intelectual da União Europeia refira que “
esta
lista
não
reflete
a
sua
importância
relativa
ou
valor
probatório
”, estão verificados nos autos dois meios de prova referidos por aquela entidade: os depoimentos de testemunhas e artigos na imprensa especializada, ambos dados como provados pelo Tribunal.
12. Acresce que, ao contrário do alegado pela Recorrida, tanto a Ladurée como a Confeitaria D... têm, nas suas lojas, todos os elementos essenciais e distintivos que constam do facto 3) da matéria de facto provada,
13. Pois, como vimos, a Confeitaria D... faz uma cópia exata e assumida do conjunto de elementos de identidade da marca Ladurée,
14. Elementos esses que são usurpados pela Recorrida, sendo que o Direito não pode nunca permitir tal ato de parasitismo.
15. Tão pouco faz sentido a pretensa existência de outras cores, porquanto mesmo que possam existir pontualmente “
outras
cores
” nos estabelecimentos – não sendo isso que está aqui em causa –, a verdade é que as cores visivelmente predominantes são o cor-de-rosa pálido, o verde-pálido e o azul-pálido, conforme se constata nas imagens constantes dos factos provados.
16. A semelhança visual e conceptual entre os espaços comerciais da Recorrente e da Recorrida é evidente, desde a escolha das cores, à disposição das caixas, até ao uso estilizado de letras nos balcões.
17. A tentativa da Recorrida de desvalorizar estes elementos ignora o princípio da "
impressão
de
conjunto
", amplamente reconhecido na jurisprudência –
supra
referida – para a análise de imitação de marcas.
18. Por fim, a notoriedade da Ladurée em Portugal também está demonstrada, através da presença anterior – e futura – no país e do reconhecimento por parte do público, e até do próprio presidente da Recorrida.
19. Por todo o exposto, deverá ser mantido, sem qualquer alteração, o facto 3) da matéria de facto provada, porquanto reflete a realidade amplamente comprovada da notoriedade, identidade visual e prestígio da marca Ladurée.
20. Relativamente ao facto 8.4) da matéria de facto provada, a Recorrida pretende substituir a expressão "
verde-pálido
" por “
calke
green
”, mas tal alteração é irrelevante e desnecessária, pois não acrescenta clareza nem altera a essência do facto provado.
21. O que está em causa não é a designação técnica da cor, mas sim a perceção visual da mesma, tal como observada nos estabelecimentos da Recorrente e da Recorrida, sendo visivelmente iguais.
22. A utilização do verde-pálido pela Recorrida (bem como das cores cor-de-rosa pálido e azul-pálido) está amplamente documentada nos autos, através de provas fotográficas e testemunhais.
23. Para além disso, a cor "
calke
green
" é irrelevante para a identificação visual e distinção das marcas, até porque os consumidores não sabem, nem precisam de saber, qual é a designação de catálogo de tintas do verde utilizado no mobiliário da Confeitaria D....
24. O que os consumidores veem, palpável e concretamente, é que o mobiliário da Confeitaria D... é verde-pálido, igual ao da Ladurée.
25. Assim, a expressão "
verde-pálido
" é adequada e suficiente para descrever o tom utilizado pela Recorrida, quer no mobiliário quer nas caixas de embalamento, correspondendo ao tom associado à identidade visual da Ladurée.
26. E, mais uma vez, o Direito não pode permitir tal ato de parasitismo.
27. Visa-se ainda salientar que a Recorrida não impugnou o ponto 8.1 da matéria de facto provada, onde igualmente se refere a cor “
verde-pálido
”, pelo que a sua impugnação ao ponto 8.4 se revela incoerente e infundada.
28. A cor verde-pálido corresponde à perceção real e visual do mobiliário e embalamento da Recorrida, sendo irrelevante a referência técnica ao tom “
calke
green
”, pelo que a impugnação da Recorrida relativa ao ponto 8.4 da matéria de facto provada deve ser julgada improcedente.
29. Relativamente A) da matéria não provada, a expressão “
projeção
internacional
” da Recorrente é suficientemente clara, precisa e adequada para descrever a realidade da sua notoriedade global, pelo que não deve ser eliminada do facto A).
30. O reconhecimento e a projeção internacionais da marca Ladurée constituem factos notórios, pelo que dispensam prova e alegação adicionais, nos termos do Artigo 412º nº 1 do CPC.
31. A Ladurée, marca de prestígio, encontra-se presente em diversos países e aeroportos à escala mundial, como reconhecido no facto 2) damatéria de facto provada, demonstrando inequivocamente a sua projeção internacional.
32. Mesmo que se exigisse prova adicional – o que se rejeita –, esta foi amplamente produzida nos autos, através de provas testemunhais válidas e credíveis, e de notícias, artigos e entrevistas (
vide
artigos 23.º a 37.º da Petição Inicial).
33. Ou seja, o reconhecimento e a projeção internacionais da Ladurée são tão evidentes que a imprensa, clientes e websites nacionais e internacionais destacam as evidentes semelhanças (para não dizer manifestas cópias…).
34. Assim, a menção a “
projeção
internacional
” não só deve manter-se, como o próprio facto A) deve ser considerado provado, conforme sustentado nas alegações anteriormente apresentadas, para as quais se remete.
35. Por fim, a Recorrida pretende que seja aditado à matéria de facto provada o parágrafo referente à suposta “
política
comercial
do
grupo
C...
”, com enfoque na valorização da história, cultura e património português.
36. Tal aditamento deve ser recusado, desde logo porque não foi produzida prova suficiente para sustentar com objetividade o teor da afirmação; e porque o conteúdo proposto não corresponde à verdade factual demonstrada nos autos.
37. Para além disso, a suposta política invocada não se reflete na prática, nomeadamente na renovação visual da Confeitaria D..., a qual mais se aproxima do estilo da Ladurée do que de qualquer elemento cultural ou histórico português.
38. O depoimento da testemunha DD não permite concluir, com o rigor necessário, que a política descrita seja efetivamente praticada nem que se traduzanos elementosvisíveis nadecoração eidentidade visual da loja aqui em análise.
39. A própria imprensa (cf. facto 12) provado), indica antes uma tendência para o pastiche, sendo o presidente do grupo acusado publicamente de replicar conceitos alheios, em vez de criar propostas genuinamente enraizadas na cultura nacional.
40. Não se identificam elementos concretos da cultura ou tradição locais deAveiro – ou de Portugal – na nova imagem da Confeitaria D... (nem na loja de Aveiro, nem na do aeroporto de Lisboa).
41. Pelo contrário, os elementos visuais remetem inequivocamente para o estilo francês associado à Ladurée.
42. Adicionalmente, oparágrafo propostoé irrelevante para adecisão dacausa, pois não afeta os factos essenciais relacionados com o litígio – nomeadamente, a concorrência desleal por imitação da identidade visual da Recorrente.
43. A pretensão da Recorrida de aditar à matéria de facto provada o parágrafo relativo à política comercial do grupo “C...” deve ser rejeitada, por não provada, irrelevante e não refletir a realidade factual apurada nos autos.
44. A impugnação deve, portanto, ser julgada improcedente.
*
O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.
*
II.
O tribunal
a quo
julgou provada a seguinte factualidade
:
1. A autora é uma empresa fundada em França no ano de 1862, por FF, que se dedica à produção de confeção de pastelaria, designadamente, “macarons”, com a seguinte configuração:
(cf. imagem constante da notícia junto como documento n.º 8, pela autora no requerimento de 12-02-2024).
2. A autora está presente, através dos seus pontos de venda, no Canadá, Estados Unidos da América, Irlanda, Inglaterra, França, Alemanha, Luxemburgo, Suíça, Egito, Azerbaijão, Qatar, Mónaco, China, Omã, Kuwait, Índia, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos.
3. A autora é internacionalmente conhecida pela disposição interna dos seus produtos e pelo layout dos seus estabelecimentos, em conjunto com a utilização de cores específicas, nomeadamente:
3.1. a utilização da letra “L” nos balcões;
3.2. a utilização do cor-de-rosa pálido, o verde-pálido e azul-pálido,
3.3. a exposição de várias caixas de embalamento dos produtos por detrás do balcão;
tendo a seguinte configuração:
(Cf. imagens da petição inicial – artigo 8.º).
(cf. imagens constantes do documento n.º 1 da petição inicial)
4. A decoração interna aludida em
3)
é uma alusão à decoração interna dos palácios franceses do tempo do Rei Luís XIV.
5. As caixas de embalamento utilizadas pela autora para os “macarons” têm a seguinte configuração:
6. A ré é a sociedade que explora a “Confeitaria D...”, situada em Aveiro e fundada em 1856, que se dedica exclusivamente ao fabrico e comercialização de doçaria regional aveirense, nomeadamente, ovos-moles, com a seguinte aparência:
(Cf. documento n.º 10 da contestação).
7. Em 22 de fevereiro de 2018, a Confeitaria D... passou a integrar o grupo “C...”, que explora estabelecimentos de produtos alimentares, em vários centros com importância turística em Portugal, a maioria dos quais dirigidos, sobretudo, aos turistas estrangeiros.
8. Após o aludido em
7)
, a Confeitaria D... procedeu a uma renovação do seu espaço, tendo reaberto ao público a 8 de agosto de 2018 e passado a utilizar:
8.1. as cores cor-de-rosa pálido, o verde-pálido, azul-pálido na decoração do estabelecimento e nas caixas de embalamento;
8.2. a disposição das caixas por detrás do balcão;
8.3. a primeira letra do nome, neste caso, “P” nos balcões;
8.4. a cor verde-pálido no balcão;
com a seguinte aparência:
(Cf. imagem da petição inicial – artigo 14.º)
(cf. imagem constante do documento n.º 1 da petição inicial).
9. As caixas da ré têm a seguinte configuração:
(Cf. imagens da petição inicial – artigo 14.º)
(Cf. documentos n.ºs 5 a 7 e 10 da contestação).
10. A Confeitaria D... abriu uma loja no Aeroporto de Lisboa, com a seguinte configuração:
(Cf. imagens da petição inicial – artigo 14.º).
11.
No dia 23 de agosto de 2018, o jornal “Público” publicou uma notícia, com o título «
A centenária D... tornou-se très chic», com o seguinte teor:
«Já era afamada por causa da sua longevidade e qualidade dos seus ovos-moles e
outros doces. Agora, fez um restyle e está a espalhar charme com o seu ar parisiense.
Aos 162 anos de vida, a Confeitaria D... rejuvenesceu. Aquela que se apresenta como sendo a mais antiga casa de ovos-moles de Aveiro – será a que tem mais anos a confeccionar e vender este doce – vive, agora, numa aura de glamour, transpondo os seus clientes e visitantes para o ambiente das mais requintadas confeitarias parisienses. Muito ao estilo da Ladurée, só que em vez de macarons servem-se ovos-moles. (…) Mantendo a localização de sempre, no número ... da Rua ... (junto aos paços do concelho), a D... ganhou uma nova vida, que se evidencia a todos quantos passam à sua porta.
(…)
A família de GG foi responsável pelos últimos 45 anos de história da confeitaria criada em 1856 por HH – daí o nome da casa – e continua a ser presença assídua naquele espaço. “A D. II acabou de me dar uma aula de como apreciar um ‘ovo-mole’, o que o distingue”, repara JJ, ainda antes de GG se gabar que foi graças à dedicação e engenho da sua esposa que nasceram receitas como as dos ninhos, das delícias e das cornucópias. “No fundo, o que nós fizemos foi aproveitar todo este saber, esta paixão, pegar neste produto e reposicioná-lo”, nota JJ.
(…)
Uma montra sem igual
O charme que é anunciado a partir do exterior confirma-se dentro de portas. A decoração aposta em tons suaves – com predominância do verde-água e do rosa – e em alguns elementos mais requintados, como é o caso do enorme candeeiro de tecto. Atrás do balcão, há um armário que se estende até ao piso superior e no qual estão agora impecavelmente arrumadas as caixas de ovos-moles – em cada divisória, uma cor. E esqueça aquela imagem das típicas caixas de ovos-moles (de papel branco). Na “nova” D... o doce conventual aveirense é comercializado em caixas elegantes – de tom rosa, verde-água ou azul-claro –, e aparece embrulhado num “papel” comestível (hóstia, como aquela que é usada para dar a forma de peixes, barricas ou conchas, ao doce de gema). Estampado na caixa vem também um excerto da obra Os Maias, de Eça de Queirós, com a alusão a esse “dôce muito célebre” e “chic”. É verdade que Eça era suspeito – viveu parte da sua infância em Aveiro –, mas a classificação até cai bem ao doce nascido, por volta de 1500, no Convento de Jesus.
Na montra que está colocada em cima do balcão, exibem-se as grandes estrelas da casa e outras tantas mais – além das já referenciadas, na D... também se vendem bombons de ovos-moles, pão-de-ló e suspiros de ovos-moles. E para quem quiser degustar estas delícias ali mesmo, há agora duas áreas com mesas – na anterior confeitaria não havia espaço para serviço de mesas –, uma no primeiro piso e outra no segundo piso.
Duas novas áreas que funcionam, de alguma forma, como uma espécie de museu. Ao longo das paredes estão expostos textos e documentos que abordam a história da casa e do próprio doce conventual. Também ali está retratado o Monumento aos Ovos-Moles de Aveiro (escultura da autoria de KK), entre outras curiosidades alusivas ao doce aveirense – incluindo a própria receita dos ovos-moles de Aveiro.
GG está feliz com a transformação que fizeram no seu antigo negócio. “Como podia não estar? Ainda para mais, conseguiram fazer algo que eu sempre quis e não consegui: criar uma área de salão de chá”, avalia. Muito “ao estilo das confeitarias de Paris, é verdade, com um toque Arte Nova, que está tão presente em Aveiro”, realça, por seu turno, JJ. Se Eça de Queirós tiver razão, então, na D... os ovos-moles são servidos e confeccionados de uma forma très chic.»
12. No dia 3 de julho de 2018, o “Diário de Notícias” publicou uma entrevista a AA, presidente do grupo referido em
7),
intitulada “
O homem que mudou a Baixa
”, na qual se lê:
“(…)
A cidade será, pela mão dele, uma "montra" do que Portugal tem de único - o próximo projeto é o de
trazer os ovos-moles de Aveiro para o Chiado
, numa loja que abre neste verão. "Queremos fazer com eles o que a Ladurée fez com os macarons", anuncia
.”
13. No website “Week-ends à 2 Travel Tips”, foi publicada uma notícia com o título “
Uma viagem a Aveiro
”, que na secção destinada à Confeitaria D... refere: “
Fundada em 1856, esta pastelaria com um falso ar de Ladurée
(…)”
14. No website “BUSSOLA PT”, um cliente intitulado LL, comentou o seguinte:
“
Cliente há mais de 3 décadas, ficámos desagradavelmente surpreendidos com os preços praticados desde que a loja foi renovada: o preço dos Ovos Moles praticamente duplicou (36 euros o quilo só de gema de ovo e açúcar!!!). É certo que estamos a pagar a nova decoração, o pessoal extra para a sala de chá e as bonitas caixas ao estilo Ladurée, mas continua a ser um preço proibitivo para Aveiro. Uma nova armadilha para turistas, o que é uma pena
!”.
15. No website da “Il Prezzemolo Tritato” foi publicada uma notícia com o título “Aveiro: A Veneza portuguesa”, que na secção “Onde desanuviar e merendar” diz que:
“
No mapa que tem na secção ''lojas gourmet'' deixo-lhe as duas melhores confeitarias para os comer. Uma é a tradicional no Rossio, no canal central e a outra é a incrivelmente parisiense O D.... Sem dúvida evoca a Ladurée em todo o seu esplendor (…)”
16. A autora abriu em 2018 uma loja na Avenida ..., que foi fechada, não dispondo, atualmente, de qualquer estabelecimento em Portugal e que tinha a seguinte configuração:
(Cf. imagem da notícia junta como documento n.º 7 pela autora no requerimento de 12-02-2024).
17. A autora tem intenção de voltar a ter um ou mais estabelecimentos em Portugal.
18. Parte da clientela da autora são turistas, designadamente, oriundos dos países onde tem estabelecimentos.
19. No aeroporto de Lisboa, onde se encontra o estabelecimento da ré referido em
10),
passam, todos os dias, milhares de turistas, incluindo oriundos dos países onde a autora tem estabelecimentos.
*
20. A ré não tem atividade em nenhum dos países referidos em
2)
e só tem os estabelecimentos mencionados em
6) e 10).
21. A renovação aludida em
8)
procurou conciliar a tradição da Confeitaria D... e a história da cidade de Aveiro:
21.1. através da decoração do espaço com inspiração na Arte Nova, nomeadamente, no uso de cores e tonalidade idênticas às presentes na arquitetura e elementos decorativos de edifícios Arte Nova existentes da cidade de Aveiro; e
21.2. com a exibição à entrada da loja, de um raro exemplar da primeira edição de “Os Maias”, de Eça de Queiroz, que expõe o seguinte excerto que celebra os Ovos Moles de Aveiro, «
São seis barrilinhos de ovos moles de Aveiro. É um doce muito célebre, mesmo lá fora. Só o de Aveiro é que tem chic
».
22. Aveiro foi uma das principais cidades portuguesas onde houve uma disseminação da Arte Nova.
23. Os estabelecimentos da ré referidos em
6) e 10)
estão identificados com a denominação “CONFEITARIA D...®”,
24. Por causa do balcão de atendimento do estabelecimento da ré mencionado em
8),
se localizar num corredor estreito, apenas foi colocado o “P” de “D...” nas almofadas do balcão, porquanto a denominação completa do estabelecimento – CONFEITARIA D... - não seria facilmente visível e lida pelos consumidores devido à falta de largura do espaço.
25. Além do aludido em
5)
, a autora faz edições especiais das suas caixas, com a seguinte aparência:
(cf. documento 11 da contestação).
26. A letra “P” usada pela ré é gráfica e foneticamente distinta da letra “L”.
27. Os ovos-moles de Aveiro são um doce tradicional português, com formas de conchas, búzios ou peixes e compostos por uma hóstia recheada com doce de ovos.
28. Os “macarons” são um doce típico francês, composto por duas conchas redondas reunidas, recheadas no meio com compota ou ganache de chocolate.
29. A ré não comercializa “macarons”.
*
E considerou não provado:
A. A renovação mencionada em
8)
tenha sido efetuada com o intuito de copiar e aproveitar a projeção internacional da autora.
B. Com a renovação aludida em
8)
e a utilização das caixas referidas em
9),
a ré tivesse criado confusão em diversas pessoas e entidades.
*
III.
É consabido que resulta dos art.635.º, n.ºs 3 a 5 e 639.º, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC, que o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões das respetivas alegações
[2]
, sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso.
Assim, em síntese, do que resulta das conclusões, igualmente das questões suscitadas pela apelada, caberá apreciar as seguintes questões:
a) Impugnação da decisão sobre a matéria de facto
Pela A.
a.1
- factos que se pretendem provados:
- matéria constante das
als. A e B
dos não provados.
«A
.
A renovação mencionada em
8)
tenha sido efetuada com o intuito de copiar e aproveitar a projeção internacional da autora
.
B. Com a renovação aludida em
8)
e a utilização das caixas referidas em
9),
a ré tivesse criado confusão em diversas pessoas e entidades.»
Pela R.
a.2
- factos que a R. pretende subsidariamente apreciados e alterados nos termos art.º 636.º n.º 2 do CPC e a proceder a impugnação operada pela A.:
a.2.1 - a dar como não provado
-
matéria constante do art.3 dos provados
«
3.
- A autora é internacionalmente conhecida pela disposição interna dos seus produtos e pelo layout dos seus estabelecimentos, em conjunto com a utilização de cores específicas, nomeadamente:
3.1. - a utilização da letra “L” nos balcões;
3.2. - a utilização do cor-de-rosa pálido, o verde-pálido e azul-pálido,
3.3. - a exposição de várias caixas de embalamento dos produtos por detrás do balcão;
tendo a seguinte configuração:
(Cf. imagens da petição inicial – artigo 8.º).
-
matéria constante do art.8.4 dos provados
Após o aludido em
7)
, a Confeitaria D... procedeu a uma renovação do seu espaço (….) passando a utilizar
8.4
a cor verde-pálido no balcão
[3]
;
com a seguinte aparência:
(Cf. imagem da petição inicial – artigo 14.º)
(cf. imagem constante do documento n.º 1 da petição inicial).
(cf. imagens constantes do documento n.º 1 da petição inicial)
a.2.2 - alteração da redacção
facto constante da
al.A
dos não provados e por forma a que conste:
“A renovação mencionada em 8) tenha sido efetuada com o intuito de copiar e aproveitar da imagem da autora.”
a.2.3 - aditados aos provados
«Constitui política comercial do grupo C... a valorização e diferenciação das suas marcas e estabelecimentos, tendo sempre em consideração a história, a cultura e o património português procurando, desta forma, conciliar a história e a tradição de cada marca e estabelecimento com a ousadia, a criatividade e a inovação
.”
b)
Subsunção jurídica: concorrência desleal
* *
a) Impugnação da decisão sobre a matéria de facto
Antes de mais, importa algum enquadramento dos termos em que se deve laborar na impugnação da matéria de facto
e os moldes em que a mesma é atendível e decidida.
Acompanhando o que se afirmou no acórdão da Relação do Porto de 5.12.24 e proferido no processo 245/22.2T8PRD-C.P1
[4]
, diremos:
«O presente recurso versa sobre o sentido da decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida.
Os termos em que a Relação pode conhecer da matéria de facto impugnada em sede de recurso constam, no essencial, do art.º 662.º do Código de Processo Civil.
De acordo com o disposto no n.º 1 deste preceito, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Por seu turno, nos termos do n.º 2, a Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:
a) ordenar a renovação da produção da prova quando houve dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;
b) ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;
c) anular a decisão proferida na 1.ª Instância quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração proferida sobre a decisão da matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta;
d) determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1º instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados.
Da leitura de tais dispositivos legais resulta que à Relação é, em sede de recurso em que esteja em causa a impugnação da matéria de facto, conferido um grau de autonomia especialmente relevante.
Na realidade, se, confrontada com a prova globalmente produzida, o seu juízo decisório for diverso do da 1.ª Instância, à Relação incumbe hoje, não a faculdade ou a simples possibilidade, mas um verdadeiro
dever
de introduzir as alterações que tenha por convenientes ou acertadas.
Por outro lado, se, confrontada com essa mesma prova, reputá-la insuficiente ou mesmo inconsistente, deverá, mesmo sem impulso das partes nesse sentido, o mesmo é dizer
oficiosamente
, ordenar a renovação de prova já produzida ou mesmo a produção de novos meios de prova.
Em sede de reapreciação da matéria de facto, cabe à Relação, por conseguinte, formar a sua própria convicção quanto à prova produzida, convicção essa que, caso divirja da firmada em 1.ª instância, prevalecerá sobre esta.
Ou seja, e como refere António Santos Abrantes Geraldes, a Relação atua nesta sede com “autonomia decisória” e “como verdadeiro tribunal de instância”, ao qual compete “introduzir na decisão da matéria de facto impugnada as modificações que se justificarem, desde que, dentro dos poderes de livre apreciação dos meios de prova, encontre motivo para tal” (in Recursos em Processo Civil, Almedina, 2022, p. 334).
A posição que a Relação deve adotar quando confrontada com um recurso em matéria de facto deve, pois, ser a mesma da 1.ª Instância aquando da apreciação da prova após o julgamento, valendo para ambos o princípio da livre apreciação da prova, conforme resulta, aliás, do disposto nos art. ºs 607.º, n.º 5 e 663.º, n.º 2 do CPC.
O mesmo é dizer, com Remédio Marques, que a “Relação tem o poder-dever de formar a sua convicção própria sobre a prova produzida e sobre a correção do julgamento da matéria de facto, não se devendo escusar a fazê-lo com base no princípio da livre convicção do julgador da 1.ª instância” (in Acção declarativa à luz do Código revisto, p. 637-638, apud José Lebre de Feitas, Armando Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. 3.º, p. 172).
Só assim se garantirá, de resto, a efetiva sindicância, por parte da Relação, do julgamento da matéria de facto levado a cabo em 1.ª instância e, com isso, o princípio fundamental do duplo grau de jurisdição (v., neste sentido, e entre muitos outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24-09-2013, de 26-05-2021 e de 04-11-2021, todos disponíveis na internet, no sítio com o endereço
www.dgsi.pt
).
A autonomia decisória com que a Relação deve encarar a reapreciação da matéria de facto não pode implicar, contudo, a consideração genérica e indiscriminada de todos os factos e meios de prova já tidos em conta pela 1.ª Instância, como se aquela reapreciação impusesse a realização de um novo julgamento.
Dispõe, com efeito, o art.º 640.º, n.º 1 do CPC que quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
.- os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados (alínea a);
.- os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnada diversa da recorrida (alínea b);
.- a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (alínea c).
Por outro lado, de acordo com a alínea a) do n.º 2, sempre que os meios de prova que, nos termos da alínea b) do n.º 1 devem ser especificados, tenham sido gravados, incumbe ao recorrente indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
Resulta de tais normativos legais que sobre o recorrente que pretenda ver sindicado pela Relação o julgamento da matéria de facto feito em 1.ª instância recai o
ónus
de, não só circunscrever e delimitar a concreta matéria de facto de cujo julgamento discorda, como o de enunciar os meios de prova que deveriam ter conduzido a decisão diversa - apontando, neste caso, em se tratando de depoimentos gravados, as passagens da gravação ou procedendo à transcrição dos excertos relevantes - e, ainda, o de indicar o sentido da decisão que, na sua perspetiva, deve ser proferida.
O sistema adotado pelo legislador quanto ao julgamento da matéria de facto pela Relação, ao invés de uma solução pautada pela simples “repetição dos julgamentos” e “pela admissibilidade de recursos genéricos contra a decisão da matéria de facto”, consiste, pois, num sistema caracterizado “por restringir a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente”, como corolário do “princípio do dispositivo que se revela através da delimitação do objeto do recurso (da matéria de facto) através das alegações” (v., neste sentido, António Santos Abrantes Geraldes, in ob. cit., p. 195 e 341).
Isto, aliás, com reflexos na aferição da própria admissibilidade do recurso em matéria de facto, já que, como decorre expressamente do corpo do preceito que acaba de ser transcrito, o ónus que recai sobre o recorrente deve ser cumprido sob pena de
rejeição
do próprio recurso.
Do sistema assim concebido pelo legislador podemos entrever, em suma, e como se referiu no Acórdão do STJ de 29-10-2015, um “
ónus primário
ou
fundamental
de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação”, bem como de “um
ónus secundário
– tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes” (sublinhados nossos; Acórdão disponível na internet, no sítio com o endereço
www.dgsi.pt
).
Sublinhe-se, ainda, que com a impugnação da decisão da matéria de facto proferida em 1.ª instância pretende-se, passe a redundância, alterar o julgamento feito quanto aos factos que, por via da impugnação, se reputam mal julgados.
Isto, contudo, não como fim em si mesmo, mas como meio ou instrumento de, mediante a alteração do julgamento dos factos impugnados, se poder concluir que - afinal - existe o direito que em 1.ª instância não foi reconhecido ou, pelo contrário, que não existe o direito que o foi; o mesmo é dizer, como meio de provocar um diverso enquadramento jurídico dos factos do levado a cabo em 1.ª instância e, com isso, obter uma decisão diversa da nele proferida quanto ao fundo da causa.
A impugnação da decisão da matéria de facto tem, por conseguinte, como referido no Acórdão da Relação de Guimarães de 15-12-2016, “carácter instrumental”, “não se justifica(ndo) a se, de forma independente e autónoma da decisão de mérito proferida, assumindo um carácter instrumental face à mesma” (Acórdão proferido no processo n.º 86/14.0T8AMR.G1, disponível na internet, no local já antes citado).
O seu fim último é, assim, como também referido no Acórdão da Relação de Coimbra de 24-04-2012, naquele citado, “conceder à parte uma ferramenta processual que lhe permita modificar a matéria de facto considerada provada ou não provada”, não com esse único intuito, mas sim “de modo a que, por essa via, obtenha um efeito juridicamente útil ou relevante”.
Por este motivo, o tribunal de recurso não deve conhecer a impugnação da matéria de facto sempre que, como se escreveu no Acórdão da Relação de Coimbra de 27-05-2014, também citado naqueloutro, “
o(s) facto(s) concreto(s) objeto da impugnação for insuscetível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente
” (sublinhado nosso).»
A benefício da decisão que se impõe, importa também
afirmar o seguinte, transcrevendo o escrito no Ac. da Relação de Guimarães de 2.11.17
[5]
:
«(…) o âmbito de apreciação do Tribunal da Relação, em sede de impugnação da matéria de facto, estabelece-se de acordo com os seguintes parâmetros: só tem que se pronunciar sobre a
matéria de facto impugnada
pelo Recorrente; sobre essa matéria de facto impugnada, tem que realizar um
novo julgamento
; e nesse novo julgamento
forma a sua convicção de uma forma autónoma
, mediante a reapreciação de
todos os elementos probatórios
que se mostrem acessíveis (e não só os indicados pelas partes).
Importa, porém, não esquecer - porque (como se referiu supra) se mantêm em vigor os
princípios da imediação
,
da oralidade
,
da concentração
e
da livre apreciação da prova
, e o julgamento humano se guia por padrões de probabilidade e não de certeza absoluta -, que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a
necessária segurança
, concluir pela
existência de erro de apreciação
relativamente a concretos pontos de facto impugnados.
Por outras palavras, a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação quando o mesmo, depois de proceder à audição efectiva da prova gravada, conclua,
com a necessária segurança
, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida,
apontam em direcção diversa
, e delimitam uma conclusão diferente daquela que vingou na 1ª Instância. «Em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte» (Ana Luísa Geraldes, «Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto», Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Vol I, pág. 609
).
Por fim chamar à colação o referido no Ac. da R.P. de 6.3.25
[6]
:
«Note-se que a construção da realidade fáctica submetida à discussão não se poderá efectuar de forma parcelar e desconexa, atendendo apenas a determinado meio de prova, ou a parte dele, e ignorando todos os demais, ainda que expressem realidade distinta, a menos que razões de credibilidade desacreditem estes.
Ou seja: nessa tarefa não pode o julgador conformar-se com a análise parcelar e parcial transmitida pelos litigantes, mas antes submetê-la a uma ponderação dialéctica, avaliando a força probatória do conjunto dos meios de prova destinados à demonstração da realidade submetida a debate.
Assinale-se que a construção – ou, melhor dizendo, a reconstrução, pois que é dela que se deve falar quando se procede à ponderação dos factos que por outros foram apreendidos e transmitidos com o filtro da interpretação própria de quem processa essa apreensão – da realidade fáctica não pode efectuar-se de forma parcelar e desconexa, antes reclamando o contributo conjunto de todos os elementos que a integram.
Quer isto dizer que a realidade surge de um conjunto coeso de factos, entre si ligados por elos de interdependência lógica e de coerência.
A realidade não se constrói apenas a partir de um depoimento isolado ou de um conjunto disperso de documentos, ainda que confirmadores de uma determinada versão factual, antes se deve conformar com um património fáctico consolidado de forma sólida, coerente, transmitido por elementos probatórios com idoneidade e aptidão suficientes a conferir-lhe indiscutível credibilidade
.»
**
Vejamos então por estar o recurso quanto à impugnação da matéria de facto em condições legais de ser apreciado.
Pela A.
a.1
- factos que se pretendem provados:
- matéria constante das als. A e B) dos não provados.
São os seguintes os factos que se pretendem provados e constantes do elenco dos não provados:
«A
.
A renovação mencionada em
8)
tenha sido efetuada com o intuito de copiar e aproveitar a projeção internacional da autora
.
B. Com a renovação aludida em
8)
e a utilização das caixas referidas em
9),
a ré tivesse criado confusão em diversas pessoas e entidades.»
Fundamentou o tribunal
a quo
quanto a estes factos:
«No que concerne o facto
não provado A
, o mesmo foi infirmado pelos depoimentos das testemunhas da ré (DD, JJ, EE e MM), que indicaram qual foi a fonte de inspiração da renovação e da nova imagem da Confeitaria D..., tendo todas negado qualquer indicação ou propósito de copiar a imagem da autora. Além disso, nenhuma prova foi produzida no sentido de dar como demonstrado este intuito de copiar ou de se aproveitar da imagem internacional da autora.
Por seu turno, o facto
não provado B
– não obstante as notícias, artigos e comentários constantes dos factos n.ºs 11 a 15 -, e de nos mesmos os clientes da ré terem aludido à autora e ao estilo desta, nenhum deles referiu que, por causa deste estilo “Ladurée”, tenha sido levado a adquirir bens da ré a pensar que eram da autora, ou que, por engano, tenha pretendido comprar produtos vendidos pela autora, nomeadamente, “macarons”, e tenha adquirido, ao invés, ovos-moles. Aliás, nem sequer foi alegada, quanto mais demonstrada, qualquer situação concreta em que tivesse efetivamente ocorrido essa confusão. O que resulta destas notícias, artigos e comentários é, tão só, que houve uma associação/ inspiração na renovação da ré, no estilo da autora.
Ademais, JJ asseverou desconhecer qualquer situação de confusão, dizendo que quem se dirige à Confeitaria D... vai para comprar ovos-moles. Em igual sentido, depôs CC, que afirmou que os clientes quando os procuram já conhecem os produtos, por indicação dos hotéis e dos barcos, e “vêm muito certos do que querem comprar”, negando que alguém tenha alguma vez entrado ao engano. »
Dizer antes de mais que quanto ao que consta da al. B não tem o mesmo sequer de ser objecto de selecção.
Na verdade não estamos perante um facto.
Ao invés.
Do que se pretende provado retira-se uma expressiva conclusão do que através de factos provados se deve chegar, assim dispensando, se assente,
parte
da necessária
especulação jurídica na fase da subsunção jurídica ao factos.
Parte da necessária especulação jurídica, parte da decisão estaria «ditada» por se incluir na resposta selecionada dos factos alegados uma conclusão que, densificada ou concretizada factualmente é erigido pela lei como
elemento padrão
, destarte tendo por vocação servir de «atalho» para o destino onde o interprete-aplicador pretende chegar
[7]
, ou seja ao acto
desleal
[8]
de concorrência, elemento-requisito da CD além da relação de concorrência e da culpa, os três previstos na cláusula geral constante do art.º311.º do CPI:
«Constitui concorrência desleal todo o ato de concorrência contrário às normas e usos honestos de qualquer ramo de atividade económica, nomeadamente: (….).»
[9]
Falamos do elemento padrão constante da al.a) do citado preceito
:
a)
Os atos suscetíveis de criar confusão com a empresa, o estabelecimento, os produtos ou os serviços dos concorrentes, qualquer que seja o meio empregue
»
O que releva para a selecção é o facto susceptível de criar confusão, devidamente concretizado, e não a conclusão que dele se retira.
O lugar próprio para este juízo, conclusão, é a decisão final, o enquadramento jurídico dos factos anteriormente apurados.
Em sede de selecção do facto releva, além dos que infra se convocarão, o que consta das al.8 e 9 dos factos dados como provados e na medida que deles se retira o citado elemento padrão que permita chegar à
deslealdade.
Em face disto não conheceremos da impugnação quanto ao que consta da al.B dos não provados
.
Relativamente ao facto constante da al.A
[10]
dos não assentes dizer antes que tudo que estamos no plano
de facto cuja prova
apela relevantemente à convocação do que se possa retirar de factualidade apurada, através de um juízo de normalidade, no caso apelando a uma abordagem que releve de forma mais leonina o que de semelhante se retire do conjunto dos elementos em confronto e menos pelas dissemelhanças que poderiam oferecer os diversos pormenores, considerados isolados e separadamente.
Referimos, pois, a juízo próprio e subjacente às presunções judiciais que nos é lícito utilizar nesta sede.
Como se refere em Ac. do STJ de 19.1.2017 «[a]
presunção traduz-se e concretiza-se num juízo de indução ou de inferência extraído do facto de base ou instrumental para o facto essencial presumido, à luz das regras da experiência, sendo admitida nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal (art.º 351º do Cód. Civil).
(….) face à competência alargada da Relação em sede da impugnação da decisão de facto (art.º 662º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil), é lícito à 2ª instância, com base na prova produzida constante dos autos, reequacionar a avaliação probatória feita pela 1ª instância, nomeadamente no domínio das presunções judiciais, nos termos do n.º 4 do art.º 607º, aplicável por via do art.º 663º, n.º 2, ambos do Cód. Proc. Civil.»
[11]
Deste modo, se a semelhança de conjunto
[12]
, entre os elementos em confronto (semelhança nos elementos decorativos, as cores e o
layout
dos estabelecimentos da A. e R), sem consideração para além do razoável dos pormenores diferenciadores, gerar a possibilidade relevante de associação entre os estabelecimentos da A. e R., com relativa facilidade se chegará à conclusão de que com a renovação mencionada em
8)
se teve o intuito (aspecto de natureza psicológico) de copiar e aproveitar a projeção internacional da autora.
Dizer ainda
que a R., em relação ao facto constante da al.A
dos não provados, pretende que surja como tal, não provado, mas com a seguinte redacção:
“A renovação mencionada em 8) tenha sido efetuada com o intuito de copiar e aproveitar da imagem da autora.”
Não logramos atingir qual o efeito útil que se pretende.
De facto que utilidade tem um facto não provado desta natureza quando, de acordo com o
critério de decisão
em que se substancia o ónus da prova
[13]
/
[14]
, na sua ausência, a decisão, e na medida que tal facto seja relevante, surgirá contra quem tinha de o provar?
Nenhum.
Acresce que, como atrás se enquadrou os parâmetros a seguir quanto à impugnação da matéria de facto,
« o tribunal de recurso não deve conhecer a impugnação da matéria de facto sempre que, (…) “
o(s) facto(s) concreto(s) objeto da impugnação for insuscetível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente
”.
A importância jurídica (decisiva ou irrelevante, não interessa) quanto ao facto que se referencia só surge se provado, jamais se se encontrar na «prateleira» dos não provados.
Por assim ser não conheceremos da pretensão da R. quanto ao que deseja como não provado e constante da al. A dos não assentes, e na conformação desejada.
A A. convoca com vista a assentar o que consta da al. A dos factos dados como não provados os que constam como provados nos artigos 7, 12, 3 e 8
[15]
:
- 3. - A autora é internacionalmente conhecida pela disposição interna dos seus produtos e pelo layout dos seus estabelecimentos, em conjunto com a utilização de cores específicas, nomeadamente:
3.1.a utilização da letra “L” nos balcões;
3.2. a utilização do cor-de-rosa pálido, o verde-pálido e azul-pálido,
3.3. a exposição de várias caixas de embalamento dos produtos por detrás do balcão;
tendo a seguinte configuração (…)»
- 7
.- «Em 22 de fevereiro de 2018, a Confeitaria D... passou a integrar o grupo “C...”, que explora estabelecimentos de produtos alimentares, em vários centros com importância turística em Portugal, a maioria dos quais dirigidos, sobretudo, aos turistas estrangeiros
.
- 8. -
«Após o aludido em
7)
, a Confeitaria D... procedeu a uma renovação do seu espaço, tendo reaberto ao público a 8 de agosto de 2018 e passado a utilizar:
8.1. as cores cor-de-rosa pálido, o verde-pálido, azul-pálido na decoração do estabelecimento e nas caixas de embalamento;
8.2.a disposição das caixas por detrás do balcão;
8.3. a primeira letra do nome, neste caso, “P” nos balcões;
8.4. a cor verde-pálido no balcão;
com a seguinte aparência: (…)»
- 12. «
No dia 3 de julho de 2018, o “Diário de Notícias” publicou uma entrevista a AA, presidente do grupo referido em
7),
intitulada “O homem que mudou a Baixa”, na qual se lê:
“(…)
A cidade será, pela mão dele, uma "montra" do que Portugal tem de único - o próximo projeto é o de trazer os ovos-moles de Aveiro para o Chiado, numa loja que abre neste verão. "
Queremos fazer com eles o que a Ladurée fez com os macarons", anuncia
.”
[16]
Convoca-se o que provado está e plasmado na matéria de facto, incluindo com fotografias, relativo à «conformação estilística» dos estabelecimentos em confronto, igualmente da cartonagem utilizada na comercialização dos produtos do fabrico da A. e R..
Tendo por referência o que se referiu a propósito da inferência a fazer, cremos que facilmente se projecta qual foi o propósito da R. ao dar a roupagem que deu ao seu estabelecimento, ao conformar a cartonagem como a conformou, ao adoptar o estilo e cores que adoptou, e para tanto bastará a análise que um consumidor mediano faça, relevando as semelhanças que se retira da análise de conjunto.
Pretendeu-se copiar e aproveitar a imagem da A. no mercado e na medida que se trata de um reputado «estabelecimento» que se encontra por todas essas «capitais do mundo»
[17]
, possuindo uma imagem nada trivial porque original, com cores e disposição física do espaço, conformação de «logo» ((L)) e cartonagem que notoriamente a distinguem.
Veja-se a leitura que, em passagens, os «média» fizeram, ou seja, uma leitura que o cidadão médio sempre faria:
- No dia 23 de agosto de 2018, o jornal “Público” publicou uma notícia, com o título «A centenária D... tornou-se très chic», com o seguinte teor (além do mais):
«Já era afamada por causa da sua longevidade e qualidade dos seus ovos-moles e outros doces.
Agora, fez um restyle e está a espalhar charme com o seu ar parisiense.
(…) vive, agora,
numa aura de glamour, transpondo os seus clientes e visitantes para o ambiente das mais requintadas confeitarias parisienses
.
Muito ao estilo da Ladurée, só que em vez de macarons servem-se ovos-moles
. (…)
(….) Na “nova” D... o doce conventual aveirense é comercializado em caixas elegantes – de tom rosa, verde-água ou azul-claro –, e aparece embrulhado num “papel” comestível (hóstia, como aquela que é usada para dar a forma de peixes, barricas ou conchas, ao doce de gema). Estampado na caixa vem também um excerto da obra Os Maias, de Eça de Queirós, com a alusão a esse “dôce muito célebre” e “chic”. É verdade que Eça era suspeito – viveu parte da sua infância em Aveiro –, mas a classificação até cai bem ao doce nascido, por volta de 1500, no Convento de Jesus.
(…)
No dia 3 de julho de 2018, o “Diário de Notícias” (…):
“(…) A cidade será, pela mão dele, uma "montra" do que Portugal tem de único - o próximo projeto é o de trazer os ovos-moles de Aveiro para o Chiado, numa loja que abre neste verão
. "Queremos fazer com eles o que a Ladurée fez com os macarons
" (…)”
No website “Week-ends à 2 Travel Tips”, foi publicada uma notícia com o título “Uma viagem a Aveiro”, que na secção destinada à Confeitaria D... refere: “Fundada em 1856
, esta pastelaria com um falso ar de Ladurée (…)”
No website da “Il Prezzemolo Tritato” foi publicada uma notícia com o título “Aveiro: A Veneza portuguesa”, que na secção “Onde desanuviar e merendar” diz que: “No mapa que tem na secção ''lojas gourmet'' deixo-lhe as duas melhores confeitarias para os comer. Uma é a tradicional no Rossio, no canal central e a outra é a incrivelmente parisiense O D....
Sem dúvida evoca a Ladurée em todo o seu esplendor (…)”
Mas também na website se retira auxílios para a presunção judicial que se opera:
Na “BUSSOLA PT”, um cliente intitulado LL, comentou o seguinte: “Cliente há mais de 3 décadas, ficámos desagradavelmente surpreendidos com os preços praticados desde que a loja foi renovada: o preço dos Ovos Moles praticamente duplicou (36 euros o quilo só de gema de ovo e açúcar!!!). É certo que estamos a pagar a nova decoração, o pessoal extra para a sala de chá e as bonitas caixas ao estilo Ladurée, mas continua a ser um preço proibitivo para Aveiro. Uma nova armadilha para turistas, o que é uma pena!”.
Mais que os depoimentos utilizados pelo tribunal
a quo
para dar como não provado o facto em crise, de resto tudo pessoas ligadas à R. ou ao seu projecto, releva o que não é dito mas está inquestionado: os aspectos de natureza objectiva atrás referenciados que, além do mais, permitem julgar o rigor do declarado.
A semelhança que das imagens dadas por assente se retira quando à proximidade dos estabelecimentos em causa é de resto assumida pelo tribunal
a quo
na sua fundamentação jurídica, ao referir que
«das mesmas resulta que existem similitudes entre os estabelecimentos da autora e da ré, sobretudo no que diz respeito às cores utilizadas e no balcão, em que em ambas apresentam uma tonalidade de verde-pálido semelhante. Todavia, se no estabelecimento da ré de Aveiro se verifica a utilização da letra “P” (….)»
Impõe-se, pois, fazer migrar o facto em causa para os provados, passando a deles constar como
facto 8 A.
e com o seguinte conteúdo
«A renovação mencionada em
8)
foi efetuada com o intuito de copiar e aproveitar a projeção internacional da autora.»
Dizer a finalizar que a este assentamento não se opõe o que está provado no facto 21 por conciliável com a intenção aqui referida da cópia da imagem do «estabelecimento» da A e aproveitamento da sua reputação internacional (digamos, estamos perante um «dois em um»).
*
Pela R.
a.2
- factos que a R. pretende subsidariamente apreciados e alterados nos termos art.º 636.º n.º 2 do CPC e a proceder a impugnação operada pela A.:
a.2.1 - a dar como não provado
-
matéria constante do art.3 dos provados
«
3.
- A autora é internacionalmente conhecida pela disposição interna dos seus produtos e pelo layout dos seus estabelecimentos, em conjunto com a utilização de cores específicas, nomeadamente:
3.1. - a utilização da letra “L” nos balcões;
3.2. - a utilização do cor-de-rosa pálido, o verde-pálido e azul-pálido,
3.3. - a exposição de várias caixas de embalamento dos produtos por detrás do balcão;
tendo a seguinte configuração (….)
Pretende a recorrida que seja dado como não provado
a projecção internacional da A
. e que seja
conhecida pela utilização de cor-de-rosa-pálido, verde-pálido e azul-pálido.
A notoriedade daquele facto é um dado.
O comum das pessoas, em especial as que viajam, conhecem a A., seus estabelecimentos, produtos, projecção esta de resto evidenciada pelo que consta provado do facto 2.
Mais não fosse a A. fez «eco» dessa notoriedade com os documentos que vai indicando nos artigos 23º a 37º da p.i., alguns dados por provados e atrás convocados.
Igualmente suportou a prova do facto em causa com um depoimento ajuramentado, cuja credibilidade não foi posta em crise e que conjuga com o que dos citados documentos e facto 2 resulta assente. Falamos do depoimento BB já referenciado.
Quanto aqueloutro facto, a utilização das citadas cores e demais mencionado no facto em crise, é ele também um dado conhecido e está documentado nos autos pelas fotos constantes do doc.1 junto com a p.i., corroboradas por aquele depoimento.
Fundamentou o tribunal
a quo
a propósito: «
No que respeita, aos factos n.ºs
1)
,
3) a 5), 17), 18), 25) e 28)
, atendeu-se ao depoimento prestado por
BB
, diretora de criação da autora, que de forma coerente e espontânea, esclareceu os serviços e produtos que a autora comercializa, o reconhecimento internacional desta, onde possui estabelecimentos e quais as intenções da autora acerca de voltar a ter estabelecimentos em Portugal. Além disso, apontou os sinais distintivos da autora, a sua imagem gráfica, as cores utilizadas, a forma dos balcões, o layout utilizado, a arquitetura e estilo dos estabelecimentos, as embalagens utilizadas e respetivas cores, as edições limitadas que realizam, bem como qual foi a fonte de inspiração.
Ademais, aludiu à principal clientela da autora, começando por referir pessoas de “alta gama”, mas, igualmente, turistas. (…)»
Não temos como reverter o juízo feito quanto ao facto em crise.
Improcede a pretensão da apelada.
*
-
matéria constante do art.8.4 dos provados
Após o aludido em
7)
, a Confeitaria D... procedeu a uma renovação do seu espaço (….) passando a utilizar
8.4
a cor verde-pálido no balcão;
com a seguinte aparência: (…)
Pretende a apelada que em vez de cor verde-pálido no balcão passe a constar do facto «a cor cake green, nº34, do catálogo da E...»
Sendo ou não do catálogo da E..., o verde adoptado é um verde-pálido.
Certeira a firmação da apelante na sua resposta à ampliação em apreciação:
«In casu, não é relevante o nome da cor utilizado por um concreto fabricante de tintas no mobiliário, mas sim o aspecto visual da cor verde assente na mobília das lojas da Recorrente e da Recorrida que é, visivelmente, a mesma.
“Verde-pálido” é adequado para descrever a cor usada pela Recorrida, e a sugestão de substituir por "calke green" não acrescenta clareza ou precisão ao facto, ou seja, não altera substancialmente a essência do que foi provado.»
Improcede a pretensão da apela neste segmento.
*
a.2.2 - alteração da redacção
facto constante da
al.A
dos não provados e por forma a que conste:
“A renovação mencionada em 8) tenha sido efetuada com o intuito de copiar e aproveitar da imagem da autora.”
Segmento já analisado atrás para onde se remete, dessa análise se fazendo improceder a pretensão da apelada.
*
a.2.3 - aditados aos provados
«Constitui política comercial do grupo C... a valorização e diferenciação das suas marcas e estabelecimentos, tendo sempre em consideração a história, a cultura e o património português procurando, desta forma, conciliar a história e a tradição de cada marca e estabelecimento com a ousadia, a criatividade e a inovação
.”
Este facto, não considerado na selecção feita pelo tribunal
a quo
, teria o seu relevo na medida que, no processo de julgamento dos factos alegados pela A. e cuja prova lhe coube, permitisse infirmar o assentamento dos mesmos, concretamente aqueles que permitam a conclusão de que a R. teve a intenção de usar a «imagem e registo» da A.
Como facto seleccionável propriamente dito, sem aquela função, por não ser a R. quem tem de provar os requisitos da CD, não tem qualquer relevo.
Por ser assim, porque
« o tribunal de recurso não deve conhecer a impugnação da matéria de facto sempre que, (…) “
o(s) facto(s) concreto(s) objeto da impugnação for insuscetível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter relevância jurídica (…)
”,
não se relevará o facto em causa
.
**
b) Subsunção jurídica: concorrência desleal
Impõe-se a apreciação jurídica do comportamento da R. caso vertente, se enquadrável ou não no art.º311 do CPI (concorrência desleal).
Para o efeito relevam-se os factos que permaneceram intocados e aqueloutro que se remeteu para os provados:
8.A - «A renovação mencionada em
8)
foi efetuada com o intuito de copiar e aproveitar a projeção internacional da autora.»
Pede a A. que se condene a R. a:
- alterar e abster-se de utilizar as cores rosa-pálido, verde-pálido e azul-pálido nas caixas de embalagem dos seus produtos de confeitaria;
- alterar e abster-se de voltar a usar o tom de verde-pálido, rosa-pálido e azul-pálido usado pela autora na pintura do mobiliário de loja;
- alterar e abster-se de voltar a utilizar a inicial “P” num círculo nos seus balcões, em cópia do “L” num círculo dos balcões da autora, tal como consta da página principal do website da Ré;
- promover as alterações requeridas na presente ação em todo o marketing, websites, vestuário, publicidade e futuras referências à autora como fonte que serviu de referência na remodelação, pelo grupo “C...” que detém a ré.
- proceder às alterações necessárias nas suas lojas para cumprimento do peticionados nos pontos atrás referidos, no prazo máximo de 30 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, bem como, nos termos do artigo 828.º-A do CC, ser condenada em sanção pecuniária compulsória de 100,00 € (cem euros) por cada dia de atraso no respetivo cumprimento.
Para efeito defende que a R. faz concorrência desleal para consigo na forma como «conforma os seus estabelecimentos», adoptando os elementos atrás referidos.
O Tribunal
a quo
entendeu que não se observam os requisitos para tal, concluindo que não existe concorrência por inexistir afinidade ou identidade de produtos ou de atividades, sequer as atividades dos concorrentes se inserindo no mesmo sector de mercado e espaço territorial.
Conclui igualmente que não existe comportamento desleal por não se apurar por parte da R. qualquer atuação contrária às normas e usos honestos do comércio, em específico, da área da pastelaria tradicional, onde a autora e a ré actuam.
Será assim?
Não cremos.
Vejamos.
A concorrência desleal está prevista no artigo 311.º do Código da Propriedade Industrial.
Este artigo dispõe que:
“
1 - Constitui concorrência desleal todo o ato de concorrência contrário às normas e usos honestos de qualquer ramo de atividade económica, nomeadamente:
a) Os atos suscetíveis de criar confusão com a empresa, o estabelecimento, os produtos ou os serviços dos concorrentes, qualquer que seja o meio empregue;
b) As falsas afirmações feitas no exercício de uma atividade económica, com o fim de desacreditar os concorrentes;
c) As invocações ou referências não autorizadas feitas com o fim de beneficiar do crédito ou da reputação de um nome, estabelecimento ou marca alheios;
d) As falsas indicações de crédito ou reputação próprios, respeitantes ao capital ou situação financeira da empresa ou estabelecimento, à natureza ou âmbito das suas atividades e negócios e à qualidade ou quantidade da clientela;
e) As falsas descrições ou indicações sobre a natureza, qualidade ou utilidade dos produtos ou serviços, bem como as falsas indicações de proveniência, de localidade, região ou território, de fábrica, oficina, propriedade ou estabelecimento, seja qual for o modo adotado;
f) A supressão, ocultação ou alteração, por parte do vendedor ou de qualquer intermediário, da denominação de origem ou indicação geográfica dos produtos ou da marca registada do produtor ou fabricante em produtos destinados à venda e que não tenham sofrido modificação no seu acondicionamento.
2 - São aplicáveis, com as necessárias adaptações, as medidas previstas no artigo 345.º
”
Como já referido
«[o]s requisitos para que haja Concorrência Desleal são: a existência de uma
relação de concorrência
, a
deslealdade
(contrariedade às normas ou usos honestos da atividade económica) e a
culpa
.»
[18]
O que seja concorrência para que se abalance a saber se existe deslealdade no «acto» praticado, ou seja, a amplitude da relação de concorrência, a proximidade necessária entre as actividades desenvolvidas
[19]
, apela ao conhecimento de duas das posições mais sustentáveis:
(a) uma concepção intermédia para a qual é suficiente a possibilidade factual de desvio de clientela, admitindo-se concorrência «
não só entre produtos ou serviços substitutos, mas também entre aqueles que se encontrem em relação de complementaridade desde que as necessidades que se visam satisfazer se insiram no mesmo mercado.»
- Carlos Olavo e Luís Couto Gonçalves;
(b) uma concepção restrita que exige disputa concreta da mesma clientela. «
O que está em jogo na relação de concorrência é a disputa da mesma clientela»
- Oliveira Ascenção, Patrício Paúl e Pedro Sousa e Silva
[20]
-
,
na expressão de Carlos Olavo sendo próximas as actividades quando elas são idênticas ou afins
[21]
.
Começando por este requisito, assumindo a posição mais restrita, diremos que os produtos comercializados por ambas as partes são da mesma categoria, como referido pela recorrente são inclusivamente da mesma 30º classe da Classificação de Nice
[22]
.
Estamos perante produtos de pastelaria fina: ovos moles vs macarons.
Socorrendo-nos de conceitos relacionados com o direito das marcas
[23]
e a propósito dos requisitos quanto à proibição da reprodução ou imitação de marca que nos seus requisitos exige a sintonia de produtos ou serviços (identidade e afinidade) – art.º 232.º, n.º 1, al.a e b) do CPI -, porque a lei não clarifica expressamente o que sejam produtos (e serviços) afins para aquele efeito, diremos que deve entender-se como tal os
“produtos ou serviços que
apresentam entre si um grau de semelhança ou proximidade suficiente para permitir, ainda que parcialmente, uma procura conjunta, para satisfação de idênticas necessidades dos consumidores
. Os produtos ou serviços em causa terão que se situar, pois, no mesmo mercado relevante, permitindo desta forma,
ainda que tenuemente
, uma relação de concorrência entre os agentes económicos que os ofereçam ao público”
[24]
.
Apontam-se como factores a ter em consideração neste processo de indagação: a natureza dos serviços e produtos, a composição destes, a sua finalidade, função, as suas diversas utilidades, os canais de distribuição usados e o género de estabelecimento em que são comercializados, o respectivo preço, grau de qualidade (….).
[25]
A R. produz e comercializa ovos moles (facto 27)
[26]
e a A. macarons (facto 28)
[27]
, produtos que como se referiu são de confeitaria, diremos fina, produtos que na sua composição contêm alguns ingredientes comuns, a sua finalidade é, digamos assim, a satisfação de um consumo alimentar não essencial mas refinado, sendo o mesmo o tipo de consumidores
[28]
, por fim os estabelecimentos apresentam o mesmo género (basta o relance das fotos constantes da matéria de facto para aí se chegar).
Atendendo à natureza dos produtos, a composição destes, a sua finalidade, função, o género de estabelecimentos em que são comercializados (como se retira da matéria de facto provada através das fotos selecionadas), o respectivo preço, que sabemos ambos não ser barato
[29]
, o grau de qualidade, também sobejamente conhecido, cremos não poder duvidar-se que estamos perante produtos idênticos, quando muito afins, sendo o público alvo o mesmo.
A isso não obsta, na nossa óptica, o facto da R. não ter estabelecimentos em nenhum países mencionados no facto assente sob o artigo 2, sendo válido e certeiro o argumento da apelante
: «Mais se acrescenta que ainda que a recorrida não tenha atividade em nenhum dos países referidos no facto 2, dada a globalização e o aumento dos viajantes, o facto 20 da sentença não se afigura como relevante para a boa decisão da causa, uma vez que foi comprovado que ambas «visam a mesma clientela», pois o público-alvo da recorrida é exactamente igual ao da recorrente, i.e., turistas, turistas esses que frequentam o Aeroporto de Lisboa, e ainda, Aveiro.»
Releva igualmente a circunstância provada da A. já ter tido um estabelecimento em Portugal e pretender instalar-se novamente no território nacional (facto 16 e 17).
Conclui-se, pois, que as partes visam a mesma clientela, estando-se por conseguinte no caso perante uma relação de concorrência, assim verificado o primeiro requisito atrás elencado.
Quanto ao segundo requisito, a
deslealdade
(contrariedade às normas ou usos honestos da atividade económica)
, como já referido
«[o] preceito em anotação contém uma cláusula geral, seguida de uma enumeração exemplificativa. Os actos típicos não prescindem da verificação dos pressupostos gerais da CD. A sua tipicidade refere-se apenas ao requisito da deslealdade, ou seja, são atos tipicamente desleais. Esta enumeração, além de servir de «atalho» ao intérprete-aplicador, realiza ainda a função de ilustrar e permitir compreender que tipo de condutas é que o legislador inclui na cláusula geral. Apesar de existirem propostas de critérios hermenêuticos gerais, como o princípio da prestação, a melhor forma de densificar o conceito de deslealdade é através de grupos de casos»
[30]
Seria intelectualmente injusto não transcrever a propósito a sentença.
«O segundo pressuposto remete para regras, normalmente não escritas, relativas à honestidade e retidão de comportamentos, que num qualquer sector de atividade se foram cristalizando sobre o que se considera, do ponto de vista da ética comercial, próprio dos bons homens do sector e, como tal, deve servir de padrão de comportamento para todos os agentes do sector.
Deste modo, a contrariedade às "normas e usos honestos de qualquer ramo de atividade económica" constitui um conceito indeterminado, que carece de preenchimento valorativo.
As normas em causa são as regras incluídas em códigos de conduta, crescentemente utilizados pelos mais variados sectores de atividade, e geralmente adotados pelos membros de associações empresariais. Já os usos são os padrões de comportamento considerados corretos no ramo de atividade em questão, que obedecem a critérios éticos e que delimitam aquilo que é considerado honesto, servindo para o julgador traçar a linha divisória daquilo que é leal e desleal. Os usos honestos são, assim, padrões de conduta, de carácter extrajurídico, que se ancoram em práticas sociais aceites em cada sector.
Recorrendo novamente ao Parecer da Procuradoria-Geral da República n.º 17/57, a expressão usos honestos remete «para um conceito móvel e contingente da honestidade profissional. Não devemos procurar saber se existem verdadeiros costumes comerciais que legitimem determinada conduta, e menos ainda se tais costumes reúnem requisitos que permitam erigi-los em fonte de direito mediata, mas deverá ver-se no preceito em análise uma referência directa à consciência ética do comerciante médio, sendo intérprete o julgador».
Cumpre assinalar que a nossa ordem jurídica já fornece uma cláusula geral, com aptidão e aspiração a regular comportamentos com base em critérios éticos de comportamento globalmente aceites pela comunidade, a qual permite controlar e reduzir a incerteza associada à determinação daquilo que é considerado honesto, num sector em particular, pelos próprios agentes desse sector; trata-se da cláusula da boa-fé.
Em suma, a concorrência desleal visa obstar a atos contrários aos usos honestos do comércio, repudiados pela boa consciência dos agentes do mercado e capazes de causar prejuízos a concorrentes, que se assomam como ilegítimos, injustificados, resultantes não das competências próprias, mas do aproveitamento, usurpação ou clonagem de competências alheias. O que se censura ao agente económico são os meios de que ele se serve para atuar no mercado, e não os concretos resultados que derivam dessa atuação. O que se pretende tutelar é a confiança legítima de todos os agentes do mercado de que as atuações concorrenciais se pautarão pela boa-fé.
Desta forma, se o ato praticado tiver por finalidade atrair/desviar a clientela, mas não for contrário a normas ou usos aceites no seio da respetiva atividade, não haverá concorrência desleal, ainda que, como consequência da sua realização, a empresa consiga obter clientela à custa da clientela alheia.
Quer isto significar que o que caracteriza a concorrência desleal não é o resultado obtido (angariação de mais clientela), mas os meios utilizados para o alcançar.
(…)
Para a apreciação do presente caso, importa atentar com maior premência na alínea a), do n. º1, do artigo 311.º do Código da Propriedade Industrial.
Esta alínea abrange a utilização de sinais associados a um agente económico, estejam ou não registados, ou outra forma de evocação que leve à ocorrência de confusão por parte dos consumidores. A referência a "
qualquer meio
" permite tratar esta hipótese como uma subcláusula geral, cobrindo todas as hipóteses de confusão juridicamente relevantes.
Determinar o seu âmbito, passa essencialmente por apurar qual o conceito de confusão aqui previsto. No entanto, a norma limita o objeto da confusão, só estando compreendida nesta hipótese a "confusão com a empresa, o estabelecimento, os produtos ou os serviços dos concorrentes".
Tem-se entendido que muitas das considerações da doutrina, a propósito da confundibilidade das marcas e dos produtos, são pertinentes e aplicáveis quando se trata de saber se um produto copia ou imita um outro concorrente. Contudo, no âmbito da concorrência desleal a análise é efetuada em concreto, tendo em conta todas as circunstâncias, incluindo fatores exteriores e a comparação dos sinais que podem fazer aumentar ou diminuir o risco de confusão.
Como ensina Pupo Correia, “Visam-se na al. a) do art. 317°, fundamentalmente, os actos pelos quais o concorrente procura captar a clientela do concorrenciado procurando lograr os clientes, induzindo-os em erro de modo a levá-los a crer que, ao negociar com a empresa ou estabelecimento daquele ou ao adquirir os seus produtos ou serviços, estão a fazê-lo com o concorrenciado.
Note-se, porém, que, como resulta do que já dissemos em sede geral, não é necessária a ocorrência de uma efectiva confusão dos clientes (ou outros terceiros) visados para que exista acto qualificável como de concorrência desleal, mas apenas que haja o perigo de ela se verificar.
A confundibilidade deverá avaliar-se de acordo com o aspecto geral dos bens em presença e segundo critério idêntico ao preconizado por consumidor médio. Por outro lado, a confundibilidade reporta-se aos próprios bens referidos nesta al. a) (empresa, estabelecimento, produtos ou serviços), e não só aos sinais distintivos que sobre eles incidam.
Uma das formas mais importantes dos actos de confusão consiste na imitação servil, que se traduz na reprodução dos produtos de um concorrente, quanto às suas características de formato, confecção ou apresentação. Porém, a imitação servil só é proibida se for susceptível de criar confusão entre os produtos, a qual não se verificará em marcas distintas. Além disso, pode não haver imitação servil ilícita quanto às formas dos produtos tornadas gerais pelo uso comum, ou respeitante à própria natureza do produto, quanto à sua composição intrínseca ou função característica” (sublinhado nosso).
Em síntese, o critério para aferir essa confusão há-de radicar na reação normal do consumidor médio, no seu comportamento face a uma dada atuação. Um determinado ato integrará o critério de concorrência desleal a partir do momento em que o consumidor médio não for capaz de distinguir entre uma atividade e outra atividade empresarial.
Além dos casos legalmente tipificados, a jurisprudência e a doutrina têm identificado outras situações de concorrência desleal, como a concorrência parasitária. Esta diz respeito à imitação sistemática, reiterada, do comportamento de um concorrente. Trata-se da atuação de um concorrente que segue, de modo sistemático, continuado, próximo e essencial, ainda que não provoque confusão, as iniciativas e ideias empresariais de outros concorrentes. O carácter desleal da conduta advém precisamente dessa repetição, que visa eliminar a
distância que separa as empresas, não graças à prestação própria, mas à apropriação de elementos de inovação e risco, falseando de forma intolerável a concorrência e contrariando, assim, as normas e usos honestos.»
Não obstante entendeu o tribunal
a quo
, após o citado substantivo enquadramento do requisito em causa, que não ocorria, com a conformação feita do estabelecimento da R, utilizando as cores atrás assentes, configuração do «logo» e cartonagem (…), tudo apesar da similitude que reconhece com o «estabelecimento» da A., susceptibilidade de criar confusão no consumidor por associação com a Ladurée.
Não temos essa opinião.
Referimos supra, como de resto o faz a sentença, porque
«[o]utro meio frequente suscetível de criar confusão relevante é a imitação de um produto
ou da respetiva embalagem
, quando a aparência de um e/ou da outra é peculiar ou não trivial e não determinada por razões técnico-funcionais, e o imitador tinha opções adequadas para evitar a imitação»
, então justificado está o uso da concepção de BÉDARRIDE, largamente acolhida pela doutrina e a jurisprudência, para com base nela se chegar à «imitação», destarte à intenção de, com a renovação mencionada em 8), se pretender copiar e aproveitar a projeção internacional da autora.
Reza a citada concepção
: “a questão da imitação deve ser apreciada pela semelhança que resulta do conjunto dos elementos que constituem a marca e não pelas dissemelhanças que poderiam oferecer os diversos pormenores, considerados isolados e separadamente”.
Deste modo, se a semelhança de conjunto, entre a marca anterior protegida e a mais recente, sem consideração dos pormenores diferenciadores, gerar a possibilidade de confusão, pela fácil indução em erro do consumidor, haverá imitação da primeira pela segunda”
.
É, pois, critério que continua actual e útil para também nesta sede se poder chegar (ou não) a observância do requisito em causa
[31]
, a
deslealdade
(contrariedade às normas ou usos honestos da atividade económica), servindo de «atalho» o que consta da al. a) do nº1 do artigo 311.º do CPI
: os atos suscetíveis de criar confusão com a empresa, o estabelecimento, os produtos ou os serviços dos concorrentes, qualquer que seja o meio empregue
.
Refere-se na sentença:
«Demonstrou-se que a autora:
-
é internacionalmente conhecida pela disposição interna dos seus produtos e pelo layout dos seus estabelecimentos, em conjunto com a utilização de cores específicas, nomeadamente (cf. facto provado n.º 3):
×
a utilização da letra “L” nos balcões;
×
a utilização do cor-de-rosa pálido, o verde-pálido e azul-pálido,
×
a exposição de várias caixas de embalamento dos produtos por detrás do balcão;
-
utiliza caixas de embalamento de cor-de-rosa pálido, verde-pálido e azul-pálido, conforme imagem constante do facto n. º5);
-
a decoração interna dos seus estabelecimentos é uma alusão à decoração interna dos palácios franceses do tempo do Rei Luís XIV (cf. facto provado n. º4).
Quanto à ré, provou-se que:
-
a Confeitaria D... procedeu a uma renovação do seu espaço, tendo reaberto ao público a 8 de agosto de 2018 e passado a utilizar (cf. factos provados n.ºs 8 e 9):
.
as cores cor-de-rosa pálido, o verde-pálido e azul-pálido na decoração do estabelecimento e nas caixas;
.
a disposição das caixas por detrás do balcão;
.
a primeira letra do nome, neste caso, “P” nos balcões;
.
a cor verde-pálido no balcão;
-
a renovação procurou conciliar a tradição da Confeitaria D... e a história da cidade de Aveiro (cf. factos provados n.ºs 21 e 22);
-
os seus estabelecimentos estão identificados com a denominação “CONFEITARIA D...®” (cf. facto provado n. º23);
-
no estabelecimento de Aveiro, apenas foi colocado o “P” de “D...” nas almofadas do balcão, porquanto a denominação completa do estabelecimento – CONFEITARIA D... - não seria facilmente visível e lida pelos consumidores devido à falta de largura do espaço (cf. facto provado n.º 24).
Ora, além dos factos propriamente dito, é deveras relevante atentar nas imagens que constam, igualmente, da factualidade dada como demonstrada.
Das mesmas resulta que existem similitudes entre os estabelecimentos da autora e da ré, sobretudo no que diz respeito às cores utilizadas e no balcão, em que em ambas apresentam uma tonalidade de verde-pálido semelhante
. (….)
[32]
»
A sentença reconhece a proximidade dos «estabelecimentos», digamos, da sua conformação estilística, não obstante depois se centrando no que têm de dissemelhante.
Com o devido respeito, não cremos que seja esse o processo a seguir.
O que têm de semelhante, incluindo o que produzem e comercializam (biscoitos, bolinhos
vs
ovos em formato de pequenos bolos ainda que com várias formas, ambos produtos em pequenas «peças» e muito doces, estilisticamente atraentes) é o foco que se exige, sendo uma análise de conjunto que se impõe e tendo por referência o «olhar» de um «consumidor médio».
Relevando as citadas semelhanças, e as fotografias não deixam dúvidas da proximidade em causa, a confusão quanto à associação entre os estabelecimentos é um dado que se nos afigura inequívoco, tanto mais que se mostra exponenciada tal confusão face à provada e inquestionada projeção internacional da apelante
[33]
.
Demonstração clara da proximidade dos estabelecimento, por conseguinte gerando a referida «confusão», emerge inclusive do que provado está sob as al.11, 12, 13, 14, 15.
Expressiva a afirmação assente de AA, presidente do grupo «C...» no qual a confeitaria D... se integrou:
"Queremos fazer com eles o que a Ladurée fez com os macarons", anuncia
.”
Elucidativa a adjectivação produzida no website “Week-ends à 2 Travel Tips”: “
Fundada em 1856, esta pastelaria
com um falso ar de Ladurée
(…).”
Igualmente elucidativa a asserção no website da “Il Prezzemolo Tritato”: “
No mapa que tem na secção ''lojas gourmet'' deixo-lhe as duas melhores confeitarias para os comer. Uma é a tradicional no Rossio, no canal central e a outra é a incrivelmente parisiense O D....
Sem dúvida evoca a Ladurée em todo o seu esplendor
(…)”
Esclarecedora e incontornável o desabafo de consumidor qualificado da R. (há mais de e décadas), LL, ao referir comentou o seguinte: “
Cliente há mais de 3 décadas, ficámos desagradavelmente surpreendidos com os preços praticados desde que a loja foi renovada: o preço dos Ovos Moles praticamente duplicou (36 euros o quilo só de gema de ovo e açúcar!!!).
É certo que estamos a pagar a nova decoração, o pessoal extra para a sala de chá e as bonitas caixas ao estilo Ladurée
, mas continua a ser um preço proibitivo para Aveiro. Uma nova armadilha para turistas, o que é uma pena
!”.
Constata-se pelos elementos colhidos que existe a adoptação pela R. no seu comércio, conformação do seu «estabelecimento», cores escolhidas, incluindo para a cartonagem, apresentação do «logo» (…)
uma associação patente à A.
e no que aos citados aspectos se refere, circunstância que leva necessariamente à ocorrência por parte do consumidor de confusão quanto à associação entre os «estabelecimentos» concorrentes.
Note-se que
«o risco de confusão pode ser entendido em sentido restrito, quando o consumidor médio não distingue as actividades de uma e de outra empresa, ou
em sentido amplo, quando o consumir médio, distinguindo as actividades das empresas em causam as associa indevidamente
»
[34]
.
Com a apelante diremos:
«A semelhança visual e conceptual entre os espaços comerciais da Recorrente e da Recorrida é evidente, desde a escolha das cores, à disposição das caixas, até ao uso estilizado de letras nos balcões
.»
Não fazendo
« (…) sentido a pretensa existência de outras cores, porquanto mesmo que possam existir pontualmente “outras cores” nos estabelecimentos – não sendo isso que está aqui em causa –, a verdade é que as cores visivelmente predominantes são o cor-de-rosa pálido, o verde-pálido e o azul-pálido, conforme se constata nas imagens constantes dos factos provados
»
Assim não bastasse, com os elementos coligidos pelo tribunal
a quo
, e na nossa perspectiva bastaria, resulta ainda assente por decisão nossa o que consta do facto
8.A: «A renovação mencionada em
8)
foi efetuada com o intuito de copiar e aproveitar a projeção internacional da autora.»
Diríamos um facto que nos remete para o desnecessário, neste contexto, dolo específico, mas que, por outro lado, abre pistas quanto ao que objectivamente se visava e logrou: conformar estilisticamente, revestir com um
trade dress
um espaço de comércio (incluindo a cartonagem) à semelhança dos da A..
Temos, pois, por observado o requisito em causa
[35]
, podendo também deste facto ora citado (8.A), na relação como o demais assentes e no confronto com o comportamento exigido a um «homem médio», ao «concorrente médio» (art.º487.º n.º2 do CC),
retirar a exigida culpa, último dos requisitos atrás elencado.
Conclui-se, pois, estarmos perante actos de concorrência desleal, assim se impondo a revogação da sentença e, em sua substituição proferindo outra que condene a R. nos termos pedidos, inclusivamente quanto à sanção pecuniária compulsória (art.º 829.º-A do CC) e vista a natureza infungível da obrigação
[36]
que se imporá à R.
[37]
.
Não obstante, quanto a este último aspecto, relevando a tarefa que se imporá à R. e seu jaez, tendo por referência um critério de razoabilidade, entende-se mais ajustado fixar-se o termo a partir do qual se vencerá a sanção no 91ª dia (ou seja, no termo do 90ª dia) após o transito em julgado da decisão
[38]
.
*
IV.
Pelo exposto, acorda este Tribunal da Relação do Porto em revogar a decisão recorrida que absolveu a apelada Ré e, em consequência, proferindo-se outra que a condene a:
I. - alterar e abster-se de utilizar as cores rosa-pálido, verde-pálido e azul-pálido nas caixas de embalagem dos seus produtos de confeitaria;
II. - alterar e abster-se de voltar a usar o tom de verde-pálido, rosa-pálido e azul-pálido usado pela autora na pintura do mobiliário de loja;
III. - alterar e abster-se de voltar a utilizar a inicial “P” num círculo nos seus balcões, em cópia do “L” num círculo dos balcões da autora, tal como consta da página principal do website da Ré;
IV. - promover as alterações requeridas em todo o marketing, websites, vestuário, publicidade e futuras referências à autora como fonte que serviu de referência na remodelação.
V. - proceder às alterações necessárias nas suas lojas para cumprimento do peticionados nos pontos atrás referidos, no prazo máximo de 30 dias a contar do trânsito em julgado da sentença;
VI. - condenar a R. apelada, nos termos do artigo 829.º-A do CC, a liquidar a quantia de 100,00 € (cem euros) por cada dia de atraso no cumprimento dos segmentos condenatórios atrás referidos sob os pontos I-V, sanção esta a operar com início no termo do 90ª dia após o trânsito em julgado da decisão.
Custas pela R. apelada.
*
Sumário:
………………………..
………………………..
………………………..
*
Porto, 2025/6/4.
Carlos Cunha Rodrigues de Carvalho
Isabel Rebelo Ferreira
João Maria Espinho Venade
___________________________
[1]
Segue-se relatório da decisão posta em crise.
[2]
Cfr. a citação da doutrina a propósito no Ac. do STJ de 6.6.2018 proc. 4691/16.2T8LSB.L1.S1: (a) António Santos Abrantes Geraldes -
«[a]s conclusões exercem ainda a importante função de delimitação do objeto do recurso, como clara e inequivocamente resulta do artigo 635º, n.º 3, do CPC. Conforme ocorre com o pedido formulado na petição inicial, as conclusões do recurso devem corresponder à identificação clara e rigorosa daquilo que se pretende obter do tribunal Superior, em contraposição com aquilo que foi decidido pelo Tribunal a quo
.» - in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017 – 4ª edição, Almedina, página 147. / (b) Fenando Amâncio Ferreira -
«[n]o momento de elaborar as conclusões da alegação pode o recorrente confrontar-se com a impossibilidade de atacar algumas das decisões desfavoráveis. Tal verificar-se-á em dois casos; por preclusão ocorrida aquando da apresentação do requerimento de interposição do recurso, ou por preclusão derivada da omissão de referência no corpo da alegação. Se o recorrente, ao explanar os fundamentos da sua alegação, defender que determinada decisão deve ser revogada ou alterada, mas nas conclusões omitir a referência a essa decisão, o objeto do recurso deve considerar-se restringido ao que estiver incluído nas conclusões.
» - Manual dos Recursos em Processo Civil, Almedina, 2000, página 108 / (c) José Augusto Pais do Amaral -
«[o] recorrente que tenha restringido o âmbito do recurso no requerimento de interposição, pode ainda fazer maior restrição nas conclusões da alegação. Basta que não inclua nas conclusões da alegação do recurso alguma ou algumas questões, visto que o Tribunal ad quem só conhecerá das que constem dessas conclusões
.» - Direito Processual Civil, 2013, 11ª edição, Almedina, páginas 417/418.
[3]
Pretende a apelada que em vez de cor verde-pálido no balcão passe a constar do facto «a cor cake green, nº34, do catálogo da E...».
[4]
Do qual fomos adjunto.
[5]
Proc.501/12.8TBCBC.G1
[6]
Ac. da R.P. de 6.3.25, Processo n.º 1743/22.3T8AVR.P1., do qual fomos adjunto.
[7]
«O preceito em anotação contém uma cláusula geral, seguida de uma enumeração exemplificativa. Os actos típicos não prescindem da verificação dos pressupostos gerais da CD. A sua tipicidade refere-se apenas ao requisito da deslealdade, ou seja, são atos tipicamente desleais. Esta enumeração, além de servir de «atalho» ao intérprete-aplicador, realiza ainda a função de ilustrar e permitir compreender que tipo de condutas é que o legislador inclui na cláusula geral. Apesar de existirem propostas de critérios hermenêuticos gerais, como o princípio da prestação, a melhor forma de densificar o conceito de deslealdade é através de grupos de casos»
- CPI anotado, Nuno Sousa e Silva, Coordenação Luís Couto, Almedina, pág.1174
[8]
«
O ato de concorrência é, nos termos do proémio do art.311.º, 1, do CPI «desleal» quando contrário às normas e usos honestos de qualquer ramo de atividade económica
»
(…)»
- Jorge Manuel Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, V.I, 13ª Ed. Almedina, p.425
[9]
«Os requisitos para que haja Concorrência Desleal são: a existência de uma relação de concorrência, a deslealdade (contrariedade às normas ou usos honestos da atividade económica) e a culpa.»
–
Nuno Sousa e Silva, op. cit., p.1172.
[10]
Cuja selecção, em parte para nós também seria desnecessária. Desnecessária porque sempre se lograria conhecer da observância,
pelo menos
daqueloutro requisito da CD, a culpa, por comparação dos actos provados com o padrão do comportamento exigido ao um bom pai de família, ou seja, dum comerciante normal.
«
A culpa, nos termos do Código Civil é apreciada em abstrato com recurso à figura do homem médio/«bónus pater familias» (art.º487.º, n.º2 CC), devendo esse padrão ser adaptado, na CD, ao concorrente médio daquele sector. O juízo de censura presente na culpa aproxima-se da deslealdade pela carga ética subjacente a este último conceito. No entanto, a culpa é aferida subjetivamente e em concreto, ao contrário da deslealdade – fonte da ilicitude – que é avaliada através de um padrão objetivo (….)
.» - Nuno Sousa e Silva, op. cit., p.1179
Não obstante, como quer que seja (….).
[11]
Proc.41/12.6TBMGR.C1.S1
[12]
Refere-se ajustado o recurso a certos critérios típicos do direito das marcas – Nuno Sousa e Silva, op. cit., p.1174..
Porque
«[o]utro meio frequente suscetível de criar confusão relevante é a imitação de um produto
ou da respetiva embalagem
, quando a aparência de um e/ou da outra é peculiar ou não trivial e não determinada por razões técnico-funcionais, e o imitador tinha opções adequadas para evitar a imitação
- Jorge Manuel Coutinho de Abreu, op. cit., p.428 –, então justificado o uso da concepção de BÉDARRIDE, largamente acolhida pela doutrina e a jurisprudência, para com base nela se chegar à «imitação», destarte à intenção de, com a renovação mencionada em 8), se pretender copiar e aproveitar a projeção internacional da autora.
Reza a citada concepção
: “a questão da imitação deve ser apreciada pela semelhança que resulta do conjunto dos elementos que constituem a marca e não pelas dissemelhanças que poderiam oferecer os diversos pormenores, considerados isolados e separadamente”.
Deste modo, se a semelhança de conjunto, entre a marca anterior protegida e a mais recente, sem consideração dos pormenores diferenciadores, gerar a possibilidade de confusão, pela fácil indução em erro do consumidor, haverá imitação da primeira pela segunda”
. - Pupo Correia, Direito Comercial, 10ª Ed., Ediforum, p.348.
[13]
A montante funcionando como
critério de selecção factual
.
A coberto da Teoria da Norma de Rosemberg, critério identificativo do que sejam factos actos constitutivos, extintivos e impeditivos (art.º342.º do CC): a repartição do ónus da prova processa-se de harmonia com a previsão (geral e abstracta) traçada na norma jurídica que serve de fundamento à pretensão de cada uma das partes. Ao autor caberá a prova dos factos que, segundo a norma jurídica substantiva aplicável, servem de pressuposto ao efeito jurídico por ele pretendido. Ou seja: incumbe-lhe o ónus de provar os factos correspondentes à situação de facto traçada na norma substantiva em que fundamenta a sua pretensão - Cf. Varela, Antunes. Comentário ao acórdão do STJ de 22.10.81 in RLJ, anos 116 e 117, pág. 313 e segts / 377 e segts / 26 e segts / Reis Alberto. Código de Processo Civil Anotado, V. III, 4º ed., pág. 278.
[14]
Se o autor não prova o facto constitutivo, a ação é julgada improcedente, segundo o princípio
actore non probante reus absolvitur
, mesmo que o réu não prove qualquer facto impeditivo, modificativo ou extintivo - Cf. Teixeira de Sousa, As partes, O objeto e a Prova na Acção Declarativa, pp. 259-260.
[15]
Servir-nos-emos neste processo operacionalizador por inferência dos factos constantes dos artigos 3 (3.1, 3.2, 3.3) e 8 porque, apesar de impugnados pela R., como adiante se ajuizará, manter-se-ão provados.
[16]
Uma admissão relevante, publicamente apresentada.
[17]
Facto 2 e depoimento de BB.
[18]
Nuno Sousa e Silva, op. cit., p.1172.
[19]
«(…) entende-se pacificamente que, para que se esteja perante um acto de concorrência desleal, é necessária a existência de uma certa «proximidade» entre as actividades desenvolvidas pelos agentes económicos em causa» -
Carlos Olavo, Propriedade Industrial, Almedina, p.154
[20]
Nuno Sousa e Silva, op. cit., p.1173.
[21]
Op. cit., p.154
[22]
Classe 30 - Café, chá, cacau e substitutos dos mesmos; arroz, massas alimentares e noodles; tapioca e sagu; farinhas e preparações feitas de cereais; pão
, pastelaria e confeitaria
; chocolate; gelados, sorvetes e outros produtos em gelo comestíveis; açúcar, mel e xarope de melaço; levedura e fermento em pó; sal, temperos, especiarias, ervas em conserva; vinagre, molhos e outros condimentos; gelo [água congelada]. – Cf.
12ª Edição Classificação de Nice - Versão 2019 - Lista de classes com notas explicativas
in
https://inpi.justica.gov.pt/Documentos/Legislacao-e-outros-documentos/Classificacoes-internacionais-e-listas-de-classes
[23]
Vide nota 12.
[24]
Pedro de Sousa e Silva, Direito Industrial, Noções fundamentais, p.167.
[25]
Pedro de Sousa e Silva, op. e loc. cit..
[26]
Produto obtido pela junção de gemas cruas de ovos a uma calda de açúcar. Podem apresentar-se tal qual, envolvidos em hóstia, que pode ou não ser coberta com uma fina camada de calda de açúcar ou de chocolate, ou acondicionados diretamente em barricas de madeira ou de porcelana -
https://tradicional.dgadr.gov.pt/pt/cat/doces-e-produtos-de-pastelaria/580-ovos-moles-de-aveiro-igp
[27]
Pequeno biscoito, redondo e crocante, feito de farinha de amêndoas, com base em claras, açúcar e recheado, granuloso e mole, de forma arredondada com diâmetro aproximado de 5 cm em média -
https://www.socilink.com/noticias/macaron-conheca-a-historia-do-famoso-doce-colorido/
[28]
Vide factos 7, 10 e 19 vs 2 e18.
[29]
Vide comentário de LL, supra assente: “
Cliente há mais de 3 décadas, ficámos desagradavelmente surpreendidos com os preços praticados desde que a loja foi renovada
: o preço dos Ovos Moles praticamente duplicou (36 euros o quilo só de gema de ovo e açúcar!!!).
É certo que estamos a pagar a nova decoração, o pessoal extra para a sala de chá e as bonitas caixas ao estilo Ladurée, mas continua a ser um preço proibitivo para Aveiro
. Uma nova armadilha para turistas, o que é uma pena
!”.
[30]
Nuno Sousa e Silva, op. cit. p.1174.
[31]
Nuno Sousa e Silva, op. cit. p.1175: «
Em geral tem prevalecido o entendimento segundo o qual o critério é o mesmo do Direito das Marcas»
- cita os Ac. TRL 18.3.2014 (P.1288/05.6TYLSB.L1-7) / Ac. TRL 17.2.2011 (P.1210/07.5TYSLB.L1-2 / Ac. STJ 17.06.2010 (P.806/03.TBMGR.C1.S1
[32]
Sublinhado nosso.
[33]
Não existe material factual que permita reconhecer-se que a marca da autora é um marca notória, por maioria de razão de prestígio (art.º 234.º e 235.º do CPI). Não obstante sendo conhecida internacionalmente, como de facto é, mostra-se ajustado o argumento da apelante: Defende o Dr. Nuno de Araújo Sousa e Silva que “(…)
caso
a
marca
anterior
tenha especial
reputação,
os
consumidores
poderão ser atraídos pelo sinal que já conhecem
, beneficiando
o
novo
utilizador
do
sinal
da
reputação
construída
pelo
primitivo utilizador.”
Dissemos a propósito em decisão proferida no processo CV3-23-0038-CRJ do Tribunal de Base da Região Administrativa de Macau da RPC
: «Já quando a
similitude é relevante
poderíamos dizer: a notoriedade (ou o prestígio) de dada marca pode ser chamada à colação na abordagem comparativa que se faça com outra que a ela se assemelha, igualmente em relação à concorrência desleal.
Quando a similitude estiver num patamar mais significativo, em situações de maior dúvida, a natureza distinta das marcas que se sintam postas em crise podem fazer pender a balança da decisão para a imitação ou para a concorrência desleal. Será tanto maior a susceptibilidade de se concluir nesse sentido quanto maior for a fama da marca afrontada».
[34]
Carlos Olavo, op. cit., p.163.
[35]
Despiciendo se revela saber se, com a afirmação do presidente do grupo onde a R. se insere mencionada no ponto 12 da factualidade assente se preenche a al.c) do n.º1 do art.º 311.º do CPI.
[36]
«As abstenções» que se imporão, por terceiro, só com a anuncia da R. se cumprirão. Pressupõe-se, pois, a sua autorização por se ter de imiscuir em propriedade privada, incluindo em site próprio cujo acesso só possível com conhecimento de password. Daí a infungibilidade.
[37]
«Embora a medida só possa ser ordenada pelo juiz, a pedido do credor, uma vez pedida não pode ser recusada, o juiz tem o poder e o dever de a ordenar
» - Comentário ao CC, Direito das Obrigações, Das obrigações em Geral, UCP editora, p.1236, ponto VIII.
[38]
«Quando o entenda por conveniente, o juiz poderá fixar o termo inicial numa fase posterior»
- Comentário ao CC, Direito das Obrigações, Das obrigações em Geral, UCP editora, p.1237, ponto X.
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TRP
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https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/5f7abbcb76133aa080258cab004cd978?OpenDocument
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1,740,614,400,000
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CONFIRMADA A SENTENÇA RECORRIDA
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1505/23.0T8TMR.E1
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1505/23.0T8TMR.E1
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PAULA DO PAÇO
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Sumário elaborado pela relatora:
I. Incumpre o ónus primário de impugnação previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC, a recorrente que não indica nas conclusões do recurso quais os pontos de facto que especificamente impugna.
II. Havendo uma total omissão de indicação dos segmentos das gravações dos depoimentos testemunhais em que se funda a impugnação e da decisão alternativa que é proposta para os pontos impugnados, considera-se inobservado o disposto na alínea c) do n.º 1 e na alínea a) do n.º 2 do artigo 640.º do CPC.
III. Compete àquele que invoca a existência de um contrato de trabalho, alegar e demonstrar a sua verificação ou, pelo menos, demonstrar a base da presunção prevista no artigo 12.º do Código do Trabalho para que, neste último caso, possa beneficiar da presunção de laboralidade consagrada neste artigo.
IV. Apurando-se que as partes processuais eram marido e mulher e atuavam em conjunto, e em igualdade de posições, na exploração de um lar de idosos que mantinham na casa de morada de família, sem que a Autora estivesse sujeita ao poder de direção, orientação e fiscalização do réu, não se pode concluir pela existência de uma relação laboral.
V. Revelando a materialidade apurada que a Autora veio alegar factos inverídicos e deduzir pretensão absolutamente infundada, o que não poderia deixar de ignorar, uma vez que estavam em caus factos pessoais, nenhuma censura merece a sua condenação como litigante de má-fé.
|
[
"IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO",
"ÓNUS DO RECORRENTE",
"PRESUNÇÃO DE CONTRATO DE TRABALHO",
"LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ"
] |
P.1505/23.0T8TMR.E1
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora
1
I. Relatório
Na presente ação declarativa, com processo comum, que
AA
intentou contra
BB
, pedindo a condenação deste a pagar-lhe a quantia de € 133.925,00, acrescida de juros à taxa legal de 4% até integral pagamento e a efetuar os devidos descontos para a Segurança Social, foi proferida sentença que julgou a ação totalmente improcedente e, em consequência, absolveu o réu do pedido. Mais foi a autora condenada como litigante de má-fé em 5 UC de multa e 15 UC de indemnização a favor do réu.
A pretensão deduzida pela autora fundava-se na alegada celebração de um contrato de trabalho, com a duração de 12 anos e 1 mês, sem que réu (empregador) lhe tenha pago as quantias devidas como contrapartida pelo trabalho prestado, nem feito os devidos descontos para a Segurança Social.
-
A autora interpôs recurso da sentença, extraindo das suas alegações as seguintes conclusões:
«1.º Existe um contrato de trabalho entre Autora e Réu.
2.º A Autora agiu com boa fé.
3.º O Réu deve ser condenado no pedido.
4.º A Autora deve ser absolvida da condenação como litigante de má –fé;
5.º A Autora deve ser absolvida da condenação no pagamento de multa e indemnização ao réu.
6.º A Autora não praticou o crime de falsas declarações.
7.º As testemunhas CC e DD não praticaram o crime de falsidade de depoimento.
Pelo exposto, e com o douto suprimento de V. Exas. deve ser concedido provimento ao recurso, condenando-se o apelado na totalidade do pedido, com o que se fará Justiça!»
-
O réu contra-alegou, mas, por falta de pagamento da tributação legal, não foram admitidas as contra-alegações e foi ordenado o seu desentranhamento.
-
A 1.ª instância admitiu o recurso como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
-
O processo subiu à Relação e o Ministério Público emitiu parecer, a pugnar pela parcial procedência do recurso no que se refere à condenação da Apelante como litigante de má-fé.
O Apelado veio responder.
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
*
II. Objeto do recurso
É consabido que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, com a ressalva da matéria de conhecimento oficioso (artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, aplicáveis por remissão do artigo 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho).
Em função destas premissas, as questões suscitadas no recurso são as seguintes:
1. Impugnação da decisão da matéria de facto.
2. Existência de contrato de trabalho.
3. Falta de fundamento para a condenação por litigância de má-fé.
*
III. Matéria de Facto
A 1.ª instância deu como provada a seguinte factualidade:
1.- Autora e Réu contraíam, entre si, casamento, no dia .../.../2011.
2.- No dia .../.../2022, foi declarado o divórcio entre ambos, por mútuo consentimento.
3.- O Réu era empresário em nome individual.
4.- O Réu e a Autora, em casa propriedade do primeiro, correspondente também à casa de morada da família de ambos, desde data não concretamente apurada, colaboraram entre si, na exploração de um estabelecimento de apoio a idosos, com ocupação efetiva de idosos em regime de internamento, em número variável, por vezes de cerca 8 a 12 pessoas, assumindo iguais posições de autoridade e chefia na execução das tarefas necessárias ao exercício dessa atividade, inclusive dando ordens, instruções e fiscalizando o trabalho das empregadas contratadas por ambos.
5.- No exercício dessa atividade, a Autora e o Réu, por si, ou através de pessoas que contratavam para o efeito:
a) Tomavam conta dos idosos durante 24 horas por dia, incluindo sábados, domingos e feriados;
b) Pernoitavam no primeiro andar, residindo os idosos no rés-do-chão da casa;
c) nos quartos dos idosos e da Autora e do Réu existiam campainhas, para que, em caso de necessidade, os primeiros os chamassem durante a noite;
d) Davam banho aos idosos; mudavam as fraldas; Faziam a higiene dos idosos e curativos;
e) Vestiam-nos e calçavam-nos.
f) Preparavam-lhes as refeições;
g) Lavavam e passavam a roupa a ferro;
h) Limpavam e arrumavam a casa, quer o rés do chão, quer o primeiro andar;
i) Tratavam dos animais domésticos;
j) Tratavam dos 2 cães que viviam no quintal;
l) Limpavam todos os cómodos da casa;
m) Limpavam todos os terraços exteriores e pátios;
n) Acompanhavam os idosos ao Hospital, Centro de Saúde e Farmácia;
o) Faziam a ronda da noite e davam assistência aos idosos durante a noite;
p) Lavavam a roupa da “...”.
6.- Em data não concretamente apurada, a Autora e o Réu abriram um restaurante.
7.- A Autora passou a descontar para a Segurança Social, a partir de junho de 2019, como trabalhadora independente.
8.- No estabelecimento de apoio aos idosos, trabalharam cerca de 2 a 3 pessoas, para auxílio dos cerca de 8 a 12 idosos, às quais foi pago salário.
9.- A Autora enviava mensalmente à mãe € 150,00 para o Brasil.
10.- A Autora visitava a família no Brasil, uma vez por ano, em julho ou agosto.
11.- Era a Autora e o Réu que prestavam assistência aos idosos durante a noite, se algum tocasse a campainha.
12.- O horário de algumas funcionárias do lar era das 08h às 17 horas.
13.- O Réu nunca proporcionou à Autora formação profissional e a Autora nunca auferiu do Réu vencimento mensal durante cerca de 12 anos e um mês.
14.- A Autora e o Réu beneficiaram da atividade de apoio a idosos e com a mesma sustentaram o respetivo agregado familiar.
15.- Pertencem à Autora e Réu a Pizzaria denominada “...”, sita na localidade de ..., freguesia de ... e concelho de ....
16.- A Autora explora a referida pizzaria.
17.- A Autora e o Réu têm uma licença de táxis sediada em ....
-
E julgou não provados os seguintes factos:
a.- A Autora trabalhou por conta do Réu, sob a sua direção e fiscalização desde 01/12/2009 até 31/12/2022.
b.- Mediante a celebração de contrato de trabalho verbal.
c.- Ultimamente a Autora tinha a categoria profissional de Auxiliar de Serviços Gerais.
d.- A Autora nunca teve folgas.
e.- A Autora estava isenta de horário de trabalho e estava sempre ao serviço 24 sobre 24 horas.
f.- Por serem casados entre si, o Réu entendia que a Autora não deveria receber salário nem estar inscrita na segurança social.
g.- Apenas o Autor possuía e explorava o estabelecimento de apoio a idosos.
h.- Os animais referidos em 5), al. i) eram 20 galinhas, 5 perus, 1 porco e três ovelhas.
i.- A Autora executou as tarefas referidas em 5), em cumprimento das ordens e indicações dadas pelo Réu.
j.- O restaurante referido em 6) foi aberto em nome da Autora e explorado pelo Réu.
k.- Foi o Autor que iniciou os descontos para a Segurança Social a favor da Autora em dezembro de 2019.
l.- A Autora reclamava que tinha direito a um ordenado, como as outras funcionárias, ao que o Réu respondia: “ tens comida no prato e não te falta nada”.
m.- As férias referidas em 10) eram de cerca de 1 mês.
n.- Era o Réu que pagava à Autora as passagens de ida e volta para visitar a família no ....
o.- A última vez que a Autora visitou os pais no Brasil foi em 2018.
p.- Nos anos de 2019 a 2022 a Autora não gozou férias.
q.- A Autora começava a trabalhar pelas 08h, não tinha pausa para o almoço, almoçava conjuntamente com os idosos, prestando-lhes assistência enquanto comia e só terminava as suas funções quando os idosos iam dormir pelas 21h.
r.- A Autora mal saia de casa, a não ser para adquirir alimentos ou ir à farmácia.
s.- Trabalhava e vivia sob o controlo apertado do Réu.
t.- A Autora não tinha dinheiro para comprar roupa, calçado ou ir ao cabeleireiro.
u.- Após o divórcio, o Réu começou a proferir as seguintes expressões: “ Ainda cá estás? Não te vais embora? A casa é minha. Andas a chular e a comer o que é meu”.
v.- O Réu proferia ainda as seguintes expressões:” não fazes nada… não fazes cá falta nenhuma… só estorvas... já é tarde… já devias ter ido embora”.
w.- Ao agir como descrito despediu a Autora.
x.- Com o comportamento do Réu, a Autora sentiu-se “banida”, fragilizada, triste, desgostosa, ansiosa, nervosa, cética e vendo a sua vida profissional e pessoal muito conturbada, visto trabalhar durante mais de doze anos para a mesma entidade patronal, seu Marido, à data dos factos, e quando nada fazia crer, ver-se desempregada, e sem receber remunerações, com dois filhos a seu cargo, ambos estudantes, sendo uma menor.
y.- A Autora vive sozinha com os filhos do Réu, em casa arrendada.
z.- O que causou uma grave depressão nervosa na autora, que se viu obrigada a recorrer à ajuda de medicação, sendo medicada com anti -depressivos e calmantes.
aa.- A Autora sente -se triste, acabrunhada, cética em relação ao futuro, desgostosa com a vida, pois trabalhou parte da sua vida para uma empresa, na qual investiu todas as suas forças e dedicação, vendo todas as suas expectativas defraudadas e sentindo-se “abandonada” pelo Réu, que quando nada fazia crer, a despediu.
bb.- a Autora, por decisão conjunta do casal, cuidou da filha de ambos até perfazer a idade de frequentar o infantário.
cc.- A Autora e o Réu, também por decisão conjunta, adotaram um sobrinho da Autora, de nacionalidade brasileira.
dd.- A Autora dedicava-se a organizar a vida familiar e a cuidar das crianças, complementado o seu dia a dia a cuidar do seu aspeto físico.
ee.- A Autora não tinha necessidade de cozinhar ou até de passar a ferro.
ff.- Era a Autora que administrava as contas bancárias do casal e que utilizava os cartões multibanco conforme melhor entendia, sem necessidade de prestar quaisquer contas.
gg.- A Autora comprou sempre o que bem entendeu, sem dar qualquer satisfação ao Réu.
hh.- O Réu nunca proibiu/ impediu/ maltratou, a Autora de fazer manicure as vezes que entendesse por conveniente, de ir ao cabeleireiro quando assim o entendesse, de comprar roupa, sapatos, malas que gostasse e até colocou uma dentição no valor de € 10.000,00, sem que tal fosse impedida.
ii.– A Autora permanecia no Brasil pelo período que entendia, chegando a ficar meses nesse país.
jj. – O Réu desconhece o preço das viagens, nunca tendo perguntado por contas à Autora.
kk.- Foi a Autora que no dia 17 de novembro de 2019, abriu uma Pizzaria denominada “...”.
ll.- Foi a Autora que em agosto de 2021 deu início à atividade de táxi.
mm.- A Autora despendeu de dias para tirar a carta de condução de transportes públicos.
nn.- A Autora explora duas atividades comerciais.
-
IV. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto
Nas alegações do recurso, a Apelante parece não se conformar com a decisão proferida sobre a matéria de facto respeitante aos pontos 4 a 6, 8, 11, 12 e 14, insurgindo-se com a circunstância do tribunal
a quo
ter valorado os depoimentos das testemunhas EE e FF e ter desprezado os depoimentos das testemunhas DD e CC, bem como as declarações prestadas pela Apelante.
Vejamos.
É consabido que a impugnação da decisão da matéria de facto constitui uma prerrogativa do recorrente.
Todavia, o legislador civil (e o legislador laboral, por subsidiariedade de aplicação do regime), sujeitou-a a determinadas condições.
O artigo 640.º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe
“Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”
, prescreve o seguinte:
1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a. Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b. Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c. A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2- No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a. Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b. Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.
Sobre as exigências/condições impostas por esta norma, refere António Abrantes Geraldes, in
Recursos no Novo Código de Processo Civil
, Almedina, 2013, pág. 129:
«Importa observar ainda que as referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo.»
.
Quanto à consequência prevista para o desrespeito do ónus de impugnação, resulta do citado artigo que é a rejeição do recurso.
Ora, no caso que nos ocupa, nas conclusões do recurso a Apelante não faz qualquer menção sobre a impugnação da decisão de facto.
E em sede de alegações, apesar de indicar os pontos fácticos que coloca em crise e identificar meios probatórios, não indica os registos da gravação dos depoimentos das testemunhas que apoiam a sua apreciação da prova e não indica especificamente qual a decisão alternativa que propõe.
Deste modo, incumpriu nas conclusões o ónus primário contemplado no n.º 1, alínea a), do artigo 640.º - cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-05-2016 (Proc. n.º 324/10.9TTALM.L1.S1), consultável em www.dgsi.pt.
E no corpo das alegações não observou o disposto nos n.ºs 1, alínea c), e 2, alínea a), do artigo 640.º.
O que a Apelante fez foi uma genérica afirmação de discordância com a valoração da prova feita pelo tribunal
a quo
.
Por conseguinte, rejeita-se a impugnação por incumprimento dos ónus previstos no artigo 640.º do Código de Processo Civil.
-
Uma palavra final:
A Apelante, nas conclusões do recurso, refere que não praticou o crime de falsas declarações e que as testemunhas CC e DD não praticaram o crime de falsidade de depoimento.
Este remate surge na sequência da interpretação e valoração da prova que fez em sede de impugnação da decisão de facto.
Sempre se dirá, contudo, que não competiria a este tribunal de competência especializada apreciar a prática (ou não) de qualquer crime.
*
V. Sobre a alegada existência de um contrato de trabalho
A Apelante insiste que celebrou um contrato de trabalho com o Apelado, que teve a duração de 12 anos e 1 mês, e que o tribunal
a quo
errou ao concluir pela inexistência da relação laboral.
A argumentação que apresenta para sustentar a sua posição baseia-se nos factos que alegou na petição inicial.
Sucede que, de harmonia com o disposto no artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil, não lhe bastava alegar, tinha, ainda, que demonstrar a verificação dos factos alegados.
E nesse desiderato não foi bem sucedida.
O tribunal
a quo
quando concluiu que não resultou demonstrada a celebração do contrato de trabalho, fê-lo, como não podia deixar de ser, com arrimo nos factos provados e não nos factos alegados na petição inicial.
E por se concordar inteiramente com a fundamentação de direito apresentada pela 1.ª instância, para evitar tautologias, limitamo-nos a transcrever o que se redigiu na sentença recorrida (sem as notas de rodapé):
«Assim e em primeiro lugar importa aquilatar se dos factos provados se pode afirmar que entre a Autora e o Réu foi celebrado um contrato que deva qualificar-se de trabalho.
Invoca a Autora que foi contratada verbalmente pelo Réu, tendo trabalhado sob as suas ordens, direção e fiscalização de 01/12/2009 a 31/12/2022.
O artigo 11.º do CT, define o contrato de trabalho como aquele pelo qual uma pessoa singular se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua atividade a outra ou outras pessoas, no âmbito de organização e sob a autoridade destas.
No artigo 1152.º do CC também encontramos a definição de contrato de trabalho como sendo aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua atividade intelectual ou manual a outra pessoa, sob a autoridade e direção desta.
Num contrato de trabalho a prestação da atividade laboral, traduz-se numa prestação de facto positiva, cuja tarefas são definidas e determinadas previamente pelo empregador, sendo pago ao trabalhador uma retribuição.
O elemento essencial do contrato de trabalho é a subordinação jurídica, por ser típico e específico do contrato de trabalho.
A subordinação jurídica traduz-se na posição de domínio do empregador sobre o trabalhador sobre quem tem poderes de direção e de disciplina, havendo dependência do trabalhador e inserção na estrutura organizacional do empregador.
O elemento da subordinação jurídica revela um relacionamento desigual entre o empregador e o trabalhador estando este vinculado ao dever de aceitar as ordens e instruções daquele e sujeito ao poder disciplinar deste.
A subordinação é jurídica e não económica, podendo o trabalhador não depender economicamente do salário, sendo apenas decisivo que esteja sujeito aos poderes laborais do empregador. Pode também o empregador não ter necessidade de exercer o seu poder de direção e instrução sobre o trabalhador, bastando essa possibilidade, bem como esta existirá de forma mais ou menos intensa consoante as aptidões e especialização dos trabalhadores em detrimento dos trabalhadores indiferenciados, bem como a subordinação, sendo jurídica e não técnica, permite o respeito pela autonomia técnica em função do tipo de atividade exercida.
No entanto, não sendo fácil determinar a existência de subordinação jurídica, há determinados indícios apontados pela doutrina e jurisprudência que nos auxiliam nessa tarefa.
Assim, são indícios de subordinação jurídica mais frequentes, a titularidade dos meios de produção ou dos instrumentos de trabalho pelo credor, o desenvolvimento da atividade em local daquele ou por ele indicado, o cumprimento de um horário de trabalho, o cálculo da remuneração em função do tempo, a inexistência de assunção do risco da não produção do resultado pelo trabalhador, o facto de o credor ter outros trabalhadores ao seu serviço, a dependência do trabalhador dos rendimentos do trabalho ou trabalhar em exclusivo para o credor, o regime fiscal e regime de segurança social a que o trabalhador está vinculado, a sujeição do trabalhador a ordens diretas ou a simples instruções genéricas e o controlo direto da sua prestação pelo credor, a inserção do trabalhador na organização predisposta pelo credor e a sua sujeição às regras dessa organização.
O recurso aos indícios de subordinação jurídica permitirá qualificar um contrato como de trabalho, não se exigindo a presença de todos mas dos determinantes para essa conclusão, em função do tipo de trabalho exercido e do grau de autonomia técnica e de especialização do mesmo, não deixando de ter relevância a vontade real das partes na conclusão do negócio (artigo 236.º do CC). No entanto, esta vontade não permite que se qualifique um contrato como de serviço se o conteúdo do mesmo se traduzir num de trabalho, com verificação de indícios de subordinação do trabalhador.
O artigo 12.º, n.º 1 do CT estabelece uma presunção da existência de contrato de trabalho, nos seguintes termos: “Presume-se a existência de contrato de trabalho quando, na relação entre a pessoa que presta uma atividade e outra ou outras que dela beneficiam, se verifiquem algumas das seguintes características:
a) A atividade seja realizada em local pertencente ao seu beneficiário ou por ele determinado;
b) Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertençam ao beneficiário da atividade;
c) O prestador de atividade observe horas de início e de termo da prestação, determinadas pelo beneficiário da mesma;
d) Seja paga, com determinada periodicidade, uma quantia certa ao prestador de atividade, como contrapartida da mesma;
e) O prestador de atividade desempenhe funções de direção ou chefia na estrutura orgânica da empresa..
Verificando-se duas ou mais das caraterísticas indicadas, ocorre a inversão do ónus da prova, nos termos do artigo 350.º do CC, presumindo-se a existência de um contrato de trabalho, podendo o empregador ilidir a presunção, nos termos dos artigos 344.º, n.º 1 e 350.º, n.º 2, ambos do CC.
Descendo ao caso dos autos apurou-se que a Autora e o Réu contraíam, entre si, casamento, no dia .../.../2011. Divorciaram-se, por mútuo consentimento, em .../.../2022.
Na versão da Autora, a mesma passou a trabalhar para o Réu desde momento anterior ao do seu casamento, ou seja, desde 01/12/2009 e até momento posterior ao do divórcio, designadamente até 31/12/2022.
Nenhum facto se apurou sobre a existência de um acordo verbal estabelecido entre a Autora e o Réu para que a primeira passasse a prestar ao segundo trabalho e nem sequer se apurou desde que data passaram os mesmos a colaborar entre si na exploração do estabelecimento de lar de idosos que funcionou no imóvel do Réu que igualmente constituiu a casa de morada de família do casal. A prova produzida, não nos permitiu concluir que a Autora trabalhou para o Réu, sujeita às suas ordens, direção e fiscalização desde 01/12/2009 e até 31/12/2022.
Outrossim, apurou-se que desde data indeterminada, tanto a Autora como o Réu colaboraram entre si na exploração, em comum, de um lar de apoio a idosos, o qual funcionou em imóvel do primeiro, no qual o casal também tinha a casa de morada da respetiva família.
O casal geria a sua vida familiar e de trabalho, no mesmo local, colaborando entre si no exercício em conjunto das atividades necessárias à prossecução da atividade de apoio a idosos em regime de internamento que funcionava no imóvel propriedade do Réu. Era nesse imóvel que o casal tinha o seu centro económico e de vida familiar em comum.
Apenas o Réu estava formalmente declarado como empresário em nome individual, mas, da prova produzida resultou que a Autora e o Réu, por si ou através de terceiros que contratavam para o efeito, exerciam as tarefas necessárias à prossecução dessa atividade e que constam indicadas em 5) dos factos provados. Não se apurou que o Réu dava ordens à Autora, que a mesma estava sujeita ao seu poder disciplinar, observava horas de entrada e saída fixadas pelo Réu, e que os instrumentos e equipamentos de trabalho eram tão só do Réu. À Autora, como a mesma invocou, não foi paga qualquer retribuição pelo Réu.
Os factos provados demonstram a existência de uma colaboração mútua entre Autora e Réu, desempenhando ambos as tarefas necessárias ao exercício da atividade de apoio a idosos em estrutura residencial e em regime de internamento. E apesar do número expressivo de idosos internados no Lar (por vezes entre 8 a 12), o estabelecimento onde a Autora e o Réu colaboravam em conjunto, traduzia-se numa empresa de gestão familiar, assumida por aqueles, em que ambos tanto davam as ordens necessárias e tomavam as decisões gestionárias, como executavam quaisquer tarefas necessárias as quais correspondiam às que também eram executadas pelas empregadas que contratavam, como a de tomar conta dos idosos e a preparação das refeições.
Não se olvida que a atividade foi realizada em imóvel pertença do Réu e que a Autora, em conjunto com o mesmo, dirigia a atividade empresarial, o que parece preencher as características indicadas no artigo 12.º, n.º 1, als. a) e e) do CT para permitir a presunção da existência de um contrato de trabalho. Porém, o imóvel era também a casa de morada da família, era o local onde a Autora e o Réu tinham o seu centro de vida familiar e conjugal, não havendo uma distinção entre um imóvel afeto ao estabelecimento de lar e um imóvel afeto à casa de morada da família, existindo até no quarto do casal e dos utentes campainhas para que os segundos os chamassem, pelo que não se pode entender que este elemento possa ser relevante para se presumir a existência de um contrato de trabalho. E as tarefas que a Autora desempenhava eram também as que o Réu executava, tendo ambos idênticas posições, assumindo-se ambos, num patamar de igualdade e não de supremacia de um em relação ao outro. E tendo a prova traduzido este resultado, não pode presumir-se que vigorou entre as partes um contrato de trabalho. A prova produzida traduziu que inexistiu subordinação jurídica da Autora ao Réu, tendo ambos atuado em conjugação de esforços na execução das tarefas necessárias à prestação de apoio a idosos em regime de internamento, não tendo a Autora estado sujeita ao poder de direção, orientação e fiscalização do Réu. Note-se, inclusive, que nem nos foi possível apurar factos que nos permitissem distinguir o que constituiu a vida familiar da Autora e do Réu, com o cumprimento dos inerentes deveres de cooperação e assistência previstos nos artigos 1672.º, 1674.º e 1675.º, do CC, do que foi a colaboração mútua entre ambos na execução das tarefas necessárias à exploração em conjunto da atividade de lar.
Porquanto entende-se que não é de fazer funcionar a presunção indicada no artigo 12.º do CT, por os factos apurados demonstrarem a inexistência de subordinação jurídica entre as partes.
E mesmo que outro fosse o entendimento, sempre se mostraria ilidida a presunção visto não ter sido dado como provado que o Réu tivesse sobre a Autora poderes de direção e disciplina, nem existia uma posição de desigualdade entre as partes, mormente uma posição de domínio ou superioridade do Réu para com a Autora.
Porquanto, e em face do exposto, conclui-se que entre o Réu e a Autora não vigorou um contrato de trabalho.»
Em síntese, não tendo a Apelante logrado provar a alegada existência de um contrato de trabalho, não poderia, obviamente o réu, ora Apelado, ser condenado no pedido.
Em suma, improcede, nesta parte, o recurso.
*
VI. Sobre a condenação por litigância de má-fé
A 1.ª instância condenou a Apelante por litigância de má-fé em 5 UC de multa e 15 UC de indemnização a favor do Apelado.
A Apelante não se conforma com esta decisão e pretende que o tribunal
ad quem
a revogue.
Analisemos a questão.
A decisão da 1.ª instância baseou-se na seguinte fundamentação (retiradas as notas de rodapé):
«Prescreve o artigo 542.º, n.º 1 do CPC ex vi artigo 1.º, n.º 2, al. a) do CPT que “Tendo litigado de má-fé, a parte será condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir”. E, resulta do n.º 2 da citada norma que “Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave: a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão”.
Tal norma visa sancionar tanto a lide dolosa como a lide temerária. Assim, quer o dolo, quer a negligência grave, caracterizam a litigância de má-fé.
Da leitura do preâmbulo do DL 320-A/95, de 12/12, resulta que tal alteração ao regime anterior visa uma maior responsabilização das partes.
“As partes têm o dever de pautar a sua atuação processual por regras de conduta conformes com a boa-fé (artigo 266-A). A lide diz-se temerária, quando essas regras são violadas com culpa grave ou erro grosseiro, e dolosa, quando a violação é intencional ou consciente. A litigância temerária é mais do que a litigância imprudente, que se verifica quando a parte excede os limites da prudência normal, atuando culposamente, mas apenas com culpa leve (…).
É corrente distinguir má-fé material (ou substancial) e má-fé instrumental. A primeira relaciona-se com o mérito da causa: a parte, não tendo razão, atua no sentido de conseguir uma decisão injusta ou realizar um objetivo que se afasta da função processual. A segunda abstrai da razão que a parte possa ter quanto ao mérito da causa, qualificando o comportamento processualmente assumido em si mesmo. Assim, só a parte vencida pode incorrer em má-fé substancial, mas ambas as partes podem atuar com má-fé instrumental, podendo portanto o vencedor da ação ser condenado como litigante de má fé”- cfr. Lebre de Feitas, CPC Anotado, Volume 2.º, pág. 194 e 196.
As partes têm o dever de litigar de boa-fé como decorrência do princípio do dever de boa-fé processual plasmado no artigo 8.º do CPC.
A má-fé subjetiva é aferida pelo conhecimento ou não ignorância da parte e é objetiva se resulta da violação dos padrões de comportamento exigíveis.
“Qualquer das referidas modalidades da má-fé processual pode ser substancial ou instrumental: - é substancial se a parte infringir o dever de não formular pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar (…), alterar a verdade dos factos ou omitir factos relevantes para a decisão da causa (…), isto é, violar o dever de verdade; - é instrumental se a parte tiver omitido, com gravidade, o dever de cooperação (…), ou tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão (…)” – cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, pág. 63.
Descendo ao caso que nos ocupa a versão dos factos apresentada nos autos pela Autora, foi inverídica pois a mesma não estava sujeita às ordens, direção e fiscalização do Réu mas exercia, em conjunto com aquele, e em igualdade de posições, a exploração do lar de idosos. E os factos inverídicos invocados e a omissão de outros relevantes para a compreensão cabal dos factos, diz respeito a factos que são do conhecimento direto da Autora. Ao alegar factos que sabia serem inverídicos e omitindo outros relevantes para a correta compreensão dos factos, a Autora assumiu um comportamento doloso, visto conhecer bem a verdade dos factos, vindo aos autos voluntariamente relatá-los sem correspondência com a verdade e sem relatar todos os factos relevantes para a descoberta da verdade e justa composição do litígio.
Porquanto, a Autora alterou, conscientemente, a verdade e a realidade dos factos por si conhecida, como resulta patente dos factos dados como provados e não provados e respetiva motivação.
Em suma, o comportamento da Autora ao vir alegar factos que sabia não serem verdadeiros, adotou um comportamento doloso, com violação intencional e como tal, necessariamente consciente que a sua atuação processual nos autos não era e é conforme ao dever de boa-fé.
Atuou com má-fé material ou substancial na medida em que visou com o seu comportamento a obtenção de uma sentença desconforme com a realidade dos factos ocorridos e por si conhecidos, e como tal injusta, com clara violação daquilo que é o comportamento exigível para com o tribunal e os demais sujeitos processuais.
Porquanto a Autora, com a posição que manifestou neste processo, veio articular factos inverídicos sem correspondência com a verdade dos factos que eram do seu conhecimento direto e omitiu outros que conduziam à improcedência imediata da sua pretensão.
De tudo o exposto resulta que é manifesto que a Autora veio deduzir pretensão cuja falta de fundamento não podia ignorar (artigo 542.º, n.º 2, al. a) do CPC) e alterou a verdade dos factos, violando o dever de verdade (artigo 542.º, n.º 2, al. b) do CPC), entorpecendo a ação da justiça (artigo 542.º, n.º 2, al. d) do CPC).
A censurabilidade do seu comportamento processual nestes autos, tendo sido doloso, merece intensa reprovação, face ao já descrito.
Tendo litigado de má-fé a parte é condenada em multa e indemnização à parte contrária se esta a pedir (artigo 542.º, n.º 1 do CPC). (…)»
Desde já adiantamos que esta decisão, e a sua fundamentação, não merecem qualquer reparo.
Efetivamente a materialidade apurada permitiu concluir que a Apelante veio alegar factos inverídicos e deduzir pretensão absolutamente infundada, como não poderia deixar de ignorar, uma vez que estavam em causa factos pessoais.
Ademais, omitiu factos relevantes para uma decisão esclarecida do pleito.
Em suma, violou deliberadamente o dever de verdade.
Como tal, bem andou a 1.ª instância ao proferir a decisão condenatória por litigância de má-fé.
Soçobra, assim, a última das questões colocada no recurso, sendo certo que o valor da multa e indemnização fixados pelo tribunal
a quo
não foram postos em causa.
-
Concluindo, o recurso improcede na totalidade.
As custas do recurso serão suportadas pela Apelante - cf. artigo 527.º do Código de Processo Civil – sem prejuízo do benefício de apoio judiciário de que beneficia.
*
VII. Decisão
Nestes termos, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Custas do recurso a suportar pela Apelante, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário.
Notifique.
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Évora, 27 de fevereiro de 2025
Paula do Paço
João Luís Nunes
Mário Branco Coelho
_____________________________________
1. Relatora: Paula do Paço; 1.º Adjunto: João Luís Nunes; 2.º Adjunto: Mário Branco Coelho
↩︎
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TRE
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https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/28da9a1b2a64abf580258c490051d31c?OpenDocument
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1,756,944,000,000
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NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO ARGUIDO
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900/24.2JAAVR-B.P1
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900/24.2JAAVR-B.P1
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MARIA DOLORES DA SILVA E SOUSA
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I – De acordo com o n.º 1, do artigo 171º, do Código de Processo Penal o exame que incide sobre as pessoas
inspeciona os vestígios que possa ter deixado o crime e todos os indícios relativos às pessoas que o cometeram ou sobre as quais foi cometido
.
II – Sendo o corpo do arguido em si mesmo um meio de prova, sobre aquele impede a obrigação de se sujeitar às diligências de prova previstas na lei, cfr. artigo 61º, n.º 6 al. d) do CPP.
III – Quando as diligências de prova a realizar possam comprimir direitos fundamentais, liberdades ou garantias do arguido há que judicialmente proceder a uma avaliação dos direitos em confronto, por um lado, o valor da diligência para a descoberta da verdade material e satisfação do interesse estadual na administração da Justiça, o valor dos bens jurídicos violados e a gravidade do crime em investigação e, por outro lado, no caso concreto, o direito à integridade pessoal e à reserva da intimidade do arguido.
IV – Na referida avaliação e ponderação impõe-se ter em conta os princípios da adequação da diligência ao objetivo visado; o princípio da necessidade do meio eleito para obter os fins visados e que aqueles não possam alcançar-se por meios menos onerosos; e o princípio da proporcionalidade ou justa medida, do qual resulta que não pode haver desproporcionalidade manifesta entre o fim que se pretende alcançar e os direitos do arguido que se restringem; sendo que deve concluir-se pela superioridade do valor dos bens protegidos e do interesse da diligência para a descoberta da verdade material em face da restrição concretamente imposta aos direitos do arguido.
(Sumário da responsabilidade da relatora)
|
[
"CRIME",
"EXAME PERICIAL",
"OBJECTO",
"PESSOA SINGULAR",
"MEIO DE PROVA",
"PRINCÍPIO DA ADEQUAÇÃO",
"PRINCÍPIO DA NECESSIDADE",
"PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE",
"BEM JURÍDICO PROTEGIDO",
"HIERARQUIA DE OBRIGAÇÕES",
"VERDADE MATERIAL",
"VALIDADE"
] |
Rec. Penal n.º 900/24.2JAAVR-B.P1
Comarca do Porto
Acordam em Conferência, na 2ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto.
I. Relatório.
Nos autos com o
NUIPC 900/24.2JAAVR
, que correm termos no Juízo de Instrução Criminal de ... do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, foi proferido despacho datado de 23.12.2024 que decidiu:
«...ao abrigo do disposto nos arts. 172º, 154º/3 e 269º/1,a) e b), do Código de Processo Penal,
decide-se determinar que seja efectuada recolha de sangue ao arguido AA
, com agulha e seringa, por punção, em qualquer um dos braços, na zona do sangradouro
, a que deverá ser compelido caso mantenha a sua recusa
.
».
*
Inconformado com o recurso o arguido interpôs recurso onde alinha as seguintes conclusões:
I.- O despacho de 23.12.2004 do Juiz 2 do Juízo de Instrução Criminal de Aveiro determinou que seja efectuada recolha de sangue ao arguido AA, com agulha e seringa, por punção, em qualquer um dos braços, na zona do sangradouro, a que deverá ser compelido caso mantenha a sua recusa;
II.- Todo o contexto prévio à prolação desse despacho padece de vícios quanto à oportunidade do seu pedido.
III.- A prolação desse despacho, teve por fundamento a promoção do Ministério Público, no sentido de que se “determine a realização coerciva da recolha de amostras biológicas ao arguido”, no seguimento da recusa de consentimento dada em 09.12.2024 pelo arguido, constante de fls. 561.
IV.- A fls. 561, em 09.12.2024, o arguido informou o titular do inquérito que não dava consentimento à diligência promovida pelo órgão de polícia criminal (PJ) que foi notificada em 06.12.2024, para ser efectuada em 20.12.2024 de “recolha de amostras biológicas ao arguido no INMLCF em ...”;
V.- A notificação feita pela PJ dessa diligência, não continha nenhum fundamento legal, nem tão pouco a que amostras biológicas se referia, que no caso dos factos constantes nos autos, não seria necessariamente sangue, podendo ser saliva ou sémen e ao seu concreto modo de colheita.
VI.- Assim, o arguido informou em 09.12.2024 o Ministério Público, entre outras questões, de que não consentia a realização dessa diligência, informando também de forma subsequente a PJ e o Estabelecimento Prisional ... de que não consentia na realização dessa diligência.
VII.- Não obstante, e sem o conhecimento do titular do inquérito, que à data já tinha promovido a realização coerciva do exame junto do Juízo de Instrução Criminal, a PJ determinou que o mesmo se devia realizar às 10:30 do dia 20.12.2024, sendo que o titular do inquérito só depois das 14:30 do dia 20.12.2024 é que tomou conhecimento de que o arguido tinha sido levado do Estabelecimento Prisional ... para a delegação do INMLCF de ... para realização da diligência.
VIII.- Ou seja, aquando da promoção feita pelo Ministério Público junto do Juiz de Instrução Criminal que determinou a prolação do despacho de 23.12.2024 e que teve por base a recusa do arguido, o Órgão de Polícia Criminal continuou a promover a diligência que tinha determinada para 20.12.2024, determinado a saída do arguido do Estabelecimento Prisional ... e o seu transporte para a delegação do INMLCF de ....
IX.- Nunca foi fornecida ao arguido qualquer informação sobre a intervenção corporal pretendida pela Polícia Judiciária, que determinou o transporte na manhã de 20.12.2024 do Arguido do Estabelecimento Prisional ... para a delegação do INMLCF de ... que lhe permitisse, previamente à realização a mesma, de dar o seu consentimento esclarecido quanto à mesma, conforme “exigem os artigos 25.º e 32.º/8 da Constituição da República Portuguesa (“CRP”) e artigos 125.º e 126.º do CPP”, doutamente referidos pela Exma. Sra. Juiz de Instrução no seu despacho de 23.12.2024.
X.- O despacho de 23.12.2024 do Juízo de Instrução Criminal de Aveiro- Juiz 2 que “determinou que seja efectuada recolha de sangue ao arguido AA, com agulha e seringa, por punção, em qualquer um dos braços, na zona do sangradouro, a que deverá ser compelido caso mantenha a sua recusa”, no seguimento da promoção do Ministério Público não contém toda a informação necessária a que o arguido possa previamente dar o seu consentimento livre e esclarecido à realização da diligência.
XI.- O despacho de 23.12.2024, não contém, desde logo, a finalidade especifica da peritagem ordenada, os limites por ela propostos, o local onde a mesma será realizada e de quem a efectuará.
XII.- Pelo que o despacho de 23.12.2024 do Juízo de Instrução Criminal de Aveiro- Juiz 2 que “determinou que seja efectuada recolha de sangue ao arguido AA, com agulha e seringa, por punção, em qualquer um dos braços, na zona do sangradouro, a que deverá ser compelido caso mantenha a sua recusa”, viola o direito à integridade física e moral do arguido constante do n.º1 do artigo 25.º da CRP, bem como o n.º2 do artigo 126.º do CPP, padecendo assim de irregularidade nos termos do n.º1 do artigo 123.º do CPP, determinando a invalidade de todos os actos posteriores que por ele sejam afectados.
XIII.- O despacho de 23.12.2024 do Juízo de Instrução Criminal de Aveiro- Juiz 2 que “determinou que seja efectuada recolha de sangue ao arguido AA, com agulha e seringa, por punção, em qualquer um dos braços, na zona do sangradouro, a que deverá ser compelido caso mantenha a sua recusa” emitido ao abrigo do n.º3 do artigo 154.ºdo CPP, não cumpre o disposto no n.º1 do artigo 154.º do CPP, nem os n.ºs 2.º, 6.º e 7.º do CPP, que lhe são exigidos por se tratar de perícia quanto a características pessoais, físicas ou psíquicas;
XIV.- Em concreto o despacho de 23.12.2024 do Juízo de Instrução Criminal de Aveiro- Juiz 2 não contém, quanto ao n.º1 do artigo 154.º do CPP “a indicação do objecto da perícia e os quesitos a que os peritos devem responder” e “a indicação da instituição, laboratório ou nome dos peritos que realizarão a perícia”.
XV.- O despacho de 23.12.2024 do Juízo de Instrução Criminal de Aveiro- Juiz 2 não contém, quanto ao artigo 156.,º do CPP, “a definição das pessoas que podem assistir à diligência” (n.º2 do artigo 156.º do CPP), “quem efetuará a mesma, se é um médico ou outra pessoa legalmente autorizada” (n.º 6 do artigo 156.º do CPP), “a autorização de que as amostras recolhidas só podem ser utilizadas no processo em curso e que devem ser destruídas logo que não sejam necessárias” (n.º7 do artigo 156.º do CPP);
XVI.- Assim, o despacho de 23.12.2024 do Juízo de Instrução Criminal de Aveiro- Juiz 2 que “determinou que seja efectuada recolha de sangue ao arguido AA, com agulha e seringa, por punção, em qualquer um dos braços, na zona do sangradouro, a que deverá ser compelido caso mantenha a sua recusa” emitido ao abrigo do n.º3 do artigo 154.º do CPP, violando o n.º1 do artigo 154.º do CPP e os n.ºs 2º, 6.º e 7.º do artigo 156.º do CPP
é irregular nos termos do n.º1 do artigo 123.º do CPP, irregularidade essa que por afectar decisivamente o direito à integridade física e moral do arguido constante do n.º1 do artigo 25.º da CRP, determina nos termos do n.º1 do artigo 123.º do CPP a invalidade do despacho de 23.12.2024 e sua determinação quanto à realização da perícia determinada, bem como a inerente invalidade de todos os actos posteriores que sejam por ele afectados.
Assim, o Douto Despacho de 23.12.2024 que determinou que seja efectuada recolha de sangue ao arguido AA, com agulha e seringa, por punção, em qualquer um dos braços, na zona do sangradouro, a que deverá ser compelido caso mantenha a sua recusa recorrido deverá ser revogado.»
*
O recurso foi liminarmente admitido.
O MP junto da 1ª instância apresentou resposta ao recurso, sem formular conclusões, mas de onde se respiga o seguinte:
«(...)
Não assiste razão ao recorrente.
O processo penal prossegue três finalidades essenciais: a realização da justiça e a descoberta da verdade material; a proteção perante o Estado dos direitos fundamentais das pessoas; e o restabelecimento da paz jurídica posta em causa com a prática do crime – cfr. Maria João Antunes, Direito Processual Penal, 2017, p. 14-15.
De acordo com o artigo 124º do Código de Processo Penal, constituem objeto da prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis.
Acrescenta o artigo125º, do citado diploma legal, que: «São admissíveis as provas que não forem proibidas por lei», encontrando-se consagrado neste normativo legal os princípios da legalidade e liberdade da prova.
No nosso processo penal faz-se a distinção entre meios de obtenção de prova e meios de prova, sendo através dos meios de obtenção de prova que são obtidos os meios de prova a partir dos quais se forma a convicção das autoridades judiciárias.
Entre os meios de obtenção de prova previstos no nosso sistema processual penal contam-se, entre outros, os exames, dispondo o artigo171º, nº1, do Código de Processo Penal que: “Por meio de exames das pessoas, dos lugares e das coisas, inspeccionam-se os vestígios que possa ter deixado o crime e todos os indícios relativos ao modo como e ao lugar onde foi praticado, às pessoas que o cometeram ou sobre as quais foi cometido”.
Por sua vez, o artigo 172º, nº1 do citado diploma legal, sob a epígrafe “Sujeição a Exame” preceitua que: “Se alguém pretender eximir-se ou obstar a qualquer exame devido ou a facultar coisa que deva ser examinada, pode ser compelido por decisão da autoridade judiciária competente.”
Também a alínea d), do n.º 6, do artigo 61.º, do mesmo diploma, consagra que “recaem especialmente sobre o arguido os deveres de (…) sujeitar-se a diligências de prova (…) especificadas na lei ordenadas e efectuadas por entidade competente” e, por fim, o n.º 1 do artigo 6.º da Lei n.º 45/2004, de 19 de agosto, estabelece que “ninguém pode eximir-se a ser submetido a qualquer exame médico-legal quando este se mostrar necessário ao inquérito ou à instrução de qualquer processo e desde que ordenado pela autoridade judiciária competente, nos termos da lei”.
Acrescenta o nº 2, do artigo 172º, do citado diploma legal que é correspondentemente aplicável o disposto nos nº3 do artigo 154º e nºs 6 e 7 do artigo 156º.
Ou seja, quando se tratar de perícia sobre as características físicas ou psíquicas de pessoa que não haja prestado o consentimento, compete ao Juiz ponderar a necessidade da sua realização, tendo em conta o direito à integridade pessoal e à reserva da intimidade do visado. – cfr. artigo 154º, nº3, do Código de Processo Penal.
Assim, estando em causa a colheita coativa de vestígios biológicos de um arguido, por não ter dado o consentimento para a sua realização, deve a mesma ser determinada por um Juiz, não podendo ser valorada se for obtida de outro modo, após ponderação da necessidade dessa colheita, tendo em conta o direito à integridade pessoal e à reserva da intimidade do visado –cfr. artigos 172º, nº1 e 269º, nº1,al. b), ambos do Código de Processo Penal, e artigo 8º, nº1, da Lei 5/2008, de 12/2, colheita essa que de acordo com o nº6 do citado artigo 156º deve ser realizada por médico ou outra pessoa legalmente autorizada, não podendo criar perigo para a saúde do visado.
No caso em apreço, mostra-se o arguido indiciado da prática de, pelo menos, três crimes de violação agravada, p. e p. pelos artigos 164.º, n.º 2, als. a), b) e n.º 3 e 177.º, n.ºs 1, als. a), b), e 6, todos do Código Penal, e de um crime de violação agravado, p. e p. pelos artigos 164.º, n.º 2, als. a), b) e n.º 3 e 177.º, n.ºs 1, als. a) e b), 5 e 6, todos do Código Penal, na pessoa da sua filha menor, BB.
Do exame pericial de natureza sexual realizado à vítima BB, resulta que lhe foi identificada infecção por clamídia, ou seja, foi identificada Chlamydia trachomatis no raspado endo cervical e endo uretral, em 27-08-24, sendo que a infecção por clamídia tem valor diagnóstico de contacto sexual.
Nessa sequência, foi o arguido notificado pessoalmente pela Polícia Judiciária para a realização de colheita de amostras biológicas a efectuar em ..., no INML, no dia 20-12-2024, pelas 10h30, tendo aquele, através do seu Ilustre Defensor, recusado dar o seu consentimento – cfr. fls. 561.
Perante a recusa do arguido em realizar o referido exame, a Mmª Juiz a quo, a solicitação do Ministério Público, proferiu o despacho ora colocado em crise, de cujo teor consta, para além do mais, o seguinte: “Parece-nos inequívoca a necessidade de realizar o exame/recolha de amostra de sangue pretendido como meio de obtenção de prova fundamental para alcançar a descoberta da verdade material, por forma a aferir da consistência dos indícios já colhidos nos autos quanto à prática criminosa imputada ao arguido.
Com efeito, mostra-se fulcral para a investigação e para a prova que se faça a recolha pretendida de sangue ao arguido para aferir se o mesmo é, ou foi, portador de infecção por clamídia (infecção detetada na sua filha), não se divisando por que outra forma menos invasiva da reserva da vida privada do visado se possa obter idêntico resultado probatório.
Como assim e nestes termos, ao abrigo do disposto nos artigos 172º, 154º/3 e 269º/1, a) e b), do Código de Processo Penal, decide-se determinar que seja efectuada recolha de sangue ao arguido AA, com agulha e seringa por punção, em qualquer um dos braços, na zona do sangradouro, a que deverá ser compelido caso mantenha a sua recusa.”
Desde já se adianta que o despacho recorrido não padece de qualquer ilegalidade, nulidade e/ou irregularidade, nem viola quaisquer direitos fundamentais do arguido.
De facto, sendo a referida colheita legalmente admissível, mas tendo-se à mesma oposto o arguido, porquanto não deu o seu consentimento, foi aquela determinada por despacho judicial, no âmbito do qual, no equilíbrio entre a protecção dos direitos à integridade pessoal e à reserva da intimidade do arguido, por um lado, e a descoberta da verdade material dos factos, por outro lado, concluiu a Mmª Juiz de Instrução pela necessidade de realização do exame. – cfr. artigo 154º, nº3, do Código de Processo Penal
E não se diga, conforme alegado, que não tinha o arguido toda a informação necessária para, previamente, dar o seu consentimento livre e esclarecido à realização do exame ordenado, pois do despacho recorrido resulta, de forma inequívoca, qual o exame a que o arguido se deverá sujeitar - recolha de vestígios biológicos através da colheita de sangue- e o que se pretende alcançar com a sua realização.
Em nosso entender, não consentiu o arguido que o exame fosse efectuado por não ignorar que o resultado que do mesmo possa advir, certamente, irá reforçar o depoimento prestado pela sua filha e, consequentemente, infirmará as declarações por ele prestadas nos autos (que negou ter praticado os factos), tentando, por isso, postergar a sua realização, embora não desconheça que sobre si impende o dever de se sujeitar a diligências de prova especificadas na lei ordenadas e efectuadas por entidade competente – cfr. artigo 61º, nº6, al. d), do Código de Processo Penal.
Apesar de devidamente esclarecido sobre o exame a realizar, o arguido para se eximir e obviar à recolha de vestígios biológicos – colheita de sangue-, veio invocar que padece o despacho recorrido de irregularidades, sem que tenham as mesmas qualquer suporte legal.
De facto, contrariamente ao alegado, o preceituado no artigo 154º, nº3, do Código de Processo Penal, aplicável por força do disposto no artigo 172º, nº2, do citado diploma legal, não exige que se concretizem os factos que com o exame se visam provar, mas tão só que, perante o conflito de interesses – e tendo em conta a natureza e gravidade do crime ou crimes em investigação – se pondere da necessidade da sua realização, enquanto diligência útil, relevante, necessária para a descoberta da verdade, em função das demais provas recolhidas ou a recolher, e se, em face dessa necessidade, se justifica a limitação do direito do arguido à sua auto-determinação. Esta ponderação foi feita, de forma fundamentada, no despacho recorrido.
Por outro lado, não cabe no artigo 154º, n.º 3, Código de Processo Penal, a exigência da indicação do dia, hora, local e entidade que procede ao exame, porquanto tais exigências decorrem do disposto no nº 1 e 2, do artigo 154º, que não têm aplicação na realização coactiva dos exames a que alude o artigo 172º, nº1, do Código de Processo Penal, tal como resulta do nº2, do citado normativo legal, que remete expressamente para nº3, do artigo 154º, e não para o seu nº1 e 2 (onde tais exigências são feitas para as perícias). Mas ainda que tais indicações não devessem constar do despacho recorrido, sabia (e sabe) o arguido do local e da entidade onde o exame se irá realizar - no INMLCF de ...-,tanto mais que aquele já anteriormente aí se havia deslocado para proceder à sua realização, que não se concretizou por não ter dado o seu consentimento.
Ademais, o exame previsto no artigo 172º, n.º 2, do Código de Processo Penal, enquanto meio de obtenção (forçada) de prova não se confunde com a perícia prevista do artigo 154º, do Código de Processo Penal, não se aplicando, por isso, à recolha coativa de vestígios biológicos - colheita de sangue - os requisitos exigidos para a realização da perícia, designadamente aqueles que pretendia o recorrente que constassem do despacho recorrido, a saber: indicação do objecto da perícia e os quesitos a que os peritos devem responder, bem como a indicação da instituição, laboratório ou nome dos peritos que realizarão a perícia – cfr. nº1, do artigo 154º.
Acresce que, o Ministério Público, enquanto titular do inquérito, cabe-lhe, por direito próprio, uma vez autorizado o exame, proceder às diligências necessárias à sua realização e fazer respeitar os procedimentos legalmente previstos para o efeito, designadamente o estabelecido no artigo 156º, n.º 6 e 7, aplicável ex vi art.º 172º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal, sendo que, no caso concreto, dúvidas não subsistem de que o exame será realizado por médico ou pessoal legalmente autorizada para o efeito, na medida em que o mesmo terá lugar no INMLCF de ....
No concerne à utilização dos exames efectuados e as amostras recolhidas - só podem ser utilizados no processo em curso-, bem como o destino que aos mesmos será dado – devem ser destruídos mediante despacho do juiz, logo que não sejam necessários -, por se tratar de uma imposição legal que o Tribunal e o Ministério Público têm de obedecer – cfr. artigo 156º, nº7, do Código de Processo Penal-, só será de ponderar após a realização do exame e não antes, não se justificando, por isso, que tal constasse do despacho recorrido.
Assim sendo, tendo o despacho recorrido obedecido às disposições legais aplicáveis à realização do exame ordenado, deverão ser julgadas não verificadas as invocadas irregularidades.
Sustenta ainda o recorrente que o despacho recorrido viola o direito à integridade física e moral, previsto no artigo 25º, da CRP, e por isso, o exame de recolha de vestígios biológicos –colheita de sangue -, é um meio de obtenção de prova proibido, nos termos do disposto no artigo 126º, nº2, do Código de Processo Penal, que invalidade a prova através do mesmo obtida.
Também, neste particular, não assiste razão ao recorrente.
Ainda que se admita que a colheita coativa de vestígios biológicos para posterior determinação se padece o arguido de infecção por clamídia, possa implicar uma afectação, limitação ou restrição de direitos fundamentais do indivíduo sujeito a tal colheita, o uso de tal meio de obtenção de prova terá de desenvolver-se em torno do conflito entre direitos fundamentais do arguido e as finalidades do processo penal, entre as quais a procura da verdade material e a realização da justiça.
A propósito da recolha de material biológico ao arguido, pronunciou-se o Tribunal Constitucional referindo que a Constituição não proíbe, em absoluto, a recolha coativa de material biológico de um arguido e a sua posterior análise não consentida para fins de investigação criminal - no caso concreto para subsequente comparação com vestígios biológicos da vítima-, impondo, no entanto, que essa determinação seja judicial e não apenaspordecisãodoMinistérioPúblico;etambémqueessarecolhanãointegrequalquer violação do privilégio contra a auto-incriminação (nemo tenetur se ipsum accusare), o qual se encontra consagrado nos artigos 2.º, 26.º, 32.º, n.º 2 e 4 da Constituição – cfr. Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs155/2007e 228/2007,in
www.tribunalconstitucional.pt
).
Ora, no caso em apreço, estando em causa, na colheita ordenada, a recolha de sangue com agulha e seringa por punção, em qualquer um dos braços, na zona do sangradouro, não traduz a realização de tal exame uma ofensa significante dos direitos à integridade e à autodeterminação corporal do arguido, por apenas afetar de forma transitória e momentânea o corpo e o sistema volitivo do mesmo.
Na verdade, tendo em vista que com o exame ordenado se pretende alcançar a verdade material para administração da justiça penal, o que constitui uma exigência da ordem pública e do bem-estar geral, bem como um dos pilares do Estado de direito, é inequívoco que a sua realização compulsiva se mostra justificada e legitimada, tanto mais que a realização do referido exame não é susceptível de ofender o direito à autodeterminação corporal do arguido, por se tratar de uma ofensa insignificante.
Além do mais, o exame ordenado é o meio de obtenção de prova adequado para a descoberta da verdade material e prossecução da finalidade da realização da justiça – método pouco invasivo, não existindo outro menos restritivo para alcançar o objectivo da comparação com os vestígios recolhidos na vítima - não sendo o mesmo excessivo nem desproporcional para se apurar se o arguido manteve contactos de natureza sexual com a sua filha menor, sendo que os benefícios para a investigação criminal apenas ultrapassam a ligeira compressão dos direitos fundamentais.
Assim, entende-se que a decisão recorrida se mostra acertada, reflectindo uma ponderação equilibrada entre a protecção dos direitos fundamentais do arguido, por um lado, e o interesse comunitário e o do Estado na administração da justiça penal, por outro lado, atento o tipo de crimes em apreço e a necessidade do exame ordenado para a descoberta da verdade dos factos e realização da justiça.
Nestes termos, a realização forçada do exame autorizado pelo despacho recorrido mostra-se justificada e legitimada, não violando qualquer preceito constitucional, designadamente os artigos 25º da CRP e 126º do Código de Processo Penal.
Face ao exposto, entende-se ser de manter, na íntegra, o despacho recorrido por nenhum reparo nos merecer.»
*
Já neste Tribunal o Exmo. PGA emitiu parecer no sentido da negação de provimento ao recurso acompanhando a resposta do MP junto do tribunal recorrido.
*
Cumprido o art. 417º, n.º 2 do CPP, veio o recorrente apresentar um requerimento/resposta, na qual pretendia que, por o processo já ter acusação e ter sido remetido para julgamento a diligencia probatória que estava na base do recurso tinha perdido a sua utilidade.
O processo foi com visita ao MP, que disse manter o interesse na diligência, entendimento que sufragamos.
Colhidos os vistos e realizada a conferência cumpre decidir.
*
II- Fundamentação.
1.- Despacho recorrido.
««(...)
Investiga-se nos presentes autos a prática pelo arguido
AA,
de, pelo menos, três crimes de violação agravada, p. e p. pelos artigos 164.º, n.º 2, als. a), b) e n.º 3 e 177.º, n.ºs 1, als. a), b), e 6, todos do Código Penal; e um crime de violação agravado, p. e p. pelos artigos 164.º, n.º 2, als. a), b) e n.º 3 e 177.º, n.ºs 1, als. a) e b), 5 e 6, todos do Código Penal, na pessoa de BB, sua filha, com base em factos já considerados fortemente indiciados em sede de aplicação de medidas de coacção, os quais determinaram a sujeição daquele à medida de prisão preventiva.
O arguido nega a prática destes concretos factos.
Decorre do exame pericial de natureza sexual efectuado à vítima BB que lhe foi identificada infecção por clamídia, ou seja, foi identificada
Chlamydia trachomatis
no raspado endo cervical e endo uretral, em 27-08-24, sendo que a infecção por clamídia tem valor diagnóstico de contacto sexual.
Tendo sido, nessa sequência, que o arguido foi notificado pessoalmente pela Policia Judiciária para a realização de colheita de amostras biológicas a efectuar em ..., no INML no dia 20-12-2024, pelas 10h30.
O arguido, através do seu Ilustre Defensor, recusou dar o seu consentimento – fls. 561.
Veio, nessa sequência, o Ministério Público promover que se determine a realização coerciva da recolha de amostras biológicas ao arguido, invocando para tanto o disposto nos arts. 154º/1 a 3 e 172º/2 do Código de Processo Penal.
Solicitado esclarecimento ao INMLCF sobre o tipo de amostra e modo de colheita, foi informado que a “amostra biológica a colher será sangue total, com agulha e seringa, por punção, em qualquer um dos braços, na zona do sangradouro”.
Cumpre decidir.
Nos termos do disposto no art. 172º do Código de Processo Penal:
«1 - Se alguém pretender eximir-se ou obstar a qualquer exame devido ou a facultar coisa que deva ser examinada, pode ser compelido por decisão da autoridade judiciária competente.
2 - É correspondentemente aplicável o disposto nos n.ºs 3 do artigo 154.º e 6 e 7 do artigo 156.º
3 - Os exames susceptíveis de ofender o pudor das pessoas devem respeitar a dignidade e, na medida do possível, o pudor de quem a eles se submeter. Ao exame só assistem quem a ele proceder e a autoridade judiciária competente, podendo o examinando fazer-se acompanhar de pessoa da sua confiança, se não houver perigo na demora, e devendo ser informado de que possui essa faculdade.».
O Ministério Público pretende no caso em apreço, como meio de obtenção de prova, a realização de recolha de amostra biológica (amostra de sangue) ao arguido para aferir se o mesmo é, ou foi, portador de infecção por clamídia.
Tratando-se de uma intervenção corporal, tida como essencial para a investigação pela autoridade judiciária competente nesta fase processual, carece de consentimento esclarecido do visado – cfr. arts. 25º e 32º/8 da Constituição e arts. 125º e 126º do Código de Processo Penal.
Consentimento que, como referido, foi recusado pelo arguido.
Pois bem.
Parece-nos inequívoca a necessidade de realizar o exame/recolha de amostra de sangue pretendido como meio de obtenção de prova fundamental para alcançar a descoberta da verdade material, por forma a aferir da consistência dos indícios já colhidos nos autos quanto à prática criminosa imputada ao arguido.
Com efeito, mostra-se fulcral para a investigação e para a prova que se faça a recolha pretendida de sangue ao arguido para aferir se o mesmo é, ou foi, portador de infecção por clamídia (infecção detetada na sua filha), não se divisando por que outra forma menos invasiva da reserva da vida privada do visado se possa obter idêntico resultado probatório.
Como assim e nestes termos, ao abrigo do disposto nos arts. 172º, 154º/3 e 269º/1,a) e b), do Código de Processo Penal,
decide-se determinar que seja efectuada recolha de sangue ao arguido AA
, com agulha e seringa, por punção, em qualquer um dos braços, na zona do sangradouro
, a que deverá ser compelido caso mantenha a sua recusa
.
Notifique.
Consigna-se expressamente que
a determinação contida no presente despacho apenas poderá ser cumprida depois de transitado este em julgado
.»
*
3. Apreciação do recurso.
De acordo com o entendimento jurisprudencial assente, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas da motivação, sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso.
No presente recurso a questão suscitada consiste em saber se o despacho do Mmo. Juiz de instrução que ordenou a sujeição do arguido a recolha de amostras biológicas, a exame de recolha de sangue ao arguido AA, com agulha e seringa..., a que deverá ser compelido caso mantenha a sua recusa, isto é, com recurso à força física em caso de necessidade, é irregular.
Sustenta o recorrente que o despacho recorrido é irregular nos termos do n.º1 do artigo 123.º do CPP, irregularidade essa que por afetar decisivamente o direito à integridade física e moral do arguido constante do n.º1 do artigo 25.º da CRP, determina nos termos do n.º1 do artigo 123.º do CPP a invalidade do despacho de 23.12.2024 e sua determinação quanto à realização da perícia determinada. Pede a revogação do despacho.
Cumpre referir, antes de mais que a questão do consentimento/não consentimento perante o órgão de polícia criminal está documentada e não foi oportunamente atacada a ordem perante a entidade competente, pelo que está ultrapassada tal questão. Por outro lado, o arguido pode posteriormente dar o seu consentimento ao exame que foi ordenado na 1ª instância e que fundamenta o recurso.
Passemos à questão.
No nosso CPP a prática de determinados atos processuais necessários à investigação criminal a serem praticados nas fases preliminares do processo exigem a intervenção do juiz de instrução.
Trata-se da atribuição constitucional da competência para realizar ou autorizar atos que possam colidir com os direitos fundamentais do cidadão a um Juiz, atribuição que decorre diretamente do artigo 32.º, n.º 4, da CRP.
Com relevo para a decisão, vejamos com brevidade o âmbito dos preceitos constitucionais envolvidos.
Preceitua, o artigo 25º, nº 1 da CRP no seu nº 1 que «
A integridade moral e física das pessoas é inviolável.
»
Acrescentando o n. º2 que “
Ninguém pode ser submetido a tortura, nem a tratos ou penas cruéis, degradantes ou desumanos
”.
Por sua vez, no subsequente artigo 32.º n.º 1, consagra-se que “
O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso
”.
Em concretização desta cláusula geral de «todas as garantias de defesa», no que respeita ao regime da prova proibida, resulta do seu n.º 8: “
São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações
”.
É com o direito à integridade física e moral que a realização do exame ordenado pode contender e, bem assim com o direito à reserva da intimidade.
O nº 8 do artigo 32º da CRP, tem concretização ao nível processual penal, no art. 126º do CPP, que igualmente estabelece que são nulas as provas obtidas mediante ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.
Com especial relevância, na ponderação dos normativos concernentes ao meio de prova em causa – exame – importa a consideração do art. 18º da CRP, que estipula, que
“[O]s preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas”(n.º 1) e “[A]
lei
só
pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos
”(n.º 2).
Acrescenta o seu n.º 3 que “
As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais
”.
Dos referidos preceitos resulta que na compressão dos direitos fundamentais e das liberdades e garantias, regem o princípio da legalidade com um carácter simultaneamente legitimador e delimitador; o princípio da intervenção mínima com um carácter vetor/orientador; o princípio da proporcionalidade com um carácter operativo ou funcional. Este último princípio densifica-se através de três outros subprincípios, o da idoneidade ou adequação; o da necessidade ou exigibilidade ambos respeitantes à otimização relativa do que é factualmente possível, e o da proporcionalidade em sentido estrito ou da justa medida, o qual se reporta à otimização normativa
[1]
.
Decorre, portanto, do referido artigo 18º da CRP na sua conciliação com os normativos que permitem a realização de um exame na pessoa do arguido, que este apenas é permitido quando estritamente indispensável para salvaguardar o interesse do Estado na perseguição do crime, materializando o princípio da proporcionalidade ou proibição do excesso, desdobrado nos referidos subprincípios.
A adequação significa que o procedimento/meio eleito se deve revelar adequado ao fim visado pela norma; a necessidade significa que os fins visados pela lei não podem ser obtidos por outros meios menos onerosos para os direitos sacrificados ou restringidos; a racionalidade implica que as medidas legais restritivas e os fins obtidos se situem numa “justa medida”.
Assim,
o requisito da proporcionalidade
funciona como uma garantia da não aniquilação do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais, pois a existência de uma restrição «arbitrária», «desproporcionada», é um índice da ofensa do núcleo essencial
[2]
.
E, nessa medida, quando dissentido, compete ao órgão competente, no caso aos tribunais, que proceda a uma correta avaliação da providência em termos quantitativos e qualitativos, e que através dela se obtenha o resultado devido.
[3]
De acordo com o n.º 1 do artigo 171º do Código de Processo Penal
o exame que incide sobre as pessoas
inspeciona os vestígios que possa ter deixado o crime e
todos os indícios relativos ... às pessoas que o cometeram ou sobre as quais foi cometido
.
O n.º 1 do art. 172º, dispõe que «
Se alguém pretender eximir-se ou obstar a qualquer exame devido ..., pode ser compelido por decisão da autoridade judiciária competente
.»
Por usa vez, o n.º 2 do mesmo artigo dispõe que «
É correspondentemente aplicável o disposto nos n.ºs 3 do artigo 154.º e 6 e 7 do artigo 156.º
». Que, por sua vez dispõem:
N.º 3 do artigo 154º do CPP: «
Quando se tratar de perícia sobre características físicas ou psíquicas de pessoa que não haja prestado consentimento, o despacho previsto no número anterior é da competência do juiz, que pondera a necessidade da sua realização, tendo em conta o direito à integridade pessoal e à reserva da intimidade do visado
.
Nºs 6 e 7 do artigo 156º do CPP:
6 - As perícias referidas no n.º 3 do artigo 154.º são realizadas por médico ou outra pessoa legalmente autorizada e não podem criar perigo para a saúde do visado.
7 - Quando se tratar de análises de sangue ou de outras células corporais, os exames efectuados e as amostras recolhidas só podem ser utilizados no processo em curso ou em outro já instaurado, devendo ser destruídos, mediante despacho do juiz, logo que não sejam necessários.
No caso em apreço, como vimos na definição legal de exame sobre as pessoas, que se alcança da lei, trata-se de um
exame que incide sobre as pessoas e inspeciona os vestígios que possa ter deixado o crime e todos os indícios relativos ... às pessoas que o cometeram ou sobre as quais foi cometido
.
Por outro lado, como é sabido, o corpo do arguido é, em si mesmo, um meio de prova (cfr. o dever imposto pela alínea d) do n.º 6 do artigo 61º do Código de Processo Penal), pelo que, sobre aquele, impende a obrigação de se sujeitar às diligências de prova previstas na lei.
Os factos que resultam do despacho em recurso:
- Investiga-se nos presentes autos a prática pelo arguido AA, de, pelo menos,
três crimes de violação agravada
, p. e p. pelos artigos 164.º, n.º 2, als. a), b) e n.º 3 e 177.º, n.ºs 1, als. a), b), e 6, todos do Código Penal; e
um crime de violação agravado
, p. e p. pelos artigos 164.º, n.º 2, als. a), b) e n.º 3 e 177.º, n.ºs 1, als. a) e b), 5 e 6, todos do Código Penal,
na pessoa de BB, sua filha
, com base em factos já considerados fortemente indiciados em sede de aplicação de medidas de coação, os quais determinaram a sujeição daquele à medida de prisão preventiva.
- O arguido nega a prática destes concretos factos.
- Decorre do exame pericial de natureza sexual efetuado à vítima BB que lhe foi identificada infeção por clamídia, ou seja, foi identificada Chlamydia trachomatis no raspado endo cervical e endo uretral, em 27-08-24.
-
A infeção por clamídia tem valor diagnóstico de contacto sexual
.
- Tendo sido, nessa sequência, que o arguido foi notificado pessoalmente pela Polícia Judiciária para a realização de colheita de amostras biológicas a efetuar em ..., no INML no dia 20-12-2024, pelas 10h30.
- O arguido, através do seu Ilustre Defensor, recusou dar o seu consentimento – fls. 561.
- Veio, nessa sequência, o Ministério Público promover que se determine a realização coerciva da recolha de amostras biológicas ao arguido, invocando para tanto o disposto nos arts. 154º/1 a 3 e 172º/2 do Código de Processo Penal.
- Solicitado esclarecimento ao
INMLCF
sobre o tipo de amostra e modo de colheita, foi informado que a “
amostra biológica a colher será sangue total, com agulha e seringa, por punção, em qualquer um dos braços, na zona do sangradouro
”.
Postos os referidos factos, deles se conclui, para o efeito que nos ocupa, que o meio de obtenção de prova, realização de recolha de amostra biológica (amostra de sangue) ao arguido – que cabe na definição do exame, meio de prova previsto na lei - visa aferir se o mesmo é, ou foi, portador de infeção por clamídia.
E visa em última instância obter prova ainda que indiciária de que a infeção por clamídia de que a vítima sua filha é portadora tem origem nos contactos sexuais entre ambos, que o arguido nega e a vítima afirma.
O referido exame pretende, portanto, obter um indício relativo ao arguido de que foi ele que infetou a vítima, sua filha, com Clamídia. Sendo que a infeção por clamídia tem valor de diagnóstico de contacto sexual. Neste conspecto o exame é admissível, é legal porque previsto na lei e é o meio de prova adequado para obter a prova pretendida.
A prova que se pretende obter é importantíssima para corroborar a versão dos factos que a ofendida afirma e o arguido nega, pois, estando em causa crimes de violação a prova testemunhal presencial é inexistente, tendo, portanto, o pretendido exame, potencialidades para contribuir para a descoberta da verdade material relativamente aos factos em causa nos autos.
A gravidade dos factos em investigação é elevadíssima e o procedimento a efetuar para obter as informações pretendidas é um vulgar exame sanguíneo que todos os dias é feito por milhares de pessoas voluntariamente, apenas é suscetível de ofender o direito á autodeterminação corporal do recorrente em medida irrelevante, e a intromissão na integridade física do arguido decorrente da recolha de vestígios biológicos no corpo do arguido tem um cariz insignificante; ainda que se conceda que trará informações ao processo que o arguido pretenderá não sejam do conhecimento público.
Assim, em obediência aos referidos normativos e princípios competia ao tribunal efetuar a ponderação da necessidade da realização do referido exame, tendo em conta o direito à integridade pessoal e à reserva da intimidade do visado.
Essa ponderação foi efetuada, assim:
«O Ministério Público pretende no caso em apreço, como meio de obtenção de prova, a realização de recolha de amostra biológica (amostra de sangue) ao arguido para aferir se o mesmo é, ou foi, portador de infecção por clamídia.
Tratando-se de uma intervenção corporal, tida como essencial para a investigação pela autoridade judiciária competente nesta fase processual, carece de consentimento esclarecido do visado – cfr. arts. 25º e 32º/8 da Constituição e arts. 125º e 126º do Código de Processo Penal.
Consentimento que, como referido, foi recusado pelo arguido.
Pois bem.
Parece-nos inequívoca a necessidade de realizar o exame/recolha de amostra de sangue pretendido como meio de obtenção de prova fundamental para alcançar a descoberta da verdade material, por forma a aferir da consistência dos indícios já colhidos nos autos quanto à prática criminosa imputada ao arguido.
Com efeito, mostra-se fulcral para a investigação e para a prova que se faça a recolha pretendida de sangue ao arguido para aferir se o mesmo é, ou foi, portador de infecção por clamídia (infecção detetada na sua filha), não se divisando por que outra forma menos invasiva da reserva da vida privada do visado se possa obter idêntico resultado probatório.
Como assim e nestes termos, ao abrigo do disposto nos arts. 172º, 154º/3 e 269º/1,a) e b), do Código de Processo Penal,
decide-se determinar que seja efectuada recolha de sangue ao arguido AA
, com agulha e seringa, por punção, em qualquer um dos braços, na zona do sangradouro
, a que deverá ser compelido caso mantenha a sua recusa
.»
Posta a ponderação efetuada pelo tribunal
a quo
que enfatiza corretamente os direitos em confronto, a necessidade da realização do exame, tendo em conta o direito à integridade pessoal e à reserva da intimidade do visado, dando conta de não divisar outra forma menos invasiva da reserva da intimidade do visado para obter idêntico resultado probatório, só podemos concordar com a correção da referida ponderação.
Acresce que a diligência ordenada está numa relação de adequação com a pretendida descoberta da verdade material e satisfação do interesse estadual na administração da Justiça, para os quais está talhada, no caso, a recolha de indícios da pessoa do arguido que confirmem ou provem factos que sirvam de prova ao crime em causa nos autos, a já referida prova de que o arguido é ou foi portador de Clamídia, visando a prova de contacto sexual com a vítima que também está infetada com esta bactéria.
Por outro lado, é uma diligência que se afigura como única via legal de alcançar os fins visados; existe uma proporção racional - uma “justa medida” - entre o custo da medida para o arguido e o benefício que se almeja obter para a investigação do crime; sendo que não há dúvidas que os bens jurídicos protegidos pelos crimes sexuais em causa, com uma vítima com idade igual – ao tempo da participação – e inferior a 14 anos ao tempo dos factos, e filha do arguido, são superiores à reserva da intimidade privada do arguido, que no âmbito processual será obrigatoriamente preservada dentro dos limites do n.º 7 do artigo 156º do CPP; mais acrescendo o caracter parcamente invasivo do procedimento a efetuar, que é também mínimo na lesão do seu direito à integridade pessoal.
Nas circunstâncias expostas e dado o documentado não consentimento, mostra-se justificada e legitimada a compulsão para obtenção de prova como determinado na decisão, o que quer dizer que a decisão recorrida não viola os normativos mencionados invocados pelo recorrente.
Acresce, não haver dúvidas em face de todo o processado ocorrido entre 02.12.2024 e 23.12.2024, especialmente dos requerimentos que efetuou nos autos a 09.12.2024, 20.12.2024 e 22.12.2024, do despacho do Sr. Procurador de 12.12.2024 e de todos os despachos de 20.12.2024 e de 23.12.2024 que o recorrente sabe qual o exame a realizar e o local da sua realização, conhece os objetivos probatórios do mesmo e os seus fundamentos de facto e de direito, o que aliás, decorre do despacho em recurso. A questão da diligência ordenada pela PJ não está em causa neste recurso e se porventura o recorrente entende que negou o seu consentimento baseado em pressupostos que não se verificam pode sempre, como já anteriormente dissemos, consentir no exame que será oportunamente realizado.
Os dispositivos processuais penais aplicáveis são os mencionados na presente decisão e não outros, pelo que o despacho em recurso sobre nada mais tinha de se debruçar.
Assim, atentos os normativos constitucionais e processuais penais invocados e a ponderação efetuada pelo tribunal
a quo
não se divisa qualquer irregularidade no despacho recorrido, pelo que a diligência ordenada deve claramente ser realizada.
Improcede, assim, o recurso interposto.
*
III- Decisão.
Pelo exposto, acordam os juízes da segunda secção criminal deste Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido e, em consequência, manter o despacho recorrido.
*
Custas pelo arguido, que se fixam em 3 UC, pois decaiu na totalidade no recurso interposto, artigos 513º, n.º1 do CPP, 8º, n.º 9 do RCP e Tabela anexa nº III.
*
Notifique.
*
Acórdão elaborado e revisto pela relatora – art. 94.º, n.º 2 do CPP.
Porto, 09.04.2025.
[Maria Dolores da Silva e Sousa - Relatora]
[Maria dos Prazeres Silva – 1ª Adjunta]
[Fernanda Sintra Amaral- 2ª Adjunta]
_________________________
[1]
Cf. Acs. do TC 11/83, 285/92, 17/84, 634/93, 86/94, 99/99, 187/2001, 302/2006, 158/2008, acessíveis em
www.tribunalconstitucional.pt
[2]
Cf. Constituição da República Portuguesa, Anotada, J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Volume I, págs. 392 a 395.
[3]
Cf. Ac. do TC n.º 155/07, in
www.tribuanlconstitucional.pt
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TRP
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https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/dafaec9a3222cb2280258c8100500afa?OpenDocument
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1,748,908,800,000
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ANULADA A SENTENÇA
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1383/21.4T8OVR.P1
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1383/21.4T8OVR.P1
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ISABEL PEIXOTO PEREIRA
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I - Todos os actos praticados por escrito pelas partes, após a notificação da contestação do réu ao autor, obedecem à regra da notificação entre mandatários.
II - Material ou substancialmente qualificável o requerimento dos executados a requerer a extinção da instância executiva em curso como uma “oposição” ao requerimento executivo, assemelhando-se a uma verdadeira e própria petição de embargos, a determinação da notificação (pela secretaria) tem de sê-lo pelo juiz, nos termos e para os efeitos do artigo 3º do CPC e mediante a advertência de consequências para a falta de resposta e de junção de prova bastante.
III - Assim quando se considere que o juízo mesmo de possibilidade (atento o estado da causa, parcialmente suspensa), admissibilidade e tempestividade (atento o concreto fundamento convocado e o facto de estar já precludida a hipótese de dedução de embargos) do requerimento apreciado carecia de uma apreciação/decisão prévia.
IV - A imposição às partes de cominações e preclusões, sem prejuízo de um princípio de auto responsabilidade destas na gestão do processo, como aliás constitui princípio geral em todo o processo civil, pressupõe que as objecções, impugnações ou reclamações tenham de ser deduzidas, salvo superveniência, na fase procedimental em que está previsto o exercício do direito de contestação ou oposição.
V - Sendo-o subsequentemente, como aconteceu com o requerimento em que os executados vêm suscitar a excepção de não inclusão em PERSI, não obstante não terem deduzido oportunamente embargos, cabe ao tribunal não apenas apreciar da oportunidade e possibilidade desse conhecimento, como possibilitar à contraparte uma pronúncia ou contraditório efectivo, mediante o convite a juntar prova do cumprimento da condição de exequibilidade e sob a cominação respectiva no caso do silêncio.
VI - Não temos, pois, por bastante a notificação oficiosa entre mandatários, como se de um “mero requerimento” se tratasse, quando em causa uma verdadeira e própria oposição, sem as “formalidades” respectivas…
VII - O princípio do contraditório é hoje entendido um direito de participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo litígio, mediante a possibilidade de influírem em todos os elementos que se encontrem em ligação com o objecto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão.
VIII - Tratando-se de uma situação que não é regulada por norma especial, deverá reger-se no quadro da regra geral do n.º 1 do artigo 195.º do CPC, na parte em que dispõe que a omissão de uma formalidade que a lei prescreve produz nulidade quando a irregularidade cometida possa influir na decisão da questão. Neste caso, a nulidade da decisão decorre de um efeito consequencial, obtido por via do n.º 2 do art. 195.º do CPC, e não da subsunção às causas autónomas de nulidade das decisões previstas no art. 615.º do mesmo diploma.
IX - Relativamente às consequências extraíveis do reconhecimento de tal nulidade, tal determinaria, na presente fase, a mais da anulação da decisão recorrida, decisão a determinar a intervenção e pronúncia da parte, nos termos e para os efeitos do prescrito no nº. 3, do artº. 3º, do Cód. de Processo Civil, fixando prazo em conformidade.
X - Contudo, a exequente, no enformar do objecto recursório, em sede de alegações, já emitiu pronúncia acerca da matéria apreciada na decisão a anular, ou seja, já enunciou os fundamentos argumentativos tradutores da sua posição relativamente à questão decidenda, não se justificando a emissão de comando determinante da concessão de nova pronúncia.
XI - Juízo que não se afigura extensível aos Recorridos executados, ainda quando não tenham apresentado contra-alegações, mormente na medida em que a questão mesma da inclusão no PERSI não se constituía directamente como objecto do recurso, com o que nada se conclui ou infere da falta de apresentação de contra-alegações.
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[
"OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO",
"NOTIFICAÇÃO OFICIOSA ENTRE MANDATÁRIOS",
"CONTRADITÓRIO",
"NULIDADE"
] |
Processo 1383/21.4T8OVR. P1
Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro
Juízo de Execução de Ovar
Relatora:
Isabel Peixoto Pereira
1º Adjunto: António Carneiro da Silva
2º Adjunto: António Paulo Vasconcelos
*
Acordam os juízes da 3.ª secção do Tribunal da Relação do Porto:
I.
Nestes autos de execução, por requerimento avulso (Ref.ª Elect.ª 16488172, de 30.07) vieram os executados AA e BB arguir a excepção dilatória inominada decorrente da falta de integração dos mesmos no âmbito do procedimento denominado PERSI, concluindo pela nulidade do presente processo.
O Ilustre Advogado dos executados notificou a Ex.ma Sra. Advogada da exequente do teor do requerimento, sendo que nos autos nada foi dito.
O Sr. Juiz considerou então ter sido observado o contraditório e passou a proferir a decisão seguinte:
«Antes de mais, importa salientar, quanto à tempestividade da excepção ora aduzida, que, nos termos do disposto no art. 734.º, n.º 1 do Novo Código de Processo Civil, “o juiz pode conhecer oficiosamente, até ao primeiro acto de transmissão dos bens penhorados, das questões que poderiam ter determinado, se apreciadas nos termos do art. 726.º, o indeferimento liminar ou o aperfeiçoamento do requerimento executivo”.
Este normativo constitui, assim, uma “válvula de escape”, permitindo que uma execução indevida ou insuficientemente instaurada (seja pela inexistência de titulo executivo, seja por qualquer outra razão que impunha o seu indeferimento liminar ou o convite ao aperfeiçoamento do requerimento executivo) e que por qualquer razão não foi detetada no momento devido, possa ainda ser alvo de correcção (cfr. Virgínio da Costa Ribeiro e Sérgio Rebelo, in A ação Executiva Anotada e Comentada, Almedina, 2.ª Edição, 2017, pág. 260).
Porém, essa válvula tem um limite temporal definido, podendo apenas funcionar “até ao primeiro acto de transmissão dos bens penhorados”, justificando-se esta ressalva tendo em vista os direitos adquiridos no processo por terceiros de boa-fé, designadamente os credores do executado, os adquirentes ou os preferentes, que merecem protecção.
No caso vertente, não tendo ainda ocorrido na execução qualquer acto de transmissão dos bens penhorados e em face do requerimento apresentado pelos Executados em que vêm arguir a excepção dilatória decorrente da preterição do PERSI o Tribunal está obrigado a dela conhecer, não tendo, por força do supra exposto, a ausência de arguição de tal excepção em sede de embargos de executado efeito preclusivo.
Tendo por base este pressuposto, cumpre, pois, aferir se no caso em apreço ocorre a invocada excepção dilatória decorrente da alegada não integração dos Executados no Procedimento Extrajudicial de Regularização das Situações de Incumprimento (PERSI).
O referido procedimento, instituído pelo Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de Outubro, tem aplicação, obrigatória, quando o cliente bancário consumidor incorre numa situação de incumprimento de obrigações resultantes de contratos de crédito, constituindo um instrumento extrajudicial de proteção daquele, imposto às instituições bancárias, impeditivo de, antes do seu decurso, serem desencadeados procedimentos judiciais com vista à satisfação desses mesmos créditos.
Para o efeito, consideram-se clientes bancários consumidores, por apelo à definição legal de consumidor constante da Lei 67/2003, qualquer pessoa singular que não destine o bem ou serviço adquirido a um uso profissional ou um profissional (pessoa singular), desde que não actuando no âmbito da sua actividade e desde que adquira bens ou serviços para uso pessoal ou familiar.
Tal procedimento é constituído por uma fase pré-judicial que tem em vista a composição do litígio, por mútuo acordo, entre credor e devedor, através de um procedimento que comporta três fases: a fase inicial, a fase de avaliação e proposta e a fase de negociação, conforme decorre dos artigos 14.º, 15.º e 16.º do referido Decreto-Lei n.º 227/2012.
O PERSI inicia-se sempre mediante uma comunicação formal (isto é, em suporte duradouro na qual a instituição de crédito mutuante, entre outros elementos, deve indicar a data de integração do cliente no PERSI e o montante total em dívida, detalhando as parcelas correspondentes a capital, juros e encargos (ou comissões) resultantes da mora.
Sinopticamente, o recurso ao referenciado procedimento extrajudicial (com a integração em PERSI e a comunicação de extinção de tal procedimento, persistindo o incumprimento) funciona como condição de admissibilidade da acção judicial (declarativa ou executiva) pela qual a instituição bancária peticiona o pagamento. Na
omissão de cumprimento, pela instituição bancária, dessa obrigação prévia (falta de PERSI), verifica-se uma excepção dilatória inominada, insuprível, de conhecimento oficioso, conducente à absolvição da instância (art. 18.º, n.º 1, al. b) do referido diploma legal) – cfr., entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Fevereiro de 2023, processo 1141/21.6T8LLE-B.E1.S1, pesquisável in www.dgsi.pt, e demais jurisprudência nele citada.
Consequentemente, se previamente a acção para cobrança de um concreto crédito (procedimento judicial) não tiver havido integração em PERSI, com vista à obtenção de pagamento do mesmo (prévio procedimento extrajudicial), verifica-se tal excepção dilatória conducente à absolvição da instância.
Neste enquadramento, a comunicação de integração no PERSI, bem como a de extinção do mesmo, ao cliente/devedor, incluindo os fiadores, tem de ser feita, pela instituição bancária, em suporte duradouro, isto é, tem de estar materializada em instrumento que possibilite a sua integral e inalterada reprodução (reconduzindo-se, assim, ao conceito de documento plasmado no art. 362.º do Código Civil).
Por outro lado, sendo condição de admissibilidade da acção judicial, incumbe ao banco/exequente, que pretende lançar mão do procedimento judicial, o ónus da prova do envio (por si) e da recepção (pelo cliente) de tais declarações receptícias, cabendo-lhe demonstrar, para além da sua existência e envio, a recepção pelo cliente (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 8 de Junho de 2022, processo 4204/20.1T8MAI-A.P1, pesquisável in www.dgsi.pt).
Estando em causa normas imperativas, encontra-se fora da disponibilidade das partes, entidade bancária e cliente bancário, afastar essas regras.
Acresce que, como se afirma no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24 de Novembro de 2022, processo 21395/17.1T8SNT-A.L1-2, pesquisável in www.dgsi.pt, “na circunstância do devedor não ter sido integrado no PERSI por parte da instituição bancária, quando o devesse ter sido, os efeitos desta falta impõem-se ao cessionário do crédito, designadamente na limitação de não poderem ser intentadas ações judiciais contra o devedor até à extinção de tal procedimento”, “não podendo a cessão ser feita em detrimento da posição do devedor, ou com diminuição das suas garantias, até porque este não pode opor-se a tal cedência (cfr. art. 577º do Código Civil)”.
Assim, “se o crédito já estava em incumprimento quando da cessão de créditos e o cedente estava limitado no exercício do seu direito por força do regime do PERSI, designadamente por estar obrigado a integrar o devedor no PERSI, não podendo intentar contra ele ações judiciais com vista à cobrança coerciva do seu crédito até à extinção deste procedimento, nos termos previstos no art.º 18.º n.º 1 al. b) do diploma em questão, o direito de crédito que o mesmo transmitiu à cessionária não pode deixar de ter esta mesma limitação” (cfr., nesse sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24 de Janeiro de 2023, processo 7228/21.2T8PRT-A.P1, pesquisável in www.dgsi.pt).
Perante este quadro legal, mostra-se pacífico que os Executados, na qualidade de clientes bancários, estão obrigatoriamente sujeitos ao regime do PERSI, porquanto tendo, ainda, em atenção o preceituado no art. 40.º do Decreto-Lei n.º 227/2012, são integrados no PERSI os clientes com contratos celebrados após 1 de Janeiro de 2013 ou que, apesar de celebrados em data anterior, permaneçam em vigor e se encontrem em situação de mora no cumprimento das suas obrigações.
Concluindo-se, deste modo, que os aqui Executados devem ser integrados no PERSI, não resultou, todavia, alegado ou provado qualquer facto respeitante a este procedimento, sendo certo que cabe à Exequente o ónus de alegação e prova dos factos atinentes à integração do cliente no PERSI e à sua notificação, por se tratarem de factos essenciais à admissibilidade desta acção (cfr. arts. 5.º, n.º 1 do Novo Código de Processo Civil e 342.º, n.º 1 do Código Civil).
Efectivamente, no caso vertente, a Exequente não se pronunciou sobre a invocada excepção dilatória, não tendo sequer cumprido o ónus de alegação que sobre si impendia, uma vez que silenciou em absoluto qualquer facto relativamente à data da suposta integração dos executados no PERSI e à comunicação exigida pelo art. 14.º, n.º 4 do Decreto-Lei 272/2012, nem indicou quais as negociações tidas, nem o resultado das mesmas, nem os factos relativos ao encerramento do PERSI e respectivo fundamento jurídico.
Outrossim, não juntou aos autos, conforme igualmente lhe competia, qualquer elemento comprovativo de ter procedido à integração dos ora Executados no âmbito do Persi, sendo certo que lhe competia, além do mais, o ónus da prova do envio (por si) e da receção (pelo cliente) de tais declarações receptícias, não se revelando, para esse efeito, suficiente a mera junção de simples cartas de comunicação.
Pelo exposto, é forçoso concluir pela verificação da invocada excepção dilatória inominada, a qual, sendo insuprível e de conhecimento oficioso, determina a extinção da instância executiva.
Nesta conformidade, julgo procedente a
invocada excepção dilatória inominada insanável, de conhecimento oficioso, e, em consequência, absolvo os Executados da instância executiva e declaro extinta a execução, com o consequente cancelamento da penhora.»
Desta decisão veio a exequente recorrer, mediante as seguintes conclusões:
1. No âmbito dos autos de execução sumária em que a recorrente assume a qualidade de exequente,com crédito garantido por hipoteca sobre imóvel penhorado, por decisão de Agente de Execução de 08 de Março de 2023, a execução foi sustada, nos termos do n.º 1 do artigo 794.º do CPC, por força da pendência de penhoras anteriormente registadas sobre aquele bem;
2. Os efeitos jurídicos decorrentes da sustação integral da execução, são os previsto no n.º 4 do artigo 794.º CPC, ou seja, «A sustação integral determina a extinção da execução, (...)»;
3. Desde o dia 08 de Março de 2023, a presente execução encontra-se extinta, com decisão transitada julgado, facto não considerado pelo Tribunal a quo, quando proferiu sentença de 24/09/2024;
4. Para além da instância se considerar extinta por força do n.º 4 do artigo 794.º CPC, a mesma está extinta, por deserção, nos termos do artigo 277.º alínea c) do CPC, porque a recorrente/exequente se encontrava impedida de promover ou requerer quaisquer diligências, em virtude da extinção da instância;
5. O n.º 5 do mesmo artigo – art. 281.º CPC refere que no processo de execução, considera-se deserta a instância, independentemente de qualquer decisão judicial quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses.»
6. A extinção da instância por deserção, ocorreu no dia 08 de Agosto de 2023, data em que a instância perfazia 6 meses, sem que qualquer impulso pela recorrente/exequente, sendo certo que não é necessária qualquer decisão para determinar a extinção da instância, por deserção;
7. A partir do dia 08 de Agosto de 2023, data em que a instância se considerou definitivamente extinta, nenhuma decisão superveniente, poderia incidir sobre qualquer objecto;
8. Depois da extinção da instância nos termos dos artigos supra indicados, decorrido, mais de um ano e 5 meses, os executados vieram por requerimento alegar junto do juiz de Direito, a sua alegada falta de integração de PERSI referente aos créditos incumpridos;
9. Depois da decisão de extinção de execução, cessa o poder do juiz, relativamente à decisão de todos os requerimentos ou comunicações a Agente de Execução enviadas pelas partes aos autos, porque a instância se encontra extinta;
10. «Com a extinção da instância cessam todos os efeitos processuais e substantivos da pendência da acção, logo o direito subjectivo processual do demandante contra o demandado, significando que a extinção torna ineficazes os actos realizados e os praticados posteriores serão inexistentes». - Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, processo n.º 5063/09.0TBLRA-A.C1 de 12/09/2014, Relator JORGE ARCANJO. (negrito da nossa responsabilidade)
11. «O caso julgado da decisão que julga extinta a instância acarreta a preclusão pro judicato, que é a extinção do poder do juiz relativamente à prática de actos posteriores, assim refere o Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, processo n.º 5063/09.0TBLRA-A.C1 de 12/09/2014, Relator JORGE ARCANJO;
12. O juiz do tribunal a quo não tinha poderes, para conhecer do requerimento apresentado pelo executado, que depois da extinção da instância é considerado inexistente;
13. A sentença de 24/09/2024 perfaz um excesso de pronúncia e actuação indevida do Juiz que se condena, por falta de poderes, e nessa sequência requer-se a sua anulação, por infringir o artigo 195.º CPC ex vi o artigo 187º e 188.º CPC, por infração do n.º 4 do artigo 794.º, e ainda infracção da alínea e) do art. 277.º CPC e artigo 281.º n.º 1 e 5 do CPC, artigo 187º e 188.º CPC;
14. Para além disto, a secretaria do Tribunal decidiu promover os autos num processo extinto, ao abrir conclusão do requerimento dos executados;
15. A secretaria esqueceu-se de notificar a parte contrária para exercer o direito ao contraditório, não dando cumprimento ao previsto no 3.º do artigo 3.º CPC que refere «O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, (...), decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.»;
16. E ao previsto no n.º 2 do artigo 220.º CPC que refere: «Cumpre ainda à secretaria notificar oficiosamente as partes quando, por virtude da disposição legal, possam responder a requerimentos, oferecer provas ou, de um modo geral, exercer algum direito processual que não dependa de prazo a fixar pelo juiz nem de prévia citação.»;
17. Tratando-se de requerimento em que existia a necessidade por parte do exequente de apresentar provas, como perfaz o n.º 2 do artigo 220.º CPC, a secretaria tem a obrigação legal de notificar a parte, principalmente, tratando-se de um processo já extinto, o que não foi cumprido.
18. A falta de notificação ao exequente, pela secretaria do requerimento do executado, inútil, por si só, implica a nulidade de todos os actos praticados posteriormente, à falta de notificação, porque foram praticados fora da lei, sendo certo que tal irregulariedade influi no exame ou na decisão da causa, conforme previsto no artigo 195.º, por aplicação do artigo 187º e 188.º CPC;
19. A actuação do tribunal colide com o dever de boa fé processual e de cooperação, previstas no n.º 2 do artigo 7.º do CPC e a sentença do tribunal a quo que determina a alegada falta de integração de PERSI é nula, porque incide sobre requerimento posterior à extinção da instância, (falta de objecto) que legalmente não pode ser apreciado;
20. E mesmo que legalmente pudesse ser apreciado, que já se fez prova que não, a sentença ainda seria nula por falta de notificação às partes;
21. A Exequente/Recorrente não teve oportunidade de se pronunciar sobre o requerimento do executado, numa instância extinta, quando de facto, os executados foram integrados no PERSI.
22. No dia 19/12/2013, 03/10/2014, 12/02/2015, 11/05/2015 e 03/08/2015, a Exequente remeteu missivas aos executados para comunicação de integração PERSI, referente aos contratos em incumprimento, conforme prova supra.
23. Tal procedimento de extinção do PERSI foi extinto, designadamente no dia 01/01/2014, 21/08/2014, 26/11/2014, 02/04/2015, 26/06/2015, por regularização e;
24. No dia 03/11/2015, o procedimento PERSI extingiu-se definitivamente por força do art. 17.º 1 c) e os executados entraram em incumprimento definitivo, dando origem a instauração da presente instância;
25. Os executados foram integrados no PERSI, e a sentença do tribunal a quo, para além de ter sido proferida numa instância já extinta, está errada porque não corresponde aos factos existentes no processo;
26. O tribunal a quo com a prolação de tal sentença infringe os artigos 195.º, ex vi, artigo 187º e 188.º CPC, o n.º 2 do artigo 7.º CPC, o n.º 2 do artigo 220.º CPC, o n.º 3. do artigo 3.º CPC e principalmente, infringe o n.º 4 do artigo 794.º, e alínea e) do art. 277.º CPC e artigo 281.º n.º 1 e 5 do CPC, por proferir decisão numa acção extinta por deserção, estando legalmente impedido de se pronunciar.
27. Requer-se desde já, aos doutos Venerandos Desembargadores que determinem a anulação da sentença, com consequente desentranhamento do requerimento dos executados de 30/07/2024, porque a extinção da instância torna ineficazes os actos realizados e os praticados posteriores serão inexistentes».
Não foram apresentadas contra-alegações.
II.
É uma única a questão jurídica a decidir, a da possibilidade/admissibilidade do conhecimento/ verificação da excepção dilatória inominada insanável, da omissão de cumprimento pela instituição bancária credora da obrigação de inclusão dos executados num PERSI nos autos, a convocar a apreciação de três razões:
- o facto de a instância estar suspensa, não sendo admissível qualquer decisão;
- o facto de a instância estar deserta;
- o facto de não ter sido observado o contraditório quanto à exequente.
Com interesse, a mais dos factos que emergem do relatório supra, resulta dos termos desta execução, que: Com data de 08-03-2023, sob o Documento: ..., Referência interna do processo: ..., o Ex.mo Agente da execução juntou aos autos, sob a referência citius 14265972, um documento de SUSTAÇÃO DE BEM IMÓVEL - ART.º794.º DO CPC, nº 1, do seguinte teor: CC, agente de execução designado nos autos supra referenciados, vem comunicar a V. Exa. que, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º1 do artigo 794. º do Código de Processo Civil, foi sustada a presente execução no PROCESSO DE EXECUÇÃO N.º1383/21.4T8OVR, que corre termos Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro- Ovar- Juízo Execução, quanto ao prédio urbano, sito na Rua ..., ..., antigo Lote Nº..., composto de moradia unifamiliar de 2 pisos destinada a habitação com logradouro, com a área total de 590m2, inscrito na matriz predial sob o artigo ... da freguesia ..., concelho de Ovar e descrito na Conservatória do Registo Predial de Ovar sob o número .../..., em virtude de sobre a mesma incidir penhora anterior. Destes factos dei conhecimento ao(à) ilustre mandatário(a) do exequente.
Vejamos.
Com a reforma do Código de Processo Civil, operada pela Lei 41/2013, de 26 de Junho, foram introduzidas normas que determinam a extinção da execução, de entre outras, a que decorre da sustação integral – artigo 794º – remetendo o exequente para a reclamação de créditos no processo da penhora registada anteriormente, sem prejuízo do regresso de melhor fortuna, a execução poder ser renovada – n.º 5 do artigo 850º.
A sustação integral ocorre sempre que, relativamente aos bens indicados para penhora e após constatação no registo, haver inscrição anterior de penhora desses mesmos bens
e serem desconhecidos (ou inexistirem) bens que em alternativa possam ser indicados à penhora e, desse modo, a execução possa prosseguir quanto a estes – al. e), do n.º 1 do artigo 849º – facto que deixa o exequente na situação decorrente do disposto no n.º 1 do artigo 281º, o qual, conjugado com o disposto na al. c) do artigo 277º, determina a deserção da instância.
Verificados os pressupostos antes referidos, nos termos do n.º 3 do artigo 849º, está o Agente de Execução obrigado a comunicar a extinção da execução ao Tribunal, por via eletrónica, assegurando o sistema informático o arquivo eletrónico do processo.
Em tese geral, com a extinção da instância terminam todos os efeitos processuais e substantivos da pendência da acção. Isto significa, além do mais, que a extinção torna ineficazes os actos realizados, e os praticados posteriores serão inexistentes, porque proferidos em processo já morto. Com a extinção da instância cessa o direito subjectivo processual do demandante contra o demandado.
Perspectivada a implicação pelo caso julgado, da decisão que julgou extinta a instância, pela regra do
ne bis in idem
não é possível sobre a mesma questão uma nova acção (por maioria de razão, os actos processuais com ela conexos), constituindo fundamento do caso julgado a consumpção do direito de acção, ou seja, a decisão contida na sentença exclui totalmente qualquer nova resolução sobre a mesma relação jurídica, tornando impossível o exercício posterior do mesmo direito, em virtude da extinção da possibilidade de praticar o acto. Ou seja, o caso julgado da decisão que julga extinta a instância acarreta a preclusão pro judicato, que é a extinção do poder do juiz relativamente à prática de actos posteriores.
Ponto seria que a sustação da execução o fosse total
[1]
. E, como resulta até do requerimento pela exequente mesma nos autos, de 22.08.2024, assim não sucede (não se compreendendo de resto a sustentação de uma posição no recurso e de outra distinta nos autos!)
Na verdade, como resulta da comunicação aos autos pelo agente da execução, caracterizada uma suspensão ou sustação parcial desta, a qual não determina a sua extinção.
Nessa parte, pois, não assiste razão à apelante, nada obstando à tramitação e prosseguimento da instância executiva, ressalvadas as diligências tendentes à venda do bem imóvel penhorado, quanto à qual, efectivamente, sustada a execução.
No processo de execução, considera-se deserta a instância, independentemente de qualquer decisão judicial, quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses. Assim, diferentemente da ação declarativa, na ação executiva a deserção é automática.
Com o instituto da deserção da instância visa o legislador sancionar as partes pela inércia/inação em promoverem o andamento do processo, o qual se pretende que, tanto quanto possível, seja célere, por forma a garantir/obter a composição do litígio em tempo razoável.
Como decorre do texto do art. 281º/5 do CPC, são pressupostos (cumulativos) para que a deserção da instância executiva possa ser declarada: a) Que o processo se encontre parado, a aguardar impulso processual das partes, há mais de 6 (seis) meses; b) E que essa paragem do processo, por falta de impulso processual, se fique a dever à negligência das partes.
A falta de impulso processual pressupõe, desde logo, que as partes (ou alguma delas) não praticaram, durante aquele período de tempo, acto (processual) que condicionava ou do qual dependia o andamento do processo, isto é, na acepção de que sem ele o processo não poderia prosseguir os seus ulteriores trâmites legais.
Por sua vez, a negligência pressupõe um juízo subjectivo de censura/culpa, no sentido de responsabilizar as partes (ou alguma delas), devido à sua incúria/imprevidência, pelo não andamento do processo.
O efeito extintivo da concreta instância em desenvolvimento – não do direito à acção – permite que se tome a deserção por uma forma de caducidade (art. 298.º, n.º 2, do CC). De algum modo, por efeito do decurso do tempo, caduca o direito do demandante de manter constituída a concreta instância e de promover os termos do processo em que se desenvolve. O direito de acção não é afetado pela decisão, assim como não o é, diretamente, o direito substantivo exercido. Sobre o tema, cfr. José Alberto dos Reis, Comentário ao CPC, pp. 445 a 449.
A verificação mesma da deserção da instância é um acto da competência do agente de execução posto que a este compete efetuar todas as diligências do processo executivo que não estejam atribuídas à secretaria ou sejam da competência do juiz (art. 719º, nº 1) e a lei não atribui competência para proferir tal decisão nem à secretaria (art. 719º, nºs 3 e 4), nem ao juiz (art. 723º).
De todo o modo, ocorrendo a situação jurídica descrita– paragem do processo imputável à parte–, a extinção da instância é um efeito do tempo sobre a relação jurídica processual. A relevância que o tempo assume leva a que, no âmbito desta relação, possamos concluir que a deserção é um facto jurídico involuntário. A vontade das partes, como causa remota (da paragem processual), pode não ser totalmente alheia à ocorrência da deserção, podendo, em retrospetiva, admitir-se que, na generalidade dos casos, ela terá estado na origem da inércia que determinou a deserção da instância. Mas a vontade não é, neste contexto, um elemento relevante da conduta omissiva. Não é necessário que fique demonstrado que a parte teve vontade de permanecer inerte, para que a deserção possa ser julgada; a lei não exige que a omissão seja comandada pela vontade da parte. Muito menos tutela aqui o efeito desejado pela parte (para a sua conduta omissiva). A instância não se extingue porque essa é a vontade das partes; a instância extingue-se por deserção, independentemente da vontade das partes (a ter existido).
Sobre o conceito de “negligência”, veja-se Jacinto Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, nota de rodapé 4, p. 53.
O prazo de deserção da instância fixa-se agora em seis meses e um dia, prazo este que não se suspende durante as férias judiciais (art. 138.º, n.º 1). O prazo conta-se do dia (dies a quo) em que a parte tomou conhecimento do estado do processo (ou que tenha tido obrigação de dele conhecer) que implica a paragem deste e torna necessário o seu impulso, não sendo exigido pela lei, para que o prazo se inicie, que o juiz o declare expressamente ou que o demandante seja notificado do seu início (com a receção dessa notificação).
A suspensão da instância outrossim não obsta ao decurso do prazo de deserção. Da teleologia das normas contidas no n.º 1 do art. 281.º e n.º 2 do art. 275.º deve retirar-se que não existe uma relação entre elas, não operando articuladamente. O prazo de deserção corre inelutavelmente, reconhecendo como único fenómeno processual apto a afetá-lo a prática do ato que impulsiona os autos.
Apenas a suspensão por acordo das partes (art. 272.º, n.º 4) deverá provocar a suspensão do prazo de deserção.
Também temos para nós que, após a ocorrência da deserção e antes de ser ela judicialmente reconhecida, os actos processuais espontaneamente praticados pelas partes são desprovidos do seu efeito jurídico processual típico. Neste sentido, Paulo Ramos de Faria, O JULGAMENTO DA DESERÇÃO DA INSTÂNCIA DECLARATIVA, BREVE ROTEIRO JURISPRUDENCIAL, JULGAR
on line
– 2015.
Tais actos não são idóneos a impedir o julgamento de deserção da instância
[2]
/
[3]
.
De todo o modo, embora a deserção da instância (na ação executiva) não necessite de ser declarada por despacho judicial, não prescinde de uma apreciação prévia sobre a verificação dos seus pressupostos e que serão a negligência do exequente em promover o respetivo andamento.
Ora, não dependendo,
em regra
, a marcha do processo executivo do impulso do exequente, só se poderá falar em inércia do exequente para promover os respetivos termos
se for expressamente notificado, por parte do agente de execução ou por determinação do tribunal, de que o processo ficará a aguardar a sua resposta ou impulso.
Assim é que, desde logo, cabe ao agente da execução mesmo, a averiguação de outros bens penhoráveis, nos termos e para os efeitos do art. 749º do CPC, sendo que inexistente nos autos a notificação a que alude o art. 750º do mesmo Código.
Aqui se convoca, de resto, o recentíssimo
Acórdão do STJ n.º 2/2025
, AUJ,
Diário da República n.º 40/2025, Série I de 2025-02-26
, nos termos do qual: I - A decisão judicial que declara a deserção da instância nos termos do artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Civil pressupõe a inércia no impulso processual, com a paragem dos autos por mais de seis meses consecutivos,
exclusivamente imputável à parte
a quem compete esse ónus, não se integrando o acto em falta no âmbito dos poderes/deveres oficiosos do tribunal. II - Quando o juiz decida julgar deserta a instância haverá lugar ao cumprimento do contraditório, nos termos do artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, com inerente audiência prévia da parte, a menos que fosse, ou devesse ser, seguramente do seu conhecimento, por força do regime jurídico aplicável
ou de adequada notificação, que o processo aguardaria o impulso processual que lhe competia sob a cominação prevista no artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Civil
.
Nos autos não se vislumbra, pois, que a instância aguardasse
apenas
o impulso processual pela exequente, sem prejuízo já de alguma inércia desta. Ausente ademais a cominação na notificação realizada à exequente.
Não se tem, pelo exposto, por caracterizada a extinção da instância por deserção.
Afronte-se, finalmente, a questão da violação do princípio do contraditório.
Desde logo, escamoteia a Recorrente a circunstância de ter sido notificada do requerimento dos executados que foi apreciado pela decisão recorrida, na pessoa da sua Ilustre Mandatária, como dos autos consta, pelo mandatário da contraparte.
Às notificações de requerimentos em processo de execução são aplicáveis, em princípio, as disposições gerais do Código de Processo Civil que definem o regime das notificações nos processos pendentes, em conformidade com o disposto no artigo 551º, nº 1, do CPC. Como referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre
[4]
, «
do atributo da generalidade resulta a sua aplicação automática a qualquer forma de processo (incluindo o próprio processo comum!
[5]
), na medida em que para ela não seja estabelecido um regime especial
».
O regime que resulta das normas gerais do CPC é, por seu turno, o que foi enunciado pelo Acórdão da Relação de Guimarães de 02.06.2022 (relatora Anizabel Sousa Pereira), proferido no processo 374/20.7T8PTB-B.G1, acessível em
www.dgsi.pt
: «
no atual sistema de notificações eletrónicas, não há que fazer qualquer distinção entre notificações da secretaria e notificações entre os mandatários, nos processos em que há advogado constituído, pois todos os atos processuais escritos das partes devem ser notificados entre os advogados por via eletrónica (salvo justo impedimento (art. 144º, nº 8)
». Tal acórdão, na parte relevante, foi assim sumariado: «
1-As partes são notificadas dos atos praticados em juízo (arts. 3º e 219º, nº2 do CPC), em regra na pessoa do respetivo mandatário (art. 247º, nº1, do CPC).
Conforme preceitua o nº 2 do artigo 219º do CPC, a notificação serve para, em todos os casos que não importem a citação, chamar alguém a juízo ou dar conhecimento de um facto. Por sua vez, o nº 2 do artigo 220º do CPC, respeitante às notificações oficiosas da secretaria, estabelece que «cumpre ainda à secretaria notificar oficiosamente as partes quando, por virtude de disposição legal, possam responder a requerimentos, oferecer provas ou, de um modo geral, exercer algum direito processual que não dependa de prazo a fixar pelo juiz nem de prévia citação». Porém, como advertem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre
[6]
, ficam «
ressalvadas as notificações entre mandatários
». Igualmente Teixeira de Sousa
[7]
refere que «[d]
a actuação oficiosa da secretaria estão excluídas as notificações que, nos termos do art. 221.º, n.º 1, devam ser realizadas pelos mj
[mandatários judiciais]».
Na parte, pois, em que o artigo 221º, nº 1, determine a notificação entre mandatários, fica excluída a possibilidade de se operar a notificação mediante atuação oficiosa da secretaria. Daí que tudo dependa de o acto processual praticado por escrito estar ou não abrangido pela imposição legal de o mandatário do apresentante o notificar ao mandatário judicial da contraparte.
O artigo 221º, nº 1, do CPC, que trata das notificações entre os mandatários das partes, dispõe: «
Nos processos em que as partes tenham constituído mandatário judicial, os atos processuais que devam ser praticados por escrito pelas partes
após a notificação da contestação do réu ao autor
são notificados pelo mandatário judicial do apresentante ao mandatário judicial da contraparte através do sistema de informação de suporte à atividade dos tribunais, nos termos previstos no artigo 255.º
». A referência ao artigo 255º releva para esclarecer que as notificações entre mandatários das partes são efetuadas eletronicamente, nos termos definidos, em concreto, no artigo 26º da Portaria nº 280/13, de 26 de agosto.
Assim, todos os actos praticados por escrito pelas partes, “após a notificação da contestação do réu ao autor”, obedecem à apontada regra da notificação entre mandatários.
E é nesta sede que cabe atentar à natureza do requerimento sob apreciação e ao efeito processual que o M.mo Juiz “retirou” da falta de pronúncia pela exequente, ora apelante, quanto à excepção aduzida no requerimento…
A decisão recorrida não deixa de anotar que a sede e momento próprios para uma tal arguição o seria a oposição por embargos, muito embora caracterizando e cremos que bem a admissibilidade do conhecimento da excepção a todo o tempo.
De todo o modo,
materialmente qualificável o requerimento em apreço como uma “oposição” ao requerimento executivo
[8]
, assemelhando-se a uma verdadeira e própria petição de embargos.
E se não se vislumbra razão substancial para ser aplicável à notificação o regime das notificações oficiosas pela secretaria, uma vez que são efetuadas eletronicamente e com as mesmas garantias as notificações por esta ou por mandatário,
na situação decidenda temos para nós que a determinação da notificação (pela secretaria) o teria de ter sido pelo Sr. Juiz, nos termos e para os efeitos do artigo 3º do CPC e mediante a advertência de consequências para a falta de resposta e de junção de prova bastante.
Assim quando se considere que o juízo mesmo de possibilidade (atento o estado da causa), admissibilidade e tempestividade (atento o concreto fundamento convocado) do requerimento apreciado carecia de uma apreciação/decisão prévia
, feita constar de resto no introito da decisão recorrida, como já aludido.
A imposição às partes de cominações e preclusões, sem prejuízo de um princípio de auto responsabilidade destas na gestão do processo, como aliás constitui princípio geral em todo o processo civil, pressupõe que as objecções, impugnações ou reclamações tenham de ser deduzidas, salvo superveniência, na fase procedimental em que está previsto o exercício do direito de contestação ou oposição.
Sendo-o subsequentemente, como aconteceu com o requerimento em que os executados vêm suscitar a excepção de não inclusão em PERSI, não obstante não terem deduzido oportunamente embargos, cabe ao tribunal não apenas apreciar da oportunidade e possibilidade desse conhecimento, como possibilitar à contraparte uma pronúncia ou contraditório efectivo, mediante o convite a juntar prova do cumprimento da condição de exequibilidade e sob a cominação respectiva no caso do silêncio.
Não temos, pois, por bastante a notificação oficiosa entre mandatários, como se de um “mero requerimento” se tratasse, quando em causa uma verdadeira e própria oposição, sem as “formalidades” respectivas…
O princípio do contraditório é hoje entendido um direito de participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo litígio, mediante a possibilidade de influírem em todos os elementos que se encontrem em ligação com o objecto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão.
Estatui o artº. 3º, do Cód. de Processo Civil, prevendo acerca da
necessidade do pedido e da contradição
, que:
“1 - O tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a ação pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição.
2 - Só nos casos excecionais previstos na lei se podem tomar providências contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida.
3 - O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
4 - Às exceções deduzidas no último articulado admissível pode a parte contrária responder na audiência prévia ou, não havendo lugar a ela, no início da audiência final”
.
O desiderato ou escopo principal de tal princípio “deixou assim de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à atuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito de incidir ativamente no desenvolvimento e no êxito do processo”
[9]
. E, concretizando a operacionalidade de tal princípio no
plano das questões de direito
, acrescenta ser exigível que, “antes da sentença, às partes seja facultada a discussão efectiva de
todos os fundamentos
de direito em que a decisão se baseie”. Acrescenta que a “proibição da chamada
decisão-surpresa
tem sobretudo interesse para as questões, de direito material ou de direito processual,
de que o tribunal pode conhecer oficiosamente
: se nenhuma das partes as tiver suscitado, com concessão à parte contrária do direito de resposta, o juiz – ou o relator do tribunal de recurso – que nelas entenda dever basear a decisão, seja mediante o conhecimento do mérito da causa, seja no plano meramente processual, deve previamente convidar ambas as partes a sobre elas tomarem posição, só estando dispensado de o fazer em casos de
manifesta desnecessidade
(art. 3-3)”.
Subjaz, deste modo, ao princípio do contraditório a ideia “de que repugnam ao nosso sistema processual civil decisões tomadas à revelia de algum dos interessados, regra que apenas sofre desvios quando outros interesses se sobreponham”.
Temos para nós, pois, que o Tribunal recorrido omitiu
a prática de um acto ou formalidade legalmente imposta, tradutora do cumprimento do vinculativo princípio do contraditório, não assegurando à exequente uma activa participação nas equacionadas questões, a da possibilidade/admissibilidade do conhecimento da excepção após o decurso do prazo para embargar e a da prova do cumprimento da integração no PERSI, tendo-se por imprestável a notificação oficiosa entre mandatários para este efeito.
Pois, impunha-se ao Tribunal
a quo
, que, perfilhando o entendimento feito consignar,
previamente a tal conhecimento suscitasse perante a exequente aquela questão decidenda, a da admissibilidade de conhecimento a todo o tempo da excepção, instando-a a uma pronúncia efectiva quanto aos termos da “oposição”, sob a cominação então da admissão dos factos respectivos, de forma a conceder-lhe ampla e efectiva possibilidade de discutir, contestar, valorar e ajuizar sobre a “oposição”, disfarçada de requerimento
.
É que não se tem por caracterizada também uma situação como aquela considerada no Acórdão do TR de Lisboa de 20.06.2024, processo 31078/22.5T8LSB.L1-6, acessível na base de dados da dgsi, precisamente por não se prefigurar uma questão relativamente à qual exigível, no quadro jurídico-processual suscetível de ser aplicado à causa, que a parte contasse com a respetiva apreciação.
Na verdade, pese embora a admissibilidade de conhecimento oficioso da questão, na situação decidenda o conhecimento é-o a impulso ou requerimento de uma parte.
Cabe agora qualificar o vício que se entende afectar a decisão recorrida, para determinar das consequências respectivas.
Na jurisprudência e também na doutrina, o não cumprimento do princípio do contraditório tem-se havido como comportamento tradutor dos seguintes vícios
[10]
:
- a prática de nulidade secundária, por omissão de acto ou formalidade legalmente prescritos, inscrita no artº. 195º, do Cód. de Processo Civil;
- causa de nulidade da sentença decorrente de excesso de pronúncia (apreciação de questão que, naquele contexto, o Tribunal não poderia tomar conhecimento), com legal enquadramento na 2ª parte, da alínea d), do nº. 1, do artº. 615º, do Cód. de Processo Civil;
- a prática de nulidade extraformal, geneticamente derivada das garantias constitucionais, como omissão ou vício de natureza material ou substantiva.
Tratando-se de uma situação que não é regulada por norma especial, deverá reger-se no quadro da regra geral do n.º 1 do artigo 195.º do CPC, na parte em que dispõe que a omissão de uma formalidade que a lei prescreve produz nulidade quando a irregularidade cometida possa influir na decisão da questão. Neste caso, a eventual
nulidade da decisão decorre de um efeito consequencial, obtido por via do n.º 2 do art. 195.º do CPC, e não da subsunção às causas autónomas de nulidade das decisões previstas no art. 615.º do mesmo diploma.
Não sufragamos também o entendimento de que o meio processual único para a arguição da nulidade (processual) decorrente do indeferimento ou recusa, como violação legal, do princípio do contraditório, seja a reclamação perante o tribunal que proferiu a decisão, no prazo de dez dias (arts. 149.º e 199.º, n.º 1, do CPC), podendo ser interposto recurso da decisão que incida sobre a mesma reclamação. Caso em que, sempre a nulidade processual arguida apenas nas alegações de recurso se deveria considerar sanada, por não respeitar a vício da decisão recorrida e na medida em que não se reporta ao indeferimento de uma reclamação oportunamente apresentada. Nessa tese, a nulidade processual decorrente da preterição do inquisitório convocada pela recorrente deveria ter sido objecto de reclamação, no prazo de dez dias a contar da decisão, perante o tribunal recorrido, nos termos da segunda parte do art. 196.º e arts. 197.º, n.º 1 e 199.º, n.º 1, todos do CPC, uma vez que não se coloca a hipótese prevista no n.º 3 da última disposição. Não tendo sido deduzida tempestivamente tal reclamação perante o tribunal
a quo
, sempre se verificaria o efeito preclusivo de perda da faculdade de exercício.
A exemplo do que sugerem Paulo Ramos de Faria e Nuno de Lemos Jorge, em
As outras nulidades da sentença cível
, Julgar Online, setembro de 2024, p. 1 a 79
[11]
, a p. 48, a propósito justamente desta situação, que vem a ser a da violação de norma legal expressa sem a estatuição da consequência respectiva, a saber, a inobservância da regra da contraditoriedade, parece-nos que
a prevalência da apelação como meio impugnatório explica que a violação do art. 3º do CPC não caia inevitavelmente nas malhas do regime de arguição previsto no art. 195.º e seguintes,
quando o recurso é admissível
.
Desta decisão caberá recurso (normal) por error in judicando no julgamento pressuponente (a decisão de decidir sem a realização necessária do contraditório que se impunha).
Relativamente às consequências extraíveis do reconhecimento de tal nulidade, temos defendido a posição de que,
prima facie
, tal determinaria, na presente fase, a mais da anulação da decisão recorrida, decisão a determinar
a intervenção e pronúncia da parte, nos termos e para os efeitos do prescrito no nº. 3, do artº. 3º, do Cód. de Processo Civil, fixando prazo em conformidade
.
Contudo, a exequente, no enformar do objecto recursório, em sede de alegações,
já emitiu pronúncia acerca da matéria apreciada na decisão a anular
, ou seja, já enunciou os fundamentos argumentativos tradutores da sua posição relativamente à questão decidenda, não se justificando a emissão de comando determinante da concessão de nova pronúncia.
Assim é que,
in casu
, em sede de alegações, a apelante apresentou efectiva e completa pronúncia sobre as questões. O que evidencia, com concludência, estarmos, no que à Recorrente invocante concerne, perante uma densificada alegação acerca das questões tratadas na decisão apelada,
assim se podendo concluir por uma efectiva pronúncia por parte da Exequente, determinando que, deste modo
,
o exercício do aludido contraditório já se mostra assegurado através das alegações apresentadas
,
não se justificando a emissão de comando determinante da concessão de nova pronúncia
.
Juízo que, contudo, não se afigura extensível aos Recorridos executados,
ainda quando não tenham apresentado contra-alegações
, mormente na medida em que a questão mesma da inclusão no PERSI não se constituía directamente como objecto do recurso, com o que nada se conclui ou infere da falta de apresentação de contra-alegações.
Tem-se, pois, por cabível a determinação nos autos de execução aos executados/requerentes da extinção da instância que, em 10 dias, venham aos autos tomar posição quanto aos factos aduzidos pela exequente em sede de alegações de recurso de inclusão daqueles em PERSI quanto à obrigação exequenda, decidindo-se, após, em conformidade com as posições e prova constantes dos autos.
III.
Concedendo-se provimento ao recurso, anula-se a decisão recorrida e determina-se sejam os executados/requerentes da extinção da instância por verificação de excepção dilatória para, em 10 dias, virem aos autos tomar posição quanto aos factos aduzidos pela exequente em sede de alegações de recurso relativamente à respectiva inclusão em PERSI quanto à obrigação exequenda, decidindo-se, após, em conformidade com as posições e prova constantes dos autos.
Custas pelos recorridos.
Notifique.
Porto, 06 de Março de 2025
Isabel Peixoto Pereira
António Carneiro da Silva
António Paulo Vasconcelos
________________
[1] Ainda que o fosse, sempre a apresentação de um requerimento nos autos teria de ser sujeita a apreciação, não cabendo, obviamente, à secção/secretaria decidir dos requerimentos que são ou não susceptíveis de apreciação ou conhecimento no decurso de uma suspensão da instância.
[2] “A ideia de que o demandante ainda pode praticar um ato redentor após a deserção, mas antes de ela ser declarada, assim impedindo o seu conhecimento, tem cabimento num sistema que, ao contrário do que ocorre com o nosso, tenha um fundamento subjetivo, apoiando-se na renúncia presumida à lide (vontade de abandono)– presunção esta que é serodiamente ilidida com o referido ato. Era outro o entendimento de ALBERTO DOS REIS, à luz do art. 296.º do Código de Processo Civil de 1939, defendendo que o ato útil praticado após o decurso do prazo de deserção impede que esta venha a ser declarada pelo tribunal– cfr. JOSÉ ALBERTO DOS REIS, Comentário, cit. (nota de rodapé 3), p. 439 e segs..
Defendia, ainda, que as partes não podem impulsionar os autos depois de o processo ser concluso ao juiz, após o decurso do prazo de deserção, sustentando a sua posição, todavia, num argumento assente em circunstâncias burocráticas e contingentes, não transponível para o moderno processo civil. Defendia o autor do projeto do Código de 1939 que, “depois desse momento [as partes] perderam a oportunidade de dar impulso ao processo, visto o juiz não ser obrigado a abrir mão dos autos para colocar as partes em condições de promover o seguimento da instância”– ibidem, p. 444.”, a citação é de Paulo Ramos de Faria, loc. cit.
[3] Impondo-se, pois, a verificação da deserção, verificados os pressupostos e, extinta a instância, por força da regra do esgotamento do poder jurisdicional (art. 613/1 do CPC), a ineficácia da decisão subsequente à deserção (mesmo que verificada posteriormente).
[4] Código de Processo Civil, vol. 2º, 3ª edição, Almedina, pág. 475.
[5] E o executivo, acrescento nosso.
[6] Código de Processo Civil, vol. 1º, 4ª edição, Almedina, pág. 435.
[7] CPC Online, edição digital, em anotação ao artigo 220º do CPC.
[8] Essa, de resto, a natureza substancial da petição inicial da oposição por embargos que constituiria o modo próprio de arguição da excepção convocada pelos executados nos autos. Recorde-se, conforme anota José Lebre de Freitas, A Ação Executiva, à luz do Código de Processo Civil de 2013, 6ª ed., Almedina, pág 193, que os embargos de executado constituem uma contra-acção, de natureza declarativa a correr por apenso ao processo de execução, mediante o qual o executado/embargante visa “visa a extinção da execução, mediante o reconhecimento da actual inexistência do crédito exequendo ou da falta de um pressupostos, específico ou geral, da execução.”
[9] Lebre de Freitas, CPC anotado.
[10] Cfr., a título meramente exemplificativo, a jurisprudência citada no Acórdão da Relação de Lisboa citado em último lugar.
[11] Bem assim, como antecede, quanto à natureza do vício.
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TRP
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https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/18ef3650f4f7f81480258c52003dfdd9?OpenDocument
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1,759,536,000,000
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IMPROCEDENTE
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5016/22.3T8ALM-A.L1-2
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5016/22.3T8ALM-A.L1-2
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JOÃO PAULO RAPOSO
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I. Sendo enviadas por um contratante uma interpelação admonitória e uma comunicação resolutiva para o domicílio indicado no contrato, a declaração produz o seu efeito mesmo que não seja recebida pelo declaratário, a menos que este tivesse demonstrado que o não recebimento não se deveu a culpa sua;
II. A mera comprovação de uma desconformidade marginal entre a morada constante das missivas e a morada contratual não afasta tal imputação de culpa do declaratário no desconhecimento das comunicações enviadas, especialmente perante uma consignação de menção pelo distribuidor postal que não assinale qualquer dificuldade de localização do local de entrega dessa correspondência;
III. Tal conclusão sai reforçada numa situação em que o declarante, excedendo o referido no contrato, envie ainda cópias da sua declaração para os domicílios do declaratário constantes de portal de informação pública na internet e do lugar do imóvel objeto do contrato;
IV. Sendo válida e eficaz a comunicação resolutiva, o contrato deixa de vigorar na data de entrega da carta ao declaratário, independentemente do conhecimento efetivo do seu teor;
V. Não se afigura manifestamente excessiva a cláusula penal inserida em contrato de locação financeira imobiliária que estabeleça, além da restituição do bem, a obrigação de pagar uma sobretaxa de juro equivalente a 20% sobre as obrigações vencidas;
VI. O regime de usura previsto no art.º 1146.º do Código Civil, que se alarga a todos os contratos de crédito por via do disposto no art.º 559.º-A, não se aplica a contratos de crédito bancário.
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[
"LOCAÇÃO FINANCEIRA",
"INTERPELAÇÃO ADMONITÓRIA",
"RESOLUÇÃO",
"CLÁUSULA PENAL",
"USURA"
] |
Decisão:
I. Caracterização do recurso:
I.I. Elementos objetivos:
- Apelação – 1 (uma), nos autos de embargos de executado;
- Tribunal recorrido – Juízo de Execução de Almada – J1;
- Processo em que foi proferida a decisão recorrida – embargos de executado;
- Decisão recorrida – Despacho saneador-sentença.
--
I.II. Elementos subjetivos:
- Recorrente (embargante-executada): - Sustentâncora – Construção e Reparação Naval, Lda.;
- Recorrida (exequente): - Caixa Geral de Depósitos, S. A. --
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I.III. Síntese dos autos:
- Instaurou a exequente execução apresentando como título uma livrança preenchida pelo valor de €278.686,57 (duzentos e setenta e oito mil seiscentos e oitenta e seis euros e cinquenta e sete cêntimos);
- Embargou a executada, concluindo com um pedido de extinção integral da execução;
- Sustenta-o, em síntese, dizendo:
- A execução instaurada assenta em livrança;
- A livrança dada à execução foi entregue em branco, sem incluir valor a pagar ou data de vencimento;
- Foi emitida e entregue como colateral, ou em garantia, de contrato de locação financeira imobiliária celebrado entre exequente e executada;
- Nos termos de tal contrato, a exequente deveria ter interpelado a executada, comunicando-lhe a existência de uma dívida, o respetivo valor e solicitando respetivo pagamento;
- Não o tendo feito, a obrigação é inexigível, o que retira exequibilidade à livrança dada à execução;
- Os valores liquidados e inscritos na livrança pela exequente são usurários;
- Assentam em cláusula penal, cujo valor é manifestamente excessivo. –
- Admitidos os embargos, foi a exequente-embargada notificada para contestar, o que fez, concluindo pela improcedência total dos embargos deduzidos.
- Em síntese, sustenta que a executada incumpriu o contrato causal, tendo o título cambiário sido preenchido e apresentado a pagamento nos termos contratados.
- Na sequência, foi apresentado pela embargante, em 5/12/2022, requerimento (ref. Citius 34379023) solicitando extinção da execução.
- Diz em tal requerimento, em síntese, que foi instaurado pela exequente, contra si, procedimento cautelar para entrega do bem locado, com base no mesmo contrato, procedimento declarado totalmente improcedente;
- Tal improcedência decorreu da circunstância de terem sido enviadas missivas para resolução contratual para morada diversa da constante do contrato ou da correta sede da ali requerida;
- Juntou cópia de sentença do Juízo Local Cível do Seixal, datada de 25/10/2022, que declarou improcedente procedimento cautelar de entrega;
- Posteriormente, por requerimento de 13/2/2023 (ref. Citius 35049755) juntou a embargante cópia de acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 26/1/2023, que confirmou a referida sentença;
- Na sequência da junção destes requerimentos, foi proferido despacho com o seguinte teor:
REFª: 44062731
REFª: 44703918
Nos termos do artº 732º, nº 2 do NCPC, não é admissível a apresentação de articulados de resposta à contestação.
Embora seja admissível que a parte se pronuncie sobre documentos apresentados, essa sua posição não é considerada para os temas de prova assentes e controvertidos.
Do mesmo modo, em tudo o que exceda a resposta ou impugnação desses documentos, a exposição ter-se-á por não escrita, por violar frontalmente o expressamente disposto no supra mencionado preceito legal.
No caso presente a Embargante excede completamente a possível resposta aos documentos, vindo alegar matéria de facto e de direito o que não lhe é legalmente permitido.
A pronúncia sobre o documento deve circunscrever-se a impugnar o mesmo, arguir eventualmente a falsidade do mesmo ou explicar que não pode provar o que a contra-parte pretende com ele ver provado.
Assim sendo, e porque não é possível “desentranhar os requerimentos” da Embargante, uma vez que o processo é electrónico (virtual) determino que os supra referidos requerimentos sejam tidos como não escritos.
- Desta decisão não foi interposto recurso;
- Seguidamente foi elaborado despacho consignando entendimento sobre a possibilidade de dispensa de audiência prévia e de prolação de decisão final sem realização de diligências de prova, a que apenas a exequente respondeu, reiterando o teor do seu articulado;
- Após, foi proferido despacho saneador-sentença, cujo dispositivo tem o seguinte teor:
Pelo exposto, julgo os presentes embargos improcedentes por não provados, e consequentemente determino o prosseguimento da execução nos precisos termos em que foi instaurada.
- Não se conformando, apresentou a embargante a presente apelação.
--
II. Objeto do recurso:
II.I. Conclusões apresentadas pela recorrente nas suas alegações (sem atualização de grafia e assinalando a negrito as questões suscitadas):
1. O presente recurso vem interposto da decisão que considerou os embargos improcedentes por não provados em consequentemente determinou o prosseguimento da execução nos precisos termos em que foi instaurada.
2. Entende a recorrente que o Tribunal, com o devido respeito, andou mal,
decidiu contra a lei em vigor e desrespeitou o caso julgado que já havia quanto à questão principal dos embargos
–
a falta de interpelação admonitória necessária para que o contrato que deu azo à execução se considere definitivamente incumprido e possa ser aplicada cláusula penal que daquele decorre
.
3. Os presentes embargos deram entrada em juízo em 11 de outubro de 2022 na sequência da citação da recorrente da execução contra si intentada pela recorrida.
4. Veja-se que partindo do pressuposto que o contrato de locação que vincula as partes estava definitivamente incumprido a exequente/recorrida intentou, não só
5.
a execução que deu azo aos presentes embargos, mas também providencia cautelar de entrega judicial de bem
.
6.
Procedimento esse que correu sob o n.º 16999/22.3T8LSB no juiz ...do juízo local cível do Seixal, comarca de Lisboa a que a recorrente deduziu oposição e onde foi decidido
:
7. “
Neste sentido, e por não se poder considerar que a interpelação admonitória foi eficaz – já que não chegou ao conhecimento do destinatário nem por ele foi recebida, e esta circunstância não decorreu da sua culpa exclusiva – não poderia a requerente resolver o contrato de locação financeira, porque não havia ainda, por parte da requerida, um incumprimento definitivo do contrato
, mas sim uma “simples” mora no cumprimento. Sendo a mora no cumprimento insuficiente para conceder à parte o direito potestativo de resolver o contrato, a resolução levada a cabo pela requerente em Dezembro de 2021 é ineficaz (já que soçobram os elementos constitutivos para a produção dos seus efeitos) e, como tal, não teve o condão de extinguir o contrato e as obrigações que emergem de tal extinção, nomeadamente a restituição do imóvel à requerente.
8. Nestes termos e face ao exposto, e considerando que os factos indiciariamente provados não permitem, juridicamente, concluir pela existência do direito a acautelar, improcede a providência cautelar requerida.”
9. Como se apura esta decisão transitada em julgado, faz caso julgado em relação à interpelação da recorrente/executada sobre a resolução do contrato.
10. A recorrente, na pendência deste processo de embargos, juntou aos autos a sentença em causa, através de requerimento ao processo, em 05 de dezembro de 2022, pouco depois de deduzidos os embargos, tendo o requerimento ficado registado sob o n.º 34370923 no citius.
11. No entanto, apesar de as partes e os factos serem os mesmos,
o tribunal considerou que a sentença junta aos autos deveria ser tida como “não escrita”
, tendo até condenado a embargante em custas do incidente anómalo.
12. E como se vê, dispensando audiência prévia, audiência de discussão e julgamento, decidiu, contrariando caso julgado quanto à parte da matéria alegada no requerimento de embargos.
13. O documento que serve de base a esta execução é uma livrança, assinada em branco pelos executados, tendo sido este o instrumento a que a exequente atribuiu a natureza de título executivo.
14. Tal como se alegou e foi decido no processo 16999/22.3T8LSB que correu termos no juiz ... do juízo local do seixal , comarca de lisboa, cuja sentença, transitada em julgado, se encontra junta aos autos,
olvidou a exequente/embargada/recorrida que teria de ter cumprido o clausulado do contrato em causa (referido no seu requerimento de execução) nomeadamente a norma 16ª e condições aí impostas para que o crédito se pudesse considerar vencido.
15. O contrato que está garantido pela livrança preenchida pela exequente e que se encontra junto aos autos é um contrato complexo e só da análise deste contrato, podemos chegar ao montante que efetivamente possa estar em divida, devidamente vencido e logo, exigível.
16.
Para chegar ao montante em divida teria a exequente de ter interpelado a executada ao montante em divida, dar-lhe o prazo de trinta (30) dias a contar da data da comunicação escrita para pagar os valores em atraso, conforme o n.º 3 da cláusula 16ª do contrato em vigor entre as partes estipula.
17. E, findo este prazo, se a executada não liquidasse os valores em atraso, então estaria o crédito devidamente vencido e logo exigível.
18. São as cartas de interpelação que a embargante nunca recebeu e que o tribunal, apesar de já existir caso julgado em sentido contrário, entende que foi por culpa da embargante que não foram rececionadas.
19. A executada nunca foi notificada, nos termos e para os efeitos da clausula 16ª do contrato de locação financeira cuja livrança em branco era a garantia do seu pagamento.
20.
As cartas enviadas à recorrente, veja -se a matéria dada como provada no ponto 21, 22 e 23 dos factos assente, nenhuma delas é endereçada à morada que a exequente/recorrida tem conhecimento de ser a da executada/recorrente.
21. Mas, por mais estranho que seja, para
intentar o procedimento executivo a recorrida sabe indicar a morada correcta da executada/recorrente: ...Amora (estaleiro ...) ...Amora, onde esta foi citada.
22.
Para a interpelação da resolução do contrato a recorrida não acerta uma única vez com a morada da recorrente:
23. Envia uma das cartas para ...Loures..., que foi devolvida com a indicação “mudou-se”
24. Envia uma carta para ...Amora e uma outra para ...Amora.
25. Em nenhuma das moradas a embargada acerta com a morada da embargante – morada onde sita o imóvel alvo do contrato e para onde aquela já tinha anteriormente enviado correspondência.
26. E,
foi nesse sentido que se decidiu no processo n.º 16999/22.3T8LSB, no acórdão na 6ª secção do tribunal da relação de lisboa, transitado em julgado, que confirmou a sentença da primeira instância que a recorrente juntou aos autos e que o tribunal decidiu que se deveria considerar como não escrita nos autos.
27. Com o devido respeito, uma sentença que decide matéria que está ser discutida num Processo, que decide em determinado sentido e que junta aos autos, onde essa mesma questão é discutida,
o tribunal decide não a ter em conta, configura, salvo o devido respeito, atento o disposto no, omissão de pronuncia, atento o disposto artigo 611º do Código Processo Civil
.
28. Ao ignorar a sentença que decidiu quanto ao facto da interpelação admonitória da executada/Embargada/Recorrente o tribunal deixou de se pronuncia sobre uma questão sobre a qual se deveria de ter pronunciado, nos termos da al. d) do n.º 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil
.
29. A simples menção nos autos de que haveria caso julga do em relação a uma parte substancial da matéria em causa nos presentes embargos levaria a que o tribunal, obrigatoriamente e até oficiosamente, carreasse tal decisão para os autos.
30. Pelo que, não tendo o tribunal de primeira instância tido em consideração a decisão, junta aos autos, que decide em sentido contrário ao agora decidido, em decisão já transitada em julgado, deverá este douto tribunal ter tal decisão em consideração.
31. A recorrente não teve conhecimento da resolução do contrato, não recebeu a interpelação admonitória com a indicação do pagamento das rendas em atraso e que sem o seu pagamento se consideraria o contrato resolvido.
32. É certo que a executada/embargante deixou de cumprir pontualmente o pagamento da prestação mensal a que estava obrigada e tal colocou-a em mora, tão simplesmente em mora, uma vez que a rescisão do contrato não operou.
33. A exequente/Embargada não cumpriu o acordo de preenchimento da livrança e por isso mesmo a quantia não é exigível, pois a divida não está vencida, mormente não está vencida a indemnização, a clausula penal no valor de 228.943,37€.
34.
Não estando a divida vencida o título dado à execução é inexistente, uma vez que a alegada divida não se encontra vencida, nem liquidada, pelo que deverá ser suspensa a execução e canceladas as penhoras sobre o embargante, sem prestação de caução.
35. Como decorre do n.º 3 da clausula 16º do contrato celebrado entre as partes deveria a exequente ter tomado mão do expediente de interpelar a executada a pagar as quantias em atraso no prazo dos trinta (30) dias indicados nessa mesma clausula.
36. Ora, não ocorreu esta notificação do n.º 3 do artigo 16º do contrato , pelo que não foi dada oportunidade à executada de pagar as quantias em atraso e assim sendo a resolução não pode operar, a divida não está vencida e não existe liquidação da quantia exequenda, o que torna o título dado à execução como inexistente.
37. Ao não respeitar o normativo do contrato, há um desrespeito do acordo de preenchimento da livrança, tornando o seu preenchimento abusivo.
38. Mais,
em 26 de janeiro de 2022 é feito um pagamento de 52.000€ e solicitado o extrato de conta para acertar os valores em atraso, conforme documentos juntos aos autos e apesar, de nem a própria embargada contestar tal pagamento ou o impugnar, o tribunal, erradamente, considerou que não está provado que esse pagamento fosse para cumprimento do presente contrato.
39. Além de que a cláusula penal identificada na al, c) da cláusula 16ª do contrato terá de ser considerada como abusiva.
40. Como é sobejamente defendido nos tribunais, a cláusula penal prevista no artigo 810º do n.º 1 do Código Civil, num conceito amplo engloba dentro si clausulas penais indemnizatórias e clausulas penais compulsórias: nas primeiras (clausulas penais indemnizatórias) que é o caso dos autos, o acordo das partes tem por exclusiva finalidade liquidar a indemnização devida em caso de incumprimento definitivo, de mora ou de incumprimento defeituoso.
41. Também é certo que
à luz do artigo 812º do Código Civil, a clausula penal pode ser reduzida pelo tribunal
, segundo critérios de equidade, uma vez que sendo uma norma inspirada em razões de ordem moral e social, prevalece sobre as convenções privadas.
42. A finalidade da norma do contrato é sancionar a parte pelo não cumprimento, isso é pelo não pagamento de rendas em atraso, e já tem uma sanção pelo não pagamento que são juros de mora, calculados segundo o artigo 13º do contrato em causa, “à taxa do contrato, acrescida da sobretaxa legal máxima”.
43.
A acrescer mais 20% teremos, eventualmente, uma taxa superior a 30% de juros a vencerem-se sobre o capital em divida, no caso de haver
44. incumprimento, o que é manifestamente excessivo, exagerada e desproporcional às finalidades que presidem ao conteúdo do direito que se propõe realizar – sancionar o devedor pelo pagamento tardio ou pelo não pagamento.
45. Devendo seriamente o tribunal ponderar,
tendo em conta os juízos de equidade, a redução desta cláusula penal
se não a sua anulação, pois caímos no conceito de juros usurários se a exequente poder cobrar juros desta monta sobre alguma quantia que possa estar em divida.
46. E, não se diga que a parte sabia o que estava a assinar e conscientemente aceitou tal valor de clausula penal, uma vez que a posição preponderante das instituições bancárias sobre os necessitados de crédito, não seixa margem para negociar qualquer clausula do contrato, muito menos o valor de uma clausula.
47. É do senso comum que os clientes de crédito das instituições bancárias, vulgo bancos, não tem qualquer poder negocial perante aquelas e perante as cláusulas de um contrato de crédito, seja de leasing ou outro.
48. O Artigo 1146.º do Código Civil, sob a epigrafe de Usura, define muito bem o conceito, que não é nem mais, os juros cobrados em soma com esta clausula penal de 20% de indemnização, sobre todas as outras quantias alegadamente em dívida, são efetivamente usurários e por isso deve esta clausula penal ser reduzida ou anulada, tendo em conta o pagamento dos juros pela taxa e sobretaxa máxima.
49. De quanto se diz, evidente se torna que falta ou, melhor, que inexiste título executivo à presente acção razão pela qual devem todos os executados ser absolvidos da instância executiva nos termos do preceituado no do C.P.C.
50. Decidiu o tribunal sem mais considerar que a recorrente não recebeu a notificação admonitória por sua culpa, ignorando até uma decisão já transitada me julgado sobre a mesma questão.
51. Com o devido respeito é notório que o tribunal andou mal quando, sem audiência prévia e sem audiência de discussão e julgamento, tendo conhecimento de sentença que decidiu parte da matéria em causa nos autos, não tem em conta na sua decisão, toda a matéria e documentos carreados para os autos.
52. Com o devido respeito, andou mal o tribunal, quando decidiu, com ligeireza, em sentido contrário ao que já foi decidido sobre a mesma questão, bastando-lhe para tal dizer que tal sentença junta aos autos não pode ser tida em consideração, Cfr. Cópia do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa transitado em julgado, que se junta nestas alegações de recurso.
53. Tal como foi decidido no acórdão em referência: “a requerida ( aqui nos presentes autos executada/embargante/recorrente) provou que não recebeu as cartas por ausência de culpa sua. A resposta tem-se por afirmativa. Desde logo, impõe-se consignar que a morada da recorrida sempre surge como incompleta por referência a morada da sede da recorrida, à data do contrato, o que pode ter originada a menção pelos correios de “desconhecido” a morada não é Rua Camara de Lobo, 30 A, Loures mas sim Rua Camara de Lobos 30A, Mealhada, Loures. A única carta que a recorrente enviou a interpelar para o pagamento foi uma carta que foi anexa à carta que constitui doc.4. e cujo a/r veio devolvido com a menção de “desconhecido”. Nenhuma outra carta foi enviada para o efeito. Neste contexto, temos para nós que a recorrida não teve qualquer culpa no não recebimento da interpelação. Em nada para ela contribuiu. Em face da devolução com o “desconhecido” deveria a recorrente ter diligenciado por nova notificação, desde logo para a morada completa. Feita assim a prova do não recebimento estamos perante uma situação de ausência de culpa por banda da recorrida. Ora, não tendo a recorrente dado cumprimento à interpelação contratualmente prevista não lhe assiste o direito de resolver o contrato. “
54. Com o devido respeito, o tribunal apesar de ter levado mais de dois anos a proferir sentença nos presentes embargos, prescindindo de audiência previa e de audiência de julgamento, preferiu o caminho mais fácil – indeferir tudo e manter na integra o requerimento executivo, apesar de serem flagrantes os seus erros e omissões.
--
A autora, notificada, contra-alegou pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
--
II. Questões a apreciar:
- Da invocada omissão de pronúncia (por preterição de caso julgado, face ao decidido em procedimento cautelar);
- Da exigibilidade do título, por efetiva resolução do contrato causal do título cambiário, na sequência de interpelação admonitória (com inerente apreciação dos efeitos de não recebimento das missivas enviadas pela exequente recorrida);
- Da licitude da cláusula penal computada na obrigação liquidada, da avaliação da sua proporcionalidade e da sua redução equitativa solicitada subsidiariamente.
--
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. –
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II.III. Apreciação do recurso:
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Matéria de facto dada por assente nos autos (sem atualização de grafia):
Encontram-se provados, por acordo das partes, face ao alegado no requerimento executivo e articulados de embargos, e por documentos (juntos aos autos e à execução principal, que não foram impugnados nem arguidos de falsidade) os seguintes factos:
1. No exercício da sua actividade comercial, a Embargada celebrou com a Embargante o Contrato de Locação Financeira Imobiliária n.º ...542, composto de “Condições Particulares” e de “Condições Gerais”, junto aos autos com a contestação como doc. 1.
2. O Contrato de Locação Financeira Imobiliária n.º ...542, foi celebrado a 07 de Abril de 2015, pelo prazo de 360 meses, estando a Embargante obrigada ao pagamento de 360 rendas mensais, no valor de € 2.702,35 (dois mil, setecentos e dois euros e trinta e cinco euros).
3. Nos termos do Contrato de Locação Financeira Imobiliária n.º ...542 (n.º 1 das” Condições Particulares”) a Embargada veio a dar de locação financeira à Embargante um prédio urbano situado em ...Amora, freguesia de ...Amora, concelho de Seixal, descrito na Conservatória do Registo Predial de ...Amora sob a ficha número ...6...07, da freguesia de ...Amora, e inscrito na matriz predial sob o artigo ....
4. Consta da Cláusula 11ª do Contrato, sob a epígrafe “Garantias”, o seguinte: “11.1 Livrança em branco subscrita pelo locatário e avalizada por terceiro(s). Avalistas: AA, BB, CC, DD, EE, FF”.
5. Consta da Cláusula 4ª das Condições Gerais do Contrato, sob a epígrafe “Outros encargos”, o seguinte: “1. Para além das rendas convencionadas, serão da responsabilidade do Locatário todos os encargos e despesas, nomeadamente impostos, emolumentos, taxas, licenças, multas, coimas e condomínio, que recaiam sobre o imóvel locado, por motivo da sua aquisição, registo, utilização e locação financeira. 2. Serão, igualmente, da responsabilidade do Locatário as despesas administrativas e comissões relativas à contratação e gestão do contrato, bem como todos os encargos, qualquer que seja a sua natureza, decorrentes das referidas contratação e gestão e constantes do preçário em vigor, disponível na página electrónica www.clf.pt. (…)”.
6. Consta da Cláusula 8ª das Condições Gerais do Contrato, sob a epígrafe “Seguros a contratar”, o seguinte: “1. O Locatário obriga-se a efectuar e a manter em vigor, no decurso da vigência do contrato e/ou enquanto detiver o imóvel, os seguros com as coberturas e pelos montantes estabelecidos nas Condições Particulares. (…) 3. Se o Locatário não liquidar os prémios das apólices subscritas, o Locador poderá fazê-lo directamente, debitando ao Locatário os respectivos custos. (…)”.
7. Consta da Cláusula 13ª das Condições Gerais do Contrato, sob a epígrafe “Juros de mora”, o seguinte: “Em caso de não pagamento pontual das rendas, do valor residual ou de quaisquer outras quantias devidas pelo Locatário no âmbito do presente contrato, serão devidos por este juros de mora, desde a data do vencimento até à data do efectivo pagamento, calculados à taxa do contrato acrescida da sobretaxa legal máxima, sem prejuízo do exercício dos demais direitos atribuídos ao Locador”.
8. Consta da Cláusula 15ª das Condições Gerais do Contrato, sob a epígrafe “Capitalização”, o seguinte: “O Locador terá a faculdade de, a todo o tempo, capitalizar juros remuneratórios correspondentes a um período não inferior a três meses e juros moratórios correspondentes a um período não inferior a um ano, adicionando tais juros ao capital em dívida e passando aqueles a seguir todo o regime deste”.
9. Consta da Cláusula 16ª das Condições Gerais do Contrato, sob a epígrafe “Resolução”, o seguinte:
“1. O contrato poderá ser resolvido por qualquer das partes, nos termos gerais de direito, com fundamento no incumprimento de qualquer das obrigações contratuais da outra parte.
2. O Locador poderá resolver o presente contrato, em caso de procedência de qualquer embargo administrativo ou judicial, ou se se verificarem os pressupostos de insolvência, falência, recuperação de empresa, dissolução ou liquidação do Locatário, ou contra ele correr execução ou providência cautelar em que esteja ou possa estar em causa o imóvel locado.
3. O contrato será resolvido por iniciativa do Locador, se, decorrido o prazo de 30 dias a contar da data da comunicação escrita enviada ao Locatário, este não cumprir as obrigações em falta.
4. Em caso de resolução, o Locador tem o direito de exigir do Locatário:
a) A desocupação e a restituição do imóvel no prazo de 15 dias após recepção da carta de resolução;
b) O pagamento das rendas e outros débitos vencidos e não pagos, acrescidos dos juros de mora e outros encargos vencidos até à data da restituição do imóvel;
c) O pagamento de uma indemnização, a título de cláusula penal, igual a 20% a soma das rendas vincendas com o valor residual, acrescida de juros de mora contados a partir da data referida na alínea a).
5. O atraso na restituição do imóvel implica o pagamento de uma indemnização calculada nos termos previstos no nº 6 da cláusula 10ª destas Condições Gerais”.
10. Consta da Cláusula 18ª das Condições Gerais do Contrato, sob a epígrafe “Capital em dívida”, o seguinte: “Para efeitos do presente contrato, entende-se por capital em dívida o somatório das rendas vincenda e do valor residual actualizados à taxa do contrato.”
11. Consta da Cláusula 19ª das Condições Gerais do Contrato, sob a epígrafe “Garantias”, o seguinte: “O Locatário garantirá o cumprimento das obrigações por si assumidas no presente contrato nos termos constantes das Condições Particulares”.
12. Consta da Cláusula 20ª das Condições Gerais do Contrato, sob a epígrafe “Notificações”, o seguinte: “No âmbito do presente contrato, as notificações ou comunicações entre o Locador e o Locatário serão feitas para as moradas constantes deste contrato, devendo qualquer alteração ser comunicada por carta registada com aviso de recepção nos 30 dias subsequentes à respectiva ocorrência.”
13. Consta da Cláusula 8ª das Condições Particulares do Contrato, sob a epígrafe “Taxa do Contrato”, o seguinte: “Euribor Semestral na Base 365 dias, apurada em função da média aritmética simples das cotações diárias do mês anterior ao período de contagem de juros, arredondada para a milésima do ponto percentual mais próxima, acrescida de um spread de 1.0000 pontos percentuais. Se o contrato entrasse em vigor nesta data a taxa seria 1,0980%, a que corresponde uma Taxa Anual Efectiva de 1,1000 %, determinada com base na fórmula constante do Anexo 2 ao Dec.-Lei 220/94. A taxa de juro do contrato será determinada na data da entrada em vigor do presente contrato.”
14. Consta da Cláusula 9ª das Condições Particulares do Contrato, sob a epígrafe “Indexante e Critério de Indexação”, o seguinte: “As rendas são indexadas à Euribor Semestral na Base 365 dias, apurada em função da média aritmética simples das cotações diárias do mês anterior ao período de contagem de juros”.
15. No contrato de locação financeira imobiliária nº ...542 a ora Embargante “Sustentâncora – Construção e Reparação Naval, Lda.” indicou como morada contratual a ...Loures
16. Com data de 14 de Agosto de 2013, a “Sustentâncora – Construção e Reparação Naval, Lda.”, com sede em ... Loures e os demais executados (avalistas) subscreveram uma comunicação dirigida à “Caixa leasing e factoring” onde se refere o seguinte: “Sustentâncora – Construção e Reparação Naval, Lda. (…) subscritor da livrança que junto se envia, e GG (…), FF (…), BB (….), DD (…), AA (…), CC (…), EE (…), avalistas dessa mesma livrança, Dão o seu consentimento expresso para que a mesma seja preenchida em caso de mora ou incumprimento de todas e quaisquer obrigações assumidas no contrato de locação financeira nº ...542, convosco celebrado. Tal livrança será pagável à vista e poderá ser preenchida e apresentada a pagamento logo que se verifique uma das situações referidas. V. Exas. ficam expressamente autorizados a preencher como entenderem a referida livrança quanto à data da sua emissão, ao local de pagamento e à quantia a pagar, desde que esta não exceda o total dos valores em dívida no contrato acima referido, acrescido dos encargos inerentes ao seu preenchimento e apresentação a pagamento. O cumprimento de todas as obrigações que resultem do contrato de locação financeira nº ...542 para o subscritor e os avalistas determina a cessação do referido contrato, sendo a livrança entregue para garantia do mesmo destruída pelo Locador, acto para o qual os signatários dão o seu consentimento expresso. (…)”, seguindo-se o carimbo da “Sustentâncora, Lda.” A Gerência” e as assinaturas manuscritas dos legais representantes desta e as assinaturas manuscritas dos avalistas, feitas pelos respectivos punhos.
17. Tendo a locatária deixado de pagar as prestações devidas, com data de 23 de Setembro de 2021, a CGD enviou à “Sustentâncora – Construção e Reparação Naval, Lda.”, para a morada da R. ...Loures, uma carta registada com aviso de recepção com a Referência “DAP /MC/...542/34045277”, onde indicava o Contrato nº ...542, e onde se referia o seguinte: “O contrato em assunto regista, nesta data, diversos débitos em atraso, cujo montante ascende a 37.170,46 €, aos quais acrescem juros de mora, à taxa contratualmente prevista, que serão debitados após integral pagamento do montante reclamado. Vimos, por esta via interpelar V. Exas. para o pagamento da referida quantia no prazo máximo de 30 dias a contar desta data, a fim de evitar a resolução do contrato, a obrigação de restituição do imóvel locado livre de pessoas e bens e o recurso às vias judiciais. O pagamento deve ser efectuado por cheque a enviar directamente para os n/serviços, ou por crédito na n/ conta com o IBAN (…).”
18. Com data de 23 de Setembro de 2021, a CGD enviou à “Sustentâncora – Const. E Rep Naval, Lda.”, para a morada da ... ...Amora (morada da sede que consta no portal MJ), uma carta registada com aviso de recepção com a referência “DAP/MC/...542/2001, Com o assunto “Contrato de Locação Financeira nº ...542”, onde referia o seguinte: “(…) Para vosso conhecimento, juntamos cópia da carta com a refª ...542/2021, enviada para a morada R. ...Loures, comunicando a intenção de rescisão do contrato. (…)”.
19. A Embargante nunca enviou qualquer carta registada à CGD a informar a alteração da sua morada.
20. Nenhuma das cartas referidas nos pontos 16. e 17. foi recepcionada, tendo uma sido devolvida com indicação de morada desconhecida e a outra com indicação de objecto não reclamado.
21. Com data de 03 de Dezembro de 2021, a CGD enviou à “Sustentâncora – Construção e Reparação Naval, Lda.”, para a morada da R. ...Loures, uma carta registada com aviso de recepção com a Referência “DAP-N/MC/...542/34045277”, onde indicava o Contrato nº ...542, e onde se referia o seguinte: “(…) Na sequência da n/carta anterior e por falta de regularização dos débitos na mesma indicados, vimos pela presente informar que consideramos o contrato em assunto definitivamente incumprido. Em consequência da resolução do referido contrato, encontram-se V. Exas. obrigados: a) Ao pagamento dos valores vencidos em dívida, no montante de 24.860,00€, b) Ao pagamento de uma cláusula penal, no montante de 228.943,37€, c) Ao pagamento de juros de mora, que, nesta data, ascendem a 332,52 € e cujo valor será actualizado à data do integral pagamento da dívida, d) À imediata restituição do imóvel locado, livre de pessoas e bens, no prazo de 15 dias após a recepção desta carta. (…) O não cumprimento das referidas obrigações implicará a imediata utilização de garantias que nos tenham sido prestadas e/ou o recurso às vias judiciais. (…).”, tendo esta carta sido devolvida com a indicação “Mudou-se”.
22. Com data de 3 de Dezembro de 2021, a CGD enviou à “Sustentâncora – Const. E Rep Naval, Lda.”, para a morada de ...Amora uma carta registada com aviso de recepção com a referência “DAP/MC/...542, Com o assunto “Contrato de Locação Financeira nº ...542”, onde referia o seguinte: “(…) Para vosso conhecimento, juntamos cópia da carta com a refª ...542/2021, enviada para a morada R. ...Loures comunicando a rescisão do contrato. (…)”, tendo esta carta sido devolvida com a indicação “Não reclamado”.
23. Com data de 3 de Dezembro de 2021, a CGD enviou à “Sustentâncora – Const. E Rep Naval, Lda.”, para a morada da ... Amora (morada da sede que consta no portal MJ), uma carta registada com aviso de recepção com a referência “DAP/MC/...542, Com o assunto “Contrato de Locação Financeira nº ...542”, onde referia o seguinte: “(…) Para vosso conhecimento, juntamos cópia da carta com a Refª^...542/2021, enviada para a morada R. ...Loures, comunicando a rescisão do contrato. (…)”, tendo esta carta sido devolvida com a indicação “Não reclamado”.
24. Foi dada à execução a livrança nº ...321, com local e data de emissão em Lisboa a 19.01.2022, no valor de € 278.686,57, com vencimento à vista, de onde consta a expressão manuscrita “contrato de locação financeira nº ...542” subscrita pela “Sustentâncora, Lda.” e avalizada pelos demais executados, que apuseram no verso da livrança as suas assinaturas, antecedidas da expressão “bom por aval à firma subscritora”.
25. Em 26 de Janeiro de 2022 foi feita uma transferência de € 52.000,00 para a conta titulada pela Caixa Leasing e Factoring, por lançamento a débito de uma conta sedeada no Crédito Agrícola e titulada por “Nobreplanalto, Lda”.
26. A execução deu entrada em juízo em 01.07.2022.
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III. Apreciação do recurso:
Invocada preterição de caso julgado e omissão de pronúncia:
É indisputado nos autos que as partes celebraram contrato de locação financeira imobiliária, tendo a executada entregue, como garantia, uma livrança em branco, avalizada por terceiros, sendo este documento, preenchido, o título executivo que funda a execução de que os embargos são dependência.
A recorrente aceita expressamente que se encontrava em mora relativamente às rendas emergentes do contrato causal, recusando, todavia, que tal mora se tenha convertido em incumprimento definitivo, por falta da devida (contratual e legalmente) interpelação admonitória.
Por essa circunstância, dir-se-ia (ainda que a recorrente não o tenha precisado desta forma) que, sendo a relação entre subscritor e beneficiário da livrança de tipo cambiário imediato, ser-lhe-ia lícito opor os meios de defesa pessoais (causais) que dispunha contra o portador e, por consequência, a inexigibilidade da dívida substantiva traduziria também uma inexigibilidade da obrigação cambiária e, portanto, uma inexequibilidade do título apresentado.
Este argumento de base traduz-se, ou desenvolve-se, em dois fundamentos recursórios autonomizáveis, que cumpre apreciar.
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O primeiro desses fundamentos pode ser sintetizado na invocação de caso julgado da decisão de procedimento cautelar de entrega do imóvel objeto do contrato de locação.
Sustenta a recorrente que, com base nas mesmas comunicações tratadas nestes autos, foi decidido nesse procedimento que as interpelações admonitória e resolutiva, assumidamente não recebidas, não o foram sem culpa da destinatária, aqui embargante, por terem sido enviadas para domicílio errado.
O invocado erro na indicação do domicílio da locatária teria determinado improcedência do procedimento de entrega, decisão proferida em 1.ª instância e confirmada em recurso por esta Relação.
A análise desta questão impõe a sua subdivisão a vários níveis.
O primeiro deles é estritamente processual e relativo à não admissão do articulado de resposta à contestação e da sorte a atribuir ao documento que o acompanhou – cópia da sentença proferida no procedimento cautelar, avaliação que deve ser acompanhada da junção, em requerimento posterior (ainda anterior ao despacho saneador-sentença) de cópia do acórdão desta Relação que confirmou a decisão cautelar proferida.
Sustenta a recorrida, nas suas contra-alegações, que a recorrente não recorreu do despacho de não admissão do articulado, ficando precludido o direito de pôr em causa essa decisão.
Assiste-lhe razão, mas apenas prima facie.
De facto, nos termos conjugados do art.º 638.º n.º 1 e 644.º n.º 2 al. b) do CPC teria a parte o prazo de 15 dias para pôr em causa, por via de recurso, o despacho em causa, sendo que, na medida em que este não teria admitido um articulado, seria tramitado separadamente e com subida imediata.
Em termos simples, o despacho em causa tornou-se, efetivamente, definitivo no processo.
Todavia, o seu teor não é unívoco e presta-se a dúvidas interpretativas sobre o sentido e alcance da decisão que contém.
Ressalta-se, em primeiro lugar, que as referências citius nele contidas não têm correspondência nos requerimentos apresentados após articulados (ou, diga-se, em qualquer requerimento constante dos autos) e, nessa medida, contém, necessariamente, esse lapso de escrita.
Tal, todavia, não afasta a certeza sobre o objeto de pronúncia, que são os referidos requerimentos da embargante-executada, apresentados após a dedução de contestação, datados de 5/12/2022 e 13/2/2023.
Analisando o teor do despacho, é absolutamente claro que traduz uma determinação de rejeição de articulado, mas, quanto às cópias da sentença e do acórdão proferidos em sede cautelar, a interpretação do decidido presta-se a dúvidas.
Assim, se o dispositivo termina por um concludente que os requerimentos sejam tidos como não escritos, não deixa na sua fundamentação de afirmar que a embargante excede completamente a possível resposta aos documentos, vindo alegar matéria de facto e de direito, o que não lhe é legalmente permitido.
Por outro lado, o despacho é omisso quanto à admissibilidade de junção dos documentos apresentados, seja com o articulado declarado não escrito, seja com o requerimento posterior, que, nessa medida, por não terem sido expressamente rejeitados, devem considerar-se juntos aos autos.
Diga-se, a acrescer, que quanto a qualquer dos documentos (cópia da sentença e cópia do acórdão), sendo supervenientes face ao requerimento inicial de embargos, não tendo havido lugar a qualquer debate antes da prolação de decisão, teria que se admitir, no limite, até a sua apresentação com as alegações de recurso, nos termos do n.º 1 do art.º 651.º do CPC (as partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o art.º 425.º do CPC - documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância), situação que, no limite, sempre se deveria considerar verificada in casu.
Quer isto dizer, fechando esta primeira asserção, quer a sentença proferida no procedimento cautelar, quer o acórdão que a confirmou, devem considerar-se integrantes dos autos, sendo elementos a ponderar na decisão.
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Será que tal dá sustentação à invocada omissão de pronúncia, à luz do que dispõe o art.º 615.º n.º 1 al. d), como sustenta a recorrente?
Apesar de a decisão recorrida não referir expressamente tais decisões judiciais proferidas no procedimento de entrega, deve entender-se que inexiste alguma omissão de pronúncia.
A mm. Juíza a quo, a despeito do supra referido, analisou amplamente o fundamento de oposição que a mesma convoca – a existência de uma válida e eficaz interpelação admonitória e, consequentemente, de uma válida e eficaz resolução do contrato de locação financeira.
Essa é a matéria que à decisão competia conhecer, e foi conhecida (no sentido que as comunicações não foram recebidas por culpa da destinatária, aqui embargante, tendo a declaração respetiva produzido os respetivos efeitos jurídicos).
Neste ponto não se justificam considerações adicionais – a nulidade apontada não se verifica porque a questão do envio de comunicações resolutivas, sua validade e eficácia foi apreciada na sentença.
Questão diversa será a de saber se o decidido deve ou não ser mantido.
Essa é, todavia, já uma questão de mérito dos fundamentos de recurso e não de algum vício na decisão.
Para o sustentar, invoca a recorrente dois fundamentos, também eles autonomizáveis: - a existência de caso julgado face ao decidido em sede de procedimento cautelar e a própria verificação de uma eficaz comunicação resolutiva.–
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- Do caso julgado no procedimento cautelar:
Deve começar-se por referir que, a despeito de a questão ter sido expressamente suscitada em recurso, ainda que o não tivesse sido, sempre poderia ser conhecida, atenta a possibilidade de o fazer oficiosamente – veja-se, a propósito, o acórdão Supremo Tribunal de Justiça – STJ - de 4/7/2024 (
Paula Leal de Carvalho
, dgsi.pt -https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/e0429222b085f7aa80258b50005b0334?OpenDocument)
Se a questão de existência de julgado deve ser conhecida, a resposta a dar-lhe é divergente da solução propugnada pela recorrente.
Ressaltando a natureza perfunctória, preliminar e provisória da decisão cautelar, deve entender-se que não constitui caso julgado material na ação, seja aquela em que a questão seja definitivamente decidida ou outra.
Acolhe-se, a este propósito, a doutrina jurisprudencial, reafirmada pelos acórdãos STJ de 3/10/24 (
Nuno Ataíde das Neves)
e 12/7/2018 (
Gonçalves Rocha),
ambos em dgsi.pt -
https://www.dgsi.pt/JSTJ.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/1d5a143ab48258b080258bac005a3c86?OpenDocument
https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/1c9b7e48e003f675802582c8004d312d?OpenDocument
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Diz-se no primeiro destes que, uma decisão proferida em providência cautelar é, por natureza, provisória, assentando o seu julgamento na mera aparência do direito invocado pelo requerente, não se lhe podendo conceder carácter definitivo, este só alcançável na acção principal de que depende o procedimento cautelar (art. 364º do CPC), e indispensável a que se lhe possa reconhecer força de caso julgado material, para além do estrito âmbito do processo em que foi proferida.
Se a força de caso julgado material não se impõe e, portanto, não se pode considerar prejudicado o conhecimento da validade e eficácia das comunicações resolutivas, tal não significa, por outro lado, que o teor das decisões proferidas no procedimento cautelar não deva ser tomado em conta, como fator de análise.
As decisões proferidas são, assim, consideradas, como mais um dos elementos a considerar. –
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- As comunicações resolutivas do contrato causal:
Sem prejuízo do que antes ficou dito, o primeiro juízo a assentar refere-se à inexistência de qualquer impugnação à matéria de facto estabelecida na sentença recorrida.
O que se encontra assente nos autos é, portanto, o único fundamento da decisão.
É a seguinte a matéria fixada nos autos com relevo na apreciação desta questão:
- No exercício da sua actividade comercial, a Embargada celebrou com a Embargante o Contrato de Locação Financeira Imobiliária n.º ...542, composto de “Condições Particulares” e de “Condições Gerais”, junto aos autos com a contestação como doc. 1.
- Nos termos desse contrato a Embargada veio a dar de locação financeira à Embargante um prédio urbano situado em ...Amora, freguesia de ...Amora, concelho de Seixal, descrito na Conservatória do Registo Predial de ...Amora sob a ficha número ...6...07, da freguesia de ...Amora, e inscrito na matriz predial sob o artigo ...;
- Tendo a locatária deixado de pagar as prestações devidas, com data de 23 de Setembro de 2021, a CGD enviou à “Sustentâncora – Construção e Reparação Naval, Lda.”, para a morada da R. ...Loures, uma carta registada com aviso de recepção com a Referência “DAP /MC/...542/34045277”, onde indicava o Contrato nº ...542, e onde se referia o seguinte:
“O contrato em assunto regista, nesta data, diversos débitos em atraso, cujo montante ascende a 37.170,46 €, aos quais acrescem juros de mora, à taxa contratualmente prevista, que serão debitados após integral pagamento do montante reclamado. Vimos, por esta via interpelar V. Exas. para o pagamento da referida quantia no prazo máximo de 30 dias a contar desta data, a fim de evitar a resolução do contrato, a obrigação de restituição do imóvel locado livre de pessoas e bens e o recurso às vias judiciais. O pagamento deve ser efectuado por cheque a enviar directamente para os n/serviços, ou por crédito na n/ conta com o IBAN (…).”
- Com data de 23 de Setembro de 2021, a CGD enviou à “Sustentâncora – Const. E Rep Naval, Lda.”, para a morada da ... ...Amora (morada da sede que consta no portal MJ), uma carta registada com aviso de recepção com a referência “DAP/MC/...542/2001, Com o assunto “Contrato de Locação Financeira nº ...542”, onde referia o seguinte: “(…)
Para vosso conhecimento, juntamos cópia da carta com a refª ...542/2021, enviada para a morada R. ...Loures, comunicando a intenção de rescisão do contrato. (…)”.
- A Embargante nunca enviou qualquer carta registada à CGD a informar a alteração da sua morada.
- Nenhuma das cartas referidas foi recepcionada, tendo uma sido devolvida com indicação de morada desconhecida e a outra com indicação de objecto não reclamado.
- Com data de 03 de Dezembro de 2021, a CGD enviou à “Sustentâncora – Construção e Reparação Naval, Lda.”, para a morada da R. ...Loures, uma carta registada com aviso de recepção com a Referência “DAP-N/MC/...542/34045277”, onde indicava o Contrato nº ...542, e onde se referia o seguinte:
“(…) Na sequência da n/ carta anterior e por falta de regularização dos débitos na mesma indicados, vimos pela presente informar que consideramos o contrato em assunto definitivamente incumprido. Em consequência da resolução do referido contrato, encontram-se V. Exas. obrigados:
a) Ao pagamento dos valores vencidos em dívida, no montante de 24.860,00€,
b) Ao pagamento de uma cláusula penal, no montante de 228.943,37€,
c) Ao pagamento de juros de mora, que, nesta data, ascendem a 332,52 € e cujo valor será actualizado à data do integral pagamento da dívida,
d) À imediata restituição do imóvel locado, livre de pessoas e bens, no prazo de 15 dias após a recepção desta carta. (…)
O não cumprimento das referidas obrigações implicará a imediata utilização de garantias que nos tenham sido prestadas e/ou o recurso às vias judiciais. (…).”
- Esta carta foi devolvida com a indicação “Mudou-se”;
- Com data de 3 de Dezembro de 2021, a CGD enviou à “Sustentâncora – Const. E Rep Naval, Lda.”, para a morada de ...Amora uma carta registada com aviso de recepção com a referência “DAP/MC/...542, Com o assunto “Contrato de Locação Financeira nº ...542”, onde referia o seguinte:
“(…) Para vosso conhecimento, juntamos cópia da carta com a refª ...542/2021, enviada para a morada R. ...Loures comunicando a rescisão do contrato. (…)”;
- Esta carta foi devolvida com a indicação “Não reclamado”.
- Com data de 3 de Dezembro de 2021, a CGD enviou à “Sustentâncora – Const. E Rep Naval, Lda.”, para a morada da ... ...Amora (morada da sede que consta no portal MJ), uma carta registada com aviso de recepção com a referência “DAP/MC/...542, Com o assunto “Contrato de Locação Financeira nº ...542”, onde referia o seguinte:
“(…) Para vosso conhecimento, juntamos cópia da carta com a Ref.ª...542/2021, enviada para a morada R. ...Loures, comunicando a rescisão do contrato. (…)”,
- Esta carta foi devolvida com a indicação “Não reclamado”.
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Olhando diretamente para os termos do contrato de locação financeira dado por assente, deve ressaltar-se que a morada da executada-embargante deste constante é ...Loures.
Mais se verifica que o objeto do contrato é um bem imóvel, destinado a armazém, situado em ...Amora concelho do Seixal, descrito na CRP da Amora sob a ficha n.º ...6...07 da freguesia da ...Amora e inscrito na matriz predial sob o artigo ....
Com estes elementos contratuais, a exequente embargada dirigiu missivas à executada em dois momentos distintos: - em 23 de setembro de 2021, com o sentido de a interpelar a cumprimento, sob advertência de resolução, e em 3 de dezembro de 2021, com o sentido de declarar efetiva cessação contratual.
Em qualquer desses momentos, enviou várias cartas registadas com aviso de receção, nenhuma delas recebida pela locatária, aqui recorrente.
Na primeira ronda de cartas, enviou-as para as seguintes moradas (com indicação da subsequente sorte):
- R. ...Loures e R. ..., ...Amora, cartas devolvidas, do que se apurou, uma com menção de morada desconhecida e a outra com menção de objecto não reclamado.
Na segunda ronda de cartas, enviou-as para as seguintes moradas (e subsequente sorte):
- R. ...Loures (devolvida com a menção “mudou-se”); ...Amora (devolvida com a menção "Não reclamado”) e R. ... Amora, morada da sede que consta no portal da empresa no Ministério da Justiça (devolvida com a menção “Não reclamado”).
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Analisando estes elementos, não se pode afirmar, pelo contrário, que o locador não foi diligente no envio das comunicações constitutivas de interpelação admonitória e resolutiva.
Em primeiro lugar, elemento que só por si deve ser qualificado de decisivo, deve entender-se que as comunicações foram enviadas para a morada constante do contrato.
Existem pequenas discrepâncias entre o que consta deste documento e o que foi aposto nas missivas, sendo que a indicação da rua, número de porta e localidade apresenta correspondência (a imprecisão refere-se a omissão na indicação completa da localização "...Loures" e não apenas "Loures", bem como uma diferença na indicação do código postal).
Em segundo lugar, verifica-se que, relativamente a esta morada, a informação postal é de que a locatária se teria mudado e, portanto, o distribuidor postal teria identificado o destinatário e o local de entrega da correspondência, devendo-se o insucesso na mesma a essa alteração.
Esta asserção também faz sobrelevar a circunstância, apurada, de ausência de qualquer comunicação da locatária de mudança de domicílio.
Acresce que a locadora enviou comunicações para moradas não constantes do contrato: - a que consta de informação oficial do Ministério da Justiça e a do próprio imóvel objeto da locação, comunicações que, de acordo com o teor das informações consignadas pelo distribuidor postal, não apresentaram qualquer dificuldade de identificação do ponto de entrega e, portanto, não cumpriram a respetiva função devido ao que deve ser qualificado como uma omissão de diligência no recebimento por parte do destinatário –decorrente da menção aposta de "objeto não reclamado".
A conclusão que se tira, não deixando de compaginar estas ilações com os juízos formulados no procedimento cautelar em que os elementos foram apreciados, é a de que as declarações em causa não foram recebidas por culpa do destinatário, a aqui recorrente.
Neste circunstancialismo, valem as afirmações feitas em acórdão STJ de 16/12/2021 acerca da eficácia da declaração não recebida por ter entrado na esfera de disponibilidade do destinatário (
Ricardo Costa
– ecli.jurisprudência):
-
https://juris.stj.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2021:4679.19.1T8CBR.C.C1.S1.68?search=zIYC3ndY7WuC6ehkA90
)
A declaração negocial com um destinatário (receptícia ou recepienda) ganha eficácia (vinculatividade) se chegar à sua esfera de disponibilidade material ou de acção ou se chegar ao seu conhecimento, verificando-se logo na primeira circunstância que ocorrer com prioridade cronológica, uma vez que, chegada ao “local” de poder do declaratário-destinatário (caixa do correio postal, caixa de um dispositivo automático de recepção de chamadas telefónicas ou fax, caixa digital do correio electrónico) ou entregue a pessoa com competência para a recepção (representantes, trabalhadores, auxiliares, etc.), é irrelevante que não a venha a conhecer efectivamente, assim como é irrelevante que não chegue ao seu poder se a conheceu efectivamente em momento anterior (art. 224º, 1, 1ª parte, CCiv.).
Essa disponibilidade faz relevar que o critério legalmente relevante não é o de efetivo conhecimento da declaração, é o da sua cognoscibilidade, verificados que sejam critérios de diligência adequados a uma pessoa média.
Disse-se ilustrativamente, ainda nesse aresto, que a chegada à esfera de disponibilidade material ou de acção integra a cognoscibilidade (possibilidade ou susceptibilidade de conhecimento) da declaração pelo destinatário, independentemente do conhecimento efectivo, esfera essa aferida de acordo com as circunstâncias normais que envolvem o destinatário e correndo contra si os riscos que, de forma previsível e antecipada, impossibilitam (sibi imputet) que a cognoscibilidade se converta em conhecimento efectivo, desde que essa esfera esteja sob o controlo do destinatário.
O locatário terá mudado de local de sede, realizando tal alteração no portal público de informação, mas não o comunicando ao contratante, aqui exequente; como se terá abstido de proceder ao levantamento de correspondência registada depositada em local onde tem a sede atual, ou instalações, sendo-lhe imputável a inação, ou a omissão de diligência no recebimento das comunicações postais.
Sibi imputet a ausência de conhecimento efetivo da interpelação admonitória e da declaração resolutiva. Ao abrigo do disposto no art.º 224.º n.º 2 do CC, tais declarações devem considerar-se válidas e eficazes e, por consequência, mantida a resolução contratual efetuada e a licitude de preenchimento do título.
Por consequência, improcede o recurso interposto com este fundamento. –
--
- Do preenchimento do título – extensão da obrigação exequenda – cômputo de cláusula penal:
A este nível apresenta a recorrente dois argumentos iniciais que se apresentam manifestamente inconsistentes e um terceiro que deve merecer uma análise mais detida.
Assim, começa a recorrente que aludir a não ter sido considerado um pagamento de €52.000 efetuado, dizendo que o tribunal a quo mal teria andado ao não o dar por provado.
Na verdade, a embargante não invocou qualquer pagamento como fundamento de oposição e, nessa medida, tal facto não poderia ser autonomamente considerado.
É certo que em documento anexo ao requerimento inicial a embargante juntou comprovativo de transferência bancária que teria concretizado a favor da exequente, do valor em causa (€52.000).
Não o trata, todavia, como facto parcialmente extintivo da obrigação, ou sequer o alega, apresentando-o como mero argumento instrumental da estrutura a sua oposição – que a obrigação causal não estava definitivamente incumprida ou, dizendo de outro modo, que tal pagamento teria tido o efeito de fazer cessar a mora no pagamento de rendas que se verificava.
Nesta perspetiva, verifica-se que o pagamento efetuado foi realizado em data posterior ao da comunicação resolutiva (a data constante do comprovativo de transferência é 26 de janeiro de 2022, sendo a data de comunicação resolutiva 3 de dezembro de 2021, como antes referido).
Acresce que a data aposta na livrança (19 de janeiro de 2022) é também anterior à de pagamento e, ainda que a data de propositura da execução seja posterior (19 de julho desse ano de 2022), não computando qualquer abatimento face ao valor preenchido no título, a questão acima referida permanece incontornável – o pagamento não foi fundamento de oposição e, portanto, não é um facto objeto dos autos.
Acresce, em todo o caso, o outro elemento incontornável acima assinalado – o pagamento não foi invocado como facto extintivo (parcialmente extintivo) da obrigação, mas como facto impeditivo da validade ou eficácia da comunicação resolutiva.
No documento apresentado (e também não alegado) existe uma cópia de comunicação (aparentemente) mantida entre representante da embargante e da exequente que é bem demonstrativa desta (pretendida) função:
Da mesma consta: - "quarta-feira efetuaremos uma transferência de cerca de €52.000,00€ para a conta do contrato, que julgamos será mais que suficiente para pôr em dia o mesmo" (comunicação datada de 24/1/2022).
Quer isto dizer, por consequência, que, quer esta comunicação quer o aludido pagamento, terão sido efetuados já depois de ter cessado o contrato.
Assim sendo, este fundamento recursório não colhe, manifestamente.
Isso não invalida que, aparentemente, exista uma omissão de cômputo de tal pagamento na dívida inicialmente liquidada na execução.
Essa é, todavia, uma questão que não pode ser aqui apreciada, por não ser objeto de oposição ou recurso, havendo mecanismos, seja em sede executiva (ao nível de alteração da liquidação, por imputação de pagamento não anteriormente computado), seja em sede declarativa (no limite, com recurso ao instituto do enriquecimento sem causa) para tutelar a situação em apreço. –
--
Não colhendo este fundamento, não colhe igualmente, de forma evidente, a invocação de uma situação de usura.
Sustenta a embargante que o cômputo de juros contratuais, acrescida da sobretaxa contratual a acrescer mais 20% determinará eventualmente, uma taxa superior a 30% de juros a vencerem-se sobre o capital em divida, o que integraria o conceito de usura.
Na medida que a embargante solicita também excesso da cláusula penal computada, traduzindo esta um adicional computado tendo por referência os juros cobrados, ou, em termos simples, juros adicionais de 20%, deve entender-se que este argumento não goza de autonomia face a tal invocação.
Será, por isso, em sede de decisão relativa ao excesso da cláusula penal que a análise deve ser feita. –
--
Sustenta, portanto, a recorrente que a cláusula penal é excessiva.
É indisputada a natureza da clausula acionada, i.e., que se trata, no caso, de uma fixação consensual da indemnização devida pelo incumprimento contratual, vulgarmente designada por cláusula penal indemnizatória.
O conteúdo da cláusula estipula um acréscimo equivalente a 20% dos juros máximos devidos sobre o montante em dívida.
Para análise da proporcionalidade desta cláusula deve começar-se por considerar o tipo contratual em causa.
O nomen juris em português é, para este efeito, mais expressivo que a designação internacionalmente divulgada de leasing, que limita o conteúdo a figura ao quadro locatício.
A natureza financeira do contrato é estrutural.
Trata-se de um produto comercial desse tipo, traduzindo uma função primacial de instrumento oneroso contratado por instituição comercial cuja atividade é a concessão de crédito a particulares e empresas.
A sua dimensão locatícia é também conatural neste tipo, com esta referência se pretendendo relevar que implica também a cedência onerosa de gozo de um bem, que se mantém na esfera do proprietário locador até ao termo do contrato, com uma opção (hoc sensu) de aquisição pelo seu usuário, a final.
Esta referência esquemática permite pôr em relevo que, neste tipo contratual, a existência de juros convencionais traduz a retribuição natural pela cedência de capital e, por outro lado, ainda que o contrato tenha uma natureza essencial de instrumento financeiro e, portanto, a sua onerosidade esteja sobretudo ligada à retribuição de capital e não à cedência de gozo de um bem (a aquisição do bem é, neste contrato, instrumental da aplicação do capital pelo locador), não deixa de ser certo que, mantendo-se o objeto contratual na esfera jurídica da instituição financeira, traduzirá uma normal execução do contrato que a transferência de propriedade não se venha a concretizar, a final.
Quer isto dizer, em termos simples, que é algo de natural neste tipo contratual que o locatário suporte prestações de capital e juros e, a final, não venha a ser proprietário do bem locado.
A perda do capital e seus acréscimos e do próprio bem objeto do contrato não pode, assim, ser considerada uma situação contratualmente anómala.
Esta primeira asserção é relevante para começar a enquadrar a invocada desproporção da cláusula penal.
Em termos de factualidade assente, face à supra decidida subsistência da resolução contratual, a embargante ficará privada do bem objeto do contrato e, nos termos liquidados, estaria obrigada a suportar as prestações devidas até cessação do contrato, acrescida de sobretaxa contratual e de uma cláusula penal equivalente a 20% dos juros devidos.
Será esta indemnização estabelecida a forfait excessiva?
Várias considerações se impõem, avançando na análise.
Em primeiro lugar, esta natureza estabelecimento prévio da indemnização contratual é um elemento que depõe a favor da validade da pena contratual.
Disse-se sinteticamente em acórdão do STJ de 18/11/2007 (
Oliveira Rocha -
https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao/07b3572-2007-89280875
) que a redução da cláusula penal só deve efectuar-se em casos excepcionais, o que está de harmonia com o seu valor coercivo, bem como com o seu carácter “a forfait”, sendo que ela corresponde a um acordo firmado pelas partes, que, presumivelmente, não deixaram de ponderar as suas vantagens e os seus inconvenientes.
Num caso, como o dos autos, em que não está em causa a liberdade ou a vontade de qualquer dos contraentes, esta dimensão de autonomia privada não pode, pelo contrário, ser subvalorizada.
Não deixa, todavia, de dever ser igualmente assinalada a assimetria da posição dos contratantes, mesmo tratando-se de duas sociedades comerciais, entre uma instituição financeira e uma pequena ou média empresa do ramo das reparações navais.
A diferença na posição das partes e na sua capacidade negocial é algo que não pode também ser ignorado na decisão desta questão.
A matéria de ponderação da proporcionalidade de cláusulas penais insertas especificamente em contratos de locação financeira tem sido objeto de diverso tratamento jurisprudencial.
Mereceu já repetido acolhimento a posição que sustenta a desproporcionalidade de cláusulas indemnizatórias que imponham a obrigação de pagamento de rendas até final do contrato a acrescer à obrigação de restituição do bem locado.
Assim, designadamente, os acórdãos do STJ de 10/7/2012 (
Serra Batista
- dgsi.pt:
https://juris.stj.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2012:1407.10.0TJPRT.P1.S1.AB?search=EdBucRSduT1W63_S3Q
) e desta Relação de 7/3/2019 (
António Valente
– dgsi.pt:
https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/16a392acc72a1058802583c1003ed005?OpenDocument
).
Desenvolvendo esta doutrina, ou introduzindo elementos adicionais de ponderação na mesma, outras decisões têm introduzido como fator a considerar a natureza do bem objeto do contrato de locação financeira.
Assim, em acórdão desta Relação de 20/2/2024 (
Carlos Oliveira
-
http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/3a0aff65db99fd7a80258ad80038f027?OpenDocument
) foi admitida uma cláusula penal desse tipo (pagamento integral de rendas a acrescer à restituição do bem) num caso em que o objeto do contrato tem elevada obsolescência, i.e., que terá um valor real muito reduzido no momento do respetivo termo previsto.
Esta consideração da natureza do bem objeto do contrato torna-se operativa, enfatizando que, perante um modelo contratual aberto, terá que ser diversa a avaliação se se tratar de uma locação financeira de um bem imóvel (sobretudo relevando a pública e notória avaliação deste tipo de bens) ou de um móvel, seja este um veículo, um equipamento informático, ou outro, cuja desvalorização seja, em termos de normalidade social, acentuada.
Este tipo de consideração levou a que em situação de leasing imobiliário se tenha dito em acórdão do STJ de 4/7/2024 (
Isabel Salgado
-
https://juris.stj.pt/15919%2F16.9TSLSB-B.L2.S1/sSGqjGPBQiGZ52mTTDMpyqDLLew?search=3JlWtLFsTVlAMra_89s
) que na locação financeira imobiliária, por definição, objecto de investimento rentável dada a valorização do preço de mercado dos imóveis, ficam diluídos os danos advindos para o locador da resolução por incumprimento do locatário.
Chegando a este ponto de ponderação e seguindo as linhas acima referidas, algumas conclusões intercalares se podem estabelecer a propósito da avaliação da cláusula penal em apreço.
Assim:
a. Que o contrato em causa tem uma natureza primária de contrato financeiro;
b. Que deve ser relevada a liberdade contratual das partes, matizada pela assimetria da posição negocial da instituição financeira e da pequena ou média empresa;
c. Que uma cláusula penal que impusesse integral cumprimento do contrato e restituição do bem seria, tendencialmente, excessiva;
d. Que o objeto contratual deve ser considerado na avaliação do dano emergente para o locador;
e. Que se deve considerar facto notório que um objeto contratual relativo a bem imóvel, pela valorização que lhe é conatural na generalidade dos ciclos económicos, mitiga grandemente a existência de danos emergentes do contrato para o locador (que não lucros cessantes).
Avançando para uma análise mais direta para a cláusula em apreço, pode começar por dizer-se que se tornou, de algum modo, uma pena contratualmente típica, na medida em que previsões de idêntico teor passaram a ser inseridas repetidamente em contratos análogos.
Assim, foram merecendo tratamento doutrinal e jurisprudencial específico.
Pronunciou-se expressamente
Pestana de Vasconcelos
sobre cláusula de conteúdo muito próximo (Cláusulas penais em contratos de locação financeira, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 76, 2016, p. 66) dizendo que a cláusula penal que acabou por vir, em geral, com flutuações, a ser aceite foi aquela em que o locatário, para além de ter que pagar as prestações vencidas, terá ainda que pagar 20% das prestações vincendas e o valor residual.
No mesmo sentido decidiu o STJ, designadamente pelo acórdão, de 11/1/2024 (
Catarina Serra
,
https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/96d374c05b254e1880258aa300586e32?OpenDocument
)
Avançando para a decisão, não pode deixar de se relevar o carater casuístico da avaliação e, portanto, a consideração deste tipo de cláusulas contratualmente típicas não poder ser feito de modo meramente abstrato.
Deve acolher-se o que foi dito em acórdão da Relação do Porto de 20/2/24 (
Rodrigues Pires -
https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao/14056-2024-877935575
) que, para que a redução equitativa de cláusula penal ocorra, exige-se que seja apurado um carater manifestamente excessivo, ou seja que se mostre flagrantemente exagerada ou desproporcionada às finalidades que presidiram à sua estipulação e ao conteúdo do direito que se propõe realizar.
Esse cariz manifesto da desproporcionalidade pressupõe sempre a alegação e prova de factos donde decorra o seu manifesto excesso.
Colocando a análise a este nível, fica evidente que a embargante recorrente nada alegou de concreto que sustente a invocação.
Que valor se encontrava em mora nas prestações; qual o valor remanescente de capital à data de cessação; que valor de mercado atribui ao bem locado; que valor tinha à data do contrato; ou qualquer outro elemento que pudesse ser relevante, nada disso foi trazido aos autos e, portanto, não pode ser objeto de consideração.
Subsistem, assim, como meros elementos de análise, o próprio teor da cláusula e a consideração, genérica, de valorização do mercado imobiliário.
É este o ponto de análise em que se justifica introduzir o argumento de usura apresentado pela recorrente.
Como acima referido, a recorrente apresentou este argumento de forma conjunta, englobando, ou confundindo, usura e cláusula penal. Afinando a análise jurídica necessária, esta perspetiva não deixa de ter algum suporte legal.
Assim, diz o art.º 1146.º do CC, sob a epígrafe usura que é havido como usurário o contrato de mútuo em que sejam estipulados juros anuais que excedam os juros legais, acrescidos de 3% ou 5%, conforme exista ou não garantia real (n.º1), sendo que é havida também como usurária a cláusula penal que fixar como indemnização devida pela falta de restituição do empréstimo relativamente ao tempo de mora mais do que o correspondente a 7% ou 9% acima dos juros legais, conforme exista ou não garantia real (n.º 2).
No n.º 3 é expressamente estabelecida a sanção para essa usura - se a taxa de juros estipulada ou o montante da indemnização exceder o máximo fixado nos números precedentes, considera-se reduzido a esses máximos, ainda que seja outra a vontade dos contraentes.
Quer isto dizer, portanto, que relativamente a contratos de mútuo, o legislador estabeleceu um regime de aproximação, ou mesmo equivalência, entre a usura strictu sensu, ou aplicação de taxa usurária, e a cláusula penal excessiva, quando computada como acréscimo de juros.
Depondo no sentido do alargamento deste regime poderia convocar-se o disposto no art.º artigo 559.º-A que expressamente determina a aplicação do artigo 1146.º a toda a estipulação de juros ou quaisquer outras vantagens em negócios ou actos de concessão, outorga, renovação, desconto ou prorrogação do prazo de pagamento de um crédito e em outros análogos.
Repescando a referência anteriormente feita acerca da natureza estruturalmente financeira deste tipo contratual, tal conduz a comportar o contrato objeto destes autos nesse quadro amplo dos contratos de crédito e, por isso, na previsão deste preceito.
Assim sendo, ainda que o não seja em sentido próprio, a propriedade do imóvel pelo locador ao longo da execução contratual desempenhará uma função análoga a uma verdadeira garantia real, assegurando que a entidade locadora salvaguarde, pelo respetivo valor, o incumprimento da obrigação de restituição e remuneração do capital contratualmente alocado.
Neste quadro negocial, poderia considerar-se uma aplicação direta do disposto nos referidos preceitos, no que diz respeito à natureza creditícia do contrato, e uma aplicação analógica do mesmo, no que concerne à previsão de garantia real, o que permitiria, em tese, sustentar uma redução da cláusula penal ao seu máximo, equivalente a 7% sobre os juros legais aplicáveis a obrigações comerciais.
Seria, neste entendimento, tratada a locação financeira imobiliária como simples contrato de crédito com garantia real.
A tal opõe-se, todavia, a sua natureza de instrumento jurídico bancário.
Como se resumiu no acórdão desta Relação de 10/5/2007 (
Carla Mendes
-
https://jurisprudencia.pt/acordao/80207/
) a lei admite que os limites contemplados naquele artigo 1146.º do Código Civil sejam afastados tratando-se de operações de crédito celebradas por instituições de crédito ou parabancárias (artigos 5.º e 7.º do Decreto-Lei n.º 344/78, de 17 de Novembro, alterado pelos Decretos-Leis n.º 83/86, de 6 de Maio e 204/87, de 16 de Maio em conjugação com o Aviso do Banco de Portugal 3/93).
No mesmo sentido, aludindo à liberalização das taxas de juro como fundamento para afastar os limites do art.º 1146.º do CC, designadamente, acórdão também desta Relação de 19/5/2020 (
Carlos Oliveira,
dgsi.pt:
https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/97003ef5b9b48d5980258574004ba051?OpenDocument
).
Perante este quadro regulador, afastada a qualificação de usura que lhe poderia ser aplicável, caso o contrato não fosse bancário, fica também legalmente permitida a desproporção verificada que, por isso, não pode ser qualificada de grave ou ostensiva e, portanto, torna-se insuscetível de fundamentar uma respetiva redução equitativa.
O excesso não foi alegado nem demonstrado e o quadro legal abstratamente definido não estabelece uma situação usura proibida.
Por consequência, também este fundamento recursório soçobra.
--
Em conclusão, a apelação improcede in totum devendo manter-se a decisão recorrida.
É o que se decide. –
--
III. Decisão:
Face ao exposto, nega-se a apelação, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, com dispensa de taxa remanescente.
Notifique-se e registe-se. –
---
Lisboa, 10-04-2025
João Paulo Vasconcelos Raposo
Arlindo Crua
António Moreira
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TRL
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https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/987e9c708ef6a9ea80258c7b0047e3a7?OpenDocument
|
1,748,304,000,000
|
IMPROCEDENTE
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943/22.0T8ACB.L2-1
|
943/22.0T8ACB.L2-1
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MANUELA ESPADANEIRA LOPES
|
I.
A acção de nomeação e destituição de gerente trata-se de um processo de jurisdição voluntária.
II.
Nos processos de jurisdição voluntária as decisões podem ser alteradas com base em alteração superveniente das circunstâncias que as determinaram (art.º 988º, n.º 1, do CPC).
III.
Incumbe aos gerentes de uma sociedade a prática dos actos necessários à realização do respectivo objecto social, encontrando-se os poderes daqueles limitados por esse mesmo objecto e ainda pelas deliberações dos sócios e pelo próprio pacto social.
IV.
Considerando o objecto da sociedade e nada sendo alegado que permita justificar qualquer outra limitação para além das referidas em III., não há fundamento para limitar os poderes a exercer pelo gerente nomeado pelo tribunal unicamente à prática de actos de administração.
|
[
"SUSPENSÃO DOS CORPOS GERENTES",
"DESTITUIÇÃO DE GERENTE",
"PROCESSO DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA",
"ALTERAÇÃO SUPERVENIENTE",
"GERENTE",
"PODERES DE ADMINISTRAÇÃO"
] |
Acordam na Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa:
*
I- RELATÓRIO
AA, residente …, intentou, ao abrigo do disposto nos arts. 1053º e 1055º do C.P.C., acção especial contra S…, Lda e BB, peticionando:
- a imediata suspensão e destituição das funções de gerente actualmente exercidas pelo réu BB;
- a nomeação de um gerente único à ré, indicando para o cargo CC; - a nomeação de dois representantes comuns para as quotas sociais indivisas que integram a totalidade do capital social da ré, indicando para o efeito DD e EE.
Alegou, em síntese, que a sociedade ré é uma sociedade familiar em que são únicos sócios a autora e o réu, actualmente ex-cônjuges, com uma quota correspondente a 50% do capital cada um.
Mais sustentou que, após o divórcio, o réu desviou parte da actividade da sociedade ré para outra sociedade que constituiu com a sua actual esposa, exercendo uma actividade concorrencial à sociedade ré. Que o réu, pese embora tenha renunciado à gerência da sociedade ré, por força da destituição judicial da autora do cargo de gerente e na ausência de outros gerentes nomeados, passou a exercer novamente as funções de representação da sociedade nos termos do art.º 253.º do C.S.C..
Alegou, ainda, que por força do litígio que os separa e porque a sociedade pode vincular-se com a assinatura de um único gerente, teme que o réu venha a dissipar ou ocultar o património da sociedade, atentos os negócios anteriormente celebrados pelo mesmo em nome da sociedade ré com outras sociedades por si tituladas.
Invocou também que a vida da sociedade se encontra num impasse porquanto as partes mostram-se incapazes de tomar, por acordo, qualquer deliberação, razão pela qual se mostra necessária a nomeação de um representante para cada quota.
Regularmente citados os réus, BB deduziu oposição, impugnando parcialmente os factos alegados e opondo-se à nomeação da pessoa indicada para o cargo de gerente, por um lado, e, por outro, à sua suspensão enquanto representante da sociedade e à nomeação de representantes comuns para as quotas socais.
Notificada da contestação, a A. apresentou requerimento com o seguinte teor:
“1 – Vem dizer o seguinte, ao abrigo do princípio do contraditório:
a) Impugna a tese vertida pelo Requerido BB em sede da sua contestação;
b) De todo o modo, as posições díspares de ambos os sócios da Requerida S…, Lda., demonstradas nos autos de forma evidente, determinam a necessária procedência dos pedidos deduzidos nos presentes autos.”
Em 22/09/2023, foi proferida decisão considerando que a apreciação do pedido para suspender o réu das funções de gerente da sociedade se mostrava inútil
“em face da possibilidade de apreciação imediata e definitiva dos demais pedidos formulados e que tutelam em toda a sua extensão a situação que a autora pretendia acautelar mediante a suspensão imediata”
. Com esse fundamento foi julgada prejudicada a apreciação da referida pretensão.
Seguidamente foi proferida decisão que, julgando a acção parcialmente procedente e em virtude de a sociedade R. não ter gerentes nomeados:
- nomeou para o cargo de gerente da sociedade requerida S…, LDA., nos termos do disposto no art.º 253.º, n.º 3, do Código das Sociedades Comerciais, FF, residente na … e
- declarou improcedente o pedido de nomeação judicial de representante comum de contitulares de participações sociais.
Nos termos do disposto no n.º 3 do art.º 1053.º do C.P.C., foi determinada a notificação das partes e da pessoa nomeada para, em 10 dias, indicarem o valor que entendem ajustado à remuneração do gerente e juntarem a documentação que tenham por relevante.
Inconformada a requerente interpôs recurso desta sentença, o qual foi admitido, tendo, por acórdão deste tribunal de 09/04/2004, sido anulada a sentença proferida e demais actos dela dependentes na parte em que procedeu à designação para o cargo de gerente único provisório de FF e determinada a sua substituição por outra a proferir depois de realizadas as diligências instrutórias tidas por pertinentes para averiguação da idoneidade das pessoas indicadas para o cargo de gerente.
Foi interposto recurso de revista pelo requerido, o qual não foi admitido pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Foi, então, determinado pela Mmª Juíza da 1ª instância que as partes fossem notificadas para, querendo, indicarem as diligências probatórias que reputassem necessárias para que o tribunal pudesse decidir a questão pendente.
O requerido requereu que fosse marcada data para prestação de declarações presenciais de FF, a fim de o Tribunal averiguar da respectiva idoneidade para o exercício do cargo.
A requerente veio requerer que fossem realizadas, entre outras, as diligências probatórias indicadas no requerimento inicial.
O tribunal proferiu despacho, ordenando a notificação das partes para, em 10 dias, declarem se aceitavam a nomeação de uma terceira pessoa, concretamente um Administrador de Insolvência, para exercer as funções de gerente da sociedade S…, Lda, até à resolução da questão pendente entre os sócios, a saber, a partilha das quotas. Foi consignado no despacho que apenas mediante aceitação expressa das partes seria essa a decisão do tribunal.
O requerido declarou que aceitava a nomeação de uma terceira pessoa, concretamente de um administrador de insolvência para exercer as funções de gerente da sociedade e a requerente AA pronunciou-se no mesmo sentido, requerendo que tal nomeação fosse realizada atribuindo ao gerente meros poderes de administração ordinária.
O requerido pronunciou-se no sentido que o ora requerido pela requerente não tem suporte legal e que devem ser concedidos ao gerente todos os poderes necessários para o desenvolvimento da sua actividade.
Foi proferida decisão, nomeando gerente único provisório da sociedade S…, Lda., o Sr. Dr. GG, para exercer funções até à partilha das quotas entre os sócios e indeferindo o demais peticionado pela requerente por se entender que estava fora do âmbito da decisão que ao tribunal cumpria proferir, uma vez que apenas foi ordenado ao tribunal pela Relação que realizasse
“diligências para depois decidir quem deveria ser nomeado para o cargo e não também que fossem limitados os poderes de gestão”
e ainda que tal pedido não tinha sido aduzido
ab initio
. Foi entendido que o poder jurisdicional do tribunal estava limitado ao que foi ordenado por este tribunal de recurso, nada mais podendo apreciar ou decidir.
*
Inconformada a requerente AA interpôs recurso, formulando as seguintes
CONCLUSÕES
:
1ª –
Em processo de jurisdição voluntária instaurado nos termos do art.º 1053º do CPC pela Recorrente, esta e Recorrido foram notificados para se pronunciarem sobre a possibilidade de escolha de uma terceira pessoa, mormente um Administrador de Insolvência, sem ligação a qualquer das partes, para exercer as funções de gerente da sociedade S…, Lda., até à resolução da questão pendente entre os sócios, a saber, a partilha das quotas, por se afigurar uma solução adequada e que permitiria uma resolução e desbloqueio rápido da questão.
2ª -
A este respeito, o Recorrido veio dizer que “declara que Aceita a nomeação de uma Terceira pessoa”; A Recorrente veio dizer:
3ª -
Na sequência da tomada de posição das Partes, o Tribunal “a quo” proferiu Sentença, na qual nomeou Administrador Provisório para a sociedade S… (conforme peticionado nos autos
ab initio
pela Recorrente, declarando esta que aceita expressamente a Sentença, nessa parte);
porém, o Tribunal
“a quo”
não ordenou o que a Recorrente tinha requerido no ponto 2º atrás transcrito (limitação de poderes do administrador nomeado), por entender que não podia tomar conhecimento dessa questão, pelas seguintes razões:
a)
«…este pedido não fora aduzido ab initio” pela Recorrente»
;
b)
« O mais que agora a Recorrente peticiona está fora do âmbito da decisão que a Tribunal cabe proferir, pois apenas foi ordenado (…)»
(em Acórdão da Relação de Lisboa que anulou anterior Sentença que determinava nomeação da pessoa indicada pelo Recorrido como representante da sociedade)
«…realizar diligências para depois decidir quem deveria ser nomeado para o cargo e não também que fossem limitados os poderes de gestão.»
4ª -
Os presentes autos correspondem a um processo de jurisdição voluntária, relativamente ao qual regem as normas dos artºs 986º a 988º e 1.053º do CPC, sendo que, neste tipo de processos, relativamente às providências a ordenar,
“…o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo, antes adotar, em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna”
– vide art.º 987º do CPC.
5ª –
Aplicando a norma do art.º 987º ao caso, temos que, contrariamente ao que se escreve na Douta Sentença recorrida, o facto de inicialmente a Recorrente não ter peticionado a limitação de poderes do Administrador nomeado judicialmente não prejudicava a possibilidade do Tribunal a ter determinado, se julgasse tal limitação “conveniente e oportuna” (Note-se que, a Recorrente não requereu tal limitação
ab initio
porque requeria que fosse nomeado o filho comum dela e do Recorrido e não um estranho e, relativamente àquela concreta pessoa, não entendia conveniente, nem oportuna, tal limitação. Como em fase ulterior do Recorrente e Recorrido aceitaram a nomeação de uma pessoa da confiança do Tribunal, mas estranho a ambos, tal limitação entende-se “conveniente e oportuna”, pelas razões trazidas aos autos por aquela, conforme atrás se transcreveu).
6ª –
A norma do art.º 988º, nº 1, do CPC determina que
“Nos processos de jurisdição voluntária, as resoluções podem ser alteradas, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração; dizem-se supervenientes tanto as circunstâncias ocorridas posteriormente à decisão como as anteriores, que não tenham sido alegadas por motivo ponderoso”
.
7ª –
Aplicando esta norma ao caso, verificamos que, aquando da prolação da Douta Sentença recorrida, as vicissitudes processuais e factuais eram diferentes das que foram apreciadas pelo Tribunal da Relação (que determinou a anulação da anterior Sentença de nomeação de administrador indicado pelo Recorrido): as partes chegaram, agora, a acordo no sentido de ser nomeada pessoa pelo Tribunal, evitando que o Tribunal tivesse de optar por pessoa escolhida por uma ou por outra Parte.
8ª -
De toda a matéria atrás apresentada decorre que a Douta Sentença ora recorrida (na parte da qual se recorre), violou e interpretou erradamente as normas dos artºs 987 e 988º, nº 1 do CPC, bem como as normas dos artºs 608º, nº 2 do CPC e 20º, nº 1 da CRP, as quais deveria ter interpretado e aplicado por forma a:
a) Entender que o Tribunal “a quo” não se encontrava sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo adotar solução concreta que considere mais conveniente e oportuna, pelo que é irrelevante que a Recorrida não tenha requerido,
ab initio
, a limitação de poderes do Administrador nomeado;
b) Considerar que o teor do Acórdão da Relação de Lisboa proferido nestes autos (que anulou Sentença que nomeou administrador indicado pelo Recorrido e determinou ao tribunal
“a quo”
a realização de diligências oportunas para nomeação de Administrador) não impede, de modo algum, que o Tribunal
“a quo”
conheça da oportunidade e conveniência dessa limitação, até porque, posteriormente à prolação daquele Acórdão, ocorreram novas vicissitudes: acordo das Partes em que fosse escolhido pelo Tribunal Administrador que não fosse nem indicado por Recorrente, nem o indicado pelo Recorrido.
c) Tomar conhecimento sobre
questão “limitação dos poderes do Administrador nomeado”
suscitada pela Recorrente, conforme o Tribunal
“a quo”
encontra obrigado, em aplicação dos critérios legais de oportunidade e conveniência ao caso concreto que regem este tipo de processos e que consubstanciam um autêntico poder-dever do Tribunal, que deve ser exercido em prol do direito fundamental da Recorrente a um processo justo e equitativo conforme previsto no art.º 20º, nº 1 da CRP e de harmonia com o art.º 608º, nº 2 do CPC (sendo que a última parte desta norma não se aplica a processos de jurisdição voluntária, nos quais o Tribunal não se encontra limitado ao peticionado pelas partes).
9ª -
O até agora exposto determina ainda NULIDADE da Douta Sentença recorrida (na parte da qual se recorre), nos termos do art.º 615º, nº1, d), do CPC, pois:
a) As normas dos artºs 987 e 988º, nº 1 do CPC, bem como as normas dos artºs 608º, nº 2 do CPC e 20º, nº 1 da CRP determinam que o Tribunal
“a quo”
devia ter tomado conhecimento e pronunciar-se relativamente à questão
“limitação dos poderes do Administrador nomeado”
, apreciando tal questão ao abrigo de juízos fundamentados de oportunidade e conveniência, levando em consideração o caso concreto e as circunstâncias contemporâneas, no momento da prolação da Sentença;
b) O Tribunal
“a quo”
entendeu, porém, erradamente, que não podia tomar conhecimento dessa questão.
10ª –
A Douta Sentença recorrida (na parte de que se recorre) deve assim ser revogada, ordenando-se conforme teor das antecedentes conclusões.
*
O R. contra-alegou,
CONCLUINDO:
a)
A Sentença recorrida não padece de qualquer nulidade;
b)
O pedido de restrição de poderes de gerência não está minimamente fundamentado;
c)
Nunca o pedido poderia ter sido formulado, nos termos em que o foi, após a prolação da sentença;
d)
Nada imponha que o tribunal recorrido apreciasse o pedido nos termos e modo em que foi formulado;
e)
A Sentença do tribunal
a quo
encontra-se devidamente fundamentada de facto e de direito.
Terminou peticionado que seja negado provimento ao recurso e mantida a sentença recorrida.
*
O recurso foi admitido como apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
A Mmª Juíza
a quo
pronunciou-se no sentido que a sentença não enferma da nulidade invocada.
*
Foram colhidos os Vistos das Exmªs Adjuntas.
*
II– OBJECTO DO RECURSO
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal
ad quem
(artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608º, nº 2,
ex vi
do artigo 663º, nº 2, do mesmo Código). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.
Assim, em face das conclusões apresentadas pela apelante, importa decidir:
- da nulidade da sentença por omissão de pronúncia e
- se deve ser mantida a decisão que entendeu não poder haver lugar à limitação dos poderes de gerência a exercer pelo gerente nomeado pelo tribunal.
*
III – FUNDAMENTAÇÃO
A) Da nulidade da sentença por omissão de pronúncia
Sustenta a apelante que a sentença proferida nos autos enferma de nulidade por omissão de pronúncia, em virtude de não ter conhecido da pretensão formulada pela mesma de apenas deverem ser conferidos ao gerente a nomear à sociedade poderes de administração ordinária.
Estabelece o nº 1 do art.º 615º do C.P que a sentença é nula quando:
“(…)
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
(…)”
A omissão de pronúncia está directamente relacionada com o comando fixado nº 2 do art.º 608º do CPC – segundo o qual
«o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras».
As questões aqui referidas são as relacionadas com o mérito da causa, balizadas pela pretensão deduzida, pela respectiva causa de pedir e pelas excepções peremptórias invocadas.
As questões a resolver não se confundem com os argumentos aduzidos, sendo constante a jurisprudência dos nossos tribunais no sentido que aquele preceito apenas impõe que o tribunal resolva todas as questões que as partes hajam submetido a julgamento – cfr, entre muitos outros, Ac. STJ, de 16/02/1995, Cons. Ferreira da Silva, BMJ 444, págs. 595 e ss.
O mesmo é defendido pela doutrina – cfr, entre outros, Lopes do Rego, Comentários ao CPC, vol. I, pág. 551, Lebre de Freitas e outros, CPC Anotado, 2ª vol., pág. 646 e Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8ª edição, pág. 54.
A nulidade da sentença, ou do despacho, com fundamento na omissão de pronúncia só ocorre quando uma questão que devia ser conhecida nessa peça processual não teve aí qualquer tratamento, apreciação ou decisão (e cuja resolução não foi prejudicada pela solução dada a outras).
No caso
sub judice,
consta da sentença sob recurso que
“O mais que agora a requerente peticiona está fora do âmbito da decisão que ao tribunal cumpre proferir, pois apenas nos foi ordenado realizar diligências para depois decidir quem deveria ser nomeado para o cargo e não também que fossem limitados os poderes de gestão.
De resto, este pedido não fora aduzido ab initio, tanto assim que na sentença já proferida por este tribunal e de que foi interposto recurso, essa questão não é abordada.
Note-se que o poder jurisdicional do tribunal está limitado ao que foi ordenado pelo tribunal de recurso, nada mais podendo apreciar ou decidir.
Donde, o pedido agora apresentado, por ir além do que nesta fase cumpre ao tribunal decidir, não pode ser apreciado”.
Da sentença recorrida constam expressamente as razões pelas quais o tribunal da 1ª instância entendeu estar impedido de conhecer da pretensão ora formulada pela requerente – a limitação do poder jurisdicional do tribunal
ao que foi determinado pelo tribunal de recurso.
Atento o referido, é evidente que a sentença não enferma de nulidade por omissão de pronúncia. Coisa diferente é saber se os fundamentos invocados são, ou não, válidos, o que se prende já com o mérito do recurso e que infra serão apreciados.
Nestes termos,
entende-se que
a sentença não enferma de nulidade por omissão de pronúncia.
*
B) De facto
Com relevo para a decisão do presente recurso, encontram-se provados os factos que constam do ponto I (relatório) que, por razões de economia processual, aqui se dão por reproduzidos e ainda, atento o teor da Conservatória do Registo Comercial junta com a petição inicial, o seguinte:
1-
A sociedade requerida S…, Lda, tem como objecto, entre outros, o arrendamento e a compra e venda de imóveis urbanos ou rústicos e a revenda dos adquiridos para esse fim.
*
C) O Direito
A autora requereu a nomeação de um gerente à sociedade ré, alegando que a mesma não tinha gerentes nomeados. Indicou para exercer o cargo CC, filho mais novo da própria e do R..
Por despacho de 19/06/2023 foi determinada a citação dos
requeridos para, querendo, no prazo de 10 dias, deduzirem oposição, oferecerem rol de testemunhas e requererem outros meios de prova, sob pena de se terem por confessados os factos alegados pela requerente, tudo nos termos dos artigos 1055.º, n.º 2, 986.º, n.º 1 e 293.º, todos do Código de Processo Civil.
O requerido BB deduziu oposição, sustentado que deve ter lugar a nomeação de um gerente à sociedade requerida e que deve ser nomeado para exercer tais funções pessoa a indicar pelo tribunal ou
“alternativamente”
o
“anterior sócio FF (conhecedor da actividade societária, da confiança de A. e R. e que já demonstrou total disponibilidade para a nomeação a título provisório)”
Seguidamente foi proferida sentença, julgando a acção parcialmente procedente e nomeando para exercer as funções de gerente único provisório FF.
A requerente interpôs recurso e por acórdão desta relação de 09/04/2024, foi a apelação julgada procedente e declarada nula a decisão proferida na parte em que procedeu à designação para o cargo de gerente único provisório de FF. Foi, então, determinado pela Mmª Juíza da 1ª instância que as partes fossem notificadas para, querendo, indicarem as diligências probatórias que reputassem necessárias para que o tribunal pudesse decidir a questão pendente.
O requerido requereu que fosse marcada data para prestação de declarações presenciais a FF, a fim de o Tribunal averiguar da respectiva idoneidade para o exercício do cargo e a requerente requereu que fossem realizadas as diligências probatórias requeridas no requerimento inicial, bem como outras diligências.
Sem que tivesse chegado a ter lugar a realização de quaisquer das diligências requeridas pelas partes, o tribunal proferiu despacho, ordenando a notificação das mesmas, para, em 10 dias, declarem se aceitavam a nomeação de uma terceira pessoa, concretamente um Administrador de Insolvência, para exercer as funções de gerente da sociedade S…, Lda., até à resolução da questão pendente entre os sócios: a partilha das quotas. Foi consignado no despacho que apenas mediante aceitação expressa das partes seria essa a decisão do tribunal.
O requerido declarou que aceitava a nomeação de uma terceira pessoa, concretamente de um administrador de insolvência para exercer as funções de gerente da sociedade e a requerente AA pronunciou-se no mesmo sentido, requerendo que tal nomeação fosse realizada atribuindo ao gerente meros poderes de administração ordinária.
A acção de nomeação e destituição de gerente trata-se de um processo de jurisdição voluntária.
A jurisdição voluntária implica o exercício de uma actividade essencialmente administrativa, diferentemente da jurisdição contenciosa, que implica o exercício duma actividade verdadeiramente jurisdicional (cfr. Alberto dos Reis, in Processos Especiais, vol. II, pg. 398).
Enquanto nos processos de jurisdição contenciosa há um conflito de interesses entre as partes que ao tribunal compete dirimir de acordo com os critérios estabelecidos no direito substantivo, nos processos de jurisdição voluntária há, diversamente, um interesse fundamental tutelado pelo direito (acerca do qual podem formar-se posições divergentes) que ao juiz cumpre regular nos termos mais convenientes e oportunos (cfr. Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 2ª ed., 1985, pg. 69-70).
Assim, nas providências a tomar no âmbito dos processos de jurisdição voluntária, o juiz não está subordinado a critérios de legalidade estrita, devendo, antes, adoptar as soluções que julgue mais convenientes e oportunas para o caso (art.º 987º do CPC), sem que isso o dispense de respeitar, cumprir e fazer cumprir as normas processuais respectivas.
Para além desta característica, os processos de jurisdição voluntária têm também outras características próprias de que se destaca a preponderância do princípio do inquisitório na investigação dos factos e na obtenção das provas (art.º 986, n.º 2, do CPC) e a possibilidade de as decisões puderem ser alteradas com base em alteração superveniente das circunstâncias que as determinaram (art.º 988º, n.º 1, do CPC). Estabelece este artigo que
“
Nos processos de jurisdição voluntária, as resoluções podem ser alteradas, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração; dizem-se supervenientes tanto as circunstâncias ocorridas posteriormente à decisão como as anteriores, que não tenham sido alegadas por ignorância ou outro motivo ponderoso”
.
Como referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, vol. II, Almedina, pág. 438:
“A modificação da decisão anterior implica que o requerente indique a factualidade que sustenta a alteração das circunstâncias, após o que o tribunal efetua uma análise comparativa entre o estado atual das coisas e o que existia aquando da prolação da decisão vigente”.
Também a propósito da alteração das circunstâncias, diz José António Fialho, in Conteúdos e Limites do Princípio do Inquisitório na Jurisdição Voluntária, in
https://run.unl.pt/bitstream/10362/19279/1/Fialho_2016.pdf
, págs. 28/29, citando o Ac. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 19 de Março de 2013, processo n.º 6558/05.0TBGMRD.G1 (ANTÓNIO SANTOS):
«A avaliação das circunstâncias supervenientes que podem justificar uma alteração da decisão anterior “pressupõem necessariamente uma análise comparativa entre o estado atual das coisas e aqueloutro que existia aquando do acordo ou da prolacção da decisão em vigor, apenas sendo possível concluir por uma alteração anormal e não apenas uma mera evolução natural e previsível do status quo ante, obrigando o requerente a indicar a factualidade que sustente essa alteração de circunstâncias e devendo fazê-lo de forma concludente e inteligível”»
.
O critério que permite a alteração da decisão anterior é o da existência de
circunstâncias supervenientes
, o que incluirá a existência de factos supervenientes, mas com uma maior abrangência.
Como se disse, a requerente requereu a produção de prova e a nomeação do filho da própria e do requerido para exercer as funções de gerente da sociedade S…, Lda. O acórdão anteriormente proferido determinou a realização das diligências instrutórias tidas por pertinentes para averiguação da idoneidade das pessoas indicadas para o cargo, sem prejuízo de o tribunal, após a produção da respectiva prova, poder vir a ponderar a nomeação de uma terceira pessoa, em alternativa a qualquer dos indicados pelas partes.
Após a notificação efectuada pela Mmª Juíza da 1ª instância, para que requerente e requerido declarassem se aceitavam a nomeação de uma terceira pessoa, concretamente um Administrador de Insolvência, veio a ser nomeado para exercer tais funções, apenas com fundamento no acordo das partes e sem que fosse produzida qualquer prova, o Sr. Dr. GG.
Há, assim, uma circunstância que não se verificava aquando da instauração da acção e aquando da prolação do acórdão – a nomeação, por acordo nos termos sugeridos pelo tribunal, de uma pessoa diversa das indicadas pelas partes. Ou seja, ocorreu uma circunstância justificativa da alteração -, pelo que, contrariamente ao que entendeu a Mmª Juíza da 1ª instância, deve ser apreciado o requerido pela requerente quando manifestou o seu acordo à nomeação de um Administrador de Insolvência.
Uma vez que os autos dispõem de todos os elementos para o conhecimento dessa pretensão e ambas as partes já se pronunciaram no que a tal concerne, por força da regra da substituição ao tribunal recorrido estabelecida no art.º 665º, nº 2, do C.P.Civil, cumpre conhecer:
Requereu a requerente que ao gerente nomeado sejam atribuídos meros poderes de administração ordinária – ou seja, que o mesmo não tenha poderes para vender imóveis da sociedade, contrair empréstimos ou praticar actos de disposição.
O requerido opôs-se.
Atento o disposto no art.º 252º, nº1, do Código das Sociedades Comerciais, a gerência é o órgão a quem compete a administração e a representação da sociedade por quotas. Dividem-se, assim, os poderes dos gerentes das sociedades por quotas em poderes de
administração
e de
representação
.
No que concerne aos
poderes de administração
, os gerentes estão investidos numa competência genérica de gestão da sociedade,
«podendo praticar todos os atos necessários ou convenientes para a realização do respetivo objeto (art.º 259º do CSC): como resulta do próprio preceito legal citado, estes poderes, todavia, encontram-se limitados, quer pelo objeto social – não podendo os gerentes praticar atos estranhos ou violadores deste objeto (cf. art.º 6º, nº4, “in fine”, do CSC) sob pena da sua eventual responsabilidade perante a sociedade (arts 72º e segs do CSC) e destituição com justa causa (arts 64º e 257º, nº6, do CSC) -, quer por deliberação dos sócios – não podendo praticar atos que desrespeitem deliberações tomadas pelos sócios em assembleia geral, a quem estão subordinados em virtude de um princípio geral de obediência (…) consagrado na lei (parte final do art.º 259º do CSC) –, quer finalmente pelo próprio pacto social (…)»
- cfr
O abuso de representação como limite aos poderes dos gerentes
, José Engrácia Antunes, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, Vol. II, Coimbra Editora, págs 282/283.
Com efeito, incumbe aos gerentes praticar os actos necessários à realização do respectivo objecto social, encontrando-se tais poderes limitados por esse mesmo objecto e ainda pelas deliberações dos sócios e pelo próprio pacto social. O gerente deve observar deveres de cuidado e de lealdade, devendo actuar com a diligência de um gestor criterioso e ordenado, no interesse da sociedade, tendo em conta os interesses dos sócios e dos trabalhadores – cfr art.º 64º do CSC.
Caso desrespeitem os deveres que lhes incumbem, os gerentes podem vir a ser responsabilizados pelos danos causados à sociedade, gozando de legitimidade para intentar a respectiva acção a própria sociedade, nos termos do art.º 75.º do CSC, os seus sócios, nos termos do art.º 77.º, n.º 1 do CSC, ou os credores sociais, nos termos do art.º 78.º, n.º 2 do mesmo diploma.
Atento o que fica referido e considerando ainda que do objecto social da requerida faz parte a compra e venda de imóveis, não há fundamento para limitar os poderes do gerente nomeado nos termos requeridos. Estes poderes encontram-se limitados pelo objecto da sociedade e podem ainda vir a sê-lo também por deliberação dos sócios, não permitindo o alegado pela requerente determinar a limitação pretendida.
Assim, embora com fundamentos diversos dos invocados pelo tribunal da 1ª instância, deve manter-se a decisão recorrida.
*
IV- DECISÃO
Pelo exposto,
acordam as Juízas
na Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar o recurso improcedente e
consequentemente, embora com fundamentação diversa,
mantêm a sentença recorrida.
Custas pela apelante.
Registe e Notifique.
Lisboa, 20/05/2025
Manuela Espadaneira Lopes
Ana Rute Pereira
Paula Cardoso
|
TRL
|
https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/88803d8fa540b71380258ca6002f9c7b?OpenDocument
|
1,740,355,200,000
|
PROCEDENTE. REVOGADA A DECISÃO.
|
4156/23.6T8MTS-A.P1
|
4156/23.6T8MTS-A.P1
|
MARIA LUZIA CARVALHO
|
A junção de documentos em poder da contrária ou de terceiro é pertinente quando os mesmos são aptos, por si ou conjugados com outros meios de prova, à demonstração de factos alegados que, sendo constitutivos do direito do autor e estando controvertidos, necessitam de ser provados.
(Sumário da responsabilidade da relatora nos termos do art.º 667.º do CPC).
|
[
"JUNÇÃO DE DOCUMENTOS NA POSSE DA PARTE CONTRÁRIA",
"PERTINÊNCIA"
] |
Processo n.º 4156/23.6T8MTS-A.P1
Origem: Comarca do Porto, Juízo do Trabalho de Matosinhos – J1
Acordam nos juízes da secção social do Tribunal da Relação do Porto
Relatório
AA intentou a presente ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra Associação A..., pretendendo que esta seja condenada a pagar-lhe:
a) € 4.413,10 (quatro mil quatrocentos e treze euros e dez cêntimos ), a título de subsídio de turno devido e não pago, no período compreendido entre Março de 2011 e Fevereiro de 2013;
b) a quantia que se vier a liquidar por incumprimento da regra da rotatividade de turnos, e por inerente trabalho suplementar prestado em antecipação/repetição de turno e não pago;
c) o valor de € 10.533,65 (dez mil quinhentos e trinta e três euros e sessenta e cinco cêntimos ), por não pagamento da retribuição Nível V desde 1 de Março de 2014, data em que o autor passou a ser trabalhador com contrato sem termo, em violação do princípio trabalho igual salário igual;
d) a quantia que se vier a liquidar por créditos relativos às médias de trabalho suplementar prestado, e pago, nos anos de 2012 a 2016, não incluídas nas férias e subsídio de férias.
e) a quantia que se vier a liquidar por trabalho prestado em período de descanso compensatório;
f) € 10.000,00 (dez mil euros ) a título de indemnização por prática assédio.
A final requereu a
notificação de terceiros e da ré para prestarem esclarecimentos e juntarem documentos.
A ré contestou, impugnando a generalidade dos factos alegados pelo autor e opondo-se ao deferimento das diligências probatórias supra referidas.
Findos os articulados, foi proferido despacho a convidar o autor a suprir a exceção dilatória relativa à formulação ilegal de pedidos genéricos, alegando os factos de que dependem os pedidos das als. b), d) e e) supra identificados.
O autor respondeu ao convite, no qual reiterou o requerimento de prova que havia formulado na petição inicial, reforçando o requerido na parte respeitante aos factos que concretizou, foi exercido o contraditório relativamente ao alegado e no despacho saneador foi proferida decisão considerando prejudicada a exceção quanto aos pedidos das als. b) e e) e absolvendo a ré da instância quanto ao pedido da al. d), por falta de liquidação.
Em 04/10/2024 foi proferido despacho sobre os meios de prova requeridos pelas partes, tendo o tribunal indeferido todas as notificações, requeridas pelo autor, de terceiros e da ré para prestarem esclarecimentos e juntarem documentos.
Inconformado, o autor interpôs recurso com vista à revogação daquele despacho no que respeita à notificação da B... e da C... para prestação de esclarecimentos e junção de documentos, invocando a nulidade do despacho por omissão de pronúncia quanto à notificação da ré para juntar aos autos os mapas demonstrativos de ganhos, formulando as seguintes conclusões:
« I
Nos presentes autos o recorrente formulou os seguintes pedidos:
a) ser a ré condenada a pagar ao autor as seguintes quantias:
€ 4.413,10 (quatro mil quatrocentos e treze euros e dez cêntimos), a título de subsídio de turno devido e não pago, no período compreendido entre Março de 2011 e Fevereiro de 2013;
A quantia que se vier a liquidar por incumprimento da regra da rotatividade de turnos, e por inerente trabalho suplementar prestado em antecipação/repetição de turno e não pago;
O valor de € 10.533,65 (dez mil quinhentos e trinta e três euros e sessenta e cinco cêntimos), por não pagamento da retribuição Nível V desde que 1 de Março de 2014, data em que o autor passou a ser trabalhador com contrato sem
termo, em violação do princípio trabalho igual salário igual;
A quantia que se vier a liquidar por créditos relativos às médias de trabalho suplementar prestado, e pago, nos anos de 2012 a 2016, não incluídas nas férias e subsídio de férias.
A quantia que se vier a liquidar por trabalho prestado em período de descanso compensatório;
€ 10.000,00 (dez mil euros ) a título de indemnização por prática assédio,(…)
II
Na sua alegação factual o recorrente indicou concretamente todos os factos justificativos da impossibilidade de obtenção de documentos da recorrida e da B..., sendo que, no que concerne à C..., o recorrente não tem qualquer ligação contratual com a mesma, uma vez que apenas prestou trabalho na mesma enquanto trabalhador cedido pela recorrida, que é uma empresa de cedência de mão de obra portuária.
III
No requerimento probatório constante da p.i., o recorrente requereu a junção de documentos por parte da recorrida, da B... e da C..., indicando em concreto quais os factos que pretendia provar com a referida junção.
IV
Na sequência de despacho do Meritíssimo Tribunal a quo a considerar que os pedidos genéricos não podiam ser admitidos e que, por essa razão, o recorrente deveria alegar os factos relativos aos ditos pedidos, este último deu cumprimento ao dito despacho.
V
No requerimento apresentado em 05/03/2024, o recorrente indicou todos os dias em que a recorrida não cumpriu a regra da rotatividade de turnos, bem como os dias em que não foi cumprido o número de horas de descanso compensatório legalmente previstas.
VI
No requerimento de 05/03/2024, o recorrente complementou o seu requerimento de prova apresentado na p.i., na parte relativa à junção de documentos por parte da recorrida, da B... e da C....
VII
Os factos que o recorrente pretende provar com a junção dos documentos que requereu, integram a causa de pedir, e, a serem provados, levarão à condenação da ré.
VIII
Uma vez que o recorrente cumpriu todas as imposições impostas pela lei para que fosse ordenada a junção dos documentos, pelo que deveriam os mesmos ter sido admitidos.
IX
Ao não entender assim, violou o Meritíssimo Tribunal a quo o disposto nos artºs.432º e 429º, ambos do Cód. Proc. Civil.
X
O recorrente requereu também a notificação da recorrida no sentido de juntar aos autos os Mapas Demonstrativos de Ganhos do autor relativos ao período compreendido entre Março de 2014 e Dezembro de 2020.
XI
Tal como se verificou com os documentos da B... e da C... o recorrente indicou em concreto os factos que tais documentos se destinavam a provar, tendo complementado o seu requerimento probatório da p.i. após a alegação dos factos relativos à violação do cumprimento da regra da rotatividade de turnos.
XII
Quanto ao requerimento da junção de documentos por parte da recorrida, o Meritíssimo Tribunal a quo não emitiu qualquer pronúncia, pelo que douta decisão aqui em crise enferma nesta parte de nulidade, por omissão de pronúncia, por força do disposto no artº.615º, nº1, alínea d), nulidade essa que desde já aqui se invoca para todos os devidos e legais efeitos.»
*
A ré apresentou contra-alegações pretendendo que o recurso deve ser parcialmente indeferido liminarmente e, em qualquer caso, julgado totalmente improcedente, formulando as seguintes conclusões:
«1. Não tendo o Recorrente invocado a questão da suposta nulidade, por omissão de pronúncia, do despacho recorrido «simultânea e conjuntamente» no requerimento de interposição de recurso, resulta precludida a possibilidade de a Veneranda Relação conhecer dessa questão, razão pela qual deverá o Digníssimo Tribunal indeferir liminarmente este segmento recursório.
2. No que respeita à notificação da B... e da C... para juntar documentos de alegado suporte aos factos relacionados com os pedidos genéricos vertidos na petição inicial, o Recorrente respondeu ao generoso convite à liquidação dos referidos pedidos com base nos registos de entradas e saídas de outros colegas, alegando, para o efeito, que «neste momento impossível ao autor cumprir na íntegra e de forma imutável o doutamente ordenado».
3. Ou seja, o Recorrente continua a não apresentar uma sustentação de facto minimamente séria e credível, continua a requer a junção de documentos para alegar factos e não para os provar, continua a subverter a lógica processual e a pretender colocar o Digníssimo Tribunal ao seu serviço, instrumentalizando-o em busca dos factos suscetíveis de, na sua visão das coisas, suportar a sua tese, e continua a preterir os mecanismos que, nos termos dos artigos 574.º e 575.º do Código Civil e dos artigos 1045.º do Código de Processo Civil, lhe facultam ou teriam facultado os instrumentos para, em primeiro lugar, requerer a apresentação de documentos dos quais, em segundo lugar, pudesse retirar todos os factos essenciais à sua pretensão, apresentando, assim, e em terceiro lugar, uma sustentação fáctica séria, objetiva e credível.
4. Esta circunstância não pode deixar de constitui um obstáculo intransponível às suas pretensões probatórias e que, por isso, deveriam, devem e sempre deverão determinar a rejeição do requerido a este respeito pelo Recorrente e, consequentemente, a improcedência do presente segmento recursório.
5. A suposição apresentada como inabalável certeza pelo Recorrente, traduzida na alegação de que «os factos que o recorrente pretende provar com a junção dos documentos que requereu integram a causa de pedir e, a serem provados, levarão à condenação da ré», não passa disso mesmo: um desejo, uma ambição, genérica e desprovida de qualquer fundamento.
6. Tanto assim é que, para além de todas as questões (desde logo as exceções invocadas pela Recorrida na contestação), interpretações e entendimentos jurídicos que se suscitam nos presentes autos, é sabido e público que os tribunais superiores têm votado ao insucesso pretensões semelhantes às do ora Recorrente, mesmo as mais recentes apresentadas por ex-colegas e ex-Seal.
7. Acresce que, para além da análise dos requisitos de admissibilidade formais, cabe ainda ao Tribunal o controlo da pertinência, adequação e idoneidade dos documentos em posse da parte contrária ou de terceiro cuja junção aos autos é requerida por uma das partes.
8. Foi precisamente esta ponderação sobre a pertinência, adequação e idoneidade dos documentos em causa que levou o Tribunal a quo a indeferir a pretensão probatória do Recorrente.
9. A este respeito, o Recorrente limitou-se a alegar, em termos genéricos e sem qualquer especificação, que os documentos «integram na causa de pedir», o que não é suficiente para afastar a ponderação, concreta e objetiva, do Tribunal a quo relativa à falta de pertinência e idoneidade da produção da diligência probatória em causa, razão adicional pela qual sempre teria de ser mantida a decisão recorrida.
10. Relativamente à notificação da Recorrida para juntar aos autos os denominados “mapas demonstrativos de ganhos”, o Recorrente relacionou os referidos documentos com o pedido relativo a supostas médias de trabalho suplementar, pedido esse que, durante a presente lide, “deixou cair”.
11. De resto, o próprio Recorrente confessou no artigo 13.º da petição inicial que os ditos documentos apenas evidenciam os turnos em que o mesmo fora colocado e não as horas de entrada e saída no Porto ... (e muito menos de início e fim da jornada de trabalho)
12. Assim sendo, bem andou o Tribunal a quo quando, no despacho recorrido, considerou que, «em concreto, as informações que o autor pretende que sejam obtidas e os documentos apresentados apenas seriam pertinentes para o apuramento de factos que se tornaram irrelevantes ante a absolvição parcial da ré da instância e do pedido».
13. Nessa medida, não só o Tribunal a quo emitiu efetiva pronúncia sobre a presente diligência probatória, como ainda o fez com fundamento específico e adequado, não tendo o Recorrente apresentado qualquer argumento ou circunstância que permitisse ao Digníssimo Tribunal concluir pela incorreção da decisão recorrida e que obrigasse agora à sua reversão.»
*
Foi proferido despacho, ao abrigo do disposto pelo art.º 617.º, n.º 1 do CPC, na sequência do qual o autor, nos termos do n.º 3 da mesma disposição legal, veio alargar o âmbito do recurso, formulando as seguintes conclusões:
I
No despacho saneador de proferido em 23-07-2024 – cfr. refª. Citius 462423080 -, foi decidida a admissibilidade do pedido formulado pelo recorrente quanto pedido relativo ao incumprimento da regra da rotatividade de turnos, e por inerente trabalho suplementar prestado em antecipação/repetição de turno e não pago.
II
Os documentos cuja junção foi indeferida pelo Meritíssimo Tribunal a quo destinam-se a prova da factualidade alegada no requerimento do recorrente de 05/03/2024, com base no qual aquele Meritíssimo Tribunal considerou sanado o vício relativo ao pedido genérico formulado na p.i., relativo ao incumprimento da regra da rotatividade de turnos, e por inerente trabalho suplementar prestado em antecipação/repetição de turno e não pago.
III
Uma vez que o recorrente cumpriu todas as imposições impostas pela lei para que fosse ordenada a junção dos documentos, pelo que deveriam os mesmos ter sido admitidos.
IV
Ao não entender assim, violou o Meritíssimo Tribunal a quo o disposto nos artºs.432º e 429º, ambos do Cód. Proc. Civil.»
*
A ré respondeu reiterando, no essencial, as contra-alegações já apresentadas.
O recurso foi regularmente admitido e neste Tribunal, os autos foram com vista ao Ministério Público que entendeu não haver lugar à emissão do parecer a que alude o art.º 87.º, nº 3 do Código de Processo do Trabalho (doravante CPT).
*
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
Delimitação objetiva do recurso
Resulta do art.º 81.º, n.º 1 do CPT e das disposições conjugadas dos arts. 639.º, nº 1, 635.º e 608.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil (doravante CPC), aplicáveis por força do disposto pelo art.º 1.º, n.º 1 e 2, al. a) do CPT, que as conclusões delimitam objetivamente o âmbito do recurso, no sentido de que o tribunal deve pronunciar-se sobre todas as questões
[1]
suscitadas pelas partes (delimitação positiva) e, com exceção das questões do conhecimento oficioso, apenas sobre essas questões (delimitação negativa).
No caso concreto, importa desde já referir que, tendo a nulidade do despacho recorrido arguida pelo autor sido suprida pelo tribunal “a quo”, fica prejudicada a sua apreciação.
Assim, e tendo em atenção o alargamento do âmbito do recurso requerido pelo autor ao abrigo do art.º 617.º, n.º 3 do CPC, decorrente do suprimento da omissão de pronúncia, a questão a decidir circunscreve-se à de saber se o tribunal “a quo” errou ao indeferir os requerimento de prova apresentados pelo autor com vista à notificação da B... para juntar aos autos o registo de entradas e saídas do autor, à notificação da C... para prestar esclarecimentos e à notificação da ré para juntar aos autos os mapas demonstrativos de ganhos.
*
*
Fundamentação de facto
Para melhor compreensão do âmbito do recurso, importa transcrever os requerimentos de prova apresentados pelo autor, na parte que aqui interessa, bem como o despacho recorrido.
Requerimento de prova apresentado na petição inicial:
«Para
prova do alegado nos artºs.49º a 61º, 138º a 142º, 144º a 153º
, requer:
- Seja notificada a
B...
, com sede Avenida ..., .... ... ..., com os elementos identificadores do autor, no sentido de juntar a estes autos os
registo de entradas e saídas do mesmo do Porto ..., no período compreendido entre 2012 e 2016
;
- Seja notificada
a ré
no sentido de juntar aos autos os Mapas Demonstrativos de Ganhos do autor relativos ao período compreendido entre Março de 2014 e Dezembro de 2020.
Para
prova do alegado nos artº.159º e 280º,
requer sejam notificadas a
C...
, com sede no Porto ..., Terminal ..., Edifício ..., ..., EC ..., ... ..., (…), no sentido de: informarem se têm na sua posse quaisquer registos de horas efectivamente trabalhadas pelos trabalhadores cedidos pelo GPL, devendo, em caso de resposta afirmativa, juntar todos aquele que possuam relativos ao autor no período compreendido entre 2012 e 2019.»
Requerimento de prova apresentado no articulado de aperfeiçoamento da petição inicial:
«PROVA: Considerando o acima alegado, o autor reitera todo o seu requerimento de prova apresentado com a p.i., especificamente quanto a esta matéria o seguinte:
- Seja notificada a B..., com sede Avenida ..., .... ... ..., com os elementos identificadores do autor, no sentido de juntar a estes autos os registo de entradas e saídas do mesmo do Porto ..., no período compreendido entre 2014 e 2019;
- Seja notificada a ré no sentido de juntar aos autos os Mapas Demonstrativos de Ganhos do autor relativos ao período compreendido entre Março de 2014 e Dezembro de 2020, bem como cópia das requisições de trabalhadores efectuadas pelas empresas de operação portuária que tenham dado origem à cedências do autor;
Sejam notificadas a C..., com sede no Porto ..., Terminal ..., Edifício ..., ..., EC ..., ... ..., e a D..., S.A. Av. ... ... – ... ... ..., no sentido de:
i. informarem se têm na sua posse quaisquer registos de horas efectivamente trabalhadas pelos trabalhadores cedidos pelo GPL, devendo, em caso de resposta afirmativa, juntar todos aquele que possuam relativos ao autor no período compreendido entre 2014 e 2019.»
Despacho recorrido:
«II) O autor requereu a notificação do “Sindicato Nacional dos Estivadores…” e do “Sindicato dos Estivadores…” para prestarem os esclarecimentos que discriminou; e da “B...” e da “C...” para prestarem esclarecimentos e juntarem aos autos os documentos que identificados.
Cumpre apreciar.
A prestação de meras informações (sem junção de documentos) por terceiros poderá constituir uma diligência de prova admissível, atento o disposto no art. 7.º, n.º4, do nCPC e o princípio da livre admissibilidade de meios de prova.
Acontece que, em concreto, as informações que o autor pretende que sejam obtidas e os documentos apresentados
apenas seriam pertinentes para o apuramento de factos que se tornaram irrelevantes ante a absolvição parcial da ré da instância e do pedido.
(…)
Nesta medida, indefiro o requerido.»
Por sua vez no despacho que supriu a nulidade por omissão de pronuncia quanto à notificação da ré para juntar aos autos os mapas demonstrativos de ganho, o tribunal limitou-se a acrescentar a menção ao requerimento de notificação da ré, mantendo, no mais o teor do despacho que se transcreveu supra.
*
Apreciação
Como resulta do supra exposto importa decidir se os requerimentos probatórios formulados pelo autor deveriam ter sido deferidos.
Instruir um processo judicial significa dotá-lo, através da produção de meios de prova, dos factos necessários à apreciação pelo tribunal das pretensões que tenham sido deduzidas pelas partes, ou seja, dos factos que sejam relevantes para a decisão da causa, de acordo com as diversas soluções plausíveis, e que devem constar da sentença nos termos do art.º 607º, n.º 4 CPC.
Nos termos do art.º 410.º CPC «A instrução tem por objeto os temas da prova enunciados, ou, quando não tenha havido lugar a esta enunciação, os factos necessitados de prova».
Deste modo, havendo enunciação dos temas de prova (cfr. arts. 591.º, n.º 1, al. f), 593.º e 596.º CPC), o objeto da instrução são os factos, principais e instrumentais (constitutivos, modificativos, impeditivos ou extintivos do direito afirmado) densificadores dos temas da prova
[2]
.
Não havendo enunciação dos temas de prova, o objeto da instrução são todos os factos relevantes (pertinentes) para a decisão da causa em função da lei (material) aplicável, isto é, os factos concludentes
[3]
.
Em qualquer das duas situações o que está em causa são factos a demonstrar através de provas a produzir em juízo.
Com efeito, dispõe o art.º 341º do Código Civil (doravante CC) que «As provas têm por função a demonstração da realidade dos factos.»
Assim, a parte a quem convenha que um dado facto seja dado como assente terá não só de afirmá-lo (art.º 5.º CPC - ónus de alegação), como
[4]
de desenvolver, através de diversos meios probatórios, uma adequada e eficaz atividade probatória (arts. 342.º a 344.º CC - ónus de prova), impondo-se-lhe requerer com os respetivos articulados (art.º 63.º do Código de Processo do Trabalho) a produção dos meios de prova adequados à demonstração dos factos relevantes.
Impõe-se, por sua vez ao tribunal, admitir a produção dos meios de prova que sejam pertinentes (arts. 6.º, n.º 1, 429.º, n.º 2 CPC), sendo que, como afirmado no sumário do Ac. RG de 30/11/2017
[5]
:
“I - Não se pode entender que uma diligência de prova é impertinente só pela circunstância do facto a provar (ou a contra-provar) poder ser demonstrado por outro meio de prova, ou por o meio de prova requerido não o provar de forma plena, ou ainda por ir prolongar a duração do processo
II -Uma diligência de prova só será impertinente (e dever, por isso, ser indeferida) se não for idónea para provar o facto que com ela se pretende demonstrar, se o facto se encontrar já provado por qualquer outra forma, ou se carecer de todo de relevância para a decisão da causa”.
E acrescenta-se com pertinência para o caso dos autos que “Logo, «não pode entender-se que uma diligência de prova é impertinente se o facto que com ela se pretende provar – ou efectuar a respectiva contra prova – pode ser provado por outro meio de prova ou que o meio requerido não o prova de forma plena ou que este iria fazer prolongar a duração do processo: no nosso entender, uma diligência de prova só pode considerar-se impertinente se não for idónea para provar o facto que com ela se pretende provar, se o facto se encontrar já provado por qualquer outra forma ou se carecer de todo de relevância para a decisão da causa» (Ac. da RG, de 20.10.2011, Carlos Guerra, Processo nº 3361.0TBBCL-B.G1. No mesmo sentido, Ac. da RG, de 16.02.2017, Pedro Alexandre Damião e Cunha, Processo nº 4716/15.9T8VCT-A.G1,(…).”
Com estes pressupostos vejamos agora o caso concreto.
Antes de mais, importa desde já afirmar a improcedência da pretensão da ré quanto ao que denomina de indeferimento liminar parcial do recurso.
Com efeito, esta pretensão da ré radica na alegação de que, no que respeita à notificação da B... e da C... para juntar documentos de alegado suporte aos factos relacionados com os pedidos genéricos vertidos na petição inicial, o recorrente respondeu ao generoso convite à liquidação dos referidos pedidos com base nos registos de entradas e saídas de outros colegas, alegando, para o efeito, que «neste momento impossível ao autor cumprir na íntegra e de forma imutável o doutamente ordenado» e de que o recorrente continua a não apresentar uma sustentação de facto minimamente séria e credível, continua a requer a junção de documentos para alegar factos e não para os provar, continua a subverter a lógica processual e a pretender colocar o Digníssimo Tribunal ao seu serviço, instrumentalizando-o em busca dos factos suscetíveis de, na sua visão das coisas, suportar a sua tese, e continua a preterir os mecanismos que, nos termos dos artigos 574.º e 575.º do Código Civil e dos artigos 1045.º do Código de Processo Civil, lhe facultam ou teriam facultado os instrumentos para, em primeiro lugar, requerer a apresentação de documentos dos quais, em segundo lugar, pudesse retirar todos os factos essenciais à sua pretensão, apresentando, assim, e em terceiro lugar, uma sustentação fáctica séria, objetiva e credível.
Contudo, tendo o autor respondido ao convite ao aperfeiçoamento da petição inicial, independentemente do que alegou quanto aos elementos com base nos quais o fez, verifica-se que o autor alegou os factos em falta, indicando os turnos que cumpriu em cada dia e que eram essenciais à liquidação do pedido, tendo reiterado o pedido de notificação para prestação de esclarecimentos e junção de documentos para prova de tais factos e não com vista a, uma vez juntos os documentos e esclarecimentos vir mais tarde a alegar os factos que resultassem desses documentos.
De resto, foi proferido o despacho que concluiu que tendo o autor alegado os factos em falta, ficava prejudicada a exceção de formulação do pedido genérico ilegal, na parte relativa aos pedidos de condenação da ré a pagar quantia devida por incumprimento da regra da rotatividade de turnos, e por inerente trabalho suplementar prestado em antecipação/repetição de turno e não pago e do trabalho prestado em dia de descanso, tendo os autos prosseguido, também, para a sua apreciação.
Acresce que, apesar de o autor ter alegado que era “neste momento impossível ao autor cumprir na íntegra e de forma imutável o doutamente ordenado” não está, por ora, em causa a apreciação da possibilidade de o autor vir modificar os factos alegados no articulado de aperfeiçoamento da petição inicial, mas a relevância dos meios de prova requerido para prova dos factos concretamente alegados.
Não se vislumbra, pois, qualquer motivo para indeferir liminarmente o recurso.
A questão reconduz-se afinal, a saber se as diligências probatórias requeridas pelo autor de junção de documentos têm ou não interesse para a decisão da causa. E referimo-nos apenas à junção de documentos e não de prestação de informações, uma vez que, o que está em causa é a junção de documentos pela B... e pela ré e que se reconduz também a esse efeito a pretensão do autor relativa à C..., já que o que aquele pretende desta é que, caso os tenha, aquela entidade junte aos autos os registos de horas trabalhadas pelo autor no período compreendido entre 2012 e 2019.
Não vem questionada a observância pelo autor dos requisitos formais de admissibilidade dos requerimentos probatórios a que aludem os artigos 429.º (quanto à notificação da ré) e 432.º (quanto à notificação da B... e da C...), ambos do CPC, sendo aqueles tempestivos (art.º 63.º, n.º 1 do CPT) e tendo sido identificados os factos a cuja prova os documentos se destinam.
Trata-se, pois, de aferir da pertinência dos documentos em causa para a decisão, em concreto, para a prova de factos dela necessitados, já que não foram enunciados temas de prova.
Os factos que o autor se propõe provar são os alegados no aperfeiçoamento da petição inicial relativamente aos pedidos de condenação da ré no pagamento do trabalho suplementar decorrente do incumprimento do descanso de 11h entre jornadas de trabalho, e do trabalho prestado em dias de descanso, ou seja, os factos que concretizaram o alegado nos arts. 49.º a 61.º e 144.º a 153.º da petição inicial originária.
Tais factos traduzem-se na alegação dos turnos em que o autor prestou trabalho em dias consecutivos sem que tivesse sido respeitado o intervalo de 11h e na alegação dos dias e horários em que o autor trabalhou sem que tenha sido respeitado o descanso diário obrigatório, factos que são essenciais à procedência daqueles pedidos.
Por isso, não se concorda com o despacho recorrido quanto afirmou que “(…) as informações que o autor pretende que sejam obtidas e os documentos apresentados apenas seriam pertinentes para o apuramento de factos que se tornaram irrelevantes ante a absolvição parcial da ré da instância e do pedido”, já que a absolvição da instância foi relativa ao pedido de condenação da ré no pagamento das médias do trabalho suplementar na remuneração de férias e no subsídio de férias e a absolvição do pedido, por prescrição, foi relativa aos créditos relativos a subsídio de turno, anteriores a 2014, tendo os autos prosseguido para a apreciação dos trabalho suplementar decorrente do incumprimento do descanso de 11h entre jornadas de trabalho e do trabalho prestado em dias de descanso.
Ora, tais factos, mostrando-se controvertidos, carecem de ser provados e ainda que os registos de entradas e saídas, os registo de horas trabalhadas e os mapas demonstrativos de ganho [dos quais, na alegação do autor (arts. 13.º e 165.º da petição inicial originária), constam todos os turnos de trabalho prestado], por si só, possam não ser suficientes para a sua demonstração, não podem deixar de ser considerados relevantes para o efeito quando conjugados entre si e/ou com outros meios de prova.
Por conseguinte, impõe-se revogar a decisão recorrida, que deverá ser substituída por despacho que determine
a notificação da B... para juntar aos autos os registo de entradas e saídas do autor do Porto ..., no período compreendido entre 2014 e 2019; a notificação da ré para juntar aos autos os Mapas Demonstrativos de Ganhos do autor relativos ao período compreendido entre Março de 2014 e Dezembro de 2020; a notificação da C... para juntar aos autos os registos de horas efetivamente trabalhadas pelo autor no período compreendido entre 2014 e 2019, em prazo a fixar.
O recurso procede, pois, na íntegra.
*
Uma vez que a ré ficou totalmente vencida, impende sobre ela a responsabilidade pelo pagamento das custas, nos termos do art.º 527.º do CPC.
*
Decisão
Pelo exposto, acorda-se julgar o recurso procedente, revogando-se o despacho recorrido que deve ser substituído por outro que determine a notificação da B... para juntar aos autos os registo de entradas e saídas do autor do Porto ..., no período compreendido entre 2014 e 2019; a notificação da ré para juntar aos autos os Mapas Demonstrativos de Ganhos do autor relativos ao período compreendido entre Março de 2014 e Dezembro de 2020; a notificação da C... para juntar aos autos os registos de horas efetivamente trabalhadas pelo autor no período compreendido entre 2014 e 2019, em prazo a fixar, com as consequências que couberem no que respeita à produção da prova em julgamento, já iniciada.
Custas pela recorrida.
*
Notifique.
*
Porto, 24/02/2025
Maria Luzia Carvalho (relatora)
António Costa Gomes (1.º adjunto)
António Luís Carvalhão (2.º adjunto)
(assinaturas eletrónicas nos termos dos arts. 132º, n.º 2, 153.º, n.º 1, ambos do CPC e do art.º 19º da Portaria n.º 280/2013 de 26/08)
_______________________________________
[1]
«Ao tribunal ad quem cumpre apreciar as questões suscitadas, sob pena de omissão de pronuncia, mas não tem o dever de responder, ponto por ponto, a cada argumento que seja apresentado para sua sustentação. “Argumentos” não são “questões”, e é a estas que essencialmente se deve dirigir a atividade judicativa.» - António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7.ª ed. Atualizada, pág. 136.
[2]
José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de processo Civil Anotado, vol. 2º, 3ª edição, pág. 205.
[3]
Francisco Ferreira de Almeida; Direito Processual Civil, Vol. II, Almedina, 2015, p. 329.
[4]
Sem prejuízo do disposto pelos arts. 411.º e 412.º CPC
[5]
Processo n.º 351/15.0T8MAC-H.G1, acessível em www.dgsi.pt
|
TRP
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https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/b6949a009bf7facf80258c500055ff94?OpenDocument
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1,750,982,400,000
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NÃO PROVIDO E PROVIDO
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87/23.8GDSNT.L1-3
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87/23.8GDSNT.L1-3
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CRISTINA ISABEL HENRIQUES
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I - O crime de perseguição foi introduzido no nosso ordenamento jurídico há relativamente poucos anos e o fenómeno que está por trás denomina-se em inglês, stalking.
II - O Professor Manuel da Costa Andrade, no comentário conimbricense ao Código Penal, escreve que “o stalking abrange as diferentes manifestações de perseguição persistente e repetida de uma pessoa, imposta contra a vontade da vítima, provocando-lhe estados de ansiedade, stress, perturbação e medo. Impondo-lhe sacrifícios (v.g., mudança de hábitos, de lugares frequentados, de casa.), e impedindo-a de conduzir e conformar livremente a sua vida.
III - A análise do tipo penal consagrado no artigo 154º-A do CP permite-nos constatar, desde logo, considerando a opção do legislador nacional pela expressão “de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação”, estarmos em presença de um crime de perigo concreto – pois que a hipotética lesão vem descrita na norma mas não necessita de existir para que o crime se verifique – não sendo necessária para a sua consumação a efetiva lesão do bem jurídico, bastando-se aquela com a adequação da conduta a provocar a referida lesão, ou seja, exigindo-se apenas que a conduta criminosa seja idónea a prejudicar a liberdade de determinação da vítima ou a provocar-lhe medo. Quanto ao tipo subjetivo, o crime de perseguição é um crime doloso, não admitindo a sua configuração objetiva qualquer concessão a comportamentos negligentes, desde logo porquanto as próprias condutas criminosas evidenciam uma premeditação e uma reiteração que não abrem caminhos a eventuais processos não intencionais ou meramente resultantes de violações de deveres de cuidado.
IV - O crime em causa pressupõe a ideia de reiteração e de frequência, através da repetição de várias condutas.
V - No caso em apreço, já depois de terminado o relacionamento, e porque não interiorizou esse final, o arguido passou a perseguir a vítima, perturbando a sua paz e a sua liberdade de movimentos, adoptando reiteradas formas de comunicar com ela, contra a vontade da mesma, para tentar dela reaproximar-se e nas suas palavras para tentar compreender os motivos que conduziram ao fim do relacionamento, uma vez que o arguido se convence que estão relacionados com outro homem.
|
[
"CRIME DE PERSEGUIÇÃO",
"STALKING"
] |
Acordam em Conferência os Juízes da 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa
1. Relatório:
Nos autos de Processo n.º 87/23.8GDSNT.L1 foi proferida sentença na qual foi decidido
:
A) Absolvo o arguido, AA, da prática em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica agravada, na pessoa da filha do arguido, BB, previsto e punido pelo artigo 152º, nºs 1, alíneas d) e e), 2, alínea a), 4 e 5, do Código Penal por cuja prática vinha o mesmo acusado.
B) Condeno o arguido, AA pela prática, como
autor material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, na pessoa da sua ex-companheira CC. p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, alínea b), do C. Penal, na pena de 1 ano e 8 meses de prisão suspensa, na sua execução, nos termos do disposto no artigo 50º, do Código Penal, pelo período de 1 ano e 8 meses, sujeitando tal suspensão a regime de prova, nos termos do disposto nos artigos 53º e 54º, ambos do Código Penal impondo, igualmente, ao arguido, nos termos do disposto no artigo 54º, nº 3, do Código Penal, as obrigações aí mencionadas, a saber:
1) Responder a convocatórias do magistrado responsável pela execução e do
técnico de reinserção social;
2) Receber visitas do técnico de reinserção social e comunicar-lhe ou colocar à
sua disposição informações e documentos comprovativos dos seus meios de
subsistência;
3) Informar o técnico de reinserção social sobre alterações de residência e de
emprego, bem como sobre qualquer deslocação superior a oito dias e sobre a
data do previsível regresso; e
4) Obter autorização prévia do magistrado responsável pela execução para se
deslocar ao estrangeiro.
C) Condeno o arguido, AA, na pena acessória de proibição de contacto com a ofendida, CC, devendo afastar-se da residência desta, do seu local de trabalho e do local onde aquela se encontre, pelo período de 1 ano e 8 meses (artigo 152°, nºs 4 e 5, do Código Penal) sendo, o seu cumprimento, fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.
D) Mais, condeno o arguido, AA, nos termos do disposto no artigo 82º-A, do C. P. Penal, em conjugação com o disposto no artigo 21º, da Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro, a pagar á ofendida, CC, a título de reparação por danos não patrimoniais, no montante no valor de €500, acrescida de juros vencidos e vincendos.
Não conformado com tal acórdão, veio o arguido acima melhor identificado, interpor recurso para este Tribunal, juntando para tanto as motivações que constam dos autos, e que aqui se dão por integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais, concluindo nos seguintes termos, que se transcrevem:
1ª)O presente recurso versa sobre matéria de facto e de Direito, com os fundamentos previstos no disposto no art.410º do CPP, nomeadamente, contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e erro notório na apreciação da prova.
2ª)Por uma questão de economia processual dá-se aqui por reproduzida toda a matéria de facto julgada provada e não provada na douta sentença recorrida.
3ª)Na motivação da decisão da matéria de facto, consta, designadamente, que: “Na verdade, o arguido prestou declarações de natureza presencial, porquanto envolvido na situação, porém de forma nervosa, algo baralhadas, fugidias ao teor da acusação, evasivas, perturbada, mas assumindo os factos imputados quanto á sua ex-companheira, explicando que não tinha intenção de ofender quem quer que fosse, só queria saber o que se estava a passar. (…) Manifesta que, na altura da separação nada lhe foi explicado que a sua ex-companheira nada lhe explicou, apenas lhe pediu espaço, tendo-lhe dito que não se sentia bem, sendo que, na altura, ocorreu-lhe que pudesse estar a ser traído, tendo dito á sua ex-companheira que precisava de saber se ela tinha alguém, (…) Terminou por dizer que não mais contactou com a ofendida. (…) Prestou depoimento CC, ofendida dos autos, que disse conhecer o arguido por terem mantido uma relação amorosa entre 2000 a ... de 2020, explicando que foi a depoente quem acabou com a relação com o arguido, mas que este não aceitou a separação, sendo que depois de regressar do ..., em Setembro, teve uma conversa explicita com o arguido.” (…)“Relatou que o arguido tinha desconfiança em relação a um amigo comum, assim como também disse que a depoente tinha uma relação com alguém do seu trabalho, sendo que estas desconfianças e estas conversas só tiveram o seu inicio depois de Setembro, são posteriores á separação.” (…) O arguido também teve desconfiança em relação a um dos directores do local onde a depoente trabalha, o que colocou o trabalho da depoente em risco Explicou que o arguido lhe dirigiu ofensas verbais, que a perseguia, que recorria ao Instagram, sempre dizendo que queria saber a verdade, acrescentando que no decurso das discussões a filha de ambos assistiu e que o arguido nunca lhe chamou chula. (…)Confirmou que, actualmente, não há contacto entre o arguido e a depoente” -O negrito e o sublinhado são nossos.
4ª)Daqui decorre que, salvo o devido respeito, a douta sentença recorrida, enferma, nomeadamente, do vício da errada interpretação e apreciação das provas e de contradição entre a decisão e a fundamentação, ao julgar incorretamente como provados os factos constantes dos pontos 1, 5, 35, 36, 37, 38 e 39 do elenco dos factos provados da sentença recorrida, em clara violação dos arts.º 129.º e 134.º n.º 1 b) do CPP.
5ª)Como decorre das declarações da própria ofendida, explanadas na motivação da decisão de facto, a relação amorosa de ambos durou desde o ano de 2000 (e não de 2006-cfr. facto julgado provado no ponto 1) até ... de 2020. Mais resulta das referidas declarações da ofendida que o arguido não aceitou a separação e que lhe disse que queria saber a verdade e que atualmente não há contacto entre si e o arguido.
6ª)Acresce que, o arguido referiu nas suas declarações supra referidas na motivação da matéria de facto que não tinha intenção de ofender quem quer que fosse, só queria saber o que se estava a passar e que aquando da separação a sua ex-companheira só lhe pediu espaço, pelo que, lhe ocorreu que estivesse a ser traído, mais referindo que não mais contactou com a ofendida.
7ª)Deste modo, nomeadamente face à contradição verificada, os factos constantes dos pontos 1, 5, 35, 36, 37, 38 e 39 do elenco dos factos julgados provados na sentença recorrida foram incorretamente dados por provados, pelo que, devem ser julgados não provados, com a consequente absolvição do arguido, porquanto, este não praticou o crime de violência doméstica em que foi incorretamente condenado, quando muito terá cometido um crime de perseguição e injúrias, pois abordou por diversas vezes a ofendida com o único intuito de querer saber o que se estava a passar, ou seja, se esta o traiu.
8ª)Caso não se entenda que o arguido deve ser, desde já, absolvido da prática do crime que lhe vem imputado, face ao supra exposto, deverá a pena que lhe foi aplicada ser reduzida para o seu limite mínimo de 12 meses de prisão suspensa na sua execução, face à diminuta gravidade dos factos praticados. De facto, há que valorar, para aferir e determinar a medida da pena, o grau de culpa do agente - devendo o facto ilícito ser valorado em função do seu efeito externo -, e, por outro lado, atender às necessidades de prevenção - cfr. artigo 71º do Código Penal.
9ª)Nos termos dos artigos 40º, n.º 2 e 71º do Código Penal, a determinação da medida concreta da pena terá sempre como limite inultrapassável a culpa do agente e as exigências de prevenção geral e especial positivas.
10ª)Quanto à prevenção geral positiva, sempre que o Tribunal aplica uma pena, tem por fim restaurar a confiança que a comunidade deve ter naquela determinada norma que foi violada. Como muitas vezes se tem dito, citando Anabela Miranda Rodrigues, a finalidade essencial e primordial da aplicação da pena reside na prevenção geral, o que significa “que a pena deve ser medida basicamente de acordo com a necessidade de tutela de bens jurídicos que se exprime no caso concreto...alcançando-se mediante a estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada...” (“A Determinação da Medida da Pena Privativa de Liberdade”, Coimbra Editora, pág. 570).
11ª)No que respeita à prevenção especial positiva, visa-se a reintegração do autor do facto ilícito na sociedade, por forma a que não volte a cometer mais crimes.
12ª)A culpa, como vertente pessoal do crime, limita as exigências de prevenção, na medida em que a pena jamais poderá ultrapassar essa culpa sob pena de se desrespeitar o princípio basilar da dignidade humana. Em síntese, dentro desse limite máximo inultrapassável que é a medida da culpa, a pena é determinada “no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo da tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico” (vide Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, Coimbra 2001, pp. 110 e 111) e em função de exigências de prevenção especial.
13ª)Para além disso, para decidir da pena concreta a aplicar há que ter em consideração os fatores previstos no n.º 2 do citado artigo 71º do Código Penal, assim atendendo a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime (estas já foram tomadas em consideração ao estabelecer-se a moldura penal do facto), deponham a favor do agente ou contra ele. Saliente-se que o arguido não tem antecedentes criminais, é atualmente cuidador informal da mãe (cfr. factos julgados provados), a sua filha reside consigo em semanas alternadas e tem apenas o 7º ano.
14ª)Sem violar o princípio da proibição da dupla valoração pode ainda atender-se à intensidade ou aos efeitos do preenchimento de um elemento típico e à sua concretização segundo as especiais circunstâncias do caso, já que o que está aqui em causa são as diferentes modalidades de realização do tipo (neste sentido, Figueiredo Dias, As consequências jurídicas do crime, pág. 234).
15ª)Mas teremos ainda que ponderar especialmente o disposto no art. 71.º, nº 2, do Código Penal, designadamente, a intensidade do dolo e a ausência de antecedentes criminais do arguido.
16ª)O Tribunal a quo violou, assim o disposto no artigo 71º do Código Penal, por incorreta e imprecisa aplicação.
17ª)Há que respeitar a livre apreciação da prova e a convicção do Tribunal, sem, contudo, se descurar o facto de assistir ao arguido o direito de exigir que o acórdão que determina a sua condenação seja criteriosamente fundamentado e se sustente em factos decorrentes da prova efetivamente produzida em audiência de julgamento que permitam, só por si, valorar o grau de ilicitude e a intensidade do dolo.
18ª)Face ao supra exposto, não poderá o recorrente ser condenado, como foi na pena de 1 ano e oito meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, devendo antes a pena aplicada em concreto ser substancialmente inferior, ou seja, situando-se no limite mínimo de 12 meses de prisão, sendo suspensa na sua execução por igual período.
19ª)Deve ainda a suspensão da execução da pena não ser sujeita a regime de prova nem ser aplicada qualquer pena acessória de afastamento da ofendida cujo cumprimento seria verificado por meios de controlo à distância, uma vez que, como decorre dos autos, em sede de inquérito a ofendida rejeitou expressamente tal meio de controlo (cfr. requerimento da DGRSP junto aos autos em 5 de Abril de 2023 e que aqui se dá integralmente por reproduzido para todos os efeitos legais).
20ª)Aliás, como resulta dos depoimentos prestados pelo arguido e pela ofendida atualmente já não se verifica qualquer contacto entre ambos, não existindo qualquer perigo.
21ªAo assim não ter decidido, violou a douta decisão recorrida o disposto nas normas jurídicas acima mencionados, não tendo feito a mais correta interpretação e aplicação das mesmas ao caso concreto, devendo tais normativos legais ter sido interpretados e aplicados no sentido do supra exposto.
Não conformado com tal acórdão, veio o MP, interpor recurso para este Tribunal, juntando para tanto as motivações que constam dos autos, e que aqui se dão por integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais, concluindo nos seguintes termos, que se transcrevem:
Vem o presente recurso interposto da douta Sentença
a quo
que condenou o arguido AA pela prática de um crime de violência doméstica agravada, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, Alínea b), do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão, suspensa na sua execução, por igual período e sujeita a regime de prova, na pessoa de CC.
Foi, igualmente, o arguido condenado na pena acessória de proibição de contactos com a ofendida, CC, devendo afastar-se da residência desta, do seu local de trabalho e do local onde aquela se encontre, pelo período de 1 (um) ano e 8 (oito) meses, sendo, o seu cumprimento, fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.
Por último, foi o arguido AA condenado, nos termos do disposto no artigo 82º-A, do Código Processo Penal, em conjugação com o disposto no artigo 21.º, da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, a pagar à ofendida, CC, a título de reparação por danos não patrimoniais, no montante no valor de 500,00 €, acrescida de juros vencidos e vincendos.
A sentença proferida pelo Tribunal
a quo
considerou provada a seguinte factualidade:
“1. CC e o arguido AA viveram um com o outro em comunhão de leito, mesa e habitação, como se de marido e mulher se tratassem, desde, pelo menos, o ano de 2006 e até 2019.(….)
Atenta a factualidade dada como provada, entende o Ministério Público que o Tribunal
a quo
procedeu a uma errada qualificação jurídica dos factos dados como provados, entendendo-se que tais factos são susceptíveis de integrar os elementos objectivos e subjectivos dos crimes de perseguição e de injúria, previstos e punidos pelos artigos 154.º-A, n.º 1 e 181.º, n.º 1, do Código Penal.
O que distingue o crime de violência doméstica do crime de ofensas à integridade física, injúrias ou ameaças, conferindo àquele uma maior moldura penal e carácter público é, assim, a maior abrangência dos bens jurídicos protegidos por aquele tipo legal como sejam, para além da integridade e saúde física e psíquica, a salvaguarda da dignidade da pessoa humana do ofendido, como sujeito enfraquecido em relação ao agressor.
In casu
, e de acordo com a matéria de facto dada como provada, resultou provado que, - o arguido, por diversas vezes, já depois de terminada a relação, apelidou a ofendida de “vaca”; - o arguido, repetidamente, já depois de terminada a relação com a ofendida, contactou a mesma, directamente ou através da filha de ambos, por diversas vezes por telefone, exigindo saber onde a mesma se encontrava e com quem;
- o arguido, já depois de terminada a relação com a ofendida, continuou a procura-la, quer na sua residência, local de trabalho ou junto ao estabelecimento de ensino frequentado pela filha de ambos;
- o arguido, após o termo do relacionamento passou a enviar mensagens ofendida sempre com o intuito de obter respostas quanto ao fim do relacionamento de ambos;
- o arguido sabia que a sua conduta era adequada a causar medo e inquietação na ofendida.
De facto, atenta a prova produzida em audiência e a factualidade supra dada como provada, entende o Ministério Público que não se apurou a gravidade exigível para o preenchimento do tipo legal – violência doméstica.
A conduta do arguido (que não deixa, no nosso entender, de configurar a prática, em concurso, de um crime de perseguição e de um crime de injúria) não representa um aviltamento da dignidade humana da vítima com a sua “coisificação” que é própria do crime de violência doméstica.
Na verdade, e como decorre das próprias declarações do arguido, a sua conduta foi decorrente do fim abrupto e inesperado do relacionamento com a ofendida e a da sua “necessidade” de compreender os motivos daquela, contexto que deve ser considerado.
Assim, embora criminalmente relevante a conduta do arguido, entende o Ministério Público que a mesma
não pode ser considerada, como integradora de um crime de violência doméstica, mas antes de um crime de perseguição, previsto e punido pelo artigo 154.º-A, do Código Penal e de um crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 181.º, do Código Penal,
encontrando-se preenchidos os elementos objectivos e subjectivos de tais ilícitos.
Quanto ao crime de injúria e de acordo com o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 9/2024 do Supremo Tribunal de Justiça
“O Ministério Público mantém a legitimidade para o exercício da acção penal e o assistente a legitimidade para a prossecução processual, nos casos em que, a final do julgamento,por redução factual de acusação pública por crime de violência doméstica p. e p. no artigo 152º, nº 1, do Código Penal, são dados como provados os factos integrantes do crime de injúria p. e p. no artigo 181º, nº 1, do Código Penal, desde que o ofendido tenha apresentado queixa, se tenha constituído assistente e aderido à acusação do Ministério Público.”
Nos presentes autos, a ofendida CC manifestou desejo de procedimento criminal contra o arguido, conforme resulta do teor do auto de notícia elaborado pela G.N.R. de Colares, contudo, não requereu a sua constituição como assistente, nem acompanhou a acusação pública deduzida pelo Ministério Público.
Pelo que, operando a desqualificação e consequente alteração da qualificação jurídica dos factos dados como provados (como o Ministério Público entende que deve operar), deve o procedimento criminal relativamente ao crime de injúria ser arquivado por falta de legitimidade do Ministério Público para a sua prossecução processual.
Quanto ao crime de perseguição e no que concerne à medida da pena, os critérios legais para tal operação encontram-se cristalizados nos artigos 71.º nºs 1 e 2 e 40.º n.º 2, ambos do Código Penal, os quais determinam que a mesma é efectuada em função da culpa do agente (limite máximo), das exigências de prevenção geral (limite mínimo) e especial (critério determinante dentro da moldura encontrada pela culpa e pela prevenção geral).
No caso, em face do conjunto de todos estes factos, bem como das circunstâncias anteriores e posteriores ao cometimento do crime, da elevada intensidade do dolo, da culpa elevada do agente, das elevadas exigências de prevenção geral e das diminutas de prevenção especial, entende o Ministério Público que a aplicação ao arguido AA de uma pena não privativa da liberdade alcança de forma suficiente as finalidades da punição, pelo que se deve dar preferência à pena de multa com que também é punido o crime imputado.
Assim, tendo em consideração as circunstâncias em que o crime foi cometido, o grau de culpa do agente, a ilicitude do facto, as exigências de prevenção geral e especial supramencionadas e as condições socioeconómicas do arguido,
considera-se adequada, necessária e proporcional a aplicação ao arguido de uma pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à razão diária de 5,50€ (cinco euros e cinquenta cêntimos), o que perfaz um total de 825,00 € oitocentos e vinte e cinco euros).
Face ao exposto e tudo considerado,
entende o Ministério Público que a sentença recorrida procedeu a uma errada qualificação jurídica dos factos dados como provados, devendo o arguido AA ser absolvido do crime de violência doméstica na pessoa de CC e condenado pela prática de um crime de perseguição, previsto e punido pelo artigo 154.º-A, n.º 1, do Código Penal na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à razão diária de 5,50€ (cinco euros e cinquenta cêntimos), o que perfaz um total de 825,00 € (oitocentos e vinte e cinco euros).
Respondeu o MºPº ao recurso do arguido, pugnando pela manutenção da decisão, concluindo nos seguintes termos:
A.A sentença recorrida não padece do vício de erro notório na apreciação da prova/erro de julgamento, cf. artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal, porquanto o Tribunal a quo mais não fez do que extrair, a partir da prova produzida, conclusão perfeitamente lógica, não atentatória das regras da experiência comum, decorrente do exercício (tão legítimo quanto devido) da livre apreciação da prova.
B. Por outro lado, os factos dados como provados ou a fundamentação da decisão não apresentam qualquer contradição entre si e apontando para o preenchimento dos elementos do tipo de crime por que o arguido foi condenado, não se verificando assim o vício de contradição insanável da fundamentação e da fundamentação e da decisão, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Penal.
C. No mais, o Ministério Público discorda da qualificação jurídica da factualidade dada como provada na sentença recorrida tendo interposto recurso da mesma e para a qual se remete no demais.
D. Por tudo o exposto, a sentença recorrida não padece dos vícios invocados na peça processual a que se responde.
Neste Tribunal o Ilustre Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer pugnando quanto ao recurso do arguido pela manutenção da decisão recorrida, aderindo as alegações redigidas pela colega de primeira instância, e pela procedência do recurso quanto à peça recursória do MP.
Foi cumprido o disposto no artigo artº 417º nº 2 do CPP.
Cumpridas as formalidades legais, procedeu-se á conferência.
2.
Fundamentação:
Cumpre assim apreciar e decidir.
É a seguinte a decisão recorrida (fundamentação de facto e motivação):
3.1 – Factos Provados
Discutida a causa, com relevância para a decisão da mesma, lograram provar-se os seguintes factos:
1.
CC e o arguido AA viveram um com o outro em comunhão de leito, mesa e habitação, como se de marido e mulher se tratassem, desde, pelo menos, o ano de 2006 e até 2019.
2.
Reataram o relacionamento no ano de 2020, sem coabitação.
3.
Em ... de 2022, terminaram o relacionamento amoroso.
4.
Do relacionamento nasceu uma filha, BB, em ........2012.
5.
O arguido não aceita o fim do relacionamento.
6.
Por diversas vezes, desde ..., o arguido telefonou a CC perguntando: “onde estás?”, “com quem estás?”.
7.
No dia ... de ... de 2022 CC ausentou-se de férias com a sua filha para o ....
8.
No dia ... de ... de 2022 o arguido telefonou para CC e disse: “estás-me a enganar”, “só queres estar em férias”.
9.
Após essa data, por diversas vezes, o arguido disse a CC: “eu quero a verdade”, “quero saber se sou o tipo mais cornudo da zona”, “vaca”, “vai para o caralho”, “grande vaca”, “fodeste-me a vida”.
8.
Em data não concretamente apurada, em ... de 2022, o arguido telefonou a CC e disse: “vou matar o teu patrão”, “se não o matar, mando alguém matá-lo”.
9.
Em data não concretamente apurada, no início do mês de ... de 2022, a meio da manhã, o arguido deslocou-se ao local de trabalho de CC, sito em ..., e telefonou para aquela dizendo: “tens de me dizer a verdade senão vou até às últimas consequências”.
10.
CC foi ao seu encontro, altura em que o arguido exigiu aceder ao conteúdo do telemóvel daquela.
11.
CC entregou o seu telemóvel ao arguido para que aquele visse o seu conteúdo.
12.
O arguido acedeu às aplicações Messenger.
15.
Após, o arguido exigiu que queria ver as mensagens da aplicação Whatsapp de CC ao que aquela negou e retirou-lhe o telemóvel.
16.
O arguido ficou muito agressivo, começou a bater com a cabeça numa parede e em voz alta disse: só preciso de saber a verdade”, “matas-me”, “preciso saber a verdade para renascer”, “a ti não te toco mas tudo o que está à volta eu destruo, mas em ti não te toco”.
17.
CC, com receio do arguido, dirigiu-se à sua viatura automóvel.
18.
O arguido foi atrás de CC ao mesmo tempo que dizia: “quero saber a verdade”, “quero saber se sou o tipo mais cornudo da zona”, ao mesmo tempo que rasgava a camisola que trajava de forma agressiva.
19.
CC entrou na viatura, trancou as portas e conduziu até à sua residência.
20.
Enquanto conduzia o arguido telefonou várias vezes para CC que não atendeu.
21.
No dia ... de ... de 2023, pelas 17h00 CC telefonou ao arguido por questões relativas à filha comum.
22.
Após discussão, o arguido disse: “acabaste com a minha vida”, “eu estou aí perto, sei onde estás, vou já ter contigo”.
23.
CC deslocou-se à escola para ir buscar a filha, altura em que o arguido se dirigiu à viatura daquela e, junto ao vidro gritou: “quero saber a verdade”, “mataste-me por dentro”, “vais ficar cheia de remorsos quando me vires no chão morto”, “a verdade mais cedo ou mais tarde vai vir ao meu encontro”, “agora os teus meninos já estão todos cá”.
24.
CC pediu ao arguido que cessasse aquela conduta ao que o mesmo disse: “já tens macho não é?”.
25.
CC abandonou o local.
26.
Por diversas vezes, em datas não concretamente apuradas, o arguido enviou fotografias do casal a CC, pedindo-lhe que reatasse o relacionamento.
27.
Por diversas vezes, em datas não concretamente apuradas, o arguido disse a CC: “tu ainda me vais ver morto aqui no chão e vais sentir remorsos para o resto da vida”.
28.
No dia ... de ... de 2023, pelas 14h25, o arguido disse a CC que não queria que a filha fosse ao seu local de trabalho porque não a queria “na companhia” dos seus patrões.
29.
Pelas 14h37 o arguido disse a CC que caso aquela persistisse em levar a sua filha para o local de trabalho ia dirigir-se à porta daquele local e impedir a sua entrada.
30.
CC dirigiu-se ao local de trabalho onde se encontrava, à porta, o denunciado.
31.
O arguido encetou discussão com CC.
32.
A Guarda Nacional Republicana foi chamada ao local e o arguido foi identificado.
33.
Na presença dos militares da Guarda Nacional Republicana o arguido disse: “era isto que querias não era?”.
34.
Após, disse aos militares da Guarda Nacional Republicana: “nunca lhe toquei com um dedo! Se ela disse o contrário está a mentir! Posso gritar, dar cabeçadas na parede, mas nunca lhe toquei com um dedo!”.
35.
Todas as actuações assim descritas são fortemente ofensivas da dignidade pessoal de CC e provocam na mesma estado de nervos constante, angústia, ansiedade, receio e sentimentos de sujeição aos humores do denunciado.
36.
Ao agir da forma descrita o arguido quis e conseguiu maltratar CC, sobretudo a sua saúde psíquica, fazendo-a viver em permanente sobressalto por força das expressões de cariz injurioso que proferiu contra a mesma, bem sabendo que a sua conduta é idónea a provocar medo e inquietação àquela como efetivamente provocou.
37.
O arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
38.
Com o seu comportamento conseguiu diminuí-la no respeito que lhe era devido, mostrando-se indiferente pelo estado em que a deixava.
39.
Agiu o arguido livre, conscientemente, com intenção de ofender psicologicamente CC, demonstrando falta de consideração por esta enquanto sua companheira.
Não se lograram provar factos com interesse para a descoberta da verdade e boa decisão da causa.
*
3.2 - Factos Não Provados
Dos alegados não se lograram provar os seguintes factos com relevo para a decisão da causa:
a. Que nas circunstâncias descritas na matéria de facto supra provada, o arguido desde o início do relacionamento ingeria bebidas alcoólicas em excesso, ficando ébrio com frequência e que nessas ocasiões o arguido discutia com CC e tornava-se agressivo.
b.
Que em data não concretamente apurada, a partir de ..., na residência do arguido, o mesmo disse à filha BB, referindo-se a CC: “ela fodeu a minha vida”.
c.
O arguido diz a BB que a mãe se vai encontrar com amantes.
d.
Que nas circunstâncias descritas na matéria de facto supra provada, a filha BB chegou à viatura e, vendo que o pai gritava, entrou no carro a chorar.
e.
No dia ... a filha do casal informou o arguido que não pretendia passar com ele o fim de semana e o arguido telefonou para CC e disse em tom agressivo: “fodeste a minha vida e ainda me queres tirar a minha filha!”.
f.
Que nas circunstâncias descritas na matéria de facto supra provada, na presença da filha menor que ficou muito nervosa e ansiosa, chorosa e triste.
g.
Que BB recusa-se a ir às aulas de natação com receio que o pai lá esteja ou que a vá ver.
h.
O arguido praticou os factos na presença da sua filha, menor de idade, maltratando-a na sua saúde psíquica, fazendo-a viver em permanente sobressalto por força das expressões de caráter ameaçatório que proferiu contra a progenitora, bem sabendo que a sua conduta é idónea a provocar medo e inquietação àquela como efetivamente provocou e perturbar o seu crescimento enquanto criança.
i.
Que todas as actuações descritas na matéria de facto provada supra são fortemente ofensivas da dignidade pessoal de BB e provocam na mesma estado de nervos constante, angústia, ansiedade, receio e sentimentos de sujeição aos humores do denunciado.
j.
Que ao agir da forma descrita na matéria de facto provada supra, o arguido quis e conseguiu maltratar BB, sobretudo a sua saúde psíquica, fazendo-a viver em permanente sobressalto por força das expressões de cariz injurioso que proferiu contra a mesma, bem sabendo que a sua conduta é idónea a provocar medo e inquietação àquela como efectivamente provocou.
k.
Com o seu comportamento, descrita na matéria de facto provada supra, conseguiu o arguido diminuí-la no respeito que lhe era devido, mostrando-se indiferente pelo estado em que a deixava.
l.
Agiu o arguido livre e conscientemente, com a intenção de ofender psicologicamente BB, demonstrando falta de consideração por esta enquanto filha.
j.
Que o arguido tenha em qualquer circunstância chamado “ chula” á sua ex-companheira.
m.
Desde final do ano de 2022, por diversas vezes, o arguido enviou mensagens ao patrão de CC demonstrando ciúmes e dizendo que aqueles mantinham um relacionamento amoroso
k.
Que nas circunstâncias descritas na matéria de facto provada o arguido cuspisse para o chão.
n.
Após várias insistências do arguido, CC atendeu a chamada e aquele disse: “vou a tua casa e vou partir tudo”, “para esclarecer os vinte e dois anos em que me mataste”.
o.
CC disse que ia chamar a Guarda Nacional Republicana ao local, altura em que o arguido disse: “podes chamar quem tu quiseres, que eu não tenho medo de ninguém”, “chama a polícia, chama”.
3.3 - Motivação da decisão da matéria de facto
A decisão sobre a matéria de facto formou-a, este tribunal, com base na apreciação crítica do conjunto da prova produzida em audiência de julgamento, sendo que a convicção do tribunal, relativamente aos factos que considerou provados e não provados, teve por base as declarações prestadas pelo arguido e o depoimento prestado pelas testemunhas, em audiência de julgamento, devidamente concatenados e confrontados entre si, na inexistência de prova documental relevante, não resultando corroborada a totalidade da acusação pública.
Na verdade, o arguido prestou declarações de natureza presencial, porquanto envolvido na situação, porém de forma nervosa, algo baralhadas, fugidias ao teor da acusação, evasivas, perturbada, mas assumindo os factos imputados quanto á sua ex-companheira, explicando que não tinha intenção de ofender quem quer que fosse, só queria saber o que se estava a passar.
Confirmou o inicio e o fim da relação nos termos constantes da acusação. Disse não se recordar que tenha usado expressões como “vaca” e “chula” dirigindo-se á sua ex-companheira, assim como não se lembra se ameaçou matar o patrão da sua ex-companheira, mas se o disse não foi com intenção.
Acabou por assumir o essencial do que consta no facto 9 supra provado.
Disse que não tem problemas com a bebida.
Assume que o que disse foi de cabeça quente.
Disse á sua ex-companheira que se matava e esta riu-se, gozou com o declarante.
Manifesta que, na altura da separação nada lhe foi explicado que a sua ex-companheira nada lhe explicou, apenas lhe pediu espaço, tendo-lhe dito que não se sentia bem, sendo que, na altura, ocorreu-lhe que pudesse estar a ser traído, tendo dito á sua ex-companheira que precisava de saber se ela tinha alguém, confirmando
•
O episódio supra provado em que se descontrolou e bateu com a cabeça, admitindo
•
que consta no facto 16, supra provado.
Também confirmou que mandou fotos dos dois á sua ex-companheira. Terminou por dizer que não mais contactou com a ofendida.
Quanto aos factos imputados relativos á sua filha disse que esta nunca assistiu aos factos que admitiu ter praticado em relação a sua ex-companheira e que o Hotel era frequentado por modelos, havia consumo de droga, mas que a sua filha nunca se queixou da piscina.
Acrescentou que nunca falou em amantes da ex-companheira. Declarações em que acabou por corroborar parte da acusação pública quanto á ofendida, sua ex-companheira, nada assumindo quanto á ofendida sua filha.
Prestou depoimento CC, ofendida dos autos, que disse conhecer o arguido por terem mantido uma relação amorosa entre 2000 a ... de 2020, explicando que foi a depoente quem acabou com a relação com o arguido, mas que este não aceitou a separação, sendo que depois de regressar do ..., em Setembro, teve uma conversa explicita com o arguido.
Relatou que o arguido tinha desconfiança em relação a um amigo comum, assim como também disse que a depoente tinha uma relação com alguém do seu trabalho, sendo que estas desconfianças e estas conversas só tiveram o seu inicio depois de Setembro, são posteriores á separação.
O arguido também teve desconfiança em relação a um dos directores do local onde a depoente trabalha, o que colocou o trabalho da depoente em risco.
Explicou que o arguido lhe dirigiu ofensas verbais, que a perseguia, que recorria ao Instagram, sempre dizendo que queria saber a verdade, acrescentando que no decurso das discussões a filha de ambos assistiu e que o arguido nunca lhe chamou chula.
Explicou que com a sua actuação o arguido afectou a imagem da depoente, quer como mulher, quer como mãe, nunca a agrediu fisicamente, mas a pressão psicológica era enorme.
Mais, disse que o arguido foi, por vária vezes, ao local de trabalho da depoente, tendo a intenção de reatar a relação com esta.
Também teve acesso ao telemóvel da depoente, acedeu ao Messanger e queria aceder ao Whatspp, mas a depoente não deixou.
Acrescentou que o arguido também ameaçava dizendo que matava toda a gente á volta da ofendida e que se suicidava.
Negou que o arguido bebesse.
Confirmou o facto provado em 16, supra provado, mas disse que o arguido não cuspia.
Terminou por relatar os factos ocorridos no dia da queixa, dia ... em que o patrão disse á depoente para que conseguisse que o arguido parasse com a publicação de que ele e a depoente tinham uma relação.
Confirmou que, actualmente, não há contacto entre o arguido e a depoente.
Quanto á filha de ambos a depoente afirmou que o arguido não é assim tão preocupado com a filha, não acrescentando a depoente factos concretos que pudessem levar a fixar factos praticados pelo arguido em relação á filha de ambos. Depoimento de natureza presencial, porquanto envolvida na situação, prestado de forma tranquila, explicada e circunstanciada, assumindo credibilidade, corroborando parte substancial dos factos da acusação pública relativos á depoente.
Quanto aos factos imputados ao arguido em relação á filha BB a depoente não esclareceu factos suficientes, de forma consistente, que pudessem integrar a prática de qualquer crime perpetrado pelo arguido em relação á filha de ambos.
BB, disse conhecer o arguido por ser seu pai e a ofendida por ser sua mãe, em exercício de direito que lhe assiste, não quis prestar quaisquer declarações, pelo que nada esclareceu.
Prestou depoimento DD, que disse conhecer o arguido há muitos anos por ser ex-companheiro da sua amiga, aqui ofendida, esclarecendo que privou com o casal e que as coisas corriam bem, tendo tido conhecimento, entretanto, que a relação havia chegado ao fim.
Explicou que a dada altura a ofendida CC quis ir para casa da depoente, sendo que o arguido fazia muitas videochamadas, sempre a perguntar onde estava e com quem estava.
A depoente assistiu ao desespero da ofendida CC que chorava muito.
Terminou por dizer que viu as mensagens do arguido em que esta chamava nomes á ofendida CC.
Depoimento prestado de forma séria e imparcial, credível, apenas relatando o que viu, assumindo relevância quanto ás chamadas do arguido e ao teor das mesmas, bem como ao efeito que o arguido, com a sua conduta, causava á ofendida CC. EE, disse conhecer o arguido por terem sido colegas de escola e por ser ex-companheiro da sua amiga, a ofendida CC, que explicou que não privava com o casal, não frequentava a casa e que a nada assistiu, o que sabe foi a ofendida que lhe contou.
Assim, a ofendida falou-lhe de actos de perseguição, uma vez que o arguido ia ao trabalho da ofendida CC.
Mais, disse ter assistido, na casa da ofendida CC, a situação em que a filha BB não queria ir para o pai, o arguido e ao telefone a referida BB chorava compulsivamente.
Terminou por dizer que a ofendida CC ficava triste.
Depoimento prestado de forma séria e imparcial, credível, porém não assumindo relevância porquanto nada, de relevante, presenciou.
Finalmente, prestou depoimento FF, que disse conhecer o arguido e a ofendida somente por serem pais de uma aluna na escola onde trabalha, depoimento que prestado de forma séria e imparcial, não assumiu qualquer relevância, uma vez que nada de relevante presenciou, apenas relatando que viu a ofendida CC dentro do carro e o arguido fora do mesmo sendo que este último gesticulava, mas a depoente não ouvia o que diziam.
Assim considerada a prova constata-se a existência de duas versões, a do arguido e a da ofendida CC, sendo que o arguido assumiu factos, em relação á ofendida CC, de forma coincidente com o relatado pela própria.
Quanto ao crime imputado ao arguido perpetrado sobre a filha de ambos, o arguido nada assumiu que pudesse consubstanciar a prática de qualquer crime e a depoente também não relatou factos de forma bastante e consistente para que se pudessem imputar factos ao arguido que se pudessem qualificar como crime.
As demais testemunhas inquiridas, pese embora o tenham feito de forma imparcial e séria, a verdade é que não presenciaram situações em relação á ofendida BB que pudessem preencher a prática de qualquer crime.
Assim, seria o depoimento de BB que poderia esclarecer os factos imputados ao arguido como tendo sido perpetrados contra a referida BB, assim como poderia relatar o que presenciou ou não entre arguido e ofendida CC.
Uma vez que a filha do arguido não quis prestar depoimento, quanto aos factos relativos a ela, nada de relevante se apurou e quanto aos factos relativos á sua mãe, a ofendida CC, apenas se podem dar como provados os assumidos inequivocamente pelo arguido e aqueles que o arguido não se lembrava ao certo ou admitia tê-los praticado e a ofendida CC os relatou de forma lembrada e circunstanciada.
Também, em sede de prova documental foram considerados as cópias de mensagens de fls. 29, 30 e 59 a 61; o auto de transcrição de áudio de fls. 69; certidão de assento de nascimento de fls. 93 e o CRC, actualizado, de fls. 253, dos autos.
***
As questões colocadas à consideração deste Tribunal são as seguintes:
A. Saber se o tribunal errou ao considerar como provados os factos constantes dos artigos 1, 5, 35 a 39; nomeadamente se ocorreu um erro notório na apreciação da prova e/ou contradição insanável da fundamentação e entre esta e a decisão;
B. Saber se os factos dados como provados integram a prática do crime pelo qual o arguido foi condenado, mormente o crime de violência doméstica ou se pelo contrário integram a prática de um crime de perseguição pelo qual o arguido deve ser condenado;
C. Saber se a pena aplicada foi ou não excessiva e se deve ser diminuída;
***
A.
Saber se o tribunal errou ao considerar como provados os factos constantes dos artigos 1, 5, 35 a 39; nomeadamente se ocorreu um erro notório na apreciação da prova e/ou contradição insanável da fundamentação;
O arguido, na motivação, e nas conclusões, retira um pequeno pormenor relativo à data do início do relacionamento (2000 ou 2006) e descreve parcialmente os depoimentos de arguido e assistente, aludindo também à motivação, para concluir que o tribunal deu erradamente como provados os factos constantes dos artigos 1º, 5º, 35º a 39º, existindo, quanto ao arguido, contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e erro notório na apreciação da prova.
O tribunal descreveu os depoimentos das testemunhas e explicitou os motivos pelos quais atribuiu, ou não, credibilidade às suas declarações, numa exposição simples, mas suficientemente, pormenorizada, sólida e coerente.
Quanto aos vícios a que alude o artigo 410º do CPP, o arguido faz referência ao erro notório na apreciação da prova e a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão.
Em todo o caso, vejamos se algum desses vícios se verifica.
Estatui o artigo 410º, n.º2 do CPP que:
mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só, ou conjugada com as regras da experiência comum:
a.
a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b.
a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c.
erro notório na apreciação da prova.
Através da consagração, no nº2 do artigo 410º do CPP, do recurso de revista alargada, o legislador pretendeu que o recurso de revista visasse, tal como preconizava a melhor doutrina, também a finalidade de obtenção de uma “decisão concretamente justa do caso, sem perder de vista o fim da uniformidade da jurisprudência” – Castanheira Neves, Questão de facto – questão de direito ou o problema metodológico da juridicidade, I Coimbra, 1967,p. 34 e seguintes.
Os vícios elencados no n.º2 do artigo 410º do CPP têm de resultar do contexto factual inserido na decisão, por si, ou em confronto com as regras da experiência comum, ou seja, tais vícios apenas existirão quando uma pessoa média facilmente deles se dá conta.
Pode ler-se no Acórdão do STJ, relatado pelo Senhor Juiz Conselheiro João Silva Miguel, no processo n.º 502/08.0 GEALR.. de 24.02.2016, o seguinte, a propósito destes vícios:
O vício previsto pela alínea
a)
do n.º 2 do artigo 410.º do CPP verifica-se quando, da factualidade vertida na decisão, se concluir faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados ou descritos, impossibilitem, por sua ausência, um juízo seguro (de direito) de condenação ou de absolvição: a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito encontrada.
Quanto ao vício previsto pela alínea
b)
do n.º 2 do mesmo preceito legal, verifica-se contradição insanável – a que não possa ser ultrapassada ainda que com recurso ao contexto da decisão no seu todo ou às regras da experiência comum – da fundamentação - quando se dá como provado e não provado determinado facto, quando ao mesmo tempo se afirma ou nega a mesma coisa, quando simultaneamente se dão como assentes factos contraditórios, e ainda quando se estabelece confronto insuperável e contraditório entre a fundamentação probatória da matéria de facto, ou contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, quando a fundamentação justifica decisão oposta, ou não justifica a decisão.
Por fim, ocorre o vício previsto pela alínea
c)
do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, quando, partindo do texto da decisão recorrida, a matéria de facto considerada provada e não provada pelo tribunal
a quo
, atenta, de forma notória, evidente ou manifesta, contra as regras da experiência comum, avaliadas de acordo com o padrão do homem médio.
Especificamente quanto ao vício da contradição insanável, a que alude a alínea
b)
do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, refere-se no acórdão deste Supremo Tribunal, de 12 de março de 2015, Proc. n.º 418/11.3GAACB.C1.S1 - 3.ª Secção, que
«[o] vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão verifica-se quando no texto da decisão constem posições antagónicas ou inconciliáveis, que se excluam mutuamente ou não possam ser compreendidas simultaneamente dentro da perspetiva de lógica interna da decisão, tanto na coordenação possível dos factos e respetivas consequências, como nos pressupostos de uma solução de direito».
Assim, pode afirmar-se que há contradição insanável da fundamentação quando, através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável entre os factos provados, entre estes e os não provados, ou até entre a fundamentação probatória da matéria de facto.
A contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, por sua vez, ocorrerá quando, também através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável entre os meios de prova invocados na fundamentação como base dos factos provados ou entre a fundamentação e o dispositivo da decisão.
Nas palavras de Simas Santos e Leal Henriques
[4]
, «[p]or contradição, entende-se o facto de afirmar e de negar ao mesmo tempo uma coisa ou a emissão de duas proposições contraditórias que não possam ser simultaneamente verdadeiras e falsas, entendendo-se como proposições contraditórias as que tendo o mesmo sujeito e o mesmo atributo diferem na quantidade e qualidade. Para os fins do preceito (al. b) do n.º 2) constitui contradição apenas e tão só aquela que, expressamente se postula, se apresente como insanável, irredutível, que não possa ser integrada com recurso à decisão recorrida no seu todo, por si só ou com auxílio das regras da experiência.»
Percorrida a decisão, não se vislumbram os invocados vícios.
Na decisão estão explanados os factos que conduziram à decisão e a possibilitaram, não há qualquer contradição na fundamentação, nem tão pouco é notório qualquer erro na apreciação da prova.
O arguido alude à questão de o relacionamento amoroso se ter iniciado em 2000, o que terá sido dito pela vítima, mas isso em nada conflitua com o artigo 1º da matéria de facto provada no qual se deu como assente que viveram em comunhão desde 2006 dado que ter um relacionamento amoroso e viver em comunhão de leito, mesa e habitação não é a mesma coisa.
Afirma também que haveria uma contradição por se ter dado como assente no artigo 5º que o arguido não aceita o fim do relacionamento porque na própria decisão se acaba por dizer que a ofendida terá dito que actualmente não mantêm contacto. Trata-se apenas da normal discrepância entre o que estava a suceder quando foi proferida a acusação e no momento em que as declarações são prestadas.
Por outro lado, pretende o arguido que afirmou que não teve a intenção de ofender a vítima, mas o tribunal deu como provados os artigos 35º a 39º, os quais se reportam ao dolo e à consciência da ilicitude.
Não há aqui contradição alguma, por um lado porque o tribunal não está obrigado a acreditar em tudo aquilo que o arguido diz e por outro porque em bom rigor, o dolo é composto por “conhecimento” e “vontade”, englobando o primeiro termo o conhecimento propriamente dito, mas também a representação e a previsão, enquanto no segundo termo poderemos incluir a intenção, mas também a aceitação, - ora, tal conhecimento e tal vontade são actos interiores, psíquicos, tratando-se, do ponto de vista da análise, de conceitos a que poderemos chamar mentalísticos.
Os actos psíquicos não se comprovam em si mesmos, mas mediante ilações, ou seja, os actos psíquicos transcendem a possibilidade de comprovação histórico-empírica, pelo que, do ponto de vista da análise, da análise jurídico penal, para o nosso caso, não são questões de prova – adiantamos já – mas questões de validade (científica, sociológica, lógico-intencional, semântica, filológica); trata-se de significações, apreciações, avaliações, não se trata de factos; por outras palavras, o apuramento do dolo do agente, enquanto acto interior e conceito mentalístico, é uma conclusão, uma ilação e uma atribuição de significado social que o tribunal criminal extrai a partir dos factos imputados ao arguido que foram dados como provados, factos esses lidos à luz das regras da experiência da vida, da normalidade social, da experiência comum.
Concretizando, a questão do dolo criminal não é uma questão de prova, é uma questão já para lá e posterior à prova, sendo certo que o dolo não é, digamos assim, do ponto de vista do juízo penal, algo de ontológico mas sim algo de sociológico e normativo, cuja existência ou inexistência in casu, é decidida tendo por base os factos dados como provados – em sede de questão-de-facto – e critérios de experiência comum, critérios sociais
(Rui Patrício, o dolo enquanto elementos do tipo penal (no direito português actual): questão de facto ou questão de direito? , in separata da revista da ordem dos advogados, ano 58, I, 1998.
Isto é, o dolo não é uma questão de prova, mas há-de concluir-se de presunções legais e naturais que não são objecto de prova, sendo que, por isso mesmo, não pode o arguido afirmar que a decisão enferma de alguma contradição apenas porque deu como provada a intenção do arguido, e o mesmo afirma que não teve essa mesma intenção, de contrário, nunca nenhum arguido teria dolo, se ele dependesse exclusivamente da sua confissão.
Nos factos provados estão descritas as condutas integradoras dos elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime, nenhuma insuficiência se detectando.
Por outro lado, não há nenhuma contradição na matéria de facto, entre a matéria de facto e a respectiva motivação.
Não se descortina também nenhum clamoroso erro na apreciação da prova.
Concluindo, nenhum motivo existe para operar qualquer alteração à matéria de facto dada como provada.
A.
Saber se os factos dados como provados integram a prática do crime pelo qual o arguido foi condenado, mormente o crime de violência doméstica ou se os factos integram a prática de um crime de perseguição;
O artigo 152º, n.º1 do CP, estatui hoje que:
1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou
d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 - No caso previsto no número anterior, se o agente:
a) praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima (…) é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.
3 - Se dos factos previstos no n.º 1 resultar:
a) Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de dois a oito anos;
b) A morte, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos.
4 - Nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.
5 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.
6 - Quem for condenado por crime previsto neste artigo pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser inibido do exercício das responsabilidades parentais(…) por um período de um a dez anos.
Convém dizer que o artigo 152º está integrado no título dedicado aos crimes contra as pessoas.
Já no que se referia ao anterior crime de maus tratos, dizia Américo Taipa de Carvalho, no Comentário Conimbricense ao Código Penal, tomo I, p. 332, que a ratio do tipo está não na protecção da família ou da sociedade conjugal mas sim na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana.
No entender deste autor, o bem jurídico protegido por este crime é a saúde – bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental e bem jurídico este que pode ser afectado por toda a multiplicidade de comportamentos (…) que afectem a personalidade do cônjuge.
Convém recordar que a nossa jurisprudência já antes de 2007 se encaminhava no sentido de que bastava um único acto para que houvesse um crime de maus-tratos.
Já no Acórdão do STJ de 14.11.97, in CJ III, p. 235 se podia ler que só as ofensas corporais, ainda que praticadas uma só vez, mas que revistam uma certa gravidade ou seja, que traduzam crueldade, insensibilidade ou até vingança desnecessária por parte do agente é que cabem na previsão do artigo 152º do CP.
Sendo assim, na esteira do Acórdão da Relação do Porto de 26.05.2010, relatado pelo Sr. Desembargador Joaquim Gomes, acessível em
www.dgsi.pt
,
podemos assentar que no actual crime de violência doméstica da previsão do artigo 152º do CP, a acção típica aí enquadrada tanto pode revestir maus tratos físicos, como sejam as ofensas corporais, como de maus tratos psíquicos, nomeadamente humilhações, provocações, molestações, ameaças ou maus tratos, como sejam as ofensas sexuais e as privações de liberdade, desde que os mesmos correspondam a actos, isolada ou reiteradamente praticados, reveladores de um tratamento insensível ou degradante da condição humana da sua vítima.
A função deste artigo é prevenir as frequentes e, por vezes, tão subtis e camufladas formas de violência no âmbito da família
. Neste sentido, a necessidade prática da criminalização das espécies de comportamentos descritos no art. 152º, alínea a) resultou da consciencialização ético-social dos tempos recentes sobre a gravidade individual e social destes comportamentos. A neocriminalização, no sentido de que a disposição deste artigo é algo de relativamente recente, não significa novidade ou maior frequência deles, nos tempos actuais, mas sim uma saudável consciencialização da inadequação e da gravidade e perniciosidade desses comportamentos, de uma consciencialização recente da violência conjugal como problema social.
O crime de violência doméstica pressupõe um
agente
, um sujeito activo
que se encontra numa determinada relação para com o sujeito passivo
, a vítima, daqueles comportamentos. Assim sendo, estamos perante aquilo a que se chama um
crime específico.
Este denominado crime específico será
impróprio ou próprio
, consoante as condutas por si mesmas consideradas já constituam crime (estamos a lembrar-nos dos maus tratos físicos, sinónimo de ofensa à integridade física simples, de algumas formas de maus tratos psíquicos, como por exemplo, ameaças, injúrias ou difamações) ou não configurem em si mesmas qualquer tipo de crime.
As condutas previstas e punidas por este artigo podem ser de duas espécies:
maus tratos físicos
(ofensas à integridade física simples) e
maus tratos psíquicos
(ameaças, humilhações, provocações, molestações, perseguições).
E estes maus tratos
podem ser infligidos de modo reiterado ou não
. Anteriormente, à alteração introduzida pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro ao Código Penal, o tipo em análise pressupunha implicitamente uma reiteração das respectivas condutas. Um tempo longo entre dois dos referidos actos afastaria o elemento reiteração ou habitualidade. Contudo, existia já uma grande parte da jurisprudência, com a qual concordávamos, que considerava que uma conduta ainda que isolada podia configurar um crime de maus tratos desde que pela sua gravidade pusesse em causa a dignidade humana do cônjuge ofendido – cf. neste sentido Acórdão da Relação de Coimbra de 13/06/2007, in
www.dgsi.pt
.
O nº 2 do preceito em análise, prevê uma agravação da moldura penal quando os factos forem praticados contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima.
Nos factos típicos integradores do crime de violência doméstica estão contidas as ofensas verbais, físicas e psíquicas, sexuais e também os comportamentos persecutórios.
No Ac da RG de 11/02/2019, processo 1128/16.0PBGMR.G1, in
www.dgsi.pt
pode ler-se que:
II - No crime de violência doméstica, o comportamento imputado ao agente, normal e tendencialmente, pode ser susceptível de integrar, numa situação de concurso aparente, alguns outros crimes – como os de ofensas corporais simples (art. 143º, n.º 1), de injúria (art. 181º), de ameaça (art. 153º), de coacção (art. 154º), de sequestro simples (art. 158º, n.º 1), de devassa da vida privada [art. 192º, n.º 1. al. b)], de gravações e fotografias ilícitas [art. 199º, n.º 2, al b)] e de perseguição (art. 154º-A, n.º 1) –, que, pela subsunção a uma única previsão legal, deixam de ter relevância jurídico-penal autónoma, acabando por ser unificados naquele único crime (de violência doméstica), que é específico impróprio, pois a qualidade especial do agente ou o dever que sobre ele impende constitui o fundamento da agravação relativamente aos crimes que as condutas já integravam.
Entende o Ministério Público que a sentença recorrida procedeu a uma errada qualificação jurídica dos factos dados como provados, devendo o arguido AA ser absolvido do crime de violência doméstica na pessoa de CC e condenado pela prática de um crime de perseguição, previsto e punido pelo artigo 154.º-A, n.º 1, do Código Penal na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à razão diária de 5,50€ (cinco euros e cinquenta cêntimos), o que perfaz um total de 825,00 € (oitocentos e vinte e cinco euros).
Dispõe o artigo 154.º-A, n.º 1 do Código Penal que: “1 - Quem, de modo reiterado, perseguir ou assediar outra pessoa, por qualquer meio, direta ou indiretamente, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 3 anos ou pena de multa, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal. 2 - A tentativa é punível. 3 - Nos casos previstos no n.º 1, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima pelo período de 6 meses a 3 anos e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção de condutas típicas da perseguição. 4 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância. 5 - O procedimento criminal depende de queixa.”
O crime de perseguição foi introduzido no nosso ordenamento jurídico há relativamente poucos anos e o fenómeno que está por trás denomina-se em inglês, stalking.
O Professor Manuel da Costa Andrade, no comentário conimbricense ao Código Penal, escreve que “o stalking abrange as diferentes manifestações de perseguição persistente e repetida de uma pessoa, imposta contra a vontade da vítima, provocando-lhe estados de ansiedade, stress, perturbação e medo. Impondo-lhe sacrifícios (v.g., mudança de hábitos, de lugares frequentados, de casa.), e impedindo-a de conduzir e conformar livremente a sua vida.
Pode ler-se no Acórdão de 09.05.2023, relatado pela Desembargadora Maria Clara Figueiredo, do Tribunal da Relação Évora, que: inserido no capítulo dos crimes contra a liberdade pessoal, concretamente no capítulo IV do Título I do Código Penal, o crime de perseguição tutela o bem jurídico que de há muito se visava proteger com a criminalização do fenómeno do stalking: a liberdade de autodeterminação pessoal, i.e., a liberdade em algumas das suas manifestações específicas, tais como a liberdade de decisão, de ação, de organização da própria vida, em suma, a liberdade de viver o dia a dia num ambiente de paz e sossego. Trata-se de um crime de natureza complexa – pois que, pese embora o bem jurídico eminentemente protegido seja, sem dúvida, a liberdade de autodeterminação pessoal, ainda que reflexamente, o crime de perseguição tutela também a reserva da vida privada, a imagem e a saúde da vítima – e duradouro – uma vez que a execução do crime pode prolongar-se por um período de tempo mais ou menos longo, sendo que a reiteração é uma exigência do tipo.
A análise do tipo penal consagrado no artigo 154º-A acima transcrito permite-nos constatar, desde logo considerando a opção do legislador nacional pela expressão “de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação”, estarmos em presença de um crime de perigo concreto – pois que a hipotética lesão vem descrita na norma mas não necessita de existir para que o crime se verifique – não sendo necessária para a sua consumação a efetiva lesão do bem jurídico, bastando-se aquela com a adequação da conduta a provocar a referida lesão, ou seja, exigindo-se apenas que a conduta criminosa seja idónea a prejudicar a liberdade de determinação da vítima ou a provocar-lhe medo. Quanto ao tipo subjetivo, o crime de perseguição é um crime doloso, não admitindo a sua configuração objetiva qualquer concessão a comportamentos negligentes, desde logo porquanto as próprias condutas criminosas evidenciam uma premeditação e uma reiteração que não abrem caminhos a eventuais processos não intencionais ou meramente resultantes de violações de deveres de cuidado.
O crime em causa pressupõe a ideia de reiteração e de frequência, através da repetição de várias condutas.
Pode também ler-se, com bastante interesse, o Acórdão desta Relação, de 11.07.24, relatado pela Desembargadora Paula Bizarro, no qual se diz o seguinte: a análise de tal normativo resulta que constituem elementos típicos objectivos de tal tipo de crime: - a acção consubstanciadora de assédio ou perseguição, praticada pelo agente ou por intermédio de terceiro; - que essa acção seja reiterada; - que essa acção seja adequada a causar medo ou inquietação no visado ou de o prejudicar a sua liberdade de determinação. Trata-se de um crime de execução livre, porquanto poderá ser perpetrado por qualquer meio. À sua consumação é desnecessária a produção de um dano efectivo no visado, ou seja, não se exige que o ofendido sinta medo, inquietude ou prejudicado na sua liberdade. A reiteração da conduta exigida ao preenchimento do tipo, pressupõe uma prática mais ou menos frequente, repetida mais do que uma vez.
Também a este respeito se pode ler, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 05-11-2019, relatado pelo Desembargador João Amaro: A “perseguição” (ou “stalking”) é um padrão de comportamentos persistentes, que se traduz em formas diversas de comunicação, contacto, vigilância e monitorização de uma pessoa-alvo. Tais comportamentos podem consistir em ações rotineiras e aparentemente inofensivas (como, por exemplo, oferecer presentes constantemente, telefonar insistentemente), ou mesmo em ações inequivocamente intimidatórias (como, por exemplo, seguir a vítima constantemente - a pé ou em veículo automóvel -, enviar repetidas mensagens de telemóvel com conteúdo persecutório e/ou “ameaçador”, enviar correspondência escrita de idêntico conteúdo, etc.). Pela sua persistência e contexto de ocorrência, este padrão de conduta pode assumir tal frequência e severidade que afete não só o “bem-estar” das vítimas, como, mais do que isso, lhes cause medo ou inquietação ou as prejudique na sua liberdade de determinação.
No acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22.09.2021, no âmbito do processo n.º1025/18.%PBMAI.P1, traça-se de forma muito correcta e apreensível a fronteira entre estes dois crimes, podendo ler-se que:
quando não obstante a separação do casal, após um período longo de uma relação de namoro, um deles não interiorizou o términus da relação e passou a seguir o outro, perturbanco o seu direito ao sossego e de se movimentar livremente, o memso não comete um crime de violência doméstica, mas um crime de perseguição ou stalking, que é caracterizado pela existência de um padrão de comportamentos persistentes, que se traduz em formas diversas de comunicação, contacto, vigilância e monitorização de uma pessoa-alvo.
No caso em apreço, já depois de terminado o relacionamento, e porque não interiorizou esse final, o arguido passou a perseguir a vítima, perturbando a sua paz e a sua liberdade de movimentos, adoptando reiteradas formas de comunicar com ela, contra a vontade da mesma, para tentar dela reaproximar-se e nas suas palavras para tentar compreender os motivos que conduziram ao fim do relacionamento, uma vez que o arguido se convence que estão relacionados com outro homem.
Na verdade, e como decorre das próprias declarações do arguido, a sua conduta foi decorrente do fim abrupto e inesperado do relacionamento com a ofendida e a da sua “necessidade” de compreender os motivos daquela, contexto que deve ser considerado.
Conforme me parece dizer bem o MP, uma das coisas que distingue o crime de violência doméstica do crime de ofensas à integridade física, injúrias ou ameaças, conferindo àquele uma maior moldura penal e carácter público é, assim, a maior abrangência dos bens jurídicos protegidos por aquele tipo legal como sejam, para além da integridade e saúde física e psíquica, a salvaguarda da dignidade da pessoa humana do ofendido, como sujeito enfraquecido em relação ao agressor.
Estamos em crer que sendo o crime de perseguição um crime especial relativamente ao crime de violência doméstica, deverá ser por ele punido o agente que adopta comportamentos persecutórios reiterados de forma a tentar manter acesa a chama do relacionamento, e não perder o contacto, sendo as suas condutas aptas a constranger a vítima.
Dados os factos considerados provados, parece-nos, que, efectivamente, assiste razão ao MP, integrando os factos a prática de um crime de perseguição, p.p. no artigo 154ºA, n.º1 do CP.
No que concerne às expressões injuriosas que no âmbito dessa perseguição o arguido proferiu deve o procedimento criminal ser arquivado por falta de legitimidade do Ministério Público para a sua prossecução processual.
De acordo com o recente Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 9/2024 do Supremo Tribunal de Justiça
“O Ministério Público mantém a legitimidade para o exercício da acção penal e o assistente a legitimidade para a prossecução processual, nos casos em que, a final do julgamento,por redução factual de acusação pública por crime de violência doméstica p. e p. no artigo 152º, nº 1, do Código Penal, são dados como provados os factos integrantes do crime de injúria p. e p. no artigo 181º, nº 1, do Código Penal, desde que o ofendido tenha apresentado queixa, se tenha constituído assistente e aderido à acusação do Ministério Público.”
Nos presentes autos, a ofendida CC manifestou desejo de procedimento criminal contra o arguido, conforme resulta do teor do auto de notícia elaborado pela G.N.R. de Colares, contudo, não requereu a sua constituição como assistente, nem acompanhou a acusação pública deduzida pelo Ministério Público.
No que concerne à pena a aplicar, o crime de perseguição é punível com pena de prisão até 3 anos ou pena de multa, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.
Nos termos do artigo 47º, n.ºs 1 e 2 do CP a pena de multa situa-se entre os 10 e os 360 dias.
O MP propõe que se aplique ao arguido uma pena de 150 dias de multa.
Vejamos então.
Quanto às condições pessoais do arguido, deu o tribunal como provado:
O arguido não tem antecedentes criminais registados conforme CRC, actualizado, de fls. 253, dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
O arguido é solteiro; reside com a sua mãe de quem é cuidador vivendo, ambos, da reforma da sua mãe, no valor mensal de cerca de €400 e tem a guarda partilhada da sua filha BB.
O arguido tem, como habilitações literárias o 7º ano.
***
No que respeita às exigências de prevenção geral estas mostrar-se-ão satisfeitas quando a pena se mostre comunitariamente suportável à luz da necessidade da tutela dos bens jurídicos e da estabilização da expectativa comunitária na validade das normas violadas
(Jackobs,
apud
Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, Coimbra, 1993) .
Quanto às exigências de prevenção especial estas dizem, sobretudo, respeito ao próprio agente do crime, e não já à sociedade, e com estas se pretende satisfazer a necessidade de evitar a quebra de inserção social do agente e servir a sua melhor integração na sociedade, só deste modo se alcançando uma eficácia de protecção dos bens jurídicos.
No caso vertente, as exigências de prevenção geral são elevadas numa altura em que é cada vez mais frequente o cometimento deste tipo de ilícito, geralmente cometido contra mulheres.
Em termos de prevenção especial o facto de o arguido não ter antecedentes criminais, já ter deixado de contactar a ofendida, apesar de terem uma filha em comum e relativamente a qual tem a guarda partilhada, é determinante para que optemos pela aplicação de uma pena de multa.
No que respeita agora à fixação concreta da medida da pena, a culpa e a prevenção, são os dois vectores em que há que jogar.
Efectivamente, a pena, em caso algum, poderá, como dispõe o artigo 40º, n.º 2 do Código Penal, ultrapassar a medida da culpa. A culpa funcionará, nesta perspectiva, não exactamente como finalidade das penas mas como limite inultrapassável das mesmas.
Assim sendo, serão as considerações de prevenção que deverão abaixo da medida da culpa determinar a pena (artigo 71º do Código Penal).
O artigo 71º do Código Penal, enumera de forma exemplificativa os factores a considerar na dosimetria penal, e que hão-de dar satisfação às exigências de prevenção, tendo sempre como ponto de referência a culpa do agente.
Assim, há que ponderar as seguintes circunstâncias:
Grau de ilicitude do facto
: o grau de ilicitude é elevado atendendo a que o arguido perseguiu a mãe da sua filha.
Intensidade do dolo
: o arguido agiu com dolo directo.
Conduta anterior e posterior aos factos
: O arguido não tem condenações anteriores, nem posteriores, é cuidador da mãe, tem uma filha de quem tem a guarda partilhada. Deixou de contactar a ofendida.
Tudo visto e ponderado consideramos adequada a pena de 150 dias de multa, à taxa diária de 5 euros, num total de setecentos e cinquenta euros.
Quanto á última questão suscitada pelo arguido e que se reportava à pena pela prática do crime de violência doméstica, atendendo à alteração de qualificação jurídica operada, a mesma perde pertinência e não será, por isso, analisada.
O recurso do arguido deve, pois, ser julgado improcedente, e, pelo contrário, o recurso do MP completamente procedente.
3. Decisão:
Assim, e pelo exposto:
- nega-se provimento ao recurso do arguido, mantendo-se, na íntegra, a decisão recorrida.
- concede-se provimento ao recurso do MP, alterando a qualificação jurídica dos factos que em primeira instância lhe tinham valido a condenação por crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º/1-b, do CP, e em lugar disso condená-lo agora, como autor de um crime de perseguição, p. e p. pelo art. 154.º-A/1, do CP, na pena de cento e cinquenta dias de multa, à taxa diária de cinco euros, num total de setecentos e cinquenta euros, mantendo-se no mais a decisão recorrida.
Custas pelo arguido que se fixam em 4 UCS, sem prejuízo da isenção de que beneficie.
Notifique.
Lisboa, 27 de Junho de 2025
Cristina Isabel Henriques
Alfredo Gameiro
Hermengarda do Valle-Frias (com declaração de voto)
Declaração de voto
:
Voto a decisão, concordando com a requalificação dos factos e fundamentos dela, bem como com a condenação do arguido enquanto autor material de um crime de perseguição, p. e p. pelo artº 154º-A, nº 1 do Cód.Penal.
No entanto, considero que, atenta a gravidade dos factos provados, o tempo por que se estendeu a actuação do arguido, que revelam uma intensidade criminógena considerável, sem nunca ele se ter demovido do propósito com que actuava e que era o de infligir sofrimento emocional e constrangimento na vítima, por isso sendo a ilicitude dos factos elevada e a culpa na actuação também, não pode deixar de ser-lhe aplicável pena de prisão.
Em conformidade, sopesando aqueles elementos e nos termos dos arts. 70º e 71º do Cód. Penal, conquanto o arguido não tenha antecedentes criminais registados, mas mostrando-se ainda socialmente desintegrado, sem ocupação lícita apurada [vivendo à custa da reforma da mãe no valor mensal de 400€, o que, aliás, fará recair sobre esta o pagamento da pena de multa aplicada ao filho], entendo que, entre o mínimo da moldura abstracta e o máximo dela, devia o arguido ser condenado numa pena de 7 (sete) meses de prisão, ainda que, aceitando que esta servisse de adequado estímulo e futura contenção, determinasse a sua suspensão na execução (artº 50º do mesmo diploma), sujeitando essa suspensão a regime de prova, nos exactos termos em que o fixou a primeira instância.
Hermengarda do Valle-Frias
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TRL
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https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/31792f98e83a47f980258cbd00474628?OpenDocument
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1,754,265,600,000
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REVOGADA A SENTENÇA
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2199/24.1T8STS-A.P1
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2199/24.1T8STS-A.P1
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RUI MOREIRA
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Por interpretação extensiva do disposto no nº 1 do art. 17º-E do CIRE, são ilegítimas actuações de credores bancários que, depois do momento em que é nomeado o administrador judicial provisório em processo especial de revitalização requerido pelo devedor, intervêm espontânea e unilateralmente sobre contas de depósito desse devedor, ali debitando valores para satisfação dos seus próprios créditos.
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[
"PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO",
"CONTAS BANCÁRIAS",
"INSTITUIÇÃO BANCÁRIA",
"SATISFAÇÃO DE CRÉDITOS",
"DÉBITO UNILATERAL DE VALORES"
] |
Proc. nº 2199/24.1T8STS.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo de Comércio de Santo Tirso - Juiz 1
REL. N.º 949
Relator: Juiz Desembargador Rui Moreira
1º Adjunto: Juiz Desembargador Artur Dionísio do Vale dos Santos Oliveira
2º Adjunto: Juíza Desembargadora Anabela Andrade Miranda
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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO
1 – RELATÓRIO
No âmbito do processo especial de revitalização requerido pela devedora A..., S.A., veio esta pretender que os credores Banco 1... e Banco 2... fossem instruídos para lhe restituírem, depositando nas contas bancárias que mantém junto deles, os valores de €59.470,48 e €16.984,28, respetivamente, que ali debitaram sem o seu consentimento, para amortizarem parte dos seus créditos, aliás relacionados nos autos.
Invocou o disposto no nº 12 do art.º 17º-D e art.º 17º-E n.º 1 e 10º do C.I.R.E. e alegou que a finalidade da suspensão das medidas de cobrança impostas aos credores no âmbito do PER, se destina a viabilizar a continuidade da laboração da empresa que se encontra em situação económica difícil, permitindo-lhe desse modo fazer face às suas responsabilidades correntes. Porém as requeridas, aproveitando-se da possibilidade de actuação sobre as suas contas bancárias, cobraram tais valores para irem satisfazendo os seus créditos, o que resulta em prejuízo da sua viabilidade, bem como dos interesses dos restantes credores.
Ouvidos, ambos os credores se opuseram.
O Banco 2... alegou a falta de fundamento legal de tal pretensão, bem como que o PER não suspende o vencimento das prestações e nem as autorizações de débito das mesmas, bem como que o despacho de nomeação de administrador judicial provisório não produz qualquer efeito sobre os contratos vigentes, os quais se mantêm nos termos anteriormente acordados, podendo inclusivamente o devedor continuar com o respetivo cumprimento até, pelo menos, ao despacho de homologação do plano de recuperação, uma vez que as obrigações do devedor só se modificam com o despacho de homologação do plano de recuperação.
Por sua vez a Banco 1... alegou que a Sra. AJP foi nomeada por despacho de 31/7/2024, que o efeito que resulta do despacho de nomeação do AJP, é de obstar à instauração de ações executivas contra a empresa para cobrança de créditos e de suspender as acções em curso, não tendo qualquer incidência nos negócios em curso da devedora. Mais afirmou que o valor de 59.470,48€, cuja devolução a devedora reclama, foi cobrado pela Banco 1... entre 22/7/2024 e 30/9/2024, sendo que a Sra. AJP foi nomeada por despacho de 31/7/2024, data a partir do qual, como anteriormente aduzido, se inicia o efeito decorrente do PER, pelo que o valor cobrado entre 22/7/2024 e 31/7/2024, no montante global de 28.889,32€, não tem de ser devolvido, por ter sido cobrado antes da data de nomeação da AJP.
De seguida, o tribunal proferiu decisão sobre a pretensão da devedora, concluindo pelo seu indeferimento, em termos que se podem sintetizar no seguinte excerto:
“(…) Resulta, ainda, que a partir desta mesma admissão liminar e durante o mesmo período de tempo, “(…) os credores não podem recusar cumprir, resolver, antecipar ou alterar unilateralmente contratos executórios essenciais em prejuízo da empresa, relativamente a dívidas constituídas antes da suspensão, quanto o único fundamento seja o não pagamento das mesmas.”
Todas estas medidas se inserem no estabelecimento de um período de “standstill”, o qual tem como propósito proteger temporariamente o requerente contra eventuais actuações judiciais contra o seu património e, ao mesmo tempo, impelir os credores a adoptarem uma actuação cooperante nas negociações.
Assim, sendo estes os efeitos processuais e substantivos fixados na lei, a pendência de um PER não determina, que a devedora deixe de ter a administração dos bens e direitos de que é titular, nem que o exercício de direitos e o cumprimento de obrigações a que está adstrita, designadamente nos termos contratualmente definidos, fiquem suspensos ou sejam modificados.
Ou seja, no período de negociação do PER mantêm-se as obrigações recíprocas e sinalagmáticas entre o Requerente do processo e os seus credores, nos termos acordados, sem qualquer modificação ou suspensão.
A alteração de um contrato só é admissível por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos previstos na lei, conforme se retira do art. 406º, nº1 do Código Civil.
(…)
Sucede que, diversamente da declaração de insolvência, o cumprimento dos contratos em curso não se suspende, não existindo, pois, opção de cumprir ou não cumprir.
(…)
Face ao exposto, indefere-se a pretensão da devedora de reaver os valores referentes ao cumprimento de contratos em curso celebrados com os credores Banco 2... e Banco 1....”
Desta decisão, vem a A... interpor o presente recurso, que terminou formulando as seguintes conclusões:
1.ª A decisão recorrida errou ao entender que o facto das Credoras Banco 1... e Banco 2... debitarem na conta à ordem que a Devedora mantinha junto de cada uma delas se inseria no âmbito do cumprimento regular das obrigações resultantes dos contratos em curso e, por via disso, indeferiu a pretensão da Devedora de reaver os valores que o Banco 2... e a Banco 1... tinham debitado da conta à ordem da Devedora, por referência aos valores das prestações vencidas em data anterior ao da apresentação ao PER.
2.ª A decisão interpretou de modo errado o pedido que lhe foi formulado pela Devedora no requerimento de 18/10/2024 com a referência Citius 40421368, uma vez que a aqui recorrente não fundamentou o seu pedido de reposição dos valores debitados pelas instituições bancárias credoras na suspensão do cumprimento dos contratos em curso celebrados com as credoras e, muito menos, requereu a modificação unilateral desses contratos, em violação do 406.º, n.º 1 do Código Civil.
3.ª A fundamentação do pedido da Devedora assentou, isso sim, na violação dos Princípios que devem orientar o PER e na violação do período/efeito standstill que, consequentemente, gorou a finalidade do referido processo.
4.ª O efeito standstill tem como finalidade proteger temporariamente o requerente de eventuais atuações judiciais contra o seu património e, ao mesmo tempo, impelir os credores a adotarem uma atuação cooperante nas negociações.
5.ª Ora, tendo os débitos realizados pelas Credoras Banco 2... e a Banco 1... servido como puros atos de cobrança de dívida, o que, materialmente, equivale à instauração de uma ação executiva, pois a sociedade devedora veria o seu ativo ser reduzido do mesmo modo, estão também eles proibidos pelo efeito standstill.
6.ª Fazendo todo o sentido que, por respeito à mais elementar regra de igualdade, os bancos onde a Devedora tem conta não possam fazer seus os saldos bancários daquela, pois que estando as execuções suspensas também a generalidade dos credores não pode, ainda que detentores de títulos executivos, prosseguir com a satisfação do seu crédito.
7.ª Assim, do ponto de vista material, conclui-se que é aplicável aos atos de cobrança de dívida praticados pelas Credoras Banco 2... e a Banco 1... a ratio legis do efeito standstill, que obsta a tal agressão.
8.ª O mesmo se reclama quando se tem em conta a finalidade do PER, pois para que se permita às empresas que se encontram em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas ainda suscetível de recuperação, estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes um acordo conducente à sua revitalização, é necessário que lhes seja assegurada uma certa tranquilidade necessária ao bom curso das negociações.
9.ª A atuação das Credoras Banco 2... e a Banco 1... em nada foi cooperante com o bom curso do processo e das negociações, nas quais manifestaram o seu propósito de nelas participar, antes tendo retirado todo o sentido à negociação do pagamento da dívida, negociação esta que é da mais alta importância no Processo Especial de Revitalização.
10.ª Ao procederem à auto cobrança dos seus créditos, as instituições bancárias Banco 2... e a Banco 1... passaram à frente dos outros credores e parte substancial dos créditos relacionados nos autos do presente PER ficou paga, não tendo, pelo menos no valor dos montantes debitados, essas Credoras de se sujeitar ao pagamento prestacional da dívida acordado no âmbito do processo.
11.ª Atuando as Credoras, desta forma, à revelia, quer do compromisso que assumiram para as negociações do PER, quer do compromisso que os outros réus estavam também a assumir.
12.ª Cremos ter demonstrado, sem margem para dúvidas, os motivos pelos quais as instituições bancárias não podem, até que o Plano de Revitalização seja aprovado e homologado, amortizar dívidas vencidas em datas anteriores à data da entrada em Processo Especial de Revitalização, devendo os créditos sobre a Devedora ser amortizados nos termos que vierem a ser definidos no âmbito do plano supra referido.
13.ª Pelo que a decisão recorrida ao decidir diferentemente, pecou por errada interpretação e aplicação do art.º 17º-D n.º 12, 17º-E n.º 1 e 194º todos os CIRE e art.º 604º do Cód. Civil.
Termos em que, e nos demais de Direito que V.ªs. Ex.ªs doutamente suprirão, deve o presente recurso ser:
i. Recebido e julgado procedente e, consequentemente,
ii. Ser revogado o despacho recorrido, determinando-se a restituição dos valores referentes aos débitos indevidamente realizados na conta de depósitos à ordem da Devedora, que encobrem um verdadeiro ato executivo privado,
Com o que assim se fará inteira Justiça.” *
A Banco 1... veio apresentar resposta ao recurso e requerer a ampliação do respectivo objecto. Promoveu a confirmação da decisão recorrida, sem prejuízo de, no caso da sua revogação, e em sede de tal ampliação, se decidir que a sua obrigação de restituição do capital debitado na conta da devedora será só o que foi debitado após a nomeação da AJP, disso ficando salvaguardado o montante cobrado entre 22/7/2024 e 31/7/2024, no montante global de 28.889,32€.
São as seguintes as correspondentes conclusões:
“Sem conceder, por cautela, no caso de recurso interposto pela recorrente vir a ser julgado procedente, o âmbito do recurso deverá ser ampliado, o que requer, ao abrigo do disposto no artigo 636º do CPC, para conhecimento e decisão das seguintes conclusões:
1. A douta decisão recorrida, ao indeferir o pedido da recorrente de 18/10/2024 (refª 40421368), não se pronunciou, por prejudicada, sobre se o valor cobrado pela recorrida entre 22/7/2024 e 31/7/2024, no montante global de 28.889,32€, antes da nomeação do AJP, deve também ser devolvido à recorrente.
2. Tendo a senhora Administradora Judicial Provisória sido nomeada por despacho de 31/7/2024, publicitado no portal Citius no dia 1/8/2024, o valor cobrado pela recorrida entre 22/7/2024 e 31/7/2024, no montante global de 28.889,32€, não tem de ser devolvido à recorrente, por este montante ter sido cobrado antes do início da produção dos efeitos decorrentes do PER, previstos no nº 5, do artigo 17º C o nº 1 do artigo 17º E do CIRE.
*
O tribunal recorrido admitiu o recurso como apelação, com subida em separado e efeito devolutivo. Não se tendo pronunciado sobre o pedido de ampliação do objecto do recurso, é todavia cristalina a sua admissibilidade, nos termos do nº 1 do art. 636º do CPC.
Cumpre decidir.
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*
2- FUNDAMENTAÇÃO
O objecto do recurso é circunscrito pelas respectivas conclusões, sem prejuízo da decisão de questões que sejam de conhecimento oficioso - arts. 635º, nº 4 e 639º, nºs 1 e 3 do CPC.
Cumpre, neste caso, decidir se na pendência de um PER é licito a credores bancários, com acesso a contas de depósito do devedor, cobrarem sobre elas os respectivos créditos. No caso de resposta negativa a esta questão, haverá de apreciar-se a questão suscitada pela recorrida Banco 1..., definindo a partir de que momento o PER deve obstar a tal actuação.
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A decisão a proferir convoca a seguinte factualidade, que resulta dos termos do processo:
1- Em 19/7/2024, A..., SA veio requerer processo especial de revitalização.
2 - Por despacho proferido em 31.07.2024 foi o mesmo admitido liminarmente e nomeado administrador provisório.
3 - Desde o dia 22/07/2024, a Banco 1... efetuou operações de débito na conta de depósitos que a Devedora mantém nessa instituição no montante global de € 59.470,48 (cinquenta e nove mil quatrocentos e setenta euros e quarenta e oito cêntimos), que afetou à redução do valor do seu crédito relacionados nestes autos (acordo das partes)
4 – Desse montante, o valor cobrado entre 22/7/2024 e 31/7/2024, ascendeu ao total de 28.889,32€ e o remanescente, de 30.581,16€ foi cobrado entre 1/8/2024 e 30/9/2024 (doc. 2 junto com a resposta ao requerimento da devedora, não impugnado pela devedora)
5 - Desde o dia 30/07/2024 o Banco 2... efetuou operações de débito na conta de depósitos à ordem que a Devedora mantém nesse banco no montante global de € 16.984,28 (dezasseis mil novecentos e oitenta e quatro euros e vinte e oito cêntimos), que afetou à redução do valor do seu crédito relacionados nestes autos (acordo das partes).
6- O PER apresentado foi votado favoravelmente, tendo sido homologado por sentença de 19/2/2025.
*
São várias as razões invocadas pela apelante, para recuperar os valores que o Banco 2... e a Banco 1... retiraram das respectivas contas bancárias, aproveitando os termos contratuais que o permitiam. Com efeito, a apelante não invoca qualquer violação dos contratos bancários mantidos com os recorridos, em que eles tenham incorrido ao retirarem e fazerem seus tais valores. A questão coloca-se, isso sim, por referência a uma pretendida paralisação das dinâmicas contratuais da relação bancária, em homenagem ao curso e aos fins do processo especial de revitalização iniciado.
Podem sintetizar-se tais razões nos seguintes termos:
- Não releva se os débitos efetuados pela Banco 1... e pelo Banco 2... na conta à ordem da devedora se enquadravam no cumprimento regular das obrigações contratuais, pois que não está em causa a suspensão do cumprimento dos contratos, mas sim a violação dos princípios do PER e do efeito standstill.
- Os débitos constituíram atos de cobrança de dívida que equivalem materialmente à instauração de uma ação executiva, o que é proibido pelo efeito standstill, cuja finalidade é proteger temporariamente o requerente de ações judiciais contra o seu património.
- Se a pendência do PER determina a suspensão de execuções contra o devedor e os outros credores também não podem prosseguir com a satisfação dos seus créditos, em respeito ao princípio da igualdade, não devem ter-se por admissíveis quaisquer actos de cobrança praticados unilateralmente pelos bancos.
- A cobrança operada pelo Banco 2... e pela Banco 1... não foi cooperante com o bom curso do processo de revitalização e das negociações, pois que com isso se anteciparam a outros credores, não se sujeitando ao pagamento prestacional da dívida que viesse a ser acordado no âmbito do PER, antes devendo aguardar e sujeitar-se ao Plano que venha a ser homologado.
*
Foi repetidamente referido nestes autos o efeito “standstill”, próprio da abertura e tramitação de um processo especial de revitalização.
Tal efeito tem a sua génese na regra do nº 1 do art. 17º-E do CIRE, que prescreve: “1 - A decisão a que se refere o n.º 5 do artigo 17.º-C [despacho de nomeação do administrador judicial provisório, subsequente à entrada do processo] obsta à instauração de quaisquer ações executivas contra a empresa para cobrança de créditos durante um período máximo de quatro meses, e suspende quanto à empresa, durante o mesmo período, as ações em curso com idêntica finalidade.
Tal regra visa garantir um período de paralisação do contexto financeiro que aflige o devedor, tal como imposto no art. 6º da Directiva EU) 2019/1023, de 20/6/2019, de 20 de Junho de 2019, em ordem a garantir o que está especificado no respectivo considerando 32º: “O devedor deve poder beneficiar de uma suspensão temporária de ações individuais de execução, quer seja concedida por uma autoridade judicial ou administrativa ou por força da lei, com o objetivo de apoiar as negociações sobre um plano de reestruturação, para poder continuar a operar ou pelo menos preservar o valor do seu património durante as negociações.”
No caso, é certo que as acções empreendidas espontaneamente pelo Banco 2... e pela Banco 1..., cobrando créditos anteriores por débito nas contas de depósito da devedora, não constituem acções executivas, que seriam directamente subsumíveis à previsão do nº 1 do art. 17º-E do CIRE.
Por outro lado, é igualmente razoável a motivação da sentença recorrida, para a rejeição da pretensão da apelante, que, na essência, se traduz no seguinte: a devedora continua em actividade e os seus contratos continuam em execução, sem que a pendência do PER constitua fundamento para a suspensão do cumprimento das suas obrigações contratuais.
Isto mesmo foi afirmado, por exemplo, num acórdão deste TRP, nos seguintes termos: “I – No PER o estabelecimento de um período de “standstill” tem como propósito proteger temporariamente o Requerente contra eventuais actuações judiciais contra o seu património e, ao mesmo tempo, impelir os credores a adoptarem uma actuação cooperante nas negociações. II – Neste período de negociação do PER a revitalizanda mantém a administração dos seus bens, o exercício dos direitos de que seja titular e o cumprimento das obrigações a que esteja adstrita, sem qualquer suspensão ou modificação. III - Com excepção dos actos de “especial relevo”, o administrador judicial provisório não tem competência para se imiscuir na administração corrente da empresa. IV - Estando um contrato de financiamento em curso e a produzir os seus efeitos, o credor tem legitimidade para, nos termos do próprio contrato, proceder à cobrança das prestações que se vençam após o despacho a nomear o administrador judicial provisório, na data do seu vencimento, debitando a conta identificada no contrato e desde que esta registe saldo disponível. (proc. nº 2644/20.0T8STS-E.P1, Relator: LINA BAPTISTA, 16-05-2023).
Todavia, outra jurisprudência vem aplicando o regime legal citado em termos mais amplos, identificando na satisfação unilateral dos respectivos créditos, empreendida pelos bancos, sem necessidade de recurso a qualquer acção judicial, em razão do acesso directo ao património do devedor, ou seja, através da prerrogativa contratual de débito nas respectivas contas bancárias, uma actuação que deve estar sujeita à mesma restrição prevista naquele nº 1 do art. 17º-E. E isso por ser essencial, tal como enuncia a Directiva, garantir um período de tranquilidade favorável às negociações, de conservação e não de agravamento do património e das circunstâncias de funcionamento do devedor e, também, para garantir um tratamento igualitário dos credores, tal como venha a ser definido no plano de Recuperação, caso seja aprovado, sem que uns, por disporem de tal possibilidade, se tenham adiantado na satisfação dos seus próprios créditos, sem sujeição às eventuais condicionantes ulteriormente impostas pela homologação de tal Plano.
Neste sentido, dispôs o Ac. do STJ de 13/4/2021 (proc. nº 6521/16.6T8LRS.L1.S1, Relator: ANTÓNIO BARATEIRO MARTINS): “Iniciado um PER, o procedimento bancário extrajudicial consistente na compensação convencional está incluído no “efeito paralisador” (efeito “standstill”) consagrado no art 17.º-E, n.º 1, do CIRE, ou seja, num PER, após a prolação do despacho a nomear o administrador judicial provisório e durante o tempo em que perdurarem as negociações (mais exatamente, até à sentença de homologação do plano de recuperação), está o banco impedido de proceder à compensação das responsabilidades entretanto vencidas do seu cliente com os saldos bancários existentes na conta bancária do seu cliente e requerente do PER.”
No mesmo sentido dispôs o Ac. do TRG de 09-03-2023 (proc. nº 1982/22.7T8GMR.G1, Relator: AFONSO CABRAL DE ANDRADE): “ 1. No decurso de um processo especial de revitalização (PER), todos os credores da empresa devedora, ainda que não tenham ido aos autos em causa reclamar o seu crédito, estão sujeitos à regra de paralisação (standstill) das acções para cobrança de dívidas, imposta pelo art. 17º-E,1. 2. Esse efeito standstill visa conceder ao devedor um “escudo protector”, que lhe permita negociar com os credores com alguma “tranquilidade”, sem ser interrompido por acções de cobrança de dívidas que continuamente agridam o seu património e que inviabilizem a possibilidade da condução bem-sucedida das negociações com os credores. 3. Não pode uma entidade bancária, que seja um dos credores da empresa em revitalização, valendo-se do facto de ter acesso irrestrito à conta bancária da empresa junto de um dos seus balcões, debitar a mesma do valor que lhe é contratualmente devido, pois isso equivaleria a uma “acção executiva privada”, a qual está tão proibida pela lei como qualquer verdadeira acção executiva a intentar num Tribunal Estadual, e redundaria numa grosseira violação da regra da igualdade dos credores). Em sentido idêntico, ainda, Ac. do TRL de 21-05-2024, no proc. nº 2500/23.5T8BRR-A.L1-1, Relator: ISABEL FONSECA.
A explicitação as razões da solução que acaba de se referir, repetida nos acórdãos citados e à qual – desde já se antecipa – se adere sem reservas, consta do Ac. do STJ citado supra:
“Discute-se abundantemente, como referimos, quais os procedimentos/ações judiciais que cabem na expressão em causa[13], sendo – é onde se quer chegar – que a ratio, a natureza e a finalidade do PER impõem que, além dos procedimentos/ações judiciais, também certos procedimentos extrajudiciais devam ser incluídos no efeito/período de standstill constante do art. 17.º-E/1 do CIRE[14].
É, claramente, o caso da compensação bancária sub judice.
É certo que o devedor em PER mantém a administração dos bens e direitos de que é titular (com a ressalva constante do art. 17.º-E/2 do CIRE)[15], que os seus negócios mantêm o seu iter normal e que ao PER são evidentemente inaplicáveis as regras constantes dos arts. 102.º e ss. do CIRE (respeitantes aos efeitos da insolvência sobre os negócios em curso), porém, importa não esquecer que o PER, norteado por uma ratio de revitalização do devedor em dificuldade, produz efeitos entre o devedor e os credores durante a fase negocial, efeitos esses que têm que ser idênticos para todos os credores, ou seja, durante a pendência do processo (entre o despacho de início do processo e o termo do mesmo), tem que ser respeitado o princípio da igualdade entre os credores.
Sendo um desses efeitos, como vimos de referir, o de proibir a instauração ou o de suspender as execuções para cobrança de dívidas (e na nossa interpretação também as ações declarativas para cobrança de dívidas), todos os credores que tenham execuções a correr termos contra o devedor em PER verão, enquanto este pende, as suas execuções suspensas, o que significa, no que aqui interessa (em termos argumentativos), que penhoras de depósitos bancários, ainda que iminentes, não se poderão realizar durante a pendência do PER.
E se os depósitos bancários não podem ser penhorados – não podendo a generalidade dos credores, ainda que detentores de títulos executivos, obter a garantia/preferência concedida pela efetivação da penhora – também não poderá, por respeito à mais elementar regra de igualdade, o banco onde o devedor tem conta fazer seus quaisquer saldos bancários do devedor, ao abrigo de compensação convencional que haja sido livre e contratualmente acordada pelas partes (banco e devedor) nos termos da sua autonomia privada (art. 405.º do C. Civil).
Ao que tem sido oposto que o art. 17.º-E/1 não tem o alcance do art. 88.º/1 do CIRE (que fala em “quaisquer diligências ou providências”) e que por isso os atos/procedimentos extrajudiciais estarão excluídos do âmbito do efeito consagrado no art. 17.º-E/1, tanto mais que o impedimento de qualquer ato ou procedimento extrajudicial que atinja o património do devedor constitui um “esforço excessivo e desproporcional para os credores”.
Não se contesta que a generalidade dos atos/procedimentos extrajudiciais, designadamente quando, por ex., o devedor manifesta, casuisticamente, a vontade de pagar uma sua obrigação, estejam excluídos do efeito Standstill – até por, repete-se, o devedor/revitalizando continuar a sua atividade e a gerir os seus bens – porém, num caso como o presente, de compensação bancária (à custa de saldos credores do devedor, temporariamente impenhoráveis, existentes na instituição bancária que procede à compensação), a solução, até por respeito, repete-se, pelo princípio da igualdade entre credores, deve ser a oposta.
O efeito Standstill, concorde-se ou não, é um “escudo protetor” concedido pela lei ao devedor/revitalizando, que, todavia, não fica impedido de dele prescindir e de, caso a caso, cumprir as suas obrigações e movimentar, para tal, as suas contas/saldos bancárias; mas – é o ponto – não pode servir nem pode ser usado como “escudo protetor” a favor dos credores que estão autorizados, sem a casuística manifestação de vontade do devedor/revitalizando, a debitar unilateralmente os seus saldos bancários e que, por isso, durante o período do Standstill, se assim poderem proceder, ficam até em melhor situação do que estavam antes (uma vez que ficam, durante tal período, protegidos do “concurso” da generalidade dos credores).
Em síntese, não devendo a interpretação “cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico (…)” (cfr. art. 9.º/1 do C. Civil), tem que se entender, por interpretação extensiva, que o procedimento extrajudicial de compensação bancária, consistente no unilateral lançamento a débito na conta do cliente duma responsabilidade contratual do mesmo (conforme o acordado na fase estipulativa do contrato que gera tal responsabilidade), é um procedimento que “em substância” é idêntico a um ato executivo – agredindo do mesmo modo que um ato executivo o património do devedor – sendo-lhe assim aplicável a ratio legis do efeito Standstill (que, fora de qualquer dúvida, obsta a tal agressão) consagrado no art. 17.º-E/1 do CIRE.
Tanto mais que, face à desigualdade que criaria entre credores, iria contribuir, em elevado grau, para a perturbação e para o insucesso das negociações em curso, na medida em que, procurando usualmente o devedor (em PER) uma reestruturação do passivo (reestruturação financeira), teríamos um credor que, enquanto decorrem as negociações para tal reestruturação do passivo (tendo reclamado os seus créditos, participado nas negociações e votado com todos o votos decorrentes dos seus créditos reclamados, se está a pagar por inteiro dos seus créditos (não atuando, como o impõe o art 17.º-D/10 do CIRE, de acordo com os princípios orientadores aprovados pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 43/2011, de 25 de Outubro, designadamente com a boa fé imposta pelo segundo princípio).
Temos pois – é a conclusão – que a compensação bancária operada pelo banco recorrente estava abrangida/impedida pelo efeito standstill constante do art. 17.º-E/1 do CIRE, efeito esse que opera ope legis (prescindindo de qualquer declaração judicial para produzir tal efeito) com a prolação do despacho de nomeação de AJP.
Não sendo pois exato dizer – ao contrário do que o recorrente refere de diversas maneiras – que o despacho a nomear o AJP não produz quaisquer efeitos sobre os contratos vigentes e que por isso pode continuar a debitar (de acordo com a compensação convencional constante do programa contratual) as prestações que se forem vencendo; efetivamente, iniciado um PER (ou seja, proferido o despacho a nomear o AJP), todas as obrigações contratuais (vencidas e a vencer-se) ficam sujeitas à “proteção” da negociação/reestruturação em curso, podendo, é certo, os credores votar contra qualquer plano de recuperação que venha a ser apresentado, mas não podendo furtar-se à “espera/dilação” colocada pelo “escudo protetor” concedido pela PER ao devedor/revitalizando, consistindo esta “espera/dilação” justamente um efeito (como, aliás, resulta da epígrafe do art. 17.º-E/1 do CIRE) que a nomeação do AJP produz sobre os contratos em curso.
Assim, todos os débitos ((…) efetuados na conta bancária da A. foram indevidos, devendo as respetivas quantias ser restituídas, (…)”.
O que vem de transcrever-se é aplicável, nos seus precisos termos, à situação sub judice. Subscrevendo integralmente tais razões, que para aqui se convocam, resta afirmar que, por aplicação extensiva do disposto no nº 1 do art. 17º-E do CIRE, temos por ilegítimas actuações tais como as operadas pelo Banco 2... e pela Banco 1..., debitando a conta da devedora A..., S.A, para a satisfação dos seus próprios créditos, a partir do momento em que foi nomeado o administrador judicial provisório no processo especial de revitalização por ela requerido, despacho esse datado de 31/7/2024.
Como sobressai do exposto, além da perturbação do processo negocial próprio de um PER e da potencial capacidade para comprometer a recuperação da empresa, subtraindo-lhe meios financeiros eventualmente essenciais à continuação da actividade e recuperação económica, a cobrança de valores por débito na conta de depósito do devedor, em, aproveitamento da especial natureza da relação contratual (bancária) que tal lhe faculta, permitiria a esse credor, durante a pendência do PER, ir satisfazendo o seu crédito, prevenindo que este – pelo menos na parte assim satisfeita - viesse a ser condicionado pelas soluções ulteriores de um Plano de Recuperação homologado, em termos que constituiriam uma flagrante violação do princípio da igualdade entre credores.
Por consequência, caberá impor ao Banco 2... a devolução da quantia de 16.984,28 (dezasseis mil novecentos e oitenta e quatro euros e vinte e oito cêntimos), a qual, necessariamente acrescerá ao valor do crédito que lhe é reconhecido nos autos, na medida em que este já não tenha incluído aquele valor.
Em relação ao crédito da Banco 1..., todavia, importa tratar separadamente os montantes por ela debitados antes e depois de 31/7/2024. O que nos transporta para a apreciação da questão que é objecto da ampliação do recurso, requerida pela Banco 1....
Como acima se referiu, dos €59.470,48 (cinquenta e nove mil quatrocentos e setenta euros e quarenta e oito cêntimos) que a Banco 1... cobrou da conta de depósitos da devedora e afetou à redução do valor do seu crédito relacionado nestes autos, o valor cobrado entre 22/7/2024 e 31/7/2024 ascendeu ao total de 28.889,32€; e o remanescente, de 30.581,16€ foi cobrado entre 1/8/2024 e 30/9/2024.
Ora, tal como consta expressamente do acórdão supra citado, a extensão do regime do art. 17º-E, nº 1 do CIRE, isto é, a solução de proibição de auto-satisfação dos créditos dos bancos por débito na conta do devedor, só se estabelece a partir do despacho de nomeação do administrador provisório, in casu, proferido em 31/7/2024.
Assim, naturalmente, só a partir de 31/7/2024 se mostram ilícitos os débitos operados pela Banco 1... na conta da devedora, num total de 30.581,16€. Assim, à Banco 1... só se poderá determinar a devolução de um tal montante, o qual, subsequentemente, acrescerá ao valor do crédito que lhe é reconhecido nos autos, na medida em que este já não tenha incluído aquele valor.
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Resta, em suma, conceder parcial provimento ao recurso interposto pela A..., S.A., bem como julgar procedente a ampliação do objecto de recurso requerida pela Banco 1..., com o que se revogará a decisão recorrida, a substituir por outra que, deferindo parcialmente a pretensão da devedora constante do requerimento de 18/10/2024, determine ao credor Banco 2..., S.A a restituição imediata da quantia que debitou na respectiva conta de depósito, no valor de 16.984,28 (dezasseis mil novecentos e oitenta e quatro euros e vinte e oito cêntimos); e, bem assim, determine ao credor Banco 1... a restituição imediata da quantia que debitou na respectiva conta de depósito, no valor de 30.581,16€ (trinta mil quinhentos e oitenta e um euros e dezasseis cêntimos). Cada um destes valores acrescerá ao valor do crédito reconhecido nos autos a cada um dos credores, respectivamente, na medida em que este já não tenha incluído aquele valor.
No restante pretendido em relação à Banco 1..., a que se refere a ampliação do objecto do recurso, se indefere o requerido, conclui-se pelo indeferimento da pretensão da A..., S.A.
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Sumário (art. 663º, nº 7 do CPC):
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3 - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes que constituem este Tribunal em conceder parcial provimento ao recurso interposto pela A..., S.A., bem como em julgar procedente a ampliação do objecto de recurso requerida pela Banco 1..., com o que revogam a decisão recorrida, que substituem por outra que, deferindo parcialmente a pretensão da devedora constante do requerimento de 18/10/2024, determina ao credor Banco 2..., S.A que lhe restitua da imediato a quantia que debitou na respectiva conta de depósito, no valor de 16.984,28 (dezasseis mil novecentos e oitenta e quatro euros e vinte e oito cêntimos); e, bem assim, determina ao credor Banco 1... que lhe restitua de imediato a quantia que debitou na respectiva conta de depósito, no valor de 30.581,16€ (trinta mil quinhentos e oitenta e um euros e dezasseis cêntimos). Cada um destes valores acrescerá ao valor do crédito reconhecido nos autos a cada um destes credores, respectivamente, na medida em que este já não tenha incluído aquele valor.
No restante pretendido em relação à Banco 1..., a que se refere a ampliação do objecto do recurso, se indefere o requerido, conclui-se pelo indeferimento da pretensão da A..., S.A.
Custas pelos apelados, na proporção do decaimento, quanto ao recurso da apelante A..., S.A.
Custas pela A... S.A.. em relação ao pedido correspondente à ampliação do objecto do recurso, em que decaiu.
Reg. e not.
Porto, 8 de Abril de 2025
Rui Moreira
Artur Dionísio Oliveira
Anabela Miranda
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TRP
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https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/6791f7455baea0ff80258c6900516ba1?OpenDocument
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1,748,822,400,000
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CONFIRMADA
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8577/20.8T8PRT-D.P1
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8577/20.8T8PRT-D.P1
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PAULO DIAS DA SILVA
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I - A indicação do valor na reconvenção deve ser feita por uma declaração explícita nesse sentido, como decorre do texto do n.º 2 do artigo 583.º do Código de Processo Civil em que se refere que o réu deve “declarar o valor da reconvenção”.
II - Essa indicação tem de ser expressa, não meramente dedutível ou inferida. Muito mais no actual sistema de autoliquidação de taxa de justiça inicial, em que incumbe à secretaria aferir do seu acerto, para o que serve e se compreende, uma inequívoca indicação.
III - Logo que a falta seja notada, deverá o réu/reconvinte ser convidado a declarar o valor, sob a cominação de a reconvenção não ser atendida.
IV - Não tendo a Ré/reconvinte procedido à indicação do valor da reconvenção, face ao estatuído no mencionado artigo 583.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, tal omissão tem como consequência a não admissão da reconvenção.
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[
"RECONVENÇÃO",
"VALOR",
"FALTA",
"EFEITOS"
] |
Recurso de Apelação - 3ª Secção
ECLI:PT:TRP:2024:8577/20.8T8PRT-D.P1
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
1. Relatório
AA, falecido na pendência da acção e devidamente habilitado, instaurou acção declarativa, sob a forma de processo comum contra BB, residente na Rua ..., ... Porto, onde concluiu pedindo que:
- seja declarado que a Ré violou os direitos de personalidade inerentes à honra, bom nome e imagem do Autor;
- seja condenada a Ré a pagar ao Autor a quantia de € 500.000,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, desde a data da citação e até integral pagamento.
*
Citada, a ré apresentou contestação e deduziu reconvenção onde concluiu pedindo seja o A. condenado a indemnizar a Ré, em quantia nunca inferior a € 500.000,00 pela violação dos direitos de personalidade inerentes à honra, bom nome e imagem da Ré.
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Por despacho de 17.03.2023 (ref. Citius 446379492), a Sr.ª Juiz
a quo
convidou, designadamente, a ré/reconvinte a indicar o valor da reconvenção no prazo de 10 dias, com a cominação prevista no n.º 2, do artigo 583.º, do Código de Processo Civil.
*
Por despacho de 30.09.2024, a Sr.ª Juiz
a quo
não admitiu a reconvenção, com a seguinte argumentação:
“Por despacho de 17-03-2023 (ref. Citius 446379492), a ré/reconvinte foi convidada a indicar o valor da reconvenção no prazo de 10 dias, com a cominação prevista no n.º 2 do art. 583.º do Cód. Proc. Civil.
Dada a falta de resposta da ré/reconvinte a tal despacho, não tendo indicado o valor da reconvenção, a despeito da notificação efetuada para o efeito, não pode a reconvenção ser atendida - n.º 2 do art. 583.º do CPC.
Em conformidade, não admito a reconvenção.”.
*
Não se conformando com a decisão proferida que não admitiu a reconvenção, a recorrente BB veio interpor o presente recurso de apelação, em cujas alegações conclui da seguinte forma:
I. O despacho considera que a Ré não indicou o valor.
II. Não é de facto verdade que a Ré reconvinte não tenha aposto o valor da reconvenção.
III. O valor está aposto na respectiva reconvenção.
IV. Mesmo que assim não se considere, o que não se concede,
V. Esta decisão sempre seria uma decisão ilegal e inconstitucional. Porque no direito, a interpretação/integração/aplicação de normas jurídicas correspondem a um processo unitário de realização.
Ora,
VI. Se, no tocante à determinação do quantum da indemnização do dano não patrimonial, a lei aponta nitidamente para uma valoração casuística, orientada por critérios de equidade (artº 494,
ex-vi
artº 493, 1ª parte, do Código Civil). E,
VII. Nos termos do art. 308.º do CPC, quis o legislador que a determinação do valor da causa se fizesse em face dos elementos do processo, ou sendo estes insuficientes, mediante as diligências indispensáveis, que as partes requererem ou o juiz ordenar,
VIII. Não quis concerteza “matar” uma acção, abusando de um alegado critério de forma em detrimento da substância,
IX. Quando se não quiser considerar que a Ré não indicou o valor, tem elementos que lhe permitem concluir pelo mesmo,
X. Princípio supra alegado, que sai desta forma também violado.
XI. Seria sempre e ainda uma decisão que violava o Princípio da proporcionalidade, porque manifestamente os interesses em presença, que é o de perder o direito a juros e julgar de uma só vez os mesmos factos, evitando delongas desnecessárias e litígios que se mantêm anos nos Tribunais, é uma solução de evitar,
XII. Nestes termos e com estes fundamentos, este despacho viola os referidos artigos, e é nulo nos termos do art. 615.º n.º 1 alínea c) do CPC, que expressamente se invoca.
XIII. O despacho proferido viola, desta forma, o artigo 208.º, n.º 1 da CRP e os artigos 3.º e o art. 154.º, n.º 1 do CPC.
*
Não foram apresentadas contra-alegações.
*
Nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre decidir.
2. Delimitação do objecto do recurso; questões a apreciar:
Das conclusões formuladas pela recorrente as quais delimitam o objecto do recurso, tem-se que a questão a resolver no âmbito do presente recurso prende-se com saber da admissibilidade da reconvenção.
3. Conhecendo do mérito do recurso:
O artigo 266.º, do Código de Processo Civil consagra a possibilidade do réu, em reconvenção, deduzir pedidos contra o autor, verificados que estejam determinados pressupostos
[1]
.
Dispondo sobre a dedução da reconvenção, o artigo 583.º do mesmo diploma legal manda que seja expressamente identificada e separadamente deduzida na contestação, impondo ao reconvinte que exponha os fundamentos e conclua pelo pedido, nos termos das alíneas d) e e), do n.º 1, do artigo 552.º, para o qual remete.
Compreende-se a exigência legal: a reconvenção deve figurar na contestação com autonomia bastante para que o autor compreenda com toda a clareza que está a ser deduzida contra si uma pretensão conexa com aquela que formulara, isto em ordem a permitir uma defesa esclarecida.
O reconvinte deverá ainda, tal como consta do n.º 2 do preceito, declarar o valor da reconvenção e, se o não fizer, a contestação não deixa de ser recebida, sendo aquele convidado a indicar o valor, sob pena da reconvenção não ser atendida.
No caso que ora se analisa, a Apelante não deu cabal cumprimento à disposição legal supracitada, uma vez que omitiu a sacramental referência ao valor da Reconvenção.
Ora, o n.º 2 do artigo 583.º prevê a prolação de um despacho de aperfeiçoamento vinculado, com o significado, para o que ora importa considerar, do juiz só poder retirar consequências da falta de preenchimento dos requisitos externos depois de facultar à parte, através do pertinente convite, a possibilidade de suprir a falha detectada. “A expressão legal utilizada, de sentido impositivo (…), leva-nos a concluir que se trata de uma verdadeira injunção que é dirigida ao juiz do processo e que não deve confundir-se com um poder discricionário que o conduza a proferir ou não, segundo o seu critério, a decisão interlocutória”
[2]
.
Por outro lado, como resulta claro do preceito em análise, estão em causa ambas as partes, valendo a imposição tanto para a petição inicial, como para a contestação/reconvenção, o que, para além do mais, é decorrência do princípio da igualdade de armas, “manifestação do mais geral princípio da igualdade das partes, que implica a paridade simétrica das suas posições perante o tribunal. No que particularmente lhe respeita, impõe o equilíbrio entre as partes ao longo de todo o processo, na perspectiva dos meios processuais de que dispõem para apresentar e fazer vingar as respectivas teses (…)”
[3]
.
E, por assim ser, a omissão, pelo juiz, de tal decisão interlocutória configura uma nulidade processual, nos termos no artigo 195.º do Código de Processo Civil.
Na previsão da norma cabem assim, entre outras situações que se poderão configurar, precisamente a “falta de cumprimento das regras que o art.º 501.º prevê para a dedução da reconvenção, designadamente procedendo à sua autonomização formal e à indicação do valor do pedido reconvencional”
[4]
.
De resto, sendo necessária a indicação do valor na reconvenção, ela deve ser feita por uma declaração explícita nesse sentido, como decorre do próprio texto do n.º 2 do artigo 583.º do Código de Processo Civil em que se refere que o réu deve “declarar o valor da reconvenção”.
Ou seja, a exigência de indicação do valor, sob cominação de efeito desfavorável, é, claramente, um ónus imposto à parte. Essa indicação tem de ser expressa, não meramente dedutível ou inferida. Muito mais no actual sistema de autoliquidação de taxa de justiça inicial, em que incumbe à secretaria aferir do seu acerto, para o que serve e se compreende, uma inequívoca indicação.
Assim, logo que a falta seja notada, deverá o réu/reconvinte ser convidado a declarar o valor, sob a cominação de a reconvenção não ser atendida.
Nestes termos, foi ordenado nos presentes autos a notificação da Ré para, em 10 (dez) dias, vir aos autos declarar o valor da reconvenção, sob a referida cominação, tendo a mesma, como atrás já se mencionou, se quedado inerte.
Destarte, não tendo a Ré/reconvinte procedido à indicação do valor da reconvenção, face ao estatuído no mencionado artigo 583.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, tal omissão tem como consequência a não admissão da reconvenção.
Refira-se, ainda, que, ao contrário do sustentado pela Apelante, a exigência de observância da referida formalidade, que se prende com a indicação do valor da reconvenção, não se confunde com os critérios legais de apuramento e fixação do valor global e definitivo da acção e daí a irrelevância da argumentação a este propósito apresentada.
Com efeito, a simples dedução da reconvenção tem como efeito processual imediato a alteração do valor da causa
[5]
, sendo que até ao momento da fixação do valor da causa por parte do juiz, não há necessidade de qualquer despacho prévio a declarar o aumento do valor, fixando-se automaticamente, no âmbito do processado subsequente à reconvenção o valor indicado pela soma das pretensões formuladas na acção e na reconvenção.
Além disso, não entendemos, ao contrário do sustentado pela Apelante, em que medida a decisão proferida padece da nulidade prevista na alínea c), do n.º 1, do artigo 615º, do Código de Processo Civil, uma vez que os fundamentos da decisão não estão em oposição com a decisão, nem revelam qualquer ambiguidade ou obscuridade que tornem a decisão ininteligível. Aliás, os fundamentos da decisão são claros e ao ser precedida do despacho convite não é desproporcional, encontra-se de harmonia com a lei, a qual não padece de qualquer vício de inconstitucionalidade.
Não ignoramos que o primado da justiça material sobre a justiça formal é um princípio acolhido pela lei, nomeadamente, pela reforma processual de 1997, que impõe ao julgador a efectiva resolução de mérito das questões que são submetidas à sua apreciação, em detrimento das soluções meramente processuais. Porém, tal exigência, não significa a desvalorização das exigências processuais que sejam essenciais para garantir outros princípios fundamentais do processo, nem pode representar um intolerável dano ao valor da segurança jurídica, o que se impõe observar, no caso vertente, uma vez que a Apelante se manteve inerte após a prolação do despacho convite, do qual constava a respectiva cominação.
Impõe-se, por isso, o não provimento da apelação.
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Sumariando em jeito de síntese conclusiva:
.....................................................................
.....................................................................
.....................................................................
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4. Decisão
Nos termos supra expostos, acorda-se, neste Tribunal da Relação, em julgar não provido o recurso de apelação, confirmando a decisão recorrida.
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As custas são a cargo da apelante.
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Notifique.
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Porto, 06 de Fevereiro de 2025
Os Juízes Desembargadores
Relator: Paulo Dias da Silva
1.º Adjunto: Ana Vieira
2.º Adjunto: Francisca Mota Vieira
(a presente peça processual foi produzida com o uso de meios informáticos e tem assinatura electrónica e por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem)
__________________________
[1]
Cf. n.ºs 1 e 2 do preceito.
[2]
Cf. A. Geraldes, “Temas da Reforma do Processo Civil”, II vol., pág. 77.
[3]
Cf. José Lebre de Freitas, “Introdução ao processo Civil, conceito e princípios gerais”, 2.ª ed., reimpressão, págs. 118/119.
[4]
Cf. A. Geraldes, ob. cit., pág. 78.
[5]
Cf. António Santos Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil anotado, vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, Livraria Almedina, Coimbra, 2018, págs. 346-348 ou José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil anotado, Vol. I, 4ª edição, Livraria Almedina, Coimbra, 2018, págs. 605-607.
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TRP
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https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/0f74f80634d034b880258c37003fe58a?OpenDocument
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1,739,491,200,000
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CONFIRMADA
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4792/23.0T8LRA.C1
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4792/23.0T8LRA.C1
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PAULA MARIA ROBERTO
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I – Por força do disposto no artigo 35.º da Lei n.º 13/2023 (aplicação no tempo), <<ficam sujeitos ao regime do Código do Trabalho, com a redação dada pela presente lei, os contratos de trabalho celebrados antes da entrada em vigor desta lei, salvo quanto a condições de validade e a efeitos de factos ou situações anteriores àquele momento.>>
II – À relação jurídica estabelecida entre as partes com início em data anterior à da entrada em vigor da Lei n.º 13/2023 que aditou ao Código do Trabalho o artigo 12.º-A, este só será aplicado à mesma no caso de se extrair da matéria de facto que ocorreu uma mudança essencial na configuração dessa relação, ou seja, a nova presunção de laboralidade será aplicável se resultar da matéria de facto que as partes alteraram os seus termos essenciais.
(Sumário elaborado pela Relatora)
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[
"CONTRATO DE TRABALHO",
"APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO",
"NOVA PRESUNÇÃO DE LABORALIDADE",
"ALTERAÇÃO DOS TERMOS ESSENCIAIS DA RELAÇÃO"
] |
Acordam
[1]
na Secção Social (6.ª Secção) do Tribunal da Relação de Coimbra:
I – Relatório
O Ministério Público
intentou a presente ação de reconhecimento da existência de um contrato de trabalho, relativamente aos prestadores
AA
,
BB
e
CC
contra
A..., Unipessoal, Ldª
,
com sede em Lisboa
alegando, em síntese que:
A Ré é uma empresa tecnológica que opera a plataforma digital Uber Eats, servindo-se desta aplicação informática para receber e distribuir os pedidos, nomeadamente, refeições, plataforma criada e desenvolvida para tal efeito; efetua a gestão de um negócio que estabelece a ligação entre um cliente e um comerciante, mas exige uma execução local que requer a prestação de uma atividade num determinado local a qual é assegurada pelos trabalhadores estafetas; a Ré disponibiliza serviços à distância, através de meios eletrónicos, a pedido de utilizadores, o que envolve como componente necessária e essencial a organização do trabalho prestado por indivíduos a troco de pagamento, independentemente de esse trabalho ser prestado em linha ou numa localização determinada, sob termos e condições de um modelo de negócio e uma marca (“Uber”); todo o trabalho destes prestadores é prestado sob orientação da Ré que tem o poder de direção, o trabalhador está inserido na organização da empresa da Ré que se encontra sob a autoridade desta, a qual tem o poder de fiscalização, não tendo o trabalhador qualquer liberdade para fixar a sua remuneração ou alterar as condições do seu pagamento; a relação de trabalho estabelecida entre a Ré e os trabalhadores acima identificados desenvolveu-se de forma em tudo semelhante àquela que resulta da celebração de um contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital, enquadrável no conceito definido no artigo 12.º-A do Código do Trabalho, com total dependência económica da Ré, sendo a Ré quem fixa a retribuição para o trabalho efetuado ou estabelece limites mínimos e máximos para aquela, sendo a Ré quem controla e supervisiona a prestação da atividade, incluindo em tempo real e verifica a qualidade da atividade prestada, nomeadamente através de meios eletrónicos; a Ré restringe a autonomia do trabalhador quanto à organização do trabalho, especialmente quanto à possibilidade de aceitar ou de recusar tarefas, através da aplicação de sanções, à escolha dos clientes, exerce poder disciplinar sobre o trabalhador, incluindo a exclusão de futuras atividades na plataforma através de desativação da conta e equipamentos e instrumentos de trabalho pertencem à Ré.
Termina formulando o seguinte pedido:
“Que a ação seja julgada procedente e provada e em consequência:
Seja reconhecida e declarada a existência de um contrato de trabalho entre a Ré e os trabalhadores AA (fixando-se a data do seu início em 1 de Janeiro de 2022), BB (fixando-se a data do seu início em 1 de Dezembro de 2022) e CC (fixando-se a data do seu início em Julho de 2023).”
*
A Ré, devidamente notificada, apresentou
contestação
, alegando, em síntese:
Não é aplicável a presunção estabelecida no artigo 12.º-A do CT; não foram enunciados factos nem provas que permitam a qualificação da Uber Eats como plataforma digital; dois prestadores de atividade exercem a sua atividade na Plataforma Uber Eats através de um intermediário e o outro exerce-a de forma independente; não se verificam as características de contrato de trabalho elencadas no artigo 12.º-A, n.º 1, do CT; os prestadores de atividade desenvolvem a atividade com efetiva autonomia em relação à Ré, são livres de escolher como, onde, por quanto tempo e em que termos prestam atividade na Plataforma Uber Eats; não existe controlo, poder de direção e poder disciplinar sobre os prestadores de atividade nem uma relação
intuitu personae
entre a Ré e os prestadores de atividade e as características de um contrato de trabalho não se encontram verificadas.
Termina dizendo:
“
Termos
em
que:
i)
se
deverá
absolver
a
Ré
da
instância,
por
procedência
da
exceção
dilatória
atípica
resultante
do
facto
de
não
ser
admissível
in
casu
a
cumulação
de
pedidos;
ii)
subsidiariamente,
se
deverá
absolver
a
Ré
da
instância,
por
procedência
da
exceção
dilatória
atípica
derivada
da
anulabilidade
da
participação
efetuada
pela
ACT
aos
Serviços
do
Ministério
Público;
iii)
subsidiariamente,
se
deverá
julgar
o
pedido
do
Autor
improcedente,
por
não
provado;
iv)
subsidiariamente,
se
deverá
julgar
o
pedido
do
Autor
improcedente,
por
ilisão
da
presunção
de
existência
de
contrato
de
trabalho
prevista
no
artigo
12.º-A,
n.º
1,do
Código
do
Trabalho;
E
adicionalmente,
em
relação
ao
pedido
de
apensação
deduzido
pelo
Autor:
v)
Não
deverá
o
presente
processo
ser
apenso
ao
Proc.
n.º
4699/23....,
porquanto
não
se
verificam
os
requisitos
que
presidem
à
aplicação
da
figura
e
se
verifica
razão
especial
que
impede
a
mesma;
vi)
Subsidiariamente,
mas
sempre
sem
conceder,
deverão
os
processos
apensos
respeitar
o
estatuto
dos
prestadores
de
atividade
visados,
determinando-se
a
apensação
em
dois
grupos,
um
para
cada
estatuto
de
prestador
de
atividade,
e
serem
os
processos
convertidos
em
processo
declarativo
comum
por
ser
este
o
único
capaz
de
garantir
à
Ré
o
seu
direito
efetivo
de
defesa
relativo
a
cada
um
dos
pedidos
desses
autos;
vii)
Subsidiariamente,
mas
sempre
sem
conceder,
deverão
os
processos
apensos,
ainda
que
sem
respeito
pelo
estatuto
dos
prestadores
de
atividade
visados,
ser
convertidos
em
processo
declarativo
comum
por
ser
este
o
único
capaz
de
garantir à
Ré o seu direito efetivo
de defesa relativo a
cada
um
dos
pedidos
desses
autos”.
*
Foi proferido o despacho saneador de fls. 288 e segs. e, de seguida, realizou-se a audiência de discussão e julgamento conforme resulta das respetivas atas.
*
Foi, depois, proferida
sentença
com o seguinte dispositivo:
“Atentos os fundamentos expostos e as normas legais citadas, decide-se julgar improcedente a ação instaurada pelo Autor, Ministério Público, contra a Ré, A... Unipessoal, Lda. e, em consequência, absolve-se a Ré do pedido de reconhecimento da existência de contratos de trabalho entre a Ré e AA, BB e CC.”
*
O
Autor
, notificado desta sentença, veio
interpor o presente recurso
que concluiu da forma seguinte:
(…).
*
A
Ré
apresentou
resposta
concluindo que:
(…).
*
Colhidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.
*
II – Questões a decidir:
Como é sabido, a apreciação e a decisão dos recursos são delimitadas pelas conclusões da alegação do recorrente (artigo 639.º, n.º 1, do C.P.C. na redação da Lei n.º 41/2013 de 26/06), com exceção das questões de conhecimento oficioso.
Cumpre, assim, apreciar as
questões
suscitadas pelo Autor recorrente, quais sejam:
1ª –
Se é aplicável a presunção de contrato de trabalho prevista no artigo 12.º-A do CT
.
2ª –
Se se encontram verificadas as circunstâncias a que alude o artigo 12.º-A do CT
.
*
*
III – Fundamentação
a)
Factos provados constantes da sentença recorrida:
1)
A Ré é uma sociedade comercial unipessoal por quotas que tem por objeto social “prestação de serviços de geração de potenciais clientes a pedido, gestão de pagamentos, atividades relacionadas com a organização e gestão de sites, aplicações on-line e plataformas digitais, processamento de pagamentos e outros serviços relacionados com a restauração, aquisição de serviços de entrega a parceiros de entrega e venda de serviços de entrega a clientes finais”.
2) Para a execução das referidas atividades a Ré opera a plataforma digital Uber Eats, de entregas
on line
, nomeadamente de refeições, servindo-se desta aplicação informática para receber e distribuir os pedidos, plataforma criada e desenvolvida para tal efeito.
3) A plataforma estabelece a ligação entre os comerciantes que desejam vender os seus produtos, os clientes que desejam adquirir bens e os estafetas que desejam fazer as entregas aos clientes.
4) Tanto os comerciantes como os estafetas e os clientes são utilizadores da plataforma.
5) Os estafetas, em seu nome ou através de um intermediário, procedem à recolha dos bens nos estabelecimentos aderentes, transportando esses produtos até ao cliente final conforme por este solicitado, através da plataforma.
6) No dia 20 de setembro de 2023, pelas 21:08horas, no estabelecimento comercial denominado “B...”, sito na rotunda ..., ... ..., AA encontrava-se a aguardar a preparação do pedido que tinha aceite através da APP da Uber Eats para entregar ao cliente final, conforme pedido que lhe foi distribuído, que o mesmo aceitou através da Plataforma Uber Eats, e na qual se encontra registado com o endereço eletrónico – ..........@....., desde 1 de janeiro de 2022, ao qual acedia através do seu telemóvel.
7) No dia 20 de setembro de 2023, pelas 21:08horas, no estabelecimento comercial denominado “C...”, sito no IC..., ..., ... ..., BB encontrava-se a aguardar pela preparação do pedido, por um dos restaurantes situados naquele estabelecimento comercial, pedido que tinha aceite através da APP da Uber Eats para entregar ao cliente final, conforme pedido que lhe foi distribuído e que o mesmo aceitou através da Plataforma Uber Eats, na qual o mesmo se encontra registado com o endereço eletrónico – ..........@....., desde 1 de dezembro de 2022, ao qual acedia através do seu telemóvel.
8) No dia 15 de outubro de 2023, pelas 20:30horas, no estabelecimento comercial denominado “D...”, sito na Praça ..., ... ..., CC encontrava-se a aguardar pela preparação do pedido que tinha aceite através da APP da Uber Eats para entregar ao cliente final, conforme pedido que lhe foi distribuído e que o mesmo aceitou através da Plataforma Uber Eats, na qual o mesmo se encontra registado com o endereço eletrónico – ..........@....., desde 23 de março de 2022, ao qual acedia através do seu telemóvel.
9) Enquanto aguardavam a entrega do pedido, os mesmos eram portadores de mala de transporte para alimentos em formato de mochila térmica.
10) Os instrumentos/equipamentos que utilizam foram por si adquiridos, tal como o motociclo, o capacete, o telemóvel e a mochila térmica de transporte.
11) Para o exercício das funções de estafeta acederam à plataforma e criaram uma conta.
12) Para tal efeito, inseriram na Plataforma cópia do seu passaporte ou título de residência (conforme os casos), o registo criminal (sem antecedentes criminais), carta de condução, endereço eletrónico, a sua fotografia, fotografias do interior e exterior da mochila térmica, cópia do registo do ciclomotor e do seguro do mesmo.
13) Aceitando os termos e condições específicas impostas pela plataforma.
14) Para a inscrição, o motociclo tem de estar registado em nome do estafeta.
15) A Plataforma digital pede aos estafetas que tirem uma
selfie
que é depois comparada com a fotografia registada na plataforma para detetar situações de partilhas de contas, que não são permitidas pela plataforma.
16) AA exerce a sua atividade na plataforma Uber Eats de forma independente enquanto BB e CC exercem a sua atividade na plataforma Uber Eats através do parceiro de frota E... – Unipessoal, Lda.
17) No dia 1 de novembro de 2023 CC transitou para o parceiro de frota F..., Lda.
18) Tanto BB como CC desencadearam o processo de associação ao seu parceiro de frota.
19) Para fazerem parte de uma frota de prestadores de atividade BB e CC foram convidados pelos respetivos parceiros de frota para se associarem a si, através da plataforma, e aceitaram.
20) Sendo pagos pelo respetivo parceiro de frota, de acordo com os termos acordados com este.
21) Por seu turno, a Ré paga ao parceiro de frota a taxa de entrega relativa às entregas realizadas pelos mesmos, sendo alheia ao valor que depois é pago aos estafetas pelo respetivo parceiro de frota.
22) No caso do estafeta AA, quando aceita um pedido, toma conhecimento do valor que vai receber, recebe conforme a distância de entrega do pedido, sendo que em determinados dias e em determinados horários o preço por pedido é multiplicado por um multiplicador – 1.4, na medida em que nem todos os dias são pagos com o mesmo montante e nem todas as horas oferecem o mesmo valor (por exemplo as horas de almoço, de jantar e de madrugada são melhor pagas; se as condições climáticas forem adversas e se houver poucos estafetas “on line”, os estafetas são melhor pagos).
23) De acordo com o ponto 4.f. do Contrato de Parceiro de Entregas Independente “O Parceiro de Entregas Independente é totalmente livre de escolher se contrata ou não com ou para outras empresas para prestar Serviços de Entrega, incluindo concorrentes da Uber Eats. Isto inclui fazê-lo ao mesmo tempo do que quando está a usar a App (conhecida como ‘multi-apping’). Também é totalmente livre de prestar Serviços de Entrega aos Seus próprios clientes e ter a sua própria base de clientes”.
24) Ainda de acordo com o ponto 6.b. desse Contrato “Cada proposta de serviços de Entrega exibida ao Parceiro de Entregas Independente na App, incluirá uma taxa proposta (incluindo IVA ou qualquer outro imposto sobre vendas) (a “Taxa de Entrega”), que nunca deverá considerar uma taxa por quilómetro inferior à sua Taxa Mínima por Quilómetro sendo que nos termos da alínea c. “A taxa por quilómetro será calculada dividindo o valor da Taxa de Entrega pelo número de quilómetros a serem percorridos desde o ponto de levantamento do pedido até ao ponto de entrega do pedido, que será indicado na proposta de Serviços de Entrega, conforme determinado por serviços de localização”.
25) O pagamento é efetuado semanalmente no caso do estafeta AA.
26) O estafeta pode determinar livremente (ou apenas limitado ao acordo celebrado com o parceiro de frota) a sua taxa mínima por quilómetro abaixo do qual não deseja receber propostas de serviços de entrega (“taxa mínima por quilómetro”).
27) Neste caso a plataforma apresenta-lhe o valor final que irá receber caso aceite o pedido mas esse valor não será inferior à taxa mínima por quilómetro que o estafeta definiu anteriormente.
28) Todas as operações retributivas processam-se através da Plataforma Uber e dependem dela, ficando na mesma registados todos os pagamentos efetuados ao parceiro de frota e ao estafeta (quando este exerce atividade de forma independente).
29) A retribuição é atribuída por pedido, não sendo remunerados os tempos de espera.
30) Até recolher a entrega para a entregar o estafeta pode cancelar a entrega e não a concluir.
31) Quando aceitam o pedido os estafetas sabem qual a distância de entrega.
32) A plataforma permite que os estafetas decidam quando querem ser pagos, exceto quando estão associados a um parceiro de frota, através da ferramenta “flex pay” e apenas no caso de não optarem por recolher os rendimentos através desta ferramenta é que os mesmos são pagos semanalmente.
33) Para iniciar a sessão na plataforma da Ré o estafeta tem de abrir a aplicação “Uber Eats” e colocar-se
on line
carregando no botão “GO” e, neste estado fica disponível para que lhe sejam atribuídos os pedidos de entrega.
34) Quando faz login na aplicação a plataforma fica a saber qual é a sua localização, através de um sistema de geolocalização.
35) Nos termos do ponto 4. j. do “Contrato de Parceiro de Entregas do Parceiro de Frota”, o parceiro de entregas “reconhece que as suas informações de localização têm de ser fornecidas à Uber Eats para prestar Serviços de Entrega. Reconhece e concorda que: a) as suas informações de localização podem ser obtidas pela Uber Eats enquanto a App está em execução; e (b) a sua localização aproximada será exibida ao Comerciante e ao Cliente antes e durante a prestação de Serviços de Entrega.”.
36) Quando recebe um pedido o estafeta sabe qual o restaurante, o montante que irá receber através da APP e a distância da entrega a efetuar.
37) O estafeta pode aceitar ou rejeitar o pedido e se aceitar tem acesso ao mapa com a localização do restaurante através da APP GPS.
38) Quando chega ao restaurante confirma no mesmo que chegou através da plataforma, espera pelo pedido e levanta-o, conformando na APP o levantamento do pedido.
39) De seguida, inicia na plataforma através de “Start” ficando a conhecer o destino do pedido, com informação do telefone, morada e nome do cliente.
40) O cliente tem conhecimento da localização do estafeta em tempo real desde o momento em que o estafeta aceitou o pedido (através da aplicação).
41) O pagamento é sempre feito na APP, não podendo o estafeta aceitar o pagamento do cliente.
42) No caso dos estafetas sem intermediário, a gorjeta que for entregue pelo cliente pela plataforma, é paga na totalidade pela Ré ao estafeta.
43) O estafeta pode recusar o pedido quando chega ao restaurante e pode recusar até receber o pedido, havendo na APP uma opção para recusar por diversos motivos, nomeadamente, pela distância na entrega.
44) Na APP, existe opção de avaliação a efetuar pelos clientes e pelos parceiros/restaurantes ao seu desempenho, podendo os mesmos clicar em “Like” ou “Dislike”, podendo também o estafeta avaliar o restaurante e o cliente.
45) A área geográfica onde o estafeta faz as entregas é escolhida pelo mesmo.
46) Os estafetas AA e BB escolheram a área geográfica desde ... a ... e o estafeta CC escolheu ..., ... e ....
47) Caso pretendam operar noutras áreas geográficas indicam essa sua intenção à Ré.
48) Os estafetas apenas conseguem exercer as suas funções com a utilização da aplicação digital mas poderão exercer as suas funções quer através da APP Uber Eats como de outra plataforma digital e até usar várias em simultâneo.
49) Podem recolher mais do que uma encomenda ao mesmo tempo, a partir da plataforma Uber Eats, de outras plataformas ou de plataformas de clientes próprios, de forma a rentabilizar o seu tempo.
50) O estafeta tem de ter sempre a localização ativa no telemóvel quando utiliza a aplicação Uber, selecionando a opção que permite a sua localização.
51) O estafeta e o estabelecimento comercial que prepara o pedido vão introduzindo dados na aplicação de modo a permitir a monotorização de cada recolha/entrega.
52) A APP acompanha em tempo real a localização do estafeta e, consequentemente, conhece o tempo que demora cada entrega.
53) A APP define o caminho para a entrega, mas o estafeta pode escolher caminho diferente.
54) Quando entrega o pedido no cliente o estafeta tem de confirmar a entrega na APP.
55) O serviço do estafeta é avaliado pelos restaurantes e pelos clientes finais, sendo mais relevante a avaliação efetuada por estes últimos.
56) Toda a atividade prestada pelo estafeta fica registada na APP e vai adquirindo pontos, nos seguintes termos: no início, tem a classificação “Green” (0 pontos), depois vão adquirindo pontos (no horário das 19 horas às 22 horas é quando se ganha mais pontos – 6 pontos); a partir dos 360 pontos têm a classificação de “Gold”; a partir de 600 pontos têm a classificação de “Platinium” e a partir de 850 pontos têm a classificação de “Diamont”).
57) Estas classificações permitem aos estafetas ter mais vantagens, por exemplo, desconto em cada litro de combustível abastecido na “Galp” (se tiver, por exemplo, a classificação “Gold” tem desconto na “Galp” de 0,08 euros em cada litro de combustível) e tem descontos na aquisição de equipamentos ou instrumentos de trabalho em lojas associadas (como, por exemplo, na aquisição de mochila térmica ou porta-telemóvel).
58) Se o estafeta reduzir ou aumentar a prestação de atividade (maior ou menor taxa de aceitação de pedidos) pode “descer” ou “subir” de classificação e perder as vantagens que já tinha ou ganhar mais; a atualização dos pontos é efetuada, em regra, mensalmente.
59) No ponto 9, alínea b) do “Contrato de Parceiro de Entregas do Parceiro de Frota” consta que “No caso de uma alegada violação das obrigações da sua Empresa de Parceiro de Frota, ou das suas obrigações (Cláusula 5, supra), incluindo quando recebemos uma reclamação de segurança ou potencial incumprimento das leis e regulamentos aplicáveis, bem como dos costumes locais e boas práticas, ou sempre que necessário para a proteção de terceiros, ou cumprimento da legislação, ou decorrente de ordem judicial ou administrativa, temos o direito de restringir o Seu acesso à, e utilização da App. Se o fizermos será notificado por escrito das razões para tal restrição.(…)”
60) Ainda de acordo com o ponto 16.b. do “Contrato de Parceiro de Entregas Independente consta que “Podemos resolver o presente Contrato, a qualquer momento, mediante notificação prévia, por escrito, com 30 (trinta) dias de antecedência, salvo nas seguintes situações, nas quais, este período de aviso prévio não se aplica: (i) se estivermos sujeitos a uma obrigação legal ou regulamentar que nos obrigue a terminar a sua utilização da App ou dos nosso serviços em prazo inferior a 30 (trinta) dias; (ii) se o parceiro de Entregas Independente tiver infringido o presente Contrato; ou (iii) mediante denúncia de que o parceiro de Entregas Independente tenha agido de forma não segura ou violou este Contrato ou legislação em conexão com a prestação de serviços de entrega; (iv) teve um comportamento fraudulento (atividade fraudulenta pode incluir, mas não está limitada a, as seguintes ações: partilhar a sua conta com terceiros não autorizados; aceitar propostas sem intenção de as entregar; induzir utilizadores a cancelar os seus pedidos; criar contas falsas para fins fraudulentos; solicitar reembolso de taxas não geradas; solicitar, executar ou confirmar intencionalmente a disponibilidade de propostas fraudulentas; interromper o funcionamento das aplicações e do GPS da Uber, como alterar as configurações do telefone; fazer uso indevido de promoções ou para fins diferentes dos pretendidos; contestar cobranças por motivos fraudulentos ou ilegítimos; criar contas duplicadas; fornecer informações falsas ou documentos falsificados (…)”
61) O estafeta pode bloquear clientes e estabelecimentos na plataforma.
62) O GPS permite aos clientes acompanhar a sua encomenda a partir do momento em que os estafetas a recolhem.
63) De acordo com o ponto 4.h. do referido Contrato “O Parceiro de Entregas é livre para escolher o sistema de GPS da sua preferência na App (entre Waze, Google Maps ou Uber GPS) ou usar qualquer outro sistema de GPS que não seja API integrado na App da Uber, ou não usar nenhum sistema de GPS. Tal permite que o Parceiro de Entregas escolha a sua rota livremente. Para que fique claro, não há consequências por escolher uma rota livremente.”.
64) Nos termos do ponto 13.g. do Contrato “A Uber Eats mantém um seguro relacionado com a prestação de Serviços de Entrega pelo Parceiro de Entregas, tal como venha a determinar em seu próprio juízo razoável. Caso a Uber Eats venha a contratar um seguro relativo a sua prestação de Serviços de Entrega, a Uber Eats pode alterar os termos, ou cancelar essa apólice, por sua única e exclusiva determinação e a qualquer momento. (…)”.
65) Os estafetas escolhem os dias e horas em que pretendem ligar-se à aplicação da Ré, bem como o período de permanência online.
66) Os estafetas são livres de escolher a roupa que querem usar.
67) Podendo fazer-se substituir por outro estafeta.
*
*
b) - Discussão
Apreciando as
questões
suscitadas pelo Autor recorrente:
1ª questão
Se é aplicável a presunção de contrato de trabalho prevista no artigo 12.º-A do CT
.
Alega o recorrente que:
- Concluiu o Tribunal que a presunção do artigo 12º-A do Código do Trabalho não tem aplicação a caso dos autos, devendo apenas lançar-se mão do disposto no artigo 12º do Código do Trabalho.
- O Tribunal, com este entendimento, violou o disposto no artigo 12º, nº 2, do Código Civil e o disposto no artigo 35º, nº 1, da Lei º 13/2023, de 13 de Abril, tendo efetuado uma interpretação errada de tais normativos, tendo por força dessa violação e interpretação, aplicado ao caso dos autos o disposto no artigo 12º do Código do Trabalho enão o disposto no artigo 12º-A do mesmo diploma legal, como se lhe impunha.
- A nova norma consagradora da presunção de laboralidade não se relaciona com condições de validade do contrato, nem influencia o modo de execução do contrato na sua expressão fáctica.
- Por este motivo, não se vislumbra em que medida a aplicação a nova norma a relações já constituídas quebraria legítimas expectativas.
- É claro o interesse do legislador na aplicação imediata da norma nova a situações anteriormente existentes, tando o mais, se assim não fosse, que sentido teria a norma do nº 3 do artigo 32º da Lei nº 13/2023, de 3 de Abril que determina que a A.C.T., no primeiro ano de vigência da nova Lei desenvolva uma campanha extraordinária e específica no sector das plataformas digitais se não se tivesse de cingir às relações jurídicas já existentes.
- Ao caso dos autos é aplicável a nova presunção prevista no artigo 12º-A do Código do Trabalho e não a prevista no artigo 12º do Código do Trabalho como erradamente entendeu o Tribunal, devendo a mesma ter sido interpretada e aplicada, face aos factos provados, no sentido de reconhecer a existência de contratos de trabalho entre os três trabalhadores em causa nos autos e a Ré.
Por outro lado, decidiu-se na sentença recorrida, a este propósito, o seguinte:
“
Procurando dar resposta à introdução de novas tecnologias e formas cada vez mais diversas de prestação de atividade com recurso a plataformas digitais online, foi introduzida uma nova presunção de contrato de trabalho no âmbito da plataforma digital, prevista no art.º 12.º-A do Código do Trabalho.
A primeira questão que se coloca prende-se com a aplicação no tempo desta norma relativamente a relações jurídicas que se iniciaram em momento anterior à entrada em vigor daquele preceito legal, uma vez que esta nova presunção entrou em vigor no dia 01/05/2023 nos termos do disposto no art.º 37.º, n.º 1, da Lei n.º 13/2023, de 13 de abril, o que é o caso em apreço tendo em conta que os estafetas AA, BB e CC iniciaram a sua atividade na plataforma digital respetivamente em 1 de janeiro de 2022, 1 de dezembro de 2022 e 23 de março de 2022. De facto, inexiste norma transitória a prever a sua aplicação imediata como decorre a contrario do disposto no art.º 32.º da citada Lei, decorrendo apenas do respetivo art.º 35.º, n.º 1, que “ficam sujeitos ao regime do Código do trabalho, com a redação dada pela presente lei, os contratos de trabalho celebrados antes da entrada em vigor desta lei, salvo quanto a condições de validade e a efeitos de factos ou situações anteriores àquele momento”.
O art.º 12.º, n.º 2, do Código Civil prevê, no que concerne ao conteúdo de certas relações jurídicas, que a lei nova abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor. Todavia, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem entendido de forma consolidada que para efeitos da qualificação de uma relação jurídica entre as partes, antes da entrada em vigor das alterações legislativas que estabeleceram o regime da presunção de laboralidade, deve atender-se ao regime jurídico que vigorava à data em que se iniciou a relação em causa, entendimento do qual não vemos razões para divergir. (…)
Deste modo, as presunções da existência de contrato de trabalho apenas são suscetíveis de serem invocadas para o futuro, salvo se se apurar que tenha ocorrido uma mudança de relevo na configuração da relação jurídica.
No caso em apreço não resultou provado que os termos e condições aceites pelos estafetas sofreram alterações após o início da relação jurídica estabelecida com a Ré, que se manteve idêntica e com base nos mesmos pressupostos.
Em suma, verifica-se que os estafetas em apreço registaram-se na plataforma digital da Ré em janeiro, março e dezembro de 2022, respetivamente, desenvolvendo-se a partir dessas datas a reação entre cada um deles e a Ré, sem que se configure uma alteração na configuração da relação jurídica após 01/05/2023. Deste modo, afigura-se que a presunção doa rt.º 12.º-A, n.º 1, do Código do Trabalho, introduzida pela Lei n,º 13/2023, de 13 de abril, revela-se insuscetível de ter aplicação para efeitos de qualificação da relação jurídica estabelecida entre os estafetas em causa e a Ré, devendo lançar-se mão do disposto no art.º 12.º do Código do Trabalho
.”
Apreciando a pretensão do recorrente:
Por força da Lei n.º 13/2023, de 03/04, foi aditado ao Código do Trabalho o
artigo 12.º-A que, sob a epígrafe “Presunção de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital”
, estabelece:
“1 - Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, presume-se a existência de contrato de trabalho quando, na relação entre o prestador de atividade e a plataforma digital se verifiquem algumas das seguintes características:
a) A plataforma digital fixa a retribuição para o trabalho efetuado na plataforma ou estabelece limites máximos e mínimos para aquela;
b) A plataforma digital exerce o poder de direção e determina regras específicas, nomeadamente quanto à forma de apresentação do prestador de atividade, à sua conduta perante o utilizador do serviço ou à prestação da atividade;
c) A plataforma digital controla e supervisiona a prestação da atividade, incluindo em tempo real, ou verifica a qualidade da atividade prestada, nomeadamente através de meios eletrónicos ou de gestão algorítmica;
d) A plataforma digital restringe a autonomia do prestador de atividade quanto à organização do trabalho, especialmente quanto à escolha do horário de trabalho ou dos períodos de ausência, à possibilidade de aceitar ou recusar tarefas, à utilização de subcontratados ou substitutos, através da aplicação de sanções, à escolha dos clientes ou de prestar atividade a terceiros via plataforma;
e) A plataforma digital exerce poderes laborais sobre o prestador de atividade, nomeadamente o poder disciplinar, incluindo a exclusão de futuras atividades na plataforma através de desativação da conta;
f) Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertencem à plataforma digital ou são por esta explorados através de contrato de locação.
2 - Para efeitos do número anterior, entende-se por plataforma digital a pessoa coletiva que presta ou disponibiliza serviços à distância, através de meios eletrónicos, nomeadamente sítio da Internet ou aplicação informática, a pedido de utilizadores e que envolvam, como componente necessária e essencial, a organização de trabalho prestado por indivíduos a troco de pagamento, independentemente de esse trabalho ser prestado em linha ou numa localização determinada, sob termos e condições de um modelo de negócio e uma marca próprios.
3 - O disposto no n.º 1 aplica-se independentemente da denominação que as partes tenham atribuído ao respetivo vínculo jurídico.
4 - A presunção prevista no n.º 1 pode ser ilidida nos termos gerais, nomeadamente se a plataforma digital fizer prova de que o prestador de atividade trabalha com efetiva autonomia, sem estar sujeito ao controlo, poder de direção e poder disciplinar de quem o contrata. (…)>>
No entanto, por força do disposto no artigo 35.º da citada Lei n.º 13/2023 (aplicação no tempo), <<
ficam sujeitos ao regime do Código do Trabalho, com a redação dada pela presente lei, os contratos de trabalho celebrados antes da entrada em vigor desta lei, salvo quanto a condições de validade e a efeitos de factos ou situações anteriores àquele momento
.>>
Ora, como se pode ler no Acórdão do STJ, de 04/07/2018, disponível em
www.dgsi.pt
:
<<
I. A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça está consolidada de forma uniforme no sentido de que estando em causa a qualificação de uma relação jurídica estabelecida entre as partes, antes da entrada em vigor das alterações legislativas que estabeleceram o regime da presunção de laboralidade, e não se extraindo da matéria de facto provada que tenha ocorrido uma mudança na configuração dessa relação, há que aplicar o regime jurídico em vigor na data em que se estabeleceu a relação jurídica entre as partes.
(…)
III. Estando em causa uma relação jurídica estabelecida entre as partes em 2 de novembro de 1995, e não se extraindo da matéria de facto provada que as partes tivessem alterado os seus termos essenciais, à qualificação dessa relação aplica-se o regime jurídico do contrato individual de trabalho, anexo ao Decreto-Lei n.º 49.408 de 24 de novembro de 1969, não tendo aplicação as presunções previstas no artigo 12.ºdo Código do Trabalho de 2003 e de 2009
.>>
Significa isto que à relação jurídica estabelecida entre as partes com início em data anterior à da entrada em vigor da Lei n.º 13/2023 que aditou ao Código do Trabalho o artigo 12.º-A, este só será aplicado à mesma no caso de se extrair da matéria de facto que ocorreu uma mudança essencial na configuração dessa relação, ou seja, a nova presunção de laboralidade será aplicável se resultar da matéria de facto que as partes alteraram os seus termos essenciais.
Como se decidiu no acórdão do STJ, de 15/01/2019, disponível em
www.dgsi.pt
, que acompanhamos:
<<
Na verdade, as presunções de laboralidade estabelecidas no artigo 12.º do Código do Trabalho em vigor – preceito legal aplicado pelo acórdão recorrido - prendem-se intimamente com a demonstração do facto de que emerge a relação jurídica a que se referem.
Ou seja, nada têm a ver com o complexo de direitos e obrigações que são inerentes à situação jurídica em que ocorrem, estando antes ligadas à caracterização do facto que dá origem àquela situação jurídica.
No fundo, visam a demonstração do título jurídico de que emerge a situação jurídica em causa e que a caracteriza e, nessa medida, só podem ser aplicadas a situações jurídicas já iniciadas na vigência da norma que as consagrou.
Assim, relativamente a relações iniciadas na vigência do artigo 12.º do Código do Trabalho em vigor, o legislador presume, juris tantum, que às mesmas está subjacente um contrato de trabalho, quando se mostrem preenchidos os pressupostos estabelecidos naquele normativo.
Estamos no âmbito da segunda parte n.º 1 do artigo 7.º da Lei n.º 7/2009, quando exceciona do âmbito de aplicação do novo código as «condições de validade e (.) efeitos de factos ou situações totalmente passados anteriormente àquele momento».
Lida esta norma no contexto do artigo 12.º, n.º 2, 1.ª parte, do Código Civil, pode concluir-se, pois, que o que está em causa no âmbito das presunções de laboralidade são ainda «condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos».
Como ensina BAPTISTA MACHADO
[4]
, a propósito do carácter disjuntivo da distinção que é feita no art.º 12.º, n.º 2, do Código Civil, entre “validade” e “conteúdo”, «… para fins de direito de conflitos de leis (no tempo ou no espaço), se faz passar por entre as normas que regulam uma relação ou situação jurídica uma divisória fundamental: de um lado, ficam aquelas normas que estabelecem o regime de validade (de constituição) da relação, do outro aquelas que fixam o regime do seu conteúdo (dos seus efeitos). Eis porque tão frequentemente deparamos, nos textos doutrinais sobre conflitos de leis, com as seguintes expressões, usadas em contraposição uma à outra: «lei (reguladora) da validade» e «lei (reguladora) dos efeitos». Pois também no texto do nosso art. 12.º «conteúdo» se contrapõe a «validade» (constituição). Como abrangidos pela noção de «conteúdo» hão-de entender-‑se, pois, os poderes deveres dos sujeitos da relação jurídica, os efeitos (consequências de direito) que essa relação jurídica produz ou ainda aqueles que ela é suscetível de produzir com a verificação de certos factos posteriores ou de repercutir sobre relações jurídicas complexas. Só que, se esses efeitos de direito se devem entender como definitivamente fixados no momento da constituição da relação jurídica, por serem correlativos ou «proporcionais» ao facto constitutivo, a «lei da validade» é também a lei reguladora desses efeitos (1.ª parte do n.º 2 do art. 12.º). Fora desta hipótese, os efeitos ainda não produzidos (ainda não «atualizados» por se não ter verificado ainda o pressuposto legal da sua produção) no momento da entrada em vigor da lei nova, e bem assim, de futuro, os direitos e deveres das partes e as consequências das respetivas violações, passam a ser regulados por esta lei.»
Ora, a norma que criou as presunções de laboralidade e que impõe que verificada a ocorrência de determinados factos se presuma que a relação em que esses factos ocorrem é uma relação de trabalho subordinado, é uma norma que se refere à “constituição” (ou validade) de uma situação jurídica e não ao seu “conteúdo” ou aos efeitos de uma situação jurídica.
Na verdade, embora tenham o seu fundamento em aspetos caracterizadores da forma como a relação evolui e, por esta via, se pudessem associar ao conteúdo da situação jurídica em causa, a verdade é que a eficácia das presunções de laboralidade se projeta sobre a caracterização do título constitutivo da situação jurídica, ou seja sobre o facto de que a mesma emerge.
Por outras palavras, o efeito das presunções projeta-se de forma imediata não no complexo de direitos e deveres que caracteriza e compõem uma situação jurídica, mas sobre o facto que a constitui.
Como refere BAPTISTA MACHADO
[5]
, «as leis que regulam a constituição (ou processo formativo) duma SJ não podem afetar as SJ anteriormente constituídas.»
E continua, mais à frente
[6]
:
«Quando (…) a constituição da situação jurídica se processa através de um ato ou negócio jurídico (que não por força simplesmente de um facto material), a regra de conflitos em causa significa que a lei nova não se aplica às condições de validade do ato ou negócio jurídico que deu vida a uma situação jurídica antes da sua entrada em vigor.
Donde se conclui que é em face da lei antiga que devem ser decididas as questões de saber se uma situação jurídica concreta se constituiu ou não, se ela se constituiu regularmente ou padece de quaisquer vícios na sua formação – isto é, todas as questões relativas à validade ou invalidade dos respetivos atos constitutivos.»
Deste modo, visando as presunções de laboralidade caracterizar substancialmente um facto que dá origem a uma relação como contrato de trabalho, as mesmas só poderão aplicar-se aos factos novos, ou seja às relações constituídas na vigência da norma que as passou a prever, respeitando desta forma os corolários fundamentais em que assenta a solução consagrado no artigo 12.º do Código Civil.
Se assim não fosse, a aplicação a uma situação jurídica preexistente de um sistema de presunções criado em momento ulterior, e que modela as relações entre as partes de forma diversa, iria alterar o quadro emergente do facto constitutivo dessa situação jurídica, colocando-se, por esta via, no terreno da problemática de sucessão de leis no tempo.
As presunções não podem, pois, aplicar-se retroativamente para caracterizarem situações jurídicas existentes na data em que as mesmas entraram no sistema jurídico, aplicando-se deste modo e apenas relativamente às situações jurídicas constituídas na vigência destas normas.
Importa, aliás, que também se tenha presente que por detrás da problemática de sucessão de leis no tempo estão princípios fundamentais do direito como o princípio da confiança, a exigir a estabilidade de situações jurídicas, como base da vida social e o princípio da autonomia da vontade, com reflexo direto no respeito pela vontade das partes na modelação das suas relações, especialmente aquelas que têm base contratual.
Na síntese de FERNANDO PINTO BRONZE
[7]
, «arriscando uma articulação dos mencionados princípios estruturantes da problemática da concorrência de normas no tempo, no horizonte de um verdadeiro Estado de Direito com os por eles tendencialmente circunscritos campos privilegiados de preponderante afirmação da lei antiga e da lei nova (e prescindindo, portanto, com os perigos decorrentes – e ao contrário do que fizemos nas considerações precedentes – de uma suficientemente atenta ponderação prudencial, da perspetiva do direito intertemporal, de cada situação decidenda), diremos: os facta praeterita (as situações jurídicas definitivamente estabilizadas antes de uma alteração legislativa, e os seus efeitos) são regulados pela lei antiga. É também o direito anterior a uma hipotética alteração legislativa que determina os efeitos de quaisquer relações jurídicas constituídas durante a respetiva vigência, - o que conjuntamente significa: A) se uma concreta relação jurídica se tiver constituído, modificado ou extinguido sob a égide do direito anteriormente em vigor, não pode a lei nova vir considerá-la como não constituída, não modificada ou não extinta; B) O conteúdo conformador de uma dada relação jurídica é modelado, até ao momento, até ao momento em que se opere uma alteração legislativa que se lhe refira, pelo direito anterior; e C) se o direito em vigor no momento em que ocorre um certo facto lhe não reconhecer um determinado efeito jurídico – se ele não gerar então v.g. qualquer responsabilidade – não pode a lei nova vir imputar-lhe esse efeito relativamente ao período anterior à sua entrada em vigor.»
Em suma, a aplicação das presunções de laboralidade a uma situação jurídica constituída antes da entrada em vigor da lei que as estabelece implicaria a aplicação retroativa dos efeitos jurídicos dessas presunções à caracterização do facto de que emerge a situação jurídica em causa, o que contraria o direito do facto, a lei em vigor no momento em que se constitui, e, por tal motivo, violaria frontalmente o disposto no artigo 12.º, n.º 2 do Código Civil, bem como o princípio da autonomia da vontade das partes na modelação das suas relações jurídicas.
E assim sendo, assente que as presunções de laboralidade nada têm a ver com o conteúdo da situação jurídica a cuja demonstração se dirigem, mas com a caracterização ex novo de factos que dão origem a situações jurídicas, torna-se evidente que as mesmas não podem ser aplicadas a relações iniciadas antes da sua entrada em vigor, como é o caso da relação jurídica estabelecida entre as partes
.>>
Pois bem, regressando ao caso dos autos e tendo em conta que, como resulta da matéria de facto provada, os estafetas AA, BB e CC iniciaram a sua atividade na plataforma digital em 1 de janeiro de 2022, 1 de dezembro de 2022 e 23 de março de 2022, respetivamente, e não resultando da matéria de facto uma mudança essencial na configuração da relação entre as partes,
não lhe é aplicável a nova presunção de laboralidade constante do artigo 12.º-A, do CT
.
Pelo exposto, improcedem as conclusões do recorrente.
2ª questão
Se se encontram verificadas as circunstâncias a que alude o artigo 12.º-A do CT
.
Esta questão encontra-se prejudicada face à apreciação e decisão da anterior no sentido de que à relação entre as partes não é aplicável a nova presunção de laboralidade constante do artigo 12.º-A, do CT, pelo que, a este propósito, nada mais se impõe dizer.
*
Resta dizer que o recorrente não impugnou a sentença recorrida no que concerne à verificação concreta do preenchimento das características a que alude o artigo 12.º do CT, pelo que, nesta parte aquela decisão transitou em julgado.
*
Desta forma, na improcedência das conclusões do recorrente, impõe-se a manutenção da sentença recorrida em conformidade.
*
*
IV – Sumário
[2]
(…).
*
*
V - DECISÃO.
Nestes termos, sem outras considerações, na improcedência do recurso,
acorda-se em manter a sentença recorrida
.
*
*
Sem custas por delas estar isento o Autor recorrente.
*
*
Coimbra, 2025/02/14
____________________
(Paula Maria Roberto)
_____________________
(Mário Rodrigues da Silva)
_____________________
(Felizardo Paiva)
[1]
Relatora – Paula Maria Roberto
Adjuntos – Mário Rodrigues da Silva
Felizardo Paiva
[2]
O sumário é da exclusiva responsabilidade da relatora.
|
TRC
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https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/16c2e41dd0bf688b80258c3c004b0628?OpenDocument
|
1,738,195,200,000
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IMPROCEDENTE
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6863/23.4T8LSB.L1-2
|
6863/23.4T8LSB.L1-2
|
JOÃO PAULO RAPOSO
|
(Sumário da responsabilidade do relator)
I. Não se verifica nulidade da citação quando o arguente sustenta a sua invocação na omissão de envio de um documento, constando dos autos uma cota que expressamente certifica tal envio e cuja autenticidade não foi questionada;
II. Não se verifica ineptidão da petição inicial, por indeterminação de causa de pedir e de pedido, quando a pretensão da parte assente na alegação de uma universalidade de facto, impassível de ser individualizada quanto a cada um dos bens móveis que a compõem;
III. Não se verifica também contradição entre pedidos, ou entre estes e causa de pedir, quando a matéria de facto assente, mesmo que socialmente atípica, estabeleça uma situação jurídica que torna compatíveis as diferentes pretensões deduzidas;
IV. As alegações de recurso não são uma sede processualmente admissível para apresentação de novas versões de facto ou para dedução de impugnação, sendo manifestamente extemporânea a apresentação de nova alegação.
|
[
"NULIDADE",
"CITAÇÃO",
"INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL",
"CONTRADIÇÃO ENTRE O PEDIDO E A CAUSA DE PEDIR",
"RECURSO",
"QUESTÃO NOVA"
] |
Decisão:
I. Caracterização do recurso:
I.I. Elementos objetivos:
- Apelação –
1 (uma), nos autos;
-
Tribunal recorrido –
Juízo Central Cível de Lisboa – Juiz 19;
-
Processo em que foi proferida a decisão recorrida
– Comum declarativo;
- Decisão recorrida –
Sentença final.
--
I.II. Elementos subjetivos:
- Recorrentes (réus):
- Avenidas Íntegras, Lda.;
- Desfile Aleatório, Lda.;
- AA;
- BB;
- CC;
- DD. –
- Recorrida (autora):
- EE. –
--
Acorda-se nesta Secção o seguinte:
--
I.III. Síntese dos autos:
- Instaurou a autora ação pedindo condenação solidária dos réus nos seguintes termos:
- A pagar-lhe o montante global de 108.845€ (Cento e Oito Mil Oitocentos e Quarenta e Cinco Euros), acrescidos de juros de mora vencidos e vincendos até efetivo e integral pagamento;
- A Restituir-lhe todos os artigos por si colocados no Anexo à loja, sito na Avenida ..., n.º..., de sua propriedade.
- Para o sustentar, alegou, em síntese:
- A autora é uma pessoa divorciada, sem filhos, e que sofre de compulsão pelo consumo, designadamente de peças de vestuário, bijuteria e artigos de uso pessoal;
- As rés sociedades têm por objeto comércio de vestuário, acessórios e bijuteria, tendo a 2.ª sido constituída em 2019 e a 1.ª em 2022, ambas detidas familiarmente pelos réus singulares;
- Os 3.º, 4.º e 5.º réus são filhos do 6.º réu;
- Os réus têm-se sucedido na gerência das sociedades;
- Após o seu divórcio, a autora conheceu o 6.º réu e a sua mulher (que não é parte), que se aperceberam do seu desequilíbrio emocional traduzido na referida compulsão para aquisição de peças de vestuário;
- Tendo ganho a sua confiança, prestaram-se a auxiliá-la, o que fizeram designadamente na venda de imóveis de sua propriedade (mediante cobrança de comissões);
- Os réus exploram um estabelecimento de venda de roupa sito na Av. ... denominado
Temperatura "FF"
, cujo possui um armazém anexo;
- A autora é dona e possuidora de centenas de peças de vestuário, malas e outros artigos, de marcas de prestígio mundial, com valor global superior a €100.000, grande parte deles com etiqueta, por nunca terem sido utilizados;
- Por já não ter espaço na residência para os guardar, aproveitando-se da confiança que haviam obtido, os réus singulares convenceram a autora a entregar-lhes tais peças para serem guardadas no armazém referido, pelo período de dez anos, contra o pagamento global (pela autora) da quantia de 96.600.00 € (noventa e seis mil e seiscentos euros);
- Posteriormente, a autora tomou conhecimento que os réus declararam suas tais peças de roupa e acessórios, que estão a vender a terceiros, como se fossem de sua propriedade;
- Além do referido, em maio de 2022, os réus, aproveitando-se da fragilidade da autora, levaram-na a escolher e adquirir por catálogo diversos artigos de vestuário e acessórios que comercializam, pelo preço global de 12.245.00€ (doze mil duzentos e quarenta e cinco euros);
- A autora pagou tais artigos, por meio de cheques;
- Tais artigos nunca lhe foram entregues, recusando-se os réus a restituir-lhe todas as quantias entregues (pela venda por catálogo ou pelo aluguer do armazém). –
- Os réus vieram, num primeiro momento, invocar nulidade da citação efetuada, por falta de envio de documento;
- Tramitado tal incidente por apenso, foi decidido, por despacho de 18/12/23, declarar nulas as citações efetuadas e ordenar a sua repetição;
- Na sequência, apresentaram os réus articulado de contestação e vieram arguir nova nulidade nas citações efetuadas;
- Por despacho de 26/6/2024 foi declarada improcedente a invocação de vício nas citações e extemporânea a contestação apresentada, sendo determinado o respetivo desentranhamento;
- Nesse mesmo despacho foi declarada a ausência de contestação e confessados os factos alegados pela autora, sendo as partes convidadas a alegar, nos termos do art.º 567.º do CPC;
- Deste despacho não foi interposto recurso;
- Vieram autores e réus alegar de direito, ao abrigo do art.º 567.º, pugnando a autora pela procedência dos pedidos e os réus pela improcedência;
- Após, foi proferida sentença nos autos, condenando os réus, como peticionado, a pagar à autora o montante global de 108.845€ (cento e oito mil oitocentos e quarenta e cinco euros), acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, até efetivo e integral pagamento e a restituir à autora todos os artigos que foram colocados no Anexo à loja, sito na Avenida ..., n.º..., os quais são da sua propriedade, identificados no vídeo junto como documento n.º 7 da petição inicial.
- De tal sentença vieram os réus recorrer, pela presente apelação.
--
II. Objeto do recurso (delimitado pelas conclusões apresentadas pelo recorrente):
II.I. Conclusões apresentadas pelos recorrentes nas suas alegações (com eliminação de repetições e objeto de síntese, assinalando a negrito as questões suscitadas):
a. O Tribunal
a quo
decidiu condenar os réus, como peticionado;
b. Ora, sucede que o Tribunal
a quo
fez uma errada interpretação dos factos, bem como omitiu a apreciação de factos que devia apreciar oficiosamente, (e, com isso, há uma denegação de justiça);
c.
Há uma contradição dos pedidos formulados pela autora, em sede de PI, o que a torna inepta perante a lei
;
d. Os réus devem ser absolvidos da instância ou absolvidos do pedido, sendo os mesmos ainda partes ilegítimas dos autos;
e. A PI não tem qualquer fundamento legal e factual, assentando em pressupostos, substantivos e adjetivos manifestamente inexatos, não identificáveis, como sejam:
a) quais os bens em concreto que pretende que lhe sejam entregues, b) qual a quantidade dos mesmos, c) qual a referência dos mesmos, limitando-se, sem mais, a referir que se encontram num mero vídeo;
f.
Os réus não o receberam esse vídeo do Tribunal;
g.
A alegação da autora sobre a identificação dos alegados bens é uma alegação de um conceito vago e indeterminado
, e vedado pela lei, uma vez que a autora tem o ónus de alegar factos concretos em sede de PI, o que manifesta e objetivamente não fez, pelo que a
PI é inepta
, devendo os RR. serem absolvidos da instância;
h. Sendo que a PI sendo inepta é nulo todo o processo, nos termos do art.º 186.º do CPC, bem como é nulo todo o processo por falta de citação dos RR., face a não terem recebido o Doc. 7 da PI (vídeo – em CD), o que afeta o exercício do direito de defesa – cfr- art.º 191.º, n.º 1 do CPC;
i. Pelo que
a decisão do Tribunal
a quo
é nula e de nenhum efeito, nos termos do art.º 615.º do CPC
- o que os RR. aqui arguem em sede de recurso;
j. O Tribunal
a quo
não se pronunciou sobre a omissão da entrega, aos RR., de um documento da PI, correspondente ao vídeo
, correspondente ao Doc. 7 da PI, junto dos RR.;
k. O pedido da autora em sede de PI, é absolutamente contraditório, pretendo apenas locupletar-se ilegal e injustamente à custa dos RR.;
l. A autora apresenta tortuosas e descontextualizadas interpretações de factos e atuações ilícitas e abusivas, imputáveis em exclusivo à própria;
m. Os réus não foram, devida e legalmente, citados nos presentes autos;
n. Na nova expedição da petição inicial, não foram anexados todos os documentos da PI, designadamente o referido CD;
o.
Não faz prova de qualquer entrega a mera referência no Ofício/Cota da secretaria constante dos autos: -
“COTA Em 25-06-2024, em cumprimento do ordenado no despacho que antecede informo V.ª Ex.ª que foi remetido 1 CD com o ficheiro de vídeo em cada uma das 6 citações remetidas no dia 25/01/2024, conforme consta da 3.ª folha das referidas citações, que se transcreve: " Tenha ainda em atenção o seguinte Mais se remete requerimento de 01-04-2023, despacho de 12-04-2023 e 1 Cd com 1 ficheiro de vídeo";
p.
A mera referência em tal cota (da secretaria) não faz prova de que efetivamente, na realidade, tal CD foi realmente junto nas próprias citações enviadas, pela secretaria;
q. De facto, os 3.º a 6.º não receberam tal CD referido na PI;
r.
Nos presentes autos não há uma prova do envio do CD para os RR.
,
que não se pode bastar com uma mera referência da secretaria
;
s.
Tal é suscetível de afetar o princípio da legalidade e o princípio da defesa, tutelado pela lei, adjetiva e constitucional
;
t.
Deste modo, todas as citações enviadas para os 2.º a 6.º RR. são nulas, sendo nulo todo o processo
, devendo ser expedidas novas citações para os 2.º a 6.º RR.;
u.
Essa nulidade afeta todo o processo, devendo os 1.º e 2.º RR. também serem novamente citados;
v. Prevê o art.º 227.º, n.º 1 do CPC que têm de existir elementos a transmitir obrigatoriamente ao citando. Ora,
in casu
, não foram remetidos aos RR. a cópia dos documentos que acompanha a PI, no caso, o CD;
w. Por outro lado, e independentemente de qualquer contestação, é manifesto que o Tribunal
a quo
tem e deve conhecer exceções de conhecimento oficioso;
x. A autora alega que são seus os bens,
mas o pedido que formula na PI é contraditório com o teor da petição inicial, o que constitui uma exceção
y. A autora peticiona o pagamento de um valor (correspondente ao valor dos alegados bens que não identificou) e, em simultâneo,
formula um pedido de restituição desses mesmo bens;
z.
A autora cumula pedidos incompatíveis entre si
, pelo que é nulo todo o processo;
aa. No despacho proferido no apenso-B aos presentes autos, foi ordenada a citação dos réus face à nulidade de citação,
sucede que estando representados por mandatário no processo principal deveriam ter sido citados na pessoa do seu Il. mandatário, via citius, o que não ocorreu
;
bb.
Deveriam ter sido citados na pessoa do mandatário por uma questão de economia processual e face a uma aplicação analógica do art.º 157.º, n.º 6 do CPC
;
cc.
Assim, veem arguir tal nulidade de citação
e requerer a citação dos réus na pessoa do seu mandatário;
dd. A autora alega que são atualmente sócios da sociedade 2ª ré, os 3º e 4º réus; que a 1ª ré tem como sócio único o 4º réu e que 1ª ré tem como gerente o 3º réu;
ee. Também alega que: os 3º, 4º e 5º Réus são filhos do 6º Réu e também eles se dedicam a esse negócio;
ff. E alega que, tanto a 1ª, como a 2ª Ré, têm como sócios e gerentes os 3º, 4º e 5º Réus, filhos do 6º Réu;
gg. Mais alega que, sendo o 6º Réu que, indiretamente, gere, tanto a criação das empresas dos seus filhos, aqui também Réus, bem como todos os negócios familiares a que estes se dedicam;
hh. Quanto a valores entregues, alega que, no âmbito da sua atividade, os 3º, 4º e 5º Réus, filhos do 6º Réu, exploram uma loja de vestuário na Avenida ..., n.º ..., em Lisboa, e que, por utilização desse espaço pelo período de dez anos exigiram à Autora um pagamento de 96.600.00 € (Noventa e seis mil e seiscentos euros);
ii. Que após esse pagamento, os 3º, 4º e 5º Réus, filhos do 6º Réu e a sua esposa, transportaram grande parte das suas peças de vestuário e acessórios da residência da Autora para o referido anexo;
jj. Ou seja, os Réus, apesar de terem recebido 96.600.00 € (Noventa e seis mil e seiscentos euros) por 10 (dez) anos de utilização/cedência daquele espaço, recusam-se a entregar à Autora as chaves do mesmo, impedindo-lhe o acesso ao seu interior e aos seus bens que lá se encontram armazenados.
kk. Alega ainda que os cheques entregues foram emitidos a favor 4º Réu;
ll.
Ou seja, a A. alega a responsabilidade dos 3.º, 4.º, 5º e 6.º RR. como gerentes ou administradores, facto é que demandou solidariamente os seis réus;
mm.
Assim, estamos perante um pedido que é contraditório com a causa de pedir, o que se traduz numa ineptidão da PI, nos termos do art.º 193.º, n.º 2, al. b) do CPC
;
nn. Ao ter sido entregue a petição inicial aos 3.º a 6.º réus sem a entrega do documento n.º 7 da petição inicial, tal preclude o exercício cabal do direito de defesa dos 3.º a 6.º RR., em sede de contestação, sendo uma nulidade de citação;
oo.
O pedido formulado é contraditório, uma vez que a autora peticiona, em simultâneo e como pedido cumulativo, que os réus sejam condenados a pagar-lhe o montante de € 108.845,00 e também condenados à restituição de todos os esses artigos
;
pp.
Ou seja, a autora requer a que haja lugar a um enriquecimento ilícito e sem justa causa da própria autora, uma vez que a A. peticiona a restituição de bens e o pagamento desses mesmos bens
;
qq.
Tal constitui ineptidão e, sendo inepta a PI é nulo todo o processo – cfr. art.º 186.º, n.º 1 do CPC,
que dá lugar à absolvição de todos os RR. da instância – cfr. art.º 576.º, n.º 2 do CPC;
rr. A autora alega que os réus venderam produtos, sendo que a 1.ª e 2.ª rés são sociedades comerciais e os 3.º a 6.º réus pessoas singulares, demandados nos autos a título individual;
ss. Os 3.º a 6.º réus não são empresários em nome individual nem venderam o que fosse à autora;
tt.
A autora declarou em sede de Audiência de Julgamento da Providência Cautelar que foi o 6.º R. que vendeu alguns bens à autora, e não, portanto, os 1.º a 5.º RR.
;
uu. Nestes autos veio alegar que foram os seis réus quem vendeu tais bens, o que constitui uma manifesta litigância de má-fé;
vv.
A autora é madrinha de um dos filhos do 6.º réu, BB (o 4.º réu nos presentes autos), sendo que a autora sempre presenteou tal afilhado e os irmãos do mesmo, aqui 3.º a 5.º RR., e tudo de forma muito contínua;
ww.
O montante referido no art.º 47.º da P.I. deve-se a uma ajuda que a A. quis fazer aos filhos do 6.º R., como sempre
fez
;
xx.
A autora litiga, assim, de má-fé
.
- Os autores não contra-alegaram.
--
II.II. Questões a Apreciar:
Nos termos definidos pelos apelantes, são questões a apreciar em sede deste recurso:
a. O invocado vício na citação, por omissão de envio de documento, sendo prévia a tal apreciação a avaliação de existência de caso julgado sobre a mesma;
b. Os invocados fundamentos de nulidade processual, por ineptidão da petição inicial;
c. A cognoscibilidade da factualidade trazida pelos recorrentes, em sede de recurso. –
--
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. –
---
II.III. Apreciação do recurso:
--
a) A invocada nulidade de citação:
Reiterando argumentação antes expendida nos autos, os réus recorrentes invocam que a sua citação é nula, por omissão de entrega de um documento aos 2.ª e 6.ª réus (o suporte de vídeo indicado como documento n.º 7 da petição inicial).
Esta questão foi expressamente conhecida pelo despacho proferido a 26/6/2024, que indeferiu a segunda arguição de nulidade de citação apresentada pelos réus (após ter dado provimento à primeira).
Não parece que se possa extrair do recurso apresentado que os recorrentes tenham impugnado expressamente este despacho, sendo o recurso apenas da sentença final, que o teve como pressuposto (e implicou a desconsideração da contestação apresentada).
Ainda que assim não se entendesse e, portanto, que se considere que a apelação interposta também abrange o despacho que declarou improcedente a invocada nulidade na citação e, ao mesmo tempo, declarou extemporâneas as contestações apresentadas, não deixaria de ser manifesta a falta de fundamento da invocação feita.
Assim, apresentam os recorrentes como fundamentos para sustentar o apontado vício na citação:
a. Que esta não se fez acompanhar, quanto a dois dos réus, do documento n.º 7 da petição inicial (vídeo);
b. Que a cota elaborada no processo (que atesta tal envio) não o prova;
c. Que os réus, estando representados por mandatário, deveriam ter sido citados na pessoa deste.
Como decorre do art.º 191.º n.º 1 do CPC (e art.º 188.º
a contrariu sensu
), o vício em causa traduziria uma simples nulidade da citação e não o vício qualificado como
falta.
Tratar-se-ia de omissão de cumprimento de uma formalidade, sendo esta relativa ao envio de todos os documentos apresentados pelo demandante.
Esse facto, associado ao teor do documento em causa e à própria circunstância de o ato ter sido já repetido nos autos, sempre deveria levar à conclusão de ausência de prejuízo para a defesa dos citandos, se verificado (cf. art.º 191.º n.º 4 do CPC).
Assim, o documento em causa é um suporte de vídeo, alegada e assumidamente elaborado pelos próprios réus (sem indicação precisa de autoria) que atesta o teor do acervo de artigos de vestuário existente no armazém referido nos autos, bens retirados da residência da autora.
Os réus não invocam que o documento não existe ou que não tem esse teor e, em termos materiais, questionam apenas a indeterminação do acervo de artigos, de onde retiram uma invocação de ineptidão da petição inicial, à frente apreciada.
Para a dedução de uma defesa completa e informada, não se pode afirmar que a não entrega do documento a pusesse em causa de modo relevante.
Atente-se que o articulado não admitido foi apresentado conjuntamente e, portanto, alguns dos réus, coligados ou litisconsortes, aceitam ter recebido tal documento, que foi, por isso, tido em conta por todos (sendo que, caso tivesse havido fase de instrução nos autos, o documento seria necessariamente objeto de contraditório na mesma).
Se este é o quadro legal da questão, em termos de sustentação da arguição, esta também se apresentaria manifestamente infundada.
Na sequência de declaração de invalidade do primeiro ato de citação efetuado nos autos, repetindo-se a citação, foi elaborada cota pela secretaria atestando, precisamente, o envio deste documento n.º 7 a todos os citandos.
Dizem agora os recorrentes que essa cota
não prova
qualquer entrega.
Não têm razão.
A cota elaborada no processo deve ser tida, para todos os efeitos, como um verdadeiro ato de certificação judicialmente elaborado, isto é, como um ato autêntico.
A autenticação de um ato público produz precisamente o efeito de atestar a sua veracidade e correção, a menos que seja posto em causa e destruído de forma adequada, algo que os recorrentes, manifestamente, não fazem
Quanto ao envio, na medida em que a certificação é desse preciso ato, a forma de a infirmar teria que radicar numa invocação de falsidade da cota.
Quanto à receção do documento pelo destinatário, cujo teor não se pode considerar compreendido pela própria cota, teria que ser invocado um qualquer
iter
anómalo, designadamente ao nível da distribuição postal, que permitisse estabelecer incidentalmente um não recebimento (sendo que, além de não ter sido suscitada nenhuma ocorrência anómala a tal nível, não pode deixar de se salientar que nada foi suscitado quanto aos demais documentos que acompanharam o articulado inicial).
Quer isto dizer, em síntese, que, ao contrário do que dizem os recorrentes, a cota constante dos autos tem precisamente o efeito de atestar autenticamente o envio do documento em causa a todos os citandos, certificação que não foi posta em causa de forma sustentada e, por isso, subsiste nos autos.
O último dos argumentos apresentados a este nível também se afigura manifestamente insustentado.
Invocam os recorrentes que, tendo mandatário constituído nos autos (que, designadamente, os havia representado no primitivo incidente de nulidade da citação) deveriam ter siso citados na pessoa deste.
Como decorre do disposto no art.º 225.º n.º 7 do CPC, a representação para citação é especial, pressupondo a outorga de procuração que inclua expressamente a faculdade de receber citações, sendo que esta tem um limite de vigência que não pode exceder quatro anos.
Nada disso se verifica nos autos.
O mandatário dos recorrentes foi constituído com poderes gerais e, consequentemente, sem necessidade de maiores considerações, vigora o princípio basilar de comunicação pessoal aos réus da existência de um processo contra si movido, tendo a citação que lhes ser pessoalmente dirigida, como foi.
Concluindo este ponto, ainda que se entendesse que o despacho que declarou a validade das citações (e indeferiu expressamente a arguição de vício) foi integrado neste recurso e que não se teria verificado caso julgado formal quanto a esta questão (algo que, manifestamente, não parece colher), sempre teria que se concluir que não existe qualquer vício nas citações efetuadas, improcedendo o recurso com este fundamento. –
--
b) A invocada ineptidão a petição inicial:
Apresentando-o sob diversas perspetivas, este é o fundamento básico do recurso interposto – a verificação de nulidade de todo o processo devido a ineptidão da petição inicial.
Vejamos.
A primeira questão que se pode indagar é a de saber se esta questão pode ser conhecida nesta sede de recurso.
De acordo com alguma doutrina jurisprudencial, a nulidade por ineptidão da petição inicial é suscetível de ser conhecida no despacho saneador ou, o mais tardar, na sentença, ficando o seu conhecimento precludido após esse momento, face ao disposto no art.º 202.º do CPC (assim, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) de 13/5/2021, Catarina Serra,
ecli.pt
)
Relevando a ausência de dedução de contestação (válida) e que, em sede de alegação de direito ao abrigo do disposto no art.º 567.º do CPC, os réus invocaram tal nulidade, mesmo seguindo tal doutrina, teria que se admitir,
in casu
, a tempestividade da arguição.
Em termos gerais, existe ineptidão da petição inicial sempre que esta contenha deficiências que comprometem irremediavelmente o seu teor e função, determinando a nulidade de todo o processo (art.º 186.º 1 do CPC) e a absolvição da instância dos réus (art.º 576.º 1 e 2; 577.º al. b) e 278.º 1 al. b) do CPC)
Tais insuficiências podem ser de diverso tipo, invocando os réus fundamentos que se reconduzem a verdadeira falta de causa de pedir (ou sua ininteligibilidade) e contradição entre pedidos ou entre estes e causa de pedir.
Analisando separadamente.
--
A primeira das causas de ineptidão apresentadas refere-se ao que se qualificaria de falta (ou, eventualmente, ininteligibilidade) da causa de pedir por indeterminação da alegação do conjunto de bens objeto dos autos.
A autora não faz uma alegação completa e discriminada de cada um dos bens cujo restituição pede, aludindo a um
conjunto artigos que foram colocados no Anexo à loja, sito na Avenida ..., n.º ...
, de valor não inferior a €100.000, documentados no vídeo que faz documento n.º 7 da petição inicial.
Na medida em que se houvesse indeterminação na descrição de bens, haveria falta ou ininteligibilidade da causa de pedir.
Na medida em que tal indeterminação se traduzisse no pedido, haveria também ininteligibilidade deste.
Dizem os recorrentes que a alegação, do modo que foi efetuada, traduz um mero
conceito vago e indeterminado
.
Assim não é, todavia.
Para o compreender há que atentar, em primeiro lugar, na determinação factual possível (e, portanto, exigível) na situação dos autos.
Ao titular de um direito tem que ser concedida a suscetibilidade de o exercer o que, no que especificamente diz respeito a requisitos de avaliação de suficiência de uma alegação de facto, impõe uma análise por referência a essa possibilidade concreta de alegação.
Nestes termos, numa situação em que alguém alega que adquiriu, de forma compulsiva e descontrolada, peças de vestuário e acessórios, que não chegou a usar em muitos casos (de onde se infere também que, quanto a muitos deles terá até dificuldade de identificação individualizada e, globalmente, será incapaz de indicar a composição exata do conjunto), que foi
abusada na sua confiança
pelos réus, que os bens foram retirados da sua esfera de disponibilidade, estando impedida de a eles aceder (e, pelo contrário, estão no domínio físico dos réus), nunca se poderia exigir uma alegação fosse completa e precisa de todos e cada um dos bens, identificados e valorizados individualmente.
Diga-se até, pelo contrário, que se alguma parte teria possibilidade de o fazer, seriam os réus.
Em todo o caso, para o que esta questão da suficiência da alegação releva, a primeira asserção a estabelecer é que, face à natureza e contexto da situação de facto trazida aos autos, a autora não poderia alegar de modo substancialmente diverso o acervo de bens móveis em causa e, exigi-lo, seria, de facto, impedir o exercício do seu direito.
Além desta consideração prévia, de mais concreto, importa considerar o conceito de coisa composta ou universalidade de facto para a análise desta questão.
Diz o art.º 206.º n.º 1 do Código Civil (CC) que
é havida como coisa composta, ou universalidade de facto, a pluralidade de coisas móveis que, pertencendo à mesma pessoa, têm um destino unitário,
aduzindo o n.º 2 que tais coisas
podem ser objeto de relações jurídicas próprias.
Dizem Pedro Pais de Vasconcelos e Pedro Leitão Pais de Vasconcelos (
Teoria Geral do Direito Civil,
Almedina 2002, p. 239) que
as universalidades de facto são coisas complexas coletivas. Têm um tratamento jurídico individual autónomo, sem prejuízo da individualidade dos seus componentes São exemplo das universalidades de facto os rebanhos, que podem ser transacionados ou reivindicados como um todo, sem prejuízo da autonomia e individualidade de cada um dos animais que o compõem.
Dizem Pires de Lima e Antunes Varela (
Código Civil Anotado,
I. Coimbra 1987, p. 199) que
coisas compostas, ou universalidades serão (...) aquelas que resultam da união ou agregação de várias coisas simples (...) conservando estas a sua individualidade económica, não obstante o nexo que as envolve (exs. um rebanho, uma biblioteca, uma coleção de selos, de medalhas ou de moedas, etc.).
Mais dizem estes autores que são apontadas duas características essenciais a estas coisas compostas,
em primeiro lugar, que o conjunto de coisas simples, globalmente considerado, tenha uma individualidade económica própria, um destino unitário (...) importa, por outro lado, que as partes que integram o conjunto (e não apenas este) tenham também individualidade económica, isto é, uma função e valor próprios no comércio, independentemente da agregação em que se encontrem.
É a situação em apreço.
Trata-se um conjunto de bens móveis, pertencentes à mesma pessoa (a autora), impassíveis ou com grande dificuldade de identificação individual, ou em que uma individualização identitária se apresenta inviável, a que foi dado um destino unitário (retirada do domicílio da autora e armazenamento global), sendo que, cada um dos artigos mantém autonomia e individualidade.
A alegação do conjunto de bens (artigos de moda), associada à alegação de a autora ser (ou ter sido) uma compradora compulsiva de peças de vestuário e adereços de artigos de
prestigiadas marcas internacionais
, muitos não usados e ainda com etiqueta do respetivo fabricante, associado ainda à alegação do seu valor global (mínimo) – não inferior a €100.000, ao local onde se encontram e ao documento que os regista (o supra aludido vídeo), estabelece que estamos precisamente perante uma universalidade deste tipo.
Esta pode ser referida como o
conjunto de artigos de moda de marcas internacionais adquiridos pela autora e por esta entregues em depósito aos réus
.
Esta referência, que será sempre atípica, pode, alternativamente, estabelecer-se também sobrelevando o ato de constituição (
conjunto de peças de vestuário e acessórios adquiridos pela autora e por esta entregues aos réus
) ou, alternativamente, referindo o local em que se encontram (
recheio do armazém dos réus composto por artigos de moda da autora
).
Como quer que seja referido, tem uma individualidade global, que não afasta a individualidade de cada um dos bens que a integram, sendo passível de negócio unitário, como foi o que os autos atestam – transporte e armazenagem do conjunto, sem descrição individualizada de cada bem armazenado.
O conjunto é identificável enquanto tal e, nessa medida, suficientemente substanciável (e substanciado) em alegação.
Nesta universalidade de facto, como em qualquer universalidade de facto, os bens simples que a compõem são passíveis de identificação e transação individual, do mesmo modo que, repescando o exemplo acima referido, uma ovelha com características especiais de pelagem pudesse ser particularmente identificável da universalidade de um rebanho e qualquer dos animais integrantes da coisa composta pudesse ser transacionado autonomamente.
O que sobreleva, no caso, é o conjunto que faz a coisa composta, ou
universalidade
.
Neste contexto, não só não é possível e necessário exercer o direito com referência à universalidade, como a posição da própria defesa, bem vistas as coisas, sairia
a priori
beneficiada, caso pretendesse contestar a existência e valor da coisa composta, na medida em que não se viu confrontada com a dificuldade, ou onerosidade, de impugnar especificadamente todos e cada um dos bens móveis que integram a universalidade, tendo a possibilidade de ater a sua defesa à coisa composta.
Assim sendo, entende-se que não assiste razão aos recorrentes nesta parte, tendo a alegação e o pedido uma precisão adequada à realidade do litígio.
--
A um outro nível, sustentam os recorrentes existência de ineptidão por contradição, ou incompatibilidade, entre os pedidos deduzidos.
Dizem, a este propósito, que o pedido de restituição dos bens e de devolução do valor pecuniários entregue são incompatíveis e, no limite, constituiriam um enriquecimento da autora à sua custa.
Não lhes assiste também razão nesta argumentação.
Importa começar por ressaltar que a matéria de facto dada por assente nos autos foi-o na sequência de admissão por acordo e, nessa medida, em abstrato é admissível que se trate de uma verdade estritamente processual, desconforme com a material.
É-o, porém, por tradução do mecanismo processual de ausência de contestação (tempestiva) e, nessa medida, legal e constitucionalmente enquadrada nos limites da confiança e do direito a um processo equitativo – a Constituição e a Lei não impõem uma obrigação de dedução de defesa pelo demandado, ou de aferição oficiosa da verdade material pelo julgador nos casos de não apresentação da mesma, satisfazendo-se com a confirmação da oportunidade, processualmente demonstrada, de o ter feito.
Tal oportunidade foi dada e, no caso, desaproveitada.
Estabelecido isto, pelo mecanismo processual decorrente do efeito cominatório dito
semipleno
, a factualidade assente remete para uma realidade qualificável de
socialmente atípica
, mas que é a que se estabeleceu nos autos.
Não será, de facto,
normal
que alguém, sofrendo de uma compulsão consumista, adquira produtos de vestuário e acessórios de valor total superior a €112.000, que nem sequer usa e não tem espaço para guardar e, por isso, vá contratar o seu armazenamento oneroso por um valor próximo daquele, pelo período de dez anos, ao retalhista de moda a quem adquiriu alguns (ou muitos) deles e, em momento posterior, faça cessar esse acordo e solicite a restituição dos bens e dos montantes entregues em pagamento do acordo estabelecido.
Obviamente que seriam
mais socialmente típicas
situações de venda dos artigos ao retalhista para revenda a terceiros, de anulação de venda, ou até a sua simples entrega dos bens à consignação ao comerciante para que este os vendesse a terceiros.
Diga-se, porém, que estas últimas considerações apenas se referem aos bens armazenados, uma vez que, no que concerne a bens comprados em catálogo e não entregues pelos réus, estar-se-á já num plano de absoluta normalidade social (de uma compra e venda futura não cumprida pelo vendedor).
Em qualquer caso, a realidade que se estabeleceu no processo foi esta e, sendo-o, não existe qualquer incompatibilidade entre pedidos.
De facto, estabelecido que está que se trata de um contrato de armazenagem oneroso (ou, como qualificado na sentença recorrida, de locação de armazém), a sua inexecução permite fundar um pedido de restituição dos valores pagos e cumulá-lo com um pedido de devolução dos bens entregues à proprietária.
Sendo compatíveis, são suscetíveis de proceder ambos, como decidido na sentença - uma coisa é fazer cessar um contrato de armazenagem (ou de locação), solicitando restituição de valores pagos pelo mesmo, e outra, perfeitamente compatível, solicitar a restituição dos bens armazenados.
Se a armazenagem cessou e se os bens são da autora (elementos assentes), nunca existirá também algum enriquecimento da autora e, muito menos, à custa dos réus, que apenas se poderia verificar, em abstrato, se se tratasse de uma venda à autora com pedido cumulado de entrega dos bens objeto da venda e restituição do preço pago.
Não são esses os pedidos e não é essa a realidade processualmente estabelecida.
Os autores, ao restituírem os bens, devolvem-nos à proprietária, não dando lugar a qualquer alteração da situação patrimonial de ambos.
O mesmo se dirá, por maioria de razão, relativamente à pretensão de restituição do valor correspondente ao preço de bens vendidos e nunca entregues.
Neste ponto, como referido, trata-se, simplesmente, de um incumprimento definitivo do contrato de compra e venda, sendo pedida a devolução do preço pago, sem pedido de entrega de qualquer bem.
--
Um terceiro e último fundamento de ineptidão refere-se à invocada demanda solidária dos réus, seja a título pessoal seja enquanto legais representantes das sociedades, algo que, no entender dos recorrentes, é contraditório.
Também aqui não lhes assiste razão.
Os termos da sentença recorrida são, a este nível, um tanto limitados na fundamentação, aludindo apenas à
forma como a ação foi configurada
, sem elaborar adicionalmente sobre a posição em que cada um dos réus interveio e tratando-as de modo globalmente indiferenciado (aludindo, no mais, à existência de contratos de compra e venda e de locação de armazém, dizendo que foram celebrados
pelas partes
, sem discriminação precisa dos contratantes).
Um enquadramento jurídico possível seria, de facto, o de diferenciar subjetivamente as obrigações, que são diversas e com diversas causas e, nesse sentido, uma condenação solidária de todas as partes por todas as obrigações exige uma ponderação adicional.
Refira-se, porém, que a questão está estritamente colocada neste recurso como fundamento de ineptidão e, consequentemente, os recorrentes não questionam a solução jurídica adotada
qua tale
, nem pretendem sustentar que a condenação deveria ser subjetivamente diversa – dizem apenas que pedir uma condenação solidária de todos os réus, por todos os pedidos, traduza dedução de pedidos contraditórios e nulidade processual.
Quer isto dizer que o que se cuida neste recurso será apenas saber se existe alguma contradição, ou, eventualmente, ininteligibilidade na demanda solidária de todos os réus.
Não é o caso.
Ainda que a sentença recorrida não elabore sobre a solidariedade da condenação, esta decorre diretamente da matéria de facto assente, estabelecendo-se na confusão das relações pessoais-familiares dos réus singulares (todos com ligações filiais ou fraternais), na sua ocupação de cargos sociais, sucessivamente alterada e substituída, associada à ideia de plano conjunto, ou conluio, no aproveitamento das fragilidades emocionais da autora e da sua compulsividade consumista para conclusão de negócios qualificáveis como usurários (ou mesmo fraudulentos).
Nessa medida, ainda que possam existir diferentes fundamentos de responsabilidade entre réus-recorrentes, contratuais e não contratuais (algo que, como referido, a sentença não elabora), a existência desse plano conjunto de aproveitamento da situação da autora, que poderia ser referido como remetendo para o campo da fraude, associado à confusão entre posições pessoais e sociais, torna compatível e substanciado um pedido de condenação solidária e retira fundamento à invocação de ineptidão, também com este fundamento.
Conclui-se, assim, que nenhuma destas causas de nulidade por ineptidão se mostra verificada. --
--
c) A invocada oferta ao afilhado, 4.º réu
:
Um último fundamento apresentam os recorrentes,
in extremis
, e que traduz uma verdadeira alegação factual autónoma, apresentada em sede de recurso – que a quantia entregue pela autora para pagamento da armazenagem contratada, tratada na sentença como locação de armazém, teria sido uma oferta ao réu BB, sendo que este seria
afilhado
da autora e que tais ofertas seriam
habituais
.
É manifesto que a sede de alegação recursória não serve para nova alegação de factos, ou dedução de impugnação motivada, sendo também manifesto que não se trataria,
in casu
, de qualquer invocação de facto superveniente, objetivo ou subjetivo.
Não tem, portanto, qualquer relevo processual esta alegação, que é insuscetível de perturbar, a qualquer nível, o decidido.
--
Assim, na falta de outros fundamentos recursórios, decorre das asserções anteriores que improcede,
in totum
a apelação, devendo manter-se a decisão recorrida.
É o que se decide. –
--
III. Decisão:
Face ao exposto, nega-se a apelação, mantendo-se a decisão recorrida.
--
Custas pelos apelantes
Notifique-se e registe-se. –
---
Data e assinatura supra
Lisboa, 30-01-2025
João Paulo
Raposo
Rute Sobral
Inês Moura
|
TRL
|
https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/cb6f05d1a66595e080258c2d00591ba9?OpenDocument
|
1,743,897,600,000
|
REVOGAÇÃO PARCIAL
|
636/23.1T8PVZ.P1
|
636/23.1T8PVZ.P1
|
ANA OLÍVIA LOUREIRO
|
I - Apenas há direito a indemnização pelo dano decorrente de perda de chance quando possa concluir-se dos factos provados que era muito provável que tal dano não ocorreria na situação, hipotética, em que o lesado estaria se não fosse a lesão.
II - No caso da perda de chance de propor ação por negligência de advogado, o lesado deve provar que essa ação, a ser intentada, teria probabilidade de sucesso.
III - Para que possa concluir-se que em consequência de ação a propor contra a devedora ou os seus sócios, as credoras teriam conseguido obter o pagamento do seu crédito, é necessário alegar e provar que património os devedores tinham e em que medida era previsível que a sua apreensão e liquidação bastariam ao pagamento da dívida.
(Sumário da responsabilidade do Relator)
|
[
"RESPONSABILIDADE DE ADVOGADO",
"DANO DE PERDA DE CHANCE",
"ÓNUS DA PROVA"
] |
Processo número 636/23.1T8PVZ.P1, Juízo Central Cível da ...
São recorrentes e também recorridas:
As autoras AA; BB; CC; DD; EE; FF; e
As rés A... Company Se, Sucursal En España; e GG.
Relatora: Ana Olívia Loureiro
Primeira adjunta: Maria de Fátima Almeida Andrade
Segundo adjunto: José Eusébio Almeida
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I – Relatório:
1. Por via da presente ação a seguir a forma de processo comum as autoras (acima identificadas) peticionaram a condenação da primeira ré (também supra identificada) e da B..., SA no pagamento da quantia total de 99 745, 27 €, formulando os seguintes pedidos:
“
I - Serem as RR. condenadas a pagarem às AA. a quantia de 57.857,63€ (cinquenta e sete mil, oitocentos e cinquenta e sete euros e sessenta e três cêntimos) a título de danos patrimoniais, acrescidos dos respectivos juros desde a citação até efectivo e integral pagamento;
II - Serem as RR. condenados a pagar às AA. a quantia de 10.000,00€ (dez mil euros) a título de danos não patrimoniais acrescidos dos respectivos juros desde a citação até efectivo e integral pagamento;
III - Serem ainda as RR. condenadas a pagarem às AA. a quantia de 31.887,64€ (trinta e um mil, oitocentos e oitenta e sete euros e sessenta e quatro cêntimos) a título de juros vencidos desde a ocorrência da efectiva perda de chance”.
Para o que alegaram, em suma, terem mandatado a primeira ré, enquanto advogada, para que as representasse na cobrança de créditos laborais decorrentes do contrato de trabalho que mantiveram com entidade patronal que, em 19-06-2008, lhes comunicou a intenção de encerramento da empresa e lhes disponibilizou a retribuição desse mês bem como os documentos necessários à obtenção do subsídio de desemprego, comunicando-lhes, ainda, a intenção de pedir a sua declaração de insolvência. As autoras chegaram a acordo para cessação do contrato de trabalho com tal entidade patronal em 15-12-2008, já representadas pela primeira ré, não tendo, contudo, sido pagas às trabalhadoras as quantias acordadas que ficaram a constar desses acordos escritos. Pelo que solicitaram à primeira ré a tutela jurisdicional dos seus direitos para cobrança dessas quantias, judicial ou extrajudicialmente, tendo a ré entendido de solicitar o pagamento em causa ao Fundo de Garantia Salarial. Fê-lo, contudo, sem ter intentado o processo especial de insolvência da entidade patronal devedora e sem a junção ao requerimento dos documentos exigidos por lei, o que inviabilizou tal pedido e determinou o seu indeferimento. Sempre que questionada sobre o andamento da sua pretensão a primeira ré transmitiu às autoras que o processo especial de insolvência da entidade patronal estava em curso, não obstante estar registada na Conservatória de Registo Comercial a sua dissolução e liquidação desde 28-12-2009. Depois de nove anos de espera e mediante a resposta que a primeira ré lhe ia dando às suas várias solicitações, as autoras requereram informação ao Fundo de Garantia Salarial sobre o estado do pedido de pagamento dos seus créditos, tendo sido informadas do seu indeferimento, por não ter sido instaurado processo especial de insolvência da devedora e porque o requerimento não fora instruído com os documentos previstos no artigo 324º da Lei 35/2004 de 29 de junho.
Alegando erro grosseiro da primeira ré no exercício do mandato, pediram o pagamento das quantias que a sua atuação adequada lhes teria permitindo receber e que entendem serem as correspondentes à totalidade dos seus créditos, alegando quanto à segunda ré que celebrou com a primeira contrato de seguro de responsabilidade civil profissional pelo qual assumiu a responsabilidade pela indemnização dos danos decorrentes da atividade da ré advogada. Alegaram, ainda, os padecimentos morais que sofreram com a conduta da primeira ré.
2. Ambas as rés contestaram tendo a segunda excecionado a sua ilegitimidade por ser mera mediadora, não tendo celebrado qualquer contrato de seguro com a primeira ré e impugnando por desconhecimento os factos alegados na petição inicial.
3. A primeira ré contestou impugnando parte da causa de pedir e alegando que após a celebração e do incumprimento dos acordos de cessação dos contratos de trabalho entre as autoras e a sua entidade patronal, que foi ela quem negociou e redigiu, foi informada pelo mandatário da devedora de que a mesma estava prestes a requerer judicialmente a sua declaração de insolvência, tendo sido nessa sequência que sugeriu às autoras a reclamação dos seus créditos junto do Fundo de Garantia Salarial. Reclamação que fez estando convicta que o processo especial de insolvência estaria já pendente e pretendendo remeter o comprovativo da reclamação dos créditos emitido pelo administrador de insolvência quando as mesmas fossem notificadas para tal pelo Fundo. Com essa forma de agir pretendia, segundo alegou, abreviar o tempo de recebimento dos créditos e evitar a ultrapassagem do prazo de recurso ao Fundo de Garantia Salarial. Apenas em 26-10-2016 soube da dissolução e encerramento de liquidação da entidade patronal das autoras, o que lhes comunicou, sugerindo-lhes a cobrança dos créditos juntos dos sócios e liquidatários da devedora. As autoras sempre lhe disseram nunca terem recebido qualquer comunicação do Instituto de Segurança Social, Instituto Público que só as notificou para audiência prévia depois de contactado pelas autoras em 27-07-2017. Alegou ainda ter atravessado graves problemas de saúde, tendo sido submetida a três cirurgias em 2011. Defendeu que as autoras podem ainda receber os seus créditos dos sócios liquidatários da sua entidade patronal por ser falsa a declaração dos mesmos, no ato de liquidação da sociedade, de que não existia ativo a liquidar. Excecionou a prescrição dos juros com mais de cinco anos à data da citação.
4. Foi requerida pelas autoras e admitida a intervenção principal provocada da seguradora
A... Company Se, Sucursal em Espanha, que contestou confirmando ter celebrado com a Ordem dos Advogados contrato de seguro de responsabilidade civil profissional tendo como segurados nomeadamente os advogados nela inscritos, mas defendendo que o mesmo não é de aplicar ao sinistro dos autos por o mesmo ter ocorrido e ter sido do conhecimento da advogada segurada antes da celebração do contrato de seguro e esta não lho ter comunicado. Alegou ter sido acordada uma franquia de 5 000 € a descontar ao valor em que eventualmente seja condenada. Impugnou por desconhecimento os factos alegados na petição inicial. Defendeu, ainda, que a possibilidade de cobrança dos créditos das autoras não está ainda precludida, podendo elas apresentar à execução o acordo de cessão do contrato de trabalho contra os sócios liquidatários da sua entidade patronal. Sustentou que do alegado na petição inicial não decorre que fosse provável que as autoras viessem a receber as quantias peticionadas caso tivesse sido intentado o processo especial de insolvência da sua entidade patronal.
5. As autoras responderam sustentando ser-lhes inoponível a exclusão de cobertura invocada pela segunda ré, bem como a cláusula que estabeleceu a franquia e pedindo a condenação da mesma como litigante de má-fé.
6. Em 10-03-2024 foi proferido despacho saneador em que se conheceu, pela sua procedência, da exceção e ilegitimidade da ré B... - que foi absolvida da instância -, se identificou o objeto do litígio e se enunciaram os temas da prova.
7. A audiência de julgamento realizou-se em 21 de outubro de 2024 e 2 de dezembro de 2024.
8. A sentença foi proferida em 16-01-2025, nela se decidindo: “
Julga-se a acção parcialmente procedente e condenam-se as rés A... COMPANY SE, Sucursal en España e GG a pagarem 1.278,00€ (mil duzentos e setenta e oito euros) a cada uma das autoras AA; BB; CC; DD; EE; FF, acrescidos de juros de mora, à taxa legal, contados desde a citação.
Do mais pedido, absolvem-se as rés.
Improcede o pedido de condenação da ré XL como litigante de má-fé.
Custas por autoras e rés na proporção do decaimento”.
II - O recurso:
É desta sentença que recorrem as autoras e as rés, pretendendo:
1- A ré GG, a alteração parcial do julgamento da matéria de facto e a sua revogação com a consequente absolvição do pedido.
2- A ré seguradora A... COMPANY SE, Sucursal en España, sustentando a sua absolvição do pedido
3- As autoras a alteração parcial do julgamento da matéria de facto e a sua revogação parcial com a consequente condenação das rés no pagamento ta totalidade dos créditos reconhecidos pela entidade patronal nos acordos de cessação do contrato de trabalho.
Para tanto, alegam o que sumariam da seguinte forma em sede de conclusões de recurso:
A ré GG:
(…)
*
A ré seguradora:
(…)
*
As autoras:
(…)
*
Não foram apresentadas contra-alegações.
*
III – Questões a resolver:
Em face das conclusões das Recorrentes nas suas alegações – que fixam o objeto do recurso nos termos do previsto nos artigos 635º, números 4 e 5 e 639º, números 1 e 2, do Código de Processo Civil -, são as seguintes as questões a resolver:
1- A impugnação da matéria de facto;
2- A inexistência de dano decorrente da perda de chance porque as autoras ainda podem vir a cobrar e a obter o pagamento das quantias que a sua entidade patronal reconheceu estarem em dívida nos acordos de cessação dos contratos de trabalho;
3- A exclusão da responsabilidade da ré seguradora por força da anterioridade dos factos constitutivos da responsabilidade da segurada, do seu prévio conhecimento pela mesma e da sua não comunicação à seguradora.
4- A exclusão da responsabilidade da ré seguradora até ao limite de 5000 € de franquia acordada.
5- A data a partir da qual são devidos juros de mora pela ré seguradora.
6- A probabilidade de satisfação dos créditos das autoras por via do processo especial de insolvência da sua entidade patronal e/ou de ação a intentar contra os sócios da mesma.
7- O erro de cálculo da quantia indemnizatória.
*
IV – Fundamentação:
1- A impugnação da matéria de facto.
As recorrentes indicaram os concretos pontos de que discordam, a decisão que se impunha, a seu ver, quanto a cada um deles e os meios de prova em que sustentam a sua alteração, tendo, no caso da prova gravada, indicado as passagens das gravações tidas por relevantes e até transcrito ou sumariado parte delas. Pelo que estão cumpridos os ónus previstos no artigo 640.º números 1 e 2 do Código de Processo Civil.
Serão, assim, reapreciados os meios de prova indicados no pressuposto de que o Tribunal da Relação tem competência própria em matéria de facto, do que decorre autonomia decisória na sua reapreciação, cabendo-lhe efetuar uma avaliação crítica das provas de que pode resultar uma convicção diversa da gerada no tribunal recorrido
[1]
.
Em sede de reapreciação dos meios de prova vigora também, o princípio da livre apreciação da prova testemunhal previsto no artigo 396º do Código Civil. Deve, contudo, ter-se também presente a fundamentação, do Tribunal
a quo
para a decisão sobre a matéria de facto de que se recorre para aferir se, de acordo com o que resulta das gravações dos depoimentos e demais elementos de prova, a apreciação crítica que está espelhada na motivação da sua convicção se ancora ou não em regras de experiência e de lógica, bem como para apurar se ocorreu erro na referida apreciação.
a) Impugnação da alínea M) dos factos não provados.
Tem o seguinte teor: “(a ré)
Não fez acompanhar tais requerimentos dos comprovativos dos créditos emitidos pelo Administrador da Insolvência porque sempre poderia remeter tais comprovativos em sede de audiência prévia quando para tal as autoras fossem notificadas pelo Fundo”.
A recorrente/ré GG pretende que tal alínea passe a provada invocando que no âmbito do procedimento administrativo as interessadas podiam ter-se pronunciado sobre todas as questões com interesse para a decisão e requerer diligências complementares e/ou juntar documentos.
Convoca, ainda, o depoimento de HH, advogada, indicando as passagens da respetiva gravação e sumariando-o nos pontos que teve por relevantes.
A motivação para a não prova deste facto foi assim expressa na sentença:
“Logicamente, não havendo processo se insolvência, o requerimento ao FGS não poderia ser acompanhado pelos comprovativos dos créditos emitidos pelo Administrador da Insolvência. Portanto, não foi porque poderia mais tardar apresentá-lo que, como alegado pela ré, que a declaração do administrador da insolvência não seguiu com os requerimentos ao FGS”.
A alegação da ré GG de que poderia comprovar a pendência do processo especial de insolvência mais tarde, nomeada e concretamente juntando os documentos a que alude o artigo 324º do Código do Trabalho (cfr. alínea 17 dos factos provados
[2]
) e cuja falta foi a causa do indeferimento pelo Instituto de Segurança Social, Instituto Público, não pode julgar-se por provada desde logo em face do alegado quanto à pendência do processo especial de insolvência, que a autora admitiu nunca ter sido instaurado.
Deve ter-se presente o teor do referido artigo 324.º do Código do Trabalho, bem como o que o antecede:
“
Artigo 323.º Requerimento:
1 - O Fundo de Garantia Salarial efetua o pagamento dos créditos garantidos mediante requerimento do trabalhador, do qual consta, designadamente, a identificação do requerente e do respetivo empregador, bem como a discriminação dos créditos objecto do pedido.
2 - O requerimento é apresentado em modelo próprio, fixado por portaria do ministro responsável pela área laboral.
3 - O requerimento, devidamente instruído, é apresentado em qualquer serviço ou delegação do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social.
Artigo 324.º
Instrução
O requerimento previsto no número anterior é instruído, consoante as situações, com os seguintes meios de prova:
a) Certidão ou cópia autenticada comprovativa dos créditos reclamados pelo trabalhador emitida pelo tribunal competente onde corre o processo de insolvência ou pelo IAPMEI, no caso de ter sido requerido o procedimento de conciliação;
b) Declaração, emitida pelo empregador, comprovativa da natureza e do montante dos créditos em dívida declarados no requerimento pelo trabalhador, quando o mesmo não seja parte constituída;
c) Declaração de igual teor, emitida pela Inspecção-Geral do Trabalho.”.
Também do regime legal do Fundo de Garantia Salarial, previsto no DL59/205 de 21 de abril, nomeadamente do que resulta do seu artigo 5.º
[3]
, resulta a obrigatoriedade de apresentação dos documentos em causa juntamente com o envio do requerimento dirigido ao Fundo.
É certo que do facto de estar expressamente prevista a necessidade de instruir o pedido de pagamento pelo Fundo no momento da sua apresentação não invalidava que a requerente pudesse ter esperado, ainda que indevidamente, que lhe fossem solicitados os documentos em falta. Tal não equivale, contudo, a que se julgue provado que
a quo
mesma pretendia apresentá-los posteriormente. A falta de junção dos documentos exigidos desacompanhada da pendência, sequer, do processo especial de insolvência, não permite concluir que a ré pretendesse juntar tais documentos mais tarde, pois sequer curou de averiguar se estes existiriam.
Caso fosse pretensão da primeira ré comprovar posteriormente a pendência do processo especial de insolvência e da reclamação dos créditos das trabalhadoras, deveria, pelo menos, ter protestado a sua junção, o que a ré sequer alegou ter feito, assim tornando inverosímil a sua alegação.
A junção de comprovativo da reclamação de créditos no processo especial de insolvência dependia, obviamente, da pendência efetiva desse processo especial e de que tais créditos ali tivessem sido reclamados. Não tendo a ré intentado tal ação ou reclamado esses créditos, nem sabendo que estivesse pendente tal ação (não tendo verificado se estava ou não), bem como nunca tendo reclamado os créditos das mandantes naquele processo, não podia juntar ao requerimento que fez qualquer dos documentos exigidos e tampouco poderia esperar vir a fazê-lo mais tarde, sem que antes tivesse intentado ou verificado a pendência do processo especial de insolvência.
O depoimento que convoca, de HH, advogada e sua amiga, não contribui de modo algum para a prova da alegada pretensão da recorrente de juntar documentos em fase ulterior.
Tal testemunha disse saber que as autoras eram já clientes da ré “de outros processos”, descreveu com pormenor as doenças de que a ré padeceu, a ajuda que teve que ter após tais doenças, nomeadamente enquanto recuperava de uma depressão grave, tendo estado vários anos sem se inteirar do processo em causa, pois, segundo disse, apenas quando foi à Conservatória de Registo Comercial averiguar do estado da sociedade (em 2016/2017), soube da liquidação da sociedade que era entidade patronal das autora, que sabemos ter ocorrido em dezembro de 2009, porque assim está documentado por certidão de registo comercial.
Disse que teve conhecimento, através da autora, que em 2016/2017 as autoras lhe mostraram o seu desagrado quanto ao exercício do mandato e quiseram que lhes entregasse os dossiers dos processos, não pretendendo mais os seus serviços. Mais disse ter assistido a um telefonema de um advogado, chamado II, a dar conta de que as autoras o tinham procurado e tinham intenção de propor ação de responsabilidade civil contra a ré. Esta terá explicado então ao seu colega que já tinha transmitido às autoras que as mesmas podiam ainda reclamar o pagamento dos seus créditos aos sócios liquidatários da entidade patronal. Depois disso a ré disse-lhe que nunca mais foi contactada pelo colega, apenas tendo sido notificada da pendência de um processo disciplinar em 2017.
Quanto à pendência do processo especial de insolvência, confirmou que apenas a entidade patronal das autoras anunciou à ré que o instauraria. Disse ser costume nos processos de pedido de pagamento ao Fundo de Garantia Salarial, durante a pendência do processo especial de insolvência, e quando ela ou a colega e amiga tinham receio de que passasse o prazo de um ano para reclamar os créditos, ligarem para os respetivos funcionários que lhes diziam para instruírem os pedidos com os documentos que já tinham e para juntarem a decisão do processo especial de insolvência quando a tivessem.
Não disse, todavia, que tal pedido pudesse ser feito quando o processo especial de insolvência não estava sequer pendente – caso em que nem essa pendência e a eventual reclamação de créditos podia ser certificada -, admitindo expressamente que a ré desconhecia se o mesmo tinha ou não sido instaurado e que só em 2016/2017 é que se inteirou de que assim não tinha ocorrido. Expressamente perguntada sobre se os funcionários do Fundo lhes transmitiam a possibilidade de juntar a certidão comprovativa da pendência do processo especial de insolvência posteriormente à apresentação do pedido de pagamento, admitiu que tal pedido pressupunha sempre a pendência do referido processo especial e que o requerimento fosse feito depois dela. O que afirmou de forma muito segura.
Nem de outra forma podia ser, como acima afirmamos, já que apenas nos casos de insolvência da entidade patronal (ou quando tenha sido iniciado o processo de conciliação previsto no DL 316/98 de 20 de outubro) podem os trabalhadores recorrer ao Fundo de Garantia Salarial, como estipula o artigo 318º do Código do Trabalho. O mesmo decorre do artigo 1º, número 1 do DL59/2015, já acima referido, que prevê o seguinte: “
1 - O Fundo de Garantia Salarial, abreviadamente designado por Fundo, assegura o pagamento ao trabalhador de créditos emergentes do contrato de trabalho ou da sua violação ou cessação, desde que seja: a) Proferida sentença de declaração de insolvência do empregador; b) Proferido despacho do juiz que designa o administrador judicial provisório, em caso de processo especial de revitalização; c) Proferido despacho de aceitação do requerimento proferido pelo IAPMEI - Agência para a Competitividade e Inovação, I. P. (IAPMEI, I. P.), no âmbito do procedimento extrajudicial de recuperação de empresas.
Por tudo o exposto, é de manter como não provado o teor da alínea M) em apreço.
*
b) Impugnação da alínea N) dos factos não provados
Pretende a mesma recorrente que passe a julgar-se provado que só em 26/10/2016, data em que obteve o documento junto pelas autoras com a sua petição inicial sob o nº 6, teve conhecimento de que a C... havia sido dissolvida e a sua liquidação encerrada em 28/12/2009.
Sustenta a apelante a sua pretensão no mesmo depoimento testemunhal. O que a testemunha HH afirmou quanto a tal questão já acima foi sumariado e desse depoimento não resulta confirmada a concreta data em que a primeira ré teve conhecimento da dissolução da entidade patronal das autoras, apenas se sabendo que terá sido em 2016 ou em 2017.
A alínea N) dos factos não provados tem a seguinte redação: “
Na sequência do conhecimento por parte da 2ª ré da dissolução e liquidação da C..., conhecimento esse que ocorreu em 26/10/2016 e que comunicou às autoras, que a 2ª ré lhes sugeriu que fossem accionados os sócios e liquidatários da C... com vista à cobrança dos seus créditos”.
Também quanto à alegada sugestão dada às mandantes pela ré GG, o depoimento da testemunha HH não contribuiu para a sua prova. A mesma apenas assistiu a uma conversa telefónica entre a sua amiga e colega e um outro advogado que disse que iria passar a representar as autoras e que estas pretendiam responsabilizá-la civilmente. Nessa conversa - e nesse contexto, portanto -, a ré terá defendido outra forma de cobrança das quantias devidas às autoras, por via de ação a intentar contra os sócios liquidatários. Tal não significa que a ré tenha tido idêntica conversa com as autoras, tanto mais que se sabe, porque a testemunha HH o confirmou, que as autoras procuraram a sua colega já muito descontentes, pretendendo que ela lhes entregasse o dossier. É inverosímil que no âmbito dessa conversa a autora lhes tenha ainda transmitido vias legais de cobrança do crédito.
A referida testemunha tampouco sabia, senão pelo que lhe disse a ré, de que forma a mesma soube da dissolução e liquidação da entidade patronal das autoras, alegando estas que o souberam na sequência de diligências próprias e a ré que foi ela quem lhes transmitiu tal informação.
Consta da motivação da convicção do Tribunal
a quo
sobre esta matéria o seguinte:
“A ré esclareceu que em Outubro de 2016 foi à conservatória e soube então que a C... estava dissolvida. Estudou então o que fazer. Designadamente, entrar na mesma com um processo de insolvência. Responsabilizar os sócios que tinham património. No entanto, as autoras contactaram-na. Queriam que deixasse de tratar do assunto.
JJ, contou que foi informar-se ao tribunal. Descobriu que não havia processo. Foi à “Caixa de Pensões” onde disseram que não havia processo de insolvência. Depois andou à procura da ré. Teve que ir até ao restaurante do pai desta para a encontrar. Só então que conseguiu que ela entregasse a documentação.
Confrontando o depoimento desta testemunha com as declarações da ré não é possível dizer que esta omitiu deliberadamente que a sociedade estava dissolvida. Mas pode concluir-se que ela não informou as autoras desse facto”.
Em face desta motivação que concatena dois outros meios de prova e do depoimento da testemunha HH, único meio de prova cuja reapreciação é pedida pela a recorrente, não se vê motivo para alterar para provado o teor da alínea N).
*
c) Impugnação da alínea D) dos factos não provados.
Tem o seguinte teor:
“
D - Caso tivesse havido, por parte da 2ª-Ré, atempado requerimento de insolvência da sociedade C... e apresentação de petição ao FGS, bem como tempestiva demanda aos sócios liquidatários daquela empresa, as AA. teriam recebido, cada uma, a totalidade dos valores acordados como compensação global pela cessação do contrato de trabalho.
Pretendem as autoras que tal facto seja julgado provado.
Para tanto alegam que dada a distância temporal decorrida entre os factos e a propositura da ação a prova exata de tal facto lhes foi impossibilitada e que tal se deveu ao comportamento da ré, o que não a pode beneficiar. Apelam ao depoimento de JJ, marido da autora AA, que dizem ter sido isento e que foi valorado pelo Tribunal
a quo
. Transcrevem parte deste depoimento, salientando nomeadamente as suas declarações no sentido de que a entidade patronal da mulher tinha várias máquinas e que a primeira ré até tinha solicitado à sua mulher que fossem fotografadas e identificadas pelos números, porque o patrão estaria a vendê-las. À sua esposa a ré terá dito que não se preocupasse com tal venda pois tinha as
“máquinas todas registadas
” e que “
eles podiam vendê-las”
, conversa essa que terá tido lugar dois ou três meses depois da “
Drª GG entrar no processo
”.
Segundo tal depoimento o valor dessas máquinas dava para pagar os créditos das trabalhadoras.
Apelam ainda as autoras/recorrentes às regras da experiência e da lógica para afirmar que é habitual que os gerentes das sociedades insolventes vendam bens da empresa antes de a encerrarem, locupletando-se à custa dos credores. Alegam ainda que se tal venda de máquinas ocorreu, como descreveu a testemunha, é porque teria interesse económico para os gerentes da entidade patronal, daí retirando que o valor, que afirma fizeram seu, daria para solver os débitos às trabalhadoras. Desde logo porque, dizem ainda, “
os leilões de máquina de confeção normalmente ascendem a 10 000€”
o que entendem ser
“facto público e notório”.
Ora nada disto foi alegado pelas autoras: nem que a sua entidade patronal tivesse bens que garantiriam o pagamento dos seus créditos, nem que bens eram esse e que valor teriam, nem que tenham sido vendidos e que o produto da venda tenha beneficiado os sócios/gerentes.
Quanto à conduta que imputam à ré como causadora dos seus alegados danos e ao nexo causal entre uma e outros, as autoras, para além do erro na dedução do pedido dirigido ao Fundo de Garantia Salarial por falta de junção dos documentos necessários e da omissão de propositura do processo especial de insolvência, apenas alegaram, conclusivamente:
- que lhes “
assistiria a possibilidade forense de demandar os sócios liquidatários daquela C... com vista à satisfação dos créditos laborais das AA., nos termos do disposto no artigo 335º do Código do Trabalho, o que a 2ª- Ré optou por não prosseguir, deixando precludir tal possibilidade”
(artigo 15º da petição inicial); e
- que “
caso tivesse havido, por parte da 2ª-Ré, atempado requerimento de insolvência da sociedade C... e, aí sim, apresentação de petição ao FGS, bem como tempestiva demanda aos sócios liquidatários daquela empresa, as AA. teriam recebido, cada uma, os indicados valores”
(cfr. artigo 41ºda petição inicial).
Esta última alegação, da qual decorre a alínea D) dos factos não provados, respeita ao nexo de causalidade entre as diligências omitidas pela ré e a impossibilidade de recebimento da quantia total dos créditos reconhecidos pela entidade patronal. Mais precisamente visa a afirmação de uma probabilidade séria de que o cumprimento de determinados deveres profissionais pela ré levaria a tal resultado.
Só que a afirmação desse nexo entre as omissões da ré e o dano das autoras por via da alegação de que não tendo as primeiras ocorrido iriam receber certa quantia, ou que, pelo menos, era muito provável que assim fosse, não podia ser feita pela forma conclusiva adotada na petição inicial.
Se as autoras pretendiam levar o Tribunal
a quo
a concluir nesse sentido, deveriam ter alegado quais os factos de que podia decorrer essa probabilidade, ou seja, quais as razões em que assentavam a expetativa de que por via do processo especial de insolvência ou de ação contra os sócios da entidade patronal seria possível obter o pagamento de todos os créditos laborais titulados pelos acordos de cessão do contrato de trabalho. Podiam e deviam, nomeadamente, alegar os factos que a testemunha cujo depoimento agora convocam confirmou: que a entidade patronal tinha bens de valor elevado, que foram vendidos pelos seus gerentes em proveito próprio e até que num eventual concurso de credores as autoras teriam privilégio que lhes garantiria um pagamento preferencial pelo produto da venda de todo ou parte do ativo da sua entidade patronal no confronto com outros credores igualmente garantidos por privilégio mobiliário ou imobiliário.
Nada disto foi alegado, pelo que não pode ser julgado provado e não há porque julgar provado o teor, conclusivo, do que consta da alínea D) dos factos não provados.
*
Em face da improcedência da impugnação da matéria de facto, mantêm-se os factos julgados provados na sentença recorrida, que, corrigidos os evidentes lapsos de numeração por omissão das alíneas 25, 34 e 41, são os seguintes:
1 - As autoras eram trabalhadoras da sociedade comercial C..., Lda, auferindo uma retribuição base mensal de 426,00€.
2- Por carta de 19/06/2008, enviada por Advogado em representação da C..., as autoras foram informadas da intenção de encerramento da empresa a partir do dia 30/06/2008, disponibilizando-lhes o vencimento referente ao mês de encerramento, assim como todos os documentos necessários para o pedido de subsídio de desemprego, mais informando que era intenção daquela sociedade comercial a apresentação a insolvência.
3 - A segunda ré, Dra. GG, é advogada.
4- As autoras mandataram a 2ª ré para que esta as representasse na cobrança dos créditos salariais sobre a C... e passaram-lhe procuração forense.
5 - Na mesma ocasião, a solicitação da 2ª-Ré, cada uma das autoras entregou-lhe €180,00.
6- Seguindo o aconselhamento da ré, a 15/12/2008 cada uma das autoras assinou um acordo escrito com a C... para a cessação dos contratos de trabalho, reportada à data de 30/6/2008.
7- Nos respectivos acordos, a C... confessou-se devedora a cada uma das autoras, a título de compensação global pela cessação do contrato de trabalho, das quantias seguintes:
a) à A. AA, 13.034,74€;
b) à A. BB, 9.495,54€;
c) à A. CC, 8.610,84€;
d) à A. DD, 11.264,94€;
e) à A. EE, 7.726,14€;
f) à A. FF, 7.726,14€.
8 - A C... nada pagou às autoras.
9 - A 26/2/2009, a 2ª ré remeteu ao Fundo de Garantia Salarial, do Instituto da Segurança Social do Centro Distrital do Porto, requerimento para pagamento dos créditos das autoras emergentes dos contratos de trabalho, acompanhado designadamente do recibo de vencimento e do acordo de cessação do contrato de trabalho.
10 - Quando instada pelas ora AA. relativamente ao estado em que se encontrava a cobrança dos créditos, a 2ª-Ré foi-lhes transmitindo que o assunto estaria confiado ao Fundo de Garantia Salarial e que tardaria algum tempo até receberem.
11 - Com data de 28/12/2009 foi inscrita no registo comercial a dissolução, encerramento a liquidação e cancelamento da matrícula da C....
12 - A ré não informou as autoras desse facto.
13 - A C... não foi sujeita a processo de insolvência.
14 - A 2ª ré não propôs acção de insolvência da C..., nem acção contra os sócios liquidatários para satisfação dos créditos laborais das AA.
15 - Em 19 de Julho de 2017, as autoras AA, CC e DD, e em 25 de Julho de 2017, as autoras EE, BB e FF, deslocaram-se ao escritório da 2ª-Ré e exigiram, e foram-lhes entregues, os seus dossiers.
16 - Entre 27/7/2017 e 8/8/2017, as autoras requereram por punho próprio, nos serviços da Segurança Social, informação sobre o estado em que se encontrava o pedido formulado pela 2ª-Ré ao Fundo de Garantia Salarial.
17 - A Segurança Social, em 15/09/2017, notificou as autoras da intenção de indeferimento com fundamento na ausência de instauração de processo de insolvência da C... e na falta de instrução do requerimento com os documentos previstos no art. 324º da Lei 35/2004, de 29/7.
18 - Uma vez que a C... anunciara que se ia apresentar à insolvência, a 2ª ré sugeriu às autoras que, para obterem o pagamento dos seus créditos, se recorresse ao Fundo de Garantia Salarial (FGS), o que estas aceitaram.
19 - Por isso preparou os requerimentos dirigidos ao Fundo de Garantia Salarial que as autoras assinaram e os documentos que os acompanhavam.
20 - A 2ª ré solicitou às autoras que a informassem logo que recebessem a citação para o processo de insolvência para efeitos de reclamação dos créditos,
21 - E que a informassem logo que notificadas pelo FGS para audiência prévia a fim de dar a necessária resposta.
22 - Procedeu desse modo convicta de que, a essa data, já estaria prestes a apresentação à insolvência por parte da C....
23 - Pretendeu com isso prevenir a ultrapassagem dos prazos de recurso ao Fundo.
24 - A 2ª ré, teve problemas de saúde, nomeadamente no ano de 2011, foi sujeita a três intervenções cirúrgicas.
25 - Entre a ré XL e a Ordem dos Advogados foi celebrado um contrato de seguro de grupo não contributivo, temporário, anual, do ramo de responsabilidade civil, titulado pela apólice n.º ...3...,
26 - O risco coberto é da responsabilidade civil profissional decorrente do exercício da advocacia, com um limite de 150.000,00 € por sinistro (…)».
27 – O contrato de seguro foi celebrado pelo prazo de 12 meses, com data de início às 0:00 horas do dia 1 de janeiro de 2023 e termo às 0:00 horas do dia 1 de janeiro de 2024.
28 - Entre a Ordem dos Advogados e a ré XL, para as anuidades de 2018 a 2022 foram celebrados outros contratos de seguro do mesmo risco, o primeiro deles com início no dia 01/01/2018.
29 - No ponto 7 das respetivas Condições Particulares, sob a epígrafe “Âmbito Temporal”, o contrato prevê o seguinte: “O Segurador assume a cobertura da responsabilidade do segurado por todos os sinistros reclamados pela primeira vez contra o segurado ou contra o tomador do seguro ocorridos na vigência das apólices anteriores, desde que participados após o início da vigência da presente apólice, sempre e quando as reclamações tenham fundamento em dolo, erro, omissão ou negligência profissional coberta pela presente apólice, e mesmo ainda, que tenham sido cometidos pelo segurado antes da data de efeito da entrada em vigor da presente apólice e sem qualquer limitação temporal da retroatividade.”
30 - Mais resulta do contrato de seguro que: “Para os fins supra indicados, entende-se por reclamação a primeira das seguintes comunicações:
a) Notificação oficial por parte do sinistrado, do tomador do seguro ou do segurado, ao segurador, da intenção de reclamar ou de interposição de qualquer ação perante os tribunais;
b) Notificação oficial do tomador do seguro ou do segurado, ao segurador, de uma reclamação administrativa ou investigação oficial, com origem ou fundamento em dolo, erro, omissão ou negligência profissional, que haja produzido um dano indemnizável à luz da apólice;
c) Por outra via, entende-se por reclamação, qualquer facto ou circunstância concreta, conhecida prima facie pelo tomador do seguro ou segurado, da qual resulte notificação oficial ao segurador, que possa razoavelmente determinar ulterior formulação de um pedido de ressarcimento ou acionar as coberturas da apólice.” - ponto 7 das “Condições Particulares.
31 - Nos termos ponto 12 do Artigo 1.º da “Condição Especial de Responsabilidade Civil Profissional” “Reclamação”:
“Qualquer procedimento judicial ou administrativo iniciado contra qualquer segurado, ou contra o segurador, quer por exercício de ação direta, quer por exercício de direito de regresso, como suposto responsável de um dano abrangido pelas coberturas da apólice;Toda a comunicação de qualquer facto ou circunstância concreta conhecida por primeira vez pelo segurado e notificada oficiosamente por este ao segurador, de que possa:
i) Derivar eventual responsabilidade abrangida pela apólice;
ii) Determinar a ulterior formulação de uma petição de ressarcimento, ou
iii) Fazer funcionar as coberturas da apólice.”
32 - O artigo 4.º da “Condição Especial de Responsabilidade Civil Profissional” prevê:
“É expressamente aceite pelo tomador do seguro e pelos segurados que a presente apólice será competente exclusivamente para as reclamações que sejam apresentadas pela primeira vez no âmbito da presente apólice:
a) Contra o Segurado e notificadas ao segurador; ou
b) Contra o segurador em exercício de ação direta;
c) Durante o período de seguro, ou durante o período de descoberto, resultantes de dolo, erro, omissão ou negligência profissional cometidos pelo segurado após a data retroativa.».
33 - Nos termos do artigo 8.º, n.º 1 da “Condição Especial de Responsabilidade Civil Profissional”:
“O tomador do seguro ou o segurado deverão, como condição precedente às obrigações do segurador sob esta apólice, comunicar ao segurador tão cedo quanto seja possível:
a) Qualquer reclamação contra qualquer segurado, baseada nas coberturas desta apólice;
b) Qualquer intenção de exigir responsabilidade a qualquer segurado, baseada nas coberturas desta apólice;
c) Qualquer circunstância ou incidente concreto conhecida(o) pelo segurado e que razoavelmente possa esperar-se que venha a resultar em eventual responsabilidade abrangida pela apólice, ou determinar a ulterior formulação de uma petição de ressarcimento ou acionar as coberturas da apólice.”.
34 - De acordo com o artigo 3.º da “Condição Especial de Responsabilidade Civil Profissional”:
“Ficam expressamente excluídas da cobertura da presente apólice, as reclamações:
a) Por qualquer facto ou circunstância conhecidos do segurado, à data do início do período de seguro, e que já tenha gerado, ou possa razoavelmente vir a gerar, reclamação; (…)”,
35 - Segundo o artigo 10.º, n.º 1 da “Condição Especial de Responsabilidade Civil Profissional”:
“O segurado, nos termos definidos no ponto 1. do artigo 8.º desta Condição Especial, deverá comunicar ao corretor ou ao segurador, com a maior brevidade possível, o conhecimento de qualquer reclamação efetuada contra ele ou de qualquer outro facto ou incidente que possa vir a dar lugar a uma reclamação.”
36 - Comunicação essa que, artigo 10.º, n.º 2 da “Condição Especial de Responsabilidade Civil Profissional” “(…) dirigida ao corretor ou ao segurador ou seus representantes (…)”, deverá chegar ao conhecimento do segurador no prazo máximo e improrrogável de 8 dias”.
37 - À data da celebração e vigência dos contratos de seguro celebrados pela Ordem dos advogados com a ré XL, a Dra. GG tinha conhecimento dos factos e circunstâncias que lhes são imputados na p.i. e que os mesmos poderiam vir a dar origem a uma “Reclamação”.
38 - A Dra. GG, não comunicou à ora ré XL, diretamente ou através de qualquer outra entidade, os factos e/ou circunstâncias dos Autos e a possibilidade de tais factos poderem dar origem a uma “Reclamação”.
39 - A citação da ré XL para a presente ação judicial foi no dia 30 de Outubro de 2023.
40 - No ponto 10 das “Condições Particulares do Seguro de Responsabilidade Civil” está “estabelecida a franquia de € 5.000,00 por sinistro, não oponível a terceiros lesados”.
*
2 - A inexistência de dano decorrente da perda de chance porque as autoras ainda podem vir a cobrar as quantias devidas que a sua entidade patronal reconheceu estarem em dívida no acordo de cessação do contrato de trabalho.
Ambas as rés/recorrentes sustentam que as autoras podem ainda vir a receber as quantias que peticionam nos autos.
A ré GG afirma que as autoras dispõem de título executivo que lhes permite cobrar as quantias confessadas pela entidade patronal nos acordos que com elas celebrou, que podem ainda impugnar a dissolução da sociedade e a sua liquidação, bem como requerer a sua insolvência, alegando a falsidade das declarações de liquidação, nomeadamente quanto à inexistência de ativo da sociedade dissolvida.
A Ré seguradora defende que não está prescrito o crédito das autoras que foi reconhecido nos documentos que titulam a cessação do contrato de trabalho, e que estes são títulos executivos que lhes permitem demandar judicialmente os sócios da sua entidade patronal.
A afirmação de ambas as rés recorrentes - de que os acordos de cessação do contrato de trabalho em que a entidade patronal reconhece e se obriga a pagar as quantias dadas por provadas na alínea 7 dos factos constituem títulos executivos -, é correta.
Os referidos acordos escritos, assinados pelas trabalhadoras e pelo legal representante da entidade patronal não estão autenticados e não cabem no elenco dos títulos executivos que resultam dos artigos 703.º do Código de Processo Civil e 88.º do Código de Processo do Trabalho. Mas, à data em que foram emitidos em dezembro de 2008 -, eram considerados como tal à luz do disposto no artigo 46º, número 1 c) do Código de Processo Civil de 95 (DL 329-A/95 de 12 de dezembro) que atribuía exequibilidade aos
“documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto”.
Após declaração pelo Tribunal Constitucional, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade do artigo 703.º do Código de Processo Civil quando aplicado a “
documentos particulares emitidos em data anterior à sua entrada em vigor, então exequíveis por força do artigo 46.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil de 1961, constante dos artigos 703.º do Código de Processo Civil, e 6.º, n.º 3, da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, por violação do princípio da proteção da confiança (artigo 2.º da Constituição).”
[4]
, ficou definitivamente resolvida a discussão sobre a exequibilidade de acordos como os que as autoras celebraram com a sua entidade patronal.
Do facto de as mesmas estarem munidas de título executivo, todavia, não resulta que possam, com sucesso, mover execução com vista à cobrança das quantias ali confessadas pela devedora. Desde logo porque a mesma está dissolvida e foi encerrada a sua liquidação, o que foi levado ao registo comercial em 28-12-2009, data em que a sociedade se julga extinta, à luz do artigo 160.º do Código das Sociedades Comerciais.
Certo é que tal extinção da sociedade não impede que sejam ainda demandados os antigos sócios pelo passivo social não satisfeito, nos termos do artigo 163.º do mesmo diploma, até ao montante que receberam na partilha. Não havendo, contudo, bens a partilhar por não haver ativo (nem superveniente nos termos do artigo 164.º do Código das Sociedades Comerciais), não há como demandar os referidos sócios.
Para que tal demanda fosse possível sugere a ré/recorrente GG, que poderia ser proposta ação com vista à declaração de falsidade/anulação da escritura de dissolução/registo do encerramento da liquidação, com base na alegação de que seria falsa a declaração dos sócios de que a devedora não tinha qualquer ativo a liquidar.
Ora, para que pudesse considerar-se, ainda que remotamente, possível e viável tal solução, necessário seria que estivesse alegado e provado que, ao contrário do declarado no ato de liquidação, existia efetivamente, ativo a liquidar. O que ninguém alegou nem, portanto, provou, resultando da certidão do registo comercial da entidade patronal devedora a presunção do contrário, nos termos do artigo 11º do Código do Registo Comercial em que se estipula: “
O registo por transcrição definitivo constitui presunção de que existe a situação jurídica, nos precisos termos em que é definida.”.
Cabia, assim, às rés, provar o oposto para o que não basta alegar, em tese, a possibilidade dessa via de ação. Deviam as rés ter alegado os factos concretos em que a viabilidade da mesma se sustentaria. O que não fizeram.
Quanto à possibilidade, também aventada no recurso da ré GG, de vir ainda a ser proposto processo especial de insolvência da entidade patronal das autoras, claudica na mesma dificuldade: a de que tal sociedade já está dissolvida e está registado o encerramento da sua liquidação pelo que a mesma sequer já não tem personalidade jurídica.
Pelo que esta via argumentativa, em parte partilhada por ambas as rés, deve improceder.
Quanto ao argumento da recorrente GG de que as autoras poderiam demandar os sócios e gerentes da sua entidade patronal à luz dos artigos 334.º e 335.º do Código do Trabalho, também não tem sucesso.
É que o que nesses preceitos se prevê é a responsabilidade solidária da a entidade patronal e das sociedades que com ela estiver em relação de participação, domínio ou grupo (artigo 334.º aqui claramente inaplicável) e dos sócios (artigo 335.º) que estejam nas situações previstas no artigo 83.º do Código das Sociedades Comerciais que tem a seguinte redação:
“
1. O sócio que, só por si ou juntamente com outros a quem esteja ligado por acordos parassociais, tenha, por força de disposições do contrato de sociedade, o direito de designar gerente sem que todos os sócios deliberem sobre essa designação responde solidariamente com a pessoa por ele designada, sempre que esta for responsável, nos termos desta lei, para com a sociedade ou os sócios e se verifique culpa na escolha da pessoa designada.
2. O disposto no número anterior é aplicável também às pessoas colectivas eleitas para cargos sociais, relativamente às pessoas por elas designadas ou que as representem
3. O sócio que, pelo número de votos de que dispõe, só por si ou por outros a quem esteja ligado por acordos parassociais, tenha a possibilidade de fazer eleger gerente, administrador ou membro do órgão de fiscalização responde solidariamente com a pessoa eleita, havendo culpa na escolha desta, sempre que ela for responsável, nos termos desta lei, para com a sociedade ou os sócios, contanto que a deliberação tenha sido tomada pelos votos desse sócio e dos acima referidos e de menos de metade dos votos dos outros sócios presentes ou representados na assembleia.
4. O sócio que tenha possibilidade, ou por força de disposições contratuais ou pelo número de votos de que dispõe, só por si ou juntamente com pessoas a quem esteja ligado por acordos parassociais de destituir ou fazer destituir gerente, administrador ou membro do órgão de fiscalização e pelo uso da sua influência determine essa pessoa a praticar ou omitir um acto responde solidariamente com ela, caso esta, por tal acto ou omissão, incorra em responsabilidade para com a sociedade ou sócios, nos termos desta lei.”
O artigo 335.º do Código do Trabalho prevê ainda, no seu número 2 a responsabilidade solidária dos gerentes, administradores ou diretores da sociedade entidade patronal devedora caso se verifiquem os pressupostos dos artigos 78º e 79º do Código das Sociedades Comerciais.
Têm eles a seguinte redação:
Artigo 78º:
“1. Os gerentes ou administradores respondem para com os credores da sociedade quando, pela inobservância culposa das disposições legais ou contratuais destinadas à proteção destes, o património social se torne insuficiente para a satisfação dos respetivos créditos.
2. Sempre que a sociedade ou os sócios o não façam, os credores sociais podem exercer, nos termos dos artigos 606.º a 609.º do Código Civil, o direito de indemnização de que a sociedade seja titular.
3. A obrigação de indemnização referida no n.º 1 não é, relativamente aos credores, excluída pela renúncia ou pela transação da sociedade nem pelo facto de o ato ou omissão assentar em deliberação da assembleia geral.
4. No caso de falência da sociedade, os direitos dos credores podem ser exercidos, durante o processo de falência, pela administração da massa falida.
5. Ao direito de indemnização previsto neste artigo é aplicável o disposto nos n.os 2 a 6 do artigo 72.º, no artigo 73.º e no n.º 1 do artigo 74.º”;
Artigo 79º:
“1 - Os gerentes ou administradores respondem também, nos termos gerais, para com os sócios e terceiros pelos danos que diretamente lhes causarem no exercício das suas funções.
2 - Aos direitos de indemnização previstos neste artigo é aplicável o disposto nos n.os 2 a 6 do artigo 72.º, no artigo 73.º e no n.º 1 do artigo 74.º”.
Não foi sequer alegado qualquer dos factos que preenchem a estatuição destas três normas do Código das Sociedades Comerciais que foram transcritas, pelo que é claramente infundada a alegação de que as autoras podiam demandar os sócios da sua entidade patronal (sociedade cujo encerramento da liquidação já está registado) para pagamento das dívidas desta sociedade que estão confessadas nos acordos de cessação dos contratos de trabalho.
Pelo que também esta via de argumentação não procede, não colhendo assim qualquer dos fundamentos defendidos pelas recorrentes/rés para a sustentação de que as autoras têm outras vias para cobrar da sua entidade patronal ou dos seus sócios as quantias que dela não receberam, apesar de acordadas.
Ainda que assim não se entendesse, cumpre relembrar que a sentença apenas condenou ambas as rés no pagamento das quantias que as autoras poderiam ter recebido do Fundo de Garantia Salarial exatamente por ter considerado que se desconhecia “
se uma eventual liquidação da C... em processo de insolvência geraria proventos suficientes para pagar às autoras o que quer que fosse
”, o mesmo se passando “
quanto a uma eventual acção contra os sócios e/ou gerentes”
.
A condenação das rés foi, assim, calculada apenas com base naquilo que as autoras poderiam ter recebido se a primeira ré tivesse acompanhado o pedido de pagamento dirigido ao Fundo de Garantia Salarial da necessária propositura de processo especial de insolvência
[5]
.
Os valores que as autoras receberiam do referido Fundo não dependem de qualquer viabilidade ou hipótese de sucesso quanto a ações de cobrança dos créditos à devedora ou aos seus sócios, visando tal fundo assegurar o pagamento de créditos emergentes do contrato de trabalho, da sua violação ou cessação que se tenham vencido nos seis meses anteriores à propositura do processo especial de insolvência. Pelo que esses montantes sempre teriam sido pagos às autoras caso o processo especial de insolvência tivesse sido oportunamente instaurado ficando depois o Fundo sub-rogado no direito das trabalhadoras contra a devedora – cfr artigo 4.º do DL 59/2015 de 31 de dezembro. Recebidos esses valores, às autoras apenas caberia o direito de pedir os demais créditos, não assegurados pelo Fundo, à sua entidade patronal.
Pelo que, para efeitos da pretendida revogação da condenação no sentido pretendido pelas rés, em nada relevaria o conjunto de argumentos vindos de apreciar que a procederem, apenas impediriam a condenação das rés nos montantes de cujo pagamento as mesmas já foram absolvidas.
*
3. A exclusão da responsabilidade da ré seguradora por força da anterioridade dos factos constitutivos da responsabilidade da segurada e do seu prévio conhecimento pela mesma e não comunicação à seguradora.
A sentença recorrida, seguindo a orientação jurisprudencial dominante (se não unânime), entendeu que não era oponível às autoras a exclusão da responsabilidade prevista no contrato de seguro quanto aos danos emergentes de factos conhecidos do segurado à data do início do período de vigência do seguro, que não tenham sido comunicados à seguradora.
Esta insiste, em alegações, na tese já por si defendida em sede de contestação: a pré-existência do sinistro face ao contrato de seguro impede o pagamento pretendido sob pena de violação dos artigos 44.º, número 2, 48.º, números 2 a 5, 139.º e 147.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (DL 72/2008 de 16 de abril).
Destes preceitos decorre que: o segurador não cobre sinistros anteriores à data da celebração do contrato de seguro quando o tomador ou o segurado tivesse conhecimento deles nessa data; que são oponíveis ao segurado os meios de defesa derivados do contrato de seguro; que, salvo disposição em contrário a garantia cobre a responsabilidade civil do segurado por factos ocorridos no período de vigência do contrato de seguro; e que o segurador pode opor ao lesado os meios de defesa derivados do contrato de seguro ou de facto do tomador de seguro ou do segurado ocorrido anteriormente ao sinistro.
Além destas normas que a apelante convocou há, contudo, que convocar outras do mesmo Diploma, também aqui aplicáveis:
O artigo 100.º, número 1 prevê:
“
A verificação do sinistro deve ser comunicada ao segurador pelo tomador do seguro, pelo segurado ou pelo beneficiário, no prazo fixado no contrato ou, na falta deste, nos oito dias imediatos àquele em que tenha conhecimento”
O
artigo 101º prevê:
“1. O contrato pode prever a redução da prestação do segurador atendendo ao dano que o incumprimento dos deveres fixados no artigo anterior lhe cause.
2. O contrato pode igualmente prever a perda da cobertura se a falta de cumprimento ou o cumprimento incorrecto dos deveres enunciados no artigo anterior for doloso e tiver determinado dano significativo para o segurador.
3. O disposto nos números anteriores não é aplicável quando o segurador tenha tido conhecimento do sinistro por outro meio durante o prazo previsto no n.º 1 do artigo anterior, ou o obrigado prove que não poderia razoavelmente ter procedido à comunicação devida em momento anterior àquele em que o fez.
4. O disposto nos n.os 1 e 2 não é oponível aos lesados em caso de seguro obrigatório de responsabilidade civil, ficando o segurador com direito de regresso contra o incumpridor relativamente às prestações que efectuar, com os limites referidos naqueles números”.
O diploma a que pertencem estes preceitos tem ainda uma subsecção com
“disposições especiais de seguro obrigatório”
. Nela se inclui o artigo 146º. que permite aos lesados, no caso de seguros obrigatórios de responsabilidade civil, demandar diretamente o segurador para obter a indemnização dos danos causados pelo risco coberto.
Esta solução compreende-se facilmente na medida em que estamos perante situações em que a obrigatoriedade do contrato de seguro foi estabelecida por lei exatamente com a finalidade de proteger o lesado. Nesta situação o segurador deve indemnizá-los cabendo-lhe, depois, o direito de regresso contra o segurado.
No artigo 147.º do mesmo diploma, estão especialmente previstos os meios de defesa do segurador perante os lesados: os meios de defesa derivados do contrato de seguro ou de facto do tomador do seguro ou do segurado ocorrido anteriormente ao sinistro, nomeadamente a invalidade do contrato, as condições contratuais e a cessação do contrato.
Como prevê o artigo 13.º do mesmo diploma, os artigos 100.º, 101º, 146 e 147º a que antes nos referimos são normas relativamente imperativas podendo apenas ser contratualmente estabelecido um regime mais favorável ao tomador do seguro, ao segurado ou ao beneficiário.
O contrato de seguro dos autos é um seguro obrigatório face ao disposto no artigo 104º do Estatuto da Ordem dos Advogados.
No caso está provado que a XL celebrou com a Ordem dos Advogados um contrato de seguro com início de vigência de 2018 a 2022 e de novo a partir 1 de janeiro de 2023 até 1 de janeiro de 2024. Tal seguro, de grupo, cobria a responsabilidade de, entre outros segurados, todos os “
advogados com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados que exerçam a atividade em prática individual ou societária, por dolo, erro, omissão ou negligência profissional”.
Do ponto 7 das condições particulares do contrato de seguro objeto dos autos resulta que a seguradora assumiu “
a cobertura da responsabilidade do segurado por todos os sinistros
reclamados pela primeira vez contra o segurado ou contra o tomador do seguro ocorridos na vigência das apólices anteriores, desde que participados após o início da vigência da presente apólice
, sempre e quando as reclamações tenham fundamento em dolo, erro, omissão ou negligência profissional coberta pela presente apólice,
e mesmo ainda, que tenham sido cometidos pelo segurado antes da data de efeito da entrada em vigor da presente apólice e sem qualquer limitação temporal da retroatividade
”
(sublinhado nosso).
Trata-se do que tem sido apelidado pela doutrina de apólice de reclamação feita (“
claims made
”), que faz depender o pagamento da indemnização à apresentação da queixa de terceiros durante o prazo de vigência do contrato e que possibilita a extensão da sua cobertura para além do período anterior ao início do contrato, desde que tenha havido comunicação do facto gerador da responsabilidade à seguradora.
Está em causa, é certo, a prática dos atos geradores dos danos antes da celebração do contrato de seguro. Mas a demanda da ré segurada e da seguradora foi em momento posterior. Estando prevista no contrato de seguro obrigatório a possibilidade de cobertura de um risco verificado anteriormente, desde que a reclamação seja feita depois do início da vigência do seguro, não pode afirmar-se que já ocorrera antes da celebração do contrato de seguro, pois apenas se provou que as autoras (beneficiárias) pediram, em julho de 2017, os dossiers dos seus processos à primeira ré (segurada), nada se provando quanto a uma qualquer reclamação das mesmas junto desta, nomeadamente no sentido de virem a responsabilizá-la civilmente.
A norma, relativamente imperativa, contida no artigo 101.º, número 4 do RJCS, prevalece sobre a cláusula contratual de exclusão no caso pré-conhecimento do sinistro pelos segurados, que, não sendo mais favorável ao lesado/beneficiário, não lhe pode ser oposta.
Estaria apenas em causa, face ao contrato de seguro, aferir se foi incumprido pela ré segurada o dever de comunicação à seguradora a que alude o artigo 100.º, número 1 do RJCS e, como se viu, esse incumprimento, ainda que tivesse ocorrido, não é oponível aos lesados em caso de seguro obrigatório em face do disposto no número 4 do artigo 101.º, mas apenas ao segurado, em ação de regresso.
Pelo que não pode a ré seguradora opor às aqui autoras, enquanto beneficiárias do contrato de seguro e lesadas, o incumprimento de qualquer dever de comunicação da segurada. Quanto a esta matéria a jurisprudência tem sido convergente, no sentido adotado na sentença recorrida.
Convocam-se e partilha-se a hiperligação para alguns dos arestos que o Supremo Tribunal de Justiça e os Tribunais da Relação que podem ajudar a esclarecer/melhor fundamentar a questão acima decidida:
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14-12-2016, disponível em
STJ 5440/15.8T8PRT-B.P1.S1
[6]
;
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 11-07-2019, disponível em
5388/16.9T8VNG.P1.S1
[7]
;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12-05-2022, disponível em
TRL 190/18.6T8PRG.L1-2
[8]
; e
- Acórdão deste Tribunal e secção, de 21-10-2019, disponível em
TRP 575/13.4TVPRT.P1
[9]
.
*
4. A exclusão da responsabilidade da ré seguradora até ao limite de 5000 € da franquia acordada.
A apelante/ré/seguradora alega que em face da franquia estabelecida no contrato de seguro a sua obrigação de indemnizar deve ser reduzida no montante de 5000 €. Fá-lo convocando a primeira parte do teor da cláusula 10ª das condições particulares do seguro e afirma que se impunha a condenação da co-ré advogada no pagamento do valor de 5000 € às autoras.
Ora dessa cláusula do contrato de seguro resulta o seguinte: “
Estabelece-se uma franquia de 5.000,00 € por sinistro, não oponível a terceiros lesados”
[10]
.
Tal clausulado foi o fundamento para a rejeição da pretensão de dedução desse valor em primeira instância.
Pelo que muito se estranha a insistência da apelante nessa dedução sem curar, sequer, de argumentar porque motivo não seria a cláusula do contrato acima transcrita aplicável ao caso dos autos.
Afirma a recorrente que “
a inoponibilidade da franquia perante Terceiro, não pode significar a condenação solidária da ora Apelante neste valor, atentos os termos da relação material controvertida dos autos, nos quais a Segurado da ora Recorrente figura
como parte principal e, por isso, responsável única pelo pagamento daquele valor da franquia”.
Ora, a inoponibilidade da franquia ao lesado não pode significar outra coisa senão, exatamente, a condenação da seguradora na totalidade da indemnização fixada, sendo o montante da franquia passível de ser por ela depois peticionada à segurada.
A tal não obsta o disposto no artigo 49.º do RJCS que tem a seguinte redação: “
As partes podem fixar franquias, escalões de indemnização e outras previsões contratuais que condicionem o valor da prestação a realizar pelo segurador.”.
Daqui apenas resulta que pode ser condicionado/limitado o dever da prestação da seguradora, mas já não que essa limitação possa ser oposta ao lesado. E o contrato de seguro exclui expressamente essa oponibilidade ao lesado.
O facto de a segurada também ter sido demandada na ação não obsta a tal conclusão, pois, como se disse e repete, a demanda direta da seguradora é permitida aos lesados no caso de contratos de seguro obrigatórios. Assim, no que ao pedido de condenação da seguradora respeita, não há qualquer razão para deduzir à mesma o valor da franquia, por ser inoponível às lesadas.
5. A data a partir da qual são devidos juros de mora pela ré seguradora.
Foram as rés condenadas no pagamento de juros sobre o montante indemnizatório desde a sua citação.
A apelante seguradora entende que apenas são devidos juros desde o trânsito em julgado da condenação pois, a seu ver, a indemnização fixada não estava liquidada no momento da interpelação, apesar de as autoras terem reclamado a condenação numa quantia certa.
Convoca a aplicação do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 4/2004 de 27-06-2002
[11]
.
Como é manifesto, as autoras liquidaram o pedido (que foi parcialmente procedente) com a petição inicial e a sentença não procedeu à atualização do montante indemnizatório nos termos do artigo 566.º do Código Civil que prevê que se tenha em conta, quando possível, a situação patrimonial do lesado data mais recente a que o tribunal possa atender a aquela que o mesmo teria se não fosse a lesão.
O referido Acórdão de Uniformização de Jurisprudência tratou, como nele se lê, da interpretação da segunda parte do número 3 do artigo 805.º do CC, na sua ligação sistemática com o artigo 566.º, número 2 do mesmo diploma. Ali se concluiu que quando esteja em causa a atribuição de uma indemnização atualizada, ou seja objeto de correção monetária, o artigo 805.º, número 3 no seu segmento final terá de obedecer a uma interpretação restritiva, na sua necessária articulação com o artigo 566.º, número 2. Considerou-se que quando o juiz calcule a indemnização em dinheiro de forma atualizada não pode, ao mesmo tempo, condenar o responsável em mora pelo pagamento dessa quantia atualizada desde a citação.
Ora não vemos onde encontra a apelante a suposta atualização do montante indemnizatório em sede de sentença.
Esta limitou a condenação aos valores que as autoras poderiam ter recebido do Fundo de Garantia Salarial. E calculou-os com base na liquidação feita na petição inicial e nos factos dados por provados. Esse cálculo aritmético não foi corrigido por qualquer consideração da situação económica mais atual das lesadas ou da que as mesmas teriam se não fosse a lesão. Não se teve em conta qualquer critério atualizador, como a inflação ou outro. Pelo que é manifestamente inaplicável a solução consagrada no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência citado pela recorrente, sendo de confirmar a decisão de condenação em juros desde a citação – interpelação judicial ao pagamento -, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 804.º, número 1, 805º, números 1 e 3 do Código Civil.
Por tudo o exposto, improcedem totalmente as apelações de ambas as rés.
*
6. A probabilidade de satisfação dos créditos das autoras por via do processo especial de insolvência da sua entidade patronal e de ação a intentar contra os sócios da mesma.
Também as autoras pretendem a revogação da sentença, com base na alteração de matéria de facto que já vimos improceder e da qual pretendiam retirar a conclusão de que caso tivesse sido instaurado processo especial de insolvência da sua entidade patronal pela primeira ré, dele resultaria a satisfação dos seus créditos.
Igual sucesso teria, no entender das autoras, a ação que a primeira ré podia e devia ter proposto contra os sócios da sua entidade patronal, pois dizem que o património deles foi
“largamente enriquecido, com suficiência para tutelar os créditos das autoras”.
A apreciação da chamada “
perda de chance
” ou “
perda de oportunidade
” como caminho na resolução de situações como a dos autos é hoje pacificamente admitida sendo por alguns autores tratada a partir da sua consideração como um dano, tendo para outros o seu enquadramento no âmbito da verificação do nexo causal.
Júlio Gomes
[12]
apresentou num primeiro momento
,
nas palavras de
Patrícia Costa
,
“uma visão crítica no que a esta teoria respeita”
. Considerava aquele autor que a operação de
“antecipação”
do dano era algo artificial. Admitindo que o reconhecimento do dano de perda de chance se insere numa tendência para a ampliação gradual do dano ressarcível, o mesmo colocava, a seu ver, um sem número de problemas, quer ao nível conceptual, quer ao nível prático. Em primeiro lugar, por não ser claro se o dano de perda de chance deve ser concebido como uma modalidade de dano emergente ou de lucro cessante
.
Em segundo lugar, mesmo para quem o considerasse autónomo na sua existência, o prejuízo da perda de chance não seria completamente autónomo na sua avaliação, e isto porque o prejuízo da perda de chance se insere num processo dinâmico que iria, eventualmente, desembocar num outro prejuízo definitivo.
Tal autor, contudo, “
Posteriormente, voltando a analisar a figura, sustentou que, quando a chance se tenha densificado e seja mais provável a sua realização do que a sua não verificação, se deverá considerar existir já um lucro cessante suficientemente certo para que a fixação do seu montante possa ser feita pelo tribunal recorrendo à equidade”.
Nas palavras de Carneiro da Frada
[13]
“Uma das formas de resolver este género de problemas é a de considerar a perda de oportunidade um dano em si, como antecipando o prejuízo relevante em relação ao dano final (apenas hipotético, v.g. da ausência de cura, da perda do concurso, do malograr das negociações por outros motivos), para cuja ocorrência se não pode asseverar um nexo causal suficiente”.
Não nos parece, salvo o respeito sempre devido pela opinião contrária, que seja este o caminho dogmaticamente mais correto.
A mera perda da oportunidade de propor uma ação (ou de recorrer, receber um tratamento, ou de concorrer a um concurso, etc.), não é a nosso ver um dano em si mesmo, mas um dos requisitos
do processo causal que pode concluir-se ter sido adequado à produção e outro dano (vg. a perda de possibilidade do ganho de ação, da cura de paciente, de vencimento de um concurso, etc.). Sendo para nós correta a asserção de que o dano é a lesão no direito juridicamente tutelado, o que se tutela por via da indemnização pela perda de chance, no caso da possibilidade de propor uma ação, não é o direito de a propor, mas perda da possibilidade de se vir a obter o seu vencimento.
[14]
Assim e por exemplo, se a ação estivesse, com grande probabilidade votada ao insucesso, a sua não instauração não conduz a qualquer dano.
Lembremos, a propósito, que apenas o dano previsível, ainda que futuro, é indemnizável não sendo de ressarcir danos eventuais ou hipotéticos.
Nas palavras de Patrícia Costa
[15]
,
“A doutrina da perda de chance propugna, em tese geral, a concessão de uma indemnização quando fique demonstrado, não o nexo causal entre o facto e o dano final, mas simplesmente que as probabilidades de obtenção de uma vantagem, ou de evitamento de um prejuízo, foram reais, sérias, consideráveis”.
Daí que a pedra de toque da decisão desta ação se situe, a nosso ver, ao nível do apuramento do nexo causal entre o facto ilícito e culposo – a não propositura do processo especial de insolvência da devedora ou de qualquer ação contra os seus sócios -, e o dano sofrido por estas – consistente no não recebimento das quantias de que eram credoras.
Ora o nosso legislador, nos artigos 483.º e 563.º do Código Civil consagrou a teoria da causalidade adequada. Duas afirmações podem enformar, contendo-a de forma cabal, esta teoria: a de que apenas são indemnizáveis os danos decorrentes do facto lesivo e a de que a indemnização deve ressarcir os danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.
Importa relembrar que, doutrinariamente, a causalidade poderia ter tido diferente tratamento. Poder-se-ia ter optado por uma visão meramente naturalística em que tudo o que sucedesse ao facto fosse considerado como tendo sido por ele causado ainda que do ponto de vista da adequação e da probabilidade não fosse de esperar tal consequência.
Todavia, o legislador exige, mais do que isso, que haja uma decorrência não meramente física ou natural, mas também normativa.
Antunes Varela
[16]
defendia que a formulação legal visou reagir contra a mais “
acanhada”
formulação do artigo 707º do Código de 1867 que restringia a indemnização aos danos necessariamente decorrentes do incumprimento contratual, tentando-se, com a adoção do advérbio “provavelmente” ensaiar maior maleabilidade ao conceito.
Ora, não podemos em face dos factos apurados afirmar que o alegado “
resultado danoso
” - o não recebimento pelas autoras da totalidade dos seus créditos laborais -, foi condicionado inevitável e necessariamente pela omissão da primeira ré. Ou, doutro modo, que este não teria ocorrido se não fosse essa sua conduta omissiva. Esta é, aliás, uma dificuldade presente em todos os processos em que esteja em causa a perda de chance, em que nunca é possível afirmar com toda a certeza qual seria a situação hipotética do lesado se não fosse a lesão.
Como expressamente referido na sentença recorrida o Supremo Tribunal de Justiça, em Acórdão de Uniformização de Jurisprudência de 5 de julho de 2021, decidiu que “
O dano da perda de chance processual, fundamento da obrigação de indemnizar, tem de ser consistente e sério, cabendo ao lesado o ónus da prova de tal consistência e seriedade”
[17]
Este acórdão tomou posição sobre algumas das divergências que a jurisprudência vinha revelando (e também a doutrina) quanto em ações destinadas a indemnização pela perda de chance, debruçando-se nomeadamente sobre o critério aferidor do nexo causal entre o dano e facto lesivo.
Poderemos afirmar que o dano invocado pelas autoras não teria
provavelmente
ocorrido se não fosse a omissão da primeira ré?
Salienta-se, em primeira linha, que obrigação da mesma, decorrente do contrato de mandato, é uma obrigação de meios e não de resultado e aqui importa, na lição acima sumariada de Antunes Varela sobre o critério para aferir do nexo causal, chamar o fim tutelado pelo contrato “
como um auxiliar precioso das dúvidas suscitadas”
. Não estava a primeira ré obrigada a alcançar o resultado pretendido pelas autoras, mas apenas a agir com a diligência necessária a que tal pudesse suceder.
Não é neste ponto, todavia, que as autoras/apelantes divergem do decidido em primeira instância (que afirmou a incúria da primeira ré na não propositura do processo especial de insolvência), mas sim na afirmação da probabilidade de que um comportamento adequado da ré GG– tempestiva propositura do processo especial de insolvência ou de ação contra os sócios da devedora -, poderia vir a evitar o dito dano consistente em não terem recebido a totalidade dos seus créditos laborais reconhecidos.
Contudo, e voltando a recorrer às palavras de Patrícia Costa, “
A perda de oportunidade genérica, imperfeita, simples ou comum, abaixo do limiar de seriedade da chance (…) não dá direito a qualquer reparação
”
[18]
.
Ora, face à exiguidade dos factos alegados e provados, afigura-se impossível a afirmação da probabilidade de sucesso das diligências omitidas.
Já acima se afirmou a propósito do conhecimento da impugnação da alínea D) dos factos não provados (que improcedeu), as autoras omitiram totalmente a alegação dos factos de que poderia decorrer a conclusão a que querem que este Tribunal chegue.
Apenas em sede de recurso vieram apelar às regras da experiência e da lógica para afirmar que é habitual os gerentes das sociedades insolventes venderem bens da empresa antes de a encerrarem, locupletando-se à custa dos credores. Só no recurso, também, alegaram que ocorreu venda de máquinas pela sua entidade patronal antes do encerramento da empresa e que dessa venda resultou valor que os sócios fizeram e que seria bastante à satisfação dos seus créditos. Nada disto foi atempadamente alegado na petição inicial.
Na falta de alegação e prova desses factos resulta que não se pode concluir que a instauração de processo especial de insolvência ou de ação/execução contra os sócios conduziria, com probabilidade, à cobrança dos créditos laborais das autoras.
Como salientado na sentença recorrida, é frequente que os processos especiais de insolvência ou processos executivos contra devedores terminem sem que tenha sido possível apreender qualquer património e sem a satisfação total ou parcial dos direitos dos credores.
Não pode afirmar-se, nem o afirmou ninguém nos autos, que o património da devedora e/ou dos seus sócios permitisse cumprir as obrigações da primeira para com as autoras.
Podemos apenas reconhecer que há uma aptidão, em abstrato, da conduta omissiva da primeira ré para provocar a impossibilidade de cobrança.
Tal não é, de todo, o mesmo que dizer que a sua conduta diligente evitaria a incobrabilidade dos créditos das autoras, pois nada nos autos indicia a possibilidade efetiva de cobrança.
Em conclusão, seria necessário demonstrar a probabilidade de obtenção de êxito de alguma dessas vias e essa demonstração era ónus das autoras,pois é facto constitutivo do seu direito, nos termos do artigo 342º, n.º 1 do Código Civil.
Pelo que improcede a pretensão das autoras/recorrentes no que a esta questão respeita.
*
7. O erro de cálculo da quantia indemnizatória.
Resta aferir se, como as mesmas alegam, o Tribunal
a quo
calculou indevidamente a sua indemnização na parte em que procedeu o pedido.
É a seguinte a fundamentação da sentença quanto ao cálculo da indemnização fixada:
“O que se pode ter como certo seria o pagamento pelo FGS. Mas este fundo não paga todos os créditos dos trabalhadores. Está limitado pelos valores previstos no art. 320º da Lei nº 35/2004, vigente em 2009:
“1 - Os créditos são pagos até ao montante equivalente a seis meses de retribuição, não podendo o montante desta exceder o triplo da retribuição mínima mensal garantida.”
Portanto, o FGS paga seis salários. Se o salário for superior ao triplo da retribuição mínima mensal garantida, será reduzido a esse montante.
Em 2008 a retribuição mínima mensal garantida era de 426,00€. Era essa a retribuição base das autoras.
Multiplicando a retribuição de 426,00€ por 6 meses conclui-se que conseguiriam obter do FGS 1.278,00€.
Pelo que as autoras receberiam essa quantia. E têm direito a receber como indemnização pelo cumprimento defeituoso do mandato
Mais do que isso não é previsível que as autoras conseguissem”.
É correta a aplicação feita do disposto no artigo 320º do Regulamento do Código do Trabalho vigente à data da cessação do contrato de trabalho das autoras (Lei 35/2004 de 29 de julho), de que as recorrentes não discordam.
É, contudo, manifesto o lapso de cálculo da sentença, já que o produto da multiplicação da retribuição mensal das autoras por seis meses é de 2.556,00 €, e não 1.278,00 €.
Pelo que revogará apenas parcialmente a sentença, passando as rés a ser condenadas a pagar esse valor a cada uma das autoras em vez dos fixados em sentença.
*
As custas dos recursos das rés serão a suportar pelas mesmas, já que neles decaíram, nos termos do artigo 527.º do Código de Processo Civil.
As custas do recurso das autoras serão a suportar por estas e pelas rés, nas proporções dos respetivos decaimentos, em face do mesmo preceito legal.
V – Decisão:
A) Julgam-se:
1. improcedentes os recursos das recorrentes GG e A... Company SE, Sucursal en España; e
2. parcialmente procedente o recurso das autoras,
B) Pelo que se condenam as rés a pagarem 2.556,00 € a cada uma das autoras AA, BB, CC, DD, EE e FF, acrescidos de juros de mora, à taxa legal, contados desde as suas citações.
C) Mantém-se o demais decidido.
D) Custas dos recursos das rés pelas recorrentes e do recurso das autoras por estas e pelas rés/recorridas, na proporção dos seus decaimentos.
Aveiro, 4 de junho de 2025
Ana Olívia Loureiro
Fátima Andrade
José Eusébio Almeida
_________________________________
[1]
Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina, sétima edição, páginas 334 e 335.
[2]
“17 – A Segurança Social, em 15/09/2017, notificou as autoras da intenção de indeferimento com fundamento na ausência de instauração de processo de insolvência da C... e na falta de instrução do requerimento com os documentos previstos no art. 324º da Lei 35/2004, de 29/7.”.
[3]
“1
- O Fundo efetua o pagamento dos créditos garantidos mediante requerimento do trabalhador, do qual constam, designadamente, a identificação do requerente e do respetivo empregador e a discriminação dos créditos objeto do pedido.
2 - O requerimento é instruído, consoante as situações, com os seguintes documentos:
a) Declaração ou cópia autenticada de documento comprovativo dos créditos reclamados pelo trabalhador, emitida pelo administrador de insolvência ou pelo administrador judicial provisório;
b) Declaração comprovativa da natureza e do montante dos créditos em dívida declarados no requerimento pelo trabalhador, quando o mesmo não seja parte constituída, emitida pelo empregador;
c) Declaração de igual teor, emitida pelo serviço com competência inspetiva do ministério responsável pela área do emprego, quando não seja possível obtenção dos documentos previstos nas alíneas anteriores. 3 - O requerimento é certificado pelo administrador da insolvência, pelo administrador judicial provisório, pelo empregador ou pelo serviço com competência inspetiva do ministério responsável pela área do emprego, consoante o caso, sendo a certificação feita:
a) Através de aposição de assinatura eletrónica; ou
b) Através de assinatura manuscrita no verso do documento.
4 - O requerimento é apresentado em qualquer serviço da segurança social ou em
www.seg-social.pt
, através de modelo aprovado por portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas do emprego e da segurança social.”.
[4]
Acórdão de 23 de setembro de 2015 disponível na seguinte hiperligação:
TC 408/15
.
[5]
Quanto a este na sentença recorrida afirma-se, a nosso ver com inteira razão, que o que “os
factos provados demonstram é que um processo de insolvência da C... teria grandes probabilidades de êxito. Pois, a sociedade confessa estar insolvente nas cartas enviadas em 19/6/2008. Além disso, não pagava às suas trabalhadoras. O que permitiria preencher o facto índice de insolvência previsto no art. 20º, 1, b), do CIRE.”.
[6]
Com o seguinte sumário, no que respeita à questão em apreço
: “I - O seguro de responsabilidade civil de advogado estabelecido no n.º 1 do art. 104.º do EOA é de natureza obrigatória. O elemento filológico de interpretação tirado do sentido das palavras que integram o texto descrito no n.º 1 do art. 104.º do EOA e também a “ratio” que superintendeu à redacção deste texto normativo, apontam no sentido da obrigatoriedade do seguro do advogado no exercício do seu cargo, mais precisamente que tem natureza imperativa o seguro de responsabilidade civil do advogado prescrita no seu estatuto.
II - O contrato de seguro de responsabilidade civil profissional, celebrado entre a ré/recorrente “D..., S.A” e a Ordem dos Advogados, garantindo a indemnização de prejuízos causados a terceiros pelos advogados com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados que exerçam actividade em prática individual ou societária, configura um contrato de seguro de grupo.
III - Tomando o que se dispõe no ponto 7. das condições particulares da apólice, a propósito do seu “âmbito temporal”, dele depreendemos em termos genéricos que, desde que participados após o início da vigência da presente apólice, estão abrangidos por este seguro todos os sinistros reclamados pela primeira vez contra o segurado ou contra o tomador do seguro.
IV - Contrapondo-o à apólice de ocorrência (para fins de indemnização o facto causador do dano ou prejuízo a terceiros deve ocorrer durante a vigência do contrato), podemos afirmar que estamos perante uma apólice de reclamações, também chamada “claims made” (“reclamação feita”), que condiciona o pagamento da indemnização à apresentação da queixa de terceiros durante o prazo de validade (vigência) do contrato e que possibilita a extensão da cobertura por um determinado período anterior ao início do contrato.”.
[7]
Em cujo sumário se pode ler: “
Dispondo o ponto 7 das Condições particulares da apólice deste contrato de seguro que : “O segurador assume a cobertura de responsabilidade civil do segurado por todos os sinistros reclamados pela primeira vez contra o segurado ou contra o tomador de seguro ocorridos na vigência de apólices anteriores, desde que participados após o início de vigência da presente apólice, sempre e quando as reclamações tenham fundamento em dolo, erro, omissão ou negligência profissional, cobertas pela presente apólice, e, ainda que tenham sido cometidos pelo segurado antes da data de efeito da entrada em vigor da presente apólice, e sem qualquer limitação”, estamos perante uma apólice de reclamação, também chamada “claims made”, segundo a qual o evento relevante para o acionamento do contrato durante a sua vigência, com vista ao pagamento de uma indemnização pela seguradora, é a reclamação e não o facto gerador do dano que está na sua base.”.
[8]
De que resulta nomeadamente o seguinte:
“A
previsão de uma delimitação temporal da cobertura atendendo à data das reclamações apresentadas, mormente, como foi o caso, contra o Segurado, durante o período de vigência do Seguro, não se pode confundir com a oportuna comunicação/participação à Seguradora dessas reclamações. Ainda que o Segurado não tivesse (como devia) comunicado à Ré, em 2009, a Reclamação apresentada contra ele, com a instauração do procedimento disciplinar que desencadeou o processo sinistral, não se pode a Ré prevalecer nos presentes autos, perante os Autores/terceiros lesados, dessa falta de oportuna participação do sinistro (cf. artigos 100.º e 101.º da LCS)”.
[9]
Com o seguinte sumário:
“I - O seguro de responsabilidade civil profissional dos advogados tem natureza obrigatória. II - A norma do artigo 101º nº 4 da Lei do Contrato de Seguro assume natureza imperativa. III - É como tal inoponível ao lesado/beneficiário as exceções de redução ou exclusão contratual fundadas em incumprimento do segurado, nomeadamente as denominadas “claim made”, ie, apólices de reclamação que delimitam temporalmente a cobertura, reportando-a não à data da verificação do sinistro, mas antes à data da sua reclamação.”.
[10]
Note-se que em resposta à contestação desta ré/recorrente já as autoras tinham vindo alegar que a mesma litigava de má-fé por ter transcrito apenas parte do teor da referida cláusula, omitindo o trecho em que se prevê a sua inoponibilidade aos lesados. Tal omissão foi considerada pelo Tribunal
a quo
censurável, mas sem uma gravidade que justificasse o sancionamento pedido. Deste trecho decisório não foi interposto recurso.
[11]
Disponível em
STJ AUJ 4/2002
e que uniformizou a jurisprudência nos seguintes termos: “
Sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do n.º 2 do artigo 566.º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigos 805.º, n.º 3 (interpretado restritivamente), e 806.º, n.º 1, também do Código Civil, a partir da decisão actualizadora, e não a partir da citação”.
[12]
Em Torno do Dano da Perda de Chance — Algumas Reflexões, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor António Castanheira Neves, Volume II, Studia Iuridica, Coimbra Editora, 2008,
apud
Patrícia Costa. Dano de perda de chance e a sua perspectiva no direito português, disponível em que foi objeto de reflexão atualizada m estudo disponível
online
em
https://julgar.pt/wp-content/uploads/2020/09/JULGAR42-05-PCC.pdf
.
[13]
Direito Civil, Responsabilidade Civil, O Método do Caso,
Almedina, página 104.
[14]
Diz Sinde Monteiro
in
Responsabilidade por Conselhos, Recomendações ou Informações, Almedina, 1989, página 297 que o “
carácter de dano indemnizável da perte d’une chance não é hoje seriamente contestado pela doutrina francesa e também entre nós nada parece opor-se à sua ressarcibilidade, respeitados que sejam os “garde-fous” colocados por aquela doutrina e jurisprudência. Não será noutros termos que teremos de raciocinar, por exemplo na hipótese em que um advogado omite a interposição de um recurso, fazendo perder ao seu cliente a possibilidade (chance) de vir a obter ganho de causa. Nem sequer é exacto que nestas hipóteses apenas haja direito a uma indemnização parcial; também aqui vale o princípio da indemnização integral, só que os juízes devem ter em conta tanto a existência como o grau da álea que afecta a realização da chance perdue”.
[15]
Op. cit.
[16]
Das Obrigações em Geral, Almedina, 7.ª edição, Vol. I, página 898.
[18]
Op cit.
página 164.
[17]
STJ AUJ 2/2022
|
TRP
|
https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/49a1baddf137f37380258cad003f0890?OpenDocument
|
1,736,985,600,000
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IMPROCEDENTE
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20595/18.1T8SNT-C.L2-2
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20595/18.1T8SNT-C.L2-2
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HIGINA CASTELO
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No âmbito de um incidente de habilitação de herdeiros de co-executado falecido, promovido pela exequente, o facto de um co-executado (requerido no incidente) afirmar que o falecido teria, além dos herdeiros já chamados aos autos, dois outros, de nomes «G» e «H», sem indicar qualquer elemento de prova de que esses nomes correspondam sequer a pessoas, muito menos a pessoas herdeiras do falecido, não gera para o tribunal, nem para a exequente, qualquer dever de apuramento da existência das mesmas eventuais pessoas, seu paradeiro e qualidade de herdeiras.
|
[
"HABILITAÇÃO DE HERDEIROS",
"INQUISITÓRIO"
] |
Acordam os abaixo identificados juízes do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. Relatório
Em 8 de janeiro de 2020, por apenso à execução sumária movida contra «B», «C», «D», e «E», todos com os sinais dos autos, e na sequência do falecimento do último, veio a exequente
Caixa Geral de Depósitos, S.A.
deduzir o presente incidente de habilitação de herdeiros contra
«B»
,
«C»
,
«D»
e
Interessados incertos
.
Para tanto, alegou que:
- O Executado «E» faleceu em … de Junho de 2017, no estado civil de casado com a também executada «D», conforme Certidão do Assento de Óbito n.º …, que junta como doc. 1;
- Das pesquisas que efetuou, não obteve conhecimento de processo de inventário, nem de habilitação de herdeiros;
- Também não apurou que o falecido tenha deixado testamento ou qualquer outra disposição de última vontade, nem que o óbito tenha sido participado à Autoridade Tributária para efeitos de imposto sucessório;
- Não logrou obter conhecimento de que o falecido tenha deixado outros herdeiros, além da co-executada, cônjuge do
de cujus
.
Terminou pedindo que o incidente seja julgado procedente, por provado, sendo previamente os interessados certos notificados e os interessados incertos citados por éditos para contestarem, querendo.
Em 28/01/2020, os requeridos/executados «B» e «C» vieram dar conhecimento da existência do herdeiro
«F», filho do falecido e da co-executada «D», juntando o respetivo assento de nascimento.
A requerente CGD requereu a intervenção do identificado
«F»
, o qual acabou por ser editalmente citado, mostrando-se cumprido o disposto no artigo 21.º do CPC.
Por requerimento de 09/09/2022, o executado «B» veio indicar «
que ao que se sabe o falecido «E» não deixou apenas um filho, pelo que, deve promover-se efetivamente junto de quem considerar, o facto da existência de filhos deixados pelo falecido, que devem ter intervenção direta nos presentes autos
», sic. Não juntou qualquer documento ou outro meio de prova, nem indicou qualquer fonte para a afirmação feita.
A requerente CGD, por seu turno, por requerimento de 11/11/2022, pugnou pelo julgamento do incidente de habilitação.
Por despacho de 10/01/2023, ordenou-se a citação «F», na apurada morada … Falcons Mead, …, Reino Unido, e a notificação do executado «B» para, em 10 dias, identificar os alegados “outros filhos” do executado falecido «E», além do conhecido «F».
Em 23/02/2023, veio alegar que o falecido teria outros dois filhos –
«G» e «H» – cujas paradeiros ou outros elementos desconhece. Uma vez mais, não junta qualquer documento ou outro meio de prova, nem indica qualquer fonte para a afirmação feita.
Por despacho de 01/03/2023 foi decidido: «Considerando que o requerido «B» veio informar a existência de mais dois filhos do executado falecido (…) sem, contudo, esclarecer (por desconhecimento) a respetiva residência, assim como não resulta qualquer prova documental do alegado/invocado grau de parentesco,
deverão os autos prosseguir relativamente aos demais requeridos
, sem prejuízo de, como refere a exequente/requerente, a requerida «D» vir, oportunamente, informar as residências daqueles, bem como juntar os documentos comprovativos da relação de parentesco dos mesmos com o executado falecido».
Em 06/03/2023, «B» veio requerer a notificação de «D» na morada que lhe é conhecida, para que esta indique o nome dos herdeiros, seus filhos, e das respetivas moradas.
Por despacho de 15/03/2023, o requerido foi indeferido, uma vez que a executada «D» nunca respondeu a notificações, mantendo-se o anterior despacho.
O executado «B» interpôs recurso dos dois despachos (de 1 e de 15 de março).
A apelação subiu imediatamente.
Por despacho desta Relação, de 12/06/2023, o recurso autónomo e imediato não foi admitido.
Regressados os autos à primeira instância, em 21/11/2023, a CGD veio, uma vez mais, pugnar pelo julgamento do incidente.
Por despacho de 12/01/2024, considerando o tempo decorrido desde a remessa da carta de citação do requerido «F» (11.01.2023), determinada por despacho de 10.01.2023, não tendo sido possível obter confirmação da respetiva e efetiva entrega, foi determinada a repetição do ato de citação relativamente àquele.
Em 22/01/2024 foi recebido um email de alguém que dizia ter recebido já na sua morada duas cartas dirigidas a «F», mas que ele não residiria ali, nem a declarante sabia onde residiria.
Veio, então, a CGD requerer a citação edital do requerido «F», o que foi deferido, após consultas às bases de dados e frustração de citação pessoal.
Por requerimento de 01/02/2024, o requerido «B» opôs-se à dita citação edital por, em seu entende, a mesma apenas ser viável (n.º 4 do artigo 239º do CPC) quando tiver sido conhecida alguma residência em Portugal.
Por despacho de 07/05/2024, foi mantido o despacho de 31/01/2024, entendendo-se estar esgotado o poder jurisdicional relativo à questão da ordenada citação edital do requerido; nesse despacho determinou-se: «caso não venha a ser encontrada qualquer morada em território português, proceder à citação edital por meio da publicação de anúncio, nos termos do n.º 1 do artigo 240.º do Código de Processo Civil».
Como acima referido, o habilitando «F» foi editalmente citado, mostra-se representado pelo Ministério Público, e não ofereceu oposição.
Em 13/09/2024, foi proferida decisão que,
c
onsiderando a falta de contestação e o teor dos documentos juntos – que provam a qualidade de herdeiros do executado –, habilitou «D» e «F», para prosseguirem os termos da demanda executiva.
O requerido «B» não se conformou e recorreu, concluindo as suas alegações de recurso da seguinte forma:
«A. Sobre as decisões com as referências: 142967244, notificada a 02/03/2023; 143284748, notificada a 16/03/2023
1. É estranho e inverosímil, como a CGD que conta com, certamente, representantes, filiais, delegações, e seguramente juristas, no Reino Unido, e certamente, com uma relação privilegiada com Consulados e Embaixadas, tendo em atenção inclusive, a sua natureza jurídica, não consiga, considere ou sequer promova qualquer diligência no sentido de averiguar dos legítimos herdeiros do executado falecido;
2. Os meios e a disponibilidade ao alcance da CGD não são, como naturalmente se deve reconhecer, os mesmos que o particular tem ao seu dispor, mormente quando reside em Portugal;
3. Conclui o D. Julgador pelo prosseguimento dos autos, em face da falta de indicação do cônjuge do executado falecido, quer perante a inoperacionalidade e falta de colaboração da CGD, promovendo e decidindo o prosseguimento dos autos, quanto aos demais requeridos;
4. O executado interveniente no presente processo de habilitação de herdeiros, não concordando, com todo o respeito, considera que os autos não podem prosseguir, sem se esclarecer cabalmente da existência de outros herdeiros que obviamente terão interesse direto na presente ação e se de facto, saber do seu paradeiro, permitindo-lhes a sua intervenção no presente processo;
5. O incidente de habilitação de herdeiros previsto nos artigos 351º a 357º do CPC, por incidente da instância, refere que a promoção da Habilitação deve ser promovida contra as partes sobrevivas e contra os sucessores do falecido que não forem requerentes, ordenando-se a respetiva citação para contestarem a habilitação em prol da continuidade do processo executivo;
6. O prosseguimento da demanda em termos de habilitação dos sucessores da parte falecida, pode ser promovida por qualquer das partes. Pelo que, a passividade da exequente, não pode ser reconhecida e premiada pelo Tribunal, quando o interessado direto CGD - tem ao seu alcance meios suficientes e seguramente “fartos”, para conseguir saber e averiguar de todos os herdeiros e sucessores do falecido;
7. Não pode é – com respeito – decidir-se pelo prosseguimento dos autos, enquanto não forem esgotadas todas as possibilidades indicando as diligências efetuadas para promover a intervenção de todos os interessados/executados/habilitados;
8. Pelo que, entendemos o prosseguimento dos autos sem o apuramento dos herdeiros da parte falecida, premiando a negligente inercia processual do exequente, CGD, não pode, na nossa opinião, estra de harmonia com o indicado no artigo 351º do CPC, em face do prosseguimento dos autos de habilitação;
9. O D. Julgador deve garantir, - o que com respeito, não fez - a recolha de todos os factos essenciais (artigo 5º do CPC), e registar o princípio da colaboração que na nossa opinião não tem existido por parte da exequente CGD, inclusive em face do princípio da autorresponsabilização das partes nos termos do n.º 1 do artigo 6º do CPC,
10. A Instância pela Habilitação, suspende-se nos termos dos artigos 269º e 270º do CPC, em face da inutilidade da continuação da Instância até se apurar da existência de interessados diretos na demanda, e – respeitando esta orientação, o que com respeito, não foi devidamente interpretado – está ao alcance do Exequente/interessado, obter todas as informações necessárias, devendo trazê-las ao processo, neste incidente de habilitação;
11. O processo incidental de Habilitação, previsto no artigo 351º e seguintes do CPC, é essencial e determina a intervenção das partes, o que pode condicionar os atos processuais futuros, o que se pretende evitar.
Sendo assim, entende o executado, ora recorrente, no âmbito do presente apenso que não pode ordenar-se o prosseguimento dos autos sem a total e cabal averiguação, oficiosa ou a requerimento dos intervenientes, em especial do exequente que tem meios de promover no Reino Unido todas as diligências suficientes para informar e colaborar com o Tribunal.
Daí que se deva, com respeito, revogar os D. Despachos com as referências: 142967244 e 143284748, datados respetivamente de 02/03/2023 e 16/03/2023, afim de possibilitar, ordenando à CGD, que promova o que entender e realize diligências com vista à perceção integral de todos os herdeiros/sucessores/interessados, em face do falecimento de «E», com todas as consequência legais daí derivadas e por efeito e natureza do incidente de Habilitação de Herdeiros, não ordenando o prosseguimento dos autos, suspendendo o processo executivo - por dependência do incidente - tendo por atenção que esta decisão reveste-se de essencialidade e utilidade, e daí o recurso.
Caso, por efeito, do recurso sobre os D. Despachos referidos não mereçam provimento, o que implica, conforme se promove, que seja anulado todo o processado após a prolação desses D. Despachos decisórios, sempre se pretende a apreciação da Douta Sentença, nos seguintes termos:
B. DA SENTENÇA
12. O incidente de habilitação foi promovido pela requerente CGD, competindo a esta reunir todos os elementos que considere conveniente, reconhecendo ou afastando todos os possíveis sucessores. A CGD por Instituição de carácter público, tem o dever, obrigação e meios próprios para, no Reino Unido, obter todos os dados que sejam suficientemente aptos e indicados para obter as informações pretendidas;
13. Como é óbvio, não têm os recorrentes ao seu dispor os meios para obter outros elementos, devendo ser-lhes reconhecido uma colaboração com este Tribunal. Ao contrário, a CGD nada fez nos presentes autos, podendo e devendo tê-lo feito;
14. Ao contrário com respeito do que consta do nº 4 da Douta Sentença não se consegue compreender, entender, nem tal foi levado aos autos os comprovativos das “exaustivas pesquisas” levadas a cabo pela requerente, cit.
“4.º Apesar das exaustivas pesquisas levadas a cabo pela Requerente, apurou-se apenas como herdeira a requerida identificada em C), nem o óbito foi participado à Autoridade Tributária para efeitos de imposto sucessório”.
Que pesquisa foram estas? Como foram realizadas? Por quem? Foram pedidos documentos? Foram requisitadas informações?
15. Não podem os presentes autos de incidente de habilitação de herdeiros, da necessidade da a intervenção e legitimidade dos herdeiros por pressuposto essencial da legitimidade e continuidade da instância, e do presente incidente, por dependência do processo executivo;
16. A
Douta Sentença, desconhecendo os atos (?) que efetivamente foram praticados pela requerente do Incidente (exequente), que durante processo sempre lhe foram exigíveis, não pode por ora, e com respeito tendo indicado os nomes de outros herdeiros, nomeadamente «G» e «H», decidir como se desconhecesse da sua existência. Como se referiu a CGD tem ao seu alcance meios bastantes e suficientes para no Reino Unido saber da existência, por paradeiro de todos os herdeiros do falecido;
17. Não esgotou, com respeito, o Exmo. Julgador e tão pouco a requerente do Incidente, e exequente, ora recorrida todos os meios ao seu alcance para efetuar a devida substituição dos executados por habilitação no presente processo
18. Assiste pois no nosso entender o princípio da auto responsabilização das partes, (estreitamente ligado ao princípio da preclusão) que compete – prime – à parte que promoveu impulso processual.
Nestes termos, o Douto Tribunal ao proferir a Douta Sentença de que ora se recorre no presente incidente, afetou irremediavelmente o que consta do artigo 351º do CPC, ao não esgotar toda a intervenção que deveria ter tido, pondo em causa o que consta nas regras da legitimidade (artigo 30º e segs. do CPC), por substituição, aquando do falecimento, imprescindível da parte, condicionando a continuidade da lide.
Há, pois, uma notória no nosso entender - afetação irremediável do que consta dos artigos; 30ª e seguintes do CPC, em face da legitimidade passiva, e 351º, por afetação do procedimento do incidente de habilitação. Não foram esgotadas – tão pouco reveladas – todas as diligências para considerar a existência de outros herdeiros, face à informação dos nomes que constam do processo incidental, em face do nº 3 do artigo 270º, 1 e 2 do artigo 275º do CPC,
De facto, “o juiz deve garantir a recolha de todos os factos essenciais (art. 5 do
CPC) que se mostrem com relevância jurídica, acautelando anulações de decisões
sob pena da aplicabilidade da invalidade da decisão nos termos da alínea c) do nº 2 do artigo 662ª do CPC,
Revogando-se a D. Sentença e simultaneamente, Promovendo e ordenando que o Requente do incidente e ora exequente, revele aos autos as concretas e documentadas diligências que efetuou, sobre o paradeiro de «G» e «H», sendo que, a não terem sido realizadas, bem como atentas as informações prestadas aos autos, nos termos legais, oficiosamente promover diligências, para afastar a possibilidade de invalidade do processado, por efeito da necessidade imperiosa de reconhecer a intervenção no processo executivo de todas as partes essenciais ao processo, e que são, por pressuposto, imprescindíveis.»
A CGD apresentou resposta, pronunciando-se pela confirmação da sentença recorrida.
Foram colhidos os vistos e nada obsta ao conhecimento do mérito.
Objeto do recurso
Sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, são as conclusões das alegações de recurso que delimitam o âmbito da apelação (artigos 635.º, 637.º, n.º 2, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
Tendo em conta o teor daquelas, a única questão que se coloca é a de saber se a CGD e/ou o Tribunal deviam fazer diligências (quais, quantas, até quando?) no sentido de apurar se dois nomes que o recorrente indicou nos autos («G» e «H») correspondem a filhos do falecido.
II. Fundamentação de facto
Os factos relevantes são os que constam do relatório.
III. Apreciação do mérito do recurso
Na pendência de processo executivo faleceu um dos executados, «E». Estamos em presença de um caso de habilitação incidental por sucessão.
Nestas circunstância, a lei determina a suspensão dos autos até que se habilitem os sucessores da parte falecida:
- A instância suspende-se quando falecer alguma das partes (
al. a) do
n.º 1 do artigo 269.º do CPC, aplicável ao processo executivo, com as necessárias adaptações, por força do disposto no artigo 551.º do mesmo Código);
- Junto ao processo documento que prove o falecimento de qualquer das partes, suspende-se imediatamente a instância, salvo se já tiver começado a audiência de discussão oral ou se o processo já estiver inscrito em tabela para julgamento, casos em que a instância só se suspende depois de proferida a sentença ou o acórdão (n.º 1 do artigo 270.º do CPC, cuja aplicação ao processo executivo há de fazer-se com as necessárias adaptações, por força do disposto no artigo 551.º do mesmo Código);
- Tratando-se de instância executiva, as necessárias adaptações passam pela interpretação restritiva dos artigos 269.º, n.º 1, al. a), e 270.º, n.º 1, do CPC, entendendo-se que a suspensão da instância por óbito de alguma das partes aí prevista, após a junção ao processo de documento que o comprove, não se estende aos co-executados que podiam ter sido
ab initio
demandados individualmente, sem estarem acompanhados do falecido executado – neste sentido o Ac. TRL de 26/01/2022, proc. 28525/10.2T2SNT.L1-2 (Laurinda Gemas) e outros aí citados;
- A suspensão por falecimento de parte processual cessa quando for notificada a decisão que considere habilitado o sucessor da pessoa falecida ou extinta (al. a) do n.º 1 do artigo 276.º do CPC).
Tal habilitação segue os trâmites do incidente com o mesmo nome, regulado nos artigos 351.º a 357.º do CPC.
A habilitação dos sucessores da parte falecida na pendência da causa, para com eles prosseguirem os termos da demanda, deve ser promovida contra
as partes sobrevivas
e contra os
sucessores do falecido
que não forem requerentes (artigo 351.º, n.º 1, do CPC).
A requerente, CGD, assim o fez, tendo, inicialmente, demandado as partes sobrevivas, uma das quais também na qualidade de herdeira do
de cujos
e, desconhecendo outros herdeiros, também contra incertos.
No decurso do incidente, porém, teve conhecimento da existência de outro herdeiro, «F», filho do falecido, pelo que promoveu a intervenção do mesmo.
Apesar dos cinco anos de pendência do incidente e das diligências realizadas, não há notícia da existência de outros sucessores, ao contrário do pretendido pelo recorrente. O recurso assenta apenas no entendimento do recorrente segundo o qual, tendo indicado dois nomes de supostos herdeiros, mas sem qualquer princípio de prova de que existam pessoas com esses nomes e filhas do falecido, o tribunal e/ou a exequente teriam de os procurar; e que o processo não poderia ter fim enquanto não fossem encontrados. Não assiste razão ao recorrente.
Tendo falecido uma das partes na pendência da causa (qualquer causa, incluindo executiva, como no caso presente), há que habilitar os seus herdeiros para, no seu lugar, prosseguirem a demanda. A habilitação de que falamos «visa o prosseguimento da lide com os habilitados, e não conferir-lhes a titularidade da relação material controvertida em causa» (Salvador da Costa,
Incidentes da Instância
, 8.ª ed., Almedina, 2016, p. 204). Trata-se de apurar quem tem legitimidade para prosseguir a lide no lugar da parte falecida.
A CGD, exequente e requerente neste incidente de habilitação de herdeiros, é a principal interessada no seu decurso célere (e já lá vão cinco anos apenas na tramitação deste incidente de habilitação) e na efetiva presença na demanda dos sucessores do falecido executado.
Não é crível, porque não é lógico na economia do pleito, que a CGD saiba ou pudesse saber da existência de outros sucessores a habilitar e não os indicasse.
Conhecimento privilegiado da eventual existência de outros sucessores têm os habilitandos «D» e «F», mas nada disseram. Conhecimento privilegiado tem também o ora recorrente, executado «B», que foi até quem trouxe aos autos o conhecimento da existência do habilitando «F», juntando o respetivo assento de nascimento.
Apesar do acesso que o executado e requerido «B» tem à informação, pelas relações que tem com a executada «D», o dito executado e requerido «B» veio dizer nos autos dois nomes que, segundo ele, teriam chegado ao seu conhecimento, sem dizer como, sem indicar qualquer fonte, como sendo filhos do falecido. Sem indicar, repetimos, qualquer dado que possa identificar pessoas a quem correspondam os nomes indicados, se é que essas pessoas existem e, na positiva, se é que são filhas do falecido.
Este tipo de atuação e litigância surtiu num indevido e custoso, para a contraparte e para o Estado, protelar dos autos.
Não há no processo qualquer prova, ainda que indiciária, da existência de outros sucessores da pare falecida.
O recurso assenta apenas em juízos opinativos, no sentido de que a requerente teria de continuar indefinidamente à procura de outros sucessores, sem que haja indícios de que existam. Tal opinião não tem respaldo na lei.
Nos autos existe o conhecimento de dois sucessores do falecido executado «E»:
- «D», cônjuge; e
- «F», filho.
De ambos, existe nos autos documento autêntico necessário à prova da sua existência e parentesco.
Nenhuma das partes requereu outras provas.
Nenhum dos requeridos deduziu oposição, embora o requerido «F» tenha sido editalmente citado, pelo que não houve confissão ficta da sua parte.
Perante a prova autêntica de que os requeridos «D» e «F» são, respetivamente, viúva e filho do falecido, são estes que devem ser habilitados para prosseguir na execução no lugar do falecido, como foram na sentença objeto de recurso.
IV. Decisão
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando as decisões objeto de recurso.
Custas pelo recorrente.
Lisboa, 16/01/2025
Higina Castelo
Pedro Martins
Laurinda Gemas
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TRL
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https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/8ba846dc4e2133e380258c23004e590e?OpenDocument
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1,738,022,400,000
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REVOGADA EM PARTE
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2031/24.6T8STS-D.P1
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2031/24.6T8STS-D.P1
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JOÃO RAMOS LOPES
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I - O apuramento do montante razoavelmente necessário ao sustento digno do devedor (art. 239º, nº 3, b) i) do CIRE) é determinado pela valorização casuística das concretas e peculiares necessidades do devedor, actuando a cláusula do razoável e o princípio da proibição do excesso, a ideia de justa medida e de proporção.
II - O que está em causa na fixação do rendimento indisponível é garantir aos insolventes o mínimo necessário à condigna existência, ou seja, o necessário a solver as despesas razoáveis para alcançar tal desiderato – não se trata tanto de lhes excluir a possibilidade de realizar despesas que possam ser entendidas como supérfluas ou excessivas em atenção ao seu actual estado de insolvência nem de os afastar de um trem de vida que antes gozavam, mas antes ponderar, em conformidade com a cláusula do razoável e com a proibição do excesso, do grau de compressão do nível de vida (e despesas) que se lhes exige (qual correspectivo da exoneração do passivo restante) para se conformarem ao seu estatuto de insolventes, para tanto ponderando as necessidades (e correspondentes despesas) que a sua concreta situação, razoavelmente, impõe satisfazer para que não fiquem privados do mínimo necessário à condigna existência (e sendo certo que aos insolventes cabe fazer escolhas e ajustar despesas e encargos à nova realidade).
III - No cálculo do valor dos rendimentos a ceder ao fiduciário deve observar-se referência anual.
|
[
"EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE",
"RENDIMENTO INDISPONÍVEL DO INSOLVENTE",
"RENDIMENTO ESTRITAMENTE NECESSÁRIO PARA O SUSTENTO DO DEVEDOR",
"RENDIMENTO CEDIDO AO FIDUCIÁRIO",
"CÁLCULO",
"SUBSÍDIO DE FÉRIAS",
"SUBSÍDIO DE NATAL"
] |
Apelação nº 2031/24.6T8STS-D.P1
Relator: João Ramos Lopes
Adjuntos: Raquel Lima
Alberto Taveira (vencido)
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
RELATÓRIO
Apelantes (insolventes): AA e BB.
Juízo de comércio de Vila Nova de Gaia (lugar de provimento de Juiz 2) – T. J. da Comarca do Porto.
*
Na petição com que se apresentaram à insolvência e requereram lhes fosse concedida a exoneração do passivo restante, solicitando lhes fosse fixado rendimento indisponível em montante ‘não inferior a quatro salários mínimos, de modo a poder assegurar o mínimo da subsistência do casal’ requerente, alegaram os devedores, AA e BB (ele nascido em ../../1942 e nascida ela em ../../1947), além do mais e no que releva à apreciação da presente apelação, terem como rendimentos as respectivas pensões de reforma (1.300,0€ o requerente varão e 2.800,00€ a requerente mulher), viver sozinhos em habitação em cuja renda mensal despendem 500,00€, gastando cerca de 460€ mensais em telefone, televisão, água e saneamento, gás, electricidade e empregada de limpeza, estando afectados de maleitas e patologias várias que lhes acarretam graves limitações à actividade diária (sendo por isso forçados a contratar empregada de limpeza que realize actividades que os mesmos não conseguem desempenhar), necessitando de medicação (no que despendem cerca de 70€ mensais), para lá de lhes terem sido prescritos, pelo médico dentista, tratamentos dentários que ascendem a milhares de euros (e para os quais não têm comparticipação de qualquer entidade), para os quais solicitaram orçamento/plano de pagamento faseado, também necessitando de óculos (prescritos pelo oftalmologista) que demandam revisão anual e, ainda, necessitar a requerente mulher de aparelho auditivo no que despende, a cada triénio, a quantia de 4.000,00€.
Declarada a insolvência dos devedores, foi proferido despacho que admitiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante e fixou o rendimento mensal indisponível ‘
em 1 salário mínimo nacional e ½ por cada insolvente
’ e ‘
em 3 salários mínimos nacionais o rendimento indisponível do casal, montante que se considera ser o necessário ao seu sustento digno
’, consignando terem os devedores a obrigação de entregar ao fiduciário, em cada ano do período de cessão, os montantes que recebam e excedam 12 vezes o valor fixado.
Apelam os insolventes, pretendendo a revogação de tal decisão e substituição por outra que i) fixe o rendimento indisponível do casal em quatro salários mínimos e ii) determine que o valor do rendimento indisponível seja encontrado tendo em conta o valor mensal do Rendimento Mínimo Garantido Anual, extraindo das alegações as seguintes conclusões:
I. No apuro dos factos essenciais para o despacho aqui em apreço, o Tribunal recorrido não tomou em conta as despesas médicas que os Recorrentes apresentaram com o seu requerimento inicial e que elencaram nos itens 43.º a 53.º do mesmo.
II. Como tal, ponderados os documentos 10 a 13 juntos com o requerimento inicial, deve ser dado como provado o seguinte:
a. A cada um dos Requerentes foi prescrito, pelo médico dentista de cada um, tratamentos dentários, o da Requerente mulher orçado em €10.500,00 e do Requerente marido em €18.850,00
b. Ambos os Requerentes usam óculos, prescritos pelo oftalmologista, os quais anualmente necessitam de revisão
c. A Requerente mulher necessita também da ajuda de um aparelho auditivo, no que despende cerca de €4.500,00.
III. Tal como tem sido entendido pela mais recente jurisprudência de vários Tribunais da Relação, o rendimento correspondente ao antigo salário mínimo, agora retribuição mínima mensal garantida, não deve ser achado assim, mas antes multiplicando o valor mensal considerado para cada ano por 14 meses e dividindo esse valor pelos 12 meses do ano, em particular os Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, Acórdão de 27 de fevereiro de 2018, processo 1809/17.1T8BRR.L1-7, do Tribunal da Relação do Porto, Acórdão de 15 de junho de 2020, processo 1719/19.8T8AMT.P1 e do Tribunal da Relação do Porto, Acórdão de 22 de maio de 2019, processo 1756/16.4T8STS-D.P1
IV. O “sustento minimamente digno” é uma decorrência do princípio da dignidade da pessoa humana, como resulta do artigo 1.º da Constituição, na sua dimensão de preservação do mínimo de subsistência condigna, que será “o mínimo dos mínimos” para se sobreviver.
V. Não têm os Recorrentes dúvida que uma decisão justa no que tange à fixação dos seus rendimentos indisponíveis será a que fixar o seu rendimento tendo em conta o valor mensal do Rendimento Mínimo Garantido Anual.
VI. Deflui da douta sentença recorrida que a mesma assenta numa interpretação que sublinha, na fixação do valor indisponível do casal, a punição dos Insolventes pela situação de insolvência em que se encontram.
VII. Tal como refere o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Acórdão de 2 de Fevereiro de 2016, as interpretações punitivas da lei correspondem, quantas vezes, a preconceitos e, num domínio em que o conceito de dignidade e a ideia de subsistência são primordiais, o padrão a adoptar deve ser aquele que, sem descurar os direitos dos credores, não afecte o devedor, remetendo-o aos limites de uma sobrevivência penosa, socialmente indigna, sob pena de a proclamada intenção de o recuperar economicamente constituir uma miragem.
VIII. A insolvência dos Recorrentes não ficou a dever-se a culpa sua, mas antes ao insucesso de sociedades das quais os Recorrentes se constituíram fiadores, na sequência de uma crise mundial que arrastou consigo todo o tipo de sociedades, até mesmo bancos.
IX. No caso dos autos, a penalização dos Recorrentes por força da fixação de um montante indisponível muito baixo, aparece como uma decisão injusta para quem caiu numa situação de insolvência por motivos exógenos à sua vontade.
X. Sempre com o devido respeito, é de recusar tal leitura e aplicação punitiva na fixação do rendimento indisponível dos devedores.
XI. Os Recorrentes são ambos reformados, um está com 82 anos e o outro com 77 anos, e para além das despesas com a sua residência têm que prover a avultadas despesas com a sua saúde, normais para quem tem a sua idade.
XII. O valor que foi fixado pelo Tribunal recorrido, salvo o devido respeito, é insuficiente para assegurar as despesas com o dia a dia dos Requerentes, com a sua residência, os gastos com electricidade, água, gás, telecomunicações, alimentação e vestuário. Aos quais devem ser somados os custos com os medicamentos, com as consultas médicas e com os tratamentos, nomeadamente dentários, auditivos e oftalmológicos, de que os insolventes necessitam.
XIII. Considerando todas essas despesas, os 3 salários mínimos nacionais para o casal são manifestamente insuficientes para que estes mantenham uma vida condigna no final da sua vida.
XIV. Tendo em atenção principalmente os custos destes com a sua saúde e tendo em conta que estes custos provavelmente aumentarão, atenda a idade de cada um deles, deve o rendimento indisponível dos Recorrentes ser fixado em 4 salários mínimos, calculados estes como 1/12 do valor anual garantido, correspondente a 14 prestações do salário mínimo nacional.
Não foram apresentadas contra-alegações.
*
Colhidos os vistos, cumpre, decidir.
*
Objecto do recurso
Considerando a decisão recorrida e as conclusões formuladas nas alegações, o objecto do recurso consiste em apreciar:
- da impugnação da decisão sobre a matéria de facto,
- da justeza do montante fixado aos devedores apelantes para o seu sustento minimamente digno, nos termos do art. 239º, nº 3, b), subalínea i), do CIRE, a excluir dos rendimentos a entregar ao fiduciário nomeado (foi fixado o montante correspondente a uma vez e meia o salário mínimo nacional para cada insolvente e em três vezes o salário mínimo nacional o rendimento indisponível do casal, pretendendo os insolventes que seja fixado o rendimento indisponível do casal em quatro salários mínimos),
- da referência temporal a utilizar no apuramento do rendimento indisponível -referência puramente mensal, ponderando singelamente os doze meses do ano, como determinado na decisão apelada ou antes referência anual, dividindo o rendimento anual globalmente auferido pelos doze meses do ano, como pretendido pelos apelantes.
*
FUNDAMENTAÇÃO
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Fundamentação de facto
Na decisão apelada fez-se constar como relevante, a propósito da questão, a seguinte matéria de facto:
1. Os requerentes apresentaram-se à insolvência por petição inicial de 3.7.2024 e por sentença de 23.7.2024 veio a mesma a ser declarada.
2. Na indicada petição inicial, os requerentes deduziram pedido de exoneração do passivo restante, declarando o disposto no art. 236º, n.º 3 do CIRE, apresentando tal declaração, por si assinada, em 19.7.2024.
3. Os requerentes apresentam um passivo reconhecido provisoriamente no montante de 8.143.382,68€.
4. Foram apreendidos para a massa insolvente bens, encontrando-se em curso a liquidação do ativo.
5. Os requerentes são casados entre si no regime de comunhão de bens adquiridos.
6. O agregado familiar dos requerentes é integrado pelos próprios.
7. Os requerentes alegam (mas não provam) residir em casa na qual despendem 500€, não esclarecendo a que título, e ainda 460€, em água, gás, eletricidade, telefone e televisão, empregada de limpeza.
8. Os requerentes alegam despender ainda cerca de 70€ / mês em medicação e carecer de consultas regulares em diversas especialidades médicas, por serem pessoas de idade avançada e com diversas patologias.
9. Os requerentes encontram-se reformados, auferindo pensões mensais nos valores base de 1338,00€ e 2962,00€.
10. É com as pensões que auferem que os requerentes custeiam as despesas necessárias à sua sobrevivência.
11. Os requerentes não beneficiaram da exoneração do passivo restante nos 10 anos anteriores à data do início do processo de insolvência.
12. Os requerentes não forneceram, por escrito, nos três anos anteriores à data do início do processo de insolvência, com dolo ou culpa grave, informações falsas ou incompletas sobre as suas circunstâncias económicas com vista à obtenção de crédito ou de subsídios de instituições públicas ou a fim de evitar pagamentos a instituições dessa natureza.
13. Não constam do processo nem foram fornecidos até ao momento elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa dos devedores na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do art. 186º.
14. Não resulta dos autos nem foi alegado e provado que os devedores, com dolo ou culpa grave, violaram os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultam do CIRE, no decurso deste processo.
15. Os insolventes não têm antecedentes criminais registados no seu CRC relativos a crimes previstos e punidos nos artigos 227º a 229º do Código Penal nos 10 anos anteriores à data da entrada em juízo do pedido de declaração da insolvência ou posteriormente a esta data.
*
Fundamentação de direito
A. A censura da decisão sobre a matéria de facto.
Censuram os apelantes a decisão sobre a matéria de facto, pretendendo se considere provado - em vista de suprir a deficiência que tal decisão apresenta (a matéria em causa não mereceu pronúncia do tribunal
a quo
) -, valorizando os documentos que juntaram com a petição com que se apresentaram à insolvência (documentos juntos sob os números 10 a 13 com tal peça processual), que:
- a cada um dos requerentes foi prescrito pelo médico dentista tratamento dentário, o da requerente orçado em 10.500,00€ e o do requerente em 18.850,00€,
- ambos os requerentes usam óculos, prescritos por oftalmologista, que necessitam de revisão anual,
- a requerente mulher necessita de ajuda de aparelho aditivo, no que despende cerca de 4.500,00€.
Reconhece-se que prescrições médicas, recibos, facturas e orçamentos de tratamentos elaborados por entidades que prestam cuidados de saúde são elementos probatórios que permitem concluir, com o grau de probabilidade bastante, face às circunstâncias do caso e às regras da experiência da vida (com o grau de probabilidade suficiente para as necessidades praticas da vida)
[1]
, pela veracidade da matéria que documentam.
Assim que ponderando a idade dos requerentes, as patologias e tratamentos que os documentos em causa retratam apresentam grau de probabilidade suficiente para se terem por demonstradas.
De aceitar, também, que documentos emitidos por tais entidades (orçamentos, facturas e recibos) são bastantes para demonstrar em juízo (em casos como o presente) o custo de ajudas técnicas (oftalmológicas e auditivas) e de tratamentos prescritos/recomendados/aconselhados.
O que vem de dizer-se não significa, porém, que os documentos juntos pelos requerentes demonstrem (retratem) a matéria que pretendem ver demonstrada – melhor, que a demonstrem nos exactos termos por eles pretendidos.
Desde logo, não aludem tais documentos a qualquer necessidade de revisão anual dos óculos dos requerentes – apenas demonstram que a devedora consulta oftalmologista e que é também seguida nessa especialidade médica (a primeira folha do documento 10 consubstancia factura/recibo de uma consulta de oftalmologia da requerente mulher) e que o devedor adquire artigos/produtos relacionados com o uso de óculos (o documento nº 12 constitui uma factura emitida e a ele passada concernente a artigos/produtos relacionados com óculos). De tais documentos (ou dos demais documentos juntos pelos requerentes) não se pode concluir (pois que os mesmos não o retratam), como pretendem, que ambos usem óculos e que, anualmente, precisem de os alterar/modificar/rever, com os inerentes custos (atente-se que o relevo de tal materialidade incide nas despesas que daí poderiam advir e que devessem ser atendidas na ponderação a efectuar na determinação do montante a fixar como rendimento indisponível dos requerentes – e a necessidade de tal revisão periódica anual, com mudança de lentes e/ou armações, não se mostra minimamente indiciada, sequer aludida nos documentos juntos pelos requerentes).
Relativamente à despesa com o aparelho auditivo – despesa que os apelantes pretendem se julgue existir com natureza periódica (o tempo verbal proposto para o facto que pretendem ver julgado provado isso inculca) –, importa ponderar que o documento junto com a petição (documento 13 – factura concernente à aquisição, em Novembro de 2023, de um aparelho auditivo) demonstra que tal aparelho foi já adquirido em 2023, pelo valor de 4.500,00€; comprova, assim, tal documento, a existência de uma dívida pretérita, contraída previamente à insolvência, e não qualquer despesa futura, muito menos periódica, que deva ser ponderada no juízo que demanda a fixação do rendimento indisponível.
Diversamente se tem de concluir quanto aos tratamentos dentários prescritos aos apelantes.
Na verdade, demonstra o documento em questão (primeira página do documento 11 quanto à requerente apelante e última página do mesmo documento quanto ao requerente marido) que na sequência de avaliações clínicas dentárias foi proposto pelo dentista: à requerente mulher, uma ‘reabilitação oral com substituição de peças ausentes por implantes e coroas fixas em cerâmica’, importando tal tratamento no valor global de 10.500,00€ (à data de Dezembro de 2023), pressupondo a colocação de sete implantes; ao requerente marido, uma ‘reabilitação oral em edêntulo total com implantes e próteses fixas implanto-suportadas’, importando tal tratamento no valor global de 18.850,00€ (à data de Maio de 2024), pressupondo a colocação de mais de uma dezena de implantes.
Procede, assim, parcialmente, a impugnação dirigida à decisão sobre a matéria de facto, devendo aditar-se à factualidade apurada facto (a acrescer aos provados) com a seguinte redacção:
- na sequência de avaliações clínicas, foi proposto por médico dentista: à requerente, mulher uma ‘reabilitação oral com substituição de peças ausentes por implantes e coroas fixas em cerâmica’, importando tal tratamento no valor global de 10.500,00€ (à data de Dezembro de 2023), pressupondo a colocação de sete implantes; ao requerente marido, uma ‘reabilitação oral em edêntulo total com implantes e próteses fixas implanto-suportadas’, importando tal tratamento no valor global de 18.850,00€ (à data de Maio de 2024), pressupondo a colocação de mais de uma dezena de implantes.
B. O montante do sustento minimamente digno dos devedores.
O regime da exoneração do passivo restante, instituído nos art. 235º e seguintes do CIRE, específico da insolvência das pessoas singulares, é um instituto ‘tributário da ideia de
fresh start
’, sendo propósito da lei ‘libertar o devedor das suas obrigações, realizar uma espécie de
azzeramento
da sua posição passiva, para que depois de «aprendida a lição», ele possa retomar a sua vida e, se for caso disso, o exercício da sua actividade económica ou empresarial’ – o objectivo é, pois ‘dar ao sujeito a oportunidade de (re)começar do zero’
[2]
.
Ao consagrar o instituto da exoneração do passivo restante assumiu o CIRE o propósito de conjugar inovadoramente ‘o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica.’
[3]
Tributário do conceito de
fresh start
, o modelo da exoneração adoptado no nosso ordenamento aproxima-se, indiscutivelmente, do modelo do
earned start
ou da reabilitação – o modelo puro do
fresh start
baseia-se na ‘ideia de que a liquidação patrimonial e o pagamento das dívidas devem ter lugar no curso do processo de insolvência, sendo que uma vez concluído este, restem ou não dívidas por pagar, o devedor deverá ser libertado de forma a poder retomar, com tranquilidade, a sua vida’; o modelo da reabilitação (
earned start
) ‘assenta ainda no
fresh start
mas desenvolve um raciocínio diferente: o raciocínio de que o devedor não deve ser exonerado em quaisquer circunstâncias pois, em princípio, os contratos são para cumprir (
pacta sunt servanda
)’ e, assim, o ‘devedor deve passar por uma espécie de período de prova, durante o qual parte dos seus rendimentos é afectada ao pagamento das dívidas remanescentes’ e só findo esse período, demonstrado que merece (
earns
) a exoneração, deverá ser-lhe concedido o benefício
[4]
.
A obtenção do benefício [libertação dos débitos não satisfeitos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao encerramento deste
[5]
– a exoneração, em rigor, qualifica-se como uma (nova) causa de extinção das obrigações, extraordinária ou avulsa relativamente ao catálogo de causas tipificado nos arts. 837º a 874º do CC
[6]
; o seu regime ‘implica fundamentalmente que, depois do processo de insolvência e durante algum tempo, os rendimentos do devedor sejam afectados à satisfação dos direitos de crédito remanescentes, produzindo-se, no final, a extinção dos créditos que não tenha sido possível cumprir por essa via, durante tal período’
[7]
] justificar-se-á se o devedor observar a conduta recta que o cumprimento dos requisitos legalmente previstos pressupõe (arts. 239º, 243º e 244º do CIRE) – tem de merecer a concessão do benefício. Efectivamente, o incidente de exoneração do passivo restante não pode redundar num ‘instrumento oportunística e habilidosamente empregue unicamente com o objectivo de se libertarem os devedores de avultadas dívidas, sem qualquer propósito mesmo de alcançar o seu regresso à actividade económica, no fundo o interesse social prosseguido’
[8]
.
Não havendo razões para o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante apresentado pelo devedor, o juiz proferirá despacho inicial (art. 239º nº 1 e 2 do CIRE) determinando que, durante os três anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência (o período da cessão), o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, o fiduciário, para os fins do art. 241º do CIRE (ou seja, pagamento das custas do processo de insolvência ainda em dívida, reembolso ao Cofre Geral dos Tribunais das remunerações e despesas do administrador da insolvência e do próprio fiduciário que por aquele tenham sido suportadas, ao pagamento da remuneração vencida do fiduciário e despesas efectuadas e, por fim, distribuição do remanescente pelos credores da insolvência, nos termos prescritos para o pagamento aos credores no processo de insolvência).
No final do período da cessão, proferir-se-á decisão sobre a concessão ou não da exoneração (art. 244º, nº 1 do CIRE) e, sendo esta concedida, ocorrerá a extinção de todos os créditos que ainda subsistam à data em que for concedida, sem excepção dos que não tenham sido reclamados e verificados (art. 245º do CIRE).
O rendimento disponível do devedor objecto da cessão ao fiduciário, nos termos do art. 239º, nº 2 do CIRE, é integrado por todos os rendimentos que ao devedor advenham, a qualquer título, no referido período, com exclusão, no que interessa à economia da presente decisão, do que seja razoavelmente necessário para o seu (e do seu agregado) sustento minimamente digno, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional (art. 239º, nº 3, b), i) do CIRE) e do que seja razoavelmente necessário para outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor (art. 239º, nº 3, b), iii) do CIRE).
Estabeleceu o legislador na exclusão prevista na subalínea i) da alínea b) do nº 3 do art. 239º do CIRE, um limite máximo por referência a um critério quantificável objectivamente – o equivalente a três salários mínimos nacionais (sendo certo que este limite máximo pode ser excedido em casos justificados, mas excepcionais) – e um limite mínimo por referência a um critério geral e abstracto – o razoavelmente necessário ao sustento minimamente digno do devedor e seu agregado familiar –, a preencher pelo aplicador, caso a caso, conforme as circunstâncias concretas e peculiares do devedor.
O critério do ‘razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar’ é matéria de particular complexidade, visando a conciliação de dois interesses conflituantes: um, apontando no sentido da protecção dos credores dos insolventes; outro, na lógica da ‘segunda oportunidade’ concedida ao devedor, visa proporcionar-lhe condições para se reintegrar na vida económica quando emergir da insolvência, passado o período da cessão a que fica sujeito com compressão da disponibilidade dos seus rendimentos
[9]
. Foi propósito afirmado do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, ao instituir o incidente da exoneração do passivo restante, o de conjugar inovadoramente ‘o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica’
[10]
.
Critério (para se determinar o montante a excluir do rendimento disponível a ceder ao fiduciário – e a reservar, assim, para o sustento do devedor) conformado pela chamada ‘função interna do património, enquanto suporte de vida económica do seu titular’, referindo-se o preceito (a subalínea i) da alínea b) do nº 3 do art. 239º do CIRE), ao sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar – donde decorre a prevalência da função interna do património sobre a sua função externa (a garantia geral dos credores)
[11]
.
A função interna do património, enquanto alicerce da existência digna das pessoas (suporte da sua vida económica) tem tradução em várias normas da legislação ordinária, designadamente em normas destinadas a conferir justo e adequado equilíbrio entre os conflituantes interesses legítimos do credor (obtenção da prestação) e do devedor (inalienável direito à manutenção de um nível de subsistência condigno), como é o caso do artigo 239º, nº 3, b), i) do CIRE.
A exclusão do rendimento a ceder ao fiduciário do que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e seu agregado familiar é exigência do princípio da dignidade humana, contido no princípio do Estado de direito, afirmado no art. 1º da CRP e aludido também no artigo 59º, nº 1, a) da CRP. Reconhecimento do princípio da dignidade humana que exige do ordenamento jurídico o estabelecimento de normas que salvaguardem a todas as pessoas o mínimo julgado indispensável a uma existência condigna.
Na subalínea i), alínea b), do nº 3 do art. 239º do CIRE está em causa a garantia e salvaguarda do sustento minimamente digno das pessoas – a exclusão prevista no preceito é a ‘resposta natural, forçosa e obrigatória às necessidades e exigências que a subsistência e sustento colocam ao devedor insolvente e ao seu agregado familiar’
[12]
.
A garantia do sustento minimamente digno das pessoas (em última análise, a defesa da dignidade humana) é o fundamento axiológico da norma – e por isso que o artigo 239º, nº 3, b), i) do CIRE consagra um inalienável direito à manutenção de um nível de subsistência condigno.
Sendo a determinação do montante razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar obtido por uma ponderação casuística por parte do intérprete das concretas e peculiares necessidades do devedor e seu agregado familiar, fazendo actuar a cláusula do razoável e o princípio da proibição do excesso
[13]
, pode ter-se por seguro que não está em causa reservar-lhe um montante que assegure ‘apenas e tão só um mínimo de sobrevivência’ – poderá existir a ‘tendência de considerar que o requerente beneficiário da
exoneração
não pode pretender manter o trem de vida económico prévio à sua agora débil situação económica’, assim devendo ser-lhe ‘reservado como disponível um montante que assegure apenas e tão só um
mínimo de sobrevivência
, sob pena de não sentir os efeitos da sua quiçá imprudente administração’, mas ‘sustento minimamente digno’ não equivale à ‘atribuição de um mínimo pecuniário de estrita sobrevivência’, não podendo negar-se ao ‘instituto da exoneração a sua finalidade precípua de regeneração do insolvente para voltar à inclusão económica e social, expurgado de um passivo que não consegue solver’
[14]
.
De excluir, pois – num campo onde intervém o conceito de dignidade, a ideia de subsistência digna –, interpretações punitivas, devendo erigir-se como padrão de referência ‘aquele que, sem descurar os direitos dos credores, não afecte o devedor, remetendo-o aos limites de uma sobrevivência penosa, socialmente indigna, sob pena de a proclamada intenção de o recuperar economicamente constituir uma miragem’
[15]
.
O critério geral e abstracto utilizado pela lei para a determinação do montante mínimo do sustento digno do devedor (‘o razoavelmente necessário ao sustento minimamente digno do devedor e seu agregado familiar’) tem, pois, como referencial primordial, a existência condigna do insolvente, ponderando a sua concreta situação, o que aponta para as peculiaridades e singularidades de cada pessoa.
Deve aceitar-se que tal critério geral e abstracto para determinação do montante mínimo do sustento digno do devedor deve ser harmonizado e conjugado com a ponderação efectuada pelo ordenamento jurídico quanto ao que deva ser considerado como o montante mínimo para acudir às despesas inerentes a uma existência condigna – o salário mínimo nacional (remuneração mínima mensal garantida, de acordo com a actual designação legal que a estabelece – para o pretérito ano de 2024, o DL n.º 107/2023, de 17/11, fixou tal valor em 820,00€, sendo que tal valor ascende já, desde 1/01/2025, por força do DL 112/2024, de 19/12, a 870,00€) deve considerar-se como ‘o montante mínimo para acudir às despesas inerentes a uma vida que se pretende seja vivida com
dignidade
, tendo em conta despesas’ de sobrevivência, ‘como são as relacionadas com a habitação, alimentação, vestuário, consumos de bens essenciais (água, luz, transportes) e assistência médica’, constituindo, assim, o limite mínimo de exclusão dos rendimentos, não podendo nenhum devedor ser ‘privado de valor igual ao salário mínimo nacional, sob pena de não dispor de condições mínimas para desfrutar uma vida digna’; utilizando a lei (subalínea i), alínea b), do nº 3 do art. 239º do CIRE) como referência quantitativa o salário mínimo nacional para estabelecer o limite máximo isento da cessão do rendimento disponível, a tal referência se deve atender também para, em cada caso concreto, a partir dele, se ponderar o
quantum
que deve considerar-se como o razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e seu agregado familiar
[16]
.
Porém, ainda que deva entender-se que a remuneração mínima mensal garantida contém a ponderação do ordenamento jurídico sobre o que se deve ter por mínimo de remuneração estritamente indispensável à satisfação das necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador
[17]
(e assim que a remuneração mínima mensal garantida é tida pelo ordenamento como o montante estritamente indispensável mínimo à satisfação das necessidades impostas pela sobrevivência digna do devedor
[18]
), sempre o montante razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar terá de ser determinado pela valorização casuística das concretas e peculiares necessidades daquele (e seu agregado familiar, seja esse o caso), fazendo operar a cláusula do razoável e o princípio da proibição do excesso, a ideia de justa medida e de proporção – justa medida, cláusula do razoável e proibição do excesso que devem sempre reflectir-se na fixação do montante do rendimento indisponível do devedor em vista de prover à sua condiga existência, qual primordial referência na concreta ponderação dos interesses conflituantes (como se disse, o interesse do devedor em prover às necessidades fundamentais duma existência digna e o interesse dos credores em solver, tanto quanto possível, os seus créditos).
As particulares necessidades do devedor devem ter tradução no montante a considerar como razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor – e por isso que o art. 239º, nº 3, b), ii) do CIRE prevê que, excepcionalmente, tal valor possa exceder três vezes o salário mínimo nacional.
A decisão apelada entendeu como sustento minimamente digno dos insolventes/apelantes o montante equivalente a uma vez e meia o salário mínimo nacional para cada um deles e de três salários mínimos nacionais para o casal (montante que considerou ‘
ser o necessário ao seu sustento digno
’).
Vem-se entendendo que nos casos de coligação de insolventes (como é o caso dos autos) se deve individualizar o rendimento indisponível de cada um deles, pois não existe ‘fundamento legal para, no caso de ambos os membros do casal terem sido declarados insolventes e lhes ter sido concedida a exoneração do passivo restante, se atribuir um valor global não discriminado’, sem que se deixe de enfatizar que deve considerar-se que a economia familiar importa peculiar gestão dos rendimentos auferidos
[19]
e por isso que caso haja sido respeitada tal autonomia de patrimónios e feita uma tal fixação individual tem a mesma de ser havida como fixada em favor do rendimento familiar (não em contra ou em desfavor deste)
[20]
- pondera-se que quando se trata de um casal de insolventes, a exclusão do valor considerando necessário para cada um (no juízo de apuramento do sustento minimamente digno) deve ser conjuntamente imputada nos rendimentos agregados de ambos (independentemente do que cada um aufira), afastando-se a simples exclusão individual, autónoma e separada.
Assim o fez a decisão apelada, nessa parte não impugnada – os devedores apelantes questionam tão só o valor do rendimento indisponível, que entendem ter sido ponderado com avareza, pretendendo seja fixado em montante equivalente a quatro salários mínimos (isto, é, ponderando o valor da remuneração mínima mensal garantida para o ano de 2005, pretendem seja fixado o rendimento indisponível mensal do casal no valor de 3.480€).
Não se tendo apurado que os insolventes tenham particulares ou especiais necessidades, a bitola a ponderar é a da normalidade – ou seja, têm necessidades de saúde ajustadas à idade (ele nascido em ../../1942, ela nascida em ../../1947), que se vão incrementando em razão dos cuidados acrescidos que o acumular dos anos vai aportando.
A circunstância de lhes ter ido proposto, na sequência de avaliação clínica, a realização de tratamentos de reabilitação oral (a colocação de implantes e próteses dentárias – tratamento orçado em montante superior a dez mil euros quanto à apelante, em montante próximo dos dezanove mil euros no caso do apelante) não altera o que vem de dizer-se – trata-se de cuidados de saúde de natureza extraordinária, que assumem esta magnitude em razão de terem descurado, no passado, a saúde oral (veja-se a quantia de implantes que tais tratamentos pressupõem), sendo por isso que a sua realização deve pelos devedores ser ponderada em atenção ao critério de justa medida, de proporção, também em referência à cláusula do razoável e da proibição do excesso (certamente em pagamentos prestacionais – os valores são incompatíveis com outra forma de cumprimento que não o pagamento prestacional).
Não pretende significar-se que a situação de insolvência lhes imponha prescindir de tais tratamentos – o que se trata é de afirmar, positivamente, que aos insolventes se impõe a realização de escolhas, mais comedidas e austeras no período da cessão, atendendo a que a sua particular situação implica (em vista da obtenção do benefício da exoneração) a compressão das despesas
[21]
(um dever de adaptação a nível de vida condizente com o estatuto da insolvência, contrapartida decorrente da concessão do benefício da exoneração
[22]
, cabendo ao devedor adequar-se à condição de insolvente, ajustando as despesas e encargos à nova realidade
[23]
).
O que está em causa na fixação do rendimento indisponível é garantir aos insolventes o mínimo necessário à condigna existência, ou seja, o necessário a solver as despesas razoáveis para alcançar tal desiderato – não se trata tanto de lhes excluir a possibilidade de realizar despesas que possam ser entendidas como supérfluas ou excessivas em atenção ao seu actual estado de insolvência nem de os afastar de um trem de vida que antes gozavam, mas antes ponderar, em conformidade com a cláusula do razoável e com a proibição do excesso, do grau de compressão do nível de vida (e das despesas) que se lhes exige (qual correspectivo da exoneração do passivo restante) para se conformarem ao seu estatuto de insolventes, para tanto ponderando as necessidades (e correspondentes despesas) que a sua concreta situação, razoavelmente, impõe satisfazer para que não fiquem privados do mínimo necessário à condigna existência (e sendo certo que aos insolventes cabe fazer escolhas, ajustar despesas e encargos à nova realidade).
Atendendo ao montante dos rendimentos do casal (cerca de 4.300€ mensais - ele com pensão de reforma mensal de 1.338,00€ e ela com reforma mensal de 2.962,00€) e às despesas correntes que alegam suportar (habitação, electricidade, gás, comunicações) e às que se devem (factos notórios – art. 412º do CPC) ter atenção a título de alimentação, vestuário e saúde (quanto a estas, apenas as ordinárias, ainda que com incremento ajustado à idade), apelando ao critério do razoável prescrito na lei (em vista de conciliar os dois interesses em presença, um traduzido na função interna do património, e o outro conformado pela sua função externa – sem olvidar que ao devedor se exige a assumpção de comportamento que, de acordo com as suas capacidades económicas, retribua o sacrifício imposto aos credores, que vêm extintos os seus créditos por força do instituto da exoneração do passivo restante) e ao princípio da proibição do excesso, a decisão recorrida mostra-se justa, adequada, equilibrada e ponderada – o valor equivalente a três vezes a remuneração mínima mensal garantida (retribuição mínima mensal garantida que no corrente ano de 2025 ascende a 870€) mostra-se adequado
[24]
a proporcionar aos apelantes o necessário a permitir escolhas (de despesas) condizentes com uma existência condigna.
Improcede, pois, neste segmento, a apelação, mantendo-se a fixação do rendimento indisponível do casal no valor mensal equivalente a três vezes a remuneração mínima garantida.
C. A referência temporal a utilizar no apuramento do valor a ceder ao fiduciário.
A decisão censurada estabeleceu a observância de referência temporal mensal em vista do apuramento do valor a ceder ao fiduciário, contra o que se insurgem também os apelantes.
Não sufragamos o entendimento da decisão apelada, pois tem-se como legal atender à referência anual – essa a única forma de assegurar que, durante todo o período de cessão de rendimentos, o devedor usufrui o valor fixado como indispensável ao seu sustento minimamente digno (art. 239º, nº 3, b), i) do CIRE), pois que a dignidade de tal sustento se impõe dia a dia, durante todos e em cada um dos meses, ao longo do ano
[25]
.
Diferente solução não seria compaginável com o princípio da dignidade humana, não se compreendendo que dispondo um devedor de rendimento anual que, proporcionalmente distribuído pelos meses do ano, lhe permita aproximação ao que foi fixado como o mínimo (mensal) necessário à sua subsistência (mas sem sequer o atingir nos meses do ano em que não recebe os subsídios), pudesse ser privado da garantia de tal subsistência minimamente digna por nos meses de recebimento dos subsídios de férias e de Natal (acaso em tais meses o valor mensal auferido – somado o valor do salário/pensão ao do subsídio – suplantasse aquele), considerando o cálculo mensal, ter de ceder à fidúcia o excedente relativamente ao valor fixado como rendimento mensal indisponível – não operando a diluição mensal desse rendimento regular anual acumulado em subsídios de férias e de Natal, o devedor poderia então não só não atingir, em cada mês, o valor equivalente ao rendimento indisponível fixado, como nos meses de pagamento de tais subsídios poderia vê-los afectados à cessão e, assim, paradoxalmente, ainda que se pretendesse garantir-lhe um rendimento minimamente digno, acabaria o mesmo por lhe ser parcialmente retirado, deixando-a abaixo do limiar de subsistência que se entendeu ser de conferir-lhe (numa situação de ‘pobreza indevida e inaceitável’ à custa de um rendimento que, em rigor, lhe estava reservado, por ser indisponível à luz do art. 239º, nº 3, b) do CIRE)
[26]
.
Sendo a retribuição mínima mensal garantida recebida catorze vezes por ano (artigos 263º e 264º, nº 1 do Código do Trabalho), pode afirmar-se que o mínimo digno de sustento terá de reportar-se à retribuição mínima anual garantida
[27]
– conceito de retribuição mínima anual garantida adoptado pelo legislador no art. 3º, alínea a) do DL 158/2006, de 8/08 (diploma que estabelece os regimes de determinação do rendimento anual bruto corrigido e de atribuição do subsídio de renda nos arrendamentos para habitação). Os subsídios de férias e de Natal são parcelas de retribuição e ‘não extras para umas férias ou um Natal melhorados’ – por isso que no cálculo da retribuição mínima mensal garantida têm de considerar-se, proporcionalmente, tais subsídios: a retribuição mínima nacional anual é constituída pela retribuição mínima mensal garantida multiplicada por 14, pelo que o apuramento desta última se obtém dividindo a remuneração mínima anual garantida (os 14 pagamentos dos salários ou pensões) por doze, sendo este o valor médio mensal que as pessoas dispõem para o seu sustento e que o Estado entende como o mínimo necessário para o sustento digno
[28]
.
Solução
[29]
que tutela efectivamente o interesse garantido pelo art. 239º, nº 3, b), i) do CIRE e que é conforme ao princípio da equidade na aferição e distribuição dos rendimentos – importa assegurar ao insolvente, durante todo o período da cessão, o valor judicialmente fixado como seu sustento minimamente digno (e do seu agregado) e só o seu cômputo com base numa matriz anual permite alcançar tal desiderato, salvaguardando os princípios constitucionais da equidade, confiança e tutela efectiva
[30]
.
Impõe-se assim observar referência anual na fixação do rendimento indisponível, dividindo o rendimento anual globalmente auferido pelos devedores insolventes pelos doze meses do ano - ou seja, no ano, devem somar-se todas as pensões de cada um dos insolventes (incluindo subsídios de Natal e de férias) e dividido o total por doze, assim se apurando o rendimento disponível a ceder à fidúcia relativamente a cada um dos doze meses do ano.
C. Síntese conclusiva.
Em razão do exposto, procede parcialmente a apelação, mantendo-se a fixação do rendimento indisponível do casal insolvente em montante mensal equivalente a três vezes a remuneração mínima garantida, mas determina-se que no cálculo do valor a ceder ao fiduciário se observe referência anual – ou seja, que se somem todas as pensões auferidas por cada um dos insolventes durante o período anual (incluindo subsídios de férias e de Natal) e tal valor seja dividido por doze, assim se apurando o rendimento mensal disponível a ceder à fidúcia.
Os argumentos decisórios podem sintetizar-se (nº 7 do art. 663º do CPC) nas seguintes proposições:
…………………………………………….
…………………………………………….
…………………………………………….
*
DECISÃO
*
Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível, na parcial procedência do recurso, em manter a fixação do rendimento indisponível do casal de insolventes no valor mensal equivalente a três vezes a remuneração mínima garantida, determinando que no apuramento do valor a ceder à fidúcia se observe referência anual, nos termos que se deixaram expostos.
Custas pela massa insolvente.
*~
Porto, 28/01/2025
(por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem)
João Ramos Lopes
Raquel Lima
Alberto Taveira –
[
Voto
[31]
de vencido
: Não acompanho a decisão pelas seguintes razões:
Os subsídios de férias e de natal são considerados prestações complementares destinadas a retribuir o trabalhador, em alturas do ano em que os gastos são mais elevados, com um acréscimo monetário destinado, justamente, a permitir a satisfação dessas necessidades. Estamos perante rendimentos que visam a satisfação das necessidades básicas da pessoa que aufere tais rendimentos, mas que não podem ser considerados imprescindíveis e, nesse sentido, devem ser adstritos ao pagamento dos credores.
A referência do salário mínimo nacional fundamenta-se no entendimento que o Tribunal Constitucional tem explanado no sentido de que constitui uma remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades decorrentes da sobrevivência digna do trabalhador. A Lei constitucional e a lei ordinária quando se refere ao mínimo indispensável, não o faz com referência a uma remuneração anual, mas sim mensal.
Entendo assim que está afastada a possibilidade do achamento do rendimento indisponível do insolvente ser determinado, quer seja por referência a um cálculo anual, quer o afastamento dos subsídios de férias e de Natal. Os subsídios de férias e de natal, tal como outras prestações retributivas auferidas pelo devedor, integram ou não o rendimento indisponível consoante se contenham no ou excedam o valor fixado como indisponível.
Julgaria, pois, em conformidade, pela improcedência da apelação, neste segmento (aludido em C) da fundamentação).
]
______________________________
[1]
Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pp. 191/192.
[2]
Catarina Serra, O Novo Regime Português da Insolvência, Uma Introdução, 4ª edição, p. 133 e Lições de Direito da Insolvência, p. 559.
[3]
Considerando nº 45 do preâmbulo do diploma que aprovou o CIRE – DL 53/2004, de 18/03.
[4]
Catarina Serra, Lições (…), p. 559.
[5]
A exoneração do passivo restante constitui para o devedor insolvente uma libertação definitiva dos débitos não integralmente satisfeitos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao seu encerramento, nas condições previstas no incidente regulado nos art. 235º e seguintes do CIRE. ‘Daí falar-se de
passivo restante
’ - Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª edição, 2015, p. 848.
[6]
Catarina Serra, O Novo Regime (…), p. 135 e Lições (…), p. 561.
[7]
Catarina Serra, O Novo Regime (…), p. 133 e Lições (…), pp. 558/559.
[8]
Acórdão da Relação de Coimbra de 17/12/2008 (Gregório Silva Jesus), no sítio
www.dgsi.pt
..
Catarina Serra, O Novo Regime Português da Insolvência (…), pp. 133/134 e Lições (…), p. 560, depois de referir que o instituto da exoneração, sendo uma medida de protecção do devedor e um efeito eventual da declaração de insolvência que lhe é favorável, constituindo por isso uma verdadeira tentação para ele, adverte, a este propósito, para os efeitos perversos desencadeados pela força atractiva da exoneração: os ‘abusos de exoneração’.
[9]
Acórdão do STJ de 2/02/2016 (Fonseca Ramos), no sítio www.dgsi.pt.
[10]
Cfr. o considerando nº 45 do preâmbulo do DL 53/2004, de 18/03, que aprovou o CIRE.
[11]
Carvalho Fernandes e João Labareda, Código (…), p. 859, na anotação 4 ao artigo 239 do CIRE.
[12]
Acórdão R. Porto de 15/07/2009 (Barateiro Martins), no sítio www.dgsi.pt.
[13]
Acórdão da Relação de Lisboa de 4/05/2010 (Maria José Simões), no sítio www.dgsi.pt.
[14]
Acórdão do STJ de 2/02/2016 (Fonseca Ramos), no sítio www.dgsi.pt.
[15]
Citado acórdão do STJ de 2/02/2016.
[16]
Mais uma vez, o citado acórdão do STJ de 2/02/2016.
[17]
Acórdão do TC nº 177/2002, de 23/04 (Maria dos Prazeres Beleza), processo nº 546/01, no sítio www.tribunalconstitucional.pt. – reafirmando ponderação do TC já aduzida no acórdão nº 318/99, de 26/05/99 (Vítor Nunes de Almeida), processo nº 855/98, acessível no mesmo sítio.
[18]
Acórdão da Relação do Porto de 12/06/2012 (Rodrigues Pires) e acórdão da Relação de Guimarães de 24/09/2015 (Jorge Teixeira), ambos no sítio www.dgsi.pt.
[19]
Citado acórdão do STJ de 2/02/2016 (Fonseca Ramos).
[20]
Afigura-se ter sido esse o entendimento do citado acórdão do STJ de 2/02/2016, pois que entendendo dever ser individualizado o rendimento disponível de cada um dos insolventes (
rectius
, não dever ser fixado um valor global não discriminado), no dispositivo fixou como como quantia indispensável ao sustento digno de ambos os insolventes, o ‘montante de € 1010,00 mensais [€ 505,00x2], correspondente a duas retribuições mínimas garantidas (SMN)’.
[21]
Aludindo a esta compressão de despesas, como sacrifício do insolvente correspondente ao sacrifício dos credores, o acórdão da Relação de Lisboa de 25/10/2012 (Ondina Carmo Alves), no sítio www.dgsi.pt.
[22]
Acórdão da Relação de Lisboa de 13/12/2012 (Luís Espírito Santo), no sítio www.dgis.pt.
[23]
Acórdão da Relação de Lisboa de 9/04/2013 (Maria da Conceição Saavedra), no sítio www.dgsi.pt.
[24]
Tanto mais ponderando o que se decidirá a propósito da referência temporal a atender no apuramento do valor a ceder ao fiduciário.
[25]
Acórdão da Relação de Guimarães de 22/04/2021 (António Sobrinho), subscrito (enquanto primeiro adjunto) pelo relator do presente acórdão, no sitio www.dgsi.pt.
[26]
Assim o acórdão da Relação do Porto de 1/03/2021 (Filipe Caroço), no sítio www.dgsi.pt.
[27]
Acórdão da Relação do Porto de 22/05/2019 (Cecília Agante), no sítio www.dgsi.pt.
[28]
Citado acórdão da Relação do Porto de 22/05/2019 (Cecília Agante), neste segmento seguindo o acórdão da Relação de Lisboa de 27/02/2018 (Higina Castelo).
[29]
Solução que se reconhece não ser unânime - veja-se, sustentando o entendimento contrário, ainda que com voto de vencido, o acórdão da Relação do Porto de 12/01/2023 (Aristides Rodrigues de Almeida) e o acórdão da Relação de Guimarães de 10/07/2023 (Maria Eugénia Pedro) –, mas que, cremos, vem acolhendo seguidores – o citado acórdão da Relação de Guimarães de 22/04/2021 (António Sobrinho) elenca várias decisões jurisprudências comprovativas de tal afirmação, podendo acrescentar-se também o acórdão de 29/09/2021 desta Relação, proferido no processo n.º 986/21.1T8OAZ.P1 (Carlos Querido, subscrito pelo relator da presente decisão), não publicado, o acórdão de 30/05/2023 desta Relação, proferido no processo nº 3660/22.8T8STS-A.P1 (relatado pelo aqui relator – com voto de vencido), não publicado e a decisão sumária proferida em 20/07/2021 na apelação nº 351/20.8T8VCT.G1 da Relação de Guimarães (subscrita pelo relator da presente), não publicada.
[30]
Citado acórdão da Relação de Guimarães de 21/04/2021 (António Sobrinho).
[31]
Escreve-se de acordo com a “antiga ortografia”.
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TRP
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https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/0790a35e67d855f280258c2a005b2f6d?OpenDocument
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1,740,441,600,000
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IMPROCEDENTE
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22595/23.0T8LSB-A.L1-1
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22595/23.0T8LSB-A.L1-1
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RENATA LINHARES DE CASTRO
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I -
Não padece do vício de inexistência jurídica a decisão sumária que tenha sido proferida ao abrigo do artigo 656.º do CPC, porquanto o foi por quem se mostra investido de poder jurisdicional, sendo irrelevante se se encontravam ou não preenchidos os pressupostos que habilitam o relator a fazê-lo (já que sempre as partes poderão reclamar para a conferência).
II -
No âmbito do PER, à luz do artigo 215.º
ex vi
do artigo 17.ºF, n.º 7, ambos do CIRE, pode o juiz, oficiosamente, recusar a homologação do acordo quando, não obstante ter sido aprovado em assembleia de credores, do mesmo resulte violação
não
negligenciável
de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo.
III -
O plano de revitalização deve respeitar o princípio da igualdade dos credores, com a salvaguarda de este último admitir tratamento diferente para situações, também elas, distintas e desde que assente em critérios objectivos e justificáveis.
IV -
O princípio da indisponibilidade a que estão sujeitos os créditos da Segurança Social, decorrente do n.º 2 do artigo 30.º da LGT
ex vi
do artigo 3.º, al. a), do CRCSPSS, impede que sejam os mesmos extintos ou reduzidos fora das situações legalmente previstas para o efeito, impedimento esse que vigora também em sede de PER.
V -
Contudo, tal proibição não abrange as situações nas quais o plano de revitalização assuma o pagamento total da dívida contributiva (capital e juros), pese embora acompanhado da sua regularização em prestações, desde que respeitados os limites abstractamente consignados nos artigos 189.º e 190.º do CRCSPSS, bem como no artigo
81.º do Decreto Regulamentar n.º 1-A/2011 de 03/01.
VI -
Em face do constante do ponto anterior, tendo o plano sido aprovado com respeito pelas maiorias legalmente exigíveis, não obstante o voto desfavorável da Segurança Social, e prevendo o plano, quanto ao crédito desta última, a sua regularização através do pagamento de 72 prestações, mensais e sucessivas, sem extinção ou redução da dívida, estamos em face de uma violação
negligenciável
, não violadora do referido princípio da indisponibilidade, nessa medida não constituindo impedimento, não só à homologação do plano, mas também à sua vinculação, razão pela qual se assume o mesmo como eficaz perante a credora Segurança Social.
|
[
"INEXISTÊNCIA DA SENTENÇA",
"PODER JURISDICIONAL",
"PER",
"RECUSA",
"HOMOLOGAÇÃO",
"DÍVIDAS À SEGURANÇA SOCIAL",
"PRINCÍPIO DA INDISPONIBILIDADE"
] |
Acordam, em conferência, as Juízas da Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa:
I – RELATÓRIO
FP, Lda.
. veio intentar o presente processo especial de revitalização, ao abrigo do disposto nos artigos 17.º-A e ss. do CIRE
[1]
, manifestando vontade em encetar negociações conducentes à sua recuperação.
Em 30/10/2023 procedeu-se à nomeação de administrador judicial provisório (AJP) – artigo 17.º-C, n.º 5.
Em 27/11/2023, a AJP juntou a lista provisória de créditos, a qual foi publicada no próprio dia.
A esta lista foi apresentada impugnação pela devedora (em 04/12/2023), a qual foi julgada procedente por decisão de 18/12/2023 (nessa sequência tendo sido determinada a exclusão da sociedade Printing Lovers, Lda. da lista de credores).
Findas as negociações, veio a devedora depositar o competente plano de revitalização em 05/02/2024, depósito esse publicitado no portal
Citius
no dia 19 do mesmo mês - artigo 17.º-F, n.º 1.
Foi apresentada nova versão do plano pela devedora em 29/02/2024, cujo anúncio foi publicado no portal
Citius
no dia 15 do mês seguinte.
Não foi requerida a não homologação do plano.
Em 27/03/2024, a AJP juntou cópia da acta de apuramento do resultado da votação (ocorrida no dia anterior), concluindo ter sido o plano aprovado, nos termos do artigo 17.º-F, n.º 5, al. b) - “
Os credores votantes a favor do Plano oportunamente apresentado, representam 52,58% do total do crédito reclamado, e os votantes contra, representam 2,19% do total do crédito reclamado. // Relativamente aos votantes, os votos a favor, representam 96,00% dos credores votantes e os credores contra, representam 4,00% dos credores votantes
”.
Entre os credores que votaram contra o plano, consta a Segurança Social – cfr. Deliberação pela mesma emitida e que se mostra junta à acta.
Em 24/05/2024
[2]
, a AJP juntou o respectivo Parecer, nos termos previstos pelo n.º 6 do artigo 17.º-F, no qual escreveu:
“(…) Da análise ao Plano, destaca-se a determinação da devedora em: // • Aumentar a sua facturação, “trazendo-a” para valores anteriormente já alcançados, antes da Pandemia. // • Redução substancial dos Gastos com Pessoal. // • Diminuição do Prazo Médio de Recebimentos. // • Diminuição do Prazo Médio de Pagamentos. // • Aumentar, por isso, o seu Resultado Operacional. // Durante o horizonte temporal previsto – 72 meses, a devedora, com o aumento da actividade prevista, sobretudo do departamento interno, dedicado a eventos, a devedora
FP, Lda.
pretende ganhar algum “músculo” financeiro, que lhe permita honrar, quer os compromissos decorrentes da actividade operacional, quer o pagamento da dívida “antiga”, permitindo assim, sua solvência, nomeadamente, apresentando Capitais Próprios positivos no final do período em análise (2028), e por consequência, a sua viabilidade. // Pelas razões supra expostas, adere a signatária ao entendimento da maioria dos credores, que o Plano oportunamente apresentado, deve ser aprovado“
.
Por sentença proferida em 06/06/2024 foi homologado o plano especial de revitalização, na mesma se tendo decidido:
“Face a todo o exposto, homologo por sentença, nos termos do disposto no n.º 7 do artigo 17º-F do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa, o plano de recuperação da devedora
FP, Lda.
, pessoa colectiva número xxx, aprovado pelos credores. // A presente decisão vincula a empresa e os credores, mesmo que não hajam reclamado os seus créditos ou participado nas negociações, relativamente aos créditos constituídos à data em que foi proferida a decisão prevista no n.º 5 do artigo 17º-C do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas – n.º 11 do artigo 17º-F do mencionado Código. (…)”.
Inconformado com tal sentença, veio o Instituto da Segurança Social, IP interpor
RECURSO
de apelação, tendo formulado as CONCLUSÕES, que aqui se transcrevem:
“1.º No caso concreto, a homologação do plano de revitalização por via da sentença impugnada, inclui o pagamento em prestações de créditos por tributos, sem o acordo da segurança social, constituindo assim, uma violação das normas legais aplicáveis, nomeadamente do artigo 215, º do CIRE e, por tal motivo, deve o juiz recusar oficiosamente a homologação do acordo na parte em que viola regras legais imperativas.
2.º Com efeito, a indisponibilidade dos créditos tributários prevalece sobre qualquer legislação especial, aplicando-se, nomeadamente, aos planos de insolvência/recuperação/pagamento.
3.º Encontra-se também violado na sentença recorrida o princípio da igualdade previsto no artigo 194.º do CIRE, visto que a segurança social não deu o seu consentimento expresso à modificação dos seus créditos, situação que viola a legislação específica da segurança social, bem como a legislação tributária, designadamente com respaldo no artigo 30.º da Lei Geral Tributária, que normativa no sentido de que os créditos da segurança social são indisponíveis.
4.º Desta forma, a solução que cremos ser mais equilibrada e razoável, que permitirá harmonizar os interesses sociais e económicos que o legislador se propôs salvaguardar através da instituição do processo de revitalização, respeitando ainda os compromissos internacionalmente assumidos pelo Estado Português, com a intransigente defesa dos créditos tributários em geral, consiste em fixar a ineficácia relativa à homologação do Acordo de Pagamento no que concerne aos créditos reclamados e aprovados de que é titular o Instituto da Segurança Social I.P.
5.º No sentido apontado, vide o Acórdão do STJ n.º 1311/21.7T8VFX.L1.SI, da 6.ª Secção, prolatado em 17/01/2023.
6.º Além do mais, o plano de revitalização é penalizador para a segurança social uma vez que o número de prestações previsto para regularização da dívida à segurança social afigura-se excessivo.
7.º Nos termos do artigo 190.º, n.º 2, do CRCSPSS, as condições de regularização de dívida propostas no plano apenas podem ser autorizadas se forem indispensáveis para a viabilidade económica da empresa, o que, face ao exposto supra, não se encontra demonstrado.
8.º Não obstante ter sido oportuna e devidamente transmitida à empresa a necessidade de retoma do pagamento das contribuições mensais, a devedora optou por não o fazer e não comunicou qualquer situação passível de justificar tal omissão.
9.º Nos termos do artigo 30.º, n.º 2, da LGT, o crédito tributário - no qual se integra o crédito da segurança social – é indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua alteração, redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária.
10.º A homologação de um plano que inclua o pagamento em prestações de créditos sem o acordo da segurança social constitui uma violação não negligenciável das normas legais aplicáveis, nos termos do artigo 215.º do CIRE e, por tal motivo, o mesmo deve ser considerado ineficaz para com a segurança social, sendo-lhe inoponível.
11.º Pelo que, de acordo com as antecedentes alegações sustentamos a declaração da ineficácia do plano face à segurança social uma vez que o Instituto da segurança social I.P., não deu o seu consentimento expresso à modificação dos seus créditos, situação que viola a legislação específica da segurança social, bem como a legislação tributária, designadamente o artigo 30.º, da Lei Geral Tributária, que refere que os créditos da segurança social são indisponíveis.
Termos em que, no provimento do Recurso deve decretar-se a decisão que homologou o plano de revitalização é ineficaz, em relação ao crédito da segurança social, não sendo por isso oponível ao Recorrente.
Com o que se fará, JUSTIÇA!.”
Pela devedora foram apresentadas
CONTRA-ALEGAÇÕES
, formulando as seguintes conclusões:
“a) O Recorrente pretende que se decrete que a decisão que homologou o plano de revitalização é ineficaz em relação ao crédito da segurança social, não lhe sendo oponível.
b) Mas o plano de revitalização ora aprovado não prejudica nenhum credor nem viola o princípio da igualdade entre credores.
c) Não existe violação não negligenciável de normas legais.
d) O plano foi aprovado com elevada maioria, não prevê perdão de quantias e teve parecer favorável da Sra. Administradora.
e) A homologação do plano não prejudica os credores, a ineficácia do plano perante credores pontuais é que tem o potencial de prejudicar a revitalização do devedor.
f) O artigo 215º do CIRE não se mostra violado com a homologação do plano.
g) Existindo violação, o que não se admite, essa violação não é grave e não é fundamento para recusa de homologação, nem para perda de eficácia perante alguns credores.
Nestes termos,
E nos mais de direito aplicável, deverá negar-se provimento ao recurso de apelação apresentado pelo Recorrente e manter-se a homologação do plano de revitalização do devedor com eficácia em relação a todos os credores, nos exactos termos da sentença do tribunal a quo.
ASSIM SE FAZENDO A COSTUMADA JUSTIÇA”
Recebido o recurso, por decisão sumária de 13/01/2025, proferida pela Relatora ao abrigo dos artigos 652.º, n.º 1, al. c), e 656.º, ambos do CPC, foi a apelação julgada improcedente, mantendo-se a decisão recorrida.
Não se conformando com tal decisão, a apelante
reclamou para a conferência
, arguindo a “
inexistência jurídica da decisão sumária
”, pugnando pela prolação de acórdão em conferência
Para tanto alegou: “
1. Salvo o devido respeito por diferente opinião, no nosso entendimento, a decisão sumária proferida nestes autos não cumpre os requisitos legais do artigo 656.º do CPC, porque a questão a decidir não é simples, a matéria é controvertida, e a maioria da jurisprudência ao contrário do sustentado naquela decisão é favorável à ineficácia do plano em relação à segurança social quando esta entidade se opõe ao plano, e vota contra. // 2. Por isso, mesmo que a 1.ª Secção do Comércio do TRL, tenha vindo a tratar a questão objeto do recurso de apelação de forma uniforme, a maioria da jurisprudência sustenta inversamente que a homologação de um PEAP que inclua o pagamento em prestações de créditos sem o acordo da segurança social, constitui uma violação não negligenciável das normas legais aplicáveis, nos termos do artigo 215º do CIRE e, por tal motivo, deve o juiz recusar oficiosamente a homologação do acordo na parte em que viola regras legais imperativas. // 3. Nesse sentido, a solução mais equilibrada, adequada e curial que permitirá, simultaneamente, harmonizar os relevantes interesses sociais e económicos que o legislador se propôs salvaguardar através da instituição do processo de revitalização, reforçados através de compromissos assumidos internacionalmente pelo Estado Português, com a imperativa e intransigente defesa dos créditos tributários em geral, consiste em fixar ineficácia relativa à homologação da aprovação do plano de revitalização no que concerne aos créditos de natureza tributária reclamados e de que é titular o Instituto da Segurança Social I.P. // 4. Ou seja, o plano de revitalização produzirá todos os seus efeitos, viabilizando o prosseguimento da atividade económica e comercial da empresa e satisfazendo os interesses dos credores na exata medida acordada e por eles aceite, à exceção daqueles que teriam reflexo na esfera jurídica do Instituto da Segurança Social, I.P., enquanto entidade titular de créditos de natureza tributária, ao qual não serão oponíveis, permanecendo intangíveis e imodificáveis no seu conteúdo. // (…) 8. Consideramos, assim, também por razões de desejável uniformidade decisória, incluindo no seio dos Tribunais de Relação, que o diferimento temporal consubstanciado num plano de pagamentos em prestações dos créditos da segurança social, com a oposição desta, constitui uma moratória não autorizada e envolve modificação de tais créditos, traduzindo-se numa violação não negligenciável do princípio da indisponibilidade dos créditos fiscais. // 9. Razão pela qual, inexiste fundamento para decretar a eficácia do plano também quanto aos créditos reclamados pela segurança social, e por maioria de razão, este recurso de apelação deve ser julgado em conferência, mediante acórdão, em formação alargada, dado que a segurança social está prejudicada pela decisão sumária cujo objeto não é de simples decisão e muito menos a temática tratada de forma uniforme na jurisprudência – pelo que a decisão sumária é juridicamente inexistente visto ter sido proferida fora dos pressupostos legais que alegadamente a conformariam, vale dizer, desenquadrada do âmbito do artigo 656.º do CPC. // 10. Assim, no caso concreto, a decisão sumária é um mero ato material, um ato inidóneo para produzir efeitos jurídicos, um simples estado de facto com a aparência de decisão, mas absolutamente insuscetível de vir a ter eficácia jurídica, tudo se passando como se não tivesse sido produzido. // 11. Consequentemente, decisão sumária do recurso proferida supostamente ao abrigo do artigo 656.º do CPC, estando injustificada, comporta o vício de inexistência jurídica, não produz efeitos, sendo a invalidade dos atos mais relevante do que as próprias nulidades principais, é insanável, e pode ser conhecida a todo o tempo, sendo também de conhecimento oficioso. // 12. Nesse sentido, arguimos expressamente a inexistência jurídica da decisão sumária. // 13. Decretada a inexistência jurídica devem os autos tramitar normalmente com apreciação do recurso de apelação mediante acórdão a proferir em conferência. (…)
”.
A devedora apresentou resposta, refutando o alegado pela apelante e defendendo a desnecessidade de remessa do processo para conferência.
Foram colhidos os vistos legais e agendada e realizada a conferência.
Cumpre apreciar e decidir de acordo com o disposto no artigo 652.º, n.º 3, do CPC.
*
II – DO OBJECTO DO RECURSO
O objecto do recurso é definido pelas conclusões no mesmo formuladas, ressalvadas as questões que forem de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, sem prejuízo de o tribunal
ad quem
não estar limitado pela iniciativa das partes
- artigos 5.º, n.º 3, 608.º, n.º 2,
ex vi
artigo 663.º, n.º 2, 635.º e 639.º, n.ºs 1 e 2, todos do CPC.
Assim, as questões a decidir são:
- Aferir se a decisão sumária proferida em 13/01/2025 padece do vício de inexistência jurídica;
- Aferir se a sentença que homologou o plano de revitalização deverá ser alterada no sentido de ser declarada a ineficácia do plano quanto ao crédito da apelante, por violação do princípio da igualdade e da legalidade tributária.
*
III – FUNDAMENTAÇÃO
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Para além dos factos e ocorrências processuais constantes do relatório supra enunciado, mostra-se igualmente provado nos autos que:
1. A requerente é uma sociedade por quotas, com o capital social de 20.000,00€, cujo objecto social consiste em: “
Prestação de serviços na área da produção gráfica. Consultoria, comércio de artigos conexos e matérias-primas para a produção gráfica, formação profissional, controlo de qualidade e diversos serviços na área da pré-impressão
”.
2. Da lista credores consta o Instituto da Segurança Social, IP, com um crédito reclamado de 16.796,15€ (sendo 16.296,41€ de capital e 499,74€ a título de “
juros, coimas e custas
”).
3. O plano de recuperação apresentado pela devedora em 29/02/2024 estatui:
“No Plano de Recuperação agora proposto, a base fundamental centra-se no diferimento do pagamento do serviço da dívida vencida por forma a dar o tempo suficiente à sociedade de gerar cash-flow operacional para que possa proceder à liquidação total das dívidas sem colocar em causa a solvência da empresa tendo como data para aplicabilidade a data do trânsito em julgado do presente plano.
Neste contexto, são estes os pressupostos de base a ter em conta para a recuperação da sociedade e para pagamento total da dívida da
FP, Lda.
:
a) Não serão solicitados, a qualquer tipo de credor da sociedade, perdões de dívida.
b) Dívida bancária, incluindo a de locação financeira, que se mantém em vigor: proceder à liquidação total do capital e juros, à taxa de juro de 3,5%, sem carência de capital, de acordo com o plano já acordado com a Lisgarante, nas condições de 72 prestações crescentes durante 6 anos e conforme %´s abaixo discriminadas:
O plano é concretizado da seguinte forma: // → No primeiro ano serão pagas 12 prestações mensais e sucessivas cada uma correspondendo a 1/12 avos de 5% da dívida. // → No segundo ano serão pagas 12 prestações mensais e sucessivas cada uma correspondendo a 1/12 avos de 12% da dívida. // → No terceiro ano serão pagas 12 prestações mensais e sucessivas cada uma correspondendo a 1/12 avos de 18% da dívida. // → No quarto ano serão pagas 12 prestações mensais e sucessivas cada uma correspondendo a 1/12 avos de 20% da dívida. // → No quinto ano serão pagas 12 prestações mensais e sucessivas cada uma correspondendo a 1/12 avos de 22% da dívida. // → No sexto ano serão pagas 12 prestações mensais e sucessivas cada uma correspondendo a 1/12 avos de 23% da dívida.
c) Dívida aos restantes credores proceder à liquidação total do capital em conformidade com o plano previsto na alínea anterior, ou seja, através de um pagamento a 72 meses em prestações crescentes para a dívida vencida tal como discriminado no ponto anterior.
d) Dívida à Segurança Social: proceder à liquidação do valor em dívida no prazo e condições definidas para todos os credores, a saber, 72 prestações crescentes durante 6 anos e conforme % definida a b) do presente ponto.
e) Os créditos subordinados não são considerados para efeitos de reembolso do passivo da empresa (equiparável a um perdão total de dívida).
f) Cláusula de “salvo regresso de maior fortuna” entendendo-se que a mesma se consubstancia que caso venham a registar-se resultados antes do esperado, 50% de tais resultados serão alocados ao cumprimento do serviço da dívida, acelerando o seu reembolso em conformidade com o que acima ficou dito.
g) Não haverá lugar à distribuição de dividendos durante a vigência do plano de revitalização.
A sociedade manterá a sua atividade, sendo certo que a não aprovação do presente plano de recuperação e a manutenção da sociedade sem qualquer providência de recuperação conduziria, quase de certeza, à insolvência da sociedade (…)”
.
*
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Da invocada inexistência jurídica da decisão sumária proferida pela Relatora
:
Defende a recorrente que a decisão sumária proferida pela Relatora padece de inexistência jurídica, porquanto não cumpre os requisitos legais do artigo 656.º do CPC (argumentando não ser simples a questão a decidir, a matéria ser controvertida e a posição maioritária do STJ ser contrária à defendida).
Trata-se de alegação destituída de qualquer fundamento, como se passará a demonstrar.
Recorrendo aos ensinamentos de Alberto dos Reis
[3]
, sentença inexistente é o acto que não reúne o mínimo de requisitos essenciais para que possa ter eficácia jurídica própria de uma sentença (
“A sentença inexistente é um mero acto material, um acto inidóneo para produzir efeitos jurídicos, um simples estado de facto com aparência de sentença, mas absolutamente insusceptível de vir a ter a eficácia jurídica de sentença”
).
E, esclarece, os casos de sentença inexistente são três: a) falta do juiz – sendo o caso mais típico o de ter a sentença sido lavrada por pessoa que não tem poder algum jurisdicional, nem conferido pelo Estado, nem conferido pelos interessados mediante compromisso arbitral; b) faltam as partes – omissão do nome das partes ou indicação como partes de pessoas imaginárias ou supostas; e c) não há decisão – se o magistrado, em vez de emitir um comando, uma verdadeira decisão, se limita a exprimir um parecer, ou a expor dúvidas, é evidente que não existe sentença no sentido jurídico.
Também Antunes Varela
[4]
defendia idêntica posição, reduzindo a três os casos de inexistência da sentença – “
a) não provir a sentença de pessoa investida do poder jurisdicional; b) ser o acto emitido a favor de ou contra pessoas fictícias ou imaginárias; c) não conter a sentença uma verdadeira decisão ou conter uma decisão incapaz de produzir qualquer efeito jurídico
”.
Como é por demais evidente, nenhuma destas situações se verifica.
O vício da inexistência jurídica pressupõe, na verdade, no que aqui interessa, que o autor da decisão não esteja pessoal ou funcionalmente investido ou provido de jurisdição ou competência (falta de poder jurisdicional), o que não é o caso.
A tal conclusão não obsta o facto de a recorrente referir não estarmos em face de uma questão simples, a qual se assume antes como controvertida, não tendo a decisão proferida nos autos aderido à posição maioritariamente defendida pelo STJ.
Tais argumentos permitirão tão somente impugnar a decisão sumária, agora perante o tribunal colectivo, o que, aliás, a recorrente fez. Aliás, assim não tendo sucedido, sempre aquela decisão se revestiria de carácter definitivo e vinculativo no âmbito do processo no qual foi proferida.
Por fim, como referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa
[5]
, “
Considerando que as partes podem reclamar, com ou sem fundamento, (…) para a conferência, acaba por ser inócua a discussão sobre a verificação dos pressupostos que habilitam o relator a proferir decisão sumária
”.
Termos em que se julga improcedente o invocado vício de inexistência jurídica.
Do mérito da apelação
:
Iremos reproduzir o que na decisão sumária foi consignado.
O procedimento especial de revitalização (PER) tem como destinatários os devedores que se encontrem em situação de crise financeira (seja por se encontrarem com sérias dificuldades no cumprimento das respectivas obrigações por falta de liquidez ou crédito, seja por se encontrem numa situação de insolvência iminente), mas ainda susceptíveis de viabilização/recuperação. Visa, pois, facilitar e promover a recuperação efectiva de empresas economicamente viáveis.
Trata-se de um processo com natureza híbrida, porquanto, não obstante apresentar uma fase extrajudicial (de negociação com os credores), implica que posteriormente exista um controlo judicial – seja aquando do conhecimento e decisão das impugnações à lista de créditos, seja na admissão/rejeição do plano, seja, por fim, em sede de homologação/não homologação desse plano.
Uma vez aprovado o plano (como aqui sucedeu), diz-nos o artigo 17º-F, nº 7, que
“Nos 10 dias seguintes à receção da documentação mencionada nos números anteriores, o juiz decide se deve homologar o plano de recuperação ou recusar a sua homologação, aplicando, com as necessárias adaptações, as regras previstas no título IX, em especial o disposto nos artigos 194.º a 197.º, no n.º 1 do artigo 198.º e nos artigos 200.º a 202.º, 215.º e 216.º, e aferindo: a) Se o plano foi aprovado nos termos do n.º 5; // b) Se, no caso de classificação dos credores em categorias distintas, nos termos da alínea d) do n.º 3 do artigo 17.º-C, os credores inseridos na mesma categoria são tratados de forma igual e proporcional aos seus créditos; // c) Se, no caso de classificação dos credores em categorias distintas, nos termos da alínea d) do n.º 3 do artigo 17.º-C, as categorias votantes discordantes de credores afetados recebem um tratamento pelo menos tão favorável como o de qualquer outra categoria do mesmo grau, e mais favorável do que o de qualquer categoria de grau inferior; // d) Que nenhuma categoria de credores, a que alude a alínea d) do n.º 3 do artigo 17.º-C, pode, no âmbito do plano de recuperação, receber nem conservar mais do que o montante correspondente à totalidade dos seus créditos; // e) Se a situação dos credores ao abrigo do plano é mais favorável do que seria num cenário de liquidação da empresa, caso existam pedidos de não homologação de credores com este fundamento; //f) Se aplicável, que qualquer novo financiamento necessário para executar o plano de reestruturação não prejudica injustamente os interesses dos credores; // g) Se o plano de recuperação apresenta perspetivas razoáveis de evitar a insolvência da empresa ou de garantir a viabilidade da mesma”
.
Dos artigos mencionados neste preceito, passar-se-á a transcrever os que assumem relevância para o conhecimento do presente recurso.
- Artigo 194.º: “
1 - O plano de insolvência obedece ao princípio da igualdade dos credores da insolvência, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objectivas. 2 - O tratamento mais desfavorável relativamente a outros credores em idêntica situação depende do consentimento do credor afectado, o qual se considera tacitamente prestado no caso de voto favorável. 3 – (…)
“
[6]
.
- Artigo 195.º: “
1 - O plano de insolvência deve indicar claramente as alterações dele decorrentes para as posições jurídicas dos credores da insolvência. 2 - O plano de insolvência deve indicar a sua finalidade, descreve as medidas necessárias à sua execução, já realizadas ou ainda a executar, e contém todos os elementos relevantes para efeitos da sua aprovação pelos credores e homologação pelo juiz, nomeadamente: (…) i) A indicação dos preceitos legais derrogados e do âmbito dessa derrogação.
”;
- Artigo 196.º: “
1 - O plano de insolvência pode, nomeadamente, conter as seguintes providências com incidência no passivo do devedor: a) O perdão ou redução do valor dos créditos sobre a insolvência, quer quanto ao capital, quer quanto aos juros, com ou sem cláusula ‘salvo regresso de melhor fortuna’; b) O condicionamento do reembolso de todos os créditos ou de parte deles às disponibilidades do devedor; c) A modificação dos prazos de vencimento ou das taxas de juro dos créditos; d) A constituição de garantias; e) A cessão de bens aos credores. 2 – (…).
”
[7]
Já segundo o artigo 215.º, “
O juiz recusa oficiosamente a homologação do plano de insolvência aprovado em assembleia de credores no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza, e ainda quando, no prazo razoável que estabeleça, não se verifiquem as condições suspensivas do plano ou não sejam praticados os actos ou executadas as medidas que devem preceder a homologação”.
O juiz pode, ainda, recusar a homologação caso algum credor (que tenha já manifestado nos autos a sua oposição) assim o solicite – artigo 216.º
[8]
.
No caso
sub judice
, a recorrente não efectuou qualquer solicitação nesse sentido, pelo que apenas relevará o artigo 215.º, ou seja, saber se o plano incorre em
violação não negligenciável
de normas aplicáveis ao seu conteúdo (dispositivo do plano de revitalização e princípios imperativos que lhe devam estar subjacentes).
Segundo Carvalho Fernandes e João Labareda
[9]
,
“Normas procedimentais são, pois, todas aquelas que regem a atuação a desenvolver no processo, que incluem os passos que nele devem ser dados até que a assembleia de credores decida sobre as propostas que lhe foram presentes (…) e, bem assim, as relativas ao modo como ele deve ser elaborado e apresentado. Normas relativas ao conteúdo serão, por sua vez, todas as respeitantes à parte dispositiva do plano, mas, além delas, ainda aquelas que fixam os princípios a que ele deve obedecer imperativamente e as que definem os temas que a proposta deve contemplar.”
Salientando os mesmos autores: “
(...) não são negligenciáveis todas as violações de normas imperativas que acarretem a produção de um resultado que a lei não autoriza. Diversamente, são desconsideráveis as infrações que atinjam simplesmente regras de tutela particular que podem, todavia, ser afastadas com o consentimento do protegido. (...) O que importará é, pois, sindicar se a nulidade observada é suscetível de interferir com a boa decisão da causa, o que significa valorar se interfere ou não com a justa salvaguarda dos interesses protegidos ou a proteger – nomeadamente, no que respeita à tutela devida à posição de credores e do devedor nos diversos domínios em que se manifesta -, tendo em conta o que é, apesar de tudo, livremente renunciável”.
Importa, então, aferir se, como defende a apelante, as medidas constantes do plano de revitalização desrespeitam o princípio da igualdade e da legalidade, sendo violada alguma norma imperativa ou que apenas com o consentimento do afectado possa ser derrogada.
Ocorrerá violação do princípio da igualdade caso o plano preveja um tratamento desfavorável de um ou mais credores face aos demais e sem que tal medida (tratamento diferenciado) esteja assente em razões objectivas.
Na presente situação não vislumbramos que o princípio da igualdade tenha sido violado, porquanto o crédito da recorrente não mereceu um tratamento desfavorável com relação aos demais créditos.
Como resulta do plano de revitalização, não ocorreu qualquer extinção ou redução da dívida reclamada pela recorrente (seja quanto ao capital, seja quanto a juros), apenas tendo sido previsto o seu pagamento fraccionado em 72 prestações.
Aliás, esse foi igualmente o procedimento adoptado para todos os créditos.
Acresce que a recorrente, quer em sede de motivação, quer em sede de conclusões de recurso, nenhuma razão avança/concretiza para justificar qualquer violação do princípio da igualdade, qualquer tratamento desfavorável relativamente aos demais credores.
Nenhuma violação ocorreu, pois, com relação ao previsto no artigo 194.º do CIRE.
[10]
Mas violará o plano homologado alguma norma imperativa, designadamente, como invocado pela recorrente, o artigo 30.º, n.º 2 e 3 da LGT?
[11]
No que concerne aos créditos tributários, consagra esta norma o chamado princípio da indisponibilidade, ao estatuir no seu n.º 2 que
“O crédito tributário é indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e legalidade tributária”.
Já o seu n.º 3 (aditado pelo artigo 123.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31/12 - Lei do Orçamento do Estado para o ano de 2011), acrescenta que “
O disposto no número anterior prevalece sobre qualquer legislação especial”.
[12]
O invocado princípio encontra-se, ainda, reflectido no artigo 36.º da mesma Lei, o qual prescreve: “
(…) 2 - Os elementos essenciais da relação jurídica tributária não podem ser alterados por vontade das partes. 3 - A administração tributária não pode conceder moratórias no pagamento das obrigações tributárias, salvo nos casos expressamente previstos na lei. (…)
”.
[13]
Entende a recorrente ter sido violado o princípio da indisponibilidade dos créditos do Estado, sob o argumento de que o
diferimento dum crédito público
só poderá ocorrer com a anuência da própria instituição pública.
E, sendo o crédito da segurança social um crédito tributário, o mesmo assume natureza indisponível, “
só podendo fixar-se condições para a sua alteração, redução ou extinção, com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária
”.
Assim, conclui, a homologação de um plano que inclua o pagamento em prestações de créditos sem o acordo da segurança social (o qual é exigido pelos artigos 190.º e ss. do CRCSPSS
[14]
) constitui uma violação não negligenciável das normas legais, nos termos do artigo 215.º do CIRE, como tal devendo ser considerado ineficaz para aquela, sendo-lhe inoponível.
Mais acrescenta não terem sido os seus interesses devidamente acautelados, afigurando-se o número de prestações excessivo, e não ter sido demonstrado que tal pagamento prestacional seja indispensável à viabilidade económica da empresa (n.º 2 do referido artigo 190.º).
[15]
Será assim?
A tutela do crédito tributário apresenta-se, sem dúvida, munida de natureza imperativa, obstando a que o tribunal homologue um PER quando o mesmo implique afectação, pela modificação restritiva do seu conteúdo, dos créditos tributários reclamados e reconhecidos.
[16]
Como refere Suzana Tavares da Silva
[17]
, não se justifica “
afastar do processo de insolvência a aplicação dos
artigos 30.º, n.º 2 e 36.º, n.º 3 da LGT, e do artigo 85.º do CPPT, o que seria não só ilegal, por violar directamente os preceitos legais acabados de mencionar, mas ainda violador dos mais elementares critérios de juridicidade que informam o direito tributário (princípio da igualdade na contribuição para os encargos públicos) e o direito económico europeu (princípio da concorrência e da proibição de auxílios de Estado). (…) Em nosso entender, o aditamento do n.º 3 ao artigo 30.º à LGT não trouxe qualquer conteúdo inovador, devendo mesmo considerar-se uma norma de carácter interpretativo, pois a solução nele vertida defluía já dos princípios jurídicos fundamentais ordenadores no nosso sistema jurídico e dos princípios constitucionais que conformam o Estado fiscal. (…) Aliás, a nosso ver, o regime da indisponibilidade do crédito tributário, por consubstanciar uma expressão legal do princípio fundamental da igualdade na contribuição para os encargos públicos é, em si, um regime tendencialmente indisponível para o próprio legislador, que apenas se encontra legitimado para estipular excepções a ele na medida em que circunstâncias excepcionais de conjuntura económica assim o justifiquem.
”
Começaremos por referir que o facto de a Segurança Social ter votado contra a aprovação do plano, por si só, não acarreta a ilegalidade do mesmo.
[18]
Apenas ocorrerá ilegalidade do plano no caso de o mesmo não respeitar os legais requisitos e limites impostos em matéria de extinção e redução das dívidas fiscais e contributivas.
[19]
Vejamos, então, se as medidas aprovadas pelo plano violam os limites dos requisitos atinentes à regularização de dívidas ao Estado.
Para tanto, impõe-se trazer à colação as seguintes normas do CRCSPSS:
- artigo 186.º: “
1 - A dívida à segurança social é regularizada através do seu pagamento voluntário, nos termos previsto no presente Código, no âmbito da execução cível ou no âmbito da execução fiscal. (…)
”
- artigo 189.º: “
1 – O diferimento do pagamento da dívida à segurança social, incluindo os créditos por juros de mora vencidos e vincendos, assume a forma de pagamento em prestações. (…)
”.
- artigo 190.º:
“1 - A autorização do pagamento prestacional de dívida à Segurança Social, a isenção ou redução dos respetivos juros vencidos e vincendos, só é permitida nos termos do presente artigo, sem prejuízo do disposto no artigo seguinte e das regras aplicáveis ao processo de execução fiscal. 2 - As condições excepcionais previstas no número anterior só podem ser autorizadas quando, cumulativamente, sejam requeridas pelo contribuinte, sejam indispensáveis para a viabilidade económica deste e desde que o contribuinte se encontre numa das seguintes situações: a) Processo de insolvência, de recuperação ou de revitalização; (…). 3 - Para efeitos do disposto no número anterior, o incumprimento do pagamento das contribuições mensais desde a data de entrada do requerimento constitui indício da inviabilidade económica do contribuinte. (…) 6 – (…) a autorização a que se refere o n.º 1 do presente artigo é concedida por deliberação do conselho directivo do Instituto de Gestão Financeira, I.P. (IGFSS,I.P.). (…)
”
- artigo 191.º: “
As condições de regularização da dívida à segurança social não podem ser menos favoráveis do que o acordado para os restantes credores.”
- artigo 203.º:
“As dívidas à segurança social podem ser garantidas através de qualquer garantia idónea, geral ou especial, nos termos dos artigos 601.º e seguintes do Código Civil
”.
Bem como o artigo 81.º do Decreto Regulamentar n.º 1-A/2011 de 03/01
[20]
: “
1 - O diferimento do pagamento da dívida à segurança social, incluindo os créditos por juros de mora vencidos e vincendos, assume a forma de pagamento em prestações mensais, iguais e sucessivas, com o limite máximo de 150. 2 - O número de prestações autorizado para o pagamento depende: a) Da capacidade financeira do contribuinte; b) Do risco financeiro envolvido; c) Das circunstâncias determinantes da origem das dívidas; d) Do grau de liquidez da garantia. 3 - A taxa de juros vincendos a aplicar no âmbito de pagamentos prestacionais autorizados pode ser reduzida em função da idoneidade da garantia. (…).”
Reportando tais preceitos ao caso concreto, uma vez mais, somos forçadas a discordar da posição defendida pela apelante, quando sustenta que, quanto a si, terá a decisão proferida pelo tribunal
a quo
que ser considerada ineficaz.
É que apenas lhe assistiria razão na eventualidade de estarmos perante alguma
violação não negligenciável
nos moldes aludidos pelo artigo 215.º, o que não é o caso.
Com efeito:
- As medidas aprovadas revelam-se imprescindíveis para que a devedora possa recuperar financeiramente – assim o afirma expressamente a AJP, o que sai reforçado pela posição dos credores que votaram favoravelmente o plano (o que, como referido na sentença, constitui “
indício de aptidão do acordo para garantir a viabilidade da empresa
”) e a apelante, não obstante alegar o contrário, sequer concretizou o porquê de assim o referir;
- É facto incontroverso que não se estipulou qualquer extinção ou redução do crédito da SSocial (nem do capital, nem de juros), mas apenas uma mera modificação dos prazos de pagamento desse mesmo crédito - sendo que o artigo 30.º, n.º 2 só refere as hipóteses de redução ou extinção do crédito;
- Pese embora a apelante tenha votado contra a aprovação do plano de recuperação (não dando o seu acordo ao pagamento da dívida em prestações nos moldes previstos), o certo é que tal possibilidade é legalmente admitida pelos artigos 189.º e 190.º do CRCSPSS e 81.º do Decreto Regulamentar n.º 1-A/2011;
- O número de prestações previstas no plano (72) contém-se dentro do limite máximo permitido pelo mesmo artigo 81.º (em abstracto, são legalmente admissíveis 150 prestações);
- A falta de autorização da Segurança Social não constitui violação de qualquer norma imperativa, apenas podendo, quanto muito, traduzir violação de uma norma procedimental (sem que, no entanto, apenas com fundamento nessa falta de autorização, se possa afirmar inexistir salvaguarda dos créditos tributários e da indisponibilidade de que os mesmos beneficiam).
Ora, se assim é, mau grado a discordância da Segurança Social, e não se ignorando que o pagamento em prestações tem de ser autorizado nos termos que resultam do artigo 190.º, n.º 1 e 6 do CRCSPSS, a verdade é que sempre tal incumprimento configurará um vício
negligenciável
para os efeitos previstos pelo artigo 215.º, já que não ocorre qualquer compressão do crédito tributário da recorrente (diferente seria se o plano previsse a extinção ou a redução do seu crédito).
Não se compreende, assim, como pode a apelante argumentar que os seus interesses não se encontram devidamente acutelados, bem como que o plano prestacional se assume como excessivo
[21]
.
Por fim, dir-se-á que o n.º 3 do artigo 30.º da LGT não faz depender a aprovação e a validade do acordo de pagamento do voto favorável da Segurança Social, pois que tal transformaria o mesmo num voto de qualidade e, consequentemente, num verdadeiro direito de veto. A indisponibilidade a que faz alusão a lei é relativa ao crédito e às condições legais previstas para a sua extinção ou modificação, e nada tem que ver com o carácter do voto em si, nos termos do qual a Segurança Social se assume como outro qualquer credor (reportando-se a autorização prevista na lei apenas aos procedimentos administrativos).
O plano não contém qualquer medida que acarrete a produção de um resultado que a lei não autoriza (como sucederia se se tivesse previsto um número de prestações superior a 150), nem que interfira com a justa salvaguarda dos interesses/posição da Segurança social.
Diga-se, na verdade, que não se nos afigura que a vinculação da apelante ao plano homologado se revele excessiva ou desproporcionada, como também não resulta que a sua situação tenha assumido maior fragilidade, menor protecção, com tal homologação (isto é, que, desse plano, resulte para a mesma uma situação menos favorável do que aquela que teria caso o mesmo não fosse homologado
[22]
), tanto mais que a mesma, nas suas alegações recursórias, não invocou qualquer facto que permitisse a esta Relação concluir nesse sentido.
O entendimento agora defendido já o foi no âmbito dos acórdãos de 17/05/2024 (Proc. n.º 919/23.0T8BRR-B.L1, ao que se julga não publicado) e de 22/02/2022 (Proc. n.º 10646/21.8T8LSB-A.L1), ambos da mesma relatora, remetendo-se para o segundo para efeitos da jurisprudência
[23]
e doutrina que no mesmo se mostram citadas
[24]
.
Uma última nota:
Alega a recorrente que “
[n]ão obstante ter sido oportuna e devidamente transmitida à empresa a necessidade de retoma do pagamento das contribuições mensais, a devedora optou por não o fazer e não comunicou qualquer situação passível de justificar tal omissão
” (conclusão 8.ª).
A recorrida não se pronunciou quanto a tal alegação.
Ora, não obstante a deliberação junta pela Segurança Social aquando da sua declaração de voto aludisse a tal questão – na mesma se podendo ler: “
A empresa não efetuou o pagamento da totalidade das contribuições mensais devidas, o que, nos termos do artigo 190.º, n.º 3, do (…) CRCSPSS), constitui indício da sua inviabilidade económica e viola o disposto no artigo 42.º do mesmo Código. Com efeito, não se afigura credível que uma empresa que, na pendência do PER, não retomarem o pagamento das suas obrigações correntes para com a segurança social o irá fazer após este processo
” -, sobre a mesma não se pronunciou a sentença recorrida.
Estamos, pois, em face de uma questão nova que, por não ser de conhecimento oficioso, se mostra arredada do objecto do recurso, no mesmo não podendo ser apreciada, tanto mais que nenhum vício por omissão de pronúncia foi suscitado.
Com efeito, visando o recurso impugnar uma qualquer decisão judicial, apenas poderá versar sobre matéria que tenha sido já apreciada (não podendo o tribunal
ad quem
ser confrontado com questões novas, salvo se as mesmas forem de conhecimento oficioso e ainda não tenham sido decididas com trânsito em julgado). Acresce que, no caso, sequer foi alegado que contribuições estarão em dívida (momento em que terá sido cessado tal pagamento e valor em dívida) pelo que, a assim ter sucedido, sempre tal factualidade poderia e deveria ter sido invocada em momento anterior (junto da 1.ª instância), desde logo em face das possíveis consequências que poderia acarretar para o desfecho do processo (tendo em conta o que resulta do artigo 190.º, n.º 3 do CRCSPSS e do artigo 81.º, n.º 2 do Decreto Regulamentar n.º 1-A/2011, os quais foram já transcritos supra).
Em síntese, não obstante ser inquestionável a natureza indisponível do crédito da apelante Segurança Social, uma vez que as medidas previstas no plano de revitalização para a regularização do mesmo respeitam os limites abstractamente previstos no regime geral contributivo, não ocorrendo qualquer redução ou extinção da dívida, considerando ainda os fins visados pelo PER e a justa medida exigível à prossecução e alcance dos mesmos, concluiu-se pela eficácia do plano homologado também com relação a ela.
Sendo este o teor da decisão sumária proferida nos autos, a qual se mantém, mas considerando a alegação da recorrente no sentido de não ser esse o entendimento maioritário do STJ, cumpre citar o acórdão 01/10/2024
[25]
, desta mesma Secção do Comércio, o qual se subscreve e que se passará a transcrever:
“A posição maioritariamente seguida pelo STJ (…) passa pelo reconhecimento de que existe uma violação não negligenciável de normas, com subsequente atenuação dos efeitos que resultam desse mesmo reconhecimento, pela via da homologação do plano de recuperação com ressalva da sua ineficácia relativamente aos créditos tributários cujos titulares não tenham autorizado a sua afetação pelo plano aprovado. // Neste sentido cita-se, por todos, o Ac. do STJ de 09.06.2021, proc.º n.º 1412/20.9T8VNF.G1.S1 (rel. Luís Espírito Santo), que, tendo por incontornável que a intervenção legislativa que esteve na origem do n.º3 do artigo 30º da LGT evidencia, “pela sua assertividade, de forma clara e inequívoca, o carácter imperativo conferido à tutela do crédito de natureza tributária, com consequente impossibilidade de homologação pelo tribunal do plano de recuperação que se traduza numa afectação, pela modificação restritiva do seu conteúdo, dos créditos de natureza tributária que foram reclamados e reconhecidos” – suporte da violação não negligenciável das normas aplicáveis ao seu conteúdo, nos termos e para os efeitos do artigo 215º do CIRE -, refere que “a solução mais equilibrada e curial, que permitirá harmonizar os interesses sociais e económicos que o legislador se propôs salvaguardar através da instituição do processo de revitalização, respeitando ainda os compromissos internacionalmente assumidos pelo Estado Português, com a intransigente defesa dos créditos tributários em geral, consiste em fixar a ineficácia relativa à homologação do plano de revitalização no que concerne aos créditos reclamados e aprovados de que é titular o Instituto da Segurança Social”, desse modo aproveitando “à recuperanda e seus credores na medida do acordado, com excepção daqueles que teriam reflexo na esfera jurídica do Instituto da Segurança Social, enquanto entidade titular de créditos de natureza tributária, ao qual não serão oponíveis, permanecendo estes intangíveis e imodificáveis no seu conteúdo”. (…) // Entendimento diverso tem sido seguido por esta secção do Tribunal da Relação de Lisboa (…), que tem vindo quase unanimemente a considerar que o plano votado desfavoravelmente pela Segurança Social ou pela Autoridade Tributária não origina a inevitabilidade da sua ilegalidade, que ocorrerá tão-só quando o plano não respeite os requisitos ou limites da extinção ou redução das dívidas fiscais ou contributivas nos termos em que estas são legalmente autorizadas, independentemente do sentido de voto - favorável ou desfavorável - daqueles credores (…). // O distinto sentido da jurisprudência citada, num quadro paralelo em que a incidência do plano sobre o crédito da segurança social não acarreta qualquer redução ou extinção deste último, contendo-se as condições de faseamento do pagamento nos limites previstos pelo art.º 81.º do Decreto Regulamentar n.º 1-A/2011, de 03.01, reflete-se na necessária opção entre a presença de uma violação negligenciável ou, em alternativa, não negligenciável das normas aplicáveis ao conteúdo do plano, sendo a 1ª opção a que tem vindo a ser seguida por esta secção e a 2º a seguida pelo STJ. // A jusante, quando se conclua inegavelmente pela presença de uma violação não negligenciável de normas, não existe dissenso relevante quanto à solução de ineficácia relativa do plano em relação ao credor tributário. // Contudo, e com todo o respeito pela opinião contrária, o tratamento teórico da questão apenas pela via da limitação dos seus efeitos (com consequente alteração do plano de recuperação originalmente aprovado), não produzirá, na prática, uma relevante diferença em relação a um plano cuja homologação seja recusada, sendo antecipável que o peso do crédito tributário, caso veja o seu pagamento ser exigido de uma só vez, quase inevitavelmente acarretará a impossibilidade de cumprimento das obrigações assumidas pela devedora perante os demais credores. // Por outras palavras, como refere Catarina Serra (in Lições de Direito da Insolvência, 2.ª ed., Coimbra, 2021, p. 446), o plano que vem a ser homologado pode ter perdido a sua aptidão para realizar a recuperação no caso concreto, sugerindo que a homologação do plano com eficácia relativa fique condicionada à renovada aprovação por parte dos credores privados que incidiria sobre o «“novo” plano de recuperação (o plano relativizado nos seus efeitos ou reduzido. A homologação deveria, com efeito, ficar condicionada à confirmação de que, apesar de todas as vicissitudes sofridas, o plano continuava a ser desejado pela generalidade dos credores privados e ter utilidade como via para a realização da recuperação da empresa”, prática que, segundo refere a citada autora, já tem vindo a seu adotada por alguns tribunais de 1ª instância. // A quase totalidade da jurisprudência que aprecia esta matéria dirige uma apreciação crítica à posição assumida pelo legislador por ocasião do aditamento do n.º 3 ao art.º 30º da LGT, efetuada com o propósito de erigir em torno dos créditos do Estado uma sólida muralha defensiva, impedindo terceiros de interferirem com a definição do modo e tempo de pagamento dos créditos por si titulados. // O mesmo legislador que preconiza a sua preferência pela recuperação da empresa (art.º 1º, n.º 1 do CIRE), altera a legislação fiscal de modo passível de transformar a mera manifestação de vontade do Estado num obstáculo insuperável a essa mesma recuperação, ainda que esta seja desejada por todos os demais credores, qualquer que seja o peso relativo dos seus créditos, muitas vezes superior ao do Estado, a quem é exigido um menor sacrifício. // Como se refere no Acórdão da Relação do Porto de 19.12.2023 (rel. Artur Dionísio Oliveira) já mencionado supra, “esta solução legislativa foi alvo de duras críticas, por equiparar a insolvência a uma mera execução fiscal, na medida em que permite ao Estado actuar como um simples reclamante de créditos, mantendo-se à margem do esforço desenvolvido no processo pelos demais credores, que contribuem para a recuperação da empresa abdicando dos seus créditos, escudado em leis que contrariam o seu compromisso de contribuir para a recuperação das empresas, ao que acresce a circunstância de, muitas vezes, o Estado se situar entre os maiores credores, pelo que a intangibilidade total dos seus créditos compromete definitivamente as possibilidades de recuperação da empresa”. // No caso em apreço (como noutros casos tratados em acórdãos dos tribunais superiores), tal como é reconhecido no ponto 19. das conclusões da apelante, a razão fundamental invocada pela segurança social para emitir um voto desfavorável à homologação do plano, não assenta no conteúdo concreto do plano ou na circunstância de existir uma inaceitável alteração do seu crédito, mas sim no facto de a empresa não ter retomado o pagamento das contribuições mensais devidas por ocasião da apresentação do requerimento inicial de PER, facto que, nos termos do art.º 190º, n.º 3 do CRCSPSS, constitui indício da sua inviabilidade económica, (…). // O argumento parece-nos ser de parco peso, gerando a aparência de que a segurança social assume um mero indício previsto na lei como verdadeira presunção inilidível de inviabilidade económica. Se é indiscutível que o referido indício tem previsão legal, não será de esperar que uma empresa que, comprovadamente, se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência iminente – art.º 17º-A, n.º 1 do CIRE - e que, por esse motivo, recorre a um PER para obter, pela via da negociação com os seus credores, um conjunto de medidas que aliviem o peso que a acumulação e dimensão das dívidas vencidas representa para a sua capacidade de prosseguir a atividade lucrativa, dê entrada a um PER e, de imediato, inicie o pagamento das contribuições à Segurança Social com que, até àquela data, não logrou cumprir, facto que gerou a acumulação de uma dívida com a dimensão do crédito reclamado. Essa expectativa de retoma do pagamento será razoável após a homologação do plano, mas pouco fundada – em termos gerais ou como suporte abstrato da previsível inviabilidade económica da empresa - quando reportada ao momento temporal em que o requerimento inicial de PER dá entrada em juízo. // Um relevante conjunto de argumentos que salientam a atuação algo censurável do Estado (com maior frequência, a segurança social (…) são adiantados no voto de vencido lavrado pelo Conselheiro António Barateiro Martins no Acórdão do STJ de 17.10.2023, processo n.º 2395/22.6T8STR.E1.S1, divergindo daquela que tem vindo a ser a posição quase unânime da 6ª secção do STJ. // No referido voto de vencido diz-se que o texto do art.º 215º, n.º 1 do CIRE não acolhe a solução de ineficácia relativa, referindo-se «a nosso ver, o art.º 215.º do CIRE não consente, em relação a um mesmo Plano, uma decisão de homologação em relação a uma parte dele e uma decisão de não homologação em relação a outra parte (…), A ideia do CIRE é a de que todos os credores fiquem sujeitos ou ao regime do plano de insolvência ou ao regime do procedimento de liquidação, não estando prevista uma “terceira via”, nem que o “Plano”, uma vez aprovado, não estenda os seus efeitos a todos os credores». Mais refere que «(…) Quando o conteúdo do “Plano” viola o art.º 30.º/2 e 3 da LGT deve, em princípio, a meu ver, em face da referida imperatividade de tal preceito, ser recusada a homologação de todo o “Plano”. E dizemos “em princípio”, na medida em que deve haver algum espaço/margem para, por interpretação, poder “sair/resultar” uma solução que respeite minimamente a unidade e harmonia do sistema jurídico». Concretizando, acrescenta que “será o caso – violação não negligenciável – se a violação se traduzir numa mera modificação dos prazos de pagamento e numa redução das taxas de juros, que reflitam e exprimam uma redução global do crédito pouco expressiva e se tal modificação dos prazos e redução de juros não estiver à partida e em abstrato proibida pelas disposições tributárias convocáveis e invocáveis (no que acompanhamos o Acórdão deste STJ de 24 de Março de 2015 referido no texto deste Acórdão)», concluindo adiante que “ponderando tudo adequada e proporcionalmente, desde que a intervenção nos créditos do Estado e Seg. Social não evidencie uma modificação injusta e desproporcional – tendo em conta o somatório dos créditos dos particulares e a medida em que eles abdicam, visando a recuperação da empresa pré-insolvente – entendemos que será de admitir que o “Plano” possa incluir alguma modificação dos prazos de pagamento ou das taxas de juros (ou mesmo, em casos muito extremos, desde que devidamente justificado/explicado, uma moratória e o perdão ou redução do valor do capital) dos créditos da AT ou da Seg. Social. Enfim, entendemos, verificada/apreciada uma concreta, precisa e “exigente” conjugação de circunstâncias, que poderemos estar “apenas” perante uma violação negligenciável das normas aplicáveis ao conteúdo do “Plano”. (…)». // (…)”
Mais acrescentando: “
Não se trata de aceitar que existe uma qualquer prevalência das soluções configuradas no plano sobre normas imperativas de legislação fiscal, mas antes de verificar, em concreto, se as estipulações do plano mantêm esse crédito intocado na sua dimensão essencial, são compatíveis com as regras gerais de legislação tributária que regulam a medida em que o Estado pode voluntariamente dispor do seu crédito (designadamente os limites do seu pagamento prestacional) e, regressando ao início desta fundamentação e à expressão de Catarina Serra citada em apoio da definição do que constitui uma violação não negligenciável de normas, “em que medida se pode ter por verificada uma lesão grave de valores ou interesses juridicamente tutelados, isto é, uma lesão de tal modo grave que nem em atenção ao princípio da recuperação e aos interesses associados a este, o juiz pode deixar de recusar-se a homologar o plano, inviabilizando com isso a recuperação”.
Em face de tudo o que se deixou consignado, não poderá proceder a presente apelação, confirmando-se a homologação e eficácia do plano de revitalização, inclusive quanto ao crédito da Segurança Social, nos moldes já constantes da decisão sumária proferida em 13/01/2025.
***
V - DECISÃO
Pelo exposto, as Juízas desta Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa, acordam, em conferência, julgar improcedente a apelação, mantendo a Decisão Sumária da Relatora proferida no passado dia 13/01/2025.
Sem custas, uma vez que as devidas foram já fixadas em sede de decisão singular.
Lisboa, 25 de Fevereiro de 2025
Renata Linhares de Castro
Ana Rute Costa Pereira
Isabel Maria Brás Fonseca
_______________________________________________________
[1]
Diploma ao qual nos estaremos a referir sempre que for citado um artigo sem referência à respectiva fonte.
[2]
Em 30/04/2024, a AJP havia junto um parecer com o seguinte teor:
“(…) relativamente ao Plano apresentado, que mereceu a aprovação de 96,00% dos credores votantes (e por consequência de 4% contra), contempla um pagamento aos credores, no prazo de 72 meses, com prestações crescentes, e não prevê, nem nenhum “haircut” da dívida, nem nenhuma carência de capital. // É entendimento da Administradora Judicial Provisória (AJP) que, caso se verifiquem os pressupostos vertidos no Plano apresentado aos credores, e que foi objecto de aprovação (por 96% dos credores votantes), a devedora
FP, Lda.
poderá ganhar a sua solvência, nomeadamente, apresentando Capitais Próprios positivos no final do período em análise, e por consequência, a sua viabilidade.”
E, por despacho de 08/05/2024, a Mma. Juíza
a quo
determinou:
“(…) o parágrafo transcrito não constitui parecer fundamentado nos termos legais, limitando-se a, com base numa eventualidade (caso se verifiquem os pressupostos vertidos no Plano apresentado aos credores), afirmar que a requerente poderá “ganhar a sua solvência” e “por consequência, a sua viabilidade”. // Note-se que, na actual configuração legal, o parecer do Administrador Judicial Provisório é essencial para que o tribunal possa firmar o seu juízo de viabilidade e, no caso, o “parecer” nada explica e não nos habilita a perceber a razão pela qual o plano elaborado e apresentado garante a viabilidade da empresa. // Donde, reitero o despacho anterior, solicitando à Sra. Administradora Judicial Provisória o cumprimento, não meramente formal da norma, apresentando um parecer devidamente fundamentado e explicativo que permita verificar e concluir pela viabilidade da sociedade requerente.”
[3]
Código de Processo Civil anotado
, Volume V, Coimbra Editora, 1984, págs. 114 e ss.
[4]
Manual de Processo Civil
, Coimbra Editora, 2.ª edição, 1985, págs. 686/687, nota 3.
[5]
Código de Processo Civil Anotado,
Vol. I, Almedina, 2.ª edição, 2020, pág. 819, anotação ao artigo 656.º.
[6]
O n.º 1 do artigo 194.º prevê um tratamento igualitário dos credores no plano de insolvência - princípio
conditio par creditorum
-, sendo que, no entanto, não se trata de uma igualdade absoluta, antes impondo que situações distintas sejam tratadas de modo diferente (consoante a natureza dos créditos e a diversidade das suas fontes). O que está vedado é a sujeição a diferentes regimes de credores que se encontram em circunstâncias idênticas (salvo se nisso os mesmos acordarem – n.º 2 do artigo 194.º).
[7]
O n.º 2 do artigo 196.º elenca as entidades que não podem ser afectadas pelas medidas propostas/aprovadas, sendo que aí não é mencionado o Estado.
[8]
Estatui o n.º 1 do artigo 216.º: “
O juiz recusa ainda a homologação se tal lhe for solicitado pelo devedor, caso este não seja o proponente e tiver manifestado nos autos a sua oposição, anteriormente à aprovação do plano de insolvência, ou por algum credor ou sócio, associado ou membro do devedor cuja oposição haja sido comunicada nos mesmos termos, contanto que o requerente demonstre em termos plausíveis, em alternativa, que: a) A sua situação ao abrigo do plano é previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano, designadamente face à situação resultante de acordo já celebrado em procedimento extrajudicial de regularização de dívidas; b) O plano proporciona a algum credor um valor económico superior ao montante nominal dos seus créditos sobre a insolvência, acrescido do valor das eventuais contribuições que ele deva prestar.
“
[9]
Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado,
Quid Juris, 3.ª Edição, 2015, págs. 781/782.
[10]
Com interesse veja-se o acórdão desta Secção de 09/04/2024 (Proc. n.º 919/23.0T8BRR-A.L1-1, relator Manuel Ribeiro Marques), com plena aplicação no caso,
“Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de 25 de Março de 2014, processo nº 6148/12.1TBBRG.G1.S1 (Fonseca Ramos): «A parte final do art.º 194º, nº1, do CIRE foi ditada por razões de ordem pública convocando o princípio constitucional da proporcionalidade.” // E como assinala o Tribunal Constitucional (vide acórdãos n.º 123/2018, de 6 de Março de 2018 e 154/2022, de 17 de Fevereiro de 2022): “constitui jurisprudência constitucional reiterada e pacífica que o princípio da proibição do excesso se analisa em três subprincípios: idoneidade, exigibilidade e proporcionalidade.” // Acrescenta-se nesse acórdão que, “o subprincípio da proporcionalidade (ou da justa medida) determina que os fins alcançados pela medida devem, tudo visto e ponderado, justificar o emprego do meio restritivo; o contrário seria admitir soluções legislativas que importem um sacrifício líquido de valor constitucional». // Em consonância, estipula o art.º 17.º-F, n.º 7, do CIRE, na sua actual redacção, que incumbe ao juiz aferir se no plano “os credores inseridos na mesma categoria são tratados de forma igual e proporcional aos seus créditos” (al. b) e se, “no caso de classificação dos credores em categorias distintas, nos termos da alínea d) do n.º 3 do artigo 17.º-C, as categorias votantes discordantes de credores afetados recebem um tratamento pelo menos tão favorável como o de qualquer outra categoria do mesmo grau, e mais favorável do que o de qualquer categoria de grau inferior”. // E, no que toca aos créditos da Segurança Social, estipula o art.º 191º do CRCPSS: Condição especial da autorização // As condições de regularização da dívida à segurança social não podem ser menos favoráveis do que o acordado para os restantes credores. // Ora, no caso, não se descortina, nem a apelante avança qualquer explicação para justificar a sua afirmação, que o estabelecido no plano quanto ao seu crédito viole o princípio da igualdade ou da proporcionalidade, por contraponto com os restantes credores, em particular com os credores comuns.”,
acórdão disponível in www.dgsi.pt, como os demais que vierem a ser citados.
[11]
Lei Geral Tributária, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 398/98 de 17/12, diploma este aplicável aos créditos da Segurança Social por força da alínea a) do artigo 3.º do CRCSPSS.
[12]
Como refere ALEXANDRE SOVERAL MARTINS,
Um Curso de Direito da Insolvência,
Almedina, 2015, págs. 412/413,
“O aditamento do nº 3 referido (ao artigo 30º da Lei Geral Tributária) visava, designadamente, enfrentar as dúvidas que até aí surgiam acerca da relação entre o CIRE, a LGT, o CPPT, e o regime da regularização das dívidas à segurança social. Com efeito, a jurisprudência mostrava-se dividida quanto à possibilidade de o plano de insolvência, porque previsto em lei especial, afastar o regime contido em normas imperativas da legislação referida. O artigo 30º, nº 3, da LGT não permite agora dizer que as soluções previstas no plano prevaleceriam sobre a legislação fiscal”.
[13]
Também encontramos o princípio da indisponibilidade do crédito tributário manifestado no artigo 85.º, n.º 3 do CPPT, que dispõe “
A concessão da moratória ou a suspensão da execução fiscal fora dos casos previstos na lei, quando dolosas, são fundamento de responsabilidade tributária subsidiária.
”
[14]
Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, aprovado pela Lei n.º 110/2009, 16/09.
[15]
Para além de serem indisponíveis, os créditos tributários são irrenunciáveis – artigo 60.º do CPPT -, apenas sendo possível conceder perdões e/ou moratórias nas situações legalmente previstas (mesmo que tais medidas se mostrem imprescindíveis à recuperação do devedor).
Como refere SARA LUÍS DIAS,
O Crédito Tributário no Processo de Insolvência e nos Processos Judiciais de Recuperação,
Almedina, 2021, pág. 46, “
não pode a AT estabelecer qualquer tipo de negociação com os contribuintes e afetar o seu crédito, devendo cingir a sua atuação ao que estiver legalmente disposto. Só o legislador pode definir as situações em que tal tratamento aparentemente ´desigual´, refletido na concessão de perdões e/ou moratórias dos seus créditos, se pode verificar, só ele está habilitado a fixar as condições em que deva acontecer a modificação e/ou extinção da obrigação fiscal
”.
[16]
Neste sentido, vide o acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 15/12/2011 (Proc. n.º 467/09.1TYVNG-Q.P1.S1, relator Silva Gonçalves) e de 10/05/2012 (Proc. n.º 368/10.0TBPVL-D.G1.S1, relator Álvaro Rodrigues).
[17]
SUZANA TAVARES DA SILVA e MARTA COSTA SANTOS,
Os créditos fiscais nos processos de insolvência: reflexões críticas e revisão da jurisprudência,
Janeiro/2015, disponível para consulta in
https://estudogeral.sib.uc.pt/jspui/bitstream/10316/24784/1/STS_MCS%20insolvencia.pdf
[18]
Caso contrário, dificilmente se conseguiria compatibilizar a protecção dos créditos tributários com a efectiva e eficaz prossecução das finalidades do CIRE, bem como dar cumprimento às obrigações a que o Estado se vinculou no
Memorando de entendimento sobre condicionalismos específicos de política económica
, de 17/05/2011, onde se consigna expressamente que
“as autoridades tomarão também as medidas necessárias para autorizar a administração fiscal e a segurança social a utilizar uma maior variedade de instrumentos de reestruturação baseados em critérios claramente definidos nos casos em que os credores tenham aceite a reestruturação dos seus créditos, e para rever a lei tributária com vista à remoção de impedimentos à restruturação voluntária das dívidas”.
Por pertinente, veja-se a posição de CATARINA SERRA,
Processo Especial de Revitalização - contributos para uma “rectificação”,
Revista da Ordem dos Advogados, nº 72, Abril/Setembro, 2012, pág. 740, onde se defende uma interpretação restritiva das normas tributárias com fundamento na teleologia subjacente ao PER e na unidade do sistema jurídico - “
a regra de que havendo contradição entre o que resulta da interpretação do texto expresso de uma norma jurídica e aquilo que resulta do silêncio de outra se resolve com a sobreposição da primeira à segunda não deve ser mantida quando acarrete uma desconsideração da teleologia que está subjacente a esta e outras perturbações intoleráveis para a harmonia do sistema jurídico
”.
[19]
Nesse sentido, veja-se SARA LUÍS DIAS, obra citada, pág. 167: “
a aprovação e consequente homologação de planos de recuperação que alterem ou condicionem o crédito tributário para além dos limites previstos na lei tributária afeta o princípio da indisponibilidade do crédito tributário (e o interesse público e colectivo que lhe está subjacente), o qual, conforme vimos, impossibilita a AT de, livremente, aceitar e/ou aderir a medidas que, mesmo imprescindíveis e favoráveis à recuperação do insolvente, impliquem uma redução ou extinção dos seus créditos
”.
[20]
Decreto que procedeu à regulamentação do CRCSPSS.
[21]
No acórdão do STJ de 17/01/2023 (Proc. n.º 1311/21.7T8VFX.L1.S1, relator Luís Espírito Santos), invocado pela apelante, o caso tratado não é exactamente idêntico ao presente (desde logo por o plano de recuperação prever a suspensão das execuções fiscais em curso e fixar perdão de juros).
[22]
Veja-se, a título de exemplo, o disposto no artigo 97.º, n.º 1, al. a), do CIRE, do qual decorre que, sendo declarada a insolvência da devedora, desaparecerão os privilégios dos créditos da recorrente.
[23]
Designadamente dos acórdãos da Relação de Lisboa de 22/09/2020, da Relação de Coimbra de 24/09/2013 e de 01/10/2013, da Relação de Guimarães de 11/07/2013 e do STJ de 18/02/2014 e de 24/03/2015, aos quais se aditam o da Relação de Coimbra de 26/04/2022 (Proc. n.º 840/21.7T8ACB.C1, relatora Maria João Areias) e desta Secção de 04/07/2023 (Proc. n.º 11886/22.8T8LSB.L1-1, relatora Maria Manuela Espadaneira).
[24]
ANA PAULA BOULAROT, publicação
Julgar,
n.º 31, Janeiro-Abril de 2017 -
Apontamentos sobre os efeitos do processo especial de recuperação
-, disponível em
http://julgar.pt.
; CATARINA SERRA,
O Regime Português da Insolvência
, 5.ª edição, 149 e segs; L. M. PESTANA DE VASCONCELOS,
Recuperação de Empresas: o Processo de Revitalização
, págs. 135 e segs.
[25]
Acórdão proferido no âmbito do Proc. n.º 11271/23.4T8LSB.L1-1, relatora Ana Rute da Costa Pereira.
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TRL
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https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/e76c6cd4a5fd397080258c4600551d7f?OpenDocument
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1,759,795,200,000
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REVOGAÇÃO
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11789/21.3T8PRT.P2
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11789/21.3T8PRT.P2
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FÁTIMA ANDRADE
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I - A anulação da decisão para ampliação da matéria de facto, não afeta o decidido nessa mesma decisão que não venha impugnado e não esteja afetado pelo vício que determinou a anulação.
II - No recurso que venha a ser interposto da subsequente decisão, está precludido o direito da parte a impugnar matéria de facto que vinha já julgada provada da primeira decisão e que, por então não impugnada, se teve como definitivamente assente entre as partes. Sob pena de violação do caso julgado.
Salvaguarda feita à necessidade de evitar contradições, tal qual previsto na parte final do nº 3 al. c) do artigo 662º do CPC.
III - A impugnação da decisão de facto não se destina a obter um segundo julgamento, mas antes a reapreciação da prova nos pontos que em concreto as partes apontem padecer de erro, perante os concretos meios probatórios produzidos e que lhes incumbe especificar, sob pena de rejeição da pretendida reapreciação.
Não se bastando como tal, para efeitos do exigido pela al. b) do nº 1 do artigo 640º do CPC, com uma enunciação em bloco dos meios probatórios sem descriminação dos mesmos por referência a cada um dos factos impugnados. Especialmente quando a impugnação se dirige a realidade factual diversa que convoca diversos meios de prova.
IV - Estando em causa a impugnação de factualidade cuja análise e apreciação foi submetida a meios de prova sujeitos à livre apreciação da prova – vide prova documental conjugada com depoimentos testemunhais – para que o tribunal de recurso esteja habilitado a formar um juízo autónomo sobre a prova produzida, é imprescindível que lhe estejam acessíveis os mesmos elementos de prova que ao tribunal recorrido foram colocados à sua disposição para análise.
Da sua falta, por deficiente gravação da prova, resulta a inviabilidade de tal reapreciação.
V - Sobre a seguradora recai o ónus de provar o incumprimento doloso mencionado no artigo 25º da LCS, ou negligente para os fins do artigo 26º da mesma LCS.
VI - Perante uma situação de sobresseguro, a seguradora responde apenas pelo valor dos bens, conforme ao disposto nos artigos 128º e 132º da LCS - esta última norma imperativa, sem prejuízo de poder ser estabelecido regime mais favorável ao tomador do seguro, conforme estipulado no artigo 13º da LCS.
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[
"AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO",
"ANULAÇÃO DA DECISÃO",
"RECURSO DA DECISÃO SUBSQUENTE",
"CASO JULGADO",
"IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO",
"NÃO DESCRIMINAÇÃO DE MEIOS PROBATÓRIOS POR REFERÊNCIA AOS FACTOS IMPUGNADOS",
"DEFICIÊNCIA DA GRAVAÇÃO",
"SOBRESSEGURO"
] |
Processo nº. 11789/21.3T8PRT.P2
3ª Secção Cível
Relatora – M. Fátima Andrade
Adjunta – Eugénia Cunha
Adjunta –Fernanda Almeida
Tribunal de Origem do Recurso - Tribunal Judicial da Comarca de Porto – Jz. Central Cível do Porto
Apelantes/ AA e “A... – Companhia de Seguros, S.A.”(esta em ampliação do recurso).
Sumário
(artigo 663º nº 7 do CPC):
……………………………………….
……………………………………….
……………………………………….
Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto
I - Relatório
AA
instaurou ação declarativa sob a forma de processo comum contra
“A... – Companhia de Seguros, S.A.”
e
“B..., S.A.”
, peticionando pela procedência da ação a condenação das RR.
“a pagar ao A. a quantia de € 1.000.050,00 (um milhão e cinquenta euros), acrescida dos juros de mora vincendos desde a citação até ao efetivo e integral pagamento”.
Para tanto alegou em suma o A.:
- ter celebrado com a 1ª R., através da 2ª R. a cujos serviços recorreu, um contrato de seguro do Ramo Multirriscos para proteção dos bens de sua pertença com o capital seguro de € 1.000.050,00, correspondente a bens de sua pertença e que descreveu, em 17º e 13º da p.i. (estes por referência ao doc. 3 junto com a p.i.) ;
- contrato este com início em 03/08/2018 e em cujas coberturas foi incluído (entre outros) o risco de incêndio e atos de vandalismo;
- os bens objeto do referido contrato de seguro encontravam-se no local descrito em 9º da p.i., por empréstimo do respetivo proprietário (vide 9º da p.i.);
- Em 04/09/2018 deflagrou no armazém onde o A. tinha depositado os mencionados bens, um incêndio do qual resultou a sua total perda;
- Feita a respetiva participação do sinistro à 1ª R. através da 2ª R., veio esta 1ª R. comunicar ao A. que anula o contrato
“pela identificação de diversas inconsistências e inexatidões aquando da subscrição da apólice (...) considerando que, aquando da sua celebração foram prestadas declarações inexatas essenciais e significativas para a apreciação e aceitação do risco, nomeadamente, quanto ao ramo de atividade da empresa; condições e descrição do local de atividade da empresa; e indicadores económicos, financeiros e contabilísticos”
.
Recusando-se a indemnizar o A..
- não aceitando o A. a anulação comunicada, está a 1ª R. obrigada a pagar a indemnização peticionada ao abrigo das coberturas contratadas;
- tendo o A. cumprido o seu dever de informação pré-contratual perante a 2ª R., a quem forneceu toda a informação relevante para a celebração do contrato de seguro, a verificar-se omissão ou inexatidão da informação transmitida à 1ªR., tal facto decorre da violação dos deveres contratuais da 2ª R., causando sério prejuízo ao A.;
- incorrendo assim a 2ªR. na obrigação legal de indemnizar o A. pelos danos infligidos, mormente a convicção formada no A. relativa à proteção dos seus bens no montante de € 1.000.050,00 (um milhão e cinquenta mil euros).
Termos em que peticionou a condenação de ambas as RR. nos termos acima indicados.
Contestou a 2ª R.,
em suma impugnando parcialmente o alegado e no mais afirmando:
- Ter emitido na plataforma eletrónica da 1ª R. a simulação, proposta e apólice se seguro de acordo com os dados fornecidos pelo autor para o efeito.
Tendo o autor pago o respetivo prémio;
- Ao longo do referido processo de contratação do seguro, não foi solicitada pela Seguradora, 1.ª Ré, ao medidor de seguros - 2.ª Ré, quaisquer outras informações / elementos que não os constantes do formulário disponível na plataforma;
- Pelo que a 2.ª Ré cumpriu todos os deveres de informação que lhe se impunham enquanto medidor de seguros. Inexistindo qualquer violação dos seus deveres contratuais.
Consequentemente, inexistindo qualquer obrigação de indemnização por parte da 2ª R.;
- Mais alegou não fazer o A. prova dos danos por si elencados e respetivo valor.
Termos em que concluiu pela sua total absolvição do pedido.
Contestou a 1ª R. seguradora, em suma impugnando parcialmente o alegado e no mais, afirmando:
- Tendo recebido a participação do sinistro identificado pelo autor na p.i., após a receção de toda a documentação necessária, concluiu a R. que à data da celebração do contrato, o segurado prestou declarações inexatas essenciais e significativas para a apreciação e aceitação do risco – nos termos que descreveu na contestação - motivo por que procedeu à comunicação ao A. de que o contrato era nulo e de nenhum efeito;
- O valor dos bens em causa não é o alegado, pois foram adquiridos por € 142.000,00;
- Tivesse a Ré tido acesso a toda a informação, entretanto obtida, e jamais teria celebrado o contrato de seguro;
- O Autor sabia e não podia desconhecer da importância das informações prestadas, pelo que o incumprimento por parte do Autor do dever de declaração foi doloso;
- Se o Autor não tem prestado declarações falsas e inexatas e incompletas, a Ré jamais aceitaria celebrar o contrato de seguro;
- O incêndio deveu-se a causa intencional, decorrente de uma ação praticada a título de dolo direto, através do derramamento de um produto líquido de elevada volatização, com capacidade para potenciar e acelerar a combustão na sua fase inicial.
Pelo que se não verifica o risco de incêndio como sendo uma combustão acidental;
- Tão pouco se tratando de ato de vandalismo – a outra garantia alegada pelo Autor – em face dos elementos apurados e que afastam tal hipótese. Porquanto a ação intencional terá sido perpetrada por quem teve acesso ao espaço. Já que os bombeiros tiveram necessidade de arrombar os portões quando ao local chegaram;
- Independentemente do alegado, sempre se verificará uma franquia contratual de 10%.
Sendo a indemnização devida pelo valor de aquisição dos bens - €142.000,00.
Termos em que concluiu pela procedência das exceções invocadas, com a sua consequente absolvição do pedido e sempre pelo julgamento da ação de acordo com a prova a produzir em sede de audiência de julgamento.
Respondeu o A., após para tanto convidado pelo tribunal a quo, às exceções invocadas pela R. seguradora, em suma alegando:
- forneceu todas as informações que lhe foram solicitadas pela 2ª R., nunca tendo sido interpelada pela 1ª R. para prestar esclarecimentos ou informações adicionais;
- pagou o A. o prémio em função do valor atribuído aos bens, criando a legítima expetativa da proteção dos seus bens e do seu património, com o valor seguro de € 1.050.000,00;
Termos em que concluiu pela improcedência das exceções invocadas pela 1ª R..
*
Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador; identificado o objeto do litígio e elencados os temas da prova.
Apresentada reclamação aos temas de prova, foi a mesma julgada improcedente.
*
Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento, após o que foi proferida sentença, julgando:
“totalmente improcedente a presente ação intentada pelo A., AA, e absolve-se os RR. A... – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A. e B..., LDA.do pedido.”
*
Do assim decidido apelou o A. pugnando pela revogação do decidido e pela procedência da ação.
Tendo então a R. apresentado contra-alegações,
à cautela com ampliação do âmbito do recurso, nos termos do artigo 636º do CPC,
concluindo a final pela total improcedência do recurso e manutenção da decisão recorrida, face ao bem decidido.
Ao que o A.
recorrente apresentou contra-alegações à ampliação deduzida
, em suma argumentando que o conhecimento das questões julgadas prejudicadas, decorre do artigo 665º do CPC, não cabendo na ampliação do recurso deduzido.
Devendo os autos serem remetidos à 1ª instância quando o tribunal de recurso não esteja na posse de todos os elementos.
No mais, pugnou pela improcedência das demais questões a eventualmente conhecer.
*
Admitido e apreciado o recurso interposto, foi por Acórdão proferido por esta Relação decidido:
“anular a decisão recorrida para ampliação da decisão de facto, com reabertura da audiência se considerado necessário e oportuna prolação de nova decisão, conhecendo das questões da validade do contrato e indemnização devida, sendo o caso.”
Do assim decidido, interpôs a R. “A...” recurso de revista para o STJ, tendo este tribunal superior decidido manter o decidido no Acórdão desta Relação.
Remetidos os autos à 1ª instância, após despacho do tribunal a quo a determinar a notificação das partes para o seu entendimento de
“não haver razões para reabertura da audiência de julgamento para produção de prova, indo-se proferir decisão a colmatar a nulidade referida pelo Tribunal da Relação do Porto, artº 6º, nº 1, do CPC.”
o qual não mereceu resposta das partes,
foi proferida nova sentença, a final se decidindo
:
Julga-se totalmente improcedente a presente ação intentada pelo A., AA, e absolve-se os RR. A... – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A. e B..., LDA.do pedido.”
*
Notificadas as partes do assim decidido, interpôs o A. recurso de apelação, oferecendo alegações e a final formulando as seguintes
“
CONCLUSÕES
(…)
Termos em que e nos demais de Direito devem V/Exas. julgando o presente recurso provido, substituir a decisão recorrida por outra que julgue a ação totalmente procedente, por provada, e ser reconhecido, declarado e condenados os RR. a pagar a quantia de €1.000.050,00 (um milhão e cinquenta euros), acrescida dos juros de mora vincendos desde a citação até ao efetivo e integral pagamento.
Assim se fazendo JUSTIÇA!”
*
Apresentou a R. “B..., Lda.” contra-alegações,
a final
concluindo pela total improcedência do recurso e manutenção da decisão recorrida, face ao bem decidido.
Para tanto tendo apresentado as seguintes
“Conclusões
(…)
Termos em que deverá o recurso improceder e em consequência, ser a douta Sentença recorrida integralmente confirmada,
Assim se fazendo Sã e Serena JUSTIÇA!”
*
Apresentou a R. “A...” contra alegações,
com ampliação do âmbito do recurso nos termos do artigo 636º do CPC
.
Tendo em suma invocado:
- não pode o agora Apelante, só nesta fase, colocar em crise, por via do recurso da matéria de facto, o decidido em primitiva sentença quando, no primeiro recurso apresentado, não colocou em crise a matéria de facto então julgada.
Com efeito, nos presentes Autos tivemos já uma decisão judicial proferida a 17.10.2022 da qual o agora Apelante recorreu.
À data, não colocou em crise os factos dados como provados.
Ora, se à data não concordava com o sentido da decisão, necessariamente, deveria o agora Apelante ter, também, impugnado a decisão no recurso que apresentou – mesmo com carácter subsidiário.
Aliás, se o recurso então apresentado tem sido julgado improcedente, o que dizer da discordância do Apelante em relação à matéria de facto que agora pretende colocar em crise? Obviamente que a decisão transitava em julgado.
(…)
Na mesma linha, a decisão proferida pela Relação do Porto anulou a decisão para, se necessário, ampliar a matéria de facto, mas sem colocar em causa a parte da decisão que não estava em recurso.
Por isso mesmo, ante as decisões proferidas pela Relação do Porto e do Supremo Tribunal de Justiça, o Mmo. Juiz do Tribunal a quo nem teve necessidade de produzir mais prova para proferir a decisão que agora está em crise.
Sendo certo que, a decisão agora impugnada é exatamente a mesma que foi proferida então. Mais, o que o Apelante pretende agora colocar em crise não resulta sequer da ampliação da matéria de facto – já que nenhum facto foi aditado.
Donde, por força do vindo de referir, não pode o Apelante pretender, agora, impugnar matéria de facto que aceitou, sob pena de violação do caso julgado.
- Sem prescindir,
Deve o recurso ser rejeitado por não observância do disposto no artigo 640 nº 1 do CPC. O Apelante limita-se a identificar, em bloco, os factos que entende que devem ser impugnados. Seja nas conclusões, seja na motivação. E, em bloco, identifica meios de prova que, no seu entender, impunham decisão diferente sem, contudo, especificar, para cada um dos concretos pontos de facto impugnados qual ou quais as provas que, no seu entender, impunham decisão diversa.
Pelo que deve ser rejeitado o recurso nesta parte;
- Se assim não for entendido, defendeu ainda a recorrida a manutenção da decisão de facto por não merecer censura.
Bem como a manutenção da decisão de direito.
Sem prescindir, invocando a recorrida não ter o A. feito prova de que todo o material adquirido estava no armazém.
Ainda, e em sede de ampliação do objeto do recurso, pugnou a recorrida
- que seja sufragada a interpretação conforme à cláusula 52.º, número 4, alínea c) do contrato de seguro celebrado, porquanto o capital seguro deverá corresponder ao preço corrente de aquisição para o segurado, leia-se 142.000,00€ e não 1.000.000,00€.
Assim, porque os bens em causa foram adquiridos pelo preço de 142.000,00€, no limite, deverá ser este o valor da hipotética condenação, sempre descontado da franquia contratual prevista de 10% do valor indemnizável;
E, sem prescindir
- conforme alegado pela Ré Apelada e que o Tribunal a quo deu como provado, a área ocupada de 560m2 não era capaz de suportar as alegadas 1800 paletes.
Significa, portanto, que não resultou provado que a totalidade do material adquirido se encontrava nos armazéns que arderam.
Pelo que, o Apelante não fez, sequer, prova de que todo o material adquirido estava naquele armazém – não podendo este Tribunal conceder a indemnização no valor total, seja de 142.000,00€, seja de 1.000.000,00€.
Termos em que concluiu pela total improcedência do recurso e manutenção do decidido.
***
O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo. Tal como foi admitida a ampliação do recurso formulada pela ré A....
Foram colhidos os vistos legais.
***
II- Âmbito do recurso.
Delimitado como está o recurso pelas conclusões das alegações, sem prejuízo de e em relação às mesmas não estar o tribunal sujeito à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito nem limitado ao conhecimento das questões de que cumpra oficiosamente conhecer – vide artigos 5º n.º 3, 608º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4 e 639º n.ºs 1 e 3 do CPC – resulta das formuladas pelo apelante Autor serem
questões a apreciar:
1- erro na decisão de facto.
E como questão prévia
. admissibilidade da impugnação deduzida pelo autor neste segundo recurso – quanto à matéria de facto que vinha já julgada provada e não provada e foi mantida, sem qualquer alteração - atendendo à não impugnação aduzida no primeiro recurso, em conformidade se tendo declarado no 1º Acórdão proferido que
“a decisão da matéria de facto não vem impugnada e tem-se, como tal, definitivamente assente entre as partes – sem prejuízo das situações de conhecimento oficioso (vide o disposto no artigo 662º nº 2 do CPC).”
. observância dos ónus de impugnação e especificação por parte do recorrente;
2- erro na subsunção jurídica
***
III- Fundamentação
Foram julgados provados os seguintes factos:
[em relação à primeira decisão que oportunamente foi alvo de recurso, sem impugnação da decisão de facto nela constante, foi introduzida de novo a matéria dos factos provados 60) e 61). No mais se tendo mantido na integra o anteriormente decidido em sede de decisão de facto].
“1) Por contrato de seguro titulado pela apólice nº ...05 – ramo Multi-Riscos Empresas, com início em 03-08-2018, o A. transferiu para a 1ª Ré a responsabilidade multirriscos sobre o recheio existente no local de risco Rua ..., ... ..., com o capital seguro de € 1.000.050,00 (um milhão e cinquenta euros), correspondente a Existências no montante de €1.000.000,00 (um milhão de euros) e Mobiliário no montante de € 50,00 (cinquenta euros), cfr. apólice, condições contratuais e recibo de prémio, cfr. Docs.. Nºs 5, 6, e 7.
2) De acordo com a referida apólice, o capital seguro possuí as seguintes coberturas:
Atos de vandalismo, Maliciosos ou de Sabotagem;
Aluimento de Terras;
Assistência ao Estabelecimento;
Avaria de Máquinas;
Choque ou Impacto de Objetos Sólidos;
Choque ou Impacto de Veículos Terrestres;
Danos em Bens do Senhorio;
Danos por Água;
Demolição e Remoção de Escombros;
Derrame Acidental de Óleo;
Derrame de Sistemas de H.P.C.I;
Equipamento Eletrónico;
Furto ou Roubo;
Furto ou Roubo – Dinheiro em Caixa;
Furto ou Roubo – Dinheiro em Cofre;
Greves/Tumultos/ Alteração O. Pública;
Incêndio, Ação Mecânica de Queda de Raio, Explosão;
Privação de Uso do Local Arrendado ou Ocupado;
Proteção a Clientes .- Acid. Pessoais;
Proteção a Clientes – Roubo Din./Obj. Pessoais;
Proteção do Seg./Empr. - Acid. Pessoais;
Proteção do Seg./Empr. - Roubo Din./Obj. Pessoais;
Proteção Jurídica;
Quebra de Vidros e Pedras Ornamentais;
Quebra ou Queda de Antenas;
Quebra ou Queda da Painéis Solares;
Queda de Aeronaves;
RC Proprietário, Inquilino ou Ocupante;
Responsabilidade Civil Exploração (Opção 1)
3) Por comunicação datada de 26 de novembro de 2019, a 1ª R., notifica o A. da conclusão das diligências respeitantes à instrução do processo de sinistro, bem como da sua respetiva análise, concluindo pela identificação de diversas inconsistências e inexatidões aquando da subscrição da apólice, motivo pelo qual, vem anular o contrato de seguro com o nº ...05, considerando que, aquando da sua celebração foram prestadas declarações inexatas essenciais e significativas para a apreciação e aceitação do risco, nomeadamente, quanto ao ramo de atividade da empresa; condições e descrição do local de atividade da empresa; e indicadores económicos, financeiros e contabilísticos, conforme doc. 21 da p.i.
4) O A. é empresário em nome individual dedicando-se a diversos ramos de atividade, entre os quais a compra e venda e remodelação de imóveis.
5) Em 01/03/2018 o A. encontrava-se inscrito / coletado na Autoridade Tributária (AT) para o exercício da atividade de comércio a retalho de:
a) têxteis, estab. Espec. - com o CAE 47510;
b) ferragens e vidro plano, Estab.- com o CAE 47521;
c) tintas, vernizes e produtos similares – com o CAE 47522;
d) materiais bricolage, equipamentos sanitários, LAD – com o CAE 47523;
e) carpetes, tapetes, cortinas REV.P/P - com o CAE 47530;
f) Eletrodomésticos, estab. Espec. - com o CAE 47540;
g) mobiliário e artigos de iluminação – com o CAE 47591;
h) louças, cutel. out.art.sim.p/uso – com o CAE 47592;
i) outros artigos para o lar, n.e., est. - com o CAE 47593;
j) artigos segunda mão, estb. espeq. - com o CAE 47790;
k) jornais, revistas e art. papelaria – com o CAE 47620;
l) discos, CD, DVD, Cassetes e simil. - com o CAE 47630;
m) art.desporto, campismo e lazer – com o CAE 47640;
n) jogos e brinquedos, estab. Espec. - com o CAE 47650;
o) vestuário para adultos, estab. Espec – com o CAE 47711;
p) vestuário para bebes e crianças, est. - com o CAE 47712;
q) calçado, estab. espec. - com o CAE 47721;
r) marroquinaria e artigos viagem, es – com o CAE 47722;
s) rel. e art ourivesaria e joalharia – com o CAE 47770;
t) outros prod. novos, estab. espec, n – com o CAE 47784; cfr. Doc. Nº 1 da p.i.
6) Para o desempenho da sua atividade comercial, o A. adquiriu num leilão eletrónico da AT, quantidade de mercadoria diversificada (quinquilharia, artigos para o lar, brinquedos, roupas, tintas, entre outros) com vista à sua revenda a terceiros.
7) A qual estava avaliada junto da AT na quantia de €2.703.019,84 (dois milhões, setecentos e três mil e dezanove euros e oitenta e quatro cêntimos), cfr auto de adjudicação da AT, sob doc. 2.
8) Mas que dada a ausência de propostas pelo valor supra, o A. veio a adjudicar em 06/03/2018, pela quantia de €142.000,00, cfr. auto de adjudicação no processo executivo ...92 junto sob o doc. Nº 2.
9) O conjunto de mercadorias adquirida pelo A. era constituído por cerca de três milhões e oitenta e oito mil quatrocentos e noventa e cinco artigos, cfr. Doc. 3.
10) Que foram entregues ao A. em maio de 2018, com a consequente remoção do armazém onde estavam depositados, à ordem do sobredito processo de execução fiscal.
11) Perante a necessidade de armazenar os referidos artigos, o A. estabeleceu diversos contactos com vista a encontrar um espaço com a capacidade necessária para o efeito.
12) Assim, tendo surgido a oportunidade de usufruir a título de empréstimo, de dois pavilhões sitos num complexo industrial composto por sete, na Rua ..., ..., em ... (antigas instalações da C...), o A. de imediato aceitou a proposta do seu proprietário.
13) Tendo providenciado pelo transporte de todos os artigos para o referido local no decurso do mês de maio e até ao início do mês de junho de 2018.
14) No decorrer dos meses de junho e julho desse ano, o A. foi procedendo à classificação dos diversos artigos e, em simultâneo, estabelecia contactos para aferir do preço de venda dos mesmos, com vista a obter lucro.
15) E assim elaborou o A. a listagem dos diversos artigos por si adquiridos e ali armazenados, por género, quantidade, valor atribuído (pela AT) e valor de mercado (após dedução da sua depreciação), cfr. cópia que infra junta sob o doc. Nº 3.
16) Com a conclusão da referida tarefa e após ter conferido individualmente cada lote dos milhares de artigos, o A. obteve uma estimativa do respetivo valor venal que ascendia aproximadamente a €1.000.000,00 (um milhão de euros), vide DOC. Nº 3.
17) Em face do atribuído valor da mercadoria o A. resolveu proteger eventuais perdas e danos, incluído atos de furto ou roubo, por via da aquisição de um seguro com as referidas coberturas.
18) Para tal, recorreu aos serviços da 2ª R., a sociedade B..., Lda., a qual lhe apresentou uma proposta de proteção multirriscos, com o nº ...05, com início a 03/08/2018, cuja cópia infra junta sob o DOC. Nº 4.
19) A referida proposta foi aceite pelo A., que a subscreveu e a qual foi remetida pelo mediador, à seguradora, aqui 2ª e 1ª RR., respetivamente, para emissão da respetiva apólice.
20) Sucedeu que, em 04-09-2018, pelas 05:41 horas, deflagrou um incêndio no armazém onde o A. tinha depositado os supra referidos bens., cfr. Relatório da Ocorrência dos Bombeiros Voluntários ..., junto como doc. Nº 8.
21) Do qual resultou a perda total dos bens do A. ali armazenados, conforme Descrição da Ocorrência, constante do suprarreferido Relatório de Ocorrência, da qual consta expressamente que:
“INCENDIO EM ARMAZENS QUE CONTINHAM MATERIAL DIVERSO (MATERIAL ESCOLAR, BRINQUEDOS, ELETRODOMESTICOS, ENTRE OUTROS).
À NOSSA CHEGADA VERIFICAMOS INCENDIO DE GRANDE INTENSIDADE COM PAVILHAO COMPLETAMENTE TOMADO E O PAVILHAO ADJACENTE TAMBÉM COM INCENDIO DE PROPORCOES CONSIDERAVEIS.”
22) A Reportagem Fotográfica e Relatório do Exame Pericial elaborado pelo Gabinete de Perícia Criminalística da Polícia Judiciária do Departamento da Investigação Criminal de Leiria, enviada ao local a solicitação da Guarda Nacional Republicada das Caldas da Rainha, que deu origem ao NUIPC ..., mostra a magnitude do incêndio e do nível de destruição provocado pelo mesmo, conforme doc. nº 9.
23) E ainda da conclusão do referido Relatório Pericial, de 19 de setembro de 2018, pode ler-se que “Apesar do elevado grau de destruição e pela diversidade de materiais ali armazenados, foi possível perceber que o mesmo teve origem no armazém 2, não sendo possível determinar o ponto de início em concreto.”
24) Após a ocorrência, o A. deu conhecimento do sucedido ao mediador, aqui 2ª R., para participar junto da seguradora, 1ª R. por forma a acionar o referido seguro, o que aquela fez.
25) A 1ª R. solicitou realização de peritagem à D..., Lda., cfr docs. 10, 11 e 12.
26) O A. foi ouvido junto de Órgão de Polícia Criminal responsável pela investigação – Polícia Judiciária – Departamento de Investigação Criminal de Leiria, em 13-03-2019, na qualidade de lesado no âmbito do NUIPC nº ..., em que corrobora todo a dinâmica relativa à aquisição dos referidos bens e subscrição da apólice de seguro para cobertura de eventuais danos, cfr cópia do Auto de Inquirição sob doc. nº 13.
27) Paralelamente foram trocadas diversas comunicações entre o A. e as RR., por referência ao processo de sinistro, como exemplificativamente as juntas sob os docs. 14 a 20.
28) O A. facultou à 2ª R. a morada respeitante ao local do risco, na qual se encontrava depositada a mercadoria a segurar e fotografias desta.
29) Por comunicação eletrónica de 01-10-2019, o A. já havia solicitado o pagamento de indemnização decorrente do sinistro, cfr doc. nº 20.
30) Em consequência da participação de comunicação de sinistro, a 1ª Ré procedeu à averiguação das causas do sinistro e, bem assim, a recolha de informação diversa a fim de lhe permitir tomar posição sobre o sinistro.
31) Após ter recebido a documentação necessária, a Ré decidiu declarar nulo e de nenhum efeito o contrato de seguro celebrado, porquanto à data da celebração do contrato, o segurado prestou declarações inexatas essenciais e significativas para a apreciação e aceitação do risco – cfr. doc. 21.
32) De acordo com as informações prestadas pelo segurado, relativo à atividade da empresa, foi identificado o CAE 46491 referente a comércio por grosso de artigos de papelaria.
33) Sendo que, depois, se veio a verificar que o segurado não se encontrava inscrito/coletado para o comércio por grosso.
34) Aquando da apresentação da proposta foi indicado um volume de negócios de 100.000,00€, quando, o mesmo não tinha qualquer atividade e qualquer volume de negócios.
35) Foi identificado um volume anual de salários de 12.000,00€, quando se veio a verificar que não existia salário algum.
36) O Autor declarou o início da atividade já depois de ter apresentado proposta de adjudicação, pois que a venda no processo executivo ocorreu no dia 06.03.2018.
37) No que ao edifício diz respeito foi identificado que o edifício havia sido construído em 1985, quando se trata de um complexo que foi inaugurado em setembro de 1967.
38) Já quanto ao vigamento do telhado isolado por placa, separação entre pisos (placa) e teto falso (materiais incombustíveis) – a tudo isto o segurado respondeu afirmativamente, o que não se verificava.
39) Eram dois edifícios devolutos desde 2008, abandonados, com deteriorações.
40) A que acresce a falta de instalação de luz e de quaisquer sistemas de autoproteção e vigilância do espaço – ainda que o Autor tenha, também, identificado a sua existência.
41) A declaração de não existência de produtos inflamáveis superiores a 500KG, quando os bens seriam todos inflamáveis e, em conjunto, tinham um peso bem superior a 500KG.
42) O Autor declarou, ainda, que os objetos a segurar teriam o valor de 1.000,000€ quando os bens haviam sido adquiridos por 142.000,00€.
43) Aquando da proposta de seguro, o proponente Autor confirma a exatidão das informações prestadas e declara não ter omitido nada e que seja significativo para a apreciação do risco – cfr. doc. 4.
44) E, depois, o nº 2 estabelece que tal é igualmente aplicável a circunstâncias cuja menção não seja solicitada em questionário eventualmente fornecido pelo segurador para o efeito.
45) Os bombeiros tiveram necessidade em arrombar os portões e proceder à abertura de espaços nas fachadas para terem acesso ao interior dos edifícios.
46) Os portões encontravam-se fechados e com os sistemas de fecho ativos aquando da chegada dos bombeiros para o combate, os quais tiveram necessidade de arrombar os portões.
57) O incêndio teve como causa fogo posto por parte de alguém desconhecido que transportou para o local um produto derivado de hidrocarbonetos de elevada capacidade de volatilização de modo a potenciar a combustão e uma fonte de calor externa.
58) Aquando da averiguação foi alegado que o material corresponderia a 1.800 paletes.
59) Considerando as 4 áreas de armazenagem (duas por pavilhão) teríamos uma área total de 560m2 de área ocupada.
(
[1]
)
60) A R. no momento da celebração do contrato teve em consideração as respostas dadas pelo A. às perguntas que lhe foram formuladas, as quais eram relevantes para a R. apreciar o risco, seja quanto ao interesse segurável, seja quanto aos bens seguros e ao objeto a segurar.
61) O A. sabia da importância das informações prestadas e caso tivesse prestado as declarações exatas e completas, a R. não tinha celebrado o contrato de seguro.
62) A 2.ª Ré interveio, enquanto mediadora de seguros, na contratação de diversos seguros pela empresa E..., seus representantes e respetivos familiares.
63) No âmbito dessa relação comercial, a 2.ª Ré era frequentemente contactada por trabalhadora daquela empresa de nome BB.
64) Em data que não consegue precisar, mas que situa em finais de julho de 2018, a 2.ª Ré foi contactada por BB, a qual solicitou a obtenção de uma simulação para um seguro de danos sobre coisas móveis com o capital seguro de €1.001.000,00 (um milhão e mil euros) para o tomador de seguro aqui Autor.
65) A 2.ª Ré solicitou, então, uma relação dos bens a segurar e fotografias dos mesmos.
66) Nessa sequência, foi enviada à 2.ª Ré, por e-mail de 01.08.2018, uma relação dos bens a segurar – cfr. e-mail de 01.08.2018 junto como Doc. nº 1.
67) No mesmo e-mail de 01.08.2018, foi a 2.ª Ré informada do nome completo do tomador do seguro, o aqui Autor, e respetivo NIF; – cfr. Doc. n.º 1.
68) E da morada do armazém onde ficaria depositada a mercadoria objeto do seguro – cfr. Doc. n.º 1.
69) Mais acrescentou que o referido armazém se situava junto ao Call Center da .../..., sendo a entrada exterior comum aos dois espaços – cfr. Doc. n.º 1.
70) Referiu, ainda, que o Call Center tem videovigilância – cfr. Doc. n.º 1.
71) Telefonicamente, foi a 2.ª Ré informada de que os bens a segurar haviam sido adquiridos em leilão eletrónico junto da AT.
72) A 2.ª Ré informou então, desde logo, que o capital seguro poderia não corresponder ao valor da indemnização em caso de sinistro.
73) Tendo esclarecido que, em caso de sinistro, a indemnização corresponderia ao dano efetivo registado, até ao montante do capital seguro por referência ao valor de aquisição das mercadorias seguras.
74) Na mesma data, foram remetidas à 2.ª Ré alegadas fotografias da mercadoria a segurar e a morada completa do local onde a mesma estaria depositada: Rua ..., ... ... – cfr. e-mail que se junta como Doc. n.º 2.
75) Para preenchimento da simulação de proposta de seguro, foram facultados à 2.ª Ré os dados de identificação do Autor: nome, morada, número de identificação fiscal, data de nascimento, número de documento de identificação e telemóvel.
76) Foi indicado à 2.ª Ré que o Autor se dedicava à atividade de comércio, com o CAE 46491;
77) Que o valor anual de faturação era de €100.000,00;
78) Que tinha ao seu serviço 1 (um) trabalhador, com o valor anual de salários de €12.000,00.
79) Ainda na mesma ocasião e para o mesmo efeito de preenchimento da simulação de seguro, a 2.ª Ré foi informada pelo Autor, que o recheio a segurar se encontrava em edifício construído em 1985.
80) Que a estrutura, cobertura e teto falso do edifício eram compostas por materiais incombustíveis.
81) Que não existiam produtos inflamáveis superiores a 500 Kg ou 500 litros no local onde se encontrava o recheio a segurar.
82) Que o vigamento do telhado era isolado por placa, bem como a separação entre pisos;
83) Que o referido edifício dispunha de extintores portáteis como sistema de prevenção / proteção contra incêndios.
84) Mais foi a 2.ª Ré informada que o valor a segurar era de €1.001.000,00 referente a recheio, sendo o valor em novo do mobiliário, deduzido da depreciação pelo uso ou estado, de €1.000,00 e o valor de aquisição das existências de €1.000.000,00.
85) Que o risco proposto não esteve total ou parcialmente seguro.
86) Que o risco proposto não registou algum sinistro nos últimos 3 anos.
87) E que não existem outros fatores que sejam significativos para a apreciação do risco.
88) Na posse destas declarações, a 2.ª Ré preencheu, no dia 03.08.2018, a simulação de Seguro Multirriscos Empresas “F...” na plataforma eletrónica da 1.ª Ré, a que a 2.ª Ré acede através da inserção de dados identificativos confidenciais – cfr. cópia do relatório de simulação junto como Doc. n.º 3.
89) A referida simulação foi enviada pela 2.ª Ré ao Autor – cfr. e-mail junto como Doc. n.º 2.
90) O Autor aceitou a referida simulação, tendo dado instruções à 2.ª Ré para a emissão da proposta de seguro com alteração do capital seguro para €1.000.050,00 (um milhão e cinquenta euros) referente a recheio, sendo o valor em novo do mobiliário, deduzido da depreciação pelo uso ou estado, de €50,00 e o valor de aquisição das existências de €1.000.000,00.
91) No dia 03.08.2018, a 2.ª Ré acedeu à plataforma da 1.ª Ré através das suas credenciais e emitiu a referida proposta de seguro com o capital seguro de € 1.000.050,00 (um milhão e cinquenta euros) – cfr. proposta junta como Doc. n.º 4 da PI.
92) A referida proposta foi enviada ao Autor, por e-mail da mesma data – cfr. e-mail junto como Doc. n.º 4.
Acompanhada do documento “F... INFORMAÇÕES PRÉ-CONTRATUAIS” – cfr. consta do Doc. n.º 4 da P.I.
93) O Autor confirmou o teor da referida proposta e das informações pré-contratuais à mesma anexas e nela apôs a respetiva assinatura – cfr. Doc. n.º 4 da P.I..
94) Tendo, no dia 07.08.2021, sido remetido à 2.ª Ré a referida proposta de seguro assinada pelo Autor – cfr. Doc. n.º 5.
95) O que originou a emissão da apólice de seguro Multi-Riscos Empresas ...05, regulada pelas condições contratuais constantes do Doc. n.º 6 da P.I.
96) O original da proposta de seguro assinado pelo Autor foi posteriormente, em data que não se consegue precisar, encaminhado pela 2.ª Ré à 1.ª Ré por via de comercial ao serviço desta última.
97) Ao longo deste processo desenvolvido na plataforma da 1.ª Ré não foi originado qualquer bloqueio.
98) Tendo sido pago pelo Autor o respetivo prémio de seguro.
99) Ao longo do referido processo de contratação do seguro, não foi solicitada pela Seguradora, aqui 1.ª Ré, ao medidor de seguros, aqui 2.ª Ré quaisquer outras informações / elementos que não os constantes do formulário disponível na plataforma.
100) Não tendo a Seguradora, aqui 1.ª Ré, sequer solicitado a relação de bens a segurar e/ou fotografias dos mesmos.
101) A 2.ª Ré preencheu todos os campos do formulário disponível na plataforma eletrónica da 1.ª Ré de acordo com as declarações que lhe foram fornecidas pelo Autor.
102) Caso o formulário não tivesse sido submetido completo ou registasse qualquer anomalia / insuficiência no seu preenchimento, a plataforma da 1.ª Ré originaria um bloqueio.
103) A submissão do formulário pela 2.ª Ré não acionou qualquer bloqueio, que a ter ocorrido, o que não foi o caso, impediria a emissão da proposta e/ou da apólice.
104) Seguindo-se, nesse caso de bloqueio, um processo, da iniciativa de funcionário comercial da Seguradora, de solicitação de documentação ao mediador de seguros que, por sua vez, diligenciaria pela sua obtenção junto do proponente tomador de seguro;
105) Culminando na rejeição da proposta pela seguradora ou na sua aceitação através do levantamento do bloqueio e emissão na referida plataforma eletrónica da proposta e/ou da apólice pelo mediador de seguros.
106) Na ausência de tal bloqueio, foi emitida a proposta e de seguro e a apólice nº ...05.”
***
O tribunal a quo julgou ainda
não provada
a seguinte factualidade:
“a) O conjunto de mercadorias adquirida pelo A. era constituído por cerca de três milhões e duzentos mil artigos.
b) O A. tenha prestado toda a colaboração e esclarecimentos necessários a instruir a peritagem elaborada pela D....
c) O A., previamente à celebração do contrato de seguro, forneceu à 2ª R., com exatidão todas as circunstâncias necessárias à apreciação do risco pelo segurador.”
*
***
Conhecendo.
1)
Em função do supra elencado, cumpre apreciar em primeiro lugar o imputado erro à decisão de facto.
Nesta sede sendo apreciadas as questões já acima assinaladas da:
. admissibilidade da impugnação deduzida pelo autor neste segundo recurso – quanto à matéria de facto que então vinha julgada provada e não provada e foi mantida, sem qualquer alteração - atendendo à não impugnação aduzida no primeiro recurso, em conformidade se tendo declarado no 1º Acórdão proferido que
“a decisão da matéria de facto não vem impugnada e tem-se, como tal, definitivamente assente entre as partes – sem prejuízo das situações de conhecimento oficioso (vide o disposto no artigo 662º nº 2 do CPC).”
e
. observância dos ónus de impugnação e especificação por parte do recorrente;
*
Comecemos pela admissibilidade da impugnação da decisão de facto apontada neste segundo recurso pelo recorrente ao decidido sobre os pontos factuais 32) a 46), 72), 73), 75) a 88), 95) e 101) dos factos provados
[2]
[cuja nova redação é indicada nas conclusões E) a MM)] e pela pugnada introdução de um novo facto – o indicado na conclusão OO).
Como se pode verificar pelo confronto da matéria em questão com a constante na primeira sentença que viria a ser anulada, os factos provados supra identificados correspondem na integra aos factos que vinham já provados na primeira sentença que por Acórdão desta Relação veio a ser anulada – sendo que os factos 72 e seguintes, como consequência da introdução de dois novos factos na decisão ora recorrida sob os números 60) e 61), correspondem aos factos da anterior decisão dois número abaixo [ou seja o atual e indicado número 72) corresponde ao número 70) da primeira sentença. A mesma relação se verificando quanto aos demais números da factualidade provada agora invocados pelo recorrente].
Por outro lado e quanto ao facto que o recorrente indicou na conclusão OO) pretender ver agora aditado aos factos provados, mais não é o mesmo do que o facto não provado constante da al. c) da primeira sentença, a que agora e na redação sugerida acrescentou o que seriam os mails e documentos “comprovativos do que descreveu em tais emails”, sem sequer especificar os documentos em causa [vide uma vez mais a al. OO) do presente recurso, no confronto com a al. c) dos factos não provados constante da primeira sentença e, igualmente da sentença ora sob recurso].
Como já tivemos oportunidade de assinalar supra, no recurso interposto pelo autor recorrente sobre a 1ª sentença proferida, não deduziu o mesmo qualquer impugnação à decisão de facto que então foi proferida, implicando ter ficado a mesma definitivamente assente entre as partes – nos termos e com as limitações declaradas no 1º Acórdão proferido:
“a decisão da matéria de facto não vem impugnada e tem-se, como tal, definitivamente assente entre as partes – sem prejuízo das situações de conhecimento oficioso (vide o disposto no artigo 662º nº 2 do CPC).”
Como então se assinalou no Acórdão proferido, o ali e aqui recorrente, sem questionar o decidido pelo tribunal a quo quanto à qualificação do incêndio em causa nos autos como um incêndio de origem dolosa e não meramente acidental, com a consequente decidida exclusão do seu enquadramento na cobertura incêndio, de acordo com os termos do contrato celebrado com a R. seguradora – exclusão justificada na interpretação do artigo 7º, ponto 1 do contrato conjugada com o previsto no artigo 5º nº 1 al. e) – defendeu então em sede de recurso estar este mesmo evento coberto enquanto ato de vandalismo.
Para tanto convocando a cobertura incluída no contrato celebrado, tal como resulta da cláusula 7ª - cobertura 014 das condições gerais [vide conclusão 5], conjugado com o teor da apólice emitida como veremos adiante.
Cobertura que por este tribunal foi considerado ser aplicável, com a consequência de estar a R. seguradora obrigada a indemnizar o A. recorrente, pelos danos que o mesmo tivesse demonstrado ter sofrido como consequência do ato de vandalismo analisado e de acordo com o acordado contratualmente.
Assim só não ocorrendo, se nomeadamente procedesse a exceção de nulidade do contrato de seguro celebrado invocada pela recorrida seguradora e que então não fora conhecida pelo tribunal a quo.
Pendente de apreciação em tal recurso estando também a questão do limite indemnizatório, relacionado com a quantificação dos danos.
Retornando à questão da nulidade do contrato de seguro invocada pela recorrida seguradora (e a título subsidiário a anulabilidade), fundou a recorrida a mesma, por referência ao previsto nos artigos 24º a 26º da LCS, em alegadas falsas declarações e omissão de informações relevantes por parte do tomador de seguro (aqui recorrente e autor nos autos) que teriam conduzido a R. a aceitar celebrar o contrato de seguro com base em erro, tendo o segurado plena consciência de tais factos que não podia desconhecer, prestando falsas/inexatas declarações aquando da celebração do contrato e mais invocando a seguradora que jamais teria celebrado o contrato de seguro, caso o A. não tivesse prestado as informações falsas.
E, tendo presente que
“sobre a seguradora recaía o ónus de provar o incumprimento doloso mencionado no artigo 25º da LCS, ou negligente para os fins do artigo 26º da mesma LCS.”
; bem como que a
“inexatidão das declarações está demonstrada nos termos dos factos provados 31 a 35, 37 a 41 e 74 a 80”
,
assinalou-se no Acórdão a que nos referimos estar
“por demonstrar que o A. assim os tenha declarado com consciência da sua inexatidão (relevante para efeitos de dolo).”
A que acrescia não constar, nem dos factos provados nem dos não provados,
“a sua relevância para a seguradora avaliar o risco e consequente erro em que alegou ter sido induzida pelas respostas dadas”
.
Pelo que e tendo a R. seguradora imputado
“ao A. o conhecimento e consciência da inexatidão dos factos alegados. Bem como a sua relevância para a celebração do contrato”
, e sendo a
“decisão de facto (…) completamente omissa quer quanto a este conhecimento e consciência por parte do A., quer quanto à relevância destes factos apurados para a celebração do contrato na perspetiva da R. recorrida – não obstante igualmente alegado (vide artigos 23º, 30º a 32º, 39º e 45º da contestação da R. seguradora)”
se determinou a anulação da decisão recorrida, nos termos do artigo 662º nº 2 al. c) do CPC, para que o tribunal a quo procedesse à ampliação da decisão de facto.
Em causa o alegado pela R. seguradora, quer sobre a imputação ao A. do conhecimento e consciência da inexatidão dos factos alegados, bem como quanto à relevância para a celebração do contrato destes factos apurados, na perspetiva da seguradora (tendo em conta nomeadamente o alegado pela R. seguradora nos artigos 23º, 30º a 32º, 39º e 45º da sua contestação).
*
Como se percebe da súmula que aqui deixamos quanto aos fundamentos expostos no 1º Acórdão proferido para a anulação da sentença recorrida, considerou-se a factualidade que vinha já julgada provada e que por não impugnada se teve com definitivamente assente entre as partes. E, com base na mesma, determinou-se a ampliação da decisão de facto para suprimento de omissões concretas e assinaladas.
Em cumprimento do ordenado tendo o tribunal a quo introduzido na decisão dois novos factos – os indicados na nova decisão sob os números 60) e 61) e que também vêm impugnados pelo recorrente.
O mesmo é dizer que a anulação decidida, teve um único fito – o de suprir a omissão de factos considerados indispensáveis para a apreciação do mérito da causa, nomeadamente das exceções que haviam sido invocadas pela R. seguradora e inicialmente não apreciadas, por julgadas prejudicadas face à subsunção jurídica acolhida pelo tribunal a quo e que não foi validada no Acórdão então proferido. Determinando o conhecimento das demais questões cujo conhecimento inicialmente fora julgado prejudicado.
Em nada se tendo afetado o demais decidido, concretamente quanto à matéria de facto julgada então provada e não provada e definitivamente assente entre as partes.
Nos termos do disposto no artigo 662º nº 3 al. c) do CPC, anulada a decisão para ampliação da decisão de facto
“a repetição do julgamento não abrange a parte da decisão que não esteja viciada, sem prejuízo da apreciação de outros pontos da matéria de facto, com o fim de evitar contradições”.
O mesmo é dizer que a anulação da decisão para ampliação da matéria de facto, não afeta o decidido nessa mesma decisão, quando não venha impugnado e não esteja afetado pelo vício que determinou a anulação.
No recurso que venha a ser interposto da subsequente decisão, está precludido o direito da parte a impugnar matéria de facto que vinha já julgada provada da primeira decisão e que, por então não impugnada, se teve como definitivamente assente entre as partes. Sob pena de violação do caso julgado
[3]
.
Salvaguarda feita à necessidade de evitar contradições, tal qual previsto na parte final do nº 3 al. c) do artigo 662º do CPC.
Sem aplicação in casu, nem tão pouco é esse o fundamento do recorrente para impugnar agora a factualidade julgada provada e não provada e com a qual então se conformou.
Termos em que se rejeita a reapreciação da decisão de facto no que concerne aos pontos da decisão de facto que acima elencámos, por já definitivamente assente a mesma entre as partes
.
*
De fora da rejeição com estes fundamentos, fica a impugnação apresentada sobre os pontos 60) e 61) dos factos provados.
Os novos factos introduzidos pelo tribunal a quo, para suprimento da omissão notada e que foi fundamento da anterior anulação.
*
Importa ainda e em relação aos mesmos, apreciar se foram observados os ónus de impugnação e especificação por parte do recorrente
.
Questão que também a recorrida suscitou, alegando, entre o mais que o recorrente não observou o exigido pela al. b) do nº 1 do artigo 640º do CPC, na medida em que recorreu à técnica de impugnação em bloco, sem especificar para cada um dos factos provados quais os meios probatórios que impõem decisão diversa.
Dando como assente (pela análise que vimos de efetuar) que o recorrente cabalmente identificou os pontos da matéria de facto que impugna – dos quais restam para apreciação os pontos 60) e 61) – bem como a redação pretendida [vide conclusões T) e U)], impõe-se analisar se falhou, como alegado, o cumprimento do ónus exigido pela al. b) do nº 1 do artigo 640º do CPC, ou seja se especificou
“b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida”
.
Ainda se também o ónus exigido pelo nº 2 al. a) do mesmo artigo foi observado, o qual assim dispõe:
“a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.
Analisadas quer as conclusões de recurso, quer o corpo alegatório, verifica-se que o recorrente após identificar de forma seguida/conjunta todos os factos que entendeu terem sido julgados erradamente provados (ou a aditar) [os acima já assinalados e cuja reapreciação foi rejeitada, bem como os dois sobre os quais recai esta análise prévia] e após ter reproduzido parte da fundamentação da decisão de facto recorrida, concluiu:
“Contudo, do teor dos doc.1, doc.2, doc.3, doc.8 juntos com a Petição Inicial, bem como dos doc.1, doc.2, doc.4 e doc.5 juntos com a Contestação apresentada pela 2ª Ré, conjugados, ainda, com os testemunhos prestados por CC, DD e EE, de forma linear, concreta, explicita e sem qualquer margem para dúvidas factos diversos daqueles que constam do acervo probatório dado por provado e que se impugna.”.
Após o que reproduziu parte dos depoimentos destas testemunhas convocadas [ou seja os depoimentos de CC; DD; EE - identificando ainda passagens da gravação], em seguida tecendo alguns considerandos que teve por pertinentes, no confronto com a documentação que também invocou.
Sem que em momento algum tenha feito uma correspondência concreta entre os meios de prova invocados e os múltiplos factos julgados provados
.
Finalmente alegou ainda o recorrente, por referência ao último trecho da fundamentação de facto da decisão recorrida que aqui deixamos reproduzido (tal como o recorrente o fez) – “
Foi ainda claro que a R. se soubesse da desconformidade das respostas dadas pelo A. com a realidade não teria celebrado o contrato de seguro, vide os depoimentos das testemunhas DD, EE, FF, GG, aliás, a plataforma da R. nem sequer permitiria aceitar a realização do contrato, caso os dados transmitidos pelo A. correspondesse à realidade, pois bloquearia a aceitação da realização do contrato” –
que
“nenhuma daquelas testemunhas afirmou tal, estando ainda por demonstrar que, mesmo inserindo na plataforma informática todos os dados que foram considerados dolosamente omitidos e inexatos, tal provocaria um bloqueio para a aceitação do contrato e tal prova seria necessariamente fácil de concretizar com a apresentação dos comprovativos documentais dessa situação, acrescendo que, obviamente, o A. recorrente não conhece a plataforma informática da R. e muito menos quais as circunstâncias que provocam um bloqueio.”
Assim enunciados os termos em que o recorrente aduziu a sua impugnação à decisão de facto, é nosso entendimento que o mesmo recorreu à metodologia de impugnação em bloco, sem assinalar quais os meios probatórios relevantes para cada facto impugnado, sequer para uma concreta realidade factual. Omissão que assume especial relevância, quando o recorrente na multiplicidade de factos impugnados, atacou realidades tão diversas como as informações pelo mesmo prestadas à 2ª R.; a sua própria realidade pessoal/comercial; a realidade física dos edifícios onde alegou ter sido colocada a mercadoria, a mercadoria objeto do seguro. Ainda o circunstancialismo relacionado com o incêndio que motivou o acionamento do seguro; a relevância das informações pelo mesmo prestadas para a R. seguradora e ao seu conhecimento da importância das mesmas (vide concretamente os factos provados 60 e 61); bem como as informações que foram prestadas ao A. pela 2ª R. e à emissão da apólice após prévia simulação.
É entendimento reiterado na jurisprudência que a exigência legal a que respeita a al. b) do nº 1 do artigo 640º do CPC impõe ao recorrente a indicação dos concretos meios probatórios que evidenciam o erro de julgamento e assim impõem uma decisão diversa para cada um dos factos impugnados.
A impugnação da decisão de facto não se destina a obter um segundo julgamento, mas antes a reapreciação da prova nos pontos que em concreto as partes apontem padecer de erro perante os concretos meios probatórios produzidos e que lhes incumbe especificar, sob pena de rejeição da pretendida reapreciação.
Não se bastando como tal, para efeitos do exigido pela al. b) do nº 1 do artigo 640º do CPC, com uma enunciação em bloco dos meios probatórios sem descriminação dos mesmos por referência a cada um dos factos impugnados. Especialmente quando a impugnação se dirige a realidade factual diversa que convoca diversos meios de prova.
Neste sentido se decidiu no recente Ac. do STJ de 11/03/2025, nº de processo 2404/20.3T8CBR.C1.S1 in
www.dgsi.pt
, onde e após se afirmar que “
A lei de processo é (…) clara na exigência de que o recorrente, além de individualizar, com a precisão exigível, os pontos de facto que reputa de julgados em erro, relacione cada um desses concretos pontos de facto que entende terem sido incorretamente julgados com cada um dos meios de prova e com cada passagem relevante dos meios de prova gravados ou com a transcrição que, eventualmente, tenha feito das passagens relevantes dos meios de prova objeto do registo sonoro (…)”
se assinalou como ressalva a esta proibição que tem vindo a ser defendida pelo STJ,
“numa interpretação bona partem”,
a admissibilidade da
“impugnação da decisão da matéria por atacado ou por blocos de factos”,
quando
“esse conjunto de factos e de provas correspondam a uma mesma realidade factual que deva ser julgada com os mesmos meios de prova (…)(art.º 640.º, n.ºs 1, b), e 2, a), do CPC).”
[4]
Tendo em conta a corrente jurisprudencial do nosso tribunal superior assinalada, no confronto com os termos em que a impugnação da decisão de facto vem fundamentada pelo recorrente – organizada de forma genérica e em bloco, não obstante a multiplicidade de factos identificados e diversa natureza dos mesmos - é nosso entendimento que o recorrente não cumpriu de forma válida o ónus de especificação relativo aos concretos meios probatórios que impunham decisão diversa para cada um dos factos impugnados, implicando a
rejeição da reapreciação da decisão de facto com base neste fundamento, e assim também em relação aos dois pontos factuais que restavam para reapreciação, perante o antes decidido - nomeadamente os factos provados 60 e 61.
Ainda que assim se não entendesse,
importa referir que o tribunal a quo no último parágrafo da decisão de facto supra mencionado [que aliás o recorrente também reproduziu] convocou o depoimento das testemunhas DD, EE, FF e GG, para afirmar que dos depoimentos destas testemunhas resultou claro que
“a R. se soubesse da desconformidade das respostas dadas pelo A. com a realidade não teria celebrado o contrato de seguro”,
sendo que a plataforma da R., aliás, “
nem sequer permitiria aceitar a realização do contrato, caso os dados transmitidos pelo A. correspondesse à realidade, pois bloquearia a aceitação da realização do contrato.”
A relevância das informações prestadas para a R. seguradora e a sua não celebração do contrato, caso soubesse da realidade apurada – vide os factos provados 60 e 61 – foi pelo tribunal a quo fundamentada, entre o mais e como já referido, também no depoimento da testemunha GG.
Ocorre que a gravação do depoimento desta testemunha se encontra, em grande parte, impercetível. Da sua audição resulta uma gravação entrecortada que retira a percetibilidade do conjunto deste depoimento e não garante assim do mesmo uma avaliação segura.
Mesmo a entender-se que seria de reapreciar a prova gravada produzida, na audição dos depoimentos das testemunhas verificou-se que as convocadas pelo recorrente inicialmente, CC, DD e EE, têm depoimentos gravados de forma percetível.
O mesmo já não acontece com o depoimento gravado da testemunha GG.
A crítica apontada pelo recorrente ao último parágrafo da fundamentação da decisão de facto, com relevo para os pontos 60 e 61 dos factos provados, convoca a análise, também, dos depoimentos das testemunhas FF e GG – para além dos já referidos DD e EE.
Daquelas duas primeiras testemunhas, é percetível a gravação da testemunha FF. Mas já não o depoimento da testemunha GG.
Ora tendo o recorrente alegado que nunca estas últimas testemunhas afirmaram que a seguradora não realizaria o seguro caso soubesse das desconformidades das respostas da autora – negação que em relação à testemunha FF sempre se poderia afastar pela audição do respetivo depoimento a que se procedeu, tendo este afirmado que se a seguradora fosse sabedora da efetiva realidade não teria aceite o seguro - resulta clara a importância dos seus depoimentos para a crítica apontada à decisão de facto e em concreto quanto aos pontos 60 e 61 dos factos provados.
Só a total percetibilidade destes depoimentos que pelo tribunal a quo foram convocados, nos permitiria apreciar se a decisão recorrida merece a crítica apontada pelo recorrente aos pontos impugnados, pela essencialidade dos mesmos para, no mesmo plano do tribunal a quo e com recurso aos mesmos elementos probatórios, aferirmos do erro de julgamento que é imputado à decisão recorrida.
Estando em causa a impugnação de factualidade cuja análise e apreciação foi submetida a meios de prova sujeitos à livre apreciação da prova – vide prova documental conjugada com depoimentos testemunhais – para que o tribunal de recurso esteja habilitado a formar um juízo autónomo sobre a prova produzida, é imprescindível que lhe estejam acessíveis os mesmos elementos de prova que ao tribunal recorrido foram colocados à sua disposição para análise.
Da sua falta, por deficiente gravação da prova, resulta a inviabilidade de tal reapreciação.
A autonomia decisória e formação da sua própria convicção que ao tribunal de recurso foram conferidos com a redação do artigo 662º do CPC pressupõem a possibilidade de reanalisar todos os meios probatórios que estiveram acessíveis ao tribunal a quo.
O depoimento da testemunha GG é, como a fundamentação do tribunal a quo acima reproduzida o evidencia, também essencial à análise da prova no seu conjunto e concretamente à crítica apontada pelo recorrente.
Os elementos documentais ponderados pelo tribunal a quo e convocados pela recorrente, só por si, não são suscetíveis de afastar a convicção formada pelo tribunal a quo que procedeu a uma análise conjugada de toda a prova produzida.
Consequentemente e porquanto sequer foi tempestivamente arguida a nulidade da deficiente gravação
[5]
para que pudesse ser conhecida,
resta-nos concluir que também por esta via, sempre seria de concluir pela improcedência da impugnação aduzida à decisão de facto, mantendo-se o nesta sede decidido
.
*
***
Do direito.
Mantida a decisão de facto, cumpre apreciar se ocorre errada subsunção jurídica.
Vindo provado que
-
“A R. no momento da celebração do contrato teve em consideração as respostas dadas pelo A. às perguntas que lhe foram formuladas, as quais eram relevantes para a R. apreciar o risco, seja quanto ao interesse segurável, seja quanto aos bens seguros e ao objeto a segurar”
[fp 60)] e
- “
O A. sabia da importância das informações prestadas e caso tivesse prestado as declarações exatas e completas a R. não tinha celebrado o contrato de seguro”
[fp 61)]
entendeu o tribunal a quo
, ponderando ainda que “
o A. foi instado sucessivamente pela 2ª R. para fornecimento dos dados atinentes à realização do seguro, informando que o edifício era de 1985 quando era de 1967, estando devoluto e abandonado desde 2008, declarou a existência de instalação de luz e sistemas de autoproteção e vigilância quando inexistia, declarou a inexistência de produtos inflamáveis quando eram todos inflamáveis, declarou o valor de €1.000.000,00 quando os tinha comprado por €142.000,00, vindo a assinar o contrato de seguro, sabendo das incorretas informações transmitidas à 2ª R. para assim conseguir celebrar o contrato de seguro.”
estar demonstrada uma atuação por parte do autor com dolo, a determinar a anulação do contrato de seguro, com a consequente improcedência da pretensão indemnizatória pelo mesmo formulada.
Insurgiu-se o recorrente contra o assim decidido, argumentando
(em suma):
i- a não demonstração da sua atuação com dolo;
ii- a necessidade de a seguradora demonstrar a influência da declaração inexata sobre a existência ou as condições do contrato, de tal sorte que não contrataria em tais condições ou fá-lo-ia de modo diverso;
iii- a necessidade de haver nexo causal entre as inexatidões ou factos omitidos dolosamente e a verificação do risco coberto pelo contrato de seguro.
Nexo causal que se não verificou. Com a consequente validade do contrato;
iv- incoerência/contradição nas respostas ao questionário que a mediadora aqui 2ª R. sabia ser inexata, implicando não se poder prevalecer a seguradora de tal circunstancialismo nos termos do artigo 24º nº 3 da LCS.
Posição que configura abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium por parte da seguradora que assumiu um comportamento não diligente na apreciação da declaração de risco.
Abuso de direito que o recorrente invocou também por referência à emissão da apólice, mesmo antes de ser assinada a proposta de seguro pelo autor;
v- Caducidade do direito da autora em arguir a anulabilidade do contrato de seguro nos termos do artigo 287º do CC;
vi- Relevo do valor real do interesse seguro para a pretensão indemnizatória e abuso de direito da seguradora ao questionar o limite indemnizatório.
Sendo estes os argumentos apresentados pelo recorrente para o imputado erro na subsunção jurídica, da não alteração da decisão de facto prévia, associada à introdução dos novos factos constantes dos pontos 60) e 61) provados, cumpre apreciar se assiste razão ao recorrente.
*
Para a apreciação da anulabilidade ou nulidade do contrato celebrado, releva o previsto nos artigos 24º a 26º da LCS.
O nosso entendimento, expresso no anterior Acórdão proferido quanto à aplicação dos normativos citados, mantém-se e por tal aqui se reitera.
O dever de declaração inicial do risco (por parte do tomador do seguro ou segurado) está previsto no artigo 24º nº 1 da LCS – dever de
“declarar com exatidão todas as circunstâncias”
que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador.
Da violação deste dever não decorre, sem mais, a demonstração de que tal conduta se pode classificar como dolosa para efeitos do artigo 25º da LCS, o qual confere ao segurador o direito à anulação do contrato nos termos aí previstos.
Tanto na doutrina como jurisprudência tem sido defendido o enquadramento do dolo a que se reporta este artigo 25º nº 1 no dolo do artigo 253º nº 1 do CC
[6]
.
Nos termos do artigo 253º nº 1 do CC,
“entende-se por dolo qualquer sugestão ou artifício que alguém empregue com a intenção ou consciência de induzir ou manter em erro o autor da declaração, bem como a dissimulação, pelo declaratário ou terceiro, do erro do declarante”
.
O dolo previsto neste nº 1 do artigo 253º, depende da verificação dos seguintes pressupostos
[7]
:
“
a) Que o declarante esteja em erro;
b) Que o erro tenha sido provocado ou dissimulado pelo declaratário ou por terceiro;
c) Que o declaratário ou terceiro (deceptor) haja recorrido, para o efeito, a qualquer artifício, sugestão, embuste, etc”
.
Em causa no dolo previsto neste artigo 253º, uma modalidade do erro-vício que afeta a formação da vontade na celebração do contrato, baseado numa atuação voluntária – omissiva ou positiva,
“por via da utilização de palavras ou do silêncio intencional
[8]
”
- daquele que tem o dever de elucidar o declarante, ie, o segurador que vai analisar o risco e aceitar com base no que lhe é informado a celebração do contrato.
Ou seja, ocorrerá o incumprimento doloso do dever referido no nº 1 do artigo 24º da LCS quando o segurado em tal declaração inicial de risco utilizar de qualquer sugestão ou artifício para induzir em erro o segurador. Sanciona-se a atuação especialmente censurável que conduz à celebração do contrato.
“Não basta agora, para o funcionamento do art.º 25º, que o tomador do seguro e segurado tenham consciência e vontade de omitir ou declarar falsamente sobre circunstâncias que, razoavelmente, devem ser tidas como significativas para a apreciação do risco pela seguradora. É ainda necessário que se prove que as declarações contidas nas respostas ao questionário (...) influíram na celebração do contrato de seguro em causa.”
[9]
Assim afastando a admissibilidade do chamado dolus bonus a que respeita o nº 2 deste mesmo artigo 253º, porquanto
“da lei seguradora resulta expressamente um dever do tomador de seguro e do segurado de elucidação do segurador do que conheça e razoavelmente devam ter por significativo na apreciação do risco por este”.
Assentes estes pressupostos, é ainda de realçar que no incumprimento doloso
não é exigível o nexo de causalidade entre o facto omitido ou inexato e o
sinistro ocorrido
, para operância da anulabilidade prevista no artigo 25º.
Nexo de causalidade que apenas relevará para as omissões ou inexatidões negligentes, no caso do nº 4 do artigo 26º da LCS
.
Tendo o regime previsto neste artigo 26º aplicação no caso da não prova do dolo, seja do tomador de seguro, seja do segurado (no caso dos seguros de grupo restritamente à respetiva cobertura, não afetando a eficácia do contrato nem a cobertura dos restantes segurados, art. 292º do CC), quando se prove a
essencialidade do facto declarado inexatamente ou omitido e a exigibilidade da sua declaração exata
[10]
.
Tendo presentes estes pressupostos para a imputabilidade ao tomador de
seguro das omissões e inexatidões que a título de dolo, ou subsidiariamente a título negligente, a recorrida seguradora imputou ao A., serão os mesmos julgados preenchidos ou não, em função da factualidade alegada e provada.
Sendo certo que sobre a seguradora recaía o ónus de provar o incumprimento doloso mencionado no artigo 25º da LCS, ou negligente para os fins do artigo 26º da mesma LCS.
Tal como afirmado no Ac. STJ de
“é à seguradora que cabe o ónus de provar o erro, a sua relevância e a existência de dolo (art. 342.º, n.º 2, do CC). Dito de outro modo: a anulação do contrato de seguro, nos termos do artº 25º do RJCS, depende da existência de um comportamento doloso que seja causador de um erro (causalidade entre o dolo e o erro) e a essencialidade do erro para a celebração do contrato”
E, no que ao conceito de dolo relevante para efeitos da anulação concerne, mais se afirmou neste mesmo Ac., recorrendo à doutrina:
“pronunciou-se ARNALDO COSTA OLIVEIRA, defendendo que “O dolo de que fala o art 25.º é (ao contrário do fixado no n.º 3 do art.24.º) o simples dolo, que o n.º 1 do art. 253.º do CC - regime geral relativamente ao regime dos arts. 24.º-26.º (cf. art. 4.º do RJCS) - define como “(…) qualquer sugestão ou artifício que alguém empregue com a intenção ou consciência de induzir ou manter em erro o autor da declaração [que neste caso é o autor da declaração de aceitação do negócio jurídico-contrato de seguro, o segurador], bem como a dissimulação, pelo declaratário ou terceiro, do erro do declarante!”(..).
Como explica LUÍS POÇAS, “Em suma, a diferença entre o dolus malus e o dolo no incumprimento do dever de declaração do risco está em que, neste caso, o dolo está orientado para a prestação de omissões ou inexatidões, mas não necessariamente para o engano. Ou seja, o proponente incumpre dolosamente quando quer mentir ou omitir relativamente a um facto que sabe ser relevante, mesmo que o seu propósito não seja enganar o segurador (no sentido de conseguir dele uma declaração negocial contra a sua vontade) mas apenas, por exemplo, esconder um facto embaraçoso, ou refletir uma imagem mais positiva de si próprio. O dolo não é, portanto, um animus decipiendi, mas apenas a consciência e a vontade dirigida aos elementos do tipo de ilícito civil, isto é, a intenção de preencher a previsão normativa. Na verdade, o que importa no artigo 25º é o dolo (intenção) do proponente perante as omissões ou inexatidões: vontade e consciência de mentir ou omitir, independentemente de qualquer propósito de, dessa forma, prejudicar o segurador ou obter reflexamente uma vantagem (só assim, aliás, se compreende a diferença de regime estabelecida no n.º 5 do artigo 25.º)”18.
Sobre o conceito de dolo relevante no quadro do regime do erro, pronunciou-se, ainda, MENEZES LEITÃO, afirmando que “o dolo, como vício do negócio jurídico, envolve três elementos: um elemento objetivo (qualquer sugestão ou artifício), um elemento subjetivo (intenção ou consciência) e um elemento finalista (de induzir ou manter em erro).
O dolo pressupõe um artifício ou embuste. Não é necessariamente ativo. Pode haver dolo omissivo. Por isso, é corrente a dicotomia do dolo em ativo e omissivo. Esta distinção não tem relevância a não ser pedagógica, uma vez que não há diferença de regime jurídico entre uma e outra. E necessário que haja uma trama, um embuste, seja ele traduzido em ação ou numa simples abstenção. Por isso, tanto constitui dolo a manobra enganosa, como o simples deixar a outra parte no engano.
O dolo pressupõe uma atitude subjetiva do agente, que pode traduzir-se na intenção, ou na simples consciência, de enganar ou manter no engano o autor da declaração. A distinção entre a intenção e a consciência nem sempre é fácil e, nesta matéria, não tem de ser feita, porque é irrelevante.
O embuste, seja ele ativo ou omissivo, seja ele consciente ou intencional deve ser finalisticamente dirigido a induzir ou manter em erro o declarante ou a dissimular esse erro. É também irrelevante que o embuste induza o erro mantenha em erro ou dissimule o erro: seja como for, há dolo.”(..)
Resulta, assim, manifesto que, no âmbito da pretensão de anulação do contrato de seguro, a afirmação do dolo não depende de uma qualquer intenção de obtenção de vantagem, bastando a intenção ou a consciência de que se está a prestar informação falsa ou a omitir informação relevante e de que, com essa atuação, se está a induzir em erro o declarante (dolo simples).
Seja como for, é essencial que a prestação de informações inexatas e a omissão de prestação de informações relevantes sejam intencionais ou conscientes e sejam dirigidas à criação de uma desconformidade entre a realidade e a representação dessa realidade pela contraparte, ainda que sem qualquer intenção de obter vantagem.”
Atentos os considerandos relativos ao preenchimento do dolo, no confronto com a factualidade que vem provada, entendemos ser de concluir efetivamente pela
não demonstração de uma atuação dolosa imputável ao declarante autor
.
Note-se que a inexatidão das declarações está demonstrada nos termos dos factos provados 31 a 35, 37 a 41 e 76 a 83.
Igualmente vem provado que o autor, sabendo da importância das informações prestadas (fp 61), prestou uma série de informações inexatas, não correspondentes à realidade, quer no que respeita ao edifício onde a mercadoria segura foi armazenada, quer à sua atividade enquanto empresário, bem como quanto à natureza da mercadoria armazenada (vide fp’s 31 a 41).
Incluindo confirmando a exatidão das informações prestadas – vide fp 43.
No entanto não vem provado, e tal era exigível para que se pudesse concluir pela demonstração do dolo, que o autor com intenção ou consciência de tal, prestou essas mesmas declarações falsas.
Se é certo que quanto às informações relativas à sua pessoa, à sua própria atividade de empresário se entende não ser defensável o desconhecimento da sua própria realidade – são factos pessoais - o mesmo já se não pode dizer no que respeita às condições do edifício – que sequer era de sua pertença, ou à natureza da mercadoria armazenada, tanto mais quando em causa está um elevadíssimo número de artigos adquiridos em hasta pública.
Vindo provado que todas as informações eram relevantes para a decisão de celebração do contrato em causa, sem distinção ou graduação quanto ao relevo das mesmas, é de concluir pela não demonstração por parte da R. seguradora, a quem incumbia tal prova, de que o autor prestou as informações – todas as informações - que se apurou serem falsas e relevantes para a decisão de celebrar o contrato em causa, de forma dolosa.
Consequentemente afasta-se a anulação do contrato ao abrigo do disposto no artigo 25º da LCS
.
A anulação poderá ainda ter lugar ao abrigo do previsto no artigo 26º da mesma Lei quando, verificadas as inexatidões da declaração inicial de risco imputáveis a título de negligência ao tomador do seguro, se verifique – nas circunstâncias em que tal é detetado já após a ocorrência do sinistro como é o caso (vide nº 4 do artigo 26º) – um nexo de causalidade entre as inexatidões das declarações e a verificação do risco.
Este nexo de causalidade, cumpre uma vez mais ser demonstrado pela seguradora.
Analisada a factualidade provada, demonstrado que o sinistro – o incêndio que deflagrou nos armazéns onde a mercadoria segura estava armazenada – teve como causa um ato de vandalismo, sem que qualquer outro circunstancialismo tenha sido apurado, impõe-se concluir pela não demonstração de tal nexo causal.
Afastada ficando assim a anulação pretendida, mesmo ao abrigo do previsto no artigo 26º da LCS.
Consequentemente deve a seguradora responder pelo sinistro, de acordo com o estabelecido contratualmente.
Ficando assim analisados ou afastada a necessidade de análise dos argumentos de recurso apontados supra sob os nºs i a v.
Assim decidido, resta apurar qual o valor indemnizatório a que o recorrente tem direito.
Nesta sede se apreciando a argumentação aduzida pela recorrida seguradora, cujo conhecimento, por via do antes decidido pelo tribunal a quo, ficara prejudicado.
Tal qual resulta dos factos provados, os bens objeto do seguro foram adquiridos por € 142.000,00.
Tendo o A. sido informado que em caso de sinistro a indemnização corresponderia ao dano efetivo registado, até ao montante do capital seguro por referência ao valor de aquisição das mercadorias pagas (vide fp’s 42 e 73).
Informação conforme desde logo ao previsto no artigo 11º da secção II das CCG –
“O segurado adquire o direito de ser devidamente indemnizado nos termos do presente contrato que não pode, em caso algum, ter efeitos lucrativos”
.
Do artigo 13º resultando ainda recair sobre o segurado o ónus de prova da veracidade da reclamação ou do seu interesse legal nos bens seguros.
Finalmente regula o capítulo VII das condições gerais em análise, o capital seguro.
Desde logo dispondo, de um lado que o capital seguro representa o valor máximo da prestação a pagar pelo segurador, de outro que sobre o tomador do seguro recai o ónus e a responsabilidade de indicar o valor dos bens ou interesses a que respeita o contrato, para efeito da determinação do capital seguro. Sendo que no caso de mercadorias o capital seguro deverá corresponder ao preço corrente de aquisição para o segurado, salvo convenção expressa de atualização – vide artigo 52º.
Não se mostra incluída no contrato esta última cláusula de atualização.
A que acrescenta o artigo 58º que em caso de sinistro, a avaliação do valor dos bens seguros, bem como dos danos, é efetuada entre o segurado e o segurador, observando-se para o efeito os critérios estabelecidos no artigo 52º.
Atendendo ao valor de aquisição dos bens que vem provado e ao valor do capital seguro e na ausência de qualquer outra factualidade relativa aos bens seguros e seu valor, resulta claro estarmos perante uma
situação de sobresseguro
que implica para a seguradora responder apenas pelo valor dos bens - vide desde logo artigo 60º das CCG, conforme ao disposto nos artigos 128º e 132º da LCS - esta última norma imperativa, sem prejuízo de poder ser estabelecido regime mais favorável ao tomador do seguro, conforme estipulado no artigo 13º da LCS. Regime mais favorável que in casu não se mostra estipulado, atento desde logo o teor da cláusula 60ª citada supra.
Concluindo, o valor indemnizatório devido pela seguradora, nunca poderá ser superior ao valor que vem provado e constante do fp 42), sem prejuízo da franquia estipulada contratualmente de 10% tal qual consta da apólice de seguro para a cobertura de atos de vandalismo – recorda-se que no anterior Acórdão (confirmado pelo STJ) ficou também já definitivamente assente que a seguradora responderia ao abrigo desta cobertura, salvo verificação da exceção de anulabilidade do contrato (esta julgada supra improcedente).
Inexistindo qualquer abuso de direito por parte da R. seguradora em invocar tal limitação que decorre das regras legais. Não lhe sendo imputável o valor declarado pelo tomador de seguro que do mesmo assumiu a responsabilidade, bem sabendo ou devendo saber que atenta a natureza do seguro de danos celebrado, está o valor indemnizatório limitado ao valor desses mesmos danos que in casu, como já referido, nunca poderia ser superior ao valor do dano em função do valor do bem seguro, in casu apenas vindo provado o valor de aquisição dos mesmos.
Resta para apreciação a questão igualmente suscitada pela R. seguradora relativa ainda ao valor indemnizatório, alegando que o A. não fez prova de que todo o material adquirido estava no armazém na altura do incêndio.
Salvo o devido respeito por entendimento contrário, não assiste razão à R. seguradora neste campo.
Tendo o A. provado que adquiriu a mercadoria e a transportou toda para o local de armazenamento entre maio e junho de 2018, onde veio a deflagrar o incêndio, do qual resultou a perda total dos bens ali armazenados (vide fp´s 6 a 13, 20 e 21) é totalmente improcedente a objeção da recorrente a este título suscitada.
Nada se retirando e contrário do que vem provado em 58 e 59 dos factos provados, quando analisada de forma conjugada toda a demais factualidade provada.
Concluindo, está a R. seguradora obrigada a indemnizar o A. pela quantia de € 127.800,00 [142.000,00-14.200,00 (10%)]
.
A este valor acrescendo juros de mora à taxa legal desde a citação e até efetivo e integral pagamento.
Já quanto à R. B..., mediadora, nenhuma factualidade vem provada que justifique a sua condenação decorrente da sua atividade enquanto mediadora.
Pelo que se impõe manter a sua absolvição total do pedido.
*
***
IV. Decisão.
Pelo exposto, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar parcialmente procedente o recurso interposto, decidindo revogar a decisão recorrida e condenar a R. seguradora A... ao pagamento ao A. da quantia de € 127.800.00, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação e até efetivo e integral pagamento.
Quanto ao mais se absolvendo a R. A..., bem como a R. “B...” do pedido formulado.
Custas por A. e R. seguradora, na proporção do vencimento e decaimento.
Porto, 2025-07-10
(M. Fátima Andrade)
(Eugénia Cunha)
(Fernanda Almeida)
______________________________
[1]
Foram neste ponto introduzidos dois pontos factuais novos sob os nºs 60 e 61 e que deixamos em realce a negrito, passando os anteriores 60 e seguintes a ter numeração subsequente de 62) em diante.
[2]
De fora, nesta primeira análise, ficam os factos que vêm provados sob os nºs 60) e 61) – também alvo de impugnação - que correspondem efetivamente a factualidade nova introduzida na decisão de facto, como consequência dos fundamentos apontados no Ac. por nós proferido e que para tanto determinou a anulação da primeira sentença.
[3]
Sobre esta questão vide o Ac. do STJ de 06/07/2023, nº de processo 2520/20.1T8GMR.G2.S1 in
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, aliás convocado pela recorrida nas suas contra-alegações (e demais jurisprudência no mesmo citada).
[4]
Defendendo a inadmissibilidade da impugnação em bloco, com a ressalva assinalada se decidiu igualmente nos seguintes Acs., todos in
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- Ac. STJ de 15/05/2025, nº de processo 10100/22.0T8SNT.L1.S1
- Ac. STJ de 15/05/2025, nº de processo 5748/21.3T8LSB.L1.S1
- Ac. STJ de 05/06/2024, nº de processo 299/21.9T8CTB.C1.S1
Sendo que anteriormente se vinha defendendo de uma forma mais ampla e sem a referida salvaguarda, a inadmissibilidade da impugnação em bloco.
Assim tendo sido decidido, entre outros, nos Acs.
- Ac. STJ de 12/10/2022, nº de processo 14565/18.7T8PRT.P1.S1
- Ac. do STJ 10.11.2020, nº de processo 21389/15.1T8LSB.E1.S1
- Ac. STJ de 05.09.2018, nº de processo 15787/15.8T8PRT.P1.S2
- Ac. STJ de 20-12-2017, nº de processo 299/13.2TTVRL.G1.S2.
[5]
Tal como pela Relatora já decidido em outros arestos, vide nomeadamente Ac. TRP de 05/06/2023, nº de processo 634/17.4T8FLG-C.P1 in
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“A arguição de nulidade da gravação (artigo 155º nº 4 do CPC) deve ser feita perante o tribunal a quo e no prazo de dez dias a contar da disponibilização às partes daquela.
II - Disponibilização que deve ocorrer no prazo máximo de dois dias a contar do ato em causa, para que desde logo e sendo verificada, possa ser sanada mesmo antes de serem os autos remetidos em recurso.
III - Esta disponibilização não envolve a realização de qualquer notificação às partes, antes sobre as mesmas recaindo um dever de diligência pela rápida obtenção das gravações a contar do ato, com vista a aquilatar de eventuais vícios das gravações e sendo o caso, arguir a pertinente nulidade.”
[6]
Assim neste sentido cfr. Ac. TRP de 21/11/2019, nº de processo 765/17.0T8AMT.P1; Ac. TRG de 12/11/2020, nº de processo 2359/18.4T8VRL.G1; Ac. TRG de 04/11/2021, nº de processo 4017/18.0T8GMR.G1; Ac. TRP de 15/11/2018, nº de processo 12886/16.2T8PRT.P1; Ac. TRP de 26/10/2010, nº de processo 1210/19.2T8MAI.P1, relatado pela aqui 2ª adjunta, todos in
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[7]
Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela in CC Anotado, vol. I – 4ª ed. Revista e Atualizada, em anotação ao artigo 253º, p. 237.
[8]
Cfr. Comentário ao CC – Parte Geral, UCE, ed. 2014 p. 607 em anotação a este artigo 253º.
[9]
Cfr. neste sentido o já citado Ac. TRP de 21/11/2019 e doutrina no mesmo citada.
[10]
Neste sentido cfr. Arnaldo C. Oliveira in LCS Anotada de Pedro Romano Martinez, em anotação ao artigo 25º e Ac. TRG de 20/04/2017, nº de processo 17/16.3T8EPS.G1 in
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.
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TRP
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https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/c491d5050fef42b580258cd7003b74fb?OpenDocument
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1,750,896,000,000
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IMPROCEDENTE
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27898/11.4T2SNT.L1-2
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27898/11.4T2SNT.L1-2
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ANA CRISTINA CLEMENTE
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Sumário (da responsabilidade da relatora nos termos do artigo 663º nº 7 do Código de Processo Civil):
Não existe desproporcionalidade na fixação de uma prestação de alimentos de € 150, apesar da discrepância de rendimentos dos progenitores, quando aquele que tem a guarda suporta um valor correspondente a cerca de quatro vezes mais das despesas apuradas e assume outras despesas inerentes à vida do filho adolescente, não contabilizadas, relacionadas com aquisição de vestuário, produtos de higiene, frequência de atividades extracurriculares ou de lazer, dinheiro de bolso para uma saída com os amigos ou para fazer face a algum imprevisto.
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[
"REGULAÇÃO DO EXERCÍCIO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS",
"PRESTAÇÃO DE ALIMENTOS"
] |
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa
I.
Relatório
Por sentença proferida a 29 de Outubro de 2023 foi regulado o exercício das responsabilidades parentais referentes ao menor JMTM estabelecendo a sua residência com a progenitora, no Brasil, com exercício por esta das responsabilidades parentais quanto aos atos de vida quotidiana do menor e todos os atos necessários para a integração escolar, cuidados de saúde e documentação a serem praticados no Brasil, fixou um regime de visitas para o progenitor e o contributo deste para o sustento do menor com uma pensão mensal de € 150, a atualizar anualmente em função dos índices de inflação divulgados pelo INE, com a primeira a ter lugar em Novembro de 2024.
Inconformado, o progenitor da menor interpôs recurso, expondo as seguintes conclusões:
1ª) Versa o presente recurso matéria de facto e de direito, tais como, os vícios que afetam a validade da decisão proferida, nomeadamente, erro na aplicação do direito aos factos, erro na determinação da norma aplicável, violação de normas jurídicas sendo certo que constam do processo documentos e/ou factos provados que, só por si, implicam decisão diversa da proferida (cfr. artº 616º nº 2 al. a) e b) do CPC).
2ª) Ora, salvo o devido respeito, a Mª Juiz “a quo”, não se pronunciou cabalmente sobre questões essenciais que foram submetidas à sua apreciação, insurgindo-se o apelante da parte da douta sentença que decidiu o seguinte: “(…) 6. O pai contribuirá com uma pensão mensal de 150€ (cento e cinquenta euros) para o sustento do menor a pagar até ao dia 8 de cada mês por transferência bancária ou outro modo idóneo. A prestação de alimentos será atualizada anualmente em função dos índices de inflação divulgados pelo INE (Instituto Nacional de Estatística), sendo a 1.ª atualização em Novembro de 2024.
7. As despesas com a viagem do menor a Portugal para visitar o progenitor são pagas por ambos os progenitores na proporção de metade.”
3ª) A douta sentença recorrida não fez a mais correta interpretação e aplicação das normas jurídicas ao caso em apreço, existindo erro de julgamento.
4ª) Estipula o artº 2003º do CC que a medida dos alimentos, correspondente à pensão, será fixada tendo em atenção as possibilidades do alimentante e as necessidades do alimentado, nestas se incluindo tudo o que seja necessário à promoção e desenvolvimento físico, intelectual e moral dos filhos.
5ª) Para que seja possível descortinar da forma de cálculo da pensão de alimentos a fixar, será necessário ter como ponto de referência o artº 2004.º do CC. Consagra o seu número 1 que “os alimentos serão proporcionais aos meios daquele que houver de prestá-los e à necessidade daquele que houver de recebê-los”.
6ª) Na fixação da prestação de alimentos é necessário ter em conta as necessidades do alimentado, a par das possibilidades económicas do obrigado a alimentos. No entanto, cabe não esquecer o alerta que o artº 2004.º n.º 2 menciona, isto é, há que averiguar da “possibilidade de o alimentando prover à sua subsistência”.
7ª) Tudo assentará, nesta medida, numa correlação entre as possibilidades de quem dá e as necessidades de quem recebe.
8ª) Assim, na fixação da pensão de alimentos, há que atender aos rendimentos que o obrigado aufere, para que seja possível identificar o montante razoável a ser prestado ao alimentado.
9ª) É por esta mesma razão que cada um dos progenitores não contribui equitativamente, mas sim na proporção das suas possibilidades.
10ª) Considerando a factualidade julgada provada nos pontos 12 e 13 da douta sentença recorrida, ou seja, “12 – No ano fiscal de 2020 o requerente JTM declarou o rendimento anual, (categoria B) de € 8.946,00 (oito mil novecentos e quarenta e seis euros) (fls. 853 a 862); Em março de 2023 o requerente encontrava-se aposentado e beneficiava de uma pensão de velhice no valor de € 568,24 (quinhentos e sessenta e oito euros e vinte e quatro cêntimos) (fls. 909 e 910)
13 – A requerida aufere uma pensão de sobrevivência no valor de 22.397,76 reais o equivalente a € 4.222,66 (quatro mil, duzentos e vinte e dois euros e sessenta e seis euros);”, temos por assente que a apelada aufere rendimentos mensais cerca de sete vezes superiores aos do apelante.
11ª) A diferença de rendimentos mensais dos progenitores é abismal, ainda para mais, tendo em consideração que o custo de vida no Brasil é muito inferior ao de Portugal, como é do conhecimento geral.
12ª) Os pontos 6 e 7 da decisão da douta sentença proferida devem ser substituídos por outros que fixem a pensão de alimentos a cargo do progenitor em montante não superior a 75,00€ e determine que as despesas de deslocação do menor a Portugal para visitar o progenitor sejam suportadas na totalidade pela progenitora.
13ª) Ao não decidir assim a douta sentença recorrida violou, nomeadamente, o disposto nos artºs 2003º e 2004º do CC.”
A progenitora e o Digno Magistrado do Ministério Público apresentaram as suas contra-alegações pugnando, em ambos os casos, pela improcedência do recurso.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
***
II.
Delimitação do objeto do recurso:
Perante as conclusões do recurso, a questão a apreciar prende-se com o valor fixado como contributo do Recorrente para o sustento do filho.
***
III.
Fundamentação de facto
Da consulta do histórico do processo resultam apurados os seguintes factos:
A. Por sentença proferida a 29 de Outubro de 2023 foi decidido “regular o exercício das responsabilidades parentais relativamente ao menor JMTM nascido a 17-03-2007, nos seguintes termos:
1. O menor JM residirá com a progenitora, no Brasil, a qual exercerá as responsabilidades parentais quanto aos atos de vida quotidiana do menor e todos os atos necessários para a integração escolar, cuidados de saúde e documentação a serem praticados no Brasil;
2. O menor passará os períodos de férias escolares em Portugal junto do progenitor caso este tenha disponibilidade para tal;
3. O menor poderá conviver e pernoitar com o progenitor quando este se encontrar no Brasil, devendo avisar a progenitora com pelo menos 48 horas de antecedência;
Quando o pai estiver no Brasil, o menor passará alternadamente uma semana com cada um dos progenitores, sendo que o progenitor em questão irá buscar o menor ao domingo às 20 horas, entregando-o à mesma hora no domingo seguinte;
4. O menor poderá contactar com o pai por qualquer meio idóneo de comunicação à distância, sempre que possível, salvaguardando as horas de descanso, lazer e atividades curriculares.
5. A mãe compromete-se a fornecer ao pai todas as informações relativas ao desempenho escolar do menor, bem como todas as questões referentes à sua saúde, consultas e eventuais terapias que venha a fazer, fornecendo para tal, sempre que possível, o nome do médico e a unidade hospitalar onde estará a ser seguido.
6. O pai contribuirá com uma pensão mensal de 150€ (cento e cinquenta euros) para o sustento do menor a pagar até ao dia 8 de cada mês por transferência bancária ou outro modo idóneo.
A prestação de alimentos será atualizada anualmente em função dos índices de inflação divulgados pelo INE (Instituto Nacional de Estatística), sendo a 1.ª atualização em Novembro de 2024.
7. As despesas com a viagem do menor a Portugal para visitar o progenitor são pagas por ambos os progenitores na proporção de metade.”
B. A sentença identificada em A) deu por provados os seguintes factos:
1
- JMTM, nascido a 17-03-2007, na freguesia de S. Sebastião da Pedreira, Lisboa, é filho de JMTM e de GDL.
2 -
JM residiu com os seus pais, desde o nascimento, até julho de 2011.
3 -
O Requerente regressou a Portugal no dia 24 de julho de 2011.
4 -
A Requerida e o menor J, deveriam ter regressado no dia 28 de Julho de 2011.
5 -
A Requerida adiou a viagem para o dia 31 de outubro de 2011, mas não regressou a Portugal.
6 -
O Menor residiu no Brasil com a sua mãe desde 2011 até 22 de outubro de 2015, data em que foi entregue a seu pai.
7 -
O menor foi ouvido em 28 de junho de 2016, nos momentos que antecederam a realização de conferência de pais realizada nessa data.
8 -
O menor manifestou na referida audição, bem como nas audições que tiveram lugar em 19 de abril de 2018, 1 de julho de 2019 e 29 de setembro de 2021 em tribunal e perante a técnica responsável no âmbito da audição técnica especializada que desejava residir com a sua mãe, no Brasil.
9 -
Em 19 de abril de 2018 foi fixado um regime provisório de regulação do exercício das responsabilidades parentais durante o período de férias, da progenitora em Portugal.
10 -
Em conferência de pais realizada no dia 1 de julho de 2019 foi fixado novo regime provisório de regulação do exercício das responsabilidades parentais nos seguintes termos:
«1. O menor ficará, a partir do dia 1 de Setembro de 2019, à guarda e cuidados da mãe, residindo no Brasil, com a mesma, na seguinte morada, Rua …, nº 261, apartamento 502 centro, Rio de Janeiro, 20230-011.
2. Durante o mês de Julho e Agosto, o menor gozará férias em Portugal, junto do pai, tendo em conta que ainda tem atividades extra curriculares, em curso, durante o presente mês de Julho.
3. A mãe providenciará por todo o cuidado, conforto, carinho e segurança do menor.
4. A mãe providenciará pela inscrição do menor em escola privada que garanta a sua segurança e progresso escolar.
5. O menor, passará todos os períodos de férias escolares com o pai em Portugal, visitando-o sempre que possível.
6. O menor poderá contactar com o pai por qualquer meio idóneo de comunicação à distância, sempre que possível, salvaguardando as horas de descanso, lazer e atividades curriculares.
7. O presente regime vigorará por este ano letivo, sendo que, oportunamente, se solicitará informação à escola, que o menor virá a frequentar, no Brasil, sob o seu desempenho escolar.
8. A mãe compromete-se, no prazo de 15 dias, a informar o processo qual a escola que o menor frequentará, nomeadamente em que zona se situa e a morada da escola.
9. Qualquer facto que implique mudança na vida, segurança e bem-estar do menor deverá ser, de imediato, comunicado aos autos com vista, de imediato, ao Ministério Público.
10. A mãe compromete-se a fornecer ao pai todas as informações relativas ao desempenho escolar do menor, bem como todas as questões referentes à sua saúde, consultas e eventuais terapias que venha a fazer, fornecendo para tal, sempre que possível, o nome do médico e a unidade hospitalar onde estará a ser seguido.»
(…)
12 –
No ano fiscal de 2020 o requerente JTM declarou o rendimento anual, (categoria B) de € 8.946,00 (…);
Em março de 2023 o requerente encontrava-se aposentado e beneficiava de uma pensão de velhice no valor de € 568,24 (…);
13 –
A requerida aufere uma pensão de sobrevivência no valor de 22.397,76 reais o equivalente a € 4.222,66 (…);
14 -
A requerida paga mensalmente a título de despesas
Renda de casa - € 361,86
Telefone – € 19,89
Colégio do menor – € 143,94
Condomínio - € 165,70
TV/Net e telefone - € 109,26
Energia elétrica - € 119,41
Gás - € 20,36
Material escolar para o menor - € 53,37 +€ 19,05
Plano de saúde para o menor - € 72,05
Plano de saúde para a requerida - € 200,07
Alimentação - € 63,48 +€ 8,31 = € 71,79.
A requerida suporta o pagamento de despesas relativas a cartões de crédito (2) e financiamento bancário.”
15.
À data do nascimento do menor, o progenitor tinha 47 anos
1
.
***
III.
Fundamentação de direito:
Importa apreciar o objeto do recurso.
O poder-dever atribuído aos pais de educar e sustentar os filhos, com assento no artigo 36º nº 5 da Constituição, integra o elenco dos direitos, liberdades e garantias sendo aí claramente classificado simultaneamente como direito e dever.
O legislador ordinário, nos artigos 1878º nº 1 e 1.879º do Código Civil, estabelece que compete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela sua segurança e saúde, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los e administrar os seus bens, apenas ficando desobrigados de providenciar pelo sustento e assumir as despesas relativas à sua segurança, saúde e educação, na medida em que os filhos estejam em condições de suportar esses encargos, pelo produto do seu trabalho ou outros rendimentos.
A nível internacional, a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança
2
no artigo 27º, reconhece à criança o direito a um nível de vida suficiente, de forma a permitir o seu desenvolvimento físico, mental, espiritual, moral e social
3
, afirmando que cabe primacialmente
4
aos pais e às pessoas que a têm a seu cargo a responsabilidade de assegurar, dentro das suas possibilidades e disponibilidades económicas, as condições de vida necessárias ao seu desenvolvimento
5
.
A importância do sustento dos filhos, enquanto componente dos poderes funcionais que os progenitores exercem no interesse daqueles, é salientada pelo artigo 1.915º do Código Civil ao estatuir que a inibição do exercício das responsabilidades parentais
6
em nenhum caso isenta os pais do dever de alimentarem o filho
7
.
O poder-dever de assistência ou manutenção
8
reconduz-se à obrigação de prestar alimentos aos filhos menores, consubstanciada na assunção das tarefas de satisfazer as suas necessidades relacionadas com a alimentação, saúde, segurança, educação de que depende o seu desenvolvimento físico, intelectual, moral e social, que não se reduz “a uma obrigação estritamente patrimonial, mas exige o cumprimento de prestações de facto infungíveis de carácter não patrimonial que se traduzem na prestação quotidiana de cuidados destinados a promover o harmonioso e completo desenvolvimento dos filhos menores”
9
.
No campo da saúde não está em causa, tão só, a assistência na doença, mas também cuidados e tratamentos médicos de rotina e profiláticos e, ainda, a necessidade de proporcionar uma alimentação saudável e o acompanhamento diário para observância de regras básicas de higiene.
No plano da educação
10
está em causa a atividade dos pais orientada para a formação da personalidade e para a socialização da/o criança/jovem
11
, que em primeira linha lhes cabe
12
, e a atividade de terceiros por via da instrução escolar, da formação técnica e profissional, o que passa pela escolha dos estabelecimentos de ensino a frequentar e criação de oportunidades de acesso a atividades extracurriculares.
A definição acolhida pelo artigo 2.003º do diploma em referência associa ao conceito de alimentos “tudo o que é indispensável ao sustento, habitação e vestuário”
13
, compreendendo, também, a instrução e educação quando o alimentando seja menor
14
.
O artigo 2.004º estabelece que os alimentos serão proporcionados aos meios daquele que houver de prestá-los e à necessidade daquele que houver de recebê-los e, na sua fixação, atender-se-á, também, à possibilidade de o alimentando prover à sua subsistência.
O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Março de 202115
, relatado pela Exmª Juiz Conselheira Maria João Vaz Tomé, chama a atenção que o princípio da proporcionalidade reveste-se de características específicas no direito da família, pois não intenciona nem uma mera operação aritmética, nem uma divisão em partes iguais do montante dos alimentos, oferecendo, antes, “um critério elástico, que exprime a própria função de garantia da satisfação das necessidades do alimentando”, acrescentando que a sua operacionalidade, além da consideração dessas necessidades, “pressupõe uma apreciação comparativa dos rendimentos de ambos os progenitores” concluindo que “apenas o respeito do princípio da proporcionalidade consente a realização do princípio cardinal da igualdade dos progenitores constitucionalmente consagrado”.
Por outro lado, os pais, prioritariamente, estão obrigados a prover ao sustento dos filhos, cabendo-lhes desenvolver as diligências necessárias para obter os rendimentos que lhes permitam cumprir a obrigação alimentícia: tem-se defendido que “a medida das possibilidades do progenitor/obrigado tem de se aferir, não apenas, tendo em conta os rendimentos que aufere, fruto de actividade profissional que desenvolve, mas também, tendo em conta a capacidade que o mesmo tem de exercer uma actividade laboral que lhe permita fazer face ao cumprimento das suas responsabilidades parentais, compreendendo-se que, relativamente aos alimentos devidos a filho menor, o critério legal seja muito apertado, não repugnando estimular fortemente a capacidade de trabalho do progenitor”
16
,
17
.
Aliás, a circunstância de a Constituição ter expressamente declarado que “os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos”, criando uma categoria de dever fundamental em que é beneficiário imediato um indivíduo, e não a comunidade, permite que “na fixação judicial dos alimentos devidos, o tribunal deva ter em causa, não apenas, de forma redutora, o estrito montante pecuniário auferido pelo devedor dos alimentos em certo momento temporal, mas, de forma ampla e abrangente, toda a situação patrimonial e padrão de vida deste, incluindo a sua capacidade laboral futura, estando obviamente compreendido no dever de educação e sustento dos filhos a obrigação de activamente procurar exercitar uma actividade profissional, geradora de rendimentos, que permita o cumprimento mínimo daquele dever fundamental”
18
.
Apreciando os fundamentos do recurso, importa, antes de mais, ter presente que o jovem JM atingiu a maioridade no dia 17 de Março do corrente ano.
Tal não obsta à apreciação do objeto do recurso, na medida em que, em sintonia com o regime provisório estabelecido por despacho proferido a 1 de Julho de 2019, a partir de 1 de Setembro seguinte o então menor passou a estar à guarda da progenitora, residindo com ela no Rio de Janeiro, sem que tenha sido fixado qualquer montante a título de contributo do Pai, o que também sucedeu, de resto, quando foi entregue a este em 22 de Outubro de 2015, após um período de 4 anos durante o qual permaneceu com a Mãe no Brasil.
Tendo presente que o artigo 2.006º do Código Civil estabelece que os alimentos são devidos desde a propositura da ação e que, de harmonia o artigo 2008º, o correspondente direito não pode ser renunciado ou cedido, embora os alimentos possam deixar de ser pedidos e o titular possa renunciar a prestações vencidas
19
, os fundamentos do recurso preservam a sua utilidade para fixação da prestação alimentar para o período da menoridade e para efeitos do disposto no nº 2 do artigo 1.905º do Código Civil
20
.
Importa apurar “a necessidade de alimentos” do jovem JM: as despesas de educação, relacionadas com a frequência de colégio e aquisição de material escolar, bem como o custo do plano de saúde, ascendem ao total mensal de € 288,41; uma vez que a habitação integra o conceito de alimentos, impõe-se afetar uma quota das despesas com a renda, condomínio, consumos de energia e de telecomunicações que ascendem, respetivamente, a € 361,86, € 165,70, € 131,77 e € 129,15, em função do número de pessoas do agregado, ou seja, na proporção de metade, correspondendo a € 394,24; finalmente, na falta de melhor informação, as despesas de alimentação apuradas no montante de € 71,79 têm de ser imputadas ao jovem na proporção de metade. Temos, assim, o valor total de € 718,54.
A prova produzida quanto aos rendimentos e encargos do Recorrente foi muito reduzida, ficando apenas apurado que, no ano de 2020, auferiu € 8.946 de rendimentos da categoria B e que em 2023, com a idade de 63 anos, recebia uma pensão de velhice de € 568,24.
Os rendimentos da referida categoria dizem respeito ao resultado de trabalho independente ou por conta própria em atividade comercial, industrial, agrícola, silvícola ou pecuária ou de prestação de serviços, o que significa que o Recorrente tem aptidão para angariar rendimentos complementares à aludida pensão de reforma, já que não foi alegado nem apurado que padeça de algum tipo de incapacidade impeditiva do exercício efetivo de uma profissão.
Em contrapartida, a progenitora tem rendimentos provenientes de uma pensão de sobrevivência no valor de 22.397,76 reais, que equivale a € 4.222,66.
É certo que os rendimentos apurados do progenitor correspondem, sensivelmente, a 1/7 daqueles que a Mãe tem disponíveis, no entanto, fixada a prestação de alimentos a cargo do Pai em € 150, fica necessariamente a cargo daquela a quantia de € 568,54, que representa quase quatro vezes mais.
Importa considerar que não consta do elenco dos factos provados a indicação de valores associados a despesas com vestuário, produtos de higiene, frequência de atividades extracurriculares ou de lazer, dinheiro de bolso para uma saída com os amigos ou para fazer face a algum imprevisto, que são inerentes à vida de um jovem, o que significa que, enquanto progenitor com quem o filho vive, coube à Mãe gerir as situações conforme surgiram e suprir as necessidades em que se traduziram, suportando os respetivos encargos, sem os contabilizar, levando a que o montante a seu cargo seja superior ao mencionado no anterior parágrafo.
Se compararmos os valores praticados no mercado nacional de arrendamento e de aquisição de bens alimentares com os apurados, podemos concluir que a progenitora tem uma situação mais favorável do que teria se vivesse em Portugal, mas não temos elementos para fazer um juízo global acerca do custo de vida no Brasil.
Embora o impacto de € 150 nos rendimentos do Pai seja superior àquele que € 568,54 tem nos rendimentos da Mãe, há que considerar que o índice da inflação no Brasil durante o ano de 2024 foi de 4,83% e a expetativa para o final do corrente ano é de 5,46%
21
, enquanto no território nacional correspondeu a 2,4%
22
no ano transato e as projeções do Banco de Portugal em Março passado apontam para 2,3%
23
no final de 2025, o que implica, comparativamente, uma maior perda de poder de compra para a progenitora.
Afigura-se que a fixação da prestação de alimentos no montante de € 150 não é desproporcionada, não brigando, pois, com os critérios estabelecidos no artigo 2.004 nº 1 do Código Civil.
No que diz respeito às viagens, uma vez que ficou previsto que o JM passe “os períodos de férias escolares em Portugal junto do progenitor caso este tenha disponibilidade para tal”: confrontando o calendário escolar do Estado do Rio de Janeiro
24
, verificamos que o período de férias corresponde ao mês de Janeiro, sendo que, em 2025, o primeiro trimestre começou a 6 de Fevereiro, terminando a 2 de Maio, com um período de recesso por ocasião do Carnaval entre 3 e 5 de Março, o segundo trimestre teve início a 5 de Maio e terminará a 8 de Setembro, com um período de recesso entre 14 e 25 de Julho e o terceiro período dura entre 9 de Setembro e 23 de Dezembro, data em que o ano letivo termina, seguindo-se um período de recesso até 31 de Dezembro.
No entanto, como referimos, JM atingiu a maioridade em 17 de Março passado, em momento praticamente contemporâneo do despacho de admissão do recurso, que lhe fixou efeito meramente devolutivo.
Por isso, a questão de saber quem suporta as despesas com as viagens para o estabelecimento de convívios com o progenitor nos moldes fixados no ponto 2) da sentença deixa de se colocar
25
, já que cabe ao jovem decidir o modo como passam a processar-se, mormente, se implicam deslocações a Portugal, sendo certo que a sua concretização entre a notificação da sentença – 20 de Dezembro de 2023 – e o aniversário do corrente ano teve de se reger pela estipulada comparticipação na proporção de metade.
Sem embargo do esvaziamento dos efeitos desse segmento da sentença, podemos afirmar que o JM voltou a residir no Brasil com a progenitora a partir de Setembro de 2019, ao abrigo de uma decisão judicial que tomou em consideração a preferência que manifestou, pelo que não faria sentido imputar essa despesa exclusivamente à Mãe.
O critério normalmente associado à fixação das despesas com um cunho mais ou menos extraordinário – como sucede com os custos de aquisição de livros e material escolar no início do ano letivo, com consultas e tratamentos médicos e/ou medicamentosos – coincide com a repartição igualitária, o que se justifica também com as deslocações do jovem a Portugal para estar com o Pai.
A apelação tem de improceder.
***
IV.
Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, mantendo a decisão recorrida.
Custas da apelação pelo apelante, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
Lisboa, 26 de Junho de 2025
Ana Cristina Clemente
Pedro Martins
Paulo Fernandes da Silva
_______________________________________________________
1. Certidão do assento de nascimento junta com o requerimento inicial.
2. Aprovada pela Resolução da Assembleia da República nº 20/90 e ratificada pelo Decreto do Presidente da República nº 49/90 de 12 de Setembro, publicados no Diário da República, I Série, de 12 de Setembro de 1990.
3. Cfr. nº 1.
4. Este preceito prevê, complementarmente, no nº 3 que os Estados partes, tendo em conta as condições nacionais e na medida dos seus meios, tomam as medidas adequadas para ajudar os pais e outras pessoas que tenham a criança a seu cargo a realizar este direito e asseguram, em caso de necessidade, auxílio material e programas de apoio, nomeadamente no que respeita à alimentação, vestuário e alojamento. No nº 4 estabelece que os Estados outorgantes tomam todas as medidas adequadas tendentes a assegurar a cobrança da pensão alimentar devida à criança, de seus pais ou de outras pessoas que tenham a criança economicamente a seu cargo, tanto no seu território quanto no estrangeiro.
5. Cfr. nº 2.
6. Cfr. artigos 1.913º e 1.915º do mesmo diploma.
7. Na mesma linha de pensamento o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Abril de 2019 (in
https://www.dgsi.pt/jstj
processo nº 2021/16.2T8STS.P1.S2), relatado pelo Exmo Juiz Conselheiro Olindo Geraldes, extrai a mesma conclusão, chamando à colação a tutela penal conferida à violação da obrigação de alimentos no artigo 250º do Código Penal, a compressão prevista quanto à impenhorabilidade, prevista no artigo 738º nº 4 do Código de Processo Civil, para o crédito exequendo de alimentos e a garantia estabelecida pela Lei nº 75/98 de 19 de Novembro e pelo DL nº 164/99 de 13 de Maio com a criação do Fundo de Garantia de Alimentos.
8. Que também radica no artigo 1.874º do Código Civil que dispõe que pais e filhos devem-se mutuamente respeito, auxílio e assistência, compreendendo este último a obrigação de prestar alimentos e a de contribuir, durante a vida em comum, de acordo com os recursos próprios, para os encargos da vida familiar.
9. Nesse sentido, vide em anotação ao preceito em análise, a Exmª Juiz Conselheira Clara Sottomayor na obra coletiva Código Civil Anotado Livro IV, Direito da Família, Almedina, 2ª edição, 2024, pg. 859.
10. O artigo 29º da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Crianças elenca os objetivos da educação:
a) promover o desenvolvimento da personalidade da criança, dos seus dons e aptidões mentais e físicos na medida das suas potencialidades;
b) inculcar na criança o respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais e pelos princípios consagrados na Carta das Nações Unidas;
c) inculcar na criança o respeito pelos pais, pela sua identidade cultural, língua e valores, pelos valores nacionais do país em que vive, do país de origem e pelas civilizações diferentes da sua;
d) preparar a criança para assumir as responsabilidades da vida numa sociedade livre, num espírito de compreensão, paz, tolerância, igualdade entre os sexos e de amizade entre todos os povos, grupos étnicos, nacionais e religiosos e com pessoas de origem indígena;
e) promover o respeito da criança pelo meio ambiente.
11. Transmissão de valores, regras de conduta social e cívica.
12. Cfr. artigo 18º nº 1 da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança.
13. Em anotação ao preceito em referência na obra identificada na nota 2 (página 1068) refere-se que nele o legislador definiu o objeto da obrigação de alimentos – sustento, habitação, vestuário - e também estabeleceu o critério – “o que é indispensável – a conjugar com o artigo 2.004º para determinação da sua medida. Salienta-se, também, que o critério da indispensabilidade delimita o âmbito das despesas de sustento, habitação, vestuário, no entanto, a expressão “sustento” implica um entendimento em sentido amplo e pressupõe uma vida autónoma e digna.
14. A Exmª Juiz Conselheira Maria João Vaz Tomé (in op. cit. nota 2, pg. 1070) afirma que, por via de regra, as despesas com a educação e a instrução não integram o conceito de Em anotação ao preceito em referência na obra identificada na nota 2 (página 1068) refere-se que nele o legislador definiu o objeto da obrigação de alimentos – sustento, habitação, vestuário - e também estabeleceu o critério – “o que é indispensável – a conjugar com o artigo 2.004º para determinação da sua medida. Salienta-se, também, que o critério da indispensabilidade delimita o âmbito das despesas de sustento, habitação, vestuário, no entanto, a expressão “sustento” implica um entendimento em sentido amplo e pressupõe uma vida autónoma e digna.
15. In
https://www.dgsi.pt/jstj
processo nº 4519/15.0T8MTS.P2.S1.
16. Nesse sentido, vide Ac. RG de 11.07.2013 in
https://www.dgsi.pt/jtrg
processo nº 3621/12.5TBGMR.G1.
17. Sintetizando como no Acórdão do STJ de 9.03.2021 (identificado na nota 8): não podendo ignorar a necessidade de alimentos dos filhos menores, os pais têm o dever de adquirir os meios económicos de modo a poderem satisfaze-los condignamente.
18. Nesse sentido, vide Ac. STJ de 12.11.2009 in
https://www.dgsi.pt/jtrl
processo nº 110-A/2002.L1.S1, relatado pelo Exmº Juiz Conselheiro Lopes do Rego.
19. Entende-se que tendo o alimentado sobrevivido sem essa assistência, essa renúncia, a existir, não determina a oneração de outras pessoas nem do Estado – nesse sentido, vide Ac. RL de 11.03.2025 in
https://www.dgsi.pt/jtrl
processo nº 5476/17.4T8FNC-D.L1-7.
20. Este preceito prevê “ para efeitos do disposto no artigo 1.880º, entende-se que se mantém para depois da maioridade, e até que o filho complete 25 anos de idade, a pensão fixada em seu benefício durante a menoridade, salvo se o respetivo processo de educação ou formação profissional estiver concluído antes daquela data, se tiver sido livremente interrompido ou ainda se, em qualquer caso, o obrigado à prestação de alimentos fizer prova da irrazoabilidade da sua exigência”.
21. Vide
https://www.cnnbrasil.com.br/economia/macroeconomia/mercado-reduz-projecao-para-inflacao-em-2025-aponta-focus/
.
22. Vide
https://www.ine.pt/
.
23. Vide
https://www.bportugal.pt/publicacao/boletim-economico-marco-2025
.
24. Vide
https://www.seeduc.rj.gov.br/
.
25. Considerando que o período de férias coincide com o mês de Janeiro, sendo os períodos de “recesso” correspondentes a 3 dias úteis no Carnaval, 10 dias úteis em Julho e 5 dias úteis no período de Natal/Ano Novo, a questão ter-se-á colocado para o primeiro mês dos anos de 2024 e 2025 – eventualmente, unido com o final do Dezembro – e, eventualmente, para o período total de 16 dias relativo ao mês de Julho do ano passado.
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TRL
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https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/c39d901b085d8cfe80258cc900366fc6?OpenDocument
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1,750,896,000,000
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PARCIALMENTE PROCEDENTE
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5219/23.3T8LSB.L1-8
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5219/23.3T8LSB.L1-8
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MARIA DO CÉU SILVA
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1 - O nº 4 do art. 10º da L 23/96, de 26 de julho, acrescenta algo de útil aos nºs 1 e 2: o legislador, com a expressão “propositura da ação ou da injunção”, quis abranger, para além do preço do serviço prestado ou da diferença entre o valor pago e o consumo efetuado, os respetivos juros.
2 - À indemnização pelo incumprimento do período de permanência não é aplicável o prazo de prescrição de 6 meses previsto no art. 10º nºs 1 e 4 da L 23/96.
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[
"PRESTAÇÃO DE BENS E SERVIÇOS DE TELECOMUNICAÇÕES",
"CONTRATO",
"PRESCRIÇÃO",
"PREÇO",
"JUROS",
"INDEMNIZAÇÃO PELO INCUMPRIMENTO"
] |
Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa
Na presente ação declarativa que NOS Comunicações, S.A. move contra Achieving Up, Lda, a A. interpôs recurso do despacho saneador pelo qual foi julgada procedente a exceção de prescrição e, em consequência, foi julgada improcedente a ação e absolvida a R. do pedido.
Na alegação de recurso, a recorrente pediu que a decisão recorrida seja declarada nula e substituída por decisão que julgue improcedente a exceção de prescrição relativamente a todos os créditos peticionados, à exceção do preço dos serviços, tendo formulado as seguintes conclusões:
«1. A decisão recorrida, que improcedeu o pedido por prescrição, é:
- nula, por contradição entre os fundamentos e a decisão;
- errou, por lapso manifesto na determinação da norma aplicável e na qualificação jurídica dos factos;
- errou no julgamento, fazendo um enquadramento jurídico que não considerou a totalidade dos efeitos obrigacionais decorrentes do contrato em causa nos autos, distorcendo a aplicação do direito e decidindo em desconformidade com a Lei.
2. A sentença recorrida carece, desde logo, de fundamento, na parte relativa à caducidade do preço dos serviços e na da prescrição dos restantes valores peticionados, que não os relativos do preço dos serviços.
3. Com efeito, a decisão do Tribunal a quo é nula, por contradição entre os fundamentos e a decisão, uma vez que, tendo considerado na fundamentação a caducidade do preço dos serviços, não o considerou na decisão, vindo a improceder o pedido, apenas, por prescrição.
4. Ademais e relativamente ao crédito do preço dos serviços, ao considerar a sua caducidade o Tribunal a quo errou na determinação da norma aplicável porquanto: o art.º 10 da Lei 23/96 de 26.07 consagra e distingue o âmbito de aplicação da prescrição e da caducidade; e ao preço do serviço prestado não se aplica o regime da caducidade, mas o da prescrição, por não estar em causa a cobrança da diferença entre o valor faturado por estimativa e o valor real dos serviços.
5. A sentença recorrida errou, também, ao desconsiderar as obrigações que resultam dos contratos em causa nos autos, a pretexto de tudo reconduzir a um mesmo prazo de prescrição, errando na qualificação jurídica dos factos e impondo uma acessoriedade que, mesmo quando se verifica, a lei lhe reserva prazos de prescrição distintos. Com efeito:
- o Tribunal a quo não considerou a totalidade e a natureza das obrigações que resultam dos contratos em causa nos autos - alegadas em 4. da PI e não contestadas -, reduzindo-as, indevidamente, a uma obrigação (principal) de pagamento do preço;
- não existe qualquer acessoriedade, muito menos nos termos definidos pela sentença, entre o pagamento do preço, a cláusula penal ou a devolução dos equipamentos e os encargos com a cobrança;
- e mesmo na situação em que existe “acessoriedade”, como é o caso dos juros de mora na parte relativa ao preço dos serviços, reserva-lhes a lei a um prazo de prescrição distinto - o que nega a acessoriedade nos termos em que o Tribunal a quo a considerou.
6. A decisão recorrida é nula, por erro de julgamento, tendo distorcido a aplicação do direito e decidindo em desconformidade com a Lei:
a. a sentença recorrida não cumpriu o art.º 10, n.º 1 da Lei 23/96 que, especificamente, consagra a prescrição em relação ao direito ao recebimento do preço do serviço prestado, limitando a aplicação a esse crédito;
b. ao aplicar o prazo previsto no art.º 10.º da Lei 23/96 a prestações que não o preço dos serviços, o Tribunal recorrido errou no julgamento, violando a Lei;
c. muito menos encontra fundamento a sentença quando aplica uma teoria acessoriedade.
i. seja porque desconsiderou a totalidade das prestações decorrentes do contrato e quis estabelecer uma acessoriedade entre obrigações que não a têm;
ii. seja porque, nas situações em que tal acessoriedade existe, como é o caso dos juros de mora, é a própria lei que lhes consagra prazos de prescrição distintos;
iii. seja pelo erro de pressuposto de que a prescrição extingue o crédito;
7. A sentença recorrida reconhece o que a lei estabelece, mas não a aplica, trazendo à colação uma teoria da acessoriedade com a justificação de que outra solução “não seria concebível”, quando o inconcebível é que a lei não seja aplicada.
8. Contrariamente ao decidido,
a. Em relação aos juros de mora, consagrando-lhes a lei autonomia e um prazo de prescrição de 5 anos:
- são exigíveis os juros de mora relativos ao preço do serviços prestados, contabilizados desde a data de vencimento das respetivas faturas e a data em que tais serviços prescreveram;
- são exigíveis os juros de mora relativos aos demais créditos do contrato, que não configurem preço dos serviços, até efetivo e integral pagamento
b. Em relação às cláusulas penais, ao preço dos equipamentos não devolvidos e aos encargos com a cobrança:
- não se tratando tais créditos de “serviços prestados”, enquadráveis no disposto do art.º 10º, n.º 1 da Lei 23/96, nem em outro prazo especialmente regulado no CC, não poderá deixar de se considerar que lhe é aplicável o prazo ordinário estabelecido no art.º 309º do CC.
- especificamente, no respeita às cláusulas penais, a eventual aplicação do mesmo prazo de prescrição a Lei 23/96 constituiria um equívoco, desde logo, sobre a natureza das referidas cláusulas, que sancionam o inadimplemento da não manutenção dos contratos e não a do não pagamento dos serviços.
- não existindo relação de acessoriedade entre o crédito do preço e a cláusula penal, inexiste fundamento para aplicação do mesmo prazo de prescrição.
- acresce que não decorre da lei civil disposição que estabeleça que os créditos resultantes do mesmo contrato prescrevem em igual prazo.
- a aplicação, às cláusulas penais, do prazo ordinário de prescrição e 20 anos constitui jurisprudência do Tribunal da Relação de Lisboa que, por unanimidade, o consagrou em Acórdão proferido no processo 2360/06.0YXLSB.L1-7; e é entendimento, unânime, do STJ - Proc. 080280 de 02-05-1991, prazo esse que não tinha decorrido na data de apresentação da ação.»
A R. respondeu à alegação da recorrente, pugnando pela manutenção da decisão recorrida, tendo formulado as seguintes conclusões:
«A. As pouco consistentes e pouco esclarecidas Alegações de recurso da apelante, apontam – na realidade e singelamente - como motivação a sua mera discordância com a decisão tomada pelo Tribunal a quo e não qualquer legitima, fundamentada e criteriosa impugnação da matéria de facto, como determina e mais obriga a lei.
B. Não assiste razão à Recorrente nas motivações de Recurso que apresenta a V.ª Exas.
C. Em primeiro momento a Recorrente alega contradição entre os fundamentos e a decisão da sentença recorrida, imputando nulidade à referida sentença, “uma vez que improcedeu o pedido com fundamento (único) na prescrição, depois de ter considerado verificada a caducidade, mas sem que a tivesse contemplado na decisão final”;
D. Não assiste razão à Recorrente, sendo por nós perfilhado o entendimento do Supremo Tribunal de Justiça (douto Acórdão de 05.05.2023 disponível em www.dgsi.pt):
“I.A nulidade do acórdão por contradição entre os fundamentos e a decisão ocorre em situações em que há um “vício lógico na construção da sentença”, pois, querendo a lei processual que o juiz justifique a sentença, os fundamentos que este invoca para a sua decisão “… conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto”.
II. Padece de tal vício o acórdão em que se apontam os critérios definidores do início e termo do prazo prescricional (e respectivas datas) e depois, em sede de decisão, se decide de forma distinta subvertendo-se os fundamentos/pressupostos antes invocados.” – …
E. O que, não ocorre no caso em apreço, nem a Recorrente o alega ou demonstra, sendo que, atender-se ao clamado pela Recorrente (a decisão final contemplar também a caducidade da ação defendida na própria Sentença) recairia para a mesma, eventualmente, em circunstância de venire contra factum proprium.
F. Ainda assim, não se verifica contradição entre a fundamentação e a decisão, proferindo a consequência e convicção trilhadas na fundamentação, sendo esta a Absolvição da Ré do pedido.
G. Nessa medida, não se vislumbra qualquer nulidade, considerando que a sentença recorrida cumpre integralmente os requisitos impostos pelo artigo 615º, n.º 1, alínea b), do CPC, na medida em que especifica de modo claro e suficiente os factos que serviram de base à decisão, assegurando o cumprimento do dever de fundamentação consagrado no artigo 205º, n.º 1, da CRP.
H. Motivos pelos quais, deve o Recurso a que se responde improceder quanto a – também – esta matéria.
I. A Recorrente considera ainda existir erro na determinação da norma aplicável aduzindo que “Ao preço do serviço prestado em causa nos autos não se aplica o regime da caducidade, mas o da prescrição…”.;
J. Ora, mediante leitura do n.º 4 do artigo 10.º da Lei n.º 23/96 “4 - O prazo para a propositura da acção ou da injunção pelo prestador de serviços é de seis meses, contados após a prestação do serviço ou do pagamento inicial, consoante os casos.”, estamos perante um prazo de caducidade, e nesse sentido verifica-se que, dado o lapso temporal decorrido, entre a data de emissão das faturas e a data em que efetivamente intentou a ação, a Recorrente viu o seu direito (de instaurar a ação) precludir.
K. No mais, o Tribunal a quo oportunamente considerou “Ora, atendendo ao disposto no artigo 10.º, n.º 1 da Lei n.º 23/96, de 26 de julho, e à data da interrupção do prazo de prescrição ocorrido em 01-03-2023, está prescrito o direito da Autora a receber o preço pelos serviços prestados à Ré até agosto de 2022. A prescrição tem natureza extintiva ou liberatória, isto é, a obrigação civil, exigível em ação creditória, extingue-se.”
L. Nessa medida, verifica-se a prescrição e a consequente extinção do direito ao recebimento do preço do serviço prestado, determinando-se que os dois regimes temporalmente preclusivos e extintivos de direitos, prescrição e caducidade, não se confundem, todavia não são antagónicos na mesma situação jurídica, podendo ambos os regimes enquadrar-se no mesmo caso, o que de facto sucede.
M. Deste modo, há caducidade do direito de recorrer à tutela judicial, e há prescrição do direito ao recebimento do preço do serviço prestado.
N. Contrariamente ao alegado pela Recorrente a Sentença recorrida não enferma de erro na determinação da norma aplicável, tendo considerado, corretamente os dois regimes preclusivos do direito da Recorrente que se aplicam in casu;
O. A Recorrente acrescenta ainda, que, o Tribunal a quo desconsiderou a natureza das obrigações que resultam dos contratos em causa tendo este julgado acessórias a cláusula penal, juros de mora, devolução de equipamentos e despesas administrativas;
P. Ora dúvidas não subsistem, relativamente à cláusula penal - prevista nos artigos 810.º e seguintes do Código Civil – uma vez que, a mesma é uma obrigação acessória por natureza, visando sancionar o incumprimento da obrigação principal e logicamente, se a obrigação principal se extinguir por invalidade, ineficácia ou extinção da obrigação, ou deixar de ser exigível face a ter-se completado o prazo de prescrição, esta deixará também de ser exigível, como sucede no caso sub judice.
Q. No que concerne aos juros de mora, pese embora, o carater autónomo daqueles, nos termos do disposto no artigo 561.º do Código Civil, e de encontro com o douto Acórdão de 20.12.2016 do Tribunal da Relação de Lisboa (processo n.º140866/14.9YIPRT.L1-1) “é igualmente ontologicamente incompreensível, pelas razões referidas em 1., conceber a existência dessa obrigação de juros quando o dever de que ela depende deixou de existir ou se tornou inexigível.”, sendo este entendimento – mutatis mutantis - igualmente aplicável à quantia peticionada a título de penalidade por devolução de equipamentos e despesas administrativas;
R. Nesse sentido, veja-se o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29.04.2021 (Processo n.º 46188/20.5YIPRT-A.L1-2):
“Assim, núcleo do contrato e cláusula acessória também não podem ser separados em caso de incumprimento, em ordem a que ao núcleo do contrato corresponda um prazo prescricional de seis meses e à sua parte acessória corresponda um prazo prescricional de …vinte (20) anos.
O prazo de prescrição estabelecido para a obrigação principal não pode deixar de abranger também a obrigação acessória.
De outro modo, aportaríamos à incompreensível situação, em face dos valores em presença, de termos um prazo prescricional de seis meses para a obrigação principal e um prazo prescricional geral, de vinte anos (art.º 309.º do C. Civil) para a obrigação cuja existência só se justificava em face daquela.
Uma tal interpretação é, de todo, afastada pelo disposto no art.º 9.º, n.º 3, do C. Civil, nos termos do qual o intérprete deve presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas.
Solução de todo desacertada seria aquela em que prescrito, decorridos seis meses, o direito ao recebimento do preço de um serviço de telecomunicações, o consumidor desses serviços continuasse adstrito ao cumprimento dos seus deveres acessórios daquela prestação e às consequências do seu incumprimento, durante vinte anos, assim esvaziando a ratio legis e o escopo prosseguido pela norma dos n.ºs 1 e 4, do art.º 10.º ao fixarem um curto prazo de prescrição e de propositura da ação/injunção.” – …
S. Ao contrário do alegado pela Recorrente, a douta Sentença recorrida não enferma de erro na qualificação dos factos, tendo a fundamentação e decisão aplicado os institutos legais enquadráveis ao caso concreto, bem como - pese embora disso não dependesse a validade e mérito da sentença - invocado outras fontes de direito, nomeadamente jurisprudência e doutrina aplicável ao caso concreto.
T. A Recorrente defende que, “sentença recorrida distorceu a aplicação do direito e decidiu em desconformidade com a Lei.”, aduzindo que, “A Lei 23/96 não consagra - nem nenhuma outra disposição legal o faz - que o direito ao recebimento das prestações de um contrato relativo prescreve no mesmo prazo.”.
U. Ora considerando que, no contrato de prestação de serviços in casu, em que todas as outras obrigações enumeradas pela Recorrente são decorrentes e acessórias da obrigação principal que é o pagamento do preço, dita a ratio legis consideração do enquadramento normativo daquelas prestações.
V. O Tribunal a quo não fez interpretação, nem enquadramento normativo erróneo ao caso concreto, sendo consensual entre a doutrina e jurisprudência tal interpretação e enquadramento conforme o douto Acórdão de 07.04.2022 do Tribunal da Relação de Lisboa (processo n.º 9996/21.8YIPRT.L1-6), Acórdão de 20.12.2016 do Tribunal da Relação de Lisboa (processo n.º140866/14.9YIPRT.L1-1) e Acórdão de 29.11.2021 do Tribunal da Relação de Lisboa (processo n.º 46188/20.5YIPRT-A.L1-2).
W. Deste modo, não se afigura qualquer tipo de distorção e desconformidade entre a Sentença recorrida e a Lei, como também não se verifica desconformidade da douta Sentença com a Jurisprudência e Doutrina.
X. Da análise conjugada das conclusões de recurso e da argumentação que as sustentam resulta que não se verificam os alegados vícios imputados à douta Sentença recorrida que, não merece reparo.
Y. A douta Sentença não violou nenhuma norma legal
Z. Por todo o expendido nas presentes Motivações e Conclusões, bem andou o Tribunal a quo ao proferir a douta Sentença recorrida, devendo o Recurso a que se responde ser julgado como totalmente improcedente e, consequentemente, a Decisão recorrida confirmada e mantida nos seus precisos termos.»
São as seguintes as questões a decidir:
- da nulidade da decisão; e
- da prescrição.
*
Na sentença, foram dados como provados os seguintes factos:
«a) A Requerente celebrou com o Requerido um contrato de prestação de bens e serviços de telecomunicações, na data e a que foi atribuído o n.º 5.82902;
b) No âmbito do referido contrato, a Requerente obrigou-se a prestar o serviço/ equipamentos, no plano tarifário escolhido pelo Requerido, e este obrigou-se a efetuar o pagamento tempestivo das faturas e manter o serviço pelo período fixado no contrato sob pena de, não o fazendo, ser responsável pelo pagamento à Requerente, a título de cláusula penal e nos termos das condições contratuais, do valor relativo à quebra do vínculo contratual, valor que inclui os encargos decorrentes da cessação antecipada do contrato;
c) A Requerente ativou os serviços, tendo emitido as faturas correspondentes.
d) Das faturas emitidas e vencidas permanecem em dívida as indicadas na relação abaixo, constando da última fatura o valor da cláusula penal contratual reclamado pela Requerente.
e) Tais faturas foram enviadas ao Requerido, logo após a data de emissão, para a morada por este indicada para o efeito.
f) Relação das faturas em dívida:
Fatura n.º FT 201913/231291, no valor de €604.97, emitida em 07.10.2019 e vencida em 06.11.2019;
€ 10 651,39 conforme discriminação e pela causa a seguir indicada:
Fatura n.º FT 201913/257043, no valor de €547.74, emitida em 08.11.2019 e vencida em 08.12.2019;
Fatura n.º FT 201913/282711, no valor de €459.71, emitida em 06.12.2019 e vencida em 05.01.2020;
Fatura n.º FT 202013/20806, no valor de €372.46, emitida em 08.01.2020 e vencida em 07.02.2020;
Fatura n.º FT 202013/27684, no valor de €7653.91, emitida em 07.02.2020 e vencida em 08.03.2020.»
*
Nas conclusões recursivas, pode ler-se:
“a decisão do Tribunal a quo é nula, por contradição entre os fundamentos e a decisão, uma vez que, tendo considerado na fundamentação a caducidade do preço dos serviços, não o considerou na decisão, vindo a improceder o pedido, apenas, por prescrição”.
Nos termos do art. 615º nº 1 al. c) do C.P.C., “é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.
No tocante a esta causa de nulidade, “vem-se entendendo, sem controvérsia, que a oposição entre os fundamentos e a decisão constitui um vício da estrutura da decisão. Radica na desarmonia lógica entre a motivação fáctico-jurídica e a decisão resultante de os fundamentos inculcarem um determinado sentido decisório e ser proferido outro de sentido oposto ou, pelo menos, diverso” (www.dgsi.pt Acórdão do STJ de 2 de junho de 2016, processo 781/11.6TBMTJ.L1.S1).
Na fundamentação da decisão recorrida, pode ler-se:
«Ora, atendendo ao disposto no artigo 10.º, n.º 1 da Lei n.º 23/96, de 26 de julho, e à data da interrupção do prazo de prescrição ocorrido em 01-03-2023, está prescrito o direito da Autora a receber o preço pelos serviços prestados à Ré até agosto de 2022.
A prescrição tem natureza extintiva ou liberatória, isto é, a obrigação civil, exigível em ação creditória, extingue-se.
Por outro lado, uma vez que o artigo 10.º, n.º 4 prevê um prazo de caducidade de seis meses para a propositura de ação relacionada com a prestação de serviços públicos essenciais, contados desde a data de prestação dos mesmos, reconhece-se a caducidade do direito de ação da Autora quanto aos serviços prestados à Ré até agosto de 2022.
Verifica-se, portanto, a procedência das exceções de prescrição e de caducidade quanto ao preço dos serviços reclamados.”
Do dispositivo da decisão recorrida consta o seguinte:
“julgo a exceção de prescrição procedente, por provada e, em consequência, julgo a ação totalmente improcedente”.
Ter o tribunal recorrido, no dispositivo, julgado procedente apenas a exceção da prescrição quando, na fundamentação, considerou que procediam as exceções da prescrição e da caducidade não só não é contraditório, como é compreensível, atento o disposto no art. 608º nº 2 do C.P.C., segundo o qual “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”.
A R. invocou a exceção da prescrição e a exceção da caducidade. Julgando o tribunal recorrido procedente a exceção da prescrição, já não podia julgar procedente a exceção da caducidade.
Nas conclusões recursivas, a recorrente afirmou que “a decisão recorrida é nula, por erro de julgamento, tendo distorcido a aplicação do direito e decidindo em desconformidade com a Lei”.
“… as nulidades típicas da sentença reconduzem-se a vícios formais decorrentes de erro de actividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal; trata-se de vícios de formação ou actividade (referentes à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão) que afectam a regularidade do silogismo judiciário, da peça processual que é a decisão e que se mostram obstativos de qualquer pronunciamento de mérito, enquanto o erro de julgamento (error in judicando) que resulta de uma distorção da realidade factual (error facti) ou na aplicação do direito (error juris), de forma a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa, traduzindo-se numa apreciação da questão em desconformidade com a lei, consiste num desvio à realidade factual [nada tendo a ver com o apuramento ou fixação da mesma] ou jurídica, por ignorância ou falsa representação da mesma.
…
Em suma, as causas de nulidade da decisão elencadas no artigo 615º do Código de Processo Civil visam o erro na construção do silogismo judiciário e não o erro de julgamento, não estando subjacentes às mesmas quaisquer razões de fundo, motivo pelo qual a sua arguição não deve ser acolhida quando se sustente a mera discordância em relação ao decidido” (www.dgsi.pt Acórdão do STJ proferido a 3 de março de 2021, no processo 3157/17.8T8VFX.L1.S1).
Improcede, pois, a arguição da nulidade da decisão recorrida.
*
O art. 10º da L 23/96, de 26 de julho, na redação dada pela L 24/2008, de 2 de junho,
dispõe o seguinte:
“1 - O direito ao recebimento do preço do serviço prestado prescreve no prazo de seis meses após a sua prestação.
2 - Se, por qualquer motivo, incluindo o erro do prestador do serviço, tiver sido paga importância inferior à que corresponde ao consumo efetuado, o direito do prestador ao recebimento da diferença caduca dentro de seis meses após aquele pagamento.
3 - A exigência de pagamento por serviços prestados é comunicada ao utente, por escrito, com uma antecedência mínima de 10 dias úteis relativamente à data-limite fixada para efetuar o pagamento.
4 - O prazo para a propositura da ação ou da injunção pelo prestador de serviços é de seis meses, contados após a prestação do serviço ou do pagamento inicial, consoante os casos.
5 - …”
Nas conclusões recursivas, pode ler-se:
“relativamente ao crédito do preço dos serviços, ao considerar a sua caducidade o Tribunal a quo errou na determinação da norma aplicável porquanto: o art.º 10 da Lei 23/96 de 26.07 consagra e distingue o âmbito de aplicação da prescrição e da caducidade; e ao preço do serviço prestado não se aplica o regime da caducidade, mas o da prescrição, por não estar em causa a cobrança da diferença entre o valor faturado por estimativa e o valor real dos serviços.”
O tribunal recorrido, no dispositivo, julgou procedente apenas a exceção da prescrição e a recorrente aceitou a procedência da exceção da prescrição quanto ao preço dos serviços, pelo que importa apenas apreciar a exceção da prescrição relativamente aos demais créditos peticionados.
Quanto aos juros, da fundamentação da decisão recorrida consta o seguinte:
«A obrigação de juros surge em consequência da obrigação de capital, visto que representa o rendimento dele; é, portanto, por excelência, uma obrigação acessória – não pode nascer ou constituir-se sem esta. É certo, porém, que é a própria lei a consagrar a autonomia deste crédito, designadamente, através da norma contida no artigo 561º do Código Civil.
Mas não é concebível que essa autonomia se mantenha quando é a própria obrigação principal que se extingue por prescrição, sendo qualquer outra solução contrária à ratio legis deste regime, com o particular pendor de proteção do consumidor. Na verdade, ao consagrar um prazo especialmente curto de prescrição, no âmbito da prestação de serviços públicos essenciais, o legislador pretendeu fazer extinguir a obrigação, seja ela qual seja, de capital ou de juros, desonerando o consumidor deste tipo de dívidas e transferindo para as prestadoras dos serviços a incumbência de promover a cobrança destas dívidas de forma o mais expedita possível. E isto, salvo melhor opinião, tanto se aplica à obrigação de capital, como à de juros.»
Em apoio da posição seguida, o tribunal recorrido invocou o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido a 20 de dezembro de 2016, no processo 140866/14.9YIPRT.L1-1, acessível em
www.dgsi.pt
.
Em apoio da posição contrária à seguida pelo tribunal recorrido, destacamos o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido a 21 de outubro de 2014, no processo
83857/13.8YIPRT.P1, acessível em
www.dgsi.pt
, no qual se pode ler:
«A obrigação de juros surge em consequência da obrigação de capital, visto que representa o rendimento dele: não se concebe, pois, sem uma obrigação de capital, podendo considerar-se uma obrigação acessória desta, no sentido em que não pode nascer ou constituir-se sem esta.
A relação de dependência não obsta, no entanto, a que uma vez constituído, o crédito de juros se autonomize, sendo que o próprio artigo 561º do CC consagra a autonomia desse crédito, ao determinar: “Desde que se constitui, o crédito de juros não fica necessariamente dependente do crédito principal, podendo qualquer deles ser cedido ou extinguir-se sem o outro.”
Antunes Varela refere a este propósito: “Pode, na verdade, o credor ceder, no todo ou em parte, o seu crédito de juros e conservar o crédito relativo ao capital; pode, pelo contrário, ceder a outrem o crédito do capital e manter para si, no todo ou em parte, o crédito dos juros vencidos. É perfeitamente possível, por outro lado, que se extinga por qualquer causa o crédito principal, e persista o crédito dos juros vencidos, ou que, inversamente, se extinga este último e se mantenha íntegra o primeiro.”
O que é fundamental é que o crédito de juros se tenha constituído.
Com efeito, há dois direitos: o direito ao capital e o direito às prestações singulares de juros, estando cada um deles sujeito à sua prescrição própria – o direito ao capital ao prazo de seis meses (artigo 10º, n.º 1, da Lei 23/96), e o direito aos juros ao prazo de 5 anos (artigo 310º, alínea d), do CC).
É claro que, prescrita a dívida de capital, nunca mais ela vencerá juros; mas prescrito um capital, podem no entanto exigir-se os juros anteriores de há menos de 5 anos. Tal será uma consequência da autonomia que os juros mantêm relativamente ao crédito de capital, embora acessórios deste».
Não só o prazo de prescrição do direito ao capital pode não coincidir com o prazo de prescrição do direto aos juros como a contagem do prazo pode ser diferente. No caso dos juros legais, “os juros vão-se vencendo diia-a-dia, pelo que devem considerar-se prescritos os que se tiverem vencido para além dos últimos cinco anos” (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, anotação ao art. 310º).
Mas terá o legislador querido que a proteção do utente de serviços públicos essenciais através do encurtamento do prazo de prescrição não abrangesse os juros?
Conforme resulta do art. 9º nº 3 do C.C., “na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”.
Assim, importa considerar que o nº 4 do art. 10º da L 23/96 acrescenta algo de útil aos nºs 1 e 2: o legislador, com a expressão “propositura da ação ou da injunção”, quis abranger, para além do preço do serviço prestado ou da diferença entre o valor pago e o consumo efetuado, os respetivos juros.
Quanto à cláusula penal, da fundamentação da decisão recorrida consta o seguinte:
«De facto, como obrigação acessória que é, a prescrição estende-se também à cláusula penal.
É sabido que a obrigação de pagamento de qualquer quantia por via do incumprimento do período pelo qual o cliente se obrigou a manter o seu vínculo contratual consubstancia uma cláusula penal, cujo regime está consagrado nos artigos 810º a 812º do Código Civil.
Ora, a obrigação de pagamento de uma quantia estipulada pelas partes para efeitos de eventual incumprimento da obrigação principal por uma delas reveste a natureza de obrigação acessória da obrigação principal (nesse sentido, Vaz Serra, Pena Convencional, in Boletim N.º 67 e Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume II, página 74 e 75), estando por conseguinte sujeita ao regime legal aplicável a esta.
Tal resulta aliás, relativamente à cláusula penal, do disposto no artigo 810º, n.º 2 do Código Civil, pelo que também as quantias devidas por via do funcionamento de cláusulas penais prescrevem pelo decurso do prazo de seis meses.»
Em apoio da posição seguida, o tribunal recorrido invocou o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido a 20 de dezembro de 2016, no processo 140866/14.9YIPRT.L1-1; e o Acórdão da Relação de Lisboa proferido a 4 de junho de 2015, no processo 143342/14.6YIPRT.L1-8, ambos acessíveis em
www.dgsi.pt
.
Um dos acórdãos mais recentes em que é seguida a mesma posição é o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido a 8 de abril de 2025, no processo 1959/24.8T8VFR.P1, acessível em
www.dgsi.pt
, no qual se pode ler:
«Note-se que ao vínculo de fidelização não corresponde qualquer contraprestação directa para além da prestação do serviço em condições mais vantajosas, designadamente de preço.
De resto, não é possível celebrar um contrato com um prestador de serviços que estabeleça um vínculo autónomo de fidelização se não for concomitantemente acordada a prestação e o pagamento do serviço em causa.
Tudo isto evidencia a falta de autonomia, ou seja, a acessoriedade da cláusula de fidelização relativamente à obrigação principal de pagamento do serviço fornecido.
Ora, como afirma Ana Filipa Morais Antunes em anotação ao artigo 810.º do CC (Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral, UCP Editora, 2024, 2.ª reimpressão, p. 1163), «as vicissitudes que afetem a obrigação principal projetam- -se, de igual modo, no âmbito de eficácia da cláusula penal». Assim, porque o incumprimento da obrigação acessória não pode ser separado do incumprimento desta obrigação principal, o prazo de prescrição estabelecido para esta não pode deixar de abranger também aquela.
De resto, nenhuma razão válida justifica que o direito de crédito decorrente do incumprimento da obrigação principal (de pagamento do preço) prescreva no prazo curto de seis meses e o direito de crédito decorrente do incumprimento da obrigação acessória (de manutenção do vínculo contratual durante determinado período de tempo) prescreva no prazo geral de 20 anos, pelo que tal interpretação é afastada pelo disposto no artigo 9.º, n.º 3, do CC, nos termos do qual o intérprete deve presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas.»
São muitos os acórdãos proferidos sobre esta matéria, encontrando-se a jurisprudência dividida.
Em apoio da posição contrária à seguida pelo tribunal recorrido, destacamos os seguintes: Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido a 7 de junho de 2011, no processo 2360/06.0YXLSB.L1-7; Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido a 21 de junho de 2011, no processo 264/06.6YXLSB.L1-7; e Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido a 26 de setembro de 2023, no processo 6922/21.8T8BRG-A.C1, todos acessíveis em
www.dgsi.pt
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No primeiro destes três acórdãos, pode ler-se:
«Em suma, uma coisa é o crédito do preço, próprio da execução do contrato; outra coisa, dessa diferente, o crédito de indemnização emergente do incumprimento do vínculo de fidelização; este com conteúdo estipulado em cláusula penal.
A cláusula é acessória deste vínculo; não daquele crédito (do preço).
Qual então o prazo prescricional aplicável ao crédito indemnizatório, emergente do incumprimento do vínculo de fidelização (afinal, não mais do que o crédito a haver o montante da cláusula penal estipulada)?
No concernente ao direito ao pagamento do preço dos serviços de telefone móvel, o prazo prescricional é de seis meses após a sua prestação; é o que resulta do quadro legal aplicável, a que antes nos referimos, e no essencial emergente do artigo 10º, nº 1, da Lei nº 23/96, na redacção originária, interpretado pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (uniformizador de jurisprudência) nº 1/2010, de 3 de Dezembro de 2009.
Como vem sendo sublinhado, um tão curto prazo tem aqui por fundamento a ordem pública de protecção ou ordem pública social, própria da tutela do utente (consumidor), e tirado da necessidade de prevenir a acumulação de dívidas (de fácil contracção), que o mesmo pode (deve) pagar periodicamente, mas encontrará dificuldades em solver se excessivamente agregadas; ao mesmo tempo, responsabilizando os prestadores de serviços em manter uma organização que lhes permita a cobrança em momento próximo do respectivo consumo; e sancionando-lhes a inércia e a negligência decorridos seis meses após a prestação do serviço.
Mas, como vimos dizendo, não é esse o crédito que aqui directamente nos concerne. O que mais nos importa é o direito à indemnização por incumprimento do vínculo de fidelização, consubstanciado no percebimento da cláusula penal estipulada. Este, porém, com a natureza estritamente reparatória que lhe é própria, sem que consiga comportar aquela justificação, que motiva o estreito prazo de prescrição.
Ademais; e mais simples, até, do que isso, em bom rigor, nem a redacção normativa do artigo 10º, nº 1, citado, seja na versão inicial – referindo-se ao direito de exigir o pagamento do preço do serviço prestado –, seja no texto da Lei nº 12/2008 – reportando-se ao direito ao recebimento do preço do serviço prestado –, este como direito interpretativo, permitiria reconhecer o respectivo enquadramento.
Ao que, resta concluir. Afastado o prazo atribuído para o direito de indemnização, por responsabilidade aquiliana (artigo 498º, nº 1, do Código Civil), inaplicável à responsabilidade contratual; fica esta, estritamente, sujeita às regras gerais da prescrição; e, por conseguinte, ao prazo ordinário de vinte anos, estabelecido pelo artigo 309º do Código Civil
Que é, então, o aplicável ao questionado crédito indemnizatório.»
Atendendo à letra da lei e ao pensamento legislativo, perfilhamos o entendimento que não é aplicável à indemnização pelo incumprimento do período de permanência o prazo de prescrição de 6 meses previsto no art. 10º nºs 1 e 4 da L 23/96.
Não só do referido artigo consta a expressão “preço do serviço prestado”, como resulta do mesmo que o prazo se conta “após a prestação do serviço”. Ora a indemnização pelo incumprimento do período de permanência é calculada em função do número de meses em que não haverá prestação de serviços até ao fim do período de permanência.
Destinando-se as prescrições de curto prazo “essencialmente a evitar que o credor retarde demasiado a exigência de créditos periodicamente renováveis, tornando excessivamente pesada a prestação a cargo do devedor” (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, anotação ao art. 310º), não parece que o legislador tenha querido o prazo de prescrição de seis meses para a indemnização pelo incumprimento do período de permanência. Acresce dizer que a proteção dos consumidores nos contratos de prestação de serviços de comunicações eletrónicas com período de fidelização está contemplada na Lei das Comunicações Eletrónicas.
Quanto ao valor do equipamento, da fundamentação da decisão recorrida consta o seguinte:
«O valor que a Autora reclama pela não devolução do equipamento não deixa também ele de consubstanciar uma obrigação acessória da obrigação principal de pagamento do preço dos serviços, pois só é devida em virtude do não pagamento deste último. Caso se entenda que a cedência do equipamento é ainda um serviço autónomo, sempre constituiria um “Serviço de comunicações eletrónicas” integrando a alínea d) do n.º 2 do artigo 1º da Lei n.º 23/96, de 26 de julho, considerando-se estar o mesmo igualmente prescrito.»
Nos artigos 4º e 11º da petição inicial, a A. alegou que a R. assumiu a obrigação de “devolver, no termo do contrato, os equipamentos da Autora instalados na sua morada”.
Não se trata, pois, de preço de serviço prestado, pelo que não é aplicável o prazo de prescrição de 6 meses previsto no art. 10º nºs 1 e 4 da L 23/96.
Quanto às despesas administrativas, da fundamentação da decisão recorrida consta o seguinte:
«O mesmo ocorre quanto às despesas administrativas invocadas, que não podem deixar de ser consideradas acessórias do crédito principal. Acresce que tais despesas nunca seriam ressarcidas em sede judicial senão pelo instituto das custas de parte, pelo que sempre improcederia o pedido nesta parte.»
Despesas administrativas não fazem parte do preço do serviço prestado.
O tribunal recorrido absolveu a R. da parcela do pedido relativa às despesas administrativas com fundamento na procedência da exceção da prescrição, sendo este o único fundamento da absolvição do pedido que cumpre apreciar.
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Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação, revogando o despacho saneador na parte em que julgou procedente a exceção da prescrição quanto às parcelas dos pedidos relativas à indemnização pelo incumprimento do período de permanência, ao valor do equipamento instalado pela A. na morada da R. e às despesas administrativas, bem como aos respetivos juros; julgando improcedente a exceção da prescrição nessa parte; e mantendo o despacho saneador na parte em que julgou procedente a exceção quanto ao preço dos serviços prestados e respetivos juros.
Custas da ação pela A. quanto às parcelas do pedido em que decaiu e custas da apelação pelas partes na proporção do respetivo decaimento.
Lisboa, 26 de junho de 2025
Maria do Céu Silva
Amélia Puna Loupo
Marília Leal Fontes
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TRL
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https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/4ef9a9db92b956c280258cc100460780?OpenDocument
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1,742,774,400,000
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CONFIRMAÇÃO
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3344/22.7T8MAI.P1
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3344/22.7T8MAI.P1
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TERESA PINTO DA SILVA
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I - Quando os recorrentes alegam que na fundamentação da sentença o Tribunal recorrido aderiu à avaliação efetuada pelos peritos do Tribunal, desvalorizando totalmente a avaliação subscrita pelo perito por eles indicado, ignorando por completo o teor das alegações finais por eles apresentadas (ao abrigo do disposto no artigo 64º, do Código das Expropriações) e um conjunto de críticas e incongruências no relatório pericial maioritário, por si detetadas, o que verdadeiramente estão a invocar não é qualquer nulidade da decisão por omissão de pronúncia, mas antes a discordar da fundamentação da sentença, por a considerarem deficiente e incorreta, o que coloca a questão já ao nível do erro de julgamento.
II - Embora a força probatória da perícia no processo de expropriação seja fixada livremente pelo Tribunal (artº. 389º do Código Civil), neste tipo de processo, sendo a peritagem obrigatória e traduzindo-se a avaliação do bem expropriado num juízo essencialmente técnico, o Tribunal deve aderir, em princípio, aos pareceres dos peritos, dando preferência ao valor resultante desses pareceres, desde que sejam coincidentes, e, por razões de imparcialidade e independência, quando não sejam coincidentes, optar pelo laudo dos peritos nomeados pelo Tribunal quando haja unanimidade entre eles, porquanto este é o meio de prova que melhor habilita o julgador a apurar o valor do bem expropriado, com vista à atribuição da justa indemnização.
III - Existindo laudos divergentes e não possuindo o juiz quaisquer conhecimentos ou elementos concretos que lhe permitam aferir qual deles tem melhor aptidão para alcançar o valor da justa indemnização, justifica-se que considere ou adira ao laudo maioritário ou ao laudo da maioria dos peritos do Tribunal, por se dever presumir que as conclusões subscritas por um número maior de peritos, reunindo maior consenso, terão maior aptidão para atingir aquele objetivo ou que os peritos do Tribunal, não tendo sido indicados pelas partes e não tendo com elas qualquer ligação, oferecem melhores garantias de isenção e imparcialidade, estando, por isso, em melhores condições de, com objetividade e isenção, determinar o justo valor da indemnização.
IV - Por isso, a indemnização deve fundamentalmente basear-se nos valores apurados nos laudos e relatórios dos peritos escolhidos pelo Tribunal, quando haja disparidade entre eles e os dos restantes peritos, porque se lhes exige total imparcialidade, sendo que a sua competência técnica, pelo menos, não há-de ser inferior à dos nomeados pelas partes.
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[
"EXPROPRIAÇÃO POR UTILIDADE PÚBLICA",
"PERÍCIA",
"LAUDO DOS PERITOS"
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Processo nº 3344/22.7T8MAI.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Local de Cível de Santo Tirso – ...
Recorrentes: AA e BB
Recorrida: IP – Infraestruturas de Portugal, S.A.
Relatora: Juíza Desembargadora Teresa Pinto da Silva
1ª Adjunta: Juíza Desembargadora Fátima Andrade
2º Adjunto: Juiz Desembargador Mendes Coelho
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Acordam os juízes subscritores deste acórdão, da 5ª Secção, Cível, do Tribunal da Relação do Porto
I – RELATÓRIO
Nos presentes autos de expropriação judicial por utilidade pública em que é expropriante IP – Infraestruturas de Portugal, S.A., e expropriados AA e BB, por despacho do Exmº Sr. Secretário de Estado das Infraestruturas, de 14 de abril de 2021, publicado no Diário da República nº 85, 2ª Série, de 3 de maio de 2021, foi declarada a utilidade pública, com carácter de urgência, da expropriação das parcelas de terreno necessárias à construção da empreitada da «EN 14-Maia (Via Diagonal) / Interface Rodoferroviário da Trofa», de entre as quais, a n.º 133, propriedade dos aqui expropriados AA e BB, parcela essa com a área de 4030 m2, a desanexar do prédio rústico sito na freguesia ..., concelho da Trofa, descrito na Conservatória do Registo Predial da Trofa sob o nº...09/19981113, daquela freguesia e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...27, da União das Freguesias ... (... e ...), que proveio do artigo extinto 1044 da freguesia ..., concelho da Trofa.
Efetuada a vistoria
ad perpetuam rei memorium
em 29 de junho de 2021, procedeu-se, de seguida, à respetiva arbitragem nos termos legais, que fixou, por unanimidade, o valor da indemnização a atribuir aos expropriados em €15.734,00, após o que, em 6 de setembro de 2022, se procedeu à adjudicação da identificada parcela à Expropriante.
Depois de notificados da decisão arbitral, vieram os expropriados, inconformados com ela, interpor recurso, pugnando pela fixação da indemnização que se vier a apurar pelos senhores peritos, nos termos do disposto no artigo 58º do Código das Expropriações, não liquidando então o pedido, invocando os ensinamentos do Acórdão do Supremo Tribunal da Justiça de 27 de maio de 1997.
Alegaram, para tanto e em síntese, não ser possível avaliar devidamente a parcela expropriada, apenas com base no seu rendimento fundiário, sendo necessário atender-se a todas as características da parcela, quer a nível de localização, quer a nível da envolvente, justificando-se a aplicação de uma majoração do rendimento fundiário pela boa localização e topografia, nunca inferior a 15%.
Para além disso, consideraram que devem também ser incluídos nessa avaliação:
- o aproveitamento do mato que é retirado após o corte do eucalipto.
- a potencialidade construtiva da parcela, que coexiste com uma exploração florestal ordenada, porquanto a parcela expropriada e o prédio estão inseridos no PDM em solo rural, a parcela em espaço canal e o restante do prédio em espaço florestal, na subcategoria de área florestal de produção, conferindo o PDM da Trofa potencialidade construtiva, sendo a inserção em área florestal meramente conjuntural.
- as benfeitorias que existiam na parcela à data da declaração de utilidade pública, traduzidas na plantação florestal devidamente organizada composta por linhas de plantação espaçadas de ¾ metros e uma distância entre plantas de 2/3 metros, perfazendo em média 1 árvore por cada 9 m2, o que, atendendo à área da parcela expropriada, 4030 m2, permite concluir que existiam sensivelmente 447 eucaliptos que tinham de ser contabilizados e não o foram.
- a desvalorização da parcela sobrante norte, alegando que não dispõem de elementos concretos para a determinar.
- a desvalorização da parcela sobrante sul, superior a 60% do valor.
- a circunstância de a parcela estar em espaço canal e, como tal, ter um valor superior ao do rendimento fundiário.
- o valor do solo como agrícola, deduzindo o encargo de arrancar a exploração florestal, por se tratar de solução possível e razoável (a lei manda atender ao rendimento efetivo e possível).
Mais alegam que os autos não dispõem de elementos a este propósito e os mesmos só poderão ser alcançados por via da avaliação, motivo pelo qual pugnaram para que sejam devidamente operacionalizados para que, na senda do resultado que deles se retire, se possa concluir, com propriedade, sobre qual o melhor critério afoito à quantificação da justa indemnização.
A expropriante apresentou resposta ao recurso da decisão arbitral interposto pelos expropriados, concluindo pela improcedência do recurso por estes interposto.
Apresentou ainda recurso subordinado, no âmbito do qual discordou do valor unitário do solo considerado pelos Srs. Árbitros, da atribuição de indemnização por perdas de investimento e arvoredo, da atribuição de qualquer desvalorização à parte sobrante sul, alegando que o valor da parcela à data da DUP corresponde somente à indemnização do valor do solo, cujo valor unitário é de €2,50/m2, traduzindo-se a indemnização no valor de €10.075,00 (4.030m2x€2,50/m2).
Conclui considerando que o valor da parcela a expropriar não deverá ser superior a €10.075,00, devendo dar-se provimento ao recurso subordinado por ela interposto.
Os expropriados responderam ao recurso subordinado apresentado pela expropriante, pugnando pela improcedência do mesmo, atenta a ausência de fundamentos válidos que sustentem o recurso em causa, sendo ilógica a alegação de que o valor unitário indemnizatório da parcela expropriada deve atender a €2,50/m2.
Ordenada a perícia e admitidos os requerimentos instrutórios, foram apresentados os relatórios periciais a 3 de julho de 2023, tendo os peritos indicados pelo Tribunal defendido a fixação do valor indemnizatório em €17.111,52; o perito indicado pela expropriante sustentado que o montante global da indemnização deverá ser de €13.976,04 e o perito indicado pelos expropriados considerado que a indemnização a atribuir àqueles deverá ascender a €20.073,33.
Os Srs. Peritos responderam aos quesitos indicados pelas partes como objeto da perícia, bem como aos esclarecimentos posteriormente por elas requeridos, esclarecimentos esses prestados nos autos por email junto em 5 de janeiro de 2024.
Devidamente notificadas para o efeito, as partes apresentaram alegações escritas.
Em 7 de maio de 2024 foi proferido despacho, no qual se considerou não ser possível, no âmbito dos presentes autos, a apresentação de pedidos genéricos, e se determinou a notificação dos Expropriados para esclarecerem se o valor de €8.000,00 será o valor indemnizatório pretendido fixar ou se porventura um outro, que deverão fixar, através do aperfeiçoamento do segmento petitório do recurso por si apresentado.
Por requerimento de 16 de maio de 2024 vieram os Expropriados responder àquele convite de aperfeiçoamento do segmento petitório do recurso interposto, peticionando a fixação da indemnização em montante não inferior a €23.734,00, correspondendo o mesmo ao somatório do valor da parcela expropriada (€4,375/m2 x 4030 m2), da perda de produção e outros prejuízos (€3.120,83 + €201,50), da depreciação da parte sobrante (€2.646,00) e do montante não quantificado nos autos pela destruição das 448 árvores aí existentes.
A 24 de julho de 2024 foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
«
Decisão
Nos termos, e com os fundamentos supra expostos, decide-se:
A. Julgar totalmente improcedente o recurso apresentado pela entidade expropriante.
A.
Julgar parcialmente procedente o recurso apresentado pela entidade expropriada, AA e BB, e em consequência, fixar em € 17 111,52 (dezassete mil cento e onze euros e cinquenta e dois cêntimos), a indemnização devida pagar pela entidade expropriante, IP – Infraestruturas de Portugal, S.A., à entidade expropriada, pela expropriação da parcela de terreno designada pelo n.º ...33, correspondente a terreno, destinada à realização da obra “EN 14-Maia (Via Diagonal) / Interface Rodoferroviário da Trofa”, com a área de 4030 m2, desanexada de prédio rústico com a área de 9980 m2, denominado de “Bouça ...”, que confronta a Norte e Poente com CC, a Sul com caminho e a Nascente com DD, situado em Lugar do ..., com descrição predial n.º ...09/19981113, e com o artigo matricial rústico n.º ...27, da União das Freguesias ... (... e ...), que proveio do artigo extinto 1044, da freguesia ..., concelho da Trofa, quantia atualizada de acordo com a evolução do índice de preços do consumidor, desde a data da declaração da utilidade pública e até à data do trânsito em julgado da presente sentença.
C.
Condenar as entidades expropriante e expropriada no pagamento das custas processuais, em razão do respetivo decaimento
.»
*
II – DO RECURSO
Não se conformando com o assim decidido, vieram os Expropriados interpor o presente recurso daquela sentença, pretendendo a sua revogação, para o que apresentaram alegações formulando, a final, as seguintes conclusões:
I) Os Recorrentes discordam da sentença recorrida, na parte que lhes é desfavorável, designadamente por entender que alguns critérios que foram utilizados na avaliação da parcela expropriada não permitem que seja atribuída uma indemnização justa, nos termos plasmados no artigo 23º do Código das Expropriações.
II) O Tribunal recorrido aderiu à avaliação efectuada pelos peritos do Tribunal, desvalorizando totalmente a avaliação subscrita pelo perito indicado pelos expropriados.
III) Mas ao fazê-lo ignorou por completo o teor das alegações finais (ao abrigo do disposto no artigo 64º do C.E.) apresentadas pelos expropriados e um conjunto de críticas e incongruências existentes no relatório pericial maioritário, por si detetadas, e que não foram conhecidas pelo Tribunal.
IV) Ao fazê-lo, o tribunal recorrido deixou de conhecer questões que estão diretamente relacionadas com a avaliação da parcela expropriada e que relevam na indemnização que importa apurar nos autos e que o tribunal fez tábua rasa, daí que o teor da sentença esteja inquinado por ter deixado de conhecer questões que devia ter conhecido.
V) Estamos perante a expropriação de uma parcela de terreno que pese embora se trate de um terreno florestal, estava inserido num conjunto vasto de terrenos, de vários proprietários, que decidiram proceder a uma plantação de eucaliptos, organizada, espaçosa, de forma a torná-la numa produção rentável.
VI) Estas descrições das características da parcela expropriada constam no auto de vistoria ad perpetuam rei memoriam, o que demonstra estarmos perante um terreno florestal com características especiais e que deviam ter sido atendidas pela sentença recorrida por se tratarem de fatores de majoração do solo.
VII) Mas os senhores Peritos do laudo maioritário, bem como a sentença recorrida não foram sensíveis a tais características, limitando-se a avaliar o solo em função da aptidão do mesmo para solo florestal.
VIII) A não consideração da realidade desta parcela de terreno e o modo como o mesmo era plantado e organizado por parte dos senhores Peritos, e da sentença recorrida acarretou que não avaliassem o solo de acordo com a sua potencialidade real e efetiva, em manifesta violação do princípio da justa indemnização.
IX) Assistindo-se a um desrespeito da aptidão produtiva deste solo.
X) Igualmente, discordamos da não consideração por parte do Tribunal de uma indemnização pelo prejuízo decorrente de uma quota do investimento inicial. De facto, os Expropriados decidiram fazer um investimento considerável para tornar a plantação produtiva, preocupando-se em fazer uma produção organizada, cuidada e limpa e a expropriação veio interromper a produção e impedir que o investimento que tinham efetuado se torne rentável e ressarcido.
XI) Estes prejuízos têm de ser indemnizados e têm de acrescer ao valor do solo por se tratar de um prejuízo autónomo, mas que em simultâneo decorre da expropriação. A propósito, e como não consta dos autos qualquer avaliação a este respeito, entendemos dever ser considerada a avaliação apurada pelo perito indicado pelos expropriados, e fixada a indemnização em € 3 120,83.
XII) Igualmente não foram considerados pela sentença recorrida outros prejuízos provocados aos Expropriados, nomeadamente, o que deixou de receber por terem interrompido prematuramente a sua produção. Isto é, os Expropriados deixaram de poder retirar proveitos como é o caso da rentabilização que podiam fazer com a comercialização de produtos relacionados com a exploração deste tipo de produção, como é o caso, da casca do eucalipto para a produção de biomassa, de brinquedos ou de pellets.
XIII) Apenas o perito indicado pelos expropriados foi sensível a tais prejuízos considerando para este efeito, a quantia de € 201,50 que, no nosso entender, por serem uma decorrência deste acto expropriativo, têm de ser atendidos como acréscimo ao valor da indemnização do solo.
XIV) Para além destes parâmetros de avaliação que não foram atendidos pela sentença recorrida, um outro merece igualmente o nosso reparo e constitui também o objeto deste recurso, que é a questão da não consideração das benfeitorias na avaliação global da parcela expropriada.
XV) No auto de vistoria ad perpetuam rei memoriam, e devidamente esclarecido no relatório complementar ao mesmo, resulta que “a parcela a expropriar, na altura estava ocupada por uma plantação de eucaliptos, devidamente organizada por linhas de plantação espaçadas de 3 a 4 metros e uma distância entre plantas de 2 a 3 metros, o que representa uma planta por cada 9 m2.
XVI) Ora, os senhores peritos do laudo maioritário atenderam apenas à avaliação do solo considerando uma produção média por hectare e nada mais, desconsiderando que para além do valor do solo, existiam benfeitorias que tinham de ser indemnizadas.
XVII) Por sua vez, o senhor perito indicado pelos expropriados fez as contas considerando as árvores plantadas por m2 e a área da parcela expropriada, admitindo a existência de 448 eucaliptos.
XVIII) O Tribunal acabou por reconhecer na sua decisão que os senhores peritos deviam tem contabilizado as referidas árvores da fixação do valor unitário do solo,
XIX) Mas depois, em sentido contrário, dá como não provado, no ponto 4 deste elenco, a existência dos 448 eucaliptos.
XX) Estamos perante uma contradição entre a motivação da sentença e os factos, nomeadamente os que considera como não provados, sendo necessário harmonizar a decisão recorrida, excluindo o ponto 4 dos factos não provados e aditando a existência dos 448 eucaliptos aos factos provados, por resultarem nos autos prova que demonstre a existência das referidas árvores, complementando o ponto 10 dos factos provados .
XXI) E mais, devem as mesmas ser avaliadas e indemnizadas pois pese embora se trate de um terreno florestal, uma coisa é o valor do terreno, outra bem distinta, é o valor das benfeitorias existentes do mesmo à data da d.u.p.
A Expropriante apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência da apelação e pela confirmação da sentença recorrida, culminando com as seguintes conclusões:
I. A sentença aderiu à posição maioritária dos Peritos nomeados pelo Tribunal.
II. Sendo a determinação do valor do bem expropriado uma questão essencialmente técnico-construtiva, deve o juiz dar a sua concordância ao parecer unânime dos peritos, ou quando esta não for alcançada, preferir o laudo maioritário.
III. Os expropriados impugnam a sentença em crise, todavia, não se fundamentando numa outra solução plausível de direito, nem em elementos factuais ou técnicos que permitam diferir da posição maioritária.
IV. Desde logo, defendem que a parcela possui caraterísticas especiais que deveriam ser atendidas e que conduziriam a um valor diferente do obtido pelos Srs. Peritos maioritários.
V. Ora, as especiais condições invocadas pelos expropriados são que estaríamos na presença de uma exploração florestal devidamente organizada, composta por linhas de plantação espaçosas, com distâncias entre 3 a 4 metros e uma distância entre plantas de 2 a 3 metros o que representa uma árvore por m2.
VI. Defendem que na avaliação tal situação não foi devidamente atendida, tendo os Srs. Peritos aplicado valores médios por hectare, tendo em atenção apenas e somente o tipo de cultura.
VII. Ora, se por um lado não se percebe onde a sua argumentação contraria o que é referido pelo Perito da vistoria, por outro note-se que esta não tem como objeto a avaliação da parcela, mas somente a reprodução factual do que existia naquela data.
VIII. Os Srs. Peritos maioritários tomaram em consideração o teor da vistoria APRM.
IX. A produção de 21m3/ha/ano pugnada pelos expropriados é perfeitamente absurda e exagerada, ultrapassando em muito os valores normais e médios para estas explorações, mesmo nos melhores locais e mais produtivos!
X. Reclamam ainda a existência de 448 eucaliptos na parcela, quando a sentença dá esse facto como não provado.
XI. Não só os expropriados abateram todas as árvores existentes na parcela antes da sua ocupação pela obra rodoviária…
XII. Como aquelas árvores não constituíam uma benfeitoria, dado estarmos a avaliar o terreno à perpetuidade, o que implica que elas já foram consideradas.
XIII. Quando estamos na presença de terrenos, cuja avaliação é realizada de acordo com a sua ocupação à perpetuidade, as plantações não são caracterizadas e avaliadas como benfeitorias autónomas.
XIV. A sua existência é um parâmetro da determinação do valor do solo, e, assim sendo, o seu valor está intrinsecamente ligado ao valor do solo não assumindo autonomia indemnizatória!
XV. Pretendem ainda, na senda da posição do seu perito, que seja atribuída uma indemnização pela perda de investimento.
XVI. Tal circunstância é totalmente descabida e não influi no valor real e corrente que o mesmo tem no mercado.
XVII. Tentar inflacionar o seu valor com critérios e parâmetros inverosímeis, só afasta ainda mais o valor obtido na avaliação do valor de mercado, o que claramente não é a intenção do legislador do Código das Expropriações.
XVIII. Por outro lado, é normal acontecer que o investimento realizado seja abatido no 1.º corte, o qual já tinha ocorrido, pelo que, assim sendo, já foi recuperado o alegado investimento realizado, não havendo quaisquer perdas a considerar!
XIX. Além dos prejuízos considerados pelos Peritos maioritários, que aliás vão além do que é razoável, fixando um valor até superior ao que seria justo, nada deve ser ficcionado com o intuito de incrementar a indemnização.
XX. Igualmente não tem qualquer fundamento, daí nenhum dos Peritos que avaliou o bem expropriado ao longo do processo expropriativo o ter determinado, a não ser o Perito dos Expropriados, considerar uma indemnização por produção de biomassa na quantificação do valor do solo.
XXI. Efetivamente, esta ficção tem o objetivo claro de exponenciar a indemnização e demonstra mais uma vez que o perito designado pelos expropriados não revelou isenção nem imparcialidade no relatório de avaliação que elaborou.
XXII. Conforme suprarreferido, havendo divergência entre os Peritos, deve a decisão recair sobre a posição dos Peritos do Tribunal, pois são os que maior isenção e imparcialidade apresentam.
*
Recebido o processo nesta Relação, emitiu-se despacho que teve o recurso como próprio, tempestivamente interposto e admitido com efeito e modo de subida adequados.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
Delimitação do objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões vertidas pelos recorrentes nas suas alegações (arts. 635º, nºs 4 e 5 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art. 608.º, n.º 2,
in fine
, aplicável
ex vi
do art. 663.º, n.º 2,
in fine
, ambos do Código de Processo Civil).
Não pode igualmente este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais prévias, destinando-se à apreciação de questões já levantadas e decididas no processo e não à prolação de decisões sobre questões que não foram nem submetidas ao contraditório nem decididas pelo tribunal recorrido.
Mercê do exposto, da análise das conclusões vertidas pelos recorrentes nas suas alegações decorre que o objeto do presente recurso está circunscrito às seguintes questões:
1) Se a sentença padece de nulidade por omissão de pronúncia.
2) Se foi validamente deduzida e procede a impugnação da decisão sobre a matéria de facto constante da sentença quanto ao ponto 4) dos factos não provados.
3) Da reapreciação da decisão de mérito quanto à fixação do valor da indemnização devido pela expropriação da parcela expropriada.
*
III – FUNDAMENTAÇÃO
Fundamentação de facto
É o seguinte o teor da decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida (transcrição):
Factos provados
Com relevância para a apreciação do mérito da causa, o Tribunal considera provados os seguintes factos:
1.
Por despacho proferido pelo Sr. Secretário de Estado da Administração Local e Reforma Administrativa, identificado com o n.º 4482/2021 e publicada no D.R., II série, n.º 85, de 3 de maio de 2021, foi declarada a utilidade pública, com caráter de urgência, à execução da obra EN 14 - Maia (Via Diagonal) / Interface Rodoferroviário da Trofa, em ..., concelho da Trofa, da parcela de terreno designada pelo n.º ...33, correspondente a terreno, destinada à realização da obra “
EN 14-Maia (Via Diagonal) / Interface Rodoferroviário da Trofa
”, com a área de 4030 m2, desanexada de prédio rústico com a área de 9980 m2, denominado de “Bouça ...”, que confronta a Norte e Poente com CC, a Sul com caminho e a Nascente com DD, situado em Lugar do ..., com descrição predial n.º ...09/19981113, e com o artigo matricial rústico n.º ...27, da União das Freguesias ... (... e ...), que proveio do artigo extinto 1044, da freguesia ..., concelho da Trofa.
2.
Foi conferida posse administrativa à referida parcela em 17.08.2021.
3.
A entidade IP – Infraestruturas de Portugal, S.A. procedeu ao depósito global de € 10 075,00 (dez mil e setenta e cinco euros).
4.
Por despacho exarado nos autos em 06.09.2022, a parcela descrita no facto provado 1 foi adjudicada à entidade expropriante.
5.
A referida parcela resultou desanexada de prédio rústico com a área de 9980 m2, denominado de “
Bouça ...
”, que confronta a Norte e Poente com CC, a Sul com caminho e a Nascente com DD, situado em Lugar do ..., com descrição predial n.º ...09/19981113, e com o artigo matricial rústico n.º ...27, da União das Freguesias ... (... e ...), que proveio do artigo extinto 1044, da freguesia ..., concelho da Trofa.
6.
A parcela de terreno a expropriar tem uma forma irregular aproximadamente trapezoidal, estende-se de nascente para poente e de norte para sul.
7.
Trata-se de um terreno florestal, com pendente pouco acentuada, com aptidão para a atividade florestal, com acesso por caminho florestal existente a sul, em terra batida e sem infraestruturas.
8.
De acordo com a Planta de Ordenamento do PDM em vigor, o solo do prédio de onde é desanexada a parcela expropriada tem a classificação e qualificação seguintes: “
Solo Rural — Espaços Florestal — Área Florestal de Produção”
.
9.
De acordo com a Planta de Condicionantes do mesmo plano a parcela encontra-se classificada com “
Espaço Canal – Variante a EN14
”.
10.
Consta do teor do relatório complementar ao Laudo de Vistoria “
Ad Perpetuam Rei Memoriam
”, elaborado em 29.07.2021, no seu ponto 2.1, a seguinte resposta à reclamação apresentada pela entidade expropriada: “
O perito identificou devidamente no relatório de vistoria "Ad Perpetuam Rei Memoriam" as benfeitorias existentes na parcela a expropriar, no entanto no item n.º 10 do relatório de vistoria, designado por "BENFEITORIAS", não as descreveu individualmente, o que passa agora a fazer.
Na parcela a expropriar á assinalar as seguintes benfeitorias:
> Plantação florestal devidamente organizada, composta por linhas de plantação espaçadas de 3/4 metros e uma distância entre plantas de 2/3 metros perfazendo em média 1 árvore por cada 9 metros quadrado
s.”
11.
Da divisão do prédio, por efeito da expropriação parcial, a área não expropriada ficou distribuída por duas parcelas separadas, uma a Norte e outra a Sul, esta última com uma área de 2.520,00 m2.
12.
A parcela expropriada foi classificada em solo para outros fins.
13
. Relativamente à referida parcela, considera-se o rendimento do seu aproveitamento florestal em € 612,00/ha x ano, fixando-se:
a) Produção de madeira em 18t/ha x ano;
b) Despesas de exploração – 15%;
c) Valor da madeira – € 40,00/tonelada;
d) Taxa de capitalização anual – 2%.
14.
Relativamente à referida parcela, foi ainda considerada perda de produção, fixando-se:
a) Rendimento anual líquido – € 612,00/ha x ano;
b) Período temporal – 10 anos;
c) Área da parcela – 0,4030 ha.
15.
Decorre do teor dos esclarecimentos prestados pelos Srs. Peritos, indicados pelo Tribunal, às questões suscitadas pela entidade expropriada:
“ (…) O perito da parte considerou um período de produção de 30 anos, com cortes ao 10.º, 20.º e 30.º anos.
Os peritos subscritores do Laudo maioritário consideraram um valor médio de produção anual.
Estamos sempre a falar de valores estimativos e ambos os cenários não conduzem a valores muito diferentes. Senão vejamos,
Todos os peritos consideraram o método do rendimento, com capitalização direta, onde o rendimento médio anual é levado à perpetuidade com uma taxa de capitalização anual.
Em ambos os relatórios os peritos consideraram uma taxa de capitalização de 2%.
No caso do laudo peritos tribunal consideraram um rendimento médio anual líquido de 612,00 €/ha/ano, que com a taxa de capitalização de 2% conduz a um valor do solo de 30.600,00 €/há (=3,06 €/m2).
No relatório do perito minoritário o valor apresentado é diferente (3,5 €/m2) pois, método do rendimento utilizado não foi o mais normalmente utilizado e também designado de capitalização direta (onde se utiliza o valor do rendimento médio anual) mas uma versão adaptada com valores atualizados para a data atual (VAL = Valor atual líquido) (…).
”
16.
Em consequência do descrito no facto provado 13, resultou fixado o valor unitário da parcela expropriada em € 3,06/m2.
17.
Mais resultou fixada a desvalorização a atender quanto à parte sobrante sul, descrita no facto provado n.º 11, atendendo à depreciação em função da sua separação da parte sobrante norte, em 30%.
18.
Em respeito à parte sobrante norte fixou-se entendimento de inexistir qualquer desvalorização, por manter os mesmos cómodos.
19.
Os Srs. Peritos declararam inexistir benfeitorias na parcela expropriada.
*
Factos não provados
1.
Os valores unitários de solo da parcela expropriada, descrita no facto provado 1, correspondiam, à data da declaração de utilidade pública, a qualquer um dos seguintes valores: € 2,50/m2 ou 2,89/m2.
2.
A parcela sobrante situada a sul da parcela expropriada tem uma área de 2.317 m2 e está desvalorizada em pelo menos 60%.
3.
A parcela expropriada tem potencialidade construtiva.
4.
A avaliação pericial não teve em consideração, na contabilização da indemnização, a presença de 448 árvores na parcela expropriada.
*
Fundamentação de direito
1 – Se a sentença padece de nulidade por omissão de pronúncia
Nos pontos II, III e IV das suas conclusões de recurso, os recorrentes sustentam que a sentença recorrida está inquinada por ter deixado de conhecer de questões que devia ter conhecido. Para tanto, alegam que o Tribunal recorrido aderiu à avaliação efetuada pelos peritos do Tribunal, desvalorizando totalmente a avaliação subscrita pelo perito indicado pelos expropriados, ignorando por completo o teor das alegações finais por eles apresentadas (ao abrigo do disposto no artigo 64º, do Código das Expropriações) e um conjunto de críticas e incongruências no relatório pericial maioritário, por si detetadas, que não foram conhecidas pelo Tribunal. Ao fazê-lo, o Tribunal recorrido deixou de conhecer questões que estão diretamente relacionadas com a avaliação da parcela expropriada e que relevam na indemnização que importa apurar nos autos.
Com tal argumentação, poder-se-á entender que os recorrentes pretendem alegar que a sentença recorrida padece da nulidade prevista na alínea d), do nº1, do artigo 615º, do Código de Processo Civil.
Segundo o preceito em causa,
“a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
O disposto nesta norma está diretamente relacionado com o artigo 608°, n° 2, do Código de Processo Civil, segundo o qual “
o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”.
A dificuldade está em saber o que deve entender-se por questões jurídicas neste contexto. E quanto a esta matéria, a jurisprudência e a doutrina têm entendido que essas questões que o Tribunal pode/deve conhecer, para além daquelas cujo conhecimento oficioso a lei permite ou impõe, identificam-se com os pedidos formulados, com a causa de pedir e com as exceções invocadas. Não serão os argumentos, as motivações produzidas pelas partes, mas sim os pontos de facto ou de direito relevantes no quadro do litígio, ou seja, os concernentes ao pedido, à causa de pedir e às exceções
[1]
.
Em consonância com este entendimento, e tal como decorre do artigo 615º, do Código de Processo Civil, no qual as nulidades da sentença se encontram taxativamente previstas, conclui-se que nelas não se inclui o erro de julgamento de facto ou de direito, inerentes ao mérito da decisão.
As nulidades sancionam vícios formais, de procedimento,
error in procedendo
, e não o erro de julgamento,
error in judicando
, o erro eventualmente cometido na perceção da realidade fáctica (
error facti
) ou na aplicação do direito (
error juris
), que conduzem à não conformidade da decisão com o direito substantivo aplicável.
Como se evidencia no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-11-2021
[2]
«
a violação das normas processuais que disciplinam, em geral e em particular (artigos 607º a 609º do Código de Processo Civil), a elaboração da sentença - do acórdão - (por força do nº 2 do artigo 663º e 679º), enquanto ato processual que é, consubstancia vício formal ou error in procedendo e pode importar, designadamente, alguma das nulidades típicas previstas nas diversas alíneas do nº 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil (aplicáveis aos acórdãos ex vi nº 1 do artigo 666º e artigo 679º do Código de Processo Civil)
.».
Perante o sobredito enquadramento, e analisando o caso dos autos, cumpre decidir se, tal como sustentam os apelantes, a sentença padece de nulidade por omissão de pronúncia. E desde já, adiantando a conclusão, diremos que não se verifica o vício de nulidade apontado.
Lida a decisão recorrida não se vislumbra a falta de conhecimento de qualquer questão que tenha sido suscitada pelas partes, nem, note-se, em rigor é esse o vício imputado pelos recorrentes. Quando estes alegam que na fundamentação da sentença o Tribunal recorrido aderiu à avaliação efetuada pelos peritos do Tribunal, desvalorizando totalmente a avaliação subscrita pelo perito por eles indicado, ignorando por completo o teor das alegações finais por eles apresentadas (ao abrigo do disposto no artigo 64º, do Código das Expropriações) e um conjunto de críticas e incongruências no relatório pericial maioritário, por si detetadas, o que verdadeiramente estão a invocar não é qualquer nulidade da decisão por omissão de pronúncia, mas antes a discordar da fundamentação da sentença, por a considerarem deficiente e incorreta, o que coloca a questão já ao nível do erro de julgamento.
Com efeito, não integra o conceito de questão, para os efeitos em análise, as situações em que o juiz porventura deixe de apreciar algum ou alguns dos argumentos aduzidos pelas partes no âmbito das questões suscitadas. Neste caso, o que ocorrerá será, quando muito, o vício de fundamentação medíocre ou insuficiente, qualificado como erro de julgamento, relativo, por conseguinte a uma questão de mérito.
O que os recorrentes vêm manifestar, em concreto, é a sua discordância quanto ao decidido na sentença apelada, mas esse inconformismo não conduz à sua nulidade.
A arguição da nulidade prevista na citada alínea d) revela-se, assim, absolutamente infundada.
Por conseguinte, e sem necessidade de outras considerações, a resposta à presente questão, que no âmbito do recurso incumbe a este Tribunal
ad quem
apreciar, é necessariamente no sentido de que a decisão recorrida não padece da causa de nulidade invocada e, por via disso, o recurso improcede quanto a esta questão.
*
2 – Se foi validamente deduzida e procede a impugnação da decisão sobre a matéria de facto constante da sentença quanto ao ponto 4) dos factos não provados
Na sentença recorrida o Tribunal deu como não provado, sob o ponto 4. o seguinte “4. A avaliação pericial não teve em consideração, na contabilização da indemnização, a presença de 448 árvores na parcela expropriada”.
Sustentam os Recorrentes que o ponto 4. dos factos não provados deve ser excluído e aditada a existência de 448 eucaliptos aos factos provados, por resultar dos autos prova que demonstra a existência das referidas árvores, complementando-se o ponto 10 dos factos provados.
Com interesse para o conhecimento desta questão importa ter presente que o art.º 662.º do Código de Processo Civil dispõe, no seu nº 1, que: “
A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa
.”
Como refere Abrantes Geraldes
[3]
,
“Com a redacção do art. 662º pretendeu-se que ficasse claro que, sem embargo de correção, mesmo a título oficioso, de determinadas patologias que afetam a decisão da matéria de facto (v.g. contradição) e também sem prejuízo do ónus de impugnação que recai sobre o recorrente e que está concretizado nos termos previstos no art. 640º, quando esteja em causa a impugnação de determinados factos cuja prova tenha sido sustentada em meios de prova submetidos a livre apreciação, a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos, e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras da experiência… fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia… sem embargo, das modificações que podem ser oficiosamente operadas relativamente a determinados factos cuja decisão esteja eivada de erro de direito, por violação de regras imperativas, à Relação não é exigido, nem lhe é permitido que, de motu próprio, se confronte com a generalidade dos meios de prova que estão sujeitos a livre apreciação e que, ao abrigo desse princípio foram valorados pelo Tribunal de 1ª instância, para deles extrair, como se se tratasse de um novo julgamento, uma decisão inteiramente nova. Pelo contrário, as modificações a operar devem respeitar o que o recorrente, no exercício do seu direito de impugnação da decisão da matéria de facto, indicou nas respectivas alegações que circunscrevem o objecto de recurso”
.
Como se escreveu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04/10/2018
[4]
, que define bem o “quadro” em que funciona a reapreciação da matéria de facto pelo Tribunal da Relação:
“I. A apreciação da decisão de facto impugnada pelo Tribunal da Relação não visa um novo julgamento da causa, mas, antes, uma reapreciação do julgamento proferido pelo Tribunal de 1ª Instância …. II. No âmbito dessa apreciação, incumbe ao Tribunal da Relação formar a seu próprio juízo probatório sobre cada um dos factos julgados em primeira instância e objeto de impugnação, de acordo com as provas produzidas constantes dos autos e das que lhe for lícito ainda renovar ou produzir [cfr. nº 2, als. a) e b) do artigo 662º do CPC], à luz do critério da sua livre e prudente convicção, nos termos do artigo 607.º, n.º 5, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.”
Por seu lado, o artigo 640.º, do Código de Processo Civil, impõe ao recorrente, na impugnação da matéria de facto, a obrigação de especificar, sob pena de rejeição:
a) “os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados” [tem que haver uma indicação clara e inequívoca dos segmentos da decisão que considera afetados por erro de julgamento; ou seja, essa indicação tem que ser de molde a não implicar uma atividade de interpretação e integração das alegações do recorrente, tendo o Tribunal que encontrar na matéria de facto provada e não provada a matéria que o mesmo pretenderia impugnar, o que, aliás, está vedado ao Tribunal, face ao princípio do dispositivo];
b) “os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida” [tem que fundamentar os motivos da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios de prova produzidos – constantes dos autos ou da gravação – que, no seu entender, implicam uma decisão diversa da impugnada];
c)“quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”;
d) “a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”.
O citado artigo 640.º impõe, pois, um ónus rigoroso ao recorrente, cujo incumprimento implica a rejeição imediata do recurso. Como evidencia António Santos Abrantes Geraldes
[5]
, será de rejeitar total ou parcialmente o recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto em alguma das seguintes situações:
«
a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (artigos 635.º, n.º 4 e 641.º, n.º 2, alínea b), do CPC));
b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (artigo 640.º, n.º 1, alínea a), do CPC));
c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc).
d) Falta de indicação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento de impugnação
». Quanto a esta situação importa, no entanto, ter presente que o Supremo Tribunal de Justiça, através do Acórdão nº 12/2023, de 17 de outubro de 2023
[6]
, uniformizou a seguinte jurisprudência:
«Nos termos da alínea c), do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações».
Feitas estas considerações de ordem geral, e passando ao caso concreto, os recorrentes sustentam a exclusão do ponto 4) dos factos não provados, mas depois, quanto à sua pretensão, a mesma revela-se algo confusa. No âmbito do ponto 25) das alegações sustentam que o ponto 4 dos factos não provados deve ser aditado à matéria assente nos autos, ou seja, passar para o elenco dos factos provados. Já nas conclusões, no ponto XX, pretendem que apenas seja aditada aos factos provados a existência dos 448 eucaliptos, por resultar nos autos prova que demonstra a existência das referidas árvores, complementando-se o ponto 10 dos factos provados.
Seja de uma maneira ou de outra, a verdade é que a pretensão dos recorrentes se revela inútil, pois que a existência dos 448 eucaliptos, no caso concreto, é alcançada por cálculos a partir da conjugação do facto 1 com o facto 10. Com efeito, tendo a parcela 4030 m2 e existindo nela uma plantação florestal com a média de 1 árvore por cada 9 m2, forçoso é concluir que existiriam 448 árvores na parcela expropriada.
Ou seja, essa existência das 448 árvores acaba por já se mostrar provado nos autos e fazer parte dos factos assentes.
Por outro lado, o ponto 4. dos factos não provados não se limite a afirmar a existência de 448 árvores na parcela expropriada. O que ali se consignou como não provado foi “a avaliação pericial não teve em consideração, na contabilização da indemnização, a presença de 448 arvores na parcela expropriada”. E quanto a esse facto, não indicaram os recorrentes os concretos meios probatórios, constantes do processo, que impunham uma decisão diferente sobre esse ponto da matéria de facto impugnada diversa da recorrida.
Aliás, em bom rigor, o teor do ponto 4. dos factos não provados comporta em si um facto conclusivo e, nessa medida, deverá ser eliminado.
Com efeito, resulta do disposto no artigo 607.º, nº 4 do Código de Processo Civil que na fundamentação da sentença, o juiz tomará em consideração os factos admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.
No âmbito do Código de Processo Civil de 1961, o artigo 646.º, nº 4 do Código de Processo Civil previa, ainda, que: “
têm-se por não escritas as respostas do tribunal coletivo sobre questões de direito e bem assim as dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documento, quer por acordo ou confissão das partes”.
Esta norma não transitou para o atual diploma, o que não significa que na elaboração da sentença tinha sido dada liberdade ao julgador para integrar nos factos provados ou não provados conclusões ou meras afirmações de direito.
Atento o disposto no artigo 607º, nº4, do Código de Processo Civil, por um lado, e tendo presente que a linha divisória entre o que é matéria de facto e matéria de direito não é fixa, dependendo do modo como a relação material controvertida se mostra configurada, afigura-se-nos que os factos conclusivos não devem relevar (não podem integrar a matéria de facto) quando, porque estão diretamente relacionados com o
thema decidendum
, impedem ou dificultam de modo relevante a perceção da realidade concreta, seja ela externa ou interna, ditando simultaneamente a solução jurídica, normalmente através da formulação de um juízo de valor
[7]
. Acresce que é também de acolher o ensinamento do Ac. da RP de 07/12/2018
[8]
:
“Acaso o objeto da ação esteja, total ou parcialmente, dependente do significado real das expressões técnico-jurídicas utilizadas, há que concluir que estamos perante matéria de direito e que tais expressões não devem ser submetidas a prova e não podem integrar a decisão sobre matéria de facto. Se, pelo contrário, o objeto da ação não girar em redor da resposta exata que se dê às afirmações feitas pela parte, as expressões utilizadas, sejam elas de significado jurídico, valorativas ou conclusivas, poderão ser integradas na matéria de facto, passível de apuramento através da produção dos meios de prova e de pronúncia final do tribunal que efetua o julgamento, embora com o significado vulgar e corrente e não com o sentido técnico-jurídico que possa colher-se nos textos legais”
.
Assim, em linha com esse entendimento, as afirmações de natureza conclusiva devem ser excluídas do elenco factual a considerar, se integrarem o
thema decidendum
, entendendo-se como tal o conjunto de questões de natureza jurídica que integram o objeto do processo a decidir, no fundo, a componente jurídica que suporta a decisão. Daí que sempre que um ponto da matéria de facto integre uma afirmação ou valoração de factos que se insira na análise das questões jurídicas a decidir, comportando uma resposta, ou componente de resposta àquelas questões, tal ponto da matéria de facto deve ser eliminado.
Revertendo ao caso dos autos, analisando o ponto 4) dos factos não provados, impõe-se concluir que o mesmo integra matéria de índole totalmente conclusiva e jurídica. Trata-se de matéria que implica um raciocínio jurídico e valorativo que consubstancia parte essencial da controvérsia que constitui o objeto do litígio, a apreciar e decidir no âmbito da questão de direito subjacente. Logo, tal segmento conclusivo-jurídico não pode constar da decisão de facto, isto é, não pode constar quer dos factos provados, quer dos factos não provados.
Do que vem de se expor concluímos pela eliminação do ponto 4) do elenco dos factos não provados.
*
3 – Da reapreciação da decisão de mérito quanto à fixação do valor da indemnização devido pela expropriação da parcela expropriada
Em sede de enquadramento jurídico importa desde logo determinar o regime jurídico aplicável ao caso, qual seja, o atual Código das Expropriações, aprovado pela Lei nº 168/99, de 18 de setembro, com as sucessivas alterações, atenta a data da publicação da declaração de utilidade pública da expropriação em causa, sendo esta data o momento pertinente para efeito de determinação da legislação aplicável à fixação da indemnização devida, por ser essa a data que determina o nascimento do direito de crédito indemnizatório dos expropriados.
Como decorre da própria etimologia da palavra, expropriação (do latim medieval
expropriat
“tirar do proprietário”), significa a ação e o efeito de privar alguém da sua propriedade.
No caso concreto está em causa uma expropriação por utilidade pública, instituto jurídico que pode definir-se, recorrendo aos ensinamentos de Marcelo Caetano
[9]
, como “
a relação jurídica pela qual o Estado, considerando a conveniência de utilizar determinados bens em um fim específico de utilidade pública, extingue os direitos subjectivos constituídos sobre eles e determina a sua transferência definitiva para a pessoa a cujo cargo esteja a prossecução desse fim, cabendo a esta pagar ao titular dos direitos extintos uma indemnização compensatória.
”
Estando constitucionalmente consagrado o direito de propriedade privada (artigo 62º, nº1, da Constituição da República Portuguesa), a expropriação, enquanto privação forçada de um bem, rege-se por dois princípios constitucionalmente consagrados no nº2, do artigo 62º, da Lei Fundamental: a verificação de um interesse público, legitimamente declarado, e a obrigação de indemnizar o expropriado.
Compreende-se que assim seja, porquanto na génese deste instituto deparámo-nos com dois interesses conflituantes: a propriedade privada por um lado, e o interesse coletivo que, por vezes, exige, para a sua concretização, a afetação de bens /interesses privados.
Por forma a permitir a concordância prática destes interesses, prevê o legislador que quando o interesse da coletividade prevalece, através da expropriação por utilidade pública, ditando o desapossamento de bens privados mesmo contra a vontade do seu proprietário, este, como contrapartida, tem direito a receber uma justa indemnização para o ressarcir da perda sofrida.
A indemnização surge, por conseguinte, como contrapartida ao sacrifício que é imposto ao proprietário privado de um bem em nome de um interesse coletivo, fundando-se no princípio da igualdade dos cidadãos perante os encargos públicos, colocando o cidadão desapossado do seu bem por virtude do ato expropriativo em posição idêntica à dos demais cidadãos que, nas mesmas circunstâncias, não sofreram aquele sacrifício/dano patrimonial.
Embora o legislador estabeleça, no artigo 62º, nº2, da Constituição da República Portuguesa, que a “requisição e a expropriação por utilidade pública só podem ser efectuadas com base na lei e mediante o pagamento de justa indemnização”, e no artigo 1310º do Código Civil, que “havendo expropriação por utilidade pública ou particular ou requisição de bens, é sempre devida a indemnização adequada ao proprietário e aos titulares dos outros direitos reais afectados”, não consagrou na Lei Fundamental nem no Código Civil qualquer critério para a determinação do conceito de “justa indemnização”, apenas o tendo feito no Código das Expropriações.
Aí se consagra, desde logo no artigo 1º, que “os bens imóveis e os direitos a eles inerentes podem ser expropriados por causa de utilidade pública compreendida nas atribuições, fins ou objecto da entidade expropriante, mediante o pagamento contemporâneo de uma justa indemnização nos termos do presente Código”.
Acrescenta o artigo 23º, nº1, do mesmo Código que “a justa indemnização não visa compensar o benefício alcançado pela entidade expropriante mas ressarcir o prejuízo que para o expropriado advém da expropriação, correspondente ao valor real e corrente do bem de acordo com o seu destino efectivo ou possível numa utilização económica normal, à data da publicação da declaração de utilidade pública, tendo em consideração as circunstâncias e condições de facto existentes naquela data.” Neste artigo define-se o critério geral orientador do cálculo da justa indemnização, concretizado através dos vários critérios definidores do conteúdo da indemnização, previstos no nº2 desse preceito e nos artigos 24º a 32º do citado diploma.
Quanto ao alcance e conteúdo do conceito de justa indemnização a que o citado artigo 23º, nº1, do Código das Expropriações faz apelo, elucida Fernando Alves Correia
[10]
: “
a obrigação de indemnização por expropriação não se confunde com o dever de indemnização correspondente à responsabilidade civil por factos ilícitos, pelo risco e pela violação de deveres contratuais. Ao passo que este abrange todas as perdas patrimoniais (…) do lesado e cobre não só o prejuízo causado, mas também os benefícios que aquele deixou de obter em consequência da lesão, tendo como objectivo colocá-lo na situação em que estaria se a intervenção não tivesse tido lugar, aquela engloba apenas a compensação pela perda patrimonial suportada e tem como finalidade a criação de uma nova situação patrimonial correspondente e de valor igual. De uma maneira geral, entende-se que o dano patrimonial suportado pelo expropriado é ressarcido de uma forma integral e justa, se a indemnização corresponder ao valor comum do bem expropriado, ou, por outras palavras, ao respectivo valor de mercado ou ainda ao seu valor de compra e venda.
” Por conseguinte, a indemnização, em caso de expropriação, só será justa se proporcionar ao expropriado uma quantia correspondente à que teria sido paga pelo bem expropriado se este tivesse negociado livremente, correspondendo ao valor normal que bens equivalentes ao expropriado atingiriam no mercado
[11]
.
Fazendo apelo a este critério do “valor venal” ou do “justo preço”, a doutrina e a jurisprudência dominantes entendem que a justa indemnização, correspondendo ao valor real e corrente do bem de que o titular é desapossado pelo ato expropriativo, deve ser equivalente à importância que, nas condições normais de mercado livre, o expropriado, com referência à data da declaração de utilidade pública, obteria, de modo a ser reposto no seu património valor idêntico ao do bem de que se viu privado
[12]
.
Deste critério decorre que a justa indemnização deve respeitar os princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade, não podendo conduzir a indemnizações irrisórias ou manifestamente excessivas e, por isso, desproporcionadas à perda do bem expropriado
[13]
.
Esse montante da indemnização, segundo prescreve o art.º 24º, nº 1 do Código das Expropriações, calcula-se com referência à data da declaração de utilidade pública, sendo atualizado à data da decisão final do processo de acordo com a evolução do índice de preços no consumidor, com exclusão da habitação.
E, para efeito daquele valor real e corrente de um bem numa situação normal de mercado, ou seja, para o cálculo da justa indemnização, define o Código das Expropriações em apreço, nos artºs 24º a 28º, um conjunto de critérios / fatores de cálculo, que variam conforme o objeto da expropriação sejam solos ou edifícios ou construções.
No caso concreto está em causa a expropriação de uma parcela de terreno, e, nesses casos, para efeito de cálculo da indemnização, o artigo 25º, nº1, do Código das Expropriações distingue entre “solo apto para construção” e “solo para outros fins”, sendo o primeiro aquele que se integra em qualquer das alíneas do n°. 2 do citado artigo 25º do Código das Expropriações e o “solo para outros fins” o que não se encontra em qualquer das situações previstas nessas alíneas (artigo 25º, n°. 3 do Código das Expropriações).
O Tribunal
a quo
considerou que a parcela em apreço reunia as necessárias características para ser classificada – à semelhança do sucedido no acórdão arbitral – como “solo para outros fins”, classificação que foi unânime entre os Srs. Peritos e que não é impugnada no presente recurso.
Assim, na determinação do valor da parcela expropriada para efeitos de cálculo e atribuição de uma justa indemnização, nos termos legais (cfr. art. 23.°, do Código das Expropriações), entendeu, e bem, o Tribunal
a quo
classificar o mesmo como solo apto para outros fins.
Tal classificação da parcela expropriada determina que a sua avaliação seja efetuada conforme o estabelecido no artigo 27º, do Código das Expropriações, onde se estipula que:
“1 - O valor do solo apto para outros fins será o resultante da média aritmética actualizada entre os preços unitários de aquisições ou avaliações fiscais que corrijam os valores declarados efectuadas na mesma freguesia e nas freguesias limítrofes nos três anos, de entre os últimos cinco, com média anual mais elevada, relativamente a prédios com idênticas características, atendendo aos parâmetros fixados em instrumento de planeamento territorial e à sua aptidão específica.
2 - Para os efeitos previstos no número anterior, os serviços competentes do Ministério das Finanças deverão fornecer, a solicitação da entidade expropriante, a lista das transacções e das avaliações fiscais que corrijam os valores declarados efectuadas na zona e os respectivos valores.
3 - Caso não se revele possível aplicar o critério estabelecido no n.º 1, por falta de elementos, o valor do solo para outros fins será calculado tendo em atenção os seus rendimentos efectivo ou possível no estado existente à data da declaração de utilidade pública, a natureza do solo e do subsolo, a configuração do terreno e as condições de acesso, as culturas predominantes e o clima da região, os frutos pendentes e outras circunstâncias objectivas susceptíveis de influir no respectivo cálculo”.
No caso concreto, por não se terem apurado factos que permitissem a aplicação do critério previsto no nº1, do artigo 27º, todos os Srs. Peritos acolheram o critério do critério do rendimento previsto no nº2, do citado preceito, método que foi também acolhido pelo Tribunal
a quo
.
A utilização desse critério não foi colocada em causa pelos recorrentes. O que estes discordam é do quantitativo global de indemnização fixado, com o argumento de que a parcela expropriada constitui uma parcela de terreno florestal com fatores de majoração que não foram tidos em consideração nem pelos Srs. Peritos nomeados pelo Tribunal, nem pelo Tribunal
a quo
.
Em concreto, sustentam que no cálculo da indemnização por parte da decisão recorrida o Tribunal
a quo
:
- Não teve em consideração a aptidão produtiva do solo avaliada de acordo com a sua potencialidade real e efetiva.
- Não contemplou uma indemnização pelo prejuízo decorrente de uma quota do investimento inicial.
- Não incluiu no computo do cálculo do valor gerado pelo solo o valor concernente à totalidade do aproveitamento que dos recursos florestais, resíduos e subprodutos é possível efetuar, com a consideração não só do rendimento produzido pela produção de material lenhoso, mas também do rendimento de sobrantes deste, como seja biomassa lenho-celulósica, os plásticos de base biológica, vasos biodegradáveis, biomateriais e placas de isolamento térmico e acústico, fibras sustentáveis, todas elas produzidas com materiais lenhosos e afins.
- Não considerou as benfeitorias, traduzidas em 448 eucaliptos, que cumpre avaliar e indemnizar, pois embora se trate de um terreno florestal, uma coisa é o valor do terreno e outra, bem distinta, é o valor das benfeitorias existentes no mesmo à data da declaração de utilidade pública.
No caso concreto, o Tribunal
a quo
seguiu a posição maioritária dos Srs. Peritos nomeados pelo Tribunal. E bem, dizemos nós.
Pese embora a força probatória da perícia no processo de expropriação seja fixada livremente pelo Tribunal (artº. 389º do Código Civil), tem-se entendido que neste tipo de processo, sendo a peritagem obrigatória e traduzindo-se a avaliação do bem expropriado num juízo essencialmente técnico, o Tribunal deve aderir, em princípio, aos pareceres dos peritos, dando preferência ao valor resultante desses pareceres, desde que sejam coincidentes, e, por razões de imparcialidade e independência, quando não sejam coincidentes, optar pelo laudo dos peritos nomeados pelo Tribunal quando haja unanimidade entre eles, porquanto este é o meio de prova que melhor habilita o julgador a apurar o valor do bem expropriado, com vista à atribuição da justa indemnização.
Na verdade, para além da presumida competência técnica que se lhes reconhece, a posição assumida pelos peritos nomeados pelo Tribunal é aquela que, em princípio, oferece maiores garantias de independência, imparcialidade e objectividade, face ao distanciamento que mantêm em relação às partes e aos interesses em litígio, estando, por isso, em melhores condições de, com objectividade e isenção, determinar o justo valor da indemnização.
Havendo laudos periciais divergentes, o facto de se dever dar preferência ao dos peritos oficiosamente escolhidos, não significa uma irrestrita vinculação ao laudo maioritário, já que o Tribunal pode introduzir-lhe ajustamentos, fazer correcções, colmatar falhas ou seguir o laudo ou critérios diferentes, se os tiver por mais justos, de acordo com outros critérios técnicos, objectivamente sustentados, ou com os elementos probatórios que possuir
[14]
.
Destarte, “apesar de o juiz não estar vinculado aos laudos apresentados pelos peritos e apesar de ter o dever de os analisar criticamente, verificando, designadamente, a sua conformidade com os critérios legais, a verdade é que, no que toca às questões técnicas que constituem o cerne da avaliação, o julgador não estará, por regra, habilitado a contrariar as conclusões dos peritos e a formular o seu próprio juízo técnico.
Assim, existindo laudos divergentes e não possuindo o juiz quaisquer conhecimentos ou elementos concretos que lhe permitam aferir qual deles tem melhor aptidão para alcançar o valor da justa indemnização, justifica-se que considere ou adira ao laudo maioritário ou ao laudo da maioria dos peritos do Tribunal por se dever presumir que as conclusões subscritas por um número maior de peritos, reunindo maior consenso, terão maior aptidão para atingir aquele objectivo ou que os peritos do Tribunal, não tendo sido indicados pelas partes e não tendo com elas qualquer ligação, oferecem melhores garantias de isenção e imparcialidade, estando, por isso, em melhores condições de, com objectividade e isenção, determinar o justo valor da indemnização.
Por isso, e como vem sendo jurisprudência uniforme, a indemnização deve fundamentalmente basear-se nos valores apurados nos laudos e relatórios dos peritos escolhidos pelo Tribunal, quando haja disparidade entre eles e os dos restantes peritos, porque se lhes exige total imparcialidade, sendo que a sua competência técnica, pelo menos, não há-de ser inferior à dos nomeados pelas partes.
Ora, no caso, seguindo esse laudo unânime dos peritos nomeados pelos Tribunal, o Tribunal
a quo
, em termos de aptidão produtiva, fixou o valor unitário da parcela expropriada em € 3,06/m2. Não vemos motivos para alterar este valor, desde logo atenta a justificação dada pelos Srs. Peritos do Tribunal para não aderirem à posição do perito dos Expropriados, (3,5 €/m2) pois o método do rendimento utilizado não foi o mais normalmente utilizado e também designado de capitalização direta (onde se utiliza o valor do rendimento médio anual), mas uma versão adaptada com valores atualizados para a data atual (VAL = Valor atual líquido).
Por outro lado, no que respeita à questão de na indemnização fixada o Tribunal
a quo
não ter contemplado uma indemnização pelo prejuízo decorrente de uma quota de investimento inicial, os Srs. Peritos da expropriante e do Tribunal, no relatório complementar que juntaram aos autos em 8 de janeiro de 2024, explicaram que “consideraram uma perda de produção, de um período de corte, onde já consideram incluído o prejuízo gerado por via da expropriação, atendendo à perda de investimento inicial”. Por conseguinte, na indemnização fixada é legítimo concluir que já foi contemplada uma indemnização pelo prejuízo decorrente de uma quota do investimento inicial.
Quanto à circunstância de não ter sido incluído no computo do cálculo do valor gerado pelo solo o valor concernente à totalidade do aproveitamento que dos recursos florestais, resíduos e subprodutos é possível efetuar, naquele relatório complementar os Srs. Peritos nomeados pelo Tribunal explicaram que não o fizeram porque consideraram “os fins mais usuais e os valores mais comumente retribuíveis a um aproveitamento deste tipo”. Como tal, também nesta parte entendemos não ser de contemplar qualquer outro valor na indemnização arbitrada, pois que, como decorre dos considerandos anteriormente efetuados, a justa indemnização deve respeitar os princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade, não podendo conduzir a indemnizações não só irrisórias, mas também manifestamente excessivas.
Finalmente, alegam os recorrentes que o Tribunal
a quo
não considerou as benfeitorias, que descrevem como sendo 448 eucaliptos, pretendendo que sejam avaliadas e indemnizadas.
Visando a justa indemnização ressarcir o prejuízo que para o expropriado advém da expropriação calculado à data da publicação da declaração de utilidade pública (art. 23º nº 1) a mesma abrange as benfeitorias existentes no prédio nessa data.
Consideram-se benfeitorias todas as despesas feitas para conservar ou melhorar a coisa (art. 216º, nº 1 do C.C.), sendo necessárias as que têm por fim evitar a perda, destruição ou deterioração da coisa e úteis as que, não sendo indispensáveis para a sua conservação, lhe aumentam, todavia, o valor (nº 3).
Assim, as benfeitorias são despesas de efeito permanente, uma vez que, por acção delas e independentemente de novas despesas, o prédio sofre alterações que lhe aumentam o valor ou evitam que se desvalorize.
Em regra, deve o expropriado apenas ser indemnizado pela perda das benfeitorias úteis, mas já não das benfeitorias necessárias.
Com efeito, estas últimas não aumentam o valor da coisa pelo que "Em regra, não devem ser valorizadas autonomamente, pois tendo como objectivo evitar a deterioração ou a perda da coisa, já se encontram contempladas no justo preço a pagar pelo bem" - Pedro Elias da Costa,
in
Guia das Expropriações por Utilidade Pública, Almedina, p. 335.
Relativamente às benfeitorias úteis haverá que ter o cuidado de evitar uma dupla valorização, pois não devem as mesmas ser consideradas “sempre que a mais-valia produzida do bem em causa se traduza no aumento do seu rendimento, e a valorização do bem se determine com base nesse rendimento” - Alípio Guedes,
in
Valorização dos Bens Expropriados, 3ª ed. renovada, p. 93.
Os recorrentes pretendem ser ressarcidos do valor das árvores existentes na parcela expropriada, mas sem razão.
Como bem se evidencia na sentença recorrida, “pese embora ter sido referido, em sede de relatório complementar ao laudo de vistoria ad perpetuam rei memoriam, a existência de uma benfeitoria, traduzida na presença (na parcela expropriada) de uma plantação florestal devidamente organizada, composta por linhas de plantação espaçadas de 3/4 metros e uma distância entre plantas de 2/3 metros perfazendo em média 1 árvore por cada 9 metros quadrados, certo é que, como se confirmou, essa realidade não se assume como benfeitoria, antes como elemento do solo, a relevar em sede apuramento do respetivo valor unitário e, consequentemente, do valor indemnizatório a atribuir pela parcela expropriada.
Sendo que este entendimento acabou por ser perfilhado pela unanimidade dos peritos.
Dessa feita, logrou o Tribunal acolher a posição manifestada pelos peritos e, por conseguinte, concluir pela inexistência de quaisquer benfeitorias, notando que, caso o fizesse, isto, caso atendesse à existência de benfeitorias, nos termos alegados pela entidade expropriada, resultaria numa duplicação indemnizatória injustificada, porquanto aquela plantação não só teria que ser contabilizada em sede de aferição do valor unitário do solo e, assim, da parcela, como, ademais, teria que ser contabilizada em sede de benfeitoria, a acrescer ao valor já contabilizado.”
Concordamos com esta argumentação.
De facto, os 448 eucaliptos compunham a estrutura produtiva da parcela expropriada à data da declaração de utilidade pública e os mesmos já foram considerados em sede de avaliação do prédio, pelo que a sua consideração como benfeitorias, a indemnizar autonomamente, ocasionaria uma dupla valorização, com uma duplicação de indemnizações, que não é admissível.
Nos termos expostos, seguindo o indicado pelos Srs. Peritos do Tribunal no seu laudo maioritário, devidamente fundamentado nos critérios legais, não existindo razões para se duvidar da sua isenção e imparcialidade, entendemos ser de manter a decisão recorrida, que bem justifica as razões pelas quais o laudo maioritário oferece mais garantias ao Tribunal, nenhuma censura a mesma merecendo.
Improcedem, por conseguinte, as conclusões da apelação, devendo, por isso, a decisão recorrida ser mantida.
*
Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 527º do Código de Processo Civil, a decisão que julgue o recurso condena em custas a parte que lhes tiver dado causa, presumindo-se que lhes deu causa a parte vencida, na respetiva proporção.
Como a apelação foi julgada improcedente, mercê do princípio da causalidade, as custas serão da responsabilidade dos recorrentes.
*
Síntese conclusiva
(da exclusiva responsabilidade da Relatora – art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil):
……………………………………………..
……………………………………………..
……………………………………………..
*
III – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os
juízes subscritores
deste acórdão da 5ª Secção, Cível, do Tribunal da Relação do Porto em julgar a apelação improcedente, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelos apelantes/ recorrentes.
*
Porto, 24 de março de 2025
Os Juízes Desembargadores
Teresa Pinto da Silva
Fátima Andrade
Mendes Coelho
________________________
[1]
Neste sentido, cf. Ac. do STJ de 29-11-2005, proc. nº 05S2137; Ac. do STJ de 10-03-2022, proc. nº 1071/18.9T8TMR.E1.S1; Ac. do TRP de 23-05-2022, proc. nº 588/14.9TVPRT.P1., todos disponíveis in www.dgsi.pt.
[2]
Proc. nº 1436/15.8T8PVZ.P1.S1, disponível in www.dgsi.pt.
[3]
Cf. Obra já citada, p. 333, 334 e 340.
[4]
Proc. nº
588/12.3TBPVL.G2.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[5]
Obra já citada, pág. 200-201.
[6]
Publicado no DR, Série I, n.º 220/2023, de 14-11-2023 – cujo sumário foi retificado pela Declaração de Retificação n.º 35/2023, de 28 de novembro, publicado no DR, Série I, de 28-11-2023.
[7]
Cf. Ac. do STJ de 23/09/2009, proc. nº 238/06.7TTBGR.S1, disponível in www.dgsi.pt.
[8]
Proc. nº 338/17.8YRPRT, disponível in www.dgsi.pt.
[9]
Cfr. Marcelo Caetano, Manual de Direito Administrativo, volume 2º, 9º edição, p. 1022).
[10]
Cfr. As Garantias Do Particular Na Expropriação Por Utilidade Pública, Separata do volume XXXIII do Suplemento ao Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, p. 128 e 129.
[11]
Neste sentido, cfr. Meneses Cordeiro e Teixeira de Sousa, in Expropriação por Utilidade Pública, Parecer na CJ. Ano XV - Tomo V, pág. 22 a 30.
[12]
Este critério segundo o qual só valor real em condições normais de mercado assegura o princípio constitucional da justa indemnização tem vindo a ser repetidamente adotado pelo Tribunal Constitucional (cfr. acórdão do TC nº. 408/2008 de 31/07/2008, proc. nº. 291/07 - 2ª Secção, citado no acórdão do STJ de 31/01/2012, proc. nº. 5253/04.2TBVNG, acessível em
www.dgsi.pt
).
[13]
Cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4ª ed., Coimbra Editora, 2007, pág. 808 e 809.
[14]
Neste sentido, cfr. Ac. da Relação de Guimarães de 13 de Junho de 2019, processo 6209/17, disponível em
www.dgsi.pt
, onde bem se evidencia que “
a perícia constitui um meio de prova de natureza técnica na medida em que ao perito, para além da narração dos factos que percepciona, está também cometida a tarefa de apreciar ou valorar esses factos de acordo com os especiais conhecimentos técnicos que possui na matéria e que o julgador não domina.
O Código das Expropriações, com vista à determinação do valor do bem objecto da expropriação, prevê a intervenção de peritos em todas as fases do processo, sendo que a obrigatoriedade da diligência pericial deriva essencialmente da complexidade técnica da avaliação das várias espécies de bens e, por isso, da necessidade de colaboração de pessoas com conhecimentos técnicos específicos.
No entanto, apresentando o processo de expropriação um cariz marcadamente técnico, e não dispondo o juiz de conhecimentos especiais na área a que respeita a perícia, necessita que os peritos lhe forneçam elementos concretos que o habilitem a fixar a justa indemnização, não estando em condições de sindicar o juízo científico emitido pelos peritos, salvo em caso de erro manifesto ou de critério legalmente inadmissível ou desadequado (cfr. acórdãos da RC de 31/05/2011, proc. nº. 1197/05.9TBGRD, da RL de 7/07/2009, proc. nº. 61/1996 e da RG de 1/06/2017, proc. nº. 1446/09.4TBBCL, todos acessíveis em
www.dgsi.pt
).
Acresce que o Código das Expropriações estabelece para o efeito regras especiais, uma vez que esta avaliação é efectuada por cinco peritos, designando cada parte um perito e sendo os três restantes nomeados pelo Tribunal e escolhidos de entre os que constam da lista oficial (artº. 62º, nº. 1, al. a) e nº. 3 do citado diploma legal).
Ora, os peritos e árbitros constantes das listas oficiais estão sujeitos às especiais regras de recrutamento e às condições de exercício de funções - quer no âmbito dos procedimentos anteriores à declaração de utilidade pública quer no âmbito do processo de expropriação – que se encontram previstas no DL 125/2002 de 10/5, que aprovou o Estatuto dos Peritos Avaliadores (doravante EPA) – ou seja, os peritos que integram a lista oficial estão sujeitos a especiais exigências e impedimentos, com vista a acautelar a sua qualidade técnica e a garantir a sua isenção e imparcialidade.
Por fim, devem proceder à elaboração dos laudos periciais de acordo com as normas legais e regulamentares aplicáveis e devem fundamentar claramente o cálculo do valor atribuído (artº. 21º do EPA), donde decorre, por exigência legal, que têm de se pautar por critérios objectivos.
Muito embora constitua entendimento pacífico na jurisprudência dos Tribunais Superiores que no processo de expropriação a força probatória da perícia é fixada livremente pelo Tribunal (artº. 389º do Código Civil), tem-se entendido que neste tipo de processo, sendo a peritagem obrigatória e traduzindo-se a avaliação do bem expropriado num problema essencialmente técnico, o Tribunal deve aderir, em princípio, aos pareceres dos peritos, dando preferência ao valor resultante desses pareceres, desde que sejam coincidentes, e, por razões de imparcialidade e independência, quando não sejam coincidentes, optar pelo laudo dos peritos nomeados pelo Tribunal quando haja unanimidade entre eles, porquanto este é o meio de prova que melhor habilita o julgador a apurar o valor do bem expropriado, com vista à atribuição da justa indemnização.
Na verdade, para além da presumida competência técnica que se lhes reconhece, a posição assumida pelos peritos nomeados pelo Tribunal é aquela que, em princípio, oferece maiores garantias de independência, imparcialidade e objectividade, face ao distanciamento que mantêm em relação às partes e aos interesses em litígio, estando, por isso, em melhores condições de, com objectividade e isenção, determinar o justo valor da indemnização (cfr. acórdãos da RC de 15/01/2013, proc. nº. 637/10.0TBSEI, de 14/02/2012, proc. nº. 550/09.3TBVIS e de 14/12/2010, proc. nº. 4714/07.6TBVIS, da RL de 31/05/2012, proc. nº. 763/1994 e de 22/11/2012, proc. nº. 2352/08.5TJLSB e da RG de 20/02/2014, proc. nº. 1128/08.4TBFLG e de 10/04/2012, proc. nº. 2167/08.0TBFLG, todos acessíveis em
www.dgsi.pt
).
Partilhamos da posição defendida no acórdão desta Relação de 27/09/2018 (proferido no proc. nº. 4090/11.2TBGMR), onde se refere que “sem prejuízo da força probatória da perícia ser fixada livremente pelo tribunal – art. 389º do Cód. Civil –, no processo de expropriação a perícia assume uma particular relevância – evidenciada até pela circunstância de se tratar de diligência obrigatória, nos termos do artigo 61º, nº 2 do CE – de tal forma que podemos, seguramente, afirmar que as conclusões apresentadas pelos peritos – unanimemente ou por maioria, preferindo-se as que provêm dos peritos nomeados pelo tribunal, pela maior equidistância relativamente às partes – só devem ser afastadas quando se constata que foram elaboradas com base em critérios legalmente inadmissíveis ou desadequados, ou quando se nos deparam erros ou lapsos evidentes, que importem correcção”(neste sentido vide também acórdão da RG de 1/06/2017, proc. nº. 1446/09.4TBBCL, ambos acessíveis em
www.dgsi.pt
).
Também neste sentido se pronunciou o acórdão da Relação de Coimbra de 12/03/2013 (proc. nº. 1412/08.7TBCVL) citado no acórdão desta Relação de 9/11/2017 (proc. nº. 1445/09.6TBBCL) ambos acessíveis em
www.dgsi.pt
, no qual se refere que “apesar de o juiz não estar vinculado aos laudos apresentados pelos peritos e apesar de ter o dever de os analisar criticamente, verificando, designadamente, a sua conformidade com os critérios legais, a verdade é que, no que toca às questões técnicas que constituem o cerne da avaliação, o julgador não estará, por regra, habilitado a contrariar as conclusões dos peritos e a formular o seu próprio juízo técnico.
Assim, existindo laudos divergentes e não possuindo o juiz quaisquer conhecimentos ou elementos concretos que lhe permitam aferir qual deles tem melhor aptidão para alcançar o valor da justa indemnização, justifica-se que considere ou adira ao laudo maioritário ou ao laudo dos peritos do Tribunal por se dever presumir que as conclusões subscritas por um número maior de peritos, reunindo maior consenso, terão maior aptidão para atingir aquele objectivo ou que os peritos do Tribunal, não tendo sido indicados pelas partes e não tendo com elas qualquer ligação, oferecem melhores garantias de isenção e imparcialidade, estando, por isso, em melhores condições de, com objectividade e isenção, determinar o justo valor da indemnização.”
Assim, havendo laudos periciais divergentes, o facto de se dever dar preferência ao dos peritos oficiosamente escolhidos, não significa uma irrestrita vinculação ao laudo maioritário, já que o Tribunal pode introduzir-lhe ajustamentos, fazer correcções, colmatar falhas ou seguir o laudo ou critérios diferentes, se os tiver por mais justos, de acordo com outros critérios técnicos, objectivamente sustentados, ou com os elementos probatórios que possuir (cfr. acórdãos da RC de 1/03/2005, proc. nº. 2738/04 e da RL de 31/05/2012, proc. nº. 763/1994, acessíveis em
www.dgsi.pt
).
Reportando-nos ao caso “sub judice”, e no seguimento do que atrás se deixou dito, quanto à competência técnica dos peritos e árbitros constantes das listas oficiais, tanto mais que estão sujeitos a um rigoroso processo de recrutamento e a especiais exigências e impedimentos no exercício das suas funções, com vista a acautelar a sua qualidade técnica e a garantir a sua isenção e imparcialidade, não vislumbramos quaisquer razões para pôr em causa os conhecimentos técnicos, a independência, a imparcialidade e a objectividade dos Peritos do Tribunal (que integram as listas oficiais de peritos e avaliadores
)”.
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TRP
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https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/c4762d14dfd398a180258c5e00530df6?OpenDocument
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1,742,860,800,000
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REVOGAÇÃO
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4662/23.2T8VNG-H.P1
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4662/23.2T8VNG-H.P1
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JOÃO DIOGO RODRIGUES
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Implicando a impugnação da resolução em benefício da massa insolvente a propositura de uma ação judicial, o prazo de caducidade para o exercício desse direito, quando termine a um sábado, é transferido para o primeiro dia útil subsequente.
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[
"IMPUGNAÇÃO DE RESOLUÇÃO EM BENEFÍCIO DA MASSA",
"CADUCIDADE"
] |
Processo n.º 4662/23.2T8VNG-H.P1
*
Sumário
:
…………………………………..
…………………………………..
…………………………………..
Relator: João Diogo Rodrigues;
Adjuntas: Desembargadora, Lina Castro Batista;
Desembargadora, Raquel Lima.
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I-
Relatório
1
-
AA
instaurou, no dia 03/06/2024, ação de impugnação da resolução de negócios em benefício da massa insolvente contra a
Massa Insolvente de BB
,
pedindo para em tal sede se:
“1. Declarar a simulação relativa dos negócios de doação e de revogação da doação e, em consequência, julgar os referidos negócios simulados nulos e válidos os negócios dissimulados de compra e venda com permuta da “Casa ...” pela “Fração ... e pela quantia de € 200.000,00;
2. Julgar válida a resolução pela Autora do contrato de compra e venda com permuta da “Casa ...” em virtude do incumprimento definitivo do mesmo pelo Insolvente;
3. Reconhecer o direito da Autora a ser indemnizada pelo interesse contratual negativo em virtude do incumprimento definitivo do contrato de compra e venda com permuta da “Casa ...” pelo Insolvente, através da quantia de € 32.000,00 que lhe foi entregue pelo Insolvente, da aquisição da “Fração ... ao Insolvente pelo valor de € 92.610,00 e da compra do “Jaguar” ao Insolvente pelo preço de € 5.000,00.
4. Declarar nulas as resoluções dos negócios em benefício da massa operadas pelo Senhor Administrador de Insolvência dos negócios da “Fração ..., do “Jaguar” e do “Prédio Rústico” por falta de alegação dos factos essenciais que fundamentam as referidas resoluções.
5. Julgar sem efeito as resoluções dos negócios em benefício da massa operadas pelo Senhor Administrador de Insolvência dos negócios da “Casa ...”, da “Fração ..., do “Jaguar” e do “Prédio Rústico” por falta de verificação dos pressupostos legais para o efeito”.
Alega, para o que aqui importa, ter recebido as comunicações de resolução dos negócios aqui impugnados nos dias 4 de março e 27 de maio de 2024.
2
- A Ré contestou sustentando, para além do mais, que a A. teve conhecimento no dia 01/03/2024 da resolução dos 3 negócios, a saber: “Casa ...”; “Jaguar” e Prédio rústico”, pelo que, tendo esta ação sido instaurada no dia 03/06/2024, o direito de impugnação de que a mesma se quer prevalecer nesta ação, tendo em conta o disposto no artigo 125.º, do CIRE, encontra-se extinto por caducidade.
3
- A A. respondeu defendendo a posição oposta, uma vez que, mesmo seguindo a tese da Ré, o dia em que terminou o aludido prazo coincidiu com um sábado, pelo que o termo desse prazo transitou para o primeiro dia útil seguinte, que foi aquele em que foi instaurada esta ação.
4
- Terminada a fase dos articulados, foi proferido despacho, no qual, para além do mais, se decidiu julgar “procedente a exceção de caducidade invocada pela Ré relativamente os negócios referidos nas alíneas a), b) e d) do objeto do litígio, e aos pedidos atinentes formulados relativamente aos mesmos (Casa ..., Jaguar e Prédio Rústico)”.
5
- Inconformada com esta decisão dela interpôs recurso a A., rematando-o com as seguintes conclusões:
“I. O Despacho recorrido incorre em erro na apreciação do direito aplicável à situação sub judice, impondo-se a respetiva revogação e que seja ordenado o prosseguimento dos presentes autos nos seus ulteriores termos quanto a todas as alíneas do objeto do litígio.
II. Com efeito, por via do despacho de que ora se recorre, o Tribunal ad quo julgou procedente a exceção de caducidade invocada pela Ré Recorrida relativamente os negócios referentes à “Casa ...”, ao “Jaguar” e ao “Prédio rústico”.
III. Conclusão essa que o Tribunal ad quo chegou considerando que nos termos do artigo 125º do CIRE a Autora Recorrente estava sujeita ao prazo de três meses para intentar a ação de impugnação da resolução em benefício da massa insolvente.
IV. Pelo que, tendo a Autora Recorrente sido tomado conhecimento da resolução dos 3 negócios referentes à “Casa ...”, ao “Jaguar” e ao “Prédio rústico” no dia 1 de março, teria de os ter impugnado, através de ação a intentar até 1 de junho.
V. Assim, tendo a Autora Recorrente intentado os presentes autos no dia 3 de junho de 2024, o Tribunal recorrido concluiu pela verificação da exceção de caducidade invocada pela Ré relativamente os negócios referidos nas alíneas a), b) e d) do objeto do litígio, e aos pedidos atinentes formulados relativamente aos mesmos, o que não se pode conceder, nem aceitar.
VI. Simplesmente, verifica-se que o Tribunal ad quo não considerou que a data-limite para a Autora Recorrente exercer o seu direito, dia 1 de junho de 2024, foi um sábado.
VII. O que, tanto à luz do Código de Processo Civil, no artigo 138.º, n.º 2, como do Código Civil, nos artigos 279.º e 296.º, significa que o termo de um prazo se transferiu para o primeiro dia útil seguinte, isto é, para o dia 3 de junho de 2024.
VIII. Sendo de atentar que o artigo 279.º alínea e) do Código Civil se refere a actos que devem ser praticados pelos titulares de uma relação jurídica dentro de um determinado prazo, o qual tem natureza substantiva.
IX. E se é certo que a norma prevista no artigo 279.º, al. e), do CC apenas se refere ao prazo que termine em domingo ou feriado – e não ao sábado –, a verdade é que se afigura por demais pacífico entre a doutrina e a jurisprudência que esta norma deve ser alvo de uma aplicação atualista, devendo considerar-se igualmente aplicável aos prazos que terminem ao sábado.
X. Assim, por muito que o Tribunal ad quo, como referimos supra, se bata na defesa da não aplicação in casu do regime do artigo 138.º do CPC, por estar em causa um prazo de natureza processual, a verdade é que a norma prevista no artigo 279.º não deixa dúvidas sobre a sua aplicação sub judice.
XI. Nestes termos, considerando que a data-limite para a Autora Recorrente exercer o seu direito, dia 1 de junho de 2024, foi um sábado, o prazo para esta exercer o seu direito de impugnação da resolução dos negócios em benefício da massa operada pelo Sr. Administrador de Insolvência terminou no dia 3 de junho de 2024, no qual foram intentados os presentes autos, como se vê, portanto, tempestivamente.
XII. Atento o exposto, ao decidir como decidiu, na medida em que considerou verificada a exceção de caducidade invocada pela Ré, o Tribunal ad quo violou as disposições conjugadas dos artigos 138.º do CPC e 279.º, al e), e 296.º, ambos do CC”.
Termina pedindo que se julgue procedente o presente recurso e, revogando a decisão recorrida, se ordene o prosseguimento dos autos quanto a todas as resoluções impugnadas.
6
- Em resposta, a Ré pugna pela confirmação do julgado.
Sintetiza a sua posição nas seguintes conclusões:
“I. Não merecendo a decisão proferida pelo Tribunal a quo qualquer reparo, deverá a mesma ser confirmar pelo Tribunal ad quem, seguindo-se os normais trâmites processuais.
II. A recorrente recorre de matéria de facto e de direito nunca por esta alegada nas suas peças processuais e contrária às mesmas.
III. O que deverá ter como consequência a imediata rejeição das Alegações de Recurso.
IV. O prazo de caducidade terminou dia 01.06.2024,
V. O disposto na alínea e) do artigo 279° do Código Civil., reporta-se exclusivamente a prazos terminados em Domingos e dias feriados, o que não é manifestamente o caso em apreço, já que o prazo da caducidade dos autos teve o seu termo num Sábado;
VI. Nos termos da alínea e) deste artigo 279º do Código Civil: “O prazo que termine em domingo ou dia feriado transfere-se para o primeiro dia útil” e “a contrario sensu” o prazo que termine noutros dias da semana não se transfere.
VII. Neste sentido tem vindo a pronunciar-se o Supremo Tribunal de Justiça, nomeadamente no acórdão 06S3757 de 21/01/2007 e no acórdão 07A3015 de 06/11/2007, em cujo sumário se pode ler: IV - Havendo as partes convencionado que a contagem do período de reflexão contratual se fazia em dias úteis, terá de ser considerado dia útil o dia de Sábado, porque não sendo o prazo de natureza processual, o critério a seguir é o que decorre da lei substantiva, onde só não, não são considerados dias úteis os domingos e feriados” III) O Código Civil foi desde a data da sua primeira publicação em 1966 objecto de várias alterações, não tendo, no entanto, a norma em causa sido objecto de alteração, dado que não foi intenção do legislador incluir na previsão da norma o sábado.
VIII. Mesmo que assim não se entendesse, tal normativo não teria aplicação ao caso em apreço, já que a caducidade opera-se simplesmente pelo não exercício de um direito já previamente definido no decurso do prazo legalmente previsto;
IX. Para mais e salvo melhor opinião, a génese da alínea e) do artigo 279° do Código Civil que prevê a passagem para o primeiro dia útil dos prazos com termo em Domingos e dias feriados tem subjacente a ocorrência de um outro facto externo ao mero decurso do prazo ou a prática de um acto, o que não acontece com a caducidade que opera com o mero decurso do tempo.
X. Nos termos do n. 3.º do art. 137.º do C.P.C.: “Os atos das partes podem ser praticados por via eletrónica em qualquer dia e independentemente da hora da abertura e do encerramento dos tribunais.”
7
- Recebido o recurso e preparada a deliberação, importa tomá-la.
*
II-
Mérito do recurso
1- Ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, o objecto dos recursos é, em regra, delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente [artigos 608.º n.º 2, “in fine”, 635.º, n.º 4 e 639.º n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC) “ex vi” artigo 17.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE)].
Assim, observando este critério no caso presente, importa apenas decidir se não ocorre a caducidade declarada na decisão recorrida.
*
2- Para a resolução desta questão, importa, em primeiro lugar, ter presente que, neste momento, face à posição assumida neste recurso pela Apelante, podem considerar-se assentes os seguintes dados:
a) A A/Apelante teve conhecimento das resoluções impugnadas, referentes à “Casa ...”, ao “Jaguar” e ao “Prédio rústico”, no dia 01/03/2024;
b) A mesma (Apelante) dispunha, a partir de então, do prazo de 3 meses para impugnar judicialmente essas resoluções, por força do que se dispõe do artigo 125.º, do CIRE;
c) Esse prazo é de caducidade (artigo 298.º, n.º 2, do Código Civil) e reveste natureza substantiva, já que, embora se trate de um prazo para a propositura de uma ação judicial, não vem a mesma prevista no Código de Processo Civil (artigo 138.º, n.º 4, do CPC);
d) Os aludidos 3 meses, completaram-se do dia 01/06/2024, que coincidiu com um sábado (artigo 279.º al. c), do Código Civil); e,
e) Esta ação, como já assinalado, foi instaurada no dia 03/06/2024.
O que resta, assim, por solucionar é apenas a questão de saber se, tendo o aludido prazo de 3 meses terminado a um sábado, deve o seu termo considerar-se transferido para o primeiro dia útil seguinte. Isto porque a Apelante o advoga, com base numa interpretação atualista do disposto no artigo 279.º, al. e), do Código Civil, e a Apelada, pelo contrário, continua a sustentar que esse prazo se esgotou no dito dia 01/06/2024, uma vez que aquele preceito legal não exceciona o sábado para a transferência do termo do prazo que se complete nesse dia da semana, sendo que tal normativo não tem aplicação ao caso em apreço, “já que a caducidade opera-se simplesmente pelo não exercício de um direito já previamente definido no decurso do prazo legalmente previsto” e, presentemente, os atos das partes podem ser praticados por via eletrónica em qualquer dia e independentemente da hora da abertura e do encerramento dos tribunais.
Pois bem, do nosso ponto de vista, desde já o adiantamos, a Apelante tem razão: o termo do prazo em apreço, por ter coincidido com um sábado, deve considerar-se transferido para o primeiro dia útil subsequente, ou seja, para o dia 03/06/2024. E, assim, porque esta ação foi instaurada nesse dia, não se chegou a completar o prazo de caducidade a que a mesma estava sujeita, em relação às impugnações das resoluções dos negócios jurídicos respeitantes aos bens já indicados.
Com efeito, embora o artigo 279.º, al. e), do Código Civil, não contemple o sábado na sua formulação [
“O prazo que termine em domingo ou dia feriado transfere-se para o primeiro dia útil; aos domingos e dias feriados são equiparadas as férias judiciais, se o acto sujeito a prazo tiver de ser praticado em juízo”
], deve considerar-se, numa interpretação atualista, que também para esse dia (de sábado) se justifica igual dilação, quando o ato tiver de ser praticado em juízo.
A explicação é relativamente simples, como nos dá conta a jurisprudência que foi confrontada com esta questão, ainda que para outras temáticas:
“O Código Civil foi aprovado pelo Decreto-Lei nº 47344, de 25 de Novembro de 1996, para vigorar a partir de 1 de Junho de 1967, como se dispõe no nº 1 do seu artigo 2º.
Nesse tempo, a vulgarmente chamada «semana inglesa» não estava generalizada, e muito menos a «semana americana». Ou seja, o sábado era um dia útil, ou, ao menos, parte dele. Os tribunais só a partir de 1980 passaram a encerrar ao sábado, por determinação do artigo 3º da Lei nº 35/80, de 29 de Julho.
Assim, o legislador, ao determinar a transferência do termo do prazo de prescrição para um dia útil, quando este termo caísse em dia não útil, identificando como tais os domingos e feriados, exprimiu o mesmo que, se fosse hoje, significaria com uma referência aos sábados, domingos e feriados (veja-se o artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil). Como, aliás, fez em 1985, ao alterar o Código de Processo Civil, cujo artigo 145º aludia, na versão inicial, apenas, aos domingos e dias feriados»”
[1]
. E ainda hoje assim continua a ser: quando o prazo para a prática do ato processual ou propositura de ação prevista no Código de Processo Civil terminar em dia em que os tribunais estiverem encerrados, transfere-se o seu termo para o 1.º dia útil seguinte - artigo 138.º, n.º 2 e 4, do CPC. Sendo que, para o serviço não urgente, os tribunais judiciais, estão encerrados ao sábado (artigo 2.º, n.º 1, da Portaria n.º 307/2018, de 29/11).
Donde, só se pode concluir que, aplicando este critério, a presente ação tem de considerar-se tempestiva.
E não se diga, como alega a Ré, que não se justifica semelhante interpretação, pois que, presentemente, os atos das partes podem ser praticados por via eletrónica em qualquer dia e independentemente da hora da abertura e do encerramento dos tribunais.
Com efeito, a seguir-se esse raciocínio, também se deveria impor a prática de atos processuais aos domingos, dias feriados e de tolerância de ponto, o que implicaria uma clara derrogação quer do prescrito no artigo 279.º al. e), do Código Civil, quer no artigo 138.º, n.ºs 2 a 4, do CPC, sem qualquer fundamento, já que, pelo menos o regime previsto neste último preceito foi previsto para ser aplicado num quadro de tramitação eletrónica dos processos judiciais.
Daí, pois, que este argumento não seja de acolher.
Ou seja, em resumo, implicando a impugnação da resolução em benefício da massa insolvente a propositura de uma ação judicial, o prazo de caducidade para o exercício desse direito, quando termine a um sábado, é transferido para o primeiro dia útil subsequente.
Logo, a ação em análise é tempestiva, o que implica a procedência deste recurso e a revogação da decisão recorrida.
*
III -
Dispositivo
Pelas razões expostas,
acorda-se em julgar procedente o presente recurso e, consequentemente, revoga-se a decisão recorrida
.
*
- Em função deste resultado, as custas deste recurso serão pagas pela Apelada – artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC.
Porto, 25/3/2025.
João Diogo Rodrigues;
Lina Castro Batista;
Raquel Lima.
_______________________-
[1]
Ac. STA de 15/06/2007, Processo n.º 0533/07, cuja jurisprudência tem sido seguida por outros Arestos proferidos quer na mesma área, quer noutras, como nos dá conta, por exemplo, o Ac. RLx de 02/05/2024, Processo n.º 2193/22.7T9LRS.L1-9, consultável em
www.dgsi.pt
.
No mesmo sentido, mas para as férias judiciais, Ac. RLx de 23/11/2011, Processo n.º 1122/10.5TYLSB-A.L1-2, consultável no mesmo endereço eletrónico.
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TRP
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https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/9b5a0a7ad01080ca80258c6500567881?OpenDocument
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1,747,094,400,000
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CONFIRMADA
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1515/22.5T8PBL.C1
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1515/22.5T8PBL.C1
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FONTE RAMOS
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1. O
contrato de seguro
é a convenção através da qual uma das partes (segurador) se obriga, mediante retribuição (prémio) paga pela outra parte (segurado) a assumir um
risco
e, caso a situação de risco se concretize, a satisfazer ao segurado ou a terceiro uma indemnização pelos prejuízos sofridos ou um determinado montante previamente estipulado.
2. Não estando o
dano pela privação do uso
coberto pela apólice de
seguro facultativo,
existe o dever de indemnizar pela privação de uso de veículo se a seguradora
ao não agir com prontidão e diligência, atrasou, injustificadamente e de forma abusiva,
o desfecho do processo do sinistro, causando danos ao segurado.
3. Excluída ou não comprovada a situação descrita em 2., decorrido o prazo previsto no art.º 104º do RJCS sem que o segurador realize a prestação devida, em princípio, este fica, nos termos gerais, constituído em
mora
, que dá lugar, tratando-se de uma obrigação pecuniária, ao vencimento de juros à taxa legal.
(Sumário elaborado pelo Relator)
|
[
"CONTRATO DE SEGURO",
"SEGURO FACULTATIVO",
"PRIVAÇÃO DO USO",
"DEVER DE INDEMNIZAR",
"MORA"
] |
*
Relator
: Fonte Ramos
Adjuntos
: Moreira do Carmo
Carlos Moreira
*
*
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
I. Em 09.12.2022, AA, instaurou a presente ação declarativa comum contra A... - Companhia de Seguros, S. A., pedindo que seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 15 648, correspondente ao valor do veículo seguro deduzida a franquia contratada, bem como o valor correspondente ao dano de privação do uso, decorridos 30 dias após a ocorrência do sinistro, e respetivos juros de mora até integral pagamento.
Alegou, em síntese, que celebrou um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel com a Ré para cobertura dos danos decorrentes da circulação do veículo de matrícula ..-PP-.., incluindo danos próprios, tendo o seu veículo, em contexto de circulação, sofrido um incêndio e ficado destruído, sem valor de salvado.
A Ré contestou, por exceção (ilegitimidade ativa) e impugnação, alegando, em resumo, que em face das coberturas contratadas, comunicou ao A. que assumia o pagamento do capital seguro, deduzido o valor da franquia e do salvado, o que o A. não aceitou, sendo que eventuais valores referentes a privação do uso foram excluídos do contrato. Concluiu pela improcedência da ação.
Fixada a competência do tribunal (em razão do valor da causa), foi proferido despacho saneador que julgou improcedente a matéria de exceção (dilatória), firmou o objeto do litígio e enunciou os temas da prova.
Realizado o julgamento, o Tribunal
a quo
, por sentença de 16.11.2024, julgou a ação
parcialmente procedente
, condenando a Ré a pagar ao A. a quantia de € 15 538, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4 % ao ano, calculados desde 20.6.2022 até integral pagamento, absolvendo-a do demais peticionado.
Dizendo-se inconformado, o A. apelou formulando as seguintes
conclusões
:
1ª - A inexistência no contrato de seguro celebrado entre o A. e Ré, da cobertura do risco de privação do uso do veículo, não desobrigou a Ré a proceder ao pagamento da indemnização devida a titulo de privação do uso, porquanto, não tendo esta procedido ao pagamento da indemnização após decorridos que foram mais de 3 anos e três meses, violou os deveres contratuais e que dimanam do disposto no RJCS (art.º 153º, n.º 1) , conjugado com o disposto no art.º 762º, n.º 2 do Código Civil (CC), porquanto não colocou à disposição do A. qualquer quantia e se tratava de “Perda total”, conforme reconheceu e lhe comunicou.
2ª - A Ré ao não liquidar qualquer quantia ao A. de forma atempada e em prazo razoável, incorreu em responsabilidade contratual e, portanto, responde pelo pagamento do dano que decorre do não pagamento atempado designadamente o decorrente da privação do uso do veículo.
3ª - A Ré ao não cumprir a obrigação de liquidação atempada não lhe confere qualquer direito a adotar uma injustificada e inaplicável recusa de pagamento da indeminização, a qual se traduziria em manifesto e intolerável abuso de direito (art.º 334º do CC) nem precedeu de harmonia com o principio da boa fé.
4ª - No domínio da responsabilidade extracontratual emergente de acidente de viação, a privação do uso do veículo constitui um dano autónomo indemnizável na medida em que o seu dono, como foi o caso do A., ficou impedido dos direitos de usar, fruir e dispor inerentes à propriedade, e que o art.º 1305º do CC lhe confere de modo pleno e exclusivo, tendo o A. feito prova de que a privação gerou perda de utilidades que o veículo sinistrado lhe proporcionava (facto 14).
5ª - A indemnização a atribuir ao A. porque se tratava e trata de dano autónomo e distinto, e emergente da responsabilidade contratual, não pode limitar-se ao dano resultante da mora, como foi o entendimento do Tribunal
a quo
, devendo também contemplar o dano da privação do uso.
6ª - Atenta a comunicação efetuada pela Ré de “perda total” assistia à Ré a obrigação de cumprir com celeridade por forma a que com a entrega do capital, fosse ele total ou parcial, houvesse permitido ao A. a compra de um outro veículo em substituição do sinistrado.
7ª - O não cumprimento por parte da Ré de uma atuação atempada e como se verifica atraso injustificado na liquidação ficou responsável no pagamento da indemnização pela privação do uso do veículo.
8ª - Incumbia à Ré dar cumprimento à regra da conduta da boa fé e foi esta violada em consequência do não pagamento atempado da indemnização.
9ª - Importa revogar a decisão proferida pelo Tribunal
a quo
substituindo-a por outra que contemple o dano peticionado pelo A. a título de privação do uso em simultâneo com o dano emergente da mora, mercê da violação do principio da boa fé e dos deveres acessórios de conduta, previstos no art.º 153º, n.º 1 do da Lei 147/2015 de 09.9, tendo por base o valor diário considerado por provado e constante do facto 13.
10ª - Com a sentença proferida foi violado o disposto nos art.ºs 334º, 762º e 1305 do CC e 153, n.º 2 e 102º do RJCS.
A Ré respondeu concluindo pela improcedência do recurso.
Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objeto do recurso, importa apreciar e decidir, apenas, se é devida indemnização pela alegada privação do uso do veículo.
*
II. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:
1) O autor é dono e legítimo possuidor de um veículo automóvel ligeiro de passageiros, da marca Honda e com a matrícula ..-PP-...
2) Em 08.9.2021 constava como proprietário registral no documento único automóvel a filha do autor, BB.
3) Era o autor quem tinha a direção efetiva e liquidava o respetivo prémio de seguro do veículo acima indicado para poder circular na via pública.
4) O autor celebrou com a ré um contrato de seguro de responsabilidade civil obrigatória, com a cobertura de danos próprios em caso de choque, colisão ou capotamento, incêndio, raio ou explosão, fruto ou roubo e fenómenos da natureza, ao qual foi atribuída a apólice de seguros n.º ...73.
5) Para a cobertura de danos próprios foi fixado o valor de € 16 300.
6) A apólice contratada incidiu inicialmente sobre outro veículo (matrícula ..-RT-..) e foi posteriormente transferida, com as mesmas coberturas e valores seguros, para o indicado veículo de matrícula ..-PP-...
7) No dia 08.9.2021, o autor encontrava-se a conduzir o veículo em direção à localidade de ..., em ..., quando, cerca das 9.15 horas, encontrando-se a circular na Rua ..., na localidade de ..., de forma inesperada, o motor desligou-se e, em simultâneo as luzes do quadrante, acionaram-se, o que levou o autor a encostar o veículo à berma e a imobilizá-lo.
8) No momento em que saía do veículo, verificou que já se encontrava a sair fumo proveniente da zona do motor, debaixo do capot e de imediato se transformou em chamas, as quais consumiram o veículo.
9) Ao local ocorreram os bombeiros locais que procederam à extinção das chamas.
10) Ao veículo ..-PP-.. foi atribuído no contrato de seguro, pela ré, o mesmo valor de € 16 300, a que haveria de ser descontado, em caso de incêndio, o valor da franquia, contratada, de 4 %.
11) O veículo, após o sinistro, foi considerado pela ré em situação de
perda total
.
[1]
12) Na sequência do sinistro, a ré entregou ao autor um
veículo de substituição
pelo período de 30 dias.
[2]
13) O preço diário do aluguer de um veículo similar ao sinistrado, acima indicado, é de € 74,08, acrescido de IVA.
14) À data do sinistro, o autor utilizava diariamente o veículo PP para se transportar a si e à sua família e nas viagens de lazer.
15) Ao veículo seguro foi fixado pela ré, como valor de salvado, o valor de €110, o qual foi comunicado ao autor.
16) O veículo PP, após o incêndio, ficou destruído apenas na parte da frente.
17) Consta do clausulado das condições gerais da apólice identificada em 4), no n.º 2, alínea c) do seu artigo 50º, o seguinte: “(…)
o salvado fica sempre na posse do segurado, sendo deduzido o respetivo valor ao montante indemnizatório obtido de acordo com o disposto na alínea anterior
”.
18) Consta do clausulado das condições gerais da apólice identificada em 4), na alínea k) do seu artigo 42º, com a epígrafe “
Exclusões Aplicáveis às Coberturas Facultativas
”, o seguinte: “(…)
ficam também excluídos das garantias proporcionadas pelas coberturas facultativas:
(…)
k) lucros cessantes ou perda de benefícios ou resultados advindos ao Tomador do seguro ou ao Segurado em virtude de privação de uso, gastos de substituição ou depreciação do veículo seguro ou provenientes de depreciação, desgaste ou consumo naturais
”.
19) Através de email de 19.5.2022 a ré comunicou ao autor o seguinte: (…)
informamos que já se encontram reunidas as condições para assumirmos os danos próprios de acordo com a cobertura facultativa acionada. Nesse sentido, iremos proceder à emissão do montante de 15 442€, sendo este o valor correspondente ao capital seguro já deduzido do salvado e franquia. Assim, agradecemos o envio
(…)
de comprovativo de IBAN
(…)”.
Ficaremos a aguardar
(…)”.
20) Através de email de 12.7.2022 a ré comunicou ao autor o seguinte: “(…)
informamos que: tendo o cliente esgotado os 30 dias de viatura de substituição
(…)
nada mais temos a regularizar ao cliente, no âmbito da viatura de aluguer.
(…)”.
21) Através de email de 30.8.2022 o autor, através do seu advogado, comunicou à ré o seguinte: “(…)
venho informar que o m/cliente não abdica do direito
(…)
em termos de privação do uso do veículo, tendo em atenção a data da ocorrência do sinistro e a data em que V. Exa. assumira a responsabilidade pelo sinistro
(…)
tendo V. Exa. assumido liquidar o valor do veículo, deverão, no entanto, adicionar o valor do salvado, uma vez que o m/cliente não possui qualquer interesse no mesmo. Caso pretendam efetuar a liquidação parcial, agradeço o envio do respetivo recibo. Portanto, informo que vou avançar com a respetiva ação judicial
(…)”.
22) Através de email de 10.9.2022 a ré comunicou ao autor o seguinte: “(…)
cumpre-nos informar que
(…)
quanto ao salvado, foi sugerida uma empresa que estava disponível em adquirir o mesmo, deverá contactar para obter mais informações
(…)”.
2. E deu como não provado:
a) Que o valor do capital seguro contratado entre as partes, com respeito ao veículo ..-PP-.., fosse de € 16 200.
b) Que o veículo ..-PP-.., após o incêndio que sofreu, tenha ficado sem qualquer valor.
c) Que a ré tenha recusado inexplicável e injustificadamente o pagamento atempado da indemnização contratual ao autor, por falta de pronúncia e comunicação, apesar de diversos contactos telefónicos e de emails enviados pelo seu mandatário.
3. Cumpre apreciar e decidir.
O
contrato de seguro
é a convenção através da qual uma das partes (segurador) se obriga, mediante retribuição (prémio) paga pela outra parte (segurado) a assumir um
risco
e, caso a situação de risco se concretize, a satisfazer ao segurado ou a terceiro uma
indemnização pelos prejuízos sofridos
ou
um
determinado montante previamente estipulado
.
[3]
4. Na fixação/interpretação do conteúdo do contrato de seguro em apreço atender-se-á, designadamente, ao disposto na respetiva
apólice
(art.º 37º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro/RJCS/ Lei do Contrato de Seguro, aprovado pelo DL n.º 72/2008, de 16.4), e - na interpretação das cláusulas de limitação do risco assumido - à Lei das Cláusulas Contratuais Gerais/LCCG (DL n.º 446/85, de 25.10, aplicável aos contratos de seguro, pelo menos desde a alteração introduzida pelo DL n.º 220/95, de 31.10; cf., ainda, o art.º 3º do RJCS).
5. Estabelece o RJCS:
-
Às questões sobre contratos de seguro não reguladas no presente regime nem em diplomas especiais aplicam-se, subsidiariamente, as correspondentes disposições da lei comercial e da lei civil, sem prejuízo do disposto no regime jurídico de acesso e exercício da atividade seguradora
(art.º 4º)
.
-
O contrato de seguro rege-se pelo
princípio da liberdade contratual
, tendo carácter supletivo as regras constantes do presente regime, com os limites indicados na presente secção e os decorrentes da lei geral
(art.º 11º).
-
A validade do contrato de seguro não depende da observância de forma especial
(art.º 32º, n.º 1).
O segurador é obrigado a formalizar o contrato num instrumento escrito
, que se designa por
apólice de seguro
, e a entregá-lo ao tomador do seguro
(n.º 2).
A apólice deve ser datada e assinada pelo segurador
(n.º 3).
-
A apólice inclui
todo o conteúdo do acordado
pelas partes, nomeadamente as condições gerais, especiais e particulares aplicáveis
(art.º 37º, n.º 1).
-
O segurado deve ter um
interesse
digno de proteção legal relativamente ao risco coberto, sob pena de nulidade do contrato
(art.º 43º, n.º 1).
No
seguro de danos
, o interesse respeita à conservação ou à integridade de coisa, direito ou património seguros
(n.º 2).
-
O
sinistro
corresponde à verificação, total ou parcial, do evento que desencadeia o acionamento da cobertura do risco prevista no contrato
(art.º 99º).
-
O segurador obriga-se a
satisfazer a prestação contratual
a quem for devida,
após a confirmação da ocorrência do sinistro e das suas causas, circunstâncias e consequências
(art.º 102º, n.º 1).
Para efeito do disposto no número anterior, dependendo das circunstâncias, pode ser necessária a
prévia quantificação
das consequências do sinistro
(n.º 2). A prestação devida pelo segurador pode ser
pecuniária
ou não pecuniária (n.º 3).
-
A obrigação do segurador
vence-se
decorridos 30 dias sobre o apuramento dos factos a que se refere o art.º 102
(art.º 104º).
-
O
seguro de danos
pode respeitar a coisas, bens imateriais, créditos e quaisquer outros direitos patrimoniais
(art.º 123º).
-
A prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao
montante do capital seguro
(art.º 128º).
-
O objeto salvo do sinistro só pode ser abandonado a favor do segurador
se o contrato assim o estabelecer
(art.º 129º).
-
No seguro de coisas, o dano a atender para determinar a prestação devida pelo segurador é o do
valor do interesse seguro ao tempo do sinistro
(art.º 130º, n.º 1)
e
o segurador
apenas responde pelos lucros cessantes
resultantes do sinistro (
inclusive
, pela
privação de uso do bem
)
se assim for convencionado
(n.ºs 2 e 3).
-
O seguro de responsabilidade civil garante a obrigação de indemnizar,
nos termos acordados
,
até ao montante do capital seguro
por sinistro, por período de vigência do contrato ou por lesado
(art.º 138º, n.º 1);
salvo convenção em contrário, o dano a atender para efeito do princípio indemnizatório é o disposto na lei geral
(n.º 2).
-
São imperativas
, podendo ser estabelecido um regime mais favorável ao tomador do seguro, ao segurado ou ao beneficiário da prestação de seguro, as disposições constantes dos artigos 17º a 26º, 27º, 33º, 35º,
37º
, 46º, 60º, 78º, 79º, 86º, 87º a 90º, 91º, 92º, n.º 1, 93º, 94º,
100º a 104º
, 107º n.ºs 1, 4 e 5, 111º, n.º 2, 112º, 114º, 115º, 118º, 126º, 127º, 132º, 133º, 139º, n.º 3, 146º, 147º, 170º, 178º, 185º, 186º, 188º, n.º 1, 189º, 202º e 217º
(art.º 13º, n.º 1).
6. A respeito da
forma
do contrato diz o preâmbulo do mencionado diploma legal, designadamente: «(...)
Quanto à forma, e superando as dificuldades decorrentes do artigo 426º do Código Comercial,
sem descurar a necessidade de o contrato de seguro ser reduzido a escrito na apólice
, admite-se a sua validade sem observância de forma especial. Apesar de não ser exigida forma especial para a celebração do contrato, bastando o mero consenso,
mantém-se a obrigatoriedade de redução a escrito da apólice
. Deste modo, o contrato de seguro considera-se validamente celebrado, vinculando as partes, a partir do momento em que houve consenso (por exemplo, verbal ou por troca de correspondência), ainda que a apólice não tenha sido emitida. Consegue-se, assim, certeza jurídica quanto ao conteúdo do contrato, afastando uma possível fonte de litígios e
oferecendo um documento
sintético (a apólice) suscetível de fiscalização pelas autoridades de supervisão. Contudo, o regime do contrato de seguro aperfeiçoa as regras existentes, distinguindo os vários planos jurídicos relevantes: i) Quanto à validade do contrato, ela não depende da observância de qualquer forma
especial. Esta solução decorre dos princípios gerais da lei civil,
adequa-se ao disposto na legislação sobre contratação à distância
, resolve problemas relativos aos
casos híbridos
entre a contratação à distância e a contratação entre presentes e, dadas as restantes regras agora introduzidas, é um instrumento geral de proteção do tomador do seguro;
(...)
iii) Quanto à
eficácia
e à
oponibilidade
do contrato e do seu conteúdo, estatui-se que o segurador
tem a obrigação jurídica de reduzir o contrato a escrito na apólice e de entregá-la ao tomador
. Como sanção, o segurador não pode prevalecer-se do que foi acordado no contrato sem que cumpra esta obrigação, podendo o tomador resolver o contrato por falta de entrega da apólice.
(...)»
7. O contrato que, por certo, mais questões suscita quanto à sua interpretação e integração é o contrato de seguro, e a definição dos riscos assumidos (as cláusulas que definem ou delimitam claramente o risco seguro e o compromisso do segurador) é um dos elementos mais importantes, se não o decisivo, no clausulado respetivo.
[4]
As condições da
apólice do seguro
(estipulações/cláusulas) podem e devem ser objeto de
interpretação
, como quaisquer outras declarações de vontade e, de resto, tratando-se (além do mais) de
cláusulas contratuais gerais
devem ser
interpretadas e integradas de harmonia com as regras relativas à interpretação e integração dos negócios jurídicos, mas sempre dentro do contexto de cada contrato singular em que se incluam
(art.º 10º do DL n.º 446/85, de 25.10).
Na interpretação das suas cláusulas, vale o regime geral do Código Civil (art.ºs 236º e seguintes, do CC), com as especificidades decorrentes dos art.ºs 7º, 10º e 11º da LCCG e do citado RJCS.
[5]
8.
As empresas de seguros devem atuar de forma diligente, equitativa e transparente no seu relacionamento com os tomadores de seguros, segurados, beneficiários e terceiros lesados
(art.º
153º, n.º 1, da Lei n.º 147/2015, de 09.9).
No cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé
(art.º 762º, n.º 2 do CC).
9. As partes conformaram-se com a decisão sobre a matéria de facto.
10. Fundamenta a decisão de mérito da
1ª instância, nomeadamente:
-
O A. tem direito a exigir da Ré o montante do capital seguro, deduzida a franquia contratada (4 %), conforme decorre das coberturas contratadas, pelo que deverá receber o montante de € 15 648 (o valor do capital seguro a considerar é de € 16 300 como consta da respetiva apólice - cf. doc. de fls. 17);
- O veículo sinistrado foi considerado em situação de
perda total
e ao mesmo foi atribuído, enquanto salvado, o valor de € 110, permanecendo, até ao momento, na posse do A.;
- Por carta de 17.9.2021, a Ré comunicou ao A. que estava em diligências de averiguação do sinistro - “
fase de instrução
” -, mas que iria regularizar o sinistro considerando a
perda total
, e indicou terceiro que poderia adquirir o salvado - cf. II. 1. 11) e 22), supra e doc. de fls. 41;
- A Ré está autorizada a deduzir ao valor do capital seguro, não só o referido valor de franquia contratada, mas também o valor do salvado, sob pena de enriquecimento injustificado do A. - cf. art.ºs 129º do RJCS e 50º, n.º 2, c) das condições gerais;
- As partes, no domínio da sua liberdade contratual, excluíram a cobertura da privação do uso do veículo sinistrado do leque de coberturas do contrato de seguro - cf. II. 1. 18), supra;
- Ainda assim, a indemnização pela privação do uso seria eventualmente devida se a atuação da seguradora envolvesse a violação de um ou mais deveres acessórios de conduta - de lealdade, de cooperação, de diligência, por exemplo - com desrespeito pelos ditames da boa fé;
- Porém, atenta a factualidade descrita em II. 1. 7), 12), 19), 20) e 21), supra e face ao disposto nos art.ºs 102º e 104º do RJCS e 342º, n.º 1 do CC, conclui-se pela insubsistência dessa pretensão do A., porquanto: não se apuraram factos que permitam inferir uma atuação da seguradora Ré em desrespeito por deveres acessórios de conduta; se o A. não recebeu
mais cedo
o montante da indemnização referente ao capital coberto pelo seguro facultativo foi porque
não quis
, uma vez que
insistiu
com a Ré, sem razão, que tinha direito a uma indemnização pela privação do uso e
exigiu
, sem razão, que não fosse deduzido o valor do salvado; a Ré, apurada a sua responsabilidade quanto aos danos da cobertura facultativa, de seguida comunicou isso mesmo ao A., em 19.5.2022, depois de lhe ter proporcionado uma viatura de substituição pelo período previsto na apólice de 30 dias, e solicitou-lhe a indicação do NIB para efetuar a transferência bancária, mas o A. não lhe forneceu (pelo menos não o comprovou) e informou que ia acioná-la judicialmente;
- Vencendo-se a obrigação de satisfação da indemnização decorridos 30 dias após a averiguação pela Ré da sua responsabilidade contratual, tem o A. direito apenas aos juros de mora, à taxa supletiva de juros civis, decorridos 30 dias após 19.5.2022, isto é, desde 20.6.2022 - cf. art.ºs 104º do RJCS e 279º do CC;
- Depois de o segurador confirmar
a ocorrência do sinistro, as suas causas, circunstâncias e consequências
, dispõe do prazo de 30 dias para satisfazer ao credor a respetiva indemnização contratual, o que significa que incorre em
mora
após o decurso destes 30 dias, porquanto o direito à prestação contratual por parte do segurado não carece de interpelação para o efeito
[6]
- art.º 805º, n.º 2, a) do CC -, pelo que a Ré deverá ser condenada a pagar ao A. a quantia de € 15 538 [€ 16 300 - (€ 16 300 x 0,04 + € 110)], acrescida de juros de mora, à taxa de juro civil de 4 % ao ano, desde 20.6.2022, até integral pagamento - art.ºs 559º, n.º 1, 804º e seguintes do CC e Portaria n.º 291/2003, de 08.4.
11. Não se discute que foi celebrado e estava em vigor na data do sinistro um contrato de seguro de danos que, além das coberturas obrigatórias (seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel), incluía coberturas facultativas.
Importa determinar o montante do pagamento contratualmente devido pela Ré/seguradora, no âmbito de responsabilidade contratual fundada num seguro facultativo (“danos próprios”), submetido às regras contratuais convencionadas pelas partes.
12. Salvo o devido respeito por entendimento contrário, afigura-se correta a solução encontrada pelo Tribunal da 1ª instância, porquanto:
- Não existe suporte fático da alegada “
violação por parte da Ré seguradora dos deveres acessórios de conduta, nomeadamente de lealdade, de cooperação, de diligência e com total respeito pelos ditames da boa fé
”, mormente violação dos “
deveres de indemnização e de celeridade na resolução, face à situação de perda total do veículo
”.
Concluída a averiguação, a Ré pretendeu pagar de imediato o valor correspondente aos danos sobrevindos [informou, prontamente, o A./recorrente de que
iria indemnizá-lo pelos danos sofridos ao abrigo da cobertura facultativa de danos próprios
, verificando-se, apenas, uma discrepância de € 96 em razão da errada
pressuposição
do valor seguro - cf. II. 1. 10), 15), 17) e 19), supra], inexistindo, assim, elementos que apontem para uma qualquer violação do disposto nos art.ºs 102º e 104º do RJCS suscetível de fundamentar o invocado desrespeito dos deveres da Seguradora de “
regularizar de forma atempada e em prazo razoável
”.
[7]
- De resto, contrariando o acordo das partes e revelando indiferença pela possibilidade aventada pela Ré, o A./recorrente persiste na ideia de que aquela também devia “descontar” o valor do salvado - cf., nomeadamente, II. 1. 15),
17
), 21) e 22), supra.
- Reconhecendo o A. que “
a Ré seguradora podia e devia proceder às averiguações que considerasse por necessárias
” (cf.,
v. g.
, a fundamentação da alegação de recurso), a factualidade provada e a descrita atuação das partes não permite sustentar que a Ré “
violou de forma intencional a obrigação de liquidação atempada da indemnização e por conseguinte, violou o princípio da boa fé contratual, no cumprimento do contrato de seguro
”.
13. Perfilhando-se o entendimento de que,
mesmo não estando o dano pela privação do uso coberto pela apólice de seguro facultativo
(no contexto do
contrato de seguro de coisa
, o segurador só está vinculado do dever de indemnizar o segurado do dano da privação do uso do bem seguro
se assim for convencionado
)
, existe o dever de indemnizar pela privação de uso de veículo sempre que se verifique que a seguradora
ao não agir com prontidão e diligência
,
atrasou, injustificadamente e de forma abusiva
, o desfecho do processo do sinistro, causando danos ao segurado
[8]
, concluiu-se, pois, que os elementos disponíveis não permitem imputar à Ré tal responsabilidade.
A Ré/recorrida não recusou a assunção de responsabilidade e o pagamento da indemnização devida.
O atraso no pagamento da indemnização não se deveu a qualquer conduta culposa da Ré,
v. g.
, envolvendo a
violação grave dos deveres acessórios de diligência que ocasionam atraso injustificado na reparação do veículo sinistrado
(atento o critério do “
profissional que age de acordo com os seus deveres profissionais e de forma diligente, legal e tendo sempre em vista igualmente o concreto interesse do cliente
”).
[9]
A Ré teve de proceder à necessária averiguação das circunstâncias do sinistro. O A./Recorrente não terá facultado a documentação solicitada (nomeadamente o seu “NIB”) e decidiu instaurar a presente ação.
Daí, nada justificará atribuir qualquer quantia a título de ressarcimento do dano de privação do uso, na base de responsabilidade extracontratual, sendo que, decorrido o prazo previsto no art.º 104º do RJCS sem que o segurador realize a prestação devida, em princípio, este fica, nos termos gerais, constituído em
mora
, que dá lugar, tratando-se de uma obrigação pecuniária, ao vencimento de juros à taxa legal - art.ºs 102º, n.º 3 do RJCS; 799º, n.º 1 e 806º, n.ºs 1 e 2 do CC e Portaria n.º 291/2003, de 08.4.
A Ré/recorrida, por força da ocorrência do sinistro e por aplicação do que se convencionou no contrato (com uma componente de seguro obrigatório de responsabilidade civil e outra de seguro facultativo de danos), estava vinculada a prestar ao recorrente a quantia de € 15 538 (calculada nos termos indicados na parte final do ponto II. 10., supra), obrigação que se tornou exigível decorridos 30 dias sobre a data em confirmou a verificação do sinistro (art.ºs 102º e 104º do RJCS).
14. Ante as descritas circunstâncias da atuação das partes e tratando-se de uma pura
obrigação pecuniária -
sendo que não se convencionou, no contrato de seguro, a vinculação do segurador ao dever de indemnizar o dano resultante da privação do uso do bem seguro [cf. II. 1. 18), supra] -, ao A./recorrente não assiste o direito de exigir do segurador uma qualquer prestação indemnizatória reparadora do eventual dano de privação do uso da coisa sinistrada, mas apenas a quantia derivada da situação de simples mora no cumprimento da obrigação principal.
[10]
15. O A. gozou de
veículo de substituição
nos termos contratualmente acordados [cf. II. 1. 12), supra e doc. de fls. 17/18].
Entretanto, a Ré/recorrida procedeu à averiguação das circunstâncias do sinistro, após o que contactou o A. para efetuar o pagamento da indemnização.
Não se demonstra que o A. tenha colaborado para a consecução daquele objetivo, tendo manifestado, desde logo, que “
não abdicava
” da indemnização pelo pretenso dano de privação do uso de veículo automóvel e que iria “
avançar com a respetiva ação judicial
”.
Contudo, como vimos, inexistem elementos que permitam imputar à Ré/recorrida qualquer responsabilidade pelo tempo (cerca de oito meses) inerente à
confirmação da ocorrência do sinistro e das suas causas, circunstâncias e consequências
, relevando, designadamente, a factualidade (provada) mencionada em II. 1. 7), 8) e 19) a 22) e (não provada) descrita em II. 2. c), supra.
E, cremos, o facto de o A./recorrente ter aventado uma pretensa “
liquidação parcial
”
[cf. II. 1. 22),
in fine
, supra]
, por si só, não determina que outra deva ser a resposta à questão colocada no recurso.
[11]
16. Soçobram, desta forma, as “
conclusões
” da alegação de recurso, não se mostrando violadas quaisquer disposições legais.
*
III. Pelo exposto, acorda-se em julgar
improcedente
a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas
pelo A./apelante.
*
13.5.2025
[1]
Conforme comunicação datada de
17.9.2021
, reproduzida a fls. 41.
[2]
Como se refere na
motivação
da decisão sobre a matéria de facto, trata-se de matéria acordada pelas partes (art.ºs 22º da p. i. e 11º da contestação) e decorrente do acionamento da cobertura contratual (cf. documento de fls. 17/18).
[3]
Vide, entre outros,
Pedro Romano Martinez
,
Contratos Comerciais
, Principia, 2006, pág. 73 e
José Vasques
,
Contrato de Seguro
, Coimbra Editora, 1999, pág. 20, e os acórdãos do STJ de 02.10.1997 e 10.12.1997 in CJ-STJ, ano V, 3, págs. 45 e 158.
Estabelece o art.º 1º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo DL n.º 72/2008, de 16.4: “
Por efeito do contrato de seguro, o segurador cobre um risco determinado do tomador do seguro ou de outrem,
obrigando-se a realizar a prestação convencionada
em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato, e o tomador do seguro obriga-se a pagar o prémio correspondente”
.
[4]
Cf., entre outros,
J. C. Moitinho de Almeida
,
Contrato de Seguro, Estudos
, Coimbra Editora, 2009, págs. 93 e seguintes e o acórdão da RC de 15.10.2013-processo 73/12.3TBLRA.C1, publicado no “site” da dgsi.
[5]
Vide
Pedro Romano Martinez
,
ob. cit.
, pág. 80.
[6]
Vide
Pedro Romano Martinez
e Outros,
Lei do Contrato de Seguro Anotada
, Almedina, 4ª edição, 2020, anotação aos art.ºs 102º e 104º do RJCS e
[7]
Sobre esta matéria escreveu-se na motivação da decisão de facto: «(...)
a ré, após contactada pelo autor, assumiu a cobertura do seguro, ou seja, ofereceu-se para pagar o valor do capital seguro (de € 16 300 e não € 16 200, como a ré, certamente por lapso indica, como se alcança do teor da apólice), deduzido o valor da franquia, de 4 % sobre o valor do capital seguro e deduzido o valor do salvado
(...),
quantia que o autor não quis – recusou-se – receber (vd. o seu email de 30.8.2022), por entender, sem razão, que só deveria operar a dedução da franquia e não a dedução do valor do salvado uma vez que na sua ótica, que se respeita, o carro ficou todo destruído, o que não foi o caso, tendo ainda a parte traseira um valor residual de sucata e, como tal, valorizável em € 110;
(...)
o autor foi inclusive informado de que seria encaminhado para uma empresa que adquiriria o salvado pelo valor indicado, o que permitiria embolsar o respetivo valor de €110, o que o autor declinou
. / (...)
nenhuma prova foi feita pelo autor – maxime documental ou testemunhal – no sentido de que, para além dos email´s acima indicados, tenha efetuado diversos contactos telefónicos com a ré e também por email, através do seu il. mandatário, solicitando o pagamento do capital seguro na sequência do incêndio do seu automóvel, e que a ré tenha recusado injustificadamente o pagamento atempado da indemnização por falta de pronúncia e comunicação, sendo certo que recaía sobre si essa prova, por se tratar de factos constitutivos do seu direito
(...)».
[8]
Cf., de entre vários, acórdãos do STJ de 23.11.2017-processo 4076/15.8T8BRG.G1.S2 [com o sumário: «
I - No âmbito de contrato de seguro por danos próprios, a seguradora que, na sequência de processo de averiguações relativamente ao sinistro participado e respetivas consequências, se recusa sem qualquer explicação pagar ao sinistrado a quantia que lhe é devida, incorre em responsabilidade contratual respondendo pelos danos que decorrem dessa recusa de pagamento designadamente a privação de uso do veículo. II - A seguradora não pode eximir-se em tais circunstâncias ao pagamento da prestação visto que o segurado tem um interesse digno de proteção legal relativamente ao risco coberto (artigo 43º/1 do RJCS) que consiste em ver satisfeita pelo segurador a prestação convencionada "em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato" contrapartida da obrigação de pagamento do prémio (artigo 1º do RJCS), estando obrigado o segurador a satisfazer a prestação contratual a quem for devida nos termos do artigo 102º/1 do RJCS, disposições que se conjugam com o princípio da boa fé no cumprimento da obrigação que consta do artigo 762º/2 do Código Civil. III - A lei impõe, assim, ao segurador uma obrigação de liquidação atempada da indemnização, não lhe confere o direito a uma injustificada e inexplicável recusa de pagamento da indemnização devida que se traduziria num manifesto e intolerável abuso do direito que a lei confere à seguradora de proceder a averiguações tendo em vista apurar o sinistro e suas consequências (artigo 334º do Código Civil).
»], 23.11.2017-processo 2884/11.8TBBCL.G1, 08.11.2018-processo1069/16.1T8PVZ.P1.S1 [concluindo-se: «
Impõe-se à seguradora que aja com a possível prontidão e diligência nas averiguações e peritagens necessárias ao reconhecimento do sinistro e à avaliação dos danos, pelo que o atraso injustificado da seguradora na gestão célere e eficiente dos processos de sinistro, poderá responsabilizar a seguradora no pagamento de indemnização pela privação do uso do veículo, sendo que o dano decorrente da privação do veículo constitui dano patrimonial autónomo, quando o proprietário do veículo danificado se viu privado de um bem que faz parte do seu património, deixando de dele poder dispor e gozar livremente, nos termos consagrados no art.º 1305º do Código Civil, com violação do respetivo direito de propriedade.
»] e 14.7.2022, processo 168/18.0T8FVN.C2.S1, publicados no “site” da dgsi.
[9]
Cf., a propósito, “voto de vencido” anexo ao acórdão da RP de 18.6.2024-processo 611/20.8T8SJM.P1, publicado no “site” da dgsi.
[10]
Cf. acórdão da RC de 11.3.2014-processo 176/12.4TBTMR.C1 [assim sumariado: «
I - Nos seguros de danos, o segurador está vinculado à realização de uma prestação indemnizatória puramente pecuniária, de origem contratual, pelo que no caso de atraso na realização dessa prestação a única indemnização devida é a correspondente aos juros legais, contados desde a data da constituição em mora. II - Apesar de se tratar de um dano emergente, o segurador só responde pela privação do uso da coisa segura se assim se tiver convencionado no contrato de seguro
.»], publicado no “site” da dgsi.
[11]
Sobre a questão do recurso, cf., ainda, por exemplo, acórdão da RC de 07.11.2017-processo 131/16.5T8SAT.C1 [com a intervenção do relator e do 1º adjunto; consta do sumario: «(...)
ii) Provado que a privação de uso de um veículo - que se perdeu totalmente, até à aquisição de um novo, por não atempado pagamento do valor indemnizatório devido contratualmente por uma seguradora, no âmbito do seguro facultativo, por danos próprios, com a consequente não disponibilidade ao lesado da respetiva quantia para adquirir esse novo veículo - causou uma diminuição ao nível da satisfação das necessidades familiares, profissionais e de lazer do proprietário, deve arbitrar-se o respetivo valor ressarcitório
; (...)], publicado no “site” da dgsi.
|
TRC
|
https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/b7fcaeff92b62fb280258c9600497ce5?OpenDocument
|
1,739,836,800,000
|
IMPROCEDENTE
|
14720/20.0T8LSB.L1-7
|
14720/20.0T8LSB.L1-7
|
DIOGO RAVARA
|
I-
Estando em causa imóveis de longa duração, o regime consagrado no art. 1225º do CC prevalece sobre aqueloutro consagrado nos arts. 913º e segs. do mesmo código;
II-
Estando o edifício constituído em propriedade horizontal, sendo o elevador de automóveis e as garagens de considerar partes comuns (art. º do CC), e tendo a assembleia de condóminos mandatado a administração do condomínio para agir em juízo contra as empresas que construíram e venderam as frações autónomas que o integram, nada obsta a que a administração represente os condomínios e os condóminos em ação declarativa de condenação cuja causa de pedir assente na ocorrência de defeitos daquele elevador, e na privação do uso das garagens.
III-
Sendo as rés empresas comerciais, e estando pelo menos parte das frações autónomas do condomínio autor dedicadas a uso habitacional, é aplicável o regime das empreitadas de consumo, consagrado na Lei de Defesa do Consumidor, bem como o consagrado no DL nº 67/2003, sobre venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas ; razão pela qual pode o condomínio autor optar
ab initio
, pela substituição do elevador avariado, em detrimento da reparação do mesmo (art. 4º, nº 1 do DL 62/2003);
IV-
Tal opção não contraria as regras da boa-fé, visto que ficou demonstrado que o mesmo elevador avaria frequentemente, e já chegou a cair com pessoas dentro de veículos.
V-
Constituindo o elevador em questão a única forma de as viaturas dos condóminos acederem à garagem, as repetidas avarias do elevador em apreço e o facto de não ser exigível aos condóminos que o utilizam correndo o risco de o mesmo cair com pessoas dentro dos automóveis configuram um
dano de privação de uso
das garagens do edifício, nada obstando a que, como forma de reparação do mesmo, as rés sejam condenadas a suportar o custo do arrendamento de lugares de garagem para os veículos dos condóminos, até que se mostre cumprida a obrigação de substituir o elevador suprarreferido.
|
[
"ELEVADOR DE AUTOS",
"AVARIA",
"DEFEITOS",
"LEGITIMIDADE DA ADMINISTRAÇÃO DO CONDOMÍNIO",
"2ª INSTÂNCIA",
"PRIVAÇÃO DO USO DE GARAGEM",
"INDEMNIZAÇÃO",
"LEI DA DEFESA DO CONSUMIDOR"
] |
Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
1. Relatório
O Condomínio do prédio denominado Edifício XYZ 1 sito na Avenida Marquês …., nº
s
……… e Av.ª Visconde ….. nº
s
…………., em Lisboa
[1]
, intentou a presente ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra
A
[ … Investimentos Imobiliários, Lda.]
e
B
[
….. – Engenharia, S.A. ]
, formulando os seguintes pedidos:
“
1. Serem as RR. Condenadas, individual ou solidariamente, a substituírem o Monta-Autos atualmente instalado por um equipamento totalmente novo, de acordo com o orçamento da empresa Thyssen Krupp, apresentado nos presentes Autos, no valor de 84.435,00€ sem IVA e 103.855,05€ com IVA;
2. Ser definido um prazo de 90 dias para que a substituição do Monta-Autos esteja concluída, contados da data do transito em julgado da sentença;
3. Caso as RR não procedam à substituição do Monta-Autos no prazo máximo de 90 (noventa) dias a contar do trânsito em julgado da sentença, devem desde já ser condenadas, individual ou solidariamente, a pagar uma indemnização ao Autor de montante igual ao que este tenha de despender com terceiros para proceder à instalação do novo Monta-Autos;
4. Serem as RR. condenadas, individual ou solidariamente, a pagar ao Autor a título de danos não patrimoniais, um valor a ser equitativamente estabelecido pelo Tribunal, nunca inferior a dez mil euros;
5. Serem as RR. condenadas, individual ou solidariamente, a, no decurso do tempo em que os condóminos venham a estar privados da utilização do Monta-Autos, a suportar os custos de parqueamento no exterior do edifício (por veículo a estacionar), como o já fizeram até ao final do mês de março do ano corrente de 2020, no Parque de estacionamento ….;
6. Serem as Rés condenadas, individual ou solidariamente, no pagamento ao Autor de uma sanção pecuniária compulsória no valor de sessenta euros, por cada dia, de desrespeito pela realização integral das obrigações que lhes venham a ser impostas.”
Para tanto alegou, em síntese, que:
-
O prédio do condomínio foi reconstruído por iniciativa da 1ª ré, tendo sido a 2ª ré a empreiteira do mesmo.
-
Em 07-06- 2019 realizou-se a 1ª assembleia de condóminos, altura em que as escrituras de compra e venda da maioria das frações autónomas já do edifício já tinham sido outorgadas;
-
Em julho de 2019 foi feito o contrato de manutenção de um dos elevadores, um monta autos, com a empresa Kone;
-
Esse “monta-autos” esteve quase sempre inoperacional, avariou de forma consecutiva, caiu com pessoas e veículos no seu interior, esteve períodos longos sem funcionar, e veio a apurar-se que não era novo tal como se supunha, mas tem 30 anos e precisa de ser substituído;
-
A 2ª ré chegou a contratar avenças aos condóminos aquando de uma reparação, mas depois deixou de o fazer, continuando este elevador a avariar constantemente;
-
Pediu a substituição do monta autos, mas as rés afirmam que este avariava devido a pancadas nas portas.
-
Tal elevador não é seguro, e sendo o mesmo antigo, e as peças necessárias à sua reparação estão já descontinuadas, o que é oneroso, pelo que deve ser substituído.
As rés contestaram (separadamente), argumentando nos seguintes termos:
-
O edifício não era novo, mas reabilitado e os proprietários sabiam que o monta-autos não era novo e ia ser mantido;
-
Pagaram as avenças de garagem apenas porque a reparação da caixa de comandos do monta-autos se atrasou, aquando da conclusão do prédio e tal pagamento cessou quando a Kone considerou o monta-autos operacional;
-
O monta-autos está apto a funcionar e com inspeção até 2023;
-
As avarias devem-se a pancadas dadas pelos condóminos;
-
Estando o monta-autos operacional e em condições de segurança, nada permite concluir que o mesmo deva ser substituído por outro;
-
A Kone assegurou que o equipamento estava em condições de funcionar, pelo que não é necessária a sua substituição por um novo;
-
A eventual responsabilidade pelo mau funcionamento do monta-autos só pode caber à Kone na medida em que quando pediram orçamento para mudança de elevadores e avaliação da possibilidade de o mesmo ser reabilitado esta afirmou que assim era pois estava em bom estado.
Na sua contestação, a ré
B
deduziu incidente de intervenção acessória provocada da Kone Elevadores Portugal, Lda.
[2]
, a qual foi admitida
[3]
.
No desenvolvimento da causa, o autor apresentou articulado superveniente, com ampliação do pedido, invocando a ocorrência de avarias no monta-autos, cuja reparação foi adjudicada pelo valor de € 7.178,35€, e pedindo a condenação de uma das rés a pagar-lhe tal valor
[4]
.
O articulado superveniente e a inerente ampliação do pedido foram admitidos
[5]
.
Levada a cabo prova pericial, e realizada a audiência final, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
“Por todo o exposto o tribunal julga a presente ação parcialmente procedente e em consequência:
a) Absolve a Kone do pedido
b) Condena as RR a proceder à substituição do elevador monta autos, por um novo;
c) Condena as RR a pagar à A. uma avença de parqueamento próximo do imóvel por cada lugar de parqueamento cujo acesso só seja feito pelo monta autos, desde a presente decisão até efetiva substituição do elevador monta autos.
d) Condena a A. a pagar as custas na proporção de 15% e as RR na proporção de 85%.”
Inconformada, a ré
B
interpôs recurso de apelação cujos fundamentos sintetizou nas seguintes conclusões:
“
I. A decisão padece de erro na apreciação da matéria de facto, inexacta interpretação, aplicação da lei e orientações jurisprudenciais violando, designadamente, o disposto nos art.º 227.º, 493.º, 798.º, 913.º, 914.º, 916.º e 917.º do Código Civil, art.º 607.º e 615.º, n.º 1 al. d) do CPC, o DL 302/2002, de 28/12 e Lei 65/2013, de 27/8, o que constitui erro de julgamento;
II. O Autor, Condomínio do Prédio denominado Edifício XYZ1, sito na Avenida Marquês …, n.º ….. e Av.ª Visconde …. n.º ….., em Lisboa, não tem direito a ver substituído o monta autos; Vejamos,
III. A perícia colegial realizada ao monta autos (cujo objecto foi ampliado nos termos do disposto no art.º 476.º, n.º 2 do CPC por despacho de 14/09/2022, Ref. Citius 418490399 para se determinar, entre outras questões, da necessidade de modernização integral do equipamento e ou a sua substituição), foi inequívoca na sua avaliação técnica assumindo que não é (nem era) necessária a substituição do monta-auto - cfr. pág. 30 e 42 do Relatório de Peritagem Colegial (doravante Relatório);
IV. A decisão recorrida, em inequívoca contradição com a perícia técnica e sem qualquer outro meio complementar de prova ou fundamento legal (como se verá) condenou as Rés a substituir o monta-autos;
V. Contrariando, ainda, a avaliação técnica dos Srs. Peritos ao afirmarem expressamente (por unanimidade) que o mais adequado não seria a sua substituição, mas antes a alteração das portas (a pág. 30, no ponto 2.7.1 Resposta à Questão 6), considerando todas as intervenções técnicas a que o equipamento – monta autos foi sendo sujeito (cfr. 2.2.2. Resposta à questão 1, 2.2.2.2., 2.2.2.3., 2.3. Nota 2 do Tribunal, 12, 15, 22 e 26 dos factos provados, 2.5.1. Resposta à Questão 4);
VI. Decorre do Relatório - prova de natureza científica, que o monta autos não necessita de ser substituído e reúne todas as condições de funcionamento e segurança; Por outro lado,
VII. Não existem quaisquer factos nos autos, nem elementos de prova que infirmem a perícia e que sustentem a necessidade (inexistente) de substituir o monta autos;
VIII. Não tem, por isso, qualquer fundamento, de facto (nem de direito) a condenação de substituição do monta autos;
IX. Mesmo que a dúvida existisse (que não existe) quanto à eventual necessidade de substituição, é certo que a dúvida sobre a realidade de um facto resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita – art.º 414.º do CPC,
in casu
contra o Autor;
DA MATÉRIA DE FACTO
X. Ocorre, por isso, exuberante erro de julgamento decorrente da apreciação de toda a prova, sobretudo da matéria dos pontos 17, 20 e 21 dos factos provados e 1 dos factos não provados, que se impõe alterar;
XI. Dos meios probatórios existentes no processo, designadamente da perícia ao monta autos, dos documentos e depoimentos testemunhais (gravados), impunha-se decisão da matéria de facto diversa da recorrida - art.º 607.º CPC;
XII. Deve ser alterada a resposta à matéria ínsita nos pontos 17, 20 e 21 dos factos provados para – NÃO PROVADOS;
XIII. Deve ser alterada a resposta à matéria ínsita no ponto 1 dos factos NÃO provados para – PROVADO;
XIV. Dando-se àqueles, as respostas motivadas e esclarecidas expostas nestas alegações;
XV. Para alteração da matéria de facto, importa destacar os factos e os documentos que as partes (Autora, Rés e Interveniente) carrearam para os autos que contrariam não só parte dos factos provados, mas acima de tudo afastam a responsabilidade das Rés; Assim,
XVI. Da petição inicial – art.º 19.º, 20.º, 33.º, 34.º, 38.º, 40.º e 42.º, ainda os documentos 6, 8, 20, 45 e 47 a 74, destes resultando que as Rés sempre actuaram de boa-fé, em estrita colaboração com o Autor e com a Interveniente Kone e que, em momento algum este colocou em causa a omissão dos deveres de informação;
XVII. Da contestação da 2.ª Ré – art.º 6.º a 18.º, 25.º, 47.º e 48.º, ainda os documentos 2 e 3;
XVIII. Da contestação da Interveniente Kone – art.º 3.º, 7.º, 8.º, 19.º, 36.º, 37.º e 42.º, ainda os documentos 1, 2, 9 e 10;
XIX. A adequada interpretação da factualidade vertida nos autos permitirá alterar as respostas aos pontos 17, 20 e 21 dos factos provados e 1 dos factos não provados, alteração que se reflectirá na boa e justa decisão da causa;
XX. Os depoimentos que fundamentam o presente recurso quanto à matéria de facto e que se transcrevem, em parte, nas presentes Alegações, encontram-se registados em áudio:
o
Depoimento de F - Sessão de 23/02/2024 - Minuto 00:00:01 a 00:21:32
o
Depoimento de R ………… e V ………… - Sessão de
o
23/02/2024 - Minuto 00:00:01 a 01:08:58
17 DOS FACTOS PROVADOS E 1 DOS FACTOS NÃO PROVADOS
XXI. A 7/06/2019 o Autor tinha conhecimento que o monta autos se manteve o mesmo e que estava a ser objecto de alterações técnicas – substituição do quadro de comandos – 6 dos factos provados;
XXII. A 1/7/2019 foi celebrado entre o Autor e a Kone o contrato de manutenção, que inclui o monta autos – 8 dos factos provados;
XXIII. Decorre do depoimento da testemunha F ………..- Sessão de 23/02/2024, minutos 00:02:52, 00:05:00, 00:06:00, 00:07:00, 00:09:00, 00:17:00, proprietário de uma fracção, que se deslocou ao edifício - antes da assinatura da Promessa de Compra e Venda, que apenas seria substituído o sistema electrónico - todo o sistema eletrónico ia ser substituído, não o monta autos, quando celebrou a escritura o monta autos não estava a funcionar em consequência da avaria do quadro central - atribuíram as culpas à questão do quadro-central do… do Monta Autos, que ainda não tinha sido substituído, mas que iria ser na semana a seguir e que era visível ao entrar no monta autos que não era novo, quando fez a escritura o monta autos não estava a funcionar, afirmando ainda, convictamente, que iriam ser substituídas as peças para o equipamento ficar arranjado.
XXIV. Antes da venda/aquisição da fracção, não lhe foi omitida qualquer informação relativa ao facto de o monta autos não ser novo e qual a intervenção a efectuar ao equipamento, bem como, que na data da escritura o monta autos não funcionava;
XXV. As Rés prestaram aos compradores, antes da venda/aquisição, todas as informações relevantes sobre o monta autos e sempre de fé;
XXVI. Emerge das regras da experiência comum e da lógica, que as Rés não poderiam omitir informação dos compradores respeitante ao monta autos, que é diariamente utilizado e que, pelas suas dimensões, não pode ser “escondido”;
XXVII. As testemunhas R ……. e V ……….., prestaram um depoimento isento, na linha da testemunha F………….e coincidente com documento 7 e 45 da PI – Sessão de 23/02/2024, minutos 00:06:07, 00:07:19, 00:08:51, 00:08:59, 00:10:56, 00:11:32 - a intenção das Rés era reabilitar o monta autos que se encontrava em funcionamento, tendo pedido, para o efeito, uma avaliação técnica à Kone, cujos técnicos se deslocaram ao local e efectuaram essa análise;
Por outro lado,
XXVIII. Antes da venda/aquisição e celebração das respectivas escrituras alguns dos proprietários foram habitar nas fracções – cfr. Doc. 6, Acta n.º 1 de 7/06/2019, o que significa que passaram a utilizar o monta autos - 16 dos factos provados,
XXIX. Não é crível, nem resulta da experiência comum, que o Autor e os proprietários desconhecessem que o monta autos não seria novo mas remodelado,
XXX. E que a questão do monta autos não tivesse sido abordado antes da venda/aquisição das fracções, sabendo-se que alguns dos futuros proprietários até já habitavam nas fracções antes mesmo da celebração dos contratos de compra e venda
XXXI. Não se encontra nos autos algum documento que demonstre ou prove que as Rés tenham dito aos condóminos que o monta autos seria novo ou remodelado como novo;
XXXII. As testemunhas R …………e V …………., afirmaram sem qualquer reserva que nunca transmitiram aos potenciais compradores das fracções antes das vendas que o monta auto seria novo, mas sim remodelado/reabilitado – Sessão de 23/02/2024, minutos 00:22:51 00:24:06 00:24:08 00:24:59 00:26:15 00:27:06 00:28:59 00:30:05 00:39:02 00:40:01 00:48:52 00:48:59 00:49:26 00:50:15 - 00:51:38 00:52:04;
SEM PRESCINDIR,
XXXIII. Retira-se dos referidos depoimentos, que antes das escrituras de compra e venda, o monta autos foi objecto de uma substituição do quadro de comandos cuja obra ocorreu Fevereiro/Março de 2019 e Novembro/2019 – 24 dos factos provados;
XXXIV. Em face da imobilização do monta autos, a 2R pagou avenças aos condóminos para parquearem os veículos no exterior – 25 dos factos provados,
XXXV. Quadro que permite concluir que os compradores antes das vendas/aquisições estavam informados que o monta autos seria o mesmo, ainda que remodelado, e que se encontrava em processo de reparação para substituição do quadro de comandos; Ademais,
XXXVI. Tendo a substituição do quadro de comandos ocorrido naquele período, com início antes da celebração dos contratos de compra e venda e o monta autos ter ficado imobilizado, as Rés não podiam saber, logo, informar os compradores, quais as alterações a efectuar ao equipamento, não podendo, por isso, a decisão concluir que seriam trocados apenas uns botões, iluminação e tecto de cabine,
XXXVII. A substituição do quadro de comandos incluiu a verificação geral e substituição de todas as peças necessárias para garantia do bom funcionamento, nomeadamente das portas – Doc. 3 junto à Contestação da 2R de 1/4/2019 e 24 dos factos provados, não se tratando, por isso, de um mero arranjo estético:
XXXVIII. Não consta dos autos qualquer documento que demonstre que algum dos compradores tivesse manifestado ou reclamado junto das Réus o desagrado por omissão ou errada informação relativamente ao monta autos no momento que antecedeu as respectivas aquisições.
XXXIX. É, assim, juridicamente incompreensível e sem qualquer fundamento factual e/ou processual, a decisão de julgar provado o ponto 17 dos factos provados e 1 dos factos não provado, quadro que constitui um clamoroso erro de julgamento.
XL. Deve julgar-se o ponto 17 dos factos provados: Não Provado, e o ponto 1 dos factos não provados: Provado
20 DOS FACTOS PROVADOS
XLI. Resulta do documento 1 junto pela Kone na Contestação (email de 18/10/2017 de R ……….. para L……….. e resposta da Kone – email de 15/11/2017) e do documento 2 junto pela Kone na Contestação (email de 22/11/2017 de R ………… para L……….da Kone) que o pedido da Ré foi de “remodelação” do equipamento, sem qualquer especificação e a resposta da Kone, após avaliação realizada ao monta autos, foi de apresentação dos trabalhos “necessários para normalização do equipamento e incremento dos sistemas de segurança do mesmo”, cfr., ainda, 19 e 22 dos factos provados;
XLII. Não consta dos autos qualquer facto que permita concluir que a Ré tenha pedido à Kone uma remodelação parcial do monta autos ou que “o deixasse a funcionar com o menor custo possível”;
SEM CONCEDER,
XLIII. Não foram as Rés que determinaram a intervenção a efectuar pela Kone, como evidenciam os factos e a prova constante dos autos, nem tal seria legalmente possível. Com efeito, XLIV. A Kone é uma empresa certificada para a Diretiva Ascensores 2014/33/EU e é a empresa de manutenção de instalações de elevação (EMIE), responsável para manutenção de equipamentos nos termos do contrato de manutenção em vigor (8 dos factos provados), celebrado ao abrigo do DL n.º 320/2002, de 28 de Dezembro e da Lei n.º 65/2013, de 27 de Agosto, e já o era anteriormente a 1/7/2019;
XLV. Em consequência, apenas a Kone, nessa qualidade de empresa certificada e de EMIE, tinha competência para avaliar tecnicamente o monta autos e efectuar as intervenções técnicas que entendesse;
XLVI. Neste contexto, assumiu a responsabilidade de colocar o monta autos em pleno funcionamento e aceitou celebrar o respectivo contrato de manutenção;
XLVII. A remodelação técnica efectuada pela Kone não foi “a pedido”, isto é, as Rés não pediram à Kone para trocar apenas uns botões, iluminação e teto de cabine, nem tal se encontra em lado algum dos autos;
XLVIII. A Kone apresentou a proposta, entendeu que a remodelação era exequível (caso contrário não a teria efectuado), não apresentou qualquer proposta de substituição do monta autos, e assumiu a reabilitação do monta autos, emitindo a respectiva Declaração de Conformidade de a 17 de Fevereiro de 2020 – Doc. 4 junto à Contestação da 2.ª Ré;
XLIX. A intervenção efectuada pela Kone na sequência da avaliação técnica que fez e da proposta que apresentou, não tem alguma relação com o custo do serviço prestado pretendido pela 2.ª Ré, o qual foi determinado pela Kone;
L. A sentença erra flagrantemente ao imputar às Rés a competência para definir a intervenção a efectuar ao monta autos e os custos daí decorrentes;
LI. Pelo exposto, deve julgar-se o ponto 20 dos factos provados: Não Provado;
21 DOS FACTOS PROVADOS
LII. A remodelação do monta autos não se limitou à simples substituição de botões e luzes, considerando que foi instalado um quadro de comandos, cfr. 21 dos factos provados e perícia - 2.2.2 do Relatório, com um custo de € 12.400,00 - documento 3 junto à contestação da Ré
B
, e ainda um limitador de velocidade, cabo e roda tensora – perícia 3.3, al. a) do Relatório;
LIII. Em consequência, deve julgar-se o ponto 21 dos factos provados: Não Provado.
LIV. Os factos provados e não provados são claramente suficientes para se julgar procedente o recurso e, em consequência, a acção improcedente;
DO DIREITO
LV. Resulta da prova, que as Rés prestaram as informações que se impunham relativamente à reabilitação do edifício e das suas partes componentes, designadamente no que respeita ao monta autos – cfr. 6, 8, 16 e 24 do factos provados, depoimento da testemunhas F ………, R ……… e V ……….., Acta N.º 1 de 7/6/2019 – Doc. 6 junto à PI;
Por outro lado,
LVI. As fracções foram vendidas aos compradores individualmente considerados, ainda que não identificados nos autos, e não ao Autor, bem como,
LVII. Não foi articulado qualquer facto relativo à venda e/ou promessa de venda das respectiva fracções, pelo que a decisão abrange o julgamento de matéria que não constitui qualquer facto a apreciar, o que constitui excesso de pronuncia que determina a nulidade da sentença – art.º 615.º, n.º 1, al. d) do CPC;
LVIII. Constitui, ainda excesso de pronúncia, a condenação das Rés a pagar uma avença desde a data da prolação da sentença até à substituição do monta autos, atendendo a que o pedido do Autor se estriba na privação da utilização do monta;
LIX. A privação de utilização e/ou o período em que a mesma ocorreria não foi alegada nos autos, nem resulta da matéria de facto provada, antes está demonstrado que o Autor e condóminos não estão privados da sua utilização (cfr. perícia e 15, 22 e 28 (este quanto à existência de inspeção válida) dos factos provados).
LX. A decisão ao julgar verificada a privação da utilização (sem factos, nem fundamento), definindo o período em que a mesma, na sua tese decorreria (desde a prolação da decisão), aprecia questões que extravasam o pedido e os factos provados (quanto à privação da utilização) o que constitui um erro na decisão da matéria de facto por indevida consideração de factos não alegados e sem que as Rés sobre eles se pronunciassem no âmbito do princípio do contraditório, bem como,
LXI. Vício de nulidade, nos termos do disposto no art.º 615.º, n.º 1, al c) do CPC;
ACRESCE QUE,
LXII. Não se aplica nos autos o regime da responsabilidade pré-contratual – art.º 227.º do CC, atendendo a que os contratos de aquisição de cada uma das fracções foram concluídos;
LXIII. Mesmo que fosse aplicável, que não é, a responsabilidade por culpa
in contrahendo
limita-se ao dano da confiança, dano que não determinaria a substituição do monta autos; Acresce que,
LXIV. Inexiste qualquer actuação culposa, mesmo negligente, das Rés – mesmo considerando 17 dos factos provados “As RR disseram aos condóminos da A., antes da venda/aquisição das frações, que o elevador monta autos seria novo ou remodelado ….,, atendendo a que o monta autos foi remodelado – 15, 19 e 22 dos factos provados. Por outro lado
LXV. Não se encontra nos autos qualquer facto articulado pelo Autor, que demonstre ter havido violação do dever de informação;
AINDA SEM PRESCINDIR,
LXVI. Não estão preenchidos os pressupostos da responsabilidade contratual; Desde logo,
LXVII. As Rés não celebraram qualquer contrato com o Autor condomínio,
LXVIII. Nem da factualidade provada resulta a ilicitude da actuação das Rés, que cumpriram integralmente a prestação principal - os contratos de compra e venda celebrados com os compradores das fracções que compõem o edifício em causa nos autos;
LXIX. Está demonstrado nos autos que o monta autos foi reabilitado na sequência da avaliação feita pela Kone, que esta procedeu aos trabalhos no monta autos
o qual ficou em pleno funcionamento e condições de segurança – 19 e 22 dos factos provados,
LXX. E que as Rés até prestaram alguma informação - 17 dos factos provados;
LXXI. Está provada a execução da prestação contratual pelas Rés, que se materializou na celebração dos contratos de compra e venda;
XXII. Mesmo que a prestação tivesse sido cumprida de forma defeituosa, o que não se aceita, aplicar-se-ia o regime da venda de produtos defeituosos (que na sentença é referido
en passant
), designadamente o direito de exigir a reparação da coisa ou, se for necessário e esta tiver natureza fungível, a sua substituição – art.º 914.º do CC.
LXXIII. Sucede que o pedido e a causa de pedir assenta na substituição do monta autos, isto é, o facto jurídico que funciona como causa de pedir são os contratos de compra e venda entre a 1.ª Ré e cada um dos compradores das fracções autónomas, quadro que afasta
in limine
a aplicação regime da venda de produtos defeituosos;
LXXIV. O Autor, condomínio, é absolutamente estranho a tais contratos, pelo que só aos compradores, mesmo relativamente às partes comuns do edifício, cabe o direito de exigir do vendedor a reparação dos defeitos da coisa vendida, como resulta dos art.º 914.°, 916.° e 917.° do CC;
LXXV. Ora, os compradores adquiriram as respectivas fracções e não peticionaram às Rés a reparação do monta autos ou intentaram qualquer acção de
resolução dos contratos de compra e venda (não resulta dos autos o contrário), devendo presumir-se que se certificaram de todas as condições negociais;
LXXVI. As Rés actuaram com manifesta boa-fé, de “acordo com os padrões da diligência, da honestidade e da lealdade (boa-fé) exigíveis do homem no comércio jurídico” – Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. IV e Mota Pinto, in “Teoria Geral do Direito Civil” – 4ª edição – Maio de 2005, por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto – pág. 124,
LXXVII. E a perícia assim o comprova, ao concluir que não é necessária a modernização integral do equipamento ou a sua substituição (2.8.9.1 do Relatório Pericial, pág. 44); Por isso,
LXXVIII. Não se verifica, objectivamente, terem sido praticados pelas Rés quaisquer factos ilícitos;
ACRESCE QUE,
LXXIX. A 1/7/2019 foi celebrado contrato de manutenção entre o Autor e Kone, data a partir da qual a primeira passou a assumir toda a responsabilidade pelo funcionamento do monta autos - 22 dos factos provados;
LXXX. Na certeza de que nada obstava a que mantivesse o monta autos do edifício reabilitado, desde que se garantisse a segurança dos utilizadores (como é referido na sentença, aqui bem);
LXXXI. O monta autos contém todos os dispositivos para garantir a segurança dos utilizadores – 15 dos factos provados;
LXXXII. Neste estrito contexto, todas as situações ocorridas com o monta autos posteriormente à venda das fracções e à celebração do contrato de manutenção – 1/7/2019, assinaladas em 10, 11 e 12 dos factos provados, não podem ser imputadas às Rés porque não são da sua responsabilidade, antes da empresa de manutenção (no caso a Kone) que anteriormente à celebração do contrato procedeu à avaliação do estado do monta autos e conclui ser viável a sua reabilitação – 19 dos factos provados;
LXXXIII. Ao celebrar o contrato de manutenção, a Kone co-assumiu, com os proprietários (art.º 3.º do DL 302/2002) o dever de vigiar o bom funcionamento do monta autos, e além de ser responsável por violação dos normativos legais, caber-lhe-ia, por efeito do estipulado, responder também, nos termos do art.º 493.º, n.º 1, do CC, por eventuais danos que decorressem da utilização do mesmo, e não às Rés;
LXXXIV. A omissão dos deveres de manutenção contratualmente assumidos pela Kone, não é da responsabilidade das Rés;
POSTO ISTO,
LXXXV. A douta sentença assenta em pressupostos factuais errados ou inexistentes, em errada interpretação da matéria factual e do direito;
LXXXVI. O Tribunal recorrido, com o devido respeito que lhe é devido e merecido, procedeu a uma análise sumária, substantiva e meramente literal da questão que lhe foi submetida, negligenciou matéria factual, fez interpretações inadequadas e/ou conclusivas, alheou-se dos institutos jurídicos pertinentes para a boa decisão da causa, encontrando-se, assim, irremediavelmente afectada.”
Rematou as suas conclusões nos seguintes termos:
“Deve, por isso, proferir-se Acórdão que, na procedência do recurso, julgue a acção totalmente improcedente e, em consequência, absolva as Rés do pedido”
O autor e ora apelado apresentou contra-alegações, que culminou nas seguintes conclusões:
“
a)
A M. Douta Sentença não merece quaisquer reparos ou censura e nessa medida deve ser mantida;
b)
Foi a mesma proferida de uma forma sistematizada e esclarecida, tanto na fundamentação de facto como de direito, focando os aspetos fulcrais e necessários para a boa decisão da causa e, nessa medida, não são tecidos quaisquer reparos ou censura;
c)
E, nesta medida, improcedem totalmente as alegações da Recorrente, nomeadamente, quando alega que a decisão do tribunal a quo “padece de erro na apreciação da matéria de facto, inexata interpretação, aplicação da lei e orientações jurisprudenciais violando, designadamente, o disposto nos art.º 227.º, 493.º, 798.º, 913.º, 914.º, 916.º e 917.º do Código Civil, art.º 607.º e 615.º, n.º 1 al. d) do CPC, o DL 302/2002, de 28/12 e Lei 65/2013, de 27/8, o que constitui erro de julgamento.”
d)
Ficou demonstrado nas presentes contra-alegações, através dos depoimentos das testemunhas, prestados em audiência de julgamento e aqui transcritos, bem como da prova documental constante dos Autos, incluindo o Articulado Superveniente; que as razões de facto e de direito invocadas pela Recorrente para justificar a existência de erro na apreciação da matéria de facto, inexata interpretação, aplicação da lei e orientações jurisprudenciais, com o devido e salvado respeito, não podem ser atendidas;
e)
As testemunhas, condóminos com escrituras de compra e venda realizadas no mês de julho do ano de 2019, e residentes desde então no prédio, foram perentórias em afirmar que sabiam que o prédio era remodelado/reabilitado, salientando, contudo, que ”o prédio lhes havia sido vendido como sendo reabilitado, mas como novo, nada fazendo crer que algo se mantivesse como usado e obsoleto no edifício que, embora reabilitado, se apresentava como novo”;
f)
Sempre foi convicção dos aquirentes das frações autónomas que estavam a comprar tudo “como novo” e, nessa medida, o produto (o edifício) foi-lhes vendido, pelas RR - vendedora, promotora e construtora;
g)
O Monta Autos apresenta-se como coisa móvel mas que a lei considera como parte permanente e integrante do prédio e, nessa medida, enquadra-se no regime jurídico do art.º 1225.º do Código Civil;
h)
O Monta Autos começou desde logo, em setembro de 2019 a apresentar avarias, algumas das quais de gravidade, como testemunharam os condóminos que ficaram presos no ascensor com os seus veículos automóveis tendo, inclusivamente, havido, “queda do ascensor, com acionamento do Paraquedas”, por mais de uma vez;
i)
A perceção dos utilizadores do Monta Autos é a de que compraram velho e obsoleto por novo, e que apenas se aperceberam da verdadeira realidade do Monta Autos, do estado em que se encontrava, e que, nessa medida, tomaram consciência da gravidade da situação; quando passaram a residir no prédio e a utilizar o ascensor, (altura em que os problemas começaram a surgir).
j)
Ficou provado que, embora tecnicamente classificado como “seguro” no relatório pericial, trata-se de um equipamento que não inspira confiança aos seus utilizadores e, consequentemente, falta de segurança, na sua utilização, atendendo à falta de fiabilidade daquele mecanismo, que se traduz nas sucessivas, regulares e intermitentes avarias, que começaram a verificar-se pouco tempo após a realização das escrituras de compra e venda (em setembro de 2019), com ocorrências até à data de entrada dos presentes Autos em tribunal e, posteriormente, com sucessivos episódios que motivaram a apresentação de um Articulado Superveniente (em 2022).
k)
Ficou igualmente provado que, relativamente às avarias nas portas do Monta Autos, tantas vezes chamadas à colação pelas RR e em particular pela Recorrente, como constituindo a causa principal das avarias do Monta Autos, já constavam dos registos de avarias do ascensor, antes de a Kone passar a intervir no Monta Atos,
l)
Não podendo ser imputada qualquer responsabilidade ao Autor pelo estado em que as mesmas se encontram e muito menos podem os condóminos ser responsabilizados “por supostos atos de vandalismo” que, como se chegou a adiantar, teriam sido por estes praticados, nada tendo, contudo, ficado provado.
m)
O Monta Autos como parte comum do prédio é pertença de todos os condóminos proprietários e, nessa medida, todas as decisões que hajam de ser tomadas quanto ao mesmo devem-no ser pelo Condomínio, representado pela Administração do Condomínio, nos presentes autos Autor e Recorrido, tendo o mesmo toda a legitimidade processual para demandar e ser demandado relativamente a todas as questões que se prendem com o Monta Autos.
n)
Todas as decisões foram tomadas em Assembleias de Condóminos onde as RR. se faziam representar, conforme consta das Atas juntas aos autos, sendo que, a Ré XYZ, após a entrega do Condomínio em junho de 2019, ainda ficou como proprietária de duas Lojas.
o)
Pelas razões expostas no presente articulado também não estão em causa prazos prescricionais: as escrituras de compra e venda foram celebradas em julho de 2019, a entrega das partes comuns ocorreu na Assembleia de Condóminos realizada a 7 do mês de junho desse mesmo ano. Os presentes autos foram autuados a 12 de julho de 2020, verificando-se que, em ambas as situações, não ocorre qualquer prescrição de prazos.
p)
De relevância e sem prescindir, as passagens do Relatório Pericial transcrito nos artigos 71. e seguintes do presente articulado, onde são salientados aspetos técnicos que têm, necessariamente, de se ter em consideração para um correto ajuizamento do pleito, não devendo o Julgador se restringir apenas a entendimentos padronizados que conduzem sempre ao facto de, tecnicamente, não ser necessário um Monta Autos novo, pois este, embora pouco fiável, é seguro.”.
Por sua vez, também a interveniente acessória/assistente Kone apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência da impugnação da decisão sobre matéria de facto, no tocante aos pontos 20 e 21 dos factos provados
[6]
.
Admitido o recurso com efeito suspensivo (na sequência de caução prestada pela apelante)
[7]
, e remetidos os autos a este Tribunal, o relator proferiu despacho determinando a devolução destes ao Tribunal
a quo
, a fim de a Mmª Juíza
a quo
se pronunciar sobre a nulidade da sentença invocada pela apelante
[8]
.
Voltando os autos ao Tribunal
a quo
, foi proferido despacho, no qual a Mmª Juíza
a quo
refutou a nulidade invocada
[9]
.
Remetidos os autos de novo a este Tribunal, aqui recebidos, e nada obstando ao conhecimento do mérito do recurso, foram colhidos os vistos.
2. Objeto do recurso
Conforme resulta das disposições conjugadas dos art. 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do CPC, é pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso, seja quanto à pretensão dos recorrentes, seja quanto às questões de facto e de Direito que colocam
[10]
). Esta limitação dos poderes de cognição do Tribunal da Relação não se verifica em sede de qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. art. 5º n.º 3 do CPC).
Não obstante, excetuadas as questões de conhecimento oficioso, não pode este Tribunal conhecer de questões que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas
[11]
.
Assim sendo, as questões a apreciar e decidir são as seguintes:
-
A nulidade da sentença – Conclusões LV a LXI;
-
A impugnação da decisão sobre matéria de facto – Conclusões X a LIV;
-
Os invocados direitos à substituição do monta-autos e ao pagamento de uma avença para parqueamento dos automóveis dos condóminos, até que tal substituição se ache concretizada – Demais conclusões.
3. Fundamentação
3.1. Os factos
3.1.1. Factos provados
O Tribunal
a quo
considerou provados os seguintes factos:
1. A 1ªRé XYZ, Lda. tem por objeto a Compra e venda de bens imóveis. Promoção imobiliária, construção civil e obras públicas, atividades de engenharia e técnicas afins;
2. A 2ª Ré
B
, S.A. tem por objeto a construção e engenharia civil e empreitadas de obras públicas, compra e venda de bens imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim, comércio por grosso de têxteis, de louças em cerâmica e em vidro, de móveis para uso doméstico, carpetes, tapetes e artigos de iluminação;
3. A 1ª Ré adquiriu o imóvel sito na Avenida Marquês …, nº ….e …….ª e Av.ª Visconde … nr. ……, em Lisboa (denominado Edifício XYZ1), da freguesia das Avenidas Novas e do concelho de Lisboa, e procedeu à sua reabilitação urbana para depois o comercializar;
4. O imóvel não sendo novo foi estruturalmente reconstruído pela 2ª Ré que interveio como empreiteira de construção civil do imóvel;
5. Foi mantida toda a estrutura de betão armado e o revestimento das caxas de escadas, para que o projeto fosse qualificado como de reabilitação;
6. A Administração do prédio esteve a cargo da Ré XYZ, na qualidade de proprietária plena do imóvel, até à entrega do condomínio ocorrida 7/6/2019, com a realização da primeira Assembleia Geral Ordinária de Condóminos (Ata nº 1), e a nomeação da empresa X….. Unipessoal, Lda. (CoM Domínio) como entidade administradora do mesmo;
7. No prédio encontram-se instalados 3 ascensores, sendo dois de transporte de pessoas e um de transporte de veículos motorizados - automóveis (um Monta-Autos),
8. O contrato de manutenção dos três ascensores, datado de 1/7/2019, foi firmado entre o Autor e a interveniente Kone Portugal-Elevadores, Lda.;
9. O elevador monta autos existente no prédio foi colocado em serviço em 20/9/1989;
10. Desde que a reabilitação do prédio ocorreu, e as frações foram vendidas e o condomínio constituído, o elevador monta autos avariou mais vezes do que os elevadores usualmente avariam, com longos tempos de paragem, sendo a causa maioritariamente decorrente das portas as quais se encontram em estado de fim de vida e são de um modelo pouco fiável que já não são usadas em elevadores novos;
11. Foram registadas (no período em apreço nos autos) 15 avarias em 2019, das quais 3 foram por razões externas – queda de tensão no prédio, abuso, vandalismo); 20 avarias em 2020, das quais 2 foram por razões externas – abuso; 6 avarias em 2021, das quais 1 foi por razões externas – abuso; 4 avarias em 2022;
12. As avarias referentes a abuso ou vandalismo referem-se a embates nas portas;
13. Os períodos que o elevador não funcionou, esteve desligado, em manutenção ou reparação encontram-se melhor descritos a fls.400v a 402 dos autos e cujo teor se dá por integralmente reproduzido, sendo os tempos de paragem longos face ao usual nos elevadores;
14. A maior parte das peças do elevador não estão descontinuadas;
15. O elevador monta autos contém todos os dispositivos para garantir a segurança dos seus utilizadores, porém atento o modelo antigo e pouco fiável das portas, tem tendência a avariar;
16. Os condóminos moradores na parte habitacional não conseguem estacionar os veículos automóveis no parqueamento do prédio sem ser por via do monta-autos, não havendo outra forma de aceder ao mesmo;
17. As RR disseram aos condóminos da A., antes da venda/aquisição das frações, que o elevador monta autos seria novo ou remodelado como novo à semelhança do que sucedeu com todo o resto do prédio, nunca tendo sido afirmado que iriam manter o mesmo e trocar apenas uns botões, iluminação e teto de cabine;
18. A 2ª R. pediu à Kone um orçamento para colocação de dois elevadores novos e uma remodelação do monta autos, tendo a mesma orçado em €60.000;
19. A Kone procedeu à avaliação do estado do monta autos e concluiu ser viável a sua reabilitação;
20. A 2ª R não pediu à Kone a remodelação total do elevador monta autos, nem a reabilitação do mesmo, mas apenas uma remodelação que o deixasse a funcionar com o menor custo possível;
21. A remodelação efetuada do elevador monta autos consta descrita no orçamento e fls. 211, e consiste em colocação de 2 betoneiras, iluminação, botões, cortinas de luz e golas para a sua colocação, substituição dos retentores dos pistons do equipamento e reposição do óleo na cuba, reabilitação do tecto da cabine e afinações e testes, tendo esta orçado em €4.000;
22. A Kone procedeu aos trabalhos no monta autos descritos no orçamento e o monta autos ficou em pleno funcionamento e condições de segurança;
23. O elevador monta autos foi usado para transportar material durante a obra de requalificação do prédio tendo avariado diversas vezes;
24. Em fevereiro/março de 2019 devido a um curto-circuito causado pela obra realizada pelas RR, foi necessário substituir o quadro de comando o que só ficou concluído em Novembro de 2019 em virtude das peças estarem descontinuadas;
25. Em face da imobilização do monta autos a 2R entendeu pagar avenças aos condóminos para parquearem o veículo no exterior já que por causa desse atraso não podiam fazer;
26. As portas do monta autos apresentam marcas de batidas;
27. Com exceção da estrutura de betão armado e o revestimento das caixas de escadas tudo o mais foi construído de novo e o imóvel vendido “como novo” aos adquirentes que sabiam, porém, que o edifício era antigo e tinha sido reabilitado;
28. O elevador monta autos tinha contrato de manutenção válido e inspeção válida até fevereiro de 2023;
29. Por mais do que uma vez o elevador monta autos caiu com pessoas e viatura no seu interior, embora acionando o sistema de para quedas;
30. Diversos condóminos da A. receiam fazer uso do mesmo, e muitos foram os que deixaram de o usar por completo, em virtude das avarias e quedas..
3.1.2. Factos não provados
O Tribunal
a quo
considerou não provados os seguintes factos:
1. As RR disseram ao A. e seus condóminos que o elevador monta autos seria mantido, não era novo e seria objeto de remodelação;
2. As carrinhas de obra da 2R que usaram o monta autos para descarregar material excediam o peso máximo do mesmo;
3. As avarias do elevador monta autos decorrem das pancadas nas portas que os utilizadores dão no mesmo.
3.2. Os factos e o direito
3.2.1. Da nulidade da sentença
3.2.1.1. Considerações preliminares
Em jeito de introito à análise da nulidade invocada, justifica-se plenamente citar ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA, E LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA
[12]
:
“2. É verdadeiramente impressionante a frequência com que sede de recurso são invocadas nulidades da sentença ou de acórdãos, denotando o número significativo de situações em que o verdadeiro interesse da parte não é propriamente o de obter uma correta apreciação do mérito da causa, mas de “anular” a toda a força a sentença com que foi confrontada.
3. É claro que certas decisões poderão estar eivadas de nulidades, mas ainda assim seria bom que se interiorizasse que, atento o disposto no art. 655º nº 1, que regula os poderes da Relação no âmbito do recurso de apelação, a sua verificação não determina necessariamente a remessa dos autos ao tribunal de 1ª instância, antes implica a substituição imediata por parte da Relação, a não ser que alguma questão tenha sido considerada prejudicada e haja necessidade de recolher outros elementos. Mesmo quando as nulidades respeitam a acórdãos da Relação, a intervenção do Supremo também se faz, em regra, em regime de substituição, a não ser nas situações excluídas no nº 1 do art. 684º.
4. Acresce ainda uma frequente confusão entre nulidade da decisão e discordância quanto ao resultado, entre a falta de fundamentação e uma fundamentação insuficiente ou divergente da pretendida, ou mesmo entre a omissão de pronúncia (relativamente alguma questão ou pretensão) e a falta de resposta a algum argumento dos muitos que florescem nas alegações de recurso.
5. Porventura esta tendência encontrará a sua raiz num modelo processual em que o decurso do prazo para a interposição de recurso apenas iniciava depois de serem apreciados pelo tribunal
a quo
eventuais nulidades decisórias que eram autonomamente arguidas. Porém, há muito que foi ultrapassado esse quadro normativo, de modo que o prazo para interposição de recurso e apresentação de alegações apontada partir da notificação da sentença (art 638º nº 1) sem que haja a possibilidade de a parte dilatar (artificialmente) o exercício desse direito através da dedução de incidente de arguição de nulidade ou de reforma da sentença, questões que, quando surjam devem ser necessariamente integradas nas alegações de recurso, como claramente escreve nº 4. Seguro é que os resultados que se observam através da leitura dos acórdãos são reveladores da generalizada falta de consistência das nulidades que são frequentemente arguidas tendo como reflexo justificada a sua apreciação sumária que, na maior parte das vezes, é inteiramente merecida.”
Como bem apontam os citados autores, é realmente impressionante a circunstância de a grande maioria das arguições de nulidade da sentença se revelarem flagrantemente improcedentes e, mais do que isso, grosseiramente fundamentadas, demonstrando as mais das vezes profundo desconhecimento absoluta desconsideração do que há mais de setenta anos
[13]
constitui entendimento pacífico na doutrina e na jurisprudência acerca do correto âmbito de aplicação das normas que cominam a nulidade da sentença, sem que se denote, da parte dos recorrentes, qualquer esforço argumentativo no sentido de convencer o Tribunal de recurso das razões pelas quais arguem o apontado vício ao arrepio dos entendimentos dominantes na matéria.
Infelizmente, como veremos, o caso que nos ocupa constitui apenas mais um exemplo dessa postura.
3.2.1.2. O caso dos autos
3.2.1.2.1. Considerações gerais
Nos termos do disposto no artigo 615º, n.º 1, alínea d) do CPC, a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. Trata-se de um vício formal, em sentido lato, traduzido em
error in procedendo
ou erro de atividade que afeta a validade da sentença.
Esta nulidade configura, no fundo, uma violação do disposto no artigo 608º, nº 2, do mesmo Código, segundo o qual “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.”
Neste contexto, há que distinguir entre questões a apreciar e razões ou argumentos aduzidos pelas partes. Conforme já ensinava ALBERTO DOS REIS
[14]
, “São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão.”
Ou seja, a
omissão de pronúncia
circunscreve-se às questões/pretensões formuladas que o tribunal tenha o dever de apreciar e de que não haja conhecido, realidade distinta da invocação de um facto ou invocação de um argumento pela parte sobre os quais o tribunal não se tenha pronunciado.
Dito de outro modo: esta nulidade só ocorre quando não haja pronúncia sobre pontos fáctico-jurídicos estruturantes da posição das partes, nomeadamente os que se prendem com a causa de pedir, pedido e exceções, e não quando apenas se verifica a mera omissão da ponderação das “razões” ou dos “argumentos” invocados pelas partes para concluir sobre as questões suscitadas. Com efeito,
as questões a decidir não são os argumentos utilizada pelas partes em defesa dos seus pontos de vista fáctico-jurídicos, mas sim as concretas controvérsias centrais a dirimir
.
Do supra exposto flui que não constitui nulidade da sentença por omissão de pronúncia a circunstância de não se apreciar e fazer referência a cada um dos argumentos de facto e de direito que as partes invocam para sustentar a procedência ou improcedência da ação. Nas palavras precisas de MANUEL TOMÉ SOARES GOMES
[15]
“(…) já não integra o conceito de questão, para os efeitos em análise, as situações em que o juiz porventura deixe de apreciar algum ou alguns dos argumentos aduzidos pelas partes no âmbito das questões suscitadas. Neste caso, o que ocorrerá será, quando muito, o vício de fundamentação medíocre ou insuficiente, qualificado como erro de julgamento, traduzido portanto numa questão de mérito.”
Pode, pois, concluir-se que não há omissão de pronúncia quando a matéria, tida por omissa, ficou implícita ou tacitamente decidida no julgamento da matéria com ela relacionada, competindo ao tribunal decidir questões e não razões ou argumentos aduzidos pelas partes. O juiz não tem que analisar todos os argumentos invocados pelas partes, embora se ache vinculado a apreciar todas as questões que devem ser conhecidas, ponderando os argumentos na medida do necessário e suficiente.
Assim, incumbe ao juiz conhecer de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e todas as exceções de que oficiosamente deve conhecer, mas não tem que se pronunciar sobre os pedidos e questões cujo conhecimento esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outros/as (art. 608º, nº 2, do CPC).
O conhecimento de uma questão pode fazer-se tomando posição direta sobre ela, ou resultar da ponderação ou decisão de outra conexa que a envolve ou a exclui. Por isso, não ocorre nulidade da sentença por omissão de pronúncia quando nela não se conhece de questão cuja decisão se mostra prejudicada pela solução dada anteriormente a outra.
No que tange ao
excesso de pronúncia
(segunda parte da alínea d) do nº 1 do art. 615º), o mesmo ocorre quando o juiz se ocupa de questões que as partes não tenham suscitado. Também neste domínio valem as considerações acima expendidas a propósito da delimitação do conceito de
questões
.
Conforme se refere no
acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-12-2012 (João Bernardo), p. 469/11.8TJPRT.P1.S1
[16]
à luz do princípio do dispositivo, há excesso de pronúncia sempre que a causa do julgado não se identifique com a causa de pedir ou o julgado não coincida com o pedido, não podendo o julgador condenar, além do pedido, nem considerar a causa de pedir que não tenha sido invocada. Contudo, quando o tribunal, para decidir as questões suscitadas pelas partes, usar de razões ou fundamentos não invocados pelas mesmas, não está a conhecer de questão de que não deve conhecer ou a usar de excesso de pronúncia suscetível de integrar nulidade.
A discordância da parte relativamente à subsunção dos factos às normas jurídicas e/ou à decisão sobre a matéria de facto de modo algum configuram causa de nulidade da sentença.
Como se afere das considerações supra expostas, a doutrina e a jurisprudência têm entendido que a omissão ou excesso de pronúncia enquanto causas de nulidade da sentença têm por objeto
questões
a decidir na sentença, e não propriamente
factos
ou
argumentos jurídicos
.
Neste sentido, sublinhou o ac.
RL 23-04-2015 (Ondina Alves), p. 185/14.9TBRGR.L1-2
, que «questão a decidir não é a argumentação utilizada pelas partes em defesa dos seus pontos de vista fáctico-jurídicos, mas sim as concretas controvérsias centrais a dirimir e não os factos que para elas concorrem.
Apreciar e rebater cada um dos argumentos de facto ou de direito que as partes invocam com vista a obter a procedência ou a improcedência da ação, bem como a circunstância de lhes fazer, ou não, referência, não determina a nulidade da sentença por excesso ou omissão de pronúncia. (…)
Situação diversa da nulidade da sentença é a de saber se houve erro de julgamento, pois como se refere no Ac. do STJ de 21.05.2009 (Pº 692-A/2001.S1), (…) se a questão é abordada, mas existe uma divergência entre o afirmado e a verdade jurídica ou fáctica, há erro de julgamento, não “
error in procedendo
”».
Em sentido semelhante, decidiu, entre outros, e por mais recente, o ac.
RC 23-02-2016 (Carvalho Martins), p. 2316/12.4TBPBL.L1
, no qual se sublinhou que “só há omissão de pronúncia com vício de limite previsto na al. d) do nº1 do art. 668º do CPC (615º NCPC), quando o Tribunal incumpre quanto aos seus poderes e deveres de cognição o disposto no nº2 do art. 660º do mesmo diploma (608º NCPC)”.
Também o ac.
RG 16-11-2017 (José Flores), p. 833/15.3T8BGC.G1
, apontou em sentido idêntico, referindo que “não constitui nulidade da sentença por omissão de pronúncia a circunstância de não se apreciar e fazer referência a cada um dos argumentos de facto e de direito que as partes invocam tendo em vista obter a (im)procedência da ação.“
Não obstante, mais recentemente, esta mesma questão foi apreciada de modo algo diverso no ac.
RL 29-05-2018 (Luís Filipe Pires de Sousa), p. 19516/17.3YIPRT.L1-7
. Neste aresto, apreciava-se uma situação em que na sentença se considerou provado determinado facto não alegado pelas partes, e que o Tribunal recorrido qualificou como complementar ou acessório (art. 5º, nº 2, al. b) do CPC), sem que no decurso da audiência tenha informado as partes da possibilidade de considerar tal facto na sentença, e sem que tenha concedido aos litigantes a possibilidade de produzir prova.
Com efeito, no mencionado acórdão expôs–se o seguinte:
“da ata da audiência de julgamento não resulta que o Mmo. Juiz
a quo
tenha anunciado às partes a pretensão de ampliar a matéria de facto e, muito menos, que lhes tenha facultado a produção de prova, sendo certo que este Tribunal da Relação não tem acesso à gravação da audiência porque não ocorreu.
Nesta medida, não tendo sido observado o formalismo garantístico da alínea b) do nº2 do artigo 5º, a subsequente decisão do tribunal a quo de considerar tais factos na sentença consubstancia uma nulidade por excesso de pronúncia porquanto o tribunal conheceu de questões de que não podia, nessas circunstâncias, tomar conhecimento (Artigo 615º, nº1, alínea d), do Código de Processo Civil)”. Em sentido semelhante se havia igualmente pronunciado o ac.
RP 30-04-2015 (Aristides Rodrigues de Almeida), p. 5800/13.9TBMTS.P1
.
Quanto a nós, cremos que a nulidade decorrente de omissão ou excesso de pronúncia não tem por objeto factos, mas apenas as questões de direito a dirimir à luz da causa de pedir da ação ou da reconvenção, bem como as questões de direito que integram a defesa por exceção.
3.2.1.2.2. Apreciação
Tecidas estas considerações, regressemos ao caso dos autos.
A ora apelante sustentou que a sentença apelada padece do vício de excesso de pronúncia
[17]
, porquanto a condenação das rés a substituir o monta-autos do edifício do condomínio autor se fundou no regime da compra-e-venda de coisa defeituosa, sendo certo que “não foi articulado qualquer facto relativo à venda e/ou promessa de venda das respetivas fracções”, e porque a condenação relativa ao pagamento de avenças de estacionamento para os veículos dos condóminos “se estriba na privação da utilização do monta”, sendo certo que, em seu entender, “a privação de utilização e ou o período em que a mesma ocorreria não foi alegada dons autos nem resulta da matéria de facto provada, antes está demonstrado que o autor e condóminos não estão privados da sua utilização”.
A Mª Juíza
a quo
pronunciou-se sobre tal nulidade nos seguintes termos:
“Vêm as RR invocar nulidade de sentença por excesso de pronúncia por não ter sido articulado qualquer facto relativo à venda das frações, porém a sentença não condena as RR a pagar qualquer valor aos proprietários das frações mas sim à A., condomínio pelo que não se vê qualquer excesso de pronúncia nesse tocante.
Sustenta ainda um excesso de pronúncia por ter sido condenada a pagar uma avença desde a sentença até substituição do monta autos, quando pedido do A. foi uma privação pela utilização do monta autos.
Porém, salvo o devido respeito é exatamente esse o pedido formulado: “sejam as RR. condenadas, individual ou solidariamente, a pagar ao Autor a título de danos não patrimoniais, um valor a ser equitativamente estabelecido pelo Tribunal, nunca inferior a dez mil euros, e condenadas individual ou solidariamente, a, no decurso do tempo em que os condóminos venham a estar privados da utilização do Monta-Autos, a suportar os custos de parqueamento no exterior do edifício (por veiculo a estacionar), como o já fizeram até ao final do mês de março do ano corrente de 2020, no Parque de estacionamento …”.
O pedido de privação do uso encontra-se igualmente formulado nesta pretensão e intrinsecamente ligada ao pedido de pagamento de avença pedem expressamente o pagamento de uma avença pelo período de tempo em que estejam privados do monta autos.
Ora, dado que a decisão determina a substituição do monta autos por um novo, de imediato, desde a decisão que a A. fica privada o uso do monta autos e consequentemente como indemnização por essa privação de uso (decorrente da colocação de um novo) foi determinado o pagamento do parqueamento, o que corresponde ao pedido de indemnização pela privação do uso até à nova colocação. No momento da decisão, se a mesma fosse observada, existe o dever de substituição imediata do elevador o que gera a imediata privação do seu uso e em função da necessária substituição do elevador tem a A. o direito de ser indemnizada por essa privação de uso (pedido formulado).
Não se considerou que a A. está privada do elevador desde data alguma (esse sim seria um facto novo) mas sim o dever de substituição que gera essa privação.
Nessa medida, não houve excesso de pronúncia e o tribunal apenas decidiu o peticionado, improcedendo pois a referida nulidade.”
Apreciando, diremos que os dois segmentos do dispositivo a que a apelante e reportou na sustentação da nulidade invocada correspondem a pedidos efetivamente deduzidos na petição inicial, a saber, os enunciados sob os nº
s
1 e 5 do petitório, sendo certo que o pedido nº 5 refere expressamente a privação de uso.
Relativamente ao primeiro desses pedidos, na delimitação da causa de pedir o autor invocou, na petição inicial quer o regime da empreitada relativa a imóveis de longa duração, previsto no art. 1225º do CC
[18]
, quer o regime da compra-e-venda de coisa defeituosa
[19]
.
Assim sendo, e neste aspeto, não se descortina qualquer excesso de pronúncia.
Com efeito, e por um lado, ao conhecer do mérito do pedido enunciado sob o nº 1 do petitório, o Tribunal
a quo
se limitou a apreciar uma questão expressamente invocada pelo autor, à luz da causa de pedir por este prefigurada na petição inicial; sendo certo que os aspetos relativos ao correto enquadramento jurídico desta questão e ao substrato factual da decisão dizem respeito ao mérito desta, não configurando qualquer nulidade.
De outra banda, no que concerne à questão da privação do uso, também ela foi expressamente invocada na petição inicial, com esse mesmo enquadramento jurídico
[20]
, pelo que também aqui inexiste excesso de pronúncia. Também quanto a este aspeto cumpre reiterar que a eventual insuficiência da factualidade provada para sustentar a condenação das rés a suportar os custos de uma avença de parqueamento diz respeito ao mérito da causa, não configurando qualquer nulidade.
Termos em que se conclui que a sentença apelada não padece de nulidade por excesso de pronúncia.
3.2.2. Da impugnação da decisão sobre matéria de facto
3.2.2.1. Considerações gerais
Dispõe o art. 662º n.º 1 do CPC2013 que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou documento/s superveniente/s, impuserem decisão diversa.
Nos termos do art. 640º n.º 1 do mesmo código, quando seja impugnada a matéria de facto deve o recorrente especificar,
sob pena de rejeição
, os concretos factos que considera incorretamente julgados; os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
O n.º 2 do mesmo preceito concretiza que, quanto aos meios probatórios invocados incumbe ao recorrente,
sob pena de imediata rejeição
, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o recurso, podendo transcrever os excertos tidos por relevantes.
A lei impõe assim ao apelante específicos ónus de impugnação da decisão de facto, sendo o primeiro o ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto proferida, o qual implica a análise crítica da valoração da prova feita em primeira instância, tendo como ponto de partida a totalidade da prova produzida.
Sumariando todos os ónus impostos pelo citado preceito, ensina ABRANTES GERALDES
[21]
:
“(…) podemos sintetizar da seguinte forma o sistema que agora vigora sempre que o recurso de apelação envolva a impugnação da decisão sobre a
matéria de facto
:
a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os
concretos pontos de facto
que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso, e síntese nas conclusões;
b) Deve ainda
especificar
, na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos;
c) Relativamente aos pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em
provas gravadas
, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos;
d) (…)
e) O recorrente deixará expressa, na motivação
[22]
, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente;
f) (…).”
Nos termos do disposto no art. 640.º, n.º 2, al. b) do CPC, a inobservância deste ónus tem como consequência “a imediata rejeição do recurso na respetiva parte”.
Já quanto à
metodologia
e ao
critério decisório
, como ensina ANA LUÍSA GERALDES
[23]
, compete ao Tribunal da Relação apreciar a matéria de facto impugnada, fazendo sobre ela uma nova apreciação, um novo julgamento, após verificar a fundamentação do Tribunal
a quo
, os elementos e argumentos apresentados no recurso e a sua própria perceção perante a totalidade da prova produzida, continuando a ter presentes os princípios da
imediação
, da
oralidade
, da
concentração
e da
livre apreciação da prova
.
Isto sem esquecer que, como sublinhou o ac.
RG 15-12-2016 (Mª João Matos), p. 86/14.0T8AMR.G1
“o julgamento humano se guia por padrões de probabilidade e não de certeza absoluta”, pelo que “o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.
Por outras palavras, a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação quando o mesmo, depois de proceder à audição efectiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direcção diversa, e delimitam uma conclusão diferente daquela que vingou na 1ª Instância”.
Nessa medida como assinala ANA LUÍSA GERALDES
[24]
, “em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte”.
No fundo, como sublinha MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA
[25]
, o Tribunal da Relação deve nortear-se por “um critério de razoabilidade ou de aceitabilidade dessa decisão. Este critério conduz a confirmar a decisão recorrida, não apenas quando for indiscutível que a mesma é correcta, mas também quando aquela se situar numa margem de razoabilidade ou de aceitabilidade reconhecida pela Relação” ..
3.2.2.2. O caso dos autos
No caso em apreço a impugnação da decisão sobre matéria de facto incide sobre:
-
Os factos vertidos nos pontos 17, 20, e 21 do elenco de factos provados, que a apelante considera deverem considerar-se não provados;
-
Os factos vertidos no ponto 1 do elenco de factos não provados, que a apelante entende dever considerar-se provados;
O termos em que o fez permite formular um juízo globalmente positivo no que respeita à observância dos ónus de impugnação supra enunciados.
Nada obsta, por isso, à apreciação do mérito da impugnação da decisão sobre matéria de facto.
3.2.2.2.1. Pontos 17 dos factos provados e 1 dos factos não provados
O ponto 17 dos factos provados tem a seguinte redação:
“17. As RR disseram aos condóminos da A., antes da venda/aquisição das frações, que o elevador monta autos seria novo ou remodelado como novo à semelhança do que sucedeu com todo o resto do prédio, nunca tendo sido afirmado que iriam manter o mesmo e trocar apenas uns botões, iluminação e teto de cabine.”
Por sua vez, o ponto 1 dos factos não provados tem a seguinte redação:
“1. As RR disseram ao A. e seus condóminos que o elevador monta autos seria mantido, não era novo e seria objeto de remodelação”
O tribunal
a quo
justificou a sua convicção relativamente a este ponto de facto nos seguintes termos:
“C ….. refere que todos os condóminos quando foram ver a casa, assim como ela, antes de a comprar sabiam que o prédio era antigo mas tinha tudo sido remodelado. Estavam convencidos que o monta auto seria também novo, e por parte das RR disseram-lhes que a máquina seria nova mas não a estrutura. A ….., M …. e F ….. atestam igualmente tal facto. A M ….ainda lhe foi comunicado que estavam a analisar se ia ser colocado um novo ou um reabilitado, enquanto que a Y … (filho de F …..) atesta que lhe foi assegurado que o elevador monta autos seria novo. Ele próprio viu as portas antigas e pintadas e achou que seria tudo novo, tal qual o resto do prédio. O seu pai, morador no prédio, F ….., atesta que usou o monta autos antes da outorga do contrato promessa e foi-lhe assegurado que iam ser substituídas as portas, a cabine ficava mas ia ser arranjada e seria pois quase tudo novo, o que viu que não sucedeu.
Não convenceu o depoimento de R …..nem V ….. que atestam que sempre foi dito que os elevadores iam ser novos e o monta autos recuperado. Na verdade, as RR até podiam ter dito aos moradores que iam recuperar o monta-autos, como sustentam as testemunhas, mas não disseram o que na verdade fizeram no mesmo: um mero arranjo estético. Nada no mesmo foi mudado, nada foi renovado, tudo o que era antigo se manteve menos botões e estética do interior da cabine.
Se dúvidas existissem entre a versão dos vendedores/construtores que vendem um prédio como novo mas afirmam que iam manter um elevador com décadas porque o prédio era reabilitado e não novo, e os condóminos que compram um imóvel todo reabilitado, como se novo fosse, e afirmam que todos os equipamentos o seriam, sempre restaria, “para desempate”, o depoimento da gestora de condomínio. W ….. tem uma empresa de gestão de condomínio e assumiu a gestão ainda com a 1R. sendo que a A. a manteve. E também a ela foi dito que tudo seria colocado de novo. Porém parecia novo, segundo afirma, e só entrando na casa das máquinas é que se constatava que assim não era.
Ficou assim claro para o tribunal que aos moradores nunca as RR disseram que o elevador monta autos, com várias décadas de vida, seria todo mantido com um mero pequeno arranjo estético, mas sim que seria ou renovado ou colocado um novo, sendo que as duas opções seriam equivalentes, mas nenhuma sucedeu. Não era necessário o depoimento de P ….., J …. ou L……, da Kone, que afirmam que foi pedido pelas RR um orçamento de remodelação para gastar o mínimo possível no elevador monta autos. Basta atentar nos valores em causa e avaliar com senso comum. O orçamento para colocação de 2 elevadores novos e remodelação do monta autos orçou em €60.000, fls. 210v e 211. Porém, o elevador monta autos teve a “remodelação” descrita no orçamento: colocação de botões, luzes e tecto, no valor de €4.000.
Não é crível que algum adulto pudesse acreditar que a descrição do que se ia fazer no elevador (repete-se, botões, tecto e iluminação de cabine e pouco mais) no valor de €4.000, para um elevador que tinha mais de trinta anos pudesse equivaler a uma total remodelação. Como aliás se viu. Pois pouco depois foi necessário substituir o quadro de comandos e só esse orçou em €12.400 (fls. 244v).
R ….. e V ….. quiseram passar a ideia em juízo que pediram uma remodelação do elevador e a Kone deu o orçamento de €4.000 para o efeito e que confiaram nisso pois eles é que eram os especialistas. Mas a verdade é que as próprias testemunhas afirmaram que outra empresa como a Thyssen negou efetuar a remodelação e apenas aceitava a substituição integral. Ou seja, as RR sabiam que o elevador era antigo e carecia de cuidados e que não seria uma mera substituição de botões, pintura de cabine e iluminação da mesma que tornaria uma máquina antiga em nova ou remodelada. Não é preciso ser-se especialista. Não é preciso entender de elevadores. Não é preciso conhecimentos especiais de nenhuma área para se ver que um elevador monta autos com essa idade não fica totalmente remodelado, como novo (como todo o resto do prédio) com uma operação estética de €4.000 quando outras empresas do ramo até entendem ser difícil ou onerosa a remodelação (aliada à manutenção).
Note-se que à Kone interessava, no âmbito da sua atividade comercial, vender um novo monta autos, ou remodelar de acordo com o pedido pelo cliente mas naturalmente se a remodelação fosse maior mais esta lucrava com isso. Não sucedeu. As RR não pediram uma remodelação total, nem mesmo parcial: pediram uma ligeira remodelação, novos botões, novo aspeto da cabine, com luzes e tecto, mas nada de novo. O aparelho com décadas assim permaneceu inalterado nas máquinas e em tudo o que era essencial, incluindo as portas. A Kone disse que era viável a sua remodelação e funcionamento em segurança, e a perícia assim o provou. Viável é, porém, sujeito a avarias constantes decorrentes da idade e modelo.
E assim se deu por provado tais factos em 17 a 22 dos factos provados e a consequente versão oposta em 1 dos factos não provados.”
A apelante discorda deste entendimento, sustentando que os factos vertidos no citado ponto 17 devem considerar-se não provados e, na inversa, os vertidos no ponto 1 do elenco de factos não provados devem considerar-se provados.
Para tanto invocou os depoimentos das testemunhas F ……, R …. e V …., tendo transcrito os seguintes trechos:
Testemunha F …..
“Meritíssima Juiz – 00:02:52
Eu vou contextualizar para ajudar a pergunta da Senhora Doutora. Portanto, nós temos por assente o número de avarias em cada ano, porque há uma Perícia que nos fez esse trabalho, felizmente. O que a Senhora Doutora quer saber, creio eu, é se, dentro das avarias, que é uma coisa genérica, se, porventura, ele caiu, e o que é que é esta queda… aqui, já nos foi relatado, mas o que é que significa a queda, e se tem ideia de ter ficado imobilizado com veículos lá dentro. Portanto, não se preocupe com as avarias, em geral, digamos assim, porque estão documentadas e sabemos que ocorreram e quantas ocorreram, mas sim estas situações.
F ……[00:05:00]
Também, se me permite, tenho conhecimento de que… aliás, não é bem “tenho conhecimento”, há um facto que… que me deixou muito triste, em termos da… da empresa que nos vendeu o apartamento, porque a condição que eu fiz, que eu (impercetível…) de compra do equipamento… portanto, do apartamento, era que tivesse garagem e que o meu carro coubesse na garagem, que eu conseguisse meter o carro na garagem. Portanto, isto foi antes da assinatura da Promessa de Compra e Venda, portanto, cerca de dois mil e dezoito… dois mil e dezassete, dois mil e dezoito. E ficou pendente a formalização dessas… dessa Promessa de Compra e Venda, precisamente do facto de eu ir com o… o carro lá para… para estacionar. Portanto, foi combinado uma data porque o… o empreiteiro… a empresa tinha… [00:06:00] utilizava o Monta Autos para carregar os material de construção, porque a… o depósito de construção era nas caves, e então tinham que desviar… portanto, arrumar as coisas e desviar e isso… portanto, foi combinado para um dia, resolverem esse problema, e, bem dito, melhor feito, como se costuma dizer, passe a expressão, eu fui tentar meter o carro no estacionamento que me diziam que correspondia ao apartamento que eu pretendia, o que consegui, foi feito, e disse
“sim, senhor”, então, formalizei a Promessa de Compra e Venda. Depois…
Meritíssima Juiz
Mas, desculpe, isso foi antes, portanto, de fazer a escritura ou o contrato-promessa?
F …..
A promessa… O contrato…
Meritíssima Juiz
O contrato-promessa.
F
O contrato-promessa.
Meritíssima Juiz
E usou, então, esse Monta Autos?
F
Usei esse Monta Autos.
Meritíssima Juiz
O que é que disseram, em concreto?
F ……
Disseram-me que os… [00:07:00] portanto, todo o sistema eletrónico ia ser substituído. Aliás, nós tivemos até… quando foi da escritura, ele não estava a funcionar e atribuíram as culpas à questão do quadro-central do… do Monta Autos, que ainda não tinha sido substituído, mas que iria ser na semana a seguir.
(…)
F …..
E questionei então, mas e a escritura, como é? Nós não fazemos a escritura sem termos a Monta Autos a funcionar. “Ai, mas só falta vir o quadro, que tem havido uns problemas
Meritíssima Juiz
Quando é que se apercebeu que não era novo?
F ……
Quando lá entrei. Ó, Doutora…
Meritíssima Juiz
Então, assim que se entra, vê-se que não é novo? Vê-se… Via-se logo?
F …..
Vê-se… uns escorrimentos de óleo dos motores das portas, ao longo das ombreiras das portas, veem-se as manchas de óleo no chão, devido aos vazamentos, [00:09:00] porque as bombas que fazem a abertura da porta são bombas, portanto, antigas, e, assim, já não há peças, não há bombas para substituir e, então, têm que mandar fazer os êmbolos e mandar fazer as peças.
F ……
Só digo que, [00:17:00] para quem comprou um apartamento há três anos, é difícil admitir que tenhamos, da parte da empresa que faz o… a manutenção do equipamento, que nos diga que o… não há peças, já foi completamente desativado aquele sistema, e que não têm peças de substituição, portanto, não podemos fazer nada. E isso é triste, quando nos venderam… nos venderam um… portanto, um apartamento com estacionamento e em que nos garantiram, as múltiplas vezes que os contactámos, nos garantiram que o problema ficava resolvido rapidamente e que iria… e que iriam ser substituídas as peças e que iria ser arranjado. O certo é que
estamos nisto, hoje em dia. Portanto, é triste.”
Testemunha R ……
“Advogado – 00:06:07
Portanto esses potenciais compradores se fossem compradores que tenham aparecido depois do ano de 2018 já tinham o projeto aprovado, já sabiam exatamente o que é que iam fazer ao edifício, correto?
R …..
Certo.
Advogado
Muito bem. Agora, em relação ao monta-autos, quem é que fez a avaliação que garantia que o monta-autos deveria manter-se tal como está? Ou, se quiser a pergunta de outra forma, não havia necessidade de o substituir? Alguém ou alguma empresa fez essa avaliação ou foi a
B
que o fez?
R …..
Posso responder como diretor da obra.
R …….
Em 2017 foram iniciadas para os elevadores as consultas, quer para os dois elevadores novos, quer para a reabilitação do monta-autos.
Meritíssima Juiz
Desculpe, quando diz isso significa que iniciaram consultas para, logo definiram, foram vocês a empresa que definiram que queriam novos para os dois? E queriam orçamentos para reabilitação do antigo?
R ............ – 00:07:19
Há duas situações, para os elevadores de pessoas foi definido à cabeça…
Meritíssima Juiz
Quem? A empresa?
R …….
A empresa, que eram elevadores novos para as pessoas. O monta-autos era um monta-autos que já era, já estava em funcionamento, era um pressuposto para o projeto que era em reabilitação manter o monta-autos em uso, em utilização.
Meritíssima Juiz
Ah, então foram vocês que definiram que queriam… que queriam novos no das pessoas e que queriam recuperar e reabilitar o do monta-autos e então é que iniciaram essa consulta, é isso?
R …..
Elevadores novos não havia dúvidas para as pessoas eram elevadores novos e a intenção era reabilitar tendo em conta que o monta-autos estava em funcionamento era reabilitar o monta-autos.
(…)
R ……. – 00:08:51
Ou seja, e nesse sentido iniciámos as consultas com as empresas de especialidade e a Kone foi uma das empresas obviamente consultadas, em que pedimos para além da cotação para os elevadores novos de pessoas, pedimos que fizessem a avaliação técnica sobre o monta-autos e o estado do monta-autos e qual seria a possibilidade e o orçamento para o poder reabilitar e pôr em funcionamento para os clientes.
Advogado – 00:08:59
E, portanto, o que é que obtiveram? Ou seja, qual dessas consultas, foi feita alguma vistoria por parte da Kone?
R ……
Da Kone sim, na sua proposta que se propôs foi essa a garantia, tiveram acesso ao edifício, tiveram acesso ao monta-autos e puderam verificar o estado do monta-auto.
Advogado
Muito bem. Verificaram o estado e o que é que vos transmitiam?
R ….
Que era possível reabilitar, ou seja, o orçamento, a proposta deles foi clara que era possível reabilitar.
Advogado
Reabilitar.
(…)
Meritíssima Juiz
Porque tudo tem um custo oh Senhor R, naturalmente que se pedem uma reabilitação e se ela é possível porque ele anda, tem um custo inferior a colocarem um novo.
R …..– 00:10:56
Doutora isso sou perentório em dizer que se houvesse um se, um se que fosse, por parte da Kone ou de outra entidade, que pusesse em cima da mesa que poderíamos ter problemas futuros com o monta-autos a decisão da empresa nunca seria tomada nesse caminho, nunca.
Meritíssima Juiz
Não, problemas futuros não é de segurança, problemas de avarias por ser antigo.
R ……
Avarias ou de segurança, eu não estou a dizer segurança.
Meritíssima Juiz
Sim.
R ……..
Estou a dizer em funcionamento porque nós nunca iríamos pôr quando pergunto aos construtores, nunca poderíamos propor ou executar uma obra que sabíamos de antemão que pudesse dar problemas a clientes, nunca. Se houvesse um se, ou uma ressalva que fosse na proposta ou no… no…
Meritíssima Juiz – 00:11:32
Isso foi por escrito?
R ……
A proposta…
Meritíssima Juiz
Tudo isso que nos está a dizer? Esses orçamentos e essa proposta, essa aceitação?
R ……
O pedido foi feito por escrito e o orçamento da Kone foi enviado por escrito.
Meritíssima Juiz
Está nos autos esse… essa aceitação?
Advogado
Está a adjudicação. Está a adjudicação senhora doutora.
Meritíssima Juiz A adjudicação?
Advogado
Está a adjudicação e há um email junto pela plena interveniente.
Meritíssima Juiz
Foi pela… pela…”
Advogado
Não houve nenhuma? Zero.
R ……
Zero.
Advogado – 00:27:06
Para além dos 4000 euros da reabilitação que faz parte do orçamento, a
B
teve mais encargos com reparações até à data, março de 2020 que é o limite, teve ou não teve encargos assumidos em relação à reparação dos monta-autos?
R …………
Senhor doutor desde essa ocorrência de março de 2019 e substituíram e colocaram-nos o tal quadro de comandos provisório, houve a partir daí dessa data uma série de orçamentos que a Kone foi reparando e foi apresentando e como condicionantes para a utilização do monta-autos, e eles passaram por um conjunto de foto células, que já deviam estar previstas na proposta inicial, a retificação das centrais hidráulicas das portas e também salvo com as (impercetível…) das portas, foram orçamentos que foram apresentando, e da
B
sempre sob protesto, mas nunca condicionando, ou seja foi adjudicando, sempre com protesto, ou seja a reivindicar o orçamento mas a aceitar de maneira a não condicionar o funcionamento do…
Advogado
E foram pagando tudo isso, inclusivamente também já aqui ouvimos, foram pagas as avenças dos parques.
R ………
Isso já foi, já foi num período após as escrituras e tendo em conta o histórico das avarias, foi assumido pela empresa tendo em conta o compromisso…
Advogado
Muito bem.
R ……..
Que existia com os clientes assumir esse encargo para mais uma vez não penalizar os clientes perante a situação do monta-autos.
Advogado – 00:28:59
Muito bem. O senhor tem ideia do valor desses encargos todos, ou do valor que a
B
gastou com as avenças, com as reparações do lado de comandos, de pistons e todas as outras reparações?
R …………
Não sei o preciso, mas em termos de avenças vão dar aos 13 mil euros.
Meritíssima Juiz
Quanto é que disse, desculpe?
R ……………..
13 mil, peço desculpa, e em termos destas reparações pontuais das fotocélulas acho que foram 2 mil e tal euros.
Advogado
Quadro comandos.
Meritíssima Juiz
O quadro comandos não foi…
R ............
Os quatro comandos, 12.400.
Meritíssima Juiz
Doze mil e tal. Sim.
R ………..
12.400.
Advogado
Muito bem.
R …………..
Depois foram as centrais, a retificação da central hidráulica três mil e tal. E também com as roçadeiras mais três mil e tal.
Advogado
Portanto se vos tivessem dito por exemplo em dezembro de 2017 ou antes, que era preciso substituir umas portas que na altura teriam um valor de 30 mil euros, qual seria a opção da
B
?
R ............ – 00:30:05
Eu vou dizer que parece-me óbvio, não é? Se soubéssemos que havia estes encargos até totalizando e obrigatoriamente e se houvesse mais uma vez, se houvesse um se a nossa opção nunca seria permitido aceder, era resolvê-la
Advogado
Porque a Kone sempre garantiu…
R ............
Sim. (impercetível…)
(…)
Advogado – 00:39:02
E a Kone nas conversas que teve com o senhor engenheiro nunca lhe propôs um equipamento novo?
R ............
Volto a referir, se um dia colocassem qualquer se a decisão estava tomada.
Advogado
Muito bem.
R ............
Ou seja, nunca pôs uma ressalva ao equipamento que lá estava. Nunca.
(…)
Advogado – 00:40:01
Há bocado também disse que a Kone achou possível uma modernização parcial do equipamento.
R ............
Desculpe?
Advogado
Aliviava-lhe uma modernização, a Kone entendeu por possível e viável uma modernização parcial deste monta autos.
R ............
Parcial não. Era remodelação do…
Meritíssima Juiz
Respondeu à proposta de remodelação nos termos que constam aqui.
R ............
Não foi parcial, não foi parcial.
Meritíssima Juiz
Está aqui, o pedido é remodelação. É o pedido.
R ............
Sim, sim.
Meritíssima Juiz
E foi isso que fizeram, não percebo o parcial e não parcial também.
(…)
Meritíssima Juiz – 00:48:52
A minha preocupação é saber o que é que disseram aos clientes que vos compraram casas quanto às portas do elevador? Que sabiam que já tinha problemas. Porque uma coisa é dizer, ah nós passámos para a empresa dos elevadores, certo? E podemos andar no ping-pong de saber quem tem culpa.
R ............
Certo.
Meritíssima Juiz
O que eu quero é saber, os senhores sabiam que havia problemas com as portas. A Kone sabia que havia problemas com as portas e o que é que foi dito aos clientes antes de comprarem, porque em abril não tinham comprado, atenção que há um problema com as portas, mas está garantido. Disseram?
R ............
Mas na altura das escrituras para nós o problema das portas estava resolvido.
Meritíssima Juiz – 00:48:59
Ah estava? Então a pergunta é o que é que foi feito entre abril, quando fizeram este acrescento e julho no momento em que fizeram as escrituras?
R ............
A intervenção que a Kone…
Meritíssima Juiz
Qual? A intervenção não foi só a substituição do comando? O que é que fizeram às portas? Porque repare, as portas são as mesmas. Segundo a perícia as portas continuam a ter o mesmo problema que há não sei quantos mil anos atrás quando existiam.
R ............
A porta tem uma série de componentes, não é?
Meritíssima Juiz
Certo, e o que é que fizeram? Sabe?
R ............
Não sei lhe especificar.
Meritíssima Juiz – 00:49:26
Não sabe.
R ............
O que é que fizeram.
Meritíssima Juiz
Muito bem.
R ............
O que eu tinha que ter era da parte da Kone a garantia que efetivamente foi intervencionado e foi reparado. E quando se punha um elevador em funcionamento a garantia era sempre estar totalmente reparado.
Meritíssima Juiz
Porque não é só dizer, eu contratei uma empresa de elevadoras e livro-me da responsabilidade. É a responsabilidade pré-contratual e dever de informação que existe a quem compra uma casa dizer, atenção que temos esta elevador que não é nova, tem problemas de portas, mas temos um contrato de manutenção que vai garantir isto. E eu se calhar, posso eu compradora posso querer, com esta informação posso querer ou não aquela casa. Porque se a garagem é uma questão importante, e para quem mora em Lisboa é, e para quem mora em Lisboa é ou pode ser, isto se calhar era uma coisa a considerar. E, portanto, nada disto foi dito. Em abril já sabiam. Mas não disseram, pois não?
R ............ – 00:50:15
Senhora doutora, mas a intervenção foi feita. A nossa, o nosso objetivo e era essa a nossa…
(…)
Advogado – 00:51:38
E bem como em janeiro de 2020 creio que há aqui documentos vastos e estou a ver se os consigo evitar procurar para evitar perder porque eu creio que logo a seguir, depois em 2019 há esta reparação que já disse que foi concluído entre outubro e novembro de 2019. Eu também lhe questiono se efetivamente não foi nesta fase que a
B
contratou e pagou uma avença mensal com parque de estacionamento nas imediações do edifício?
R ............
Foi outubro de 2019. Sim.
Advogado
Foi assim que se verificou? Ou seja, quando começaram a vender os imóveis e não tinham garagem para ir?
R ............
Não. A escrituras iniciaram-se em início de julho.
V ………….
De 2019.
R ............
De 2019 e as avarias foram constantes nós fomos obrigados ou sentimo-nos na obrigação de salvaguardar o lugar de estacionamento para os clientes.
Advogado – 00:52:04
Não, mas eu questiono, a avaria do… a avaria…
R ............
As avarias. As avarias.
Advogado
A avaria adveniente da corrente elétrica lá da fase que o eletricista mexeu e estourou com o monta-autos ocorreu antes de 18 de abril de 2019, antes disso.
R ............
Foi em março.
Advogado
Terá sido em março.
R ............
Março.
Testemunhas V …. e R ............
“Advogado – 00:22:51
Bom, aqui chegados vamos agora falar um pouco sobre esta questão. Nós ouvimos aqui hoje que a
B
vendeu os apartamentos com um monta-autos que foi reabilitado. E que as pessoas não sabiam, pensaram que era um monta-autos novo. A questão que eu coloco é esta, os clientes tinham ou não tinham conhecimento de que um edifício era um edifício reabilitado? Primeiro ponto.
V ……
Sim tinham. Até porque…
Meritíssima Juiz
Todos tinham. É escusado dizer, todos sabiam.
Meritíssima Juiz
E disseram que ia ser novo?
R ............
Não. Isso é impossível.
Meritíssima Juiz
Os senhores tiveram contacto com eles antes da proposta, antes de eles assinarem a reserva, antes de reservarem o apartamento?
R ............
Sim, o contrato era connosco.
Meritíssima Juiz – 00:24:06
Era convosco, passava por vós. E já na altura diziam, diziam olhe vamos remodelar e vamos remodelar por 4.000 euros? Porque foi isto o valor que adjudicaram. Vamos remodelar esta coisa antiga que aqui temos por 4.000 euros. Foi isto que lhes disseram?
R ............ – 00:24:08
Não, nunca dissemos aquele valor.
Meritíssima Juiz
Mas disseram que iam remodelar.
R ............
Sim.
Meritíssima Juiz
Não disseram nunca que vão deixá-lo como novo?
R ............
Não era um elemento que a gente tinha que dizer.
Meritíssima Juiz
Não, é que eles dizem, a questão é mesmo esta, é que eles dizem que foi-lhes dito, foi-lhes incutida a ideia que ia ser tudo novo.
R ............
Não.
Meritíssima Juiz
Então disseram que iam remodelar.
R ............
Foi assim, porque o pressuposto do projeto era remodelar, porque não podíamos ter dito nunca…
Meritíssima Juiz
Mas repare, uma coisa é o projeto, outra coisa é aquilo que é vendido ao cliente.
R ............
Senhora doutora não. Primeiramente não, nunca foi dito que era novo. Sempre foi dito que era para reabilitar (impercetível…)
Meritíssima Juiz
E a senhora também não?
V ………
Não, não, porque nós de início sabíamos que monta-autos ia ser reabilitado.
Meritíssima Juiz
Pronto, eu agora percebo, repare eu agora percebo que os senhores sabiam. A minha questão é o que disseram, o que é que transmitiram.
V ……………
Não, nunca foi transmitido que o…
Meritíssima Juiz
Disseram que iam remodelar?
R ............
Remodelar.
V ………….
Que o monta-autos não ia ser novo.
Meritíssima Juiz
Muito bem. Senhor doutor faça o favor.
Advogado – 00:24:59
Essa questão do contrato não é por pressuposto dizerem aos clientes qual é o valor pelo qual vão comprar os elevadores ou vão remodelar monta-autos, não é? Não faz parte da negociação do contrato, pois não?
R ............
Aliás ao nível da promotora são elementos gerados que eu não tenho conhecimento.
A própria promotora em contato com o cliente. Isso é da entidade construtora.
Advogado
Olhe não houve um cliente vosso que antes sequer de fazer o contrato promessa foi ao edifício?
V ………
Foi. Isso era um condicionante para… as grades eram uma condicionante para a compra do apartamento.
Advogado
Muito bem. E esse cliente quem foi?
V …………..
Quem foi? Foi o Doutor F.
Advogado
Muito bem. Ele foi lá antes de ter feito sequer o contrato promessa de compra e venda?
V …………
Sim, sim. Sim.
Advogado
E era visível, era visível o monta-autos como está, correto?
V ………….
Correto?
Advogado
Muito bem. Depois o monta-autos foi reabilitado. Vocês entregaram os apartamentos. E a pergunta é, depois de reabilitado era também visível que o monta-autos tinha sido reabilitado?
R ............
Era.
Advogado
Era visível. É verdade, segundo o que ouvimos aqui, que as portas tinham sido pintadas?
R ............
As portas foram pintadas.
Advogado . 00:26:15
Muito bem. Portanto era visível que não era novo.
R ............
Sim, as betoneiras eram novas.
Advogado
Mas as portas eram pintadas ou seja…
R ............
Estava intrínseco também a reparação do sistema de retenção das portas, também estava previstamente na proposta.
Advogado
Muito bem.
R ............
Portanto a reabilitação.
Advogado
Mas era visível já depois, muito depois das escrituras feitas que era um monta-autos reabilitado?
R ............
Reabilitado sim.
Advogado
Alguma vez algum vosso cliente pediu alguma indeminização, fez alguma reclamação pelo facto de mais tarde, só mais tarde ter percebido que o monta-autos foi reabilitado e não era novo?
V ……………
Não.”
O autor pugnou pela manutenção destes pontos de facto, invocando em abono de tal entendimento os depoimentos das testemunhas A ………., M …………., Y ………, O ………, e W ………, transcrevendo os seguintes trechos:
Testemunhas A ………., M ………., Y ……….. .
“[00:07:09] Mma. Juiz
[….]
Começamos, então, com o Sr. A. O seu nome completo, por favor?
[00:08:15] A ………: A ……….
[00:08:22] Mma. Juiz: E onde é que mora?
[00:08:24] A…. : Avenida Marquês ………, 6.º andar.
[00:08:29] Mma. Juiz: Sexto andar. Portanto, é o senhor que mora no sexto esquerdo, é isso?
[00:08:32] A ………: Exatamente.
[00:08:33] Mma. Juiz: Muito bem. Ó Sr. A, pergunto-lhe: mora desde o início do prédio?
[00:08:37] A ………: Sim, desde as primeiras escrituras, sim.
[00:08:40] Mma. Juiz: Em ’99, não é? Foi em Julho...
[00:08:42] A ………: 2019.
[00:08:42] Mma. Juiz: Exatamente, em 2019. Em Julho de 2019?
[00:08:46] A ……….: Exatamente.
[00:08:47] Mma. Juiz: Muito bem. E ainda mora lá?
[00:08:49] A ……….: Hum, hum.”
(…)
“[00:10:02] Mma. Juiz: Muito bem. Faça favor de se sentar.
E agora a senhora. O seu nome completo, por favor?
[00:10:07] M ………: M …………...
[00:10:19] Mma. Juiz: E onde é que reside?
[00:10:20] M ……….: Na Av. Marquês de …., nº……….., no 1.º andar.
[00:10:23] Mma. Juiz: Primeiro andar. Pergunto-lhe também: mora desde quando, lá?
[00:10:26] M …………: Desde o início.
[00:10:27] Mma. Juiz: Desde Julho também?
[00:10:28] M ………..: [Impercetível, vozes simultâneas] escrituras, sim.
[00:10:29] Mma. Juiz: E até agora, não é assim?
[00:10:30] M ……….: Até agora, sim.”
(…)
“E agora, o Sr. Y. O seu nome completo?
[00:10:52] Y ……….: Y …………..
[00:10:59] Mma. Juiz: E onde é que reside?
[00:11:00] Y ………..: Rua …..
[00:11:03] Mma. Juiz: Em Lisboa?
[00:11:04] Y …………: … Lisboa.
[00:11:06] Mma. Juiz: Muito bem. Ao que sei, Sr. Y, o senhor tem o seu pai, Sr. F, a morar no prédio?
[00:11:14] Y: Correto.
[00:11:14] Mma. Juiz: Em que piso é que o seu pai mora?
[00:11:16] Y: Quinto piso.
[00:11:19] Mma. Juiz: E com que frequência é que o senhor vai ao prédio?
[00:11:24] Y: Depende, mas uma vez por mês, pode ser de quinze em quinze dias...
[00:11:29] Mma. Juiz: Certo. Vai visitar o seu pai com alguma regularidade ao longo destes anos todos, não é assim?
[00:11:34] Y: Sim.
[00:11:34] Mma. Juiz: O seu pai está a viver também desde o início?
[00:11:37] Y: Fizeram escritura também desde o início do prédio.
[00:11:39] Mma. Juiz: E foi para lá viver?
[00:11:39] Y: Sim, sim.
[00:11:40] Mma. Juiz: Portanto, desde Julho de 2019, mais ou menos, não é?
[00:11:42] Y: Sim, desde Julho de 2019.
[00:11:43] Mma. Juiz: Muito bem. Portanto, acompanha a situação, apesar de não viver lá...
[00:11:48] Y: Certo.
[00:11:48] Mma. Juiz: ... acompanha, na medida em que, quando vai visitar o seu pai, apercebe-se disso?
[00:11:50] Y: Até inclusivamente, já cheguei a estar... a ficar lá cerca de três semanas, um mês, portanto... [inaudível].
[….]”
(…)
“[00:12:58] Mandatária do Autor: [….]. Vamos começar, então, pela primeira Testemunha, pelo Sr. A…... Diz que está no prédio desde o início. Portanto, quando foi para lá habitar, ainda decorriam obras no edifício?
[00:13:21] A….. : O monta-autos, especificamente, não estava em funcionamento quando eu fui lá... e as... e eu estou aqui a pensar se as garagens estavam pintadas já, não tenho a certeza...
[00:13:33] Mma. Juiz: Podem... podem...”
(…)
Sra. D. M, tem alguma ideia?
[00:13:36] M ……….: Eu te... eu concordo com o A. O monta-auto estava ainda a ser preparado, mas as garagens estavam operacionais. Era a única questão que havia, era a do monta-autos. O resto estava tudo operacional.
[00:13:50] Mma. Juiz: Portanto, estava a ser preparado para ser usado? É a ideia que tem, não é?
[00:13:54] A …………: Foi-me dito que não estava... [A]. Foi-me dito que não estava em funcionamento, e, portanto, a dar resposta do prédio, estava tudo pronto, o monta-autos não estava em funcionamento, e estava à espera...
00:14:10] Mandatária do Autor: Quando compraram o apartamento, ficaram... o edifício, em si, foi restaurado. O restauro foi feito com... Como é que foi feito?
[00:14:23] Y ……..: Foi reabilitado.
[00:14:24] Mandatária do Autor: Reabilitado. Essa reabilitação implicou... Antes, era um edifício de habitação?
[00:14:29] Y ………: De escritórios, penso eu.
[00:14:31] Mandatária do Autor: E, portanto...
[00:14:32] M …………: Eu posso esclarecer aqui, porque eu tenho isso bem presente – M – porque, inclusive até à data de hoje, continuamos todos a receber cartas para as empresas que estavam no edifício. Portanto, o que é que acontece? Aquilo era um prédio que estava ocupado maioritariamente por empresas, por escritórios. E quando, pelo menos, a nossa família, que morava na zona, tomou conhecimento deste projeto, foi-nos apresentado como um prédio que iria ser todo descascado na sua... no seu interior, e que iria ser remodelado ou reabilitado para acomodar habitações de T-1 a T-2. A nossa família, no nosso caso concreto, somos nove pessoas. Eu tenho sete filhos e, portanto, fizemos uma proposta, na altura, à construtora, e ficámos com o primeiro andar. Portanto, aquilo foi tudo acomodado à nossa... à nossa família. Portanto, é um prédio que a estrutura, em si, estava já lá, o monta-autos em concreto, que é o que aqui interessa, também lá estava.
Foi-nos dito é que iria ser tudo remodelado e tudo novo... portanto...
[00:15:40] Mandatária do Autor: Mas uma coisa, ó Sra. D. M...
[00:15:41] M …………….: Sim.
[00:15:41] Mandatária do Autor: ... uma coisa é ser remodelado, outra coisa é ser novo. Ficaram com a ideia de que iam renovar os elevadores, renovar, torná-los operacionais...
São três. Nós já sabemos agora que há dois que foram mesmo novos. Certo? Pronto.
[00:15:56] M ………….: Exato, e que nos foi transmitido...
[00:15:57] Mma. Juiz: Mas a ideia com que ficaram foi que o monta-autos ia ser renovado ou ia ser colocado de novo, D. M?
[00:16:04] M ………..: M. Respondo muito concretamente: foi-nos dito que a ideia era ser um novo, mas que ainda estavam a ponderar.
[00:16:13] Mandatária do Autor: E, Sr. A, tem alguma ideia do que é que disseram sobre monta-autos? Se é que disseram.
[00:16:17] A …………: Sim. O timing, na altura, foi-me dito que seria tudo novo... Portanto, não me foi dito se era... eu, a ver o resto do edifício, portanto, o que eu consegui ver, quando visitei o edifício e antes de comprar o edifício, foi o edifício que aí está. A estrutura foi mantida. Tudo o resto, os revestimentos, os elevadores onde eu andei para ir ver o apartamento, onde eu fui, todo o apartamento onde eu fui, portanto, tudo era novo, não há... não há...
[00:16:51] Mma. Juiz: Incluindo o monta-autos?
[00:16:53] A…..: O monta-auto, na altura, a resposta que me foi... portanto, eu perguntei como é que era a questão do monta-autos e foi-me dito “Será tudo novo”. Pronto.
[00:17:01] Mma. Juiz: Só uma questão, porque o monta-autos era a única forma de conseguirem estacionar, certo? Não há outra forma de estacionarem...
[00:17:06] T – Não.
[00:17:06] Mma. Juiz: ... sem ser pelo monta-autos, não é isso?
[00:17:08] A ………: Correto.
[00:17:08] M …………: Correto.
[00:17:08] Mma. Juiz: Certo.
[00:17:10] A……: Tínhamos acesso às garagens [impercetível, vozes simultâneas].
[00:17:12] Mma. Juiz: E, portanto, Sr. A, não tem dúvidas que o monta-autos lhe disseram que ia ser colocado um novo?
[00:17:15] A ……………: A mim, inicialmente, não... Não, não.
[00:17:17] Mma. Juiz: O Sr. Y tem alguma ideia do que é que disseram ao seu pai, ou se falaram disso?
[00:17:19] Y ……………: Tenho, tenho ideia, porque, curiosamente, nós... quando os meus pais falaram, pela primeira vez, da aquisição desta... deste apartamento, e eu fui ver com eles e perceber bem a casa e o prédio, e foi assim um bocadinho logo assim à primeira uma... uma das questões que eu reparei, porque, anteriormente, tinham adquirido uma casa... Uma das questões que os meus pais diziam: “Não compres um... um apartamento num prédio com monta-autos”. E depois eu brinquei com eles, assim: “Ah, então vocês... vão vocês comprar”, portanto... E, entretanto, chegámos ao prédio e eu reparei que o monta-autos era um monta-autos antigo, portanto... basta uma pessoa olhar e...
[00:17:59] Mma. Juiz: É visível?
[00:18:03] Y ………: É visível. Tinha sido pintado, mas é visível...
[00:18:04] Mma. Juiz: Certo.
[00:18:05] Y …….: ... que... que é antigo, ao que me responderam: “Ah, estão ainda as obras a decorrer, a terminar”, mas que... aquilo que eles me transmitiram é que ia ser um monta-autos novo. Portanto, eu “OK”, e depois...
[00:18:18] Mma. Juiz: Novo ou que iam remodelar e ficar como novo?
[00:18:20] Y …….: Eu fiquei com a ideia que era... que era um monta-autos novo. Portanto, que iria ser uma estrutura nova, tal como o resto do prédio, tal como já mencionado aqui, os... todas as estruturas que uma pessoa olha para o prédio de fora...
[00:18:30] Mma. Juiz: E quem é que lhe disse isso?
[00:18:31] Y ………: ... ficava um prédio todo novo.
[00:18:32] Mma. Juiz: Ó Sr. Y, quem é que lhe disse isso?
[00:18:33] Y ............: Como, desculpe?
[00:18:34] Mma. Juiz: Quem é que lhe disse isso?
[00:18:36] Y ............: Os meus pais. Portanto, eu contactei sempre com os meus pais... e lembro-me de haver uma senhora que acompanhava...
[00:18:44] M : M. Eng.ª V…..
[00:18:46] Mma. Juiz: Era a Eng.ª V…. que vos acompanhava? E a Engª V….. era da empreiteira, ou era da promotora? Era de uma das empresas, não é? Não sabem qual. Claro. Muito bem.
[00:19:07] A...: Eu trabalho na... Portanto, sou arquiteto, trabalho com edifícios, e, portanto, já assisti a, por exemplo, em reabilitações, o uso de, digamos, pavimentos ou revestimentos serem reutilizados, ou apenas recuperados... nunca vi, na minha parte de prática profissional, mas pronto, nunca assisti à reutilização de coisas mecânicas, de equipamento. Lembro-me de quando vi, pela primeira vez, depois de o monta-autos estar pronto para ser usado, ver as portas de monta-autos e ver as portas pintadas apenas, de achar que era estranho...
[00:19:55] Mma. Juiz: Ah... Ou seja, apercebeu-se que, afinal, não era um novo?
[00:19:59] A...: Exatamente.
[00:19:59] Mma. Juiz: Era o antigo...
[00:20:02] A...: Pintado.
[00:20:03] Mma. Juiz: ... com uma cara lavada.
[00:20:04] A...: Ainda assim, assumi, porque não me passou pela cabeça que pudesse ser de outra forma, que a caixa do elevador...
[00:20:13] Mma. Juiz: Já percebi.
[00:20:13] A...: ... poderia ser uma caixa antiga, portanto, é a parte metálica, não teve que se fazer a desmontagem da caixa [impercetível], mas a mecânica que está por trás, tal como, por exemplo, toda a parte elétrica visível, era nova. Pronto...
[00:20:29] Mma. Juiz: Ou seja, viu partes novas, não é? E viram as portas só pintadas. E assumiu que era tudo novo, menos aquelas portas?
[00:20:37] A...: Não, portanto, eu já me surpreendi pelo facto de ver elementos velhos... ou melhor, antigos, recuperados. Ainda assim, na minha compreensão de uma obra de reabilitação, assumi que, tal como a betoneira que lá está, que é nova, que tudo o que está por trás da caixa metálica...
[00:21:01] Mma. Juiz: Isso.
[00:21:01] A...: ... seria uma coisa com condições, portanto, funcionais, de segurança, etc e tal, atuais, não...
[00:21:11] Mma. Juiz: Muito bem.
[00:21:11] A...: ... e não... o edifício será dos anos ’70, ’80.
[00:21:14] Mma. Juiz: Foi essa a convicção com que ficaram os senhores também, não é? Muito bem.
Testemunha O
“00:00:02] Mma. Juiz: A identificação. Diga-me o seu nome completo, por favor.
[00:00:06] O: O…….
[00:00:45] Mma. Juiz: E onde é que o senhor mora?
[00:00:46] O: Na Av. Marquês …, …, ….º andar.
[00:00:51] Mma. Juiz: E desde quando é que mora lá?
[00:00:53] O: Desde Agosto de 2019.
(…)
[00:02:23] Mandatária do Autor: [….]
Sr. O….., disse-nos que está no Condomínio desde Agosto de 2019.
[00:02:30] O: Sim senhora.
[00:02:30] Mandatária do Autor: Está, ou fez a escritura nessa altura, como é que isso...?
[00:02:33] O: A escritura foi antes. Eu mudei-me para o prédio em Agosto de 2019.
[00:02:38] Mandatária do Autor: 2019. O senhor, suponho que tenha carro, tem automóvel?
[00:02:46] O: É, não apenas tenho carros, moto, como tenho cinco vagas de garagem no prédio.
[00:02:53] Mandatária do Autor: O senhor, quando foi para residir para o prédio, começou logo a utilizar o monta-autos?
[00:03:03] O: Senhora, sim...
[00:03:07] Mandatária do Autor: Começou a utilizar logo?
[00:03:09] O: Sim.
[00:03:11] Mandatária do Autor: E o senhor tinha a perceção de que o monta-autos era um elevador para carros com aquele aspeto, com aquelas características?
[00:03:26] O: É, chamou-me à atenção que, quando eu comprei o apartamento, e quando eu comentei do prédio para alguns amigos, que resolveram também comprar unidades naquele prédio, foi muito claro, explícito, como o sol, de que as negociações todas foram feitas diretamente com o representante da empresa. Foi a XYZ, foi a
B
, com esse grupo. Não houve corretor, portanto, não houve ninguém que pudesse fantasiar, algum terceiro que pudesse fantasiar a realidade. De forma muito clara, foi oferecido um prédio novo. Um prédio novo, é novo. Não é com um elevador de automóveis, velho. Tanto é, que os elevadores das pessoas são novos.
[00:04:38] Mma. Juiz: Espere. Deixe-me interromper, desculpe, para atalhar, para irmos ao que interessa. O prédio é novo, quer dizer que é construído de raiz. É isso? Isso é um prédio novo. Um prédio remodelado, ou reabilitado, são coisas diferentes. Outra coisa é uma remodelação como nova, que é o que eles dizem. Com tudo novo. E outra ainda, é uma reabilitação, nos termos lá da legislação que beneficiava uma série de isenções, em que vos asseguram determinadas coisas novas, ou tudo novo. Qual é a situação? O prédio era novo?
[00:05:13] O: Senhora… o que eu posso lhe dizer, como forma clara, objetiva, e da forma que tem que ser, que é a verdade, a forma de venda foi: “Estamos vendendo um prédio novo”.
[00:05:29] Mma. Juiz: Certo. Foi isso que disseram, é isso?
[00:05:31] O: Sim senhora.
[00:05:33] Mma. Juiz: E o senhor apercebeu-se que era um prédio novo, ou nem se apercebeu?
[00:05:37] O: Eu entendi que era um prédio novo.
[00:05:40] Mma. Juiz: E não o conhecia antes, não viu…?
[00:05:42] O: Não senhora, não morava em Lisboa.
[00:05:44] Mma. Juiz: Certo, certo, certo.
[00:05:45] O: Eu cheguei no prédio, estava em… em…
[00:05:52] Mma. Juiz: Muito bem. Portanto, anunciaram um prédio novo, e foi isso que o senhor acreditou, que era um prédio novo?
[00:05:58] O: Sim senhora.
[00:05:59] Mma. Juiz: E o que é que constatou? Era tudo novo?
[00:06:03] O: A meu ver, era tudo novo, porque eles estavam construindo tudo. O que eu percebi, é que estavam a… a estrutura de concreto, estava pronta. Foi quando eu vi. Antes, eu não vi, eu não sei.
[00:06:20] Mma. Juiz: Certo.
[00:06:22] O: Eu vi um prédio com a estrutura pronta, e foi quando eu comprei.
[00:06:32] Mandatária do Autor: E viu o monta-autos, nessa altura?
[00:06:36] O: É... Eu não vi o monta-autos, porque eu fui à garagem pelas escadas. Provável... bom, a sua pergunta foi: “Viu o monta-autos?”. Não.
[00:06:48] j – No momento em que foi comprar, não viu? Não viu os elevadores, não viu nada?
[00:06:52] O: Não. E não tinha... e os elevadores tinham sido comprados, mas não estavam disponíveis para utilização.
[00:07:01] Mma. Juiz: Foi o que lhe disseram?
[00:07:03] O: Sim senhora.
[00:07:03] Mandatária do Autor: E disseram-lhe que tinham sido comprados todos, ou…
[00:07:06] O: Elevadores… Não, os elevadores não estão funcionando. Eles não estão funcionando, se não o pedreiro vai usar, vai trabalhar o elevador. O meu andar, são os dois últimos andares. Todas as vezes, eu ia de escadas.
[00:07:27] Mma. Juiz: Porque os elevadores não estavam a funcionar, porque…?
[00:07:30] O: Os elevadores não estão funcionando, e vamos de escadas.
[00:07:33] Mma. Juiz: Não, mas não explicaram porque é que não estavam a funcionar?
[00:07:37] O: No meu entendimento, era para não ter uso indevido dos elevadores, ou seja, para não usarem para material de obra, ou coisa parecida.
[00:07:46] Mandatária do Autor: Ah, porque ainda estavam a acabar a obra, é isso?
[00:07:48] O: Sim senhora.
[00:07:49] Mandatária do Autor: Ah, já percebi. Isso foi em que altura, sabe-me dizer?
[00:07:52] O: Acredito que em 2018, senhora.
[00:07:56] Mandatária do Autor: Finais de 2018, é isso?
[00:07:57] O: Durante o ano de 2018.
[00:07:59] Mandatária do Autor: Não sabe é quando?
[00:08:01] O: Se é Janeiro ou Fevereiro, mas durante o ano de 2018.
[00:08:06] Mma. Juiz: Então, mas o senhor não comprou em Agosto? Ou em Agosto foi quando foi para lá viver?
[00:08:11] O: Ah, conforme a pergunta da senhora Advogada. Eu me informei. Eu mudei-me para o prédio em Agosto de 2019. Ela perguntou também: “Foi quando o senhor tirou a escritura?”. “Não, a escritura foi antes.”
[00:08:27] Mma. Juiz: Mas foi antes? Foi nesta altura? É o que eu estou a perguntar. Foi...
[00:08:30] O: A escritura foi na data que a construtora determinou. Não fui eu que determinei.
[00:08:36] Mandatária do Autor: Lembra-se do dia, não?
[00:08:38] O: Não senhora, mas, se foi algo relevante…
[00:08:41] Mma. Juiz: Mas deixe-me só tentar perceber. Nesta altura disto que está a relatar, já tinha feito a escritura, certo?
[00:08:48] O: Por favor, faça a pergunta novamente.
[00:08:50] Mma. Juiz: Ou seja, isto que aqui relatou, de que tinha que ir... Assim que viu o prédio, que era tudo novo, que antes não conhecia, que viu os elevadores, que antes ainda não funcionavam, suposto que era para transportar material de obra, isto tudo foi logo no momento em que fez escritura?
[00:09:04] O: Não senhora.
[00:09:05] Mma. Juiz: Foi antes da escritura?
[00:09:06] O: Foi antes da escritura, senhora.
[00:09:07] Mma. Juiz: Portanto, ainda viu o prédio…
[00:09:08] O: Foi feito um contrato, que aqui chama CPL, alguma coisa.
[00:09:13] Mma. Juiz: Contrato-promessa, é isso?
[00:09:14] O: É, foi feito o contrato e, nesse contrato, determinava que em uma data que estivesse a licença pronta, seria feita a escritura. Entre o contrato de compra e venda e a escritura, eu tive acesso ao prédio, e…
[00:09:35] Mma. Juiz: E foi lá umas quantas vezes, tem ideia?
[00:09:38] O: Eu não morava aqui, eu lhe digo que fui, pelo menos, umas três, quatro vezes.
[00:09:41] Mma. Juiz: Certo.
[00:09:42] O: Em nenhuma das três, quatro vezes, eu tive acesso ao monta-autos, e nem ao elevador porque estava...
[00:09:50] Mma. Juiz: Quando diz “Não tive acesso”, é porque nem o viu?
[00:09:53] O: Sim senhora.
[00:09:53] Mma. Juiz: Certo.
[00:09:54] O: Agora, me permita: o facto de eu não o ter visto, não quer dizer que eu não acredite que seja, ao se tratar de uma construtora que fez obras importantes na Ilha da Madeira, queria demonstrar em Lisboa a sua capacidade construtiva, fosse fazer um prédio em que um dos elevadores fosse de quarenta anos. E sendo que dois elevadores sejam novos. E a… o que foi, “É um prédio novo”, e sempre com representantes da empresa. Não foi com o corretor, não foram terceiros.”
Testemunha W……
“[00:00:16] Mma. Juiz: A senhora, que creio que trabalha para a empresa de gestão de condomínios?
[00:00:18] Administradora do Condomínio: É. Sou sócia-gerente.
[00:00:19] Mma. Juiz: Como é que se chama a empresa?
[00:00:21] Administradora do Condomínio: X…… Unipessoal. Com a marca registada “Malaínhos”.
[00:00:28] Mma. Juiz: Bom, é a empresa que faz a gestão deste Condomínio, certo?
[00:00:30] Administradora do Condomínio: Certo.
[00:00:30] Administradora do Condomínio: Desde quando?
[00:00:32] Administradora do Condomínio: Desde a constituição, em 2019. Junho.
[00:00:39] Mma. Juiz: Junho de 2019?
[00:00:39] Administradora do Condomínio: Sim.
[00:00:40] Mma. Juiz: Antes disso, não conhecia o prédio?
[00:00:42] Administradora do Condomínio: Não, não, não.
[00:00:43] Mma. Juiz: Não conhecia os vendedores, não tinha nenhuma ligação a este imóvel?
[00:00:49] Administradora do Condomínio: Não.
[00:00:49] Mma. Juiz: Portanto, foi chamada para gerir o Condomínio, já pelos condóminos e não pelo construtor?
[00:00:55] Administradora do Condomínio: Não, não, pelo construtor.
[00:00:55] Mma. Juiz: Ah, pelo construtor ainda? Começou a gestão pelo construtor, e depois passou, e os condóminos mantiveram a sua gestão, é isso?
[00:01:02] Administradora do Condomínio: Exatamente, sim.
[00:02:16] Administradora do Condomínio: O que eu posso acrescentar, acho eu, não sei se é um acrescento ou não, não sei o que é que já foi aqui falado, mas, basicamente, eu própria, quando recebi o Condomínio das mãos da
B
, tive uma reunião com a Dra. E…., na altura, para receber o Condomínio, nunca me foi informado que o monta-autos era velho, não era novo...
[00:02:35] Mma. Juiz: Vamos começar, então, por aí. Quando assumiu a gestão, o que é que lhe disse... quando assumiu a gestão do Condomínio, os outros elevadores, sem ser o monta-autos, funcionavam?
[00:02:47] Administradora do Condomínio: Funcionavam.
[00:02:48] Mma. Juiz: Já funcionavam, já estavam operacionais?
[00:02:50] Administradora do Condomínio: Sim.
[00:02:50] Mma. Juiz: Porque houve um período em que eles não estiveram, portanto, não apanhou esse período?
[00:02:52] Administradora do Condomínio: Não, não apanhei. Quando eu recebi o Condomínio, a única coisa que me foi dita, nunca me foi dito que era velho, foi que o monta-autos estava desligado porque, durante o período de obra, umas semanas antes, tinha havido um pico de corrente, que tinha queimado o quadro de comandos do elevador. E que estavam a aguardar que a Kone fizesse a entrega desse quadro de comandos.
[00:03:13] Mma. Juiz: Muito bem.
[00:03:15] Administradora do Condomínio: Eu nem coloquei em questão absolutamente nada, há azares que acontecem numa obra.
[00:03:21] Mma. Juiz: Certo. Nunca lhe disseram algo sobre se o elevador era novo ou se era velho? Se era remodelado ou se era... nada?
[00:03:26] Administradora do Condomínio: Não. Nada. Sempre me disseram que o... que o... sempre me disseram que o prédio era completamente remodelado, completamente novo. Isso sim, foi o que sempre me disseram.
[00:03:34] Mma. Juiz: Todo o prédio?
[00:03:36] Administradora do Condomínio: Tudo, tudo. Elevadores, tudo.
[00:03:38] Mma. Juiz: Certo.
[00:03:39] Administradora do Condomínio: OK?
[00:03:39] Mma. Juiz: E depois, quando é que constatou que o monta-autos não era novo?
[00:03:41] Administradora do Condomínio: Eu só... eu só que não é novo numa... numa conversa com um condómino, já uns meses depois, em que estávamos com um dilema com a situação de o... de o quadro de comandos ainda não ter chegado, ainda não ter sido substituído o que iria ser nosso, porque a Kone emprestou um quadro deles, e é nessa altura que o condómino Dr. F ............... em que ele me diz: “W ……, já foi lá abaixo e já viu? Mesmo à casa das máquinas, porque aquilo é velho, aquilo não é como os elevadores, não é novo, não foi colocado de novo quando fizeram a reconstrução do...”
[00:04:21] Mma. Juiz: Mas já tinha notado o monta-autos, ou já o tinha visto, antes de ser chamada?
[00:04:24] Administradora do Condomínio: Não, não, não.
[00:04:25] Mma. Juiz: Não tinha visto?
[00:04:25] Administradora do Condomínio: Não.
[00:04:39] Mma. Juiz: Portanto, a pessoa aí é que se apercebeu que foi... e foi lá ver e apercebeu-se que ele, de facto, não era novo?
[00:04:42] Administradora do Condomínio: Só quem entrava... só quem entrava na casa das máquinas é que tinha essa ideia, porque...
[00:04:47] Mma. Juiz: Ah, porque entrando dentro do monta-autos não se nota?
[00:04:49] Administradora do Condomínio: Não, ele levou um makeup... uma makeup toda nova. Ele ti... entrava-se lá dentro e ele estava todo pintadinho de fresco, apesar de não trabalhar, de estar desligado... por isso é que o Dr. F ............, na altura, me deu a indicação, “W ….., vá ver a casa das máquinas”. E aí sim, é um choque.
[00:05:08] Mma. Juiz: Portanto, de outra forma, não se dava por isso?
[00:05:10] Administradora do Condomínio: Não se dava por isso. E é preciso também saber um bocadinho de elevadores, quer dizer, aquilo estava com tantos óleos e isso, que percebia-se logo que não era uma coisa nova.
(…)
[00:05:18] Mma. Juiz: Olhe, e nunca perguntou à empresa: “Então, mas o prédio é todo novo e tem aqui um elevador que não é novo, o monta-autos?”? Quando é que esta questão foi levantada?
[00:05:29] Administradora do Condomínio: Quando nós levantámos a questão à empre... à
B
, o que nos foi transmitido na altura é que houve a intenção, a determinada altura do processo, de colocar um novo, até tinham recebido orçamentos e tudo, por parte da Kone...
[00:05:43] Mma. Juiz: Eles disseram isso?
[00:05:44] Administradora do Condomínio: Sim. Houve essa intenção. Havia um orçamento por parte da Kone na... na altura, mas que depois, em conversa com os técnicos, com os responsáveis da Kone, que acabaram por fazer só a parte de... eu chamo-lhe makeup, desculpem, não é nada ofensivo...
[00:06:00] Mma. Juiz: Sim, era a remodelação do aspeto, não é?
[00:06:02] Administradora do Condomínio: Sim.
[00:06:02] Mma. Juiz: Disseram o que lhe disseram, quando confrontou os construtores, foi que a intenção era pôr um novo, mas que não era necessário?
[00:06:12] Administradora do Condomínio: Sim. Mas que depois, em contacto com os técnicos, que acharam que não era necessário. A única dificuldade que isto traz para mim, enquanto administração única, atenção, traz para nós enquanto administração do Condomínio, é que é um elevador, primeiro, que está avariado diariamente; segundo, não se consegue peças para o monta-autos com a facilidade com que se consegue para um elevador novo, ou seja, uma fechadura, para aquele monta-autos chega a demorar três meses a chegar, que foi o que aconteceu isto agora há relativamente pouco tempo; e depois, não conseguimos fazer um contrato de manutenção completa com nenhuma entidade. Eu já tentei com a Thyssen, com a Kone, com a EQM, com a Otis, sem sucesso, porque não há nenhuma empresa de manutenção de elevadores que faça um contrato de manutenção completa com aquele elevador.
[00:07:03] Mma. Juiz: Porquê? Com aquele elevador, porquê não? Por ser um monta-autos, ou por ser antigo?
[00:07:07] Administradora do Condomínio: Por ser antigo. Porque as peças estão descontinuadas e há sempre… existir substituição, há, mas sempre modeladas e alteradas, para ser… para… para funcionarem ali.
[00:07:24] Mma. Juiz: Muito bem.
[00:07:24] Administradora do Condomínio: Isto é um encargo muito maior para o Condomínio, como é lógico. Porque um contrato completo não inclui peças…
[00:07:28] Mma. Juiz: Nunca chegou a falar com ninguém da Kone, sobre esta questão? Portanto, o construtor, quando falaram com o construtor, o construtor disse que a Kone não precisava de um novo, que bastava uma remodelação, ou algo, como lhe chamou, makeup. E chegou a perguntar a alguém da Kone sobre isso?
[00:07:45] Administradora do Condomínio: Sim.
[00:07:46] Mma. Juiz: E o que é que a Kone lhe disse?
[00:07:47] Administradora do Condomínio: Que não, que os elevadores, bastava ver os relatórios mensais, as… as folhas mensais, e que eu fui ver, depois, fui consultar, e o elevador tinha que… que ser uma coisa novo, porque aquele… é o que é, é o que nós temos. Estamos em 2024 e esta semana avariou duas vezes.
[00:08:07] Mma. Juiz: Muito bem.”
Apreciando, diremos desde logo que perante a motivação da decisão da matéria de facto no que tange ao segmento que integra o ponto 17 dos factos provados e o ponto 1 dos factos não provados temos dificuldade em descortinar como pode a apelante pretender a alteração dos mesmos no sentido propugnado, de inversão do sentido da decisão apoiando-se exclusivamente nos depoimentos de apenas alguns dos depoimentos que o Tribunal
a quo
considerou relevantes para decidir como decidiu.
Ficou por isso por esclarecer por que razão a apelante considera que os demais depoimentos valorados pelo Tribunal
a quo
não têm relevo para a decisão da causa.
Ora, ouvidos os depoimentos em apreço, e ponderados os mesmos, não descortinamos razão suficiente para alterar a decisão sobre matéria de facto quanto a estes pontos de facto, subscrevendo inteiramente todas as considerações expendidas pelo Tribunal
a quo
quanto a esta matéria, que consideramos profusamente ilustradas pelos trechos dos depoimentos prestados em audiência que as partes expressamente invocaram e transcreveram.
Termos em que, sem necessidade de quaisquer outras considerações, se conclui pela improcedência da impugnação da decisão sobre matéria de facto quanto aos pontos 17 dos factos provados e 1 dos factos não provados.
3.2.2.2.2. Ponto 20 dos factos provados
O ponto 20 dos factos provados tem o seguinte teor:
“20. A 2R não pediu à Kone a remodelação total do elevador monta autos, nem a reabilitação do mesmo, mas apenas uma remodelação que o deixasse a funcionar com o menor custo possível.”
O Tribunal
a quo
justificou a sua decisão no sentido de considerar este ponto de facto provado no termos expostos no item antecedente.
A apelante discorda deste entendimento, considerando que os factos vertidos neste ponto devem, considerar-se não provados.
Invocou em abono deste entendimento os documentos nº
s
1 e 2 juntos com a sua contestação, bem como o doc. nº 4 junto com a contestação da 2ª ré.
Quanto a tais documentos, o documento nº 1 junto com a contestação da apelante tem o título “Adjudicação nº 005-RM-17 Obra – 9113 – Edifício XYZ 01” e a data de 26-12-2017; reportando-se ao fornecimento de 2 elevadores KONE 525 (6 pessoas), bem como à “remodulação do monta-autos existente, conforme trabalhos descritos na LPU em anexo, pelo valor global de 4.000,00” , sendo que no item intitulado “Elevador Auto” menciona o seguinte:
“Remodulação do monta-autos existente, constituído por:
2 BOTONEIRAS KONE KSS ReVive
Modelo KONE KSCA431 INOX Asturias Satin
Iluminação de cor Âmbar em displays
Botão de bloqueio da porta (DCB)
Botoneira de cabina principal
Botão verde no piso principal
Botão de alarme com anel de proteção incluído
Fornecimento e adaptação de cortinas de luz em zona da porta de cabina. Desta forma previne que o utilizador ou o seu veículo em caso de ultrapassar a área de segurança fará com que o elevador imobilize, até que a área em questão seja restabelecida (…)
fornecimento e aplicação de novas golas em inox para agregação das cortinas de luz
Substituição dos retentores de ambos os pistons do equipamento por forma a vedar o movimento e perca de óleo verificada no mesmo
reposição do nível de óleo na Cuba do ascensor
Reabilitação do teto da cabine incluindo a incorporação de nova iluminação embutida
Afinações e testes gerais ao equipamento.”
O doc. nº 2 junto com a contestação da apelante é um alvará de utilização relativamente ao edifício dos autos.
O doc. nº 4 junto com a contestação da ré XYZ é um documento apócrifo, com os dizeres “MONTA-AUTOS Edifício XYZ 01 – Av. Marquês de … nº …/Av Visconde de … nº …” e uma tabela composta por colunas com os dizeres “data”, “estado”, “Causa”, “intervenção Kone” e “Notas”.
O apelado e a interveniente Kone pugnaram pela manutenção deste ponto de facto, invocado os depoimentos das testemunhas L ….., J…….., P………, e R ............, e transcrevendo os seguintes trechos:
Testemunha L………
“[13m19s]
Juiz: Repare, por escrito está um pedido de remodelação de um elevador
Testemunha L……: Certo.
Juiz: A proposta é de facto quase só, o senhor é que usou bem a expressão cosmética,
Testemunha L…..: Sim.
Juiz: Não sei se foi o senhor, se foi o senhor P……
Testemunha L…..: Sim, fui eu.
Juiz: Mas é de facto pouco mais do que isso,
Testemunha L…..: Sim.
Juiz: Porque, até pelo valor que tem.
Testemunha L…..: Sim.
Juiz: Em que momento é que os senhores perceberam que a remodelação que estava ser pedida não era uma remodelação, mas era uma, era uma, era um lavar de cara só. Quando é que perceberam que era isso que queriam?
Testemunha L…..: Exatamente nessa altura.
Juiz: Quando tiveram a reunião?
Testemunha L…..: Sim. Até porque não faz sentido, não faz sentido e isso foi expresso por mim, os elevadores com 25 anos não conseguiam garantir a fiabilidade que havia [impercetível], ou com mais de 25 anos. Normalmente os elevadores têm um período estimado de vida, digamos, que são 25 anos sob determinadas condições, a partir daí é aconselhável que sejam completamente remodelados, e isso foi expresso na reunião [impercetível]
Juiz: Mas remodelados?
Testemunha L…..: Remodelados, substituídos integralmente.
Juiz: Ah, então isso não é remodelado.
Testemunha L…..: Ou seja, retirar o que existe e colocar elevadores novos, que foi aquilo que foi feito relativamente aos elevadores de passageiros.
Juiz: Senhor doutor, faça favor.
Adv. I: Se vossa excelência consente. Bom, face a, o que eu questiono, bom, disse, o senhor acaba de dizer que referiu isso ao senhor engenheiro R ............
Testemunha L…..: Certo.
Adv. I: Em resposta o que é que obteve?
Testemunha L…..: Disse-me que a intervenção era para ser o mínimo possível em termos de custo.
Adv. I: Portanto, o objeto desta intervenção foi cosmética e um incremento de segurança, pergunto.
Testemunha L…..: Certo.
Adv. I: É isto?
Testemunha L…..: Sim.
[15m00s]”
Testemunha …..
“[00:27:48] Mandatário de Ré: Mas então, aí, eu também faço essa questão. É porque é que não apresentaram um orçamento escrito de substituição integral de equipamentos?
[00:27:56] J……: Mas aqui a questão é: quando falamos [impercetível], quando nós propomos, oferecemos ao cliente, mais ou menos, uma ideia de preço. Um monta-autos novo custa 70.000 euros, não é? Mais trabalho de construção civil. Só o material, não é? Depois há mais trabalho de construção civil. E depois temos... vamos avaliando, “Olhe, ainda temos os elevadores novos, os elevadores [impercetível] custaram Y. Têm o valor X. E ele diz: “O monta-autos, não quis avançar, tendo em conta o valor que era”. Então, vamos fazer o que nos pediram para fazer, na altura. Nós... nós aconselhámos, tendo em conta que valor ia: ia ter um contrato de manutenção, e ia ser utilizado... pela obra, na altura. [Inaudível] as barreiras de infravermelhos e [inaudível] de sinalização.
[00:28:48] Mandatário de Ré: É que o primeiro orçamento que consta, pelo menos, o que consta aqui dos autos, de modernização integral de equipamentos, é de 2020. A solicitação da
B
. Eu questiono se me sabem dizer porque é que a
B
, no início de 2020 – ele está aqui, eu posso até especificar melhor a data –, se algum dos senhores me sabe responder… O orçamento tem data de 16 de Janeiro de 2020, e fala sobre a substituição integral do monta-autos, pelo valor de 75.200,00 e qualquer coisa euros. Se os senhores me sabem dizer… Isto é um orçamento que foi remetido por H … se me sabem dizer porque é que só nesta altura a
B
demonstrou interesse num novo…
[00:29:38] J ….: Eu, aí, posso dizer o que sei, porque estive nessa reunião. Houve uma reunião com um comprador que trabalha comigo e com... e com o representante da
B
, em que se pediu orçamentos, e nós enviámos... como já tínhamos enviado se tivesse sido outra venda, [impercetível] o orçamento.
[00:29:56] Mandatário de Ré: Mas uma reunião… eu não sei se um dos senhores esteve nessa reunião, ou se
[00:29:59] J …..: Eu estive. Vamos lá a ver... eu estive numa reunião prévia… esse orçamento foi solicitado pela
B
, depois de muitas insistências minhas no terreno, eu estava no terreno a acompanhar a obra, e vemos o estado de degradação em que estão as portas. Portanto, alguma solução tinha que ser dada. Pôs-se essa hipótese na mesa, de substituir aquilo integralmente. Apesar de... foi uma opção, foi uma solicitação da... da
B
, que teve a ver, acima de tudo, com as portas, não com o resto, não é? Então, pensou-se nisso: eventualmente, meter um elevador novo lá, substituir aquilo.
[00:30:35] Mandatário de Ré: Mas isto nunca foi para a frente...
[00:30:37] P…….: Não, não.
[00:30:40] Mandatário de Ré: Nunca houve várias...
[00:30:40] P…..: Fiz um estudo, fiz um levantamento, apresentei à Engenharia, apresentou-se a nossa solução, mas depois nunca saiu.
[00:30:48] Mandatário de Ré: Muito bem.”
(…)
“Adv. I: Questiono se, se, se, foi feita, foi executada essa, essa, esta, esta operação inicial que foi desenhada em 2017 e em 2019 há uma nova intervenção no equipamento, referente a umas, umas placas de comando. Sabe-me dizer o que é que, o que é que sucedeu? Já foi aqui dito que houve aqui um choque, que houve aqui um, alguém no quadro elétrico mexeu numas fases, da
B
e aqui deu lugar a uma descarga que acabou por queimar ou por constituir uma avaria no monta-autos.
Testemunha J…..: Oh doutor, aquilo que eu sei, porque eu não sou propriamente da manutenção, eu estou ligado às instalações mas soube, acompanhei sempre a obra, pelo que eu sei, aquilo que me foi explicado, houve uma fase do edifício, não é? Aquilo tem alimentação trifásica, houve uma fase que teve uma avaria, um curto-circuito. Ora, todos os equipamentos ligados dependentes daquela fase, porque aquilo está tudo distribuído, não é? Como é obvio. [impercetível] outros curto-circuitos, iluminação nas garagem, inclusivamente o elevador como estava nesse, nesse setor que foi avariado, danificou umas placas de comando da própria manobra que existia. Não é? Que estava em condições. A manobra não tinha grande, grande problema. E depois avariaram essas placas, sim, sim. E houve outras coisas no edifício.”
Testemunha P…….
“Adv. I: Eu gostava de questionar aqui o senhor engenheiro P…… em relação ao orçamento que está junto como documento número 3 com a contestação, que creio, daquilo que refere, que terá sido aqui a questão das placas. Já agora questiono, se me sabe dizer, enquanto vamos aqui procurar a documentação
Juiz: Dona S… é capaz de exibir, depois ponha por favor folhas 244
Adv. I: Documento número 3 e documento número 4, esse é o 4.
Juiz: Sim
Adv. I: Esse é o 4 meritíssima.
Juiz: Depois é só virar a página antes e é a proposta. É a proposta que fazem das placas de comando (…) [19m05]
[19m30s]
Juiz: Eu até vos digo, a proposta tem, contém menção, está aí sublinhado, eu já sublinhei portas, é o comando, a placa de comando, na adjudicação devem ter aí, folhas 244 ou 243 verso, não sei
Testemunha P……: Está aqui, está aqui.
Juiz: E na proposta que fazem as portas não aparecem.
Adv. I: Ou o que é que é feito, o que é que é feito nesta proposta a nível de portas.
Testemunha P……: Eu na altura, na altura
Juiz: Senhor P……, sim.
Testemunha P….: P…... Passou por mim, ou seja, elaborámos uma proposta de acordo com a informação que obtivemos, ok? Entretanto era necessário, o que é que acontecia? As placas, aquele tipo de placas já não existem no mercado, já tinham alguma idade, já não há.
Juiz: Está a falar das de comando, não é?
Testemunha P: Sim, as placas de comando, certo? Qual foi a solução que propusemos? A solução que propusemos foi substituirmos todo o comando do elevador, tudo o que era parte elétrica, ok? Foi isso que propusemos. Ok? Propusemos, fizemos a proposta pelo valor, não é? Onde substituímos toda a parte de comando, toda a parte elétrica, sinalizações de patamar e cabine,
Juiz: Muito bem.
Testemunha P: E, e
Juiz: Mas depois na adjudicação aparecem as portas.
Testemunha P: Na adjudicação? Na nossa proposta não. Na nossa proposta
Juiz: A adjudicação que foi assinada por ambas as partes aparece
Testemunha P: Ah, pronto. Nós enviámos a proposta, nós enviámos a nossa proposta para a empresa e a empresa, pronto, não quis assinar o nosso contrato e enviou-nos um contrato deles, ok? E então o contrato deles, se andar mais para a frente, vamos ver, eu assinei o contrato deles
Testemunha J: Está aqui.
Juiz: Isso. Cuja diferença são, é o mesmo preço mas incluíram as portas.
Testemunha P: Pronto.
Juiz: Isso.
Testemunha P: Pronto, exatamente.
Juiz: E?
Testemunha P: Nomeadamente, portanto, não encontra em funcionamento, nomeadamente
Juiz: Qual é a pergunta senhora doutor?
Adv. I: É se houve alguma
Testemunha P: Nós, nós, fui eu que assinei, assinei, pronto, se calhar devia ter contraposto, não devia ter assinado tão diretamente, não é? Assim, mas para nós o entendimento, nós não substituímos portas, portanto, ou seja, nós instalámos integralmente o que estava na nossa proposta, ok? Portanto, embora o contrato diga que nós entendemos aqui o perfeito funcionamento do mesmo,
Testemunha J: O quadro de manobras.
Testemunha P: nomeadamente as portas, é colocar em funcionamento as portas, bem, afinar as portas.
Juiz: Colocar em funcionamento as portas mas não substituir portas, não é?
Testemunha J: Não.
Juiz: Só para que não haja dúvidas,
Testemunha P: Aliás eu, eu
Juiz: Só para que não haja dúvidas porque isto é uma questão importante, eu já tenho essa noção mas acho que não é em sede de gravação, quanto é que custa uma substituição de portas?
Estamos a falar de quanto?
Testemunha P: Eventualmente
Juiz: Mais ou menos.
Testemunha P: Eventualmente, por porta, será o valor do comando, 10 mil euros. Por aí.
Juiz: A substituição de portas
Testemunha P: De uma porta.
Juiz: De uma porta, quantas portas é que aquilo tem?
Testemunha J: Salvo erro, 4.
Juiz: 4 portas. A substituição das portas seria à volta de 40 mil euros, é isso?
Testemunha P: Com, com tudo, completo
Juiz: Mais ou menos.
Testemunha P: Com construção civil
Juiz: Portanto, colocar novas portas seria algo na ordem desses valores, não estamos a falar de
4 mil euros, que foi o preço da adjudicação, nem algo de 12 mil, é isso?
Testemunha J: Correto.
Juiz: Muito bem, só para termos a noção de grandeza.
[22m30s]”
Testemunha R ............
“[38m00s]
Adv. I: Questiono-o também do seguinte. O senhor disse que foi feita aqui uma avaliação técnica pela Kone, eu presumo que também tenha sido feita por outras empresas. Tal como há pouco já disse, que consultou o mercado.
Testemunha R: Sim, sim.
Adv. I: E portanto há-de ter sido mais do que uma empresa que lá foi.
Testemunha R: Certo.
Adv. I: O senhor de nenhuma das outras obteve nenhum indício, nenhum se
Testemunha R: Tive uma resposta
Adv. I: Nenhum se
Testemunha R: Não. Tive uma resposta da Thyssen que era para reabilitar, era para executar novo, não era para reabilitar, e consultei também a Otis, mas depois não respondeu.
Juiz: Não percebi. Então só teve uma resposta. Consultou vários mas só teve uma resposta.
Testemunha R: Duas respostas.
Juiz: A da Kone e a da Thyssen. A da Thyssen dizia para
Testemunha R: Integral, substituição
Juiz: Substituição.
Testemunha R: Sim.
Adv. I: E a Kone nas conservas que teve com o senhor engenheiro nunca lhe propôs um equipamento novo?
Testemunha R: Volto a referir, se um dia colocassem qualquer ses, a decisão estava tomada. Ou seja, nunca pôs uma ressalva ao equipamento que lá estava. Nunca.
Adv. I: Muito embora o senhor engenheiro, que não é um inexperiente neste meio, face até à direção de obra, não é? Não é qualquer engenheiro que chega a diretor de obra, presumo, tem de, pelo menos ter alguma experiência profissional neste âmbito,
Testemunha R: Não, entenda, porque há assuntos, que os elevadores é um deles, que o próprio diretor de obra salvaguarda-se e protege-se com análise técnica
Adv. I: Certo.
Testemunha R: E não tratamos com o zé da esquina, portanto, tratamos com a Kone, empresa referenciada.
Adv. I: Claro, mas também tinha da Thyssen que é outra empresa a nível mundial renomeada, renomada, que indicou que apenas executaria um elevador novo. Um monta-autos novo.
Testemunha R: Certo.
[40m00s]”
Apreciando, diremos que os documentos invocados pela apelante não podem, por si só, justificar uma decisão probatória diversa da alcançada pelo Tribunal
a quo
.
Com efeito, tratando-.se de documentos particulares não assinados não têm os mesmos força probatória plena
[26]
, estão os mesmos sujeitos à livre apreciação do julgador
[27]
, pelo que a decisão probatória relativa a este ponto de facto deveria, necessariamente, assentar numa análise crítica de todos os meios de prova à disposição do Tribunal.
Ora, sobre a mesma matéria foi também produzida prova testemunhal, v.g. os depoimentos das testemunhas L…., J…… e P……, bem como as declarações prestadas pelo legal representante da ré
B
, que a apelante ignorou completamente.
Como resulta à saciedade dos trechos supra transcritos:
-
a testemunha L……. declarou expressamente que numa reunião com a
B
lhe foi transmitido que o que esta pretendia da Kone era a intervenção técnica que veio a ser orçamentada em € 4.000, tendo a mencionada testemunha qualificado tal intervenção de “cosmética”;
-
A testemunha J…… explicou que só em 2020, já na sequência de reclamações apresentadas por compradores de frações do edifício é que a apelante pediu à Kone um orçamento para a substituição do monta-autos; que até então nunca tinha equacionado tal substituição; e que a substituição do painel do monta-autos foi feita para reparação de uma avaria ocorrida durante as obras do edifício (não visando, por isso a “remodelação” ou “renovação” do monta-autos, mas a sua recolocação em condições de funcionar);
-
A testemunha P………. reiterou o afirmado pela testemunha J ….. quanto à reparação do painel, esclareceu que as portas do elevador não foram substituídas, e explicou que a referência que ficou a constar do documento intitulado “adjudicação” foi ali aposta por imposição da ré
B
;
-
O representante da ré
B
admitiu que a Thyssen lhe comunicou que não aceitaria reparar o monta-autos, e que o mesmo precisava de ser substituído, mas que ainda assim optou por repará-lo.
Perante este quadro factual, conclui-se que os meios de prova invocados pela apelante são manifestamente insuficientes para justificar qualquer alteração à decisão sobre matéria de facto quanto ao ponto 20 dos factos provados.
Improcede, por isso, e nesta parte, a impugnação da decisão sobre matéria de facto.
3.2.2.2.3. Ponto 21 dos factos provados
O ponto 21 dos factos provados tem a seguinte redação:
“21. A remodelação efetuada do elevador monta autos consta descrita no orçamento de fls. 211, e consiste em colocação de 2 betoneiras, iluminação, botões, cortinas de luz e golas para a sua colocação, substituição dos retentores dos pistons do equipamento e reposição do óleo na cuba, reabilitação do tecto da cabine e afinações e testes, tendo esta orçado em €4.000.”
O tribunal
a quo
justificou a sua convicção relativamente a este ponto de facto nos termos expostos em 3.2.2.2.1.
A apelante considera que os factos em apreço devem considerar-se não provados
Para tanto invocou o doc. nº 3 junto com a sua contestação, que ostenta os dizeres “Adjudicação nº 025-RM-2017 Obra – 9113 – Edifício …. 01” bem como a data de 22-04-2019, e diz respeito à “Substituição do quadro de comandos do elevador Monta-Autos existente, incluindo a verificação geral e substituição de todas as peças necessárias para garantia do perfeito funcionamento do mesmo, nomeadamente das portas prontos a funcionar (…)”.
Apreciando, diremos que valem aqui todas as considerações expendidas a propósito do ponto 20 dos factos provados, o que nos conduz à improcedência da impugnação da decisão sobre matéria de facto também quanto a este ponto 21.
3.2.2.2.4. Recapitulação
Face ao já exposto, improcede inteiramente a impugnação da decisão sobre matéria de facto.
3.2.3. Dos defeitos do monta-autos do edifício do autor
Como já se mencionou no relatório, o autor Condomínio do prédio denominado Edifício XYZ 1 sito na Avenida Marquês …., nºs ………. e Av.ª Visconde …. nºs …………, em Lisboa, demandou a ré na qualidade de empresa que reabilitou e vendeu as frações daquele prédio, invocando a verificação de defeitos de funcionamento do elevador monta-autos instalado naquele edifício, causadores de repetidas avarias no mesmo, bem como a inviabilidade da sua reparação, e pedindo a condenação da ré a substituir o mesmo elevador, bem como a pagar a quantia relativa ao arrendamento de lugares de garagem para os condóminos até à conclusão dos trabalhos de substituição do referido monta autos.
Resulta da factualidade provada que a ré XYZ, Lda. se dedica à compra e venda de imóveis, bem como à promoção imobiliária, construção civil e obras públicas e que a ré
B
, S.A. se dedica à construção e engenharia civil e empreitadas de obras públicas, compra e venda de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim
[28]
,
Apurou-se igualmente a ré XYZ, Lda. adquiriu o edifício supraidentificado com intuito de o comercializar
[29]
, para e que com vista à concretização desse desiderato o mesmo edifício foi reconstruído pela ré
B
[30]
, após o que a ré XYZ vendeu as referidas frações autónomas
[31]
, tendo administrado o mesmo edifício até à entrega do condomínio, o que se concretizou em assembleia de condóminos levada a cabo no dia 07-06-2019
[32]
.
Tendo o edifício em apreço sido constituído no regime da propriedade horizontal, cada um dos adquirentes das frações autónomas que o integram adquiriu a qualidade de condómino, considerando-se proprietário exclusivo da sua fração e comproprietário das partes comuns do edifício – art.º 1420º do CC.
Resulta ainda do regime da propriedade horizontal que a administração das partes comuns do edifício compete à assembleia de condóminos e ao administrador do condomínio (art. 1430º, nº 1 do CC), e que os elevadores e garagens se presumem partes comuns (art. 1421º, nº 2, al. b) e g) do CC).
Finalmente estatui o art. 1437º nº 1 do CC que o administrador pode agir em representação do condomínio, na execução das funções que lhe pertencem ou quando autorizado pela assembleia.
No caso dos autos, como já referimos, na presente causa discutem-se avarias num elevador de veículos do edifício, bem como a privação do uso da garagem, sendo certo que da prova junta aos autos resulta que a assembleia de condóminos mandatou a administração para intentar a presente ação
[33]
.
Assim, presumindo-se o monta autos e a garagem partes comuns, não tendo tal presunção sido elidida, e tendo a assembleia de condóminos mandatado a administração do condomínio para demandar judicialmente as rés, nada obstava à apreciação do mérito das pretensões do autor.
Estabelece o art.º 913º do CC:
“1. Se a coisa vendida sofrer de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim, observar-se-á, com as devidas adaptações, o prescrito na secção precedente, em tudo quanto não seja modificado pelas disposições dos artigos seguintes.
2. Quando do contrato não resulte o fim a que a coisa vendida se destina, atender-se-á à função normal das coisas da mesma categoria.”
Interpretando este preceito dizem PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA
[34]
que o mesmo “cria, efetivamente, um regime especial, para as quatro categorias de vícios que nele são destacadas: a) Vício que desvalorize a coisa; b) Vício que impeça a realização do fim a que ela é destinada; c) Falta das qualidades asseguradas pelo vendedor; d) Falta das qualidades necessárias para a realização do fim a que a coisa se destina. Equiparando, no seu tratamento, os vícios às faltas de qualidade da coisa e integrando todas as coisas por uns e outras afetadas na categoria genérica das coisas defeituosas, a lei evitou as dúvidas que, na doutrina italiana por exemplo, se têm suscitado sobre o critério de distinção entre um e outro grupo de casos. Como disposição interpretativa, manda o nº 2 atender, para a determinação do fim da coisa vendida, à função normal das coisas da mesma categoria.”.
Por seu turno refere CALVÃO DA SILVA
[35]
, que “…, a lei posterga a definição conceitual e privilegia a idoneidade do bem para a função a que se destina, ciente que o que importa é a aptidão da coisa, a utilidade que o adquirente dela espera. Daí a noção funcional: vício que desvaloriza a coisa ou impeça a realização do fim a que se destina; falta das qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização do fim a que a coisa se destina. Nesta medida, diz-se defeituosa a coisa imprópria para o uso concreto a que é destinada contratualmente – função negocial concreta programada pelas partes – ou para a função normal das coisas da mesma categoria ou tipo se do contrato não resultar o fim a que se destina (art.º 913º, nº 2).”.
Do regime da compra-e-venda de bens defeituosos resulta com clareza que assiste ao comprador o direito de exigir do vendedor a reparação da coisa, anular o contrato ou reduzir o preço, bem como, em qualquer circunstância, o direito a ser indemnizado – art. 913º a 915º do CC, conjugados com os arts. 905º e ss. do mesmo Código.
No caso em apreço, apurou-se que o edifício dos autos foi remodelado, mas manteve um elevador de automóveis (monta-autos) antigo, e que este se avariou e avaria frequentemente, e de forma recorrente, e que a maioria das avarias registadas não resultou de deficiente utilização de tal elevador, mas antes da circunstância de que à data da constituição da propriedade horizontal este já tinha quase 30 anos, sendo as suas portas de um modelo antigo e pouco fiável.
[36]
Assumindo as rés as qualidades de empreiteira e vendedora do edifício, e sendo este inequivocamente de qualificar como imóvel de longa duração, são os mesmos responsáveis por danos ou defeitos que tal edifício apresente dentro de um prazo de garantia de 5 anos e que decorram de “vício do solo ou da construção, modificação ou reparação, ou por erros na execução dos trabalhos” (art.º 1225º, nº 1, aplicável
ex vi
do nº 4, do mesmo preceito).
Releva igualmente o disposto no art.º 1208º do CC, que estatui que “O empreiteiro deve executar a obra em conformidade com o que foi convencionado, e sem vícios que excluam ou reduzam o valor dela, ou a sua aptidão para o uso ordinário ou previsto no contrato.”, devendo o dono da obra verificar, antes de a aceitar, se ela se encontra nas condições convencionadas e sem vícios (art.º 1218º, nº 1, do CC).
Face ao concurso de normas resultante da aplicabilidade dos regimes da compra-e-venda de coisa defeituosa e dos imóveis de longa duração, pelo menos parte da doutrina, bem como a jurisprudência do STJ vem considerando, de modo uniforme que o regime consagrado no art. 1225º do CC prevalece sobre aqueloutro consagrado nos arts. 913º e segs. do mesmo código.
Neste sentido se pronunciaram, no campo da doutrina, entre outros, e com especial relevância, MENEZES CORDEIRO
[37]
, e CURA MARIANO
[38]
.
Quanto à jurisprudência, e considerando apenas decisões do STJ, vd., entre outros, os acs.:
-
STJ 15-11-2012 (Granja da Fonseca), p. 25106/10.4T2SNT.L1.S1
;
-
STJ 06-06-2013 (Granja da Fonseca), p. 8473/07.4TBCSC.L1.S1
;
-
STJ 14-01-2014 (Moreira Alves), p. 378/07.5TBLNH.L1.S1
;
-
STJ 31-05-2016 (Mª Clara Sottomayor), p. 721/12.5TCFUN.L1.S1
;
-
STJ 17-10-2019 (Oliveira Abreu), p. 1066/14.1T8PDL.L1.S1
;
-
STJ 10-12-2019 (Nuno Pinto Oliveira), p. 4288/16.7T8FNC.L1.S2
;
-
STJ 20-01-2022 (Nuno Pinto Oliveira), p. 1451/16.4T8MTS.P1.S1
;
-
STJ 16-11-2023 (Mª João Vaz Tomé), p. 10835/19.5T8LRS.L1.S1
;
Por seu turno, estipula o art. 1208.º do CC que “O empreiteiro deve executar a obra em conformidade com o que foi convencionado, e sem vícios que excluam ou reduzam o valor dela, ou a sua aptidão para o uso ordinário ou previsto no contrato”, e estatui o art. 1218.º, n.º 1, que cabe ao dono da obra o ónus de verificar, antes de a aceitar, se a obra se encontra nas condições convencionadas e sem vícios.
No caso vertente tendo a primeira assembleia de condóminos tido lugar em 07-06-2019
[39]
, e tendo a presente ação sido intentada em 11-07-2020
[40]
, é inegável que nesta última data ainda não havia decorrido o prazo de garantia consagrado no art. 1225º, nº 4 do CC.
Com efeito, como sublinha o ac.
STJ 16-11-2023 (Mª João Vaz Tomé), p. 10835/19.5T8LRS.L1.S1
, “conforme a jurisprudência dominante do Supremo Tribunal de Justiça, nos imóveis de longa duração, a data relevante é a da transmissão dos poderes de administração das partes comuns para o condomínio. Via de regra, tal ocorre aquando da constituição da sua estrutura organizativa, reunida em assembleia de condóminos com a eleição do seu administrador (art. 329.º do CC), para que possam ser exercidos os direitos decorrentes da existência de defeitos na obra. Esta asserção resulta da conjugação do disposto no art. 1225.º do CC com o regime da defesa do consumidor, previsto no DL n.º 67/2003, de 8 de abril, alterado pelo DL n.º 84/2008, de 21 de maio14 - entretanto revogado pelo DL n.º 84/2021, de 18 de outubro, aplicável aos contratos concluídos a partir de 1 de janeiro de 2022 (arts. 53.º, n.º 1, e 55.º). Assim, “A entrega considera-se feita no momento em que o vendedor deixa de ter poder para determinar ou influir sobre o curso das decisões dos condóminos constituídos em assembleia de interesses autónomos, correspondendo, assim, o
dies a quo
a partir do qual se conta o início do prazo dos cinco anos à transmissão dos poderes de administração das partes comuns para os condóminos, através da sua estrutura organizativa, reunindo em assembleia de condóminos e com plena autonomia para denunciar os eventuais defeitos existentes na obra.”
No caso vertente, como já referimos, resultou provado que o elevador de automóveis instalado no imóvel dos autos vem sofrendo inúmeras e frequentes avarias, e que a grande maioria destas resulta da circunstância de que à data da constituição da propriedade horizontal tal elevador já tinha quase trinta anos, sendo as suas portas de um modelo antigo e pouco fiável
[41]
.
Como é sabido, sendo detetados e denunciados defeitos do imóvel de longa duração não imputáveis aos proprietários ou condóminos, este têm o direito a exigir do empreiteiro/vendedor a reparação dos defeitos, se esta for viável, ou a realização de obra nova - (arts. 1221.º, nº
s
1 e 2, do CC); a redução do preço ou a resolução do contrato (art. 1222.º, n.º 1, do CC); bem como um indemnização pelos danos sofridos (arts. 562.º e ss. e 1223.º do CC).
Porém, no caso vertente, importa chamar à colação o regime da LDC, bem como o consagrado no DL nº 67/2003, sobre venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas
[42]
sendo certo que a aplicabilidade do regime ao caso dos autos consagrado neste diploma depende da qualificação do condomínio como “consumidor”, à luz da definição contida no art. 2º, nº 1 do referido diploma, que estabelece que como tal qualifica “todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios.”
Ora, é inequívoco que as rés são empresas comerciais, tendo reabilitado o edifício dos autos e vendido as respetivas frações aos condóminos no exercício das respetivas atividades.
Quanto ao condomínio, resulta da factualidade provada que pelo menos parte dos condóminos são pessoas singulares que usam as respetivas frações com fins habitacionais.
Ora, como bem esclarece o ac.
STJ 20-01-2022 (Nuno Pinto de Oliveira), p. 1451/16.4T8MTS.P1.S1
, “O condomínio deve ser considerado como um consumidor desde que uma das fracções seja destinada a uso privado”; e “A relação entre empreiteiro e comprador deve considerar-se como uma relação de consumo desde que o empreiteiro conhecesse, ou devesse conhecer, o fim do dono da obra de dividir o edifício em fracções autónomas e de vender cada uma das fracções autónomas a consumidores.”.
Tanto basta para concluir pela aplicabilidade deste regime no caso dos autos.
Daqui resulta que no caso em apreço é aplicável a LDC.
Sobre a articulação entre o regime geral da empreitada e o regime especial das empreitadas de consumo, particularmente no que respeita à hierarquização do exercício dos direitos do dono da obra ou adquirente (nos casos previstos no art. 1225º do CC) discorreu o ac.
STJ 13-12-2022 (António Barateiro Martins), p. 497/19.5T8TVD.L1.S1
da seguinte forma:
“Factualmente verificada a existência de defeitos – preenchidos os conceitos de “falta de conformidade” e de “defeito” – os direitos do dono da obra, seja relação de consumo ou não, são os mesmos quer no regime especial quer na lei geral.
São, de acordo com o art. 4.º/1 do DL 67/2003 (à época, repete-se, vigente) e com o art. 12.º/1 da LDC (na redação que lhe foi dada pelo DL 67/2003), o direito de reparação das faltas de conformidade, o direito de substituição da obra, o direito à redução adequada do preço, o direito à resolução do contrato e o direito à indemnização; exatamente os mesmo dos art. 1221.º, 1222.º e 1223.º do C. Civil (sendo aqui os dois primeiros designados como direito à eliminação dos defeitos e à realização de obra nova).
É certo que a lei geral não estabelece – como o art. 12.º/1 da redação inicial da LDC ou como o art. 3.º/1 do DL 67/2003 – a responsabilidade objetiva do empreiteiro pela falta de conformidade da obra realizada (relativamente aos referidos direitos), porém, em face da presunção de culpa constante do art. 799.º/1 do C. Civil, tal diferença de regime (entre a lei especial e a lei geral) acaba por não ter grande relevância prática.
Onde as diferenças/especialidades existentes podem assumir relevo prático é no modo de articulação/exercício dos diferentes direitos do dono da obra.
Enquanto no regime do C. Civil vigoram regras relativamente rígidas que estabelecem várias relações de subsidiariedade e de alternatividade entre aqueles direitos, que limitam e condicionam o seu exercício, no âmbito das empreitadas a que são aplicáveis as normas especiais contidas na Lei 24/96 (LDC) e no DL 67/2003, os direitos do dono da obra consumidor são independentes uns dos outros, estando a sua utilização apenas restringida pelos limites impostos pela proibição geral do abuso de direito (cfr. art. 4.º/5 do DL 67/2003)[5].
Ou seja, perante a existência de faltas de conformidade na obra realizada, o dono desta pode exercer livremente qualquer um dos direitos conferidos pelo art. 4.º/1 do DL 67/2003 e 12.º/1 da LDC; sem prejuízo, evidentemente, desta liberdade de opção pelo direito que melhor satisfaça os seus interesses dever respeitar os princípios da boa-fé, dos bons costumes e a finalidade económico-social do direito escolhido (art. 4.º/5 do DL 67/2003 e art. 334.º do C. Civil), o que significa que o respeito por princípios – como o da razoabilidade, da proporcionalidade e da prioridade da restauração natural – conduzirão, algumas vezes, à observância das regras de articulação (dos diferentes direitos do dono da obra) impostas pelo C. Civil e a soluções coincidentes com as do C. Civil.
Em todo o caso – sem prejuízo da solução casuística, em que nunca será demais encarecer o papel que o princípio da boa fé (com tudo o que do mesmo irradia) tem, de acordo com o C. Civil (cfr. 762.º/2), em toda a execução contratual – “o regime dos direitos do dono da obra nas empreitadas de consumo permite uma maior maleabilidade na escolha do direito que melhor satisfaça os interesses deste em obter um resultado conforme com o contratado. Aqui não se pode falar na existência de um direito do empreiteiro a proceder à reparação das faltas de conformidade da obra. O direito de substituição da obra pode ser exercido mesmo em situações em que a reparação das faltas de conformidade é possível. Os direitos de redução do preço e de resolução do contrato não estão apenas reservados para as hipóteses de incumprimento definitivo ou impossibilidade de cumprimento dos deveres de reparação ou substituição da obra, podendo outras circunstâncias justificarem o recurso prioritário ao exercício destes direitos. E o direito de resolução do contrato não está dependente da obra se revelar inadequada ao fim a que se destina, bastando apenas que a conformidade verificada não seja insignificante, perante a dimensão da obra.”
[43]
E o mesmo se passa com o direito à indemnização (com previsão, quanto às empreitadas de consumo, no art. 12.º/1 da LDC, na redação dada pelo DL 67/2003) – que tem na lei geral (no art. 1223.º do CC) uma configuração claramente residual, isto é, na lei geral, o dono da obra só tem direito a ser indemnizado, nos termos do art. 1223.º, relativamente aos prejuízos que não obtiverem reparação através dos direitos conferidos pelos art. 1221.º e 1222.º do C. Civil, pelo que pode ser exercido cumulativamente com o exercício desses direitos ou isoladamente, nas hipóteses em que se revele o único meio de reparação do prejuízo resultante da existência do defeito – que também escapa, nas empreitadas de consumo, às regras de articulação dos direitos conferidos ao dono da obra pelo C. Civil, ou seja, não deve ser encarado, nas empreitadas de consumo, com a referida configuração meramente subsidiária e residual prevista no art. 1223.º do C. Civil, podendo, ao invés, o direito de indemnização ser “livremente” exercido pelo dono da obra que seja consumidor, desde que sejam observadas as exigências da boa-fé, dos bons costumes e da sua finalidade sócio-económica (desde que sejam respeitados os limites impostos pela figura do abuso de direito – art. 334.º do C. Civil).”
3.2.4. Da substituição do monta autos
Aqui chegados, cumpre apreciar as pretensões do autor.
Em primeiro lugar pretende o autor a substituição do elevador de automóveis (monta autos).
Tal pretensão encontra respaldo no art. 4º, nº 1 do DL 62/2003, que dispõe que “em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o consumidor tem direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição”.
Como já referimos, cabe ao consumidor optar livremente entre a reparação e a substituição, dentro dos limites impostos pela boa-fé.
Ora, no caso vertente, resulta da factualidade provada que não obstante várias reparações, persistem as avarias no referido elevador, que se devem sobretudo à antiguidade do mesmo e ao inadequado modelo das suas portas
[44]
, e que o elevador em apreço já caiu mais do que uma vez com pessoas no interior das viaturas
[45]
.
Tal significa que se acha suficientemente demonstrado que a reparação daquele elevador não constitui solução que assegure a efetiva eliminação das deficiências do mesmo, concluindo-se, por isso, que assiste ao autor o direito à substituição do elevador de automóveis em questão.
Mas ainda que assim não fosse sempre seria de considerar que assistindo ao autor a faculdade de escolher entre a reparação e a substituição do elevador em questão, esta última só poderia considerar-se arredada se a sua implementação excedesse os limites da boa-fé o que, no caso vertente manifestamente não sucede.
Termos em que se conclui que o autor tem efetivamente direito a exigir da ré a substituição do elevador de automóveis (monta autos) por um novo.
3.2.5. Do pagamento, pelas rés, de avenças para assegurar o estacionamento das viaturas dos condóminos
Como já se referiu, o autor pediu a condenação das rés “(…) a, no decurso do tempo em que os condóminos venham a estar privados da utilização do Monta-Autos, a suportar os custos de parqueamento no exterior do edifício (por veículo a estacionar), como o já fizeram até ao final do mês de março do ano corrente de 2020, no Parque de estacionamento …”.
A sentença recorrida condenou as rés a pagar ao autor “uma avença de parqueamento próximo do imóvel por cada lugar de parqueamento cujo acesso só seja feito pelo monta autos, desde a presente decisão até efetiva substituição do elevador monta autos”.
A apelante não se conforma com tal decisão, por considerar que os condóminos não estão privados do uso do monta autos
[46]
.
Vejamos então.
Afigura-se pacífico que a prestação em causa é de qualificar como indemnização pelo dano de
privação de uso
.
A doutrina e a jurisprudência têm apreciado e debatido a questão de saber se a mera privação de uso de um bem, sem que se apurem prejuízos concretos, é suficiente para configurar uma obrigação de indemnizar nos quadros da responsabilidade civil.
A esta questão responderam afirmativamente JÚLIO GOMES
[47]
, ABRANTES GERALDES
[48]
, MENEZES LEITÃO
[49]
, e PAULO MOTA PINTO
[50]
.
Tal entendimento mereceu especial acolhimento na jurisprudência em situações das quais resultava a privação do uso de veículo automóvel, na medida em que neste domínio se afigurava particularmente simples concluir que o bem em causa estava destinado a determinada utilidade, que tem evidente valor económico, e que por força de conduta imputável a terceiro tenha ficado indisponível.
Neste sentido se pronunciou o
ac. STJ 05-07-2018 (Abrantes Geraldes), proc. 176/13.7T2AVR.P1.S1
, o qual, aludindo a jurisprudência anterior que havia respondido negativamente à questão da ressarcibilidade do dano da privação do uso, expôs o que segue:
“Quanto à ressarcibilidade do dano da privação do uso dir-se-á, em primeiro lugar, que a jurisprudência que a recorrente cita em sentido contrário (de 2008) à que foi adotada pelas instâncias foi larga e consistentemente ultrapassada por jurisprudência posterior, designadamente da emanada deste Supremo, que passou a reconhecer, sem qualquer espécie de hesitação, o direito de indemnização relativamente a situações, como a dos autos, em que o veículo é usado habitualmente para deslocações, sem necessidade de o lesado alegar e provar que a falta do veículo sinistrado foi causa de despesas acrescidas.
Outra tese ainda mais benévola para o lesado é defensável e encontra também na jurisprudência bastas adesões no sentido de fazer corresponder à privação do uso uma indemnização autónoma, independentemente da prova de uma utilização quotidiana do veículo, ainda que com recurso à equidade e ponderação das precisas circunstâncias que rodeiam cada situação.
Essa é a tese que o ora relator defendeu na monografia citada pela recorrente (Temas da Responsabilidade Civil, vol. I, Indemnização do Dano da Privação do Uso), a qual é compartilhada por diversos autores também citados pela recorrente e com adesão de um largo setor da jurisprudência.”
Sobre a mesma matéria cfr. ainda os acs.
RC de 10-09-2013 (Maria José Guerra), proc. 438/11.8TBTND.C1
;
STJ 09-07-2015 (Fernanda Isabel Pereira), p. 13804/12.2T2SNT.L1.S1
;
STJ 13-07-2017 (Maria da Graça Trigo), p. 188/14.3T8PBL.C1.S1
.
A questão da ressarcibilidade do dano da privação do uso foi igualmente equacionada em situações de apropriação ilegítima de imóveis por terceiros, muitas vezes no contexto de ações de reivindicação, ou de restituição da posse.
Também neste âmbito, pelo menos uma parte da jurisprudência vem admitindo que o proprietário de imóvel indevidamente ocupado por terceiro tem direito a ser indemnizado pela privação do uso e fruição do mesmo que decorre da referida ocupação ilícita, e que o valor locativo do imóvel ocupado constitui uma boa referência para esse cálculo. Neste sentido cfr., entre outros, os acs.
STJ 28-05-2009 (Oliveira Rocha), p. 160/09.5YFLSB
;
RL 06-01-2009 (Maria do Rosário Morgado), p. 652/05.5TBSSB.L1-7
;
RG 06-11-2012 (António Figueiredo de Almeida), p. 326/08.5TBPVL.G1
;
RE 11-07-2013 (Mata Ribeiro), p. 2830/11.9TBLLE.E1
;
RL 16-04-2015 (Mª Teresa Pardal), p. 4548-09.3TBALM.L1-6
.
Analisando situações com contornos distintos, mas aí identificando igualmente a verificação de um dano de privação de uso se pronunciou o ac.
STJ 12-07-2018 (Acácio das Neves), p. 2875/10.TBPVZ.P1.S1
. Este aresto versou sobre um caso em que por factos imputáveis aos réus, os autores ficaram impedidos de utilizar uma fração autónoma de que são proprietários. O Supremo considerou verificar-se dano de privação de uso, mas quantificou a indemnização correspondente por referência à equidade.
Porém, outra corrente jurisprudencial sustenta que a mera privação do uso não configura um dano indemnizável, sendo necessária a alegação e prova de um dano efetivo – vd. acs.
STJ 03-10-2013 (Orlando Afonso), p. 9074/09.8T2SNT.L1.S1
;
STJ 14-07-2016 (Lopes do Rego), p. 3102/12.7TBVCT.G1.S1
, e
STJ 12-07-2018 (Acácio das Neves), p. 2875/10.6TBPVZ.P1.S1
.
Seja como for, a discussão em torno dos requisitos da ressarcibilidade do dano da privação de uso nos quadros da responsabilidade civil quase sempre se circunscreveu a situações em que o proprietário ou legítimo possuidor de determinada coisa (móvel ou imóvel) se viu ilicitamente desapossado da mesma, ou totalmente impedido de a usar e/ou fruir. Na verdade, só em tais circunstâncias se pode falar em
privação
do uso.
Ao que nos foi dado apreciar, a questão em apreço nunca foi colocada – ou pelo menos resolvida com resposta afirmativa – a propósito de situações em que mantendo--se a coisa na posse ou detenção do seu legítimo titular, este veja o seu direito de uso e/ou fruição
limitado
[51]
por comportamento ilícito de terceiro.
No caso dos autos, como esclareceu o Tribunal
a quo
no despacho em que se pronunciou sobre a invocada nulidade da sentença, sendo determinada a substituição do elevador de automóveis, os condóminos ficarão forçosamente privados do seu uso, até que o mesmo se mostre substituído.
Acresce ainda que a factualidade provada demonstra à saciedade que o elevador em questão não é fiável e avaria constantemente, tendo chegado a cair com pessoas no interior dos veículos não sendo por isso exigível aos condóminos que o utilizem, com risco de o mesmo avariar e ficando “presos” dentro do mesmo.
Assistindo ao autor o direito a exigir das rés a substituição do elevador em apreço, e não sendo exigível aos condóminos que utilizem o mesmo no estado em que se encontra, é de concluir que pelo menos desde a data em que foi proferida a sentença os condóminos representados pelo autor se achavam efetivamente privados do uso do uso do elevador de automóveis, e que tal privação se prolongará até à efetiva substituição do mesmo.
Termos em que também nesta parte improcede a presente apelação.
3.2.6. Das custas
Nos termos do disposto no art. 527º, nº 1 do CPC, “A decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito.”
A interpretação desta disposição legal, no contexto dos recursos, deve atender ao elemento sistemático da interpretação.
Com efeito, o conceito de custas comporta um sentido amplo e um sentido restrito.
No sentido amplo, tal conceito inclui a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte (cf. arts. 529º, nº1, do CPC e 3º, nº1, do RCP).
Já em sentido restrito, as custas são sinónimo de taxa de justiça, sendo esta devida pelo impulso do processo, seja em que instância for (arts. 529º, nº 2 e 642º, do CPC e 1º, nº 1, e 6º, nºs 2, 5 e 6 do RCP).
O pagamento da taxa de justiça não se correlaciona com o decaimento da parte, mas sim com o impulso do processo (vd. arts. 529º, nº 2, e 530º, nº 1, do CPC). Por isso é devido quer na 1ª instância, quer na Relação, quer no STJ.
Assim sendo, a condenação em custas a que se reportam os arts. 527º, 607º, nº 6, e 663º, nº 2, do CPC, só respeita aos encargos, quando devidos (arts. 532º do CPC e 16º, 20º e 24º, nº 2, do RCP), e às custas de parte (arts. 533º do CPC e 25º e 26º do RCP).
Tecidas estas considerações, resta aplicar o preceito supracitado.
No caso dos autos, face à total improcedência da presente apelação, as custas relativas à presente apelação (na modalidade de custas de parte), deverão ser suportadas pela apelante.
4. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes nesta 7ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a presente apelação totalmente improcedente, assim confirmando a sentença apelada.
Custas pela apelante.
Lisboa, 18 de fevereiro de 2025
Diogo Ravara
Edgar Taborda Lopes
João Novais
_______________________________________________________
[1]
Pessoa coletiva nº 902150286.
[2]
Vd. arts. 55º a 68º da referida contestação (refª 27406410/36807718), de 15-10-2020.
[3]
Vd. despacho com a refª 405461577, de 19-05-2021.
[4]
Refª 31777850/41425036, de23-02-2022.
[5]
Vd. despacho proferido na audiência prévia, documentado na ata com a refª 413453332, de 24-02-2022.
[6]
Refª 40455443/49897772, de 19-09-2024.
[7]
Vd. despacho com a refª 439772278, de 08-11-2024.
[8]
Refª 22390560, de 25-11-2024.
[9]
Refª 440720336, de 03-12-2024.
[10]
Neste sentido cfr. Abrantes Geraldes,
“Recursos no Novo Código de Processo Civil”
, 5ª Ed., Almedina, 2018, pp. 114-117
[11]
Vd. Abrantes Geraldes, ob. cit., p. 119
[12]
“Código de Processo Civil Anotado”
, vol. I, Almedina, 2018, pp. 736-737.
[13]
Basta referir que os primeiros volumes da 1ª edição do
“Código de Processo Civil Anotado”
de ALBERTO DOS REIS foram publicados nos anos 40 do século passado.
[14]
“Código de Processo Civil Anotado”
, Vol. V, Coimbra 3ª Ed., p. 143.
[15]
“Da Sentença Cível”
, in
“O novo processo civil”
, caderno V, e-book publicado pelo Centro de Estudos Judiciários, jan. 2014, p. 370, disponível em
http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/ProcessoCivil/CadernoV_NCPC_Textos_Jurisprudencia.pdf
[16]
Todos os arestos invocados no presente acórdão se encontram publicados em
http://www.dgsi.pt
e/ou e
https://jurisprudencia.csm.org.pt/
. A versão digital do presente acórdão contém hiperligações para todos os arestos nele citados que se mostrem publicados em páginas internet de livre acesso.
[17]
Cremos que a referência à al. c) do nº 1 do art. 615º do CPC resulta de lapso de escrita, dado que o vício a que esta al. se reporta nada tem que ver com a omissão de pronúncia.
[18]
Cfr. arts. 81º e 82º da p.i..
[19]
Vd. arts. 58º, 59º, e 112º a 125º da p.i..
[20]
Arts. 126º e 131º da petição inicial
[21]
“Recursos no Novo Código de Processo Civil”
, 5ª Edição, Almedina, 2018, pp. 165-166.
[22]
Confirmando este entendimento, vd. ac. STJ nº 12/2023, que uniformizou jurisprudência nos seguintes termos:
“Nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa.”
[23]
“Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Vol. I, Coimbra Editora, 2013, pp. 589 ss., em especial p. 609. Este estudo encontra-se também no seguinte endereço:
http://www.cjlp.org/materias/Ana_Luisa_Geraldes_Impugnacao_e_Reapreciacao_da_Decisao_da_Materia_de_Facto.pdf
[24]
Ob. e lug. cits., p. 609.
[25]
Blog do IPPC, 19/05/2017, Jurisprudência (623), em anotação ao Acórdão da Relação de Coimbra de 07/02/2017, disponível em:
https://blogippc.blogspot.com/2017/05/jurisprudencia-623.html
[26]
Vd. arts. 371º, 376º, e 377º do CC.
[27]
Art. 607º, nº 5 do CPC.
[28]
Pontos 1 e 2 dos factos provados.
[29]
Ponto 3 dos factos provados.
[30]
Pontos 4 e 5 dos factos provados.
[31]
Cfr. pontos 2, 6, 17, e 25 e dos factos provados.
[32]
Ponto 6 dos factos provados.
[33]
Vd. atas da assembleia de condóminos nº
s
3, 4, e 5 que constituem os docs. nº
s
45, 46, e 46.1 juntos com a p.i..
[34]
“Código Civil Anotado”
, vol. II, 2ª ed., Coimbra Editora, p. 187.
[35]
“Compra e venda de coisas defeituosas, Conformidade e segurança”
, 5ª ed., p. 44
[36]
Pontos 7, 9 a 12, e 15 dos factos provados.
[37]
“Tratado de Direito Civil”
, XII, Almedina, 2018, p. 977-978
[38]
“Responsabilidade Contratual do Empreiteiro pelos Defeitos da Obra”
, 7ª ed., Almedina, 2020, pp. 185 ss., MENE ss.
[39]
Ponto 6 dos factos provados.
[40]
Vd. data constante da assinatura digital aposta na p.i. (refª 26663680/36047178).
[41]
Pontos 9, a 12, e 15 dos factos provados.
[42]
Alterado pelos DLs 84/2008, de 21-05; 9/2021, de 29-01; e 84/2021, de 18-10. Pelas razões expostas na nota anterior, atenderemos à redação conferida a este diploma pelo DL 84/2008.
[43]
JOÃO CURA MARIANO, ob. cit., p. 287
[44]
Pontos 10, 11, 13, 14, e 15 dos factos provados.
[45]
Ponto 29 dos factos provados.
[46]
Conclusão LIX.
[47]
RDE, ano 12, 1986, pp. 169 ss.
[48]
“Indemnização do Dano de Privação do Uso”
, Almedina, 2001, p. 30 ss.
[49]
“Direito das Obrigações”
, vol. I, 10ª Ed., Almedina, p. 303
[50]
“Interesse Contratual Positivo e Interesse Contratual Negativo”
, I vol. Coimbra Editora, 2009 p. 596.
[51]
Ou seja, afetado de forma parcial, não total.
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TRL
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https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/0969d1d2d19029a080258c3d003f4b50?OpenDocument
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1,759,536,000,000
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REVOGADA PARCIALMENTE A SENTENÇA
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17256/21.8T8PRT.P1
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17256/21.8T8PRT.P1
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JUDITE PIRES
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I - O direito de retenção consiste na faculdade de o detentor de uma coisa não entregar a mesma a quem lha pode exigir, enquanto este não cumprir a obrigação a que está adstrito para com aquele.
II - São pressupostos desse direito:
i) a posse e obrigação de entrega duma coisa;
ii) a existência, a favor do devedor, dum crédito exigível sobre o credor;
iii) e a existência de uma conexão causal entre o crédito do detentor e a coisa, ou seja, este crédito acha-se ligado à coisa, visando o pagamento de despesas que o detentor com ela efetuou ou a indemnização de prejuízos que em razão dela sofreu – “debitum cum re junctum”.
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[
"DIREITO DE RETENÇÃO",
"PRESSUPOSTOS",
"DEBITUM COM RE JUNCTUM"
] |
Processo n.º 17256/21.8T8PRT.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Local Cível do Porto – Juiz 4
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I. RELATÓRIO.
1. Identificação das partes.
Autor:
A..., NIPC ..., clube desportivo sem fins lucrativos, com sede na Rua ..., ... Porto.
Réu:
AA, NIF ......, divorciado, residente na Rua ..., ... Porto
2. Objecto do litígio.
Por via da presente acção, o A. pretende obter a condenação do R. na importância de € 3.420,00, correspondente às mensalidades, de € 60,00 por mês, de parqueamento da embarcação ... na Marina ..., no período de Janeiro de 2017 a Setembro de 2021, bem como nas mensalidades que se vencerem posteriormente até à retirada da embarcação.
Por sua vez, o R. não reconhece que aquela quantia seja por si devida, uma vez que a embarcação permaneceu na marina, parqueada em área reservada à oficina, ao cuidado dos seus subconcessionários, a quem a entregou, para fazer a sua reparação.
Ainda que assim não fosse e aquela mensalidade fosse devida, sempre a retenção da embarcação na marina seria ilegal, uma vez que o A. não goza de direito de retenção.
Por outro lado, a embarcação sofreu por duas vezes actos de vandalismo por incumprimento do A. do seu dever de vigilância, pelo que é o mesmo responsável pelos danos patrimoniais e pelos danos não patrimoniais, que computa em € 2.000,00, que daí advieram para si.
3. Pedido:
- condenação do R. no pagamento da quantia de 3.420,00 Euros, acrescida de juros vencidos e vincendos, 30 dias após o vencimento de cada uma das mensalidades, bem como bem como nas mensalidades que se vencerem até à retirada da embarcação, à razão de 60 Euros/mês, salvo actualização das tarifas, acrescidas de juros vencidos e vincendos, 30 dias após o vencimento de cada uma das mensalidades.
Pedido reconvencional:
Condenação da Reconvinda:
a) na obrigação de restituição e entrega imediata da embarcação sob a designação “...”, de cor branca, com o Livrete nº..., com o motor de Marca ... nº ..., a gasolina, com o Casco nº ..., sita na Marina ..., Estrada Nacional ..., ... Porto a AA, seu legítimo proprietário;
b) no pagamento ao Reconvinte da quantia a apurar a título de danos patrimoniais;
c) no pagamento ao Reconvinte na quantia de €2.000,00 a título de danos não patrimoniais;
d) dos juros legais vincendos desde a data da sentença até efectivo e integral pagamento.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
Nos termos e com os fundamentos expostos, decido julgar:
1.- parcialmente procedente, por provada na mesma medida, a presente acção e, em consequência, condeno o R. a pagar à A. a quantia de 180 (cento e oitenta) euros, acrescida dos juros, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento, absolvendo o R. do demais peticionado.
2.- parcialmente procedente, por provada na mesma medida, a reconvenção e, em consequência, condeno o A./Reconvindo:
a)- a entregar imediatamente ao R. a embarcação sob a designação “...”, de cor branca, com o Livrete nº..., com o motor de Marca ... nº ..., a gasolina, com o Casco nº ..., sita na Marina ..., Estrada Nacional ..., ... Porto a AA, seu legítimo proprietário;
b)-a pagar ao R./ ao Reconvinte a quantia correspondente aos danos patrimoniais sofridos pelo R. em virtude da sua conduta, acrescidos dos juros vincendos peticionados, a determinar em sede de liquidação;
c)- absolver o A. do demais peticionado.
As custas da acção serão suportadas por A. e R. na proporção dos respectivos decaimentos (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código Processo Civil).
As custas da reconvenção serão suportadas por A. e R. na proporção dos respectivos decaimentos, fixando-se provisoriamente tal proporção em 30% e 70% respectivamente.
Registe e notifique”.
Não se conformando o Autor com tal sentença, dela interpôs recurso de apelação para esta Relação, formulando com as suas alegações as seguintes conclusões:
A) As declarações de parte não são suficientes para estabelecer, por si só, qualquer juízo de aceitabilidade final, podendo apenas coadjuvar a prova de um facto desde que em conjugação com outros elementos de prova.
B) As diverências entre as declarações do R. e toda a demais prova produzida nos autos é tal que levou o Tribunal ad quo a considerar como não provados diversos factos que aquele relatou, como sejam, a título exemplificativo, os constantes de h) a l), q), u) ou z), “…não foi possível ao tribunal adquirir uma convicção segura de que os mesmos se verificaram (fls 23).
C) Atento o interesse pessoal, falta de objetividade, falta de corroboração pela demais prova produzida nos autos, não deveria ter sido atribuída pelo Tribunal ad quo a credibilidade mínima exigida à fixação de prova às declarações de parte do R.
SUPRA ARTIGOS 7º A 22
D) O depoimento da testemunha BB, além de incoerente e pejado de contradições com a demais prova produzida e até com as declarações do R., não merece a mais pequena credibilidade em face da preparação de que foi alvo e que pela própria testemunha foi reconhecida.
SUPRA ARTIGOS 23º A 37
E) Atento o depoimento da testemunha CC, responsável pela Marina desde pelo menos 2006 (vide ponto 22) dos factos provados) minutos 00:40:14 a 00:40:27, 00:40:32 a 00:41:18, 00:43:44 a 00:44:36 da gravação de 02.05.2023 e minutos 00:11:20 a 00:14:31 do depoimento de 06.06.2023 da gravação -, o depoimento da testemunha DD -minutos 00:54:29 a 00:55:14, 00:10:35 a 00:11:50, 00:12:11 a 00:12:19, 00:57:26 a 00:58:07, 00:59:07 a 00:59:45, 01:20:16 a 01:23:25, 01:23:35 a 01:25:17 da gravação, nada permite concluir que após a saída do DD, a oficina de reparação mecânica possuisse um conjunto de lugares de estacionamento adstritos à sua actividade que estão isentos do pagamento de qualquer valor pecuniário a título de parqueamento.
F) Não existindo qualquer outra prova, designadamente documental, ocorreu erro na apreciação da prova levada à formulação dada ao ponto 18) da matéria de facto assente, devendo o mesmo ser corrigido para que dele passe a constar que:
18) A oficina de reparação mecânica possuía, até meados de 2015, um conjunto de lugares de estacionamento adstritos à sua actividade que estavam isentos do pagamento de qualquer valor pecuniário a título de parqueamento.
SUPRA ARTIGOS 38º A 54
G) Dos autos resulta que o responsável da Marina explorada pelo A. solicitou, por SMS, ao R. o pagamento do valor referente ao aparcamento do ano de 2016 – doc 2 junto com a contestação – ao que acresce o depoimento da testemunha CC minutos 00:40:04 a 00:44:36 da gravação de 02.05.2023.
H) A matéria de facto fixada no ponto 29) encontra-se em direta contradição com a factualidade dada como não provada, em k), l) e z).
I) Deverão, pois os pontos 28), 29) e 42) dos factos provados serem dados como não provados,
SUPRA ARTIGOS 55º A 63
J) Compulsada a fundamentação da douta sentença, ao depoimento da testemunha CC foi atribuída credibilidade e idoneidade suficientes a fundamentar muita da factualidade dada como provada, independentemente de se tratarem de factos favoráveis ao A., ou não, e na mais das vezes desconsiderando as declarações do R.
K) Não se aferem, pois, razões para que relativamente aos factos constantes das alíneas a) e b) da matéria de facto não provada fosse diferente e haja desconsiderado o depoimento prestado pela testemunha CC.
L) Incorreu o Tribunal ad quo em manifesto erro de apreciação da prova, que se impõem corrigir, dando como provados os factos constantes das alíneas a) e b).
SUPRA ARTIGOS 64º A 75
M) O julgamento operado relativamente à alínea c) dos factos dados como não provados encontra-se em contradição com as alíneas 6) e 7) da matéria de facto assente, respeitantes à existência e afixação em local visível ao público dos “Regulamento de Exploração da Marina” e “Regulamento de tarifas”.
N) Do depoimento da testemunha CC, diretor da Marina, aos minutos 00:33:40 a 00:34:22 do depoimento de 02.05.2023, 00:03:24 a 00:03:36 da gravação de 03.11.2023, da testemunha BB – minutos 00:11:17 a 00:12:15 da gravação de 27.06.2023 -, resulta a necessidade de concluir pela publicidade e conhecimento pelo R. da tabela de preços.
O) Errou, pois, o douto tribunal a quo, na apreciação conciliada de toda a prova produzida a esta matéria e na sua articulação com a factualidade dada como assente em 6) e 7), em razão do que se impõe que os factos constantes das alíneas c) e d), tidos como não provados, sejam efetivamente consideradas como provados.
SUPRA ARTIGOS 76º A 85
P) Cabia ao Réu, enquanto proprietário, retirar a embarcação da Marina ..., quando o sub-concessionário DD deixou de exercer a sua actividade na Marina ... no ano de 2015 – artigos 5, 19, 20 –
Q) Não o fazendo incorre na obrigação de pagamento dos custos de permanência da embarcação, de acordo com o regulamento e a tabela de preços em vigor – pontos 6 e 7 dos factos dados como provados –, tanto assim é que o Réu liquidou o valor correspondente ao parqueamento, no ano de 2016 - artigo 8 dos factos dados como provados.
R) O Réu não fez prova de que o EE dispunha de lugares de estacionamento e o Autor é terceiro em relação a qualquer acordo que o Réu tenha feito com o referido EE.
S) Atento que se deu como provado – pontos 77 e 78 - tem o Autor todo o direito e legitmidade para reclamar do Autor o valor correspondente à ocupação que a embarcação de que é proprietário vem fazendo, desde 2017, cabendo ao Réu e não ao Autor “entender-se” com o referido EE.
T) Tendo em conta que o Autor exerce a actividade de concessionário da Marina ..., não restam dúvidas que existe uma obrigação de remuneração do Autor pelo “parqueamento” da embarcação – cfr. artº 1155º, 1158º, nº 1 ex vi 1156º do CC
U) Como não existe um contrato escrito, mas o Réu sabia quais as condições de parqueamento de embarcações na Marina ..., o valor do parqueamento é determinado pelas tarifas vigentes, conforme o disposto no n.º 2 do artigo 1158º do CC
V) À data de 05 de Março de 2021, data em que o Réu pretendia levantar a embarcação, era o Autor credor sobre o Réu de valores referentes ao parqueamento.
X) Quer o disposto na alínea e) do artigo 755º do CC, quer o nº 5 do artigo 7º do Regulamento de exploração da marina - ponto 14 dos factos dados como provados, conferiam ao Autor direito de retenção.
Z) A douta sentença reconhece, mesmo na análise que faz da factualidade que na data em que Réu se propôs retirar a embarcação - 05 de Março de 2021 (ponto 47 dos factos dados como provados), o Autor possuía um crédito sobre o Réu de, pelo menos 180 Euros, o que lhe conferia direito de retenção sobre a embarcação, até ao seu pagamento.
AA) Existe manifesta contradição entre o que dá como provado, a conclusão de que o Autor tinha, à data de 05 de Março de 2021 um crédito de 180,00 Euros e a conclusão de que não tinha direito de retenção porque não detinha nenhum crédito.
BB) Concluindo que o Autor tinha um crédito, de 180,00 Euros, segundo a douta sentença, ou 3.060,00 Euros, segundo a posição defendida pelo Autor, à data de 05 de Março de 2021, a retenção que fez da embarcação foi e mantinha-se lícita.
CC) Incumbia ao EE, por via do contrato de empreitada celebrado entre si e o Réu e - não ao Autor - no período de 2017 a 2020 -, guardar, vigiar e conservar a embarcação, pois a ele estava confiada.
DD) Atento o disposto no n.º 2 do artigo 5º do “REGULAMENTO DE EXPLORAÇÃO DA Marina ...”, aprovado pela B... - ponto 71 dos factos dados como provados – que estava afixado – ponto 6 - quando o Réu decidiu colocar a embarcação na Marina ..., tinha perfeita consciência que o fazia nas condições constantes daquele, assim o aceitando e vinculando-se ao mesmo.
EE) Inexiste, pois, qualquer contrato de depósito entre o Réu e o Autor, do que decorre a inexistência de qualquer obrigação de vigilância, cuidado ou manutenção por parte do Autor, pelo que inexiste o direito de que se arroga titular o Réu.
FF) Atento o disposto no artigo 27º do referido “REGULAMENTO DE EXPLORAÇÃO DA Marina ...”, aprovado pela B..., de que o Réu tomou previamente conhecimento e aceitou, este desonerou o Autor de toda e qualquer responsabilidade por acidentes, danos na embarcação, furtos e/ou roubos, assim como por quaisquer prejuízos.
GG) Com a existência de uma vedação com altura superior a dois metros, um circuito interno de videovigilância e o condicionamento do acesso ao interior no período de funcionamento - pontos 75 e 76 dos factos dados como provados -, estão mais que cumpridas as obrigações que pendiam sobre o Autor, apesar de não ter, alegadamente, impedido o furto e/dano.
HH) Assim, ainda que se considere existir um contrato de depósito, constata-se que o Autor, enquanto depositário mais que ilidiu a presunção de culpa que sobre si impendia, nos termos do artigo 799º nº 1 do Código Civil, tendo-se por não culposo o alegado incumprimento, pelo que nenhuma responsabilidade tem no sucedido.
Termos em que, revogando-se a douta sentença a quo, substituindo-se por outra que, julgando a acção totalmente procedente, condene o Réu no pedido e, simultaneamente improcedente o pedido reconvencional deduzido pelo Réu, far-se-á inteira e sã JUSTIÇA!”.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar.
II.OBJECTO DO RECURSO.
A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelos recorrentes e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.
B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelos recorrentes, no caso dos autos cumprirá apreciar:
- se existe erro na apreciação da prova;
- se é devida, e a que título, qualquer importância pelo parqueamento da embarcação do Réu;
- se existe fundamento para dever o Autor proceder à imediata entrega da embarcação ao Réu;
- se o Autor é responsável, e a que título, por danos causados à embarcação durante o tempo em que esta se mantém parqueada no espaço explorado pelo Autor.
III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
III.1. Foram os seguintes os factos julgados
provados
em primeira instância:
1) O A..., tem como finalidade principal desenvolver actividades que visem o engrandecimento do desporto, da cultura e da qualidade de vida em geral, tendo também em vista a efectivação dos direitos sociais;
2) O A. explora a Marina ..., sita na Estrada Nacional ..., ... Porto, nos termos e condições constantes do contrato de concessão celebrado com a B..., S.A.;
3) A propriedade da embarcação “...” encontra-se registada a favor do R., como decorre do Livrete nº ...;
4) A embarcação em causa está na “Marina ...” desde Setembro de 2006 e foi colocada na doca seca, na área reservada do sub-concessionário DD, em 21/10/2011, para venda;
5) A embarcação permaneceu na “Marina ...”, parqueada nas referidas instalações, mais concretamente na área seca, após DD ter deixado de trabalhar e prestar serviços naquela marina;
6) Existe um “Regulamento de Exploração da Marina ...”, aprovado pela B... e que se encontra de forma permanente patente ao público, afixado em local visível das instalações;
7) E um “Regulamento de Tarifas”, actualizado anualmente, juntando-se a título exemplificativo o de 2021;
8) O R. liquidou o valor correspondente ao parqueamento, no ano de 2016;
9) Depois dessa data, o R. nada mais pagou;
10) Atendendo a que a embarcação propriedade do R. possui uma dimensão inferior a seis metros, a mensalidade do parqueamento daquela embarcação é de 60,00 Euros;
11) O R. foi interpelado para proceder ao pagamento das mensalidade do período de Janeiro de 2017 a Março de 2021;
12) O R. ainda não retirou a embarcação da Marina;
13) O A. mantém a embarcação na Marina na sua posse, não autorizando a sua retirada até à liquidação das importâncias peticionadas;
14) Estatui o n.º 5 do artigo 7.º do “Regulamento de Exploração da Marina ...” que “
O concessionário da Marina ... tem direito a retenção das embarcações com valores e acostagem não pagos nas instalações do ... até que o efetivo pagamento dos valores em dívida, consubstanciados no presente regulamento e materializado no regulamento de tarifas, seja devidamente comprovado.
”;
15) Durante os anos de 2006 a 2015, a gestão da oficina da Marina ... foi do Sr. DD;
16) Durante o período de 2006 a 2015, o R. manteve sempre boa relação com o Sr. DD que era a pessoa que cuidava e tratava das embarcações ali estacionadas, bem como de todos os aspectos a elas relacionados;
17) O R. decidiu colocar a embarcação “...” à venda, tendo a mesma sido recolhida aos lugares adstritos à oficina de embarcações, para ser sujeita a uma revisão geral;
18) A oficina de reparação mecânica possui um conjunto de lugares de estacionamento adstritos à sua actividade que estão isentos do pagamento de qualquer valor pecuniário a título de parqueamento;
19) Em meados de 2015, o Sr. DD cessou a sua gestão da oficina da Marina ...;
20) O Sr. DD quando cessou as suas funções, deixou a embarcação “...” no parque da oficina da Marina ...;
21) A oficina mecânica e o parque de estacionamento adstrito a esta, encontram-se dentro do complexo da Marina ..., sendo vigiada pela A. com câmaras de vigilância e com cancela de acesso restrito a possuidores de embarcações;
22) Desde pelo menos 2006 até à presente data, a pessoa que exercia e exerce as funções de gestão e direcção da Marina ..., em nome e em representação da A., é o Sr. CC;
23) O R., apesar de não navegar com a embarcação, deslocava-se à Marina ...;
24) Numa dessas visitas à Marina ..., no ano de 2015, o R. constatou que os painéis de revestimento interior da embarcação estavam danificados e que o rádio tinha desaparecido;
25) O R. comunicou o sucedido ao representante da A., uma vez que o bem se encontrava dentro da propriedade desta;
26) O Sr. CC apresentou ao R. o novo mecânico da oficina instalada na Marina ..., Sr. EE, de modo a proceder à reparação e pintura da embarcação, para que, posteriormente, fosse vistoriada e colocada novamente a navegar;
27) No ano de 2016, o R. acordou que o Sr. EE procedesse à reparação da embarcação, tendo em vista a aprovação da sua navegabilidade em vistoria;
28) Enquanto isto sucedia, e apesar do Sr. CC ter conhecimento pessoal do sucedido e de ter sido sempre informado pelo R. das diligências em curso, este foi surpreendido com a apresentação pelo próprio Sr. CC da conta correspondente à anuidade da Marina referente ao ano de 2016;
29) O R. falou pessoalmente com o Sr. CC, tendo-lhe dito que a embarcação ... tinha sido vandalizada nas instalações da Marina ..., sob guarda e vigilância da A., que entendia que não deveria suportar aquele custo, mas que, o faria pela última vez, de boa-fé, solicitando o apoio ao Sr. CC para acompanhar a reparação da embarcação;
30) O valor da reparação da embarcação foi pago pelo R. ao Sr. EE;
31) No momento em que a embarcação estava a ser inspeccionada pela Capitania, foi detectado um problema no motor;
32) Uma vez que lhe faltavam peças e seu interior continha água, peças metálicas de limalha e esferas;
33) O descrito em 32) e 33) ocorreu enquanto a embarcação se encontrava dentro das instalações da Marina ...;
34) No dia 14 de Fevereiro de 2017, o R. enviou um SMS ao Sr. CC a dar conta do sucedido nos termos que constam do documento n.º 1 junto com a petição inicial, cujo teor se dá por integralmente reproduzido;
35) O R. acordou com o Sr. EE proceder à reparação do motor, para que, posteriormente, pudesse ser novamente vistoriada a embarcação;
36) A embarcação voltou novamente para as instalações da oficina para reparação do motor;
37) O R. deslocava-se à Marina ... para se inteirar do estado da reparação;
38) As justificações apresentadas pelo Mecânico, Sr. EE, ao R. para justificar o atraso da reparação da embarcação eram de vária índole;
39) Alegava que as peças estavam encomendadas, atrasos nas encomendas, promessas de que a reparação iria ocorrer em curto prazo de tempo, sendo certo que o R. nunca obteve uma resposta objectiva sobre a data de conclusão da reparação;
40) O R. teve conhecimento de que o mecânico Sr. EE iria deixar a Marina ... em 2020;
41) O R. informou o Sr. CC da sua pretensão em retirar em definitivo a embarcação das instalações da Marina ...;
42) De forma inusitada, a 15 de Novembro de 2020, o Senhor CC enviou um SMS do telemóvel com o número ..., para o telemóvel do Réu, com o seguinte teor: “ Boa tarde, relativamente ao seu barco solicito o pagamento de 660€ relativos ao estacionamento em área seca relativo ao período de janeiro a novembro de 2020 NIB ... desde já obrigado CC”(SIC) - conforme documento junto sob nº 2 e, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
43) A comunicação supra citada é a única em que a A. solicita ao R. qualquer pagamento e, como se comprova, não fez qualquer referência a valores em dívida referente a quaisquer anos anteriores.
44) Em dia não concretamente apurado do mês de Novembro de 2020, o R., acompanhado do Sr. DD, deslocou-se à Marina ... para proceder ao levantamento da embarcação ...;
45) O porteiro abriu a cancela permitindo a entrada da viatura. Porém, ao colocar o reboque perceberam que os pneus do atrelado estavam completamente vazios e não podiam movimentar o mesmo naquelas condições. Ficou combinado regressarem noutro momento ao local para efectuarem a retirada da embarcação;
46) Face ao cenário de pandemia COVID-19 e restrições de circulação a que a população portuguesa foi sujeita no Estado de Emergência decretado e suas renovações sucessivas, só foi possível reprogramar a retirada da embarcação para 05 de Março de 2021;
47) Para surpresa e choque do R., no dia 5 de Março de 2021, o Sr. DD contactou-o via telefone, comunicando-lhe que se encontrava na Marina ... e tinha sido impedido pelo Sr. CC de retirar a embarcação ..., alegando "falta de pagamento à Marina" pelo aqui R.;
48) De imediato, o R. contactou telefonicamente o Director Geral da A., Sr. Coronel FF, solicitando que lhe fosse permitida a retirada imediata da embarcação;
49) O Sr. Coronel FF enviou um email ao R. em 11 de Março de 2021 a pedir para que este enviasse um resumo da situação, nos termos que constam do documento 3 junto com a contestação, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais;
50) O R. respondeu ao referido email em 22 de Março de 2021, nos termos constantes do documento 4 junto com a contestação, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais;
51) No mesmo dia 22 de Março, o R. recebeu uma resposta do Sr. CC, junta com a contestação como documento 5, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, anexando uma carta datada de 19 de Março de 2021 junta com a contestação como documento 6, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, na qual solicita ao R o pagamento da quantia de € 3.060.00 devida pelo parqueamento de Janeiro de 2017 a Março de 2021;
52) No dia 25 de Março de 2021 o R. respondeu ao email recebido, nos termos constantes do documento 7 junto com a contestação, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais;
53) O R., na exposição que fez à A. no citado documento 7, rejeitou efectuar o pagamento do valor reclamado de €3.060,00;
54) O A. não mais respondeu às solicitações do R., limitando-se a remeter-lhe via email, com uma transcrição, datado de 01 de Maio de 2021, a reclamar o pagamento do parqueamento no valor de € 3.060,00, correspondente ao período de Janeiro de 2017 a Março de 2021 e invocando o exercício do direito de retenção da embarcação, caso não procedesse ao referido pagamento, nos termos referidos no documento 8 junto com a contestação, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais;
55) A A. nunca remeteu ao R. qualquer factura ou documento contabilístico, no qual solicitasse algum montante em débito referente à embarcação ...;
56) Face ao silêncio da A., no dia 13 de Maio de 2021, o R. apresentou-se com um transporte adequado na Marina ... para retirar a embarcação ...;
57) No dia 13 de Maio, o representante da A., Sr. CC, ordenou ao funcionário ali presente que impedisse a retirada da embarcação “...”;
58) Face ao sucedido, o R. solicitou a comparência da Polícia Marítima para tomar conta da ocorrência;
59) Na presença do Agente da Polícia Marítima, o R. constatou o seguinte: A embarcação “...” tinha sido deslocada; A embarcação estava mal tapada e com água; O seu interior, incluindo as alcatifas, sistema eléctrico e os bancos, estava repleto de água e lixo;
60) A embarcação encontrava-se posicionada em frente aos escritórios da Marina – em local de passagem e de visibilidade aos responsáveis da Marina;
61) O representante da A., alegou a não autorização de retirada da embarcação, invocando o direito de retenção pela existência de uma dívida, não tendo exibido ao Agente da autoridade policial qualquer documento comprovativo da alegada dívida;
62) De 2017 a 2020, a embarcação ... encontrava-se em reparação na oficina existente na Marina;
63) Actualmente, a embarcação apresenta água no interior do convés, com manifesta degradação deste espaço por elevada concentração de humidades, deterioração/oxidação dos instrumentos de navegação, comando e controlo, cabos eléctricos à vista, sujidade e manchas os estofos, objectos nos interior do convés deteriorados, ausência de bateria, oxidação aparente no motor de proporção, hélice e coluna/rabeta com elevada deterioração dos elementos vedantes e de movimentação, característica de não uso/utilização/manutenção;
64) O valor da reparação da embarcação é de cerca de € 3.800;
65) O valor da embarcação, no estado em que se encontra, é de cerca de € 2.515,23 e, após a reparação necessária, de cerca de € 5.500,00;
66) Até à presente data, a A. não emitiu nenhuma factura de parqueamento da embarcação ...;
67) Desde o ano de 2016 até à presente data, que a embarcação ... ainda não foi reparada;
68) A embarcação encontra-se mal tapada e exposta ao vento, chuva e sol;
69) A embarcação foi deslocada pela Reconvinda dos lugares de parqueamento da oficina para os lugares de parqueamento da marina;
70) O R. esteve privado do uso da embarcação por período superior a 4 anos;
71) Prescreve o n.º 2 do artigo 5.º do “Regulamento de Exploração da Marina ...”, aprovado pela B... “
Os contratos celebrados entre a Marina e os proprietários das embarcações não constituem por qualquer forma um contrato de depósito, pelo que a Marina não se responsabiliza pela guarda da embarcação;”
72) A embarcação não estava, até 2016, depositada aos cuidados do A.;
73) O DD era subconcessionário do A, sendo que no âmbito do acordo de subconcessão foi-lhe cedido o gozo de um espaço, dentro das instalações da Marina ...;
74) Estatui o artigo 27.º do referido “Regulamento de Exploração da Marina ...”, aprovado pela B... “
Sem prejuízo do disposto nos nºs 1 e 2 do artigo anterior, a Marina não assume qualquer responsabilidade por acidentes ou por qualquer dano que se verifique nas embarcações, tanto no lugar de acostagem na água, como estacionadas na área seca, ou na demais área concessionada, bem como, pelo desaparecimento de embarcações ou objetos nelas existentes, assim como por quaisquer prejuízos resultantes de fenómenos naturais adversos, nomeadamente: enxurradas, ciclones, cheias.”;
75) As instalações da Marina ... estão dotadas de câmaras de vigilância e o acesso é condicionado com cancela;
76) Para além de a Marina ... estar vedada em toda a sua volta por vedação em rede, assim vedando o acesso ao interior da mesma, quando fora do período de funcionamento já que, durante o seu funcionamento, é vigiada pelos funcionários do A.;
77) Nem o Sr EE, nem o Sr. DD são funcionários/trabalhadores do A., nem têm qualquer acordo com o A. com vista à prestação de serviços de reparação aos clientes do A.;
78) A relação existente entre o Sr EE e o Sr. DD com o A., tem por base um contrato de concessão, no âmbito do qual o A. permitiu àqueles a prestação aos respectivos clientes de serviços de reparação, manutenção, tratamento e pintura de embarcações, comercialização de material náutico e de embarcações no ..., limitando-se a afectar à actividade daqueles uma área coberta e um área descoberta, destinada ao estacionamento de embarcações;
79) O R. indicou como morada a Rua ..., ... Porto e não recebeu a carta de 21 de Setembro de 2021, junta com a petição como documento 5;
80) Tendo sido avisado da missiva, no dia 23 Setembro 2021 e tendo sido depositado um aviso a tal respeito na sua caixa postal, não cuidou de, até ao dia 6 Outubro 2021 levantar a mesma nos CTT, como resulta da consulta do site dos CTT, pela referência ....
III.2. A mesma instância considerou
não provados
os seguintes factos:
a) Em 2015, foi comunicada ao R. o fim da relação contratual com o referido subconcessionário;
b) E que teria de retirar a sua embarcação da doca seca, na área reservada do referido sub-concessionário, sob pena de lhe serem imputados custos de permanência, de acordo com a tabela de preços em vigor;
c) O R. era e é conhecedor do regulamento de exploração da Marina e do Regulamento de Tarifas e aceitou-os;
d) Este regulamento encontra-se afixado em lugar bem visível ao público;
e) Quando decidiu colocar e deixar permanecer a embarcação na Marina ..., apesar de instado para a sua remoção, o R. tinha perfeita consciência que o fazia nas condições constantes daquele, assim o aceitando e vinculando-se ao mesmo;
f) Durante o período de 2006 a 2015, o R. manteve sempre uma excelente relação com todos os colaboradores da Marina ...;
g) O Sr. DD quando cessou as suas funções, deixou a embarcação “...” em perfeito estado de conservação e com todos os seus pertences.
Concretamente, rádio, bóias, coletes, capotas, etc;
h) O R. deslocava-se à Marina ... com regularidade para ver o estado da embarcação;
i) Na ocasião referida em 24), o Sr. CC reconheceu o sucedido e prometeu ajudar na resolução do problema;
j) Aproveitando o momento da reparação referida em 26), o R. decidiu também, mandar fazer capotas novas - o que fez - tendo suportado o custo de €500,00;
k) O Sr. CC prometeu ajuda e colaboração ao R.;
l) Com base nesse compromisso de ajuda, e apesar de a embarcação estar, no momento, no “parque de estacionamento” da oficina, o R., de boa fé e com espírito de bom relacionamento, pagou essa anuidade de 2016 à A., tendo dito, na presença de terceiras pessoas, ao Sr. CC, que não voltaria a realizar outros pagamentos, enquanto o barco não estivesse integralmente reparado e em condições de poder navegar, pelos danos sofridos nas instalações da Marina;
m) Em Fevereiro de 2017 o Sr. EE comunicou ao R. que a embarcação ... estava pronta;
n) A embarcação, enquanto estava aos cuidados e sob a vigilância da A., foi vandalizada pela segunda vez, tendo-lhe sido roubadas peças e colocado água, peças metálicas de limalha e esferas no seu interior;
o) O referido em 35) ocorreu em Fevereiro de 2017;
p) Os factos supra descritos foram comunicados pelo R., directamente e de viva voz, ao Sr. CC nas instalações da Marina e presenciado por terceiros;
q) O R., sempre que se encontrava em território nacional, deslocava-se à Marina ... para se inteirar do estado da reparação;
r) O R. efectuou inúmeros telefonemas ao Sr. EE para obter uma resposta objectiva sobre a data de conclusão da reparação;
s) O R. passou a questionar o responsável da A. sobre o assunto. Este também alegava atrasos na obtenção das peças, comprometendo-se a ajudar a solucionar o problema;
t) O R. deslocou-se à Marina ... no Verão de 2020 e teve conhecimento directo pelo Mecânico Sr. EE de que este iria deixar a Marina .... Mais informou o R. de que a reparação não estava concluída;
u) O R. constatou que já não existia ninguém a trabalhar na oficina, que existiam problemas com vários utentes da Marina e que a mesma se encontrava praticamente ao abandono com sinais evidentes de actos de vandalismo, concretamente, vidros partidos e mau estado geral das instalações;
v) Questionado o representante da A., Sr. CC, sobre esta situação de inexistência de mecânico, este anunciou ao R. a vinda de uma nova empresa para a oficina da Marina ..., e que, finalmente, o problema seria resolvido, pedindo imensas desculpas pelo atraso na reparação;
w) O R., no final do Verão de 2020, depois de goradas a vinda da anunciada empresa para a oficina e das expectativas de que a A. criasse condições para a resolução do problema a que deu causa pelo seu não zelo, cuidado e boas práticas sobre a embarcação ... que estava à sua guarda nas instalações da Marina, deslocou-se pessoalmente às instalações da Marina ... e nessa altura informou o Sr. CC da sua pretensão em retirar em definitivo a embarcação das instalações, a fim de resolver o problema noutro local;
x) O representante da A. não manifestou ao R. qualquer entrave ou obstáculo à retirada da embarcação. Pelo contrário, disse directamente ao R., na presença de terceiros, que o ajudaria nas diligências que fossem necessárias, porque reconhecia que o R. havia sido vítima de uma série de acontecimentos, que o impediu, durante anos, de usufruir da sua embarcação;
y) O R. informou o representante da A. que a pessoa que iria proceder ao levantamento da embarcação seria o Sr. DD;
z) Imediatamente após a recepção do SMS identificado em 42), o R. contactou o representante da A., informando-o que não aceitava pagar qualquer quantia a título de “estacionamento” na oficina, uma vez que a responsabilidade dos danos existentes na embarcação ..., são da inteira responsabilidade da A. e, por outro lado, a embarcação esteve estacionada no parque de estacionamento da oficina mecânica da Marina;
aa) Face ao alegado pelo R., o Sr. CC disse-lhe, que tratasse da retirada do barco da oficina, com a maior brevidade possível, não tendo solicitado directamente o R. sobre o pagamento;
bb) Foi no dia 17 de Novembro de 2020 que ocorreu o facto descrito em 44);
cc) O representante da A., CC, tomou conhecimento directo do sucedido, não se tendo manifestado, nem oposto à retirada da embarcação, ou em relação a qualquer outro assunto;
dd) Na ocasião referida em 48), o R. informou o Diretor Geral da A., Sr. Coronel FF, que à data, não tinha qualquer montante em débito para com a A., uma vez que, desde o momento em que a embarcação foi vandalizada pela segunda vez, dentro das suas instalações, e estando a mesma estacionada para reparação na oficina ali existente, não era devido qualquer valor a título de “parqueamento”;
ee) Até à presente data a embarcação “...” esteve sempre parqueada nos lugares adstritos à oficina de reparação, a aguardar a conclusão dos trabalhos que nunca se efectivaram;
ff) Nas circunstâncias referidas em 58) o R. constatou que a embarcação estava destapada;
gg) Com a presente acção, a A. pretende criar uma falsa realidade de que a embarcação ocupou um lugar de parqueamento em doca seca no período de 2017 a 2021 por decisão unilateral do R., quando, na realidade dos factos, a embarcação ocupou sim, um dos lugares adstritos à oficina localizada dentro da Marina, que por sua vez, incumpriu todos os prazos acordados de reparação da embarcação;
hh) Desde o ano de 2016, até à presente data, que a embarcação ... tem sido sucessivamente vandalizada, enquanto se encontra no parqueamento da oficina da Marina;
ii) A embarcação está a exposta a todos os actos de vandalismo, uma vez que a Reconvinda não exerce qualquer vigilância sobre os bens que estão à sua guarda;
jj) A embarcação foi acorrentada pelo A.;
kk) O descrito em 68) ocorrreu com o único objectivo de tentar criar a convicção a “terceiros”, nomeadamente ao tribunal, de que a embarcação está no parqueamento e, desta forma, alegar a cobrança de uma mensalidade de acordo com a alegada tabela de preços ali afixada;
ll) O Reconvinte só foi confrontado com um pedido de pagamento de € 660,00 em Novembro de 2020, a que respondeu;
mm) Foram os colaboradores do A. que, de forma altruísta e desinteressada, auxiliaram o R. no agendamento e realização da vistoria junto da Autoridade Marítima, vistoria essa que foi realizada em 16/12/2016;
nn) A embarcação não foi considerada apta porque não tinha em funcionamento os seus elementos mais básicos e imprescindíveis, tais como o sistema de ventilação/arrefecimento do motor, a bomba de fundo, o conjunto de identificação, o elevador da coluna do motor, o sistema de luzes, a buzina, entre outros;
oo) O R. não recebe as missivas do A. que lhe são dirigidas para a morada referida em 78);
pp) O estado em que se encontra a embarcação deve-se à inércia, abandono e descuido do R., que nenhum cuidado ou manutenção votou à embarcação desde 2011.
IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
2. Reapreciação da matéria de facto.
Dispõe hoje o n.º 1 do artigo 662.º do Código de Processo Civil que “
a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa
”, estabelecendo o seu nº 2:
“
A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:
a) Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;
b) Ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;
c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta
”.
Como refere A. Abrantes Geraldes
[1]
, “a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência”… “afastando definitivamente o argumento de que a modificação da decisão da matéria de facto deveria ser reservada para casos de erro manifesto” ou de que “não é permitido à Relação contrariar o juízo formulado pela 1ª instância relativamente a meios de prova que foram objecto de livre apreciação”, acrescentando que este tribunal “deve assumir-se como verdadeiro tribunal de instância e, por isso, desde que, dentro dos seus poderes de livre apreciação dos meios de prova, encontre motivo para tal, deve introduzir as modificações que se justificarem”.
Importa notar que a sindicância cometida à Relação quanto ao julgamento da matéria de facto efectuado na primeira instância não poderá pôr em causa regras basilares do ordenamento jurídico português, como o princípio da livre apreciação da prova
[2]
e o princípio da imediação, tendo sempre presente que o tribunal de 1ª instância encontra-se em situação privilegiada para apreciar e avaliar os depoimentos prestados em audiência. O registo da prova, pelo menos nos moldes em que é processado actualmente nos nossos tribunais – mero registo fonográfico –, “não garante a percepção do entusiasmo, das hesitações, do nervosismo, das reticências, das insinuações, da excessiva segurança ou da aparente imprecisão, em suma, de todos os factores coligidos pela psicologia judiciária e dos quais é legítimo ao tribunal retirar argumentos que permitam, com razoável segurança, credibilizar determinada informação ou deixar de lhe atribuir qualquer relevo”
[3]
.
Também é certo que, como em qualquer actividade humana, sempre a actuação jurisdicional comportará uma certa margem de incerteza e aleatoriedade no que concerne à decisão sobre a matéria de facto. Mas o que importa é que se minimize tanto quanto possível tal margem de erro, porquanto nesta apreciação livre o tribunal não pode desrespeitar as máximas da experiência, advindas da observação das coisas da vida, os princípios da lógica, ou as regras científicas
[4]
.
De todo o modo, a construção da realidade fáctica submetida à discussão não se poderá efectuar de forma parcelar e desconexa, atendendo apenas a determinado meio de prova, ou a parte dele, e ignorando todos os demais, ainda que expressem realidade distinta, a menos que razões de credibilidade desacreditem estes.
Ou seja: nessa tarefa não pode o julgador conformar-se com a análise parcelar e parcial transmitida pelos litigantes, mas antes submetê-la a uma ponderação dialéctica, avaliando a força probatória do conjunto dos meios de prova destinados à demonstração da realidade submetida a debate.
Assinale-se que a construção – ou, melhor dizendo, a reconstrução, pois que é dela que se deve falar quando, como no caso, se procede à ponderação dos factos que por outros foram apreendidos e transmitidos com o filtro da interpretação própria de quem processa essa apreensão – da realidade fáctica não pode efectuar-se de forma parcelar e desconexa, antes reclamando o contributo conjunto de todos os elementos que a integram.
Quer isto dizer que a realidade surge de um conjunto coeso de factos, entre si ligados por elos de interdependência lógica e de coerência.
A realidade não se constrói apenas a partir de um depoimento isolado ou de um conjunto disperso de documentos, ainda que confirmadores de uma determinada versão factual, antes se deve conformar com um património fáctico consolidado de forma sólida, coerente, transmitido por elementos probatórios com idoneidade e aptidão suficientes a conferir-lhe indiscutível credibilidade.
Como se escreveu no acórdão da Relação de Lisboa de 21.12.2012
[5]
, “…a verdade judicial traduz-se na correspondência entre as afirmações de facto controvertidas, relevantes e pertinentes, aduzidas pelas partes no processo e a realidade empírica, extraprocessual, que tais afirmações contemplam, revelada pelos meios de prova produzidos, de forma a lograr uma decisão oportuna do litígio. Sobre as doutrinas da verdade judicial como mera coerência persuasiva ou como correspondência com a realidade empírica, vide Michele Taruffo, La Prueba, Marcial Pons, Madrid, 2008, pag. 26-29. Quanto à configuração do objecto da prova e a sua relação com o thema probandum, vide Eduardo Gambi, A Prova Civil – Admissibilidade e relevância, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, Brasil, 2006, pag. 295 e seguintes; LLuís Muñoz Sabaté, Fundamentos de Prueba Judicial Civil L.E.C. 1/2000, J. M. Bosch Editor, Barcelona, 2001, pag. 101 e seguintes.
Por isso mesmo, a “reconstrução” cognitiva da verdade, por via judicial, não tem, nem jamais poderia ter, a finalidade exclusiva de obter uma explicação exaustiva e porventura quase irrefragável do acontecido, como sucede, de certo modo, nos domínios da verdade história ou da verdade científica, muito menos pode repousar sobre uma crença inabalável na intuição pessoal e íntima do julgador. Diversamente, tem como objectivo conseguir uma compreensão altamente provável da realidade em causa, nos limites de tempo e condições humanamente possíveis, que satisfaça a resolução justa e legítima do caso (…)”.
Pretende o recorrente que, reexaminada a decisão de facto proferida em primeira instância, seja a mesma alterada por esta instância de recurso no que concerne aos segmentos a que se reportam os pontos 18.º, 28.º, 29.º e 42.º dos factos considerados provados, assim como os referentes às alíneas a), b), c) e d) da matéria dada como não provada.
Satisfatoriamente cumpridos os ónus fixados no artigo 640.º do Código de Processo Civil, importa proceder à reclamada reapreciação da matéria de facto objecto de impugnação pelo recorrente.
- Ponto 18.º dos factos provados: pretende o apelante que seja alterada a redacção deste segmento decisório, de forma a poder dele constar: “18) A oficina de reparação mecânica possuía, até meados de 2015 um conjunto de lugares de estacionamento adstritos à sua actividade que estavam isentos do pagamento de qualquer valor pecuniário a título de parqueamento”, indicando os meios de prova que, no seu entender, suportam a pedida modificação.
O tribunal recorrido fundamentou o decidido, quanto a este concreto segmento, no depoimento das testemunhas CC e DD e nas declarações do Réu.
Quanto às declarações de parte prestadas pelo Réu, questiona o recorrente a credibilidade das mesmas, argumentando, designadamente, que
“[A]tento o interesse pessoal, falta de objetividade, falta de corroboração pela demais prova produzida nos autos, não deveria ter sido atribuída pelo Tribunal ad quo a credibilidade mínima exigida à fixação de prova às declarações de parte do R”
- alínea C) das conclusões.
De acordo com o n.º 3 do artigo 466.º do Código de Processo Civil, o tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão.
Lebre de Freitas, cujo pensamento se pode reconduzir à tese do carácter supletivo e vinculado à esfera restrita de conhecimento dos factos em termos de valoração das declarações de parte, defende que “a apreciação que o juiz faça das declarações de parte importará sobretudo como elemento de
clarificação
do resultado das provas produzidas e, quando outros não haja, como prova
subsidiária
,
máxime
se ambas as partes tiverem sido efetivamente ouvidas”
[6]
.
Carolina Henriques Martins
[7]
, sustenta, por seu turno que “[...] não é material e probatoriamente irrelevante o facto de estarmos a analisar as afirmações de um sujeito processual claramente interessado no objecto em litígio e que terá um discurso, muito provavelmente, pouco objectivo sobre a sua versão dos factos que, inclusivamente, já teve oportunidade para expor no articulado.
Além disso, [...] também não se pode esquecer o caráter necessário e essencialmente supletivo destas declarações que, na maior parte dos casos, servirá para combater uma fraca ou inexistente prestação probatória.
Caso se considere útil a audição da parte nesta sede quando coexistem outros meios de prova, propomos a sua apreciação como um princípio de prova, equivalente ao mencionado
argomenti di prova
italiano, que não deixará de auxiliar na persuasão do juiz, mas que apenas o fará em correlação com a restante prova já produzida contribuindo para a sua (des)credibilização, e apenas nesta medida.
Estas são as coordenadas fundamentais para a consideração das declarações de parte no nosso esquema probatório”.
Miguel Teixeira de Sousa, tomando posição sobre a mesma específica questão, escreveu:
“
Se o princípio de prova é o menor grau de prova admissível e se se atribui esse valor às declarações de parte, então o que não teria nenhum valor probatório em si mesmo (nem sequer como mera justificação) passa a poder ter algum valor probatório, ainda que o menor na escala dos valores probatórios. Mais em concreto: se se atribui às declarações de parte relevância como princípio de prova, isso significa que estas declarações, apesar de não serem suficientes para formar a convicção do juiz nem sobre a verdade, nem sobre a plausibilidade ou verosimilhança do facto, ainda assim podem ser utilizadas para corroborar outros resultados probatórios. A conclusão não deixa de ser a mesma, se se pretender defender (…) que as declarações de parte só podem relevar como princípio de prova.
À medida que se baixa nos graus de prova, mais fácil se torna atribuir relevância probatória a um certo meio de prova. Lembre-se o que sucede em sede de procedimentos cautelares. É exatamente com o intuito de facilitar a prova de um facto que o art. 368.º, n.º 1, CPC aceita, no âmbito destes procedimentos, a mera justificação como o grau de prova suficiente.
Assim, em vez de atribuir às declarações de parte o valor de princípio de prova, melhor solução parece ser o de atribuir a estas declarações o grau normal dos meios de prova, que é o de prova
stricto sensu
ou, nas providências cautelares, o de mera justificação. Isto significa que, de acordo com o critério da livre apreciação da prova, o tribunal tem de formar uma prudente convicção sobre a verdade ou a plausibilidade do facto probando (cf. art. 607.º, n.º 5 1.ª parte, CPC).
Abaixo desta relevância probatória e da convicção sobre a verdade ou a plausibilidade do facto, as declarações de parte não devem ter nenhuma relevância probatória, nem mesmo para corroborarem outros meios de prova. Esta é, aliás, a melhor forma de combater a natural tendência das partes para só deporem sobre factos que lhes são favoráveis”
[8]
.
Já Mariana Fidalgo
[9]
especifica: “[...] ponto, para nós, assente é que este meio de prova não deve ser previamente desprezado nem objecto de um estigma precoce, sob pena de perversão do intuito da lei e do princípio da livre apreciação da prova. Não olvidando o carácter aparentemente subsidiário das declarações de parte, certo é que foram legalmente consagradas como um meio de prova a ser livremente valorado, e não como passíveis de estabelecer um mero princípio de prova ou indício probatório, a necessitar forçosamente de ser complementado por outros. Assim sendo, e ainda que tal possa naturalmente suceder com pouca frequência na prática, defendemos que será admissível a concorrência única e exclusiva deste meio de prova para a formação da convicção do juiz em determinado caso concreto, sem recurso a outros meios de prova”.
No caso em apreço, o Réu confirmou, no decurso das declarações prestadas em audiência de julgamento, a matéria vertida no ponto 18.º dos factos provados.
A testemunha DD, que, tal como consta dos pontos 15) e 19) dos factos provados, entre 2006 e meados do ano de 2015, manteve a gestão da oficina da Marina ..., esta explorada pelo Autor, em regime de concessão, como igualmente resulta do ponto 2) dos factos provados, esclareceu que enquanto manteve a gestão da dita oficina, onde o Réu colocou o seu barco para ser efectuada uma revisão geral, existia na Marina um espaço exterior à oficina que explorava que era afecto à mesma, conforme contratualizado, onde eram colocados barcos para nela serem reparados, adiantando ainda que essa zona destinada a um determinado número de barcos que estavam para reparação não estava delineada no local, sendo os barcos parqueados de acordo com a gestão efectuada pelo Sr. CC.
A mesma testemunha revelou desconhecer os termos do contrato celebrado entre a Autora e a C..., após ter cessado, em meados de 2015, a gestão da oficina da Marina ..., não podendo, assim, elucidar se, e em que termos, continuou a haver lugares afectos à oficina para os barcos aí entregues para reparação.
A testemunha CC, Director do Autor A... desde 2006, confirmou a existência, até meados do ano de 2015, altura em que cessou o contrato celebrado com DD, de “lugares gratuitos”, contratualizados com a oficina, para parqueamento de barcos, não tendo sido solicitado ao Réu pagamento pelo aparcamento do seu barco entre 2011 e 2015 por o mesmo se encontrar aparcado num desses “lugares gratuitos”.
De acordo com o depoimento da mesma testemunha, o contrato subsequente à cessação da gestão da oficina pelo DD não incluía, como anteriormente, a cedência de “lugares gratuitos”, tendo as pessoas que tinham barcos nesses locais sido avisadas para os retirarem, no espaço de cerca de um ano, ou iniciarem o pagamento da acostagem.
Esta testemunha, que mantém estreita e prolongada relação com o Autor A..., revelou na prestação do seu depoimento ausência de distanciamento em relação ao objecto de litígio, respondendo mesmo com animosidade a questões que lhe eram colocadas, sobretudo em relação às que encarava como desfavoráveis à posição defendida nos autos pelo Autor, o que, naturalmente, abala a credibilidade de algumas dessas respostas, determinando reservas quanto à sua integral isenção.
Assim, ponderando e valorando os meios probatórios em causa,
altera-se a redacção do ponto 18) dos factos provados,
que passa a ser a seguinte:
A oficina de reparação mecânica possuiu, pelo menos até meados de 2015, um conjunto de lugares de estacionamento adstritos à sua actividade, isentos do pagamento de qualquer valor pecuniário a título de parqueamento
.
- Pontos 28.º, 29.º e 42.º dos factos provados: pretende o recorrente que se considerem não provados os factos em causa.
O tribunal recorrido julgou provada a factualidade constante destes segmentos com base na admissão por acordo, nos termos do disposto no artigo 574.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, além de prova documental.
A matéria vertida naqueles pontos factuais corresponde integralmente ao alegado pelo Réu nos artigos 24.º, 25.º e 46.º da contestação/reconvenção que o Autor, na resposta ao referido articulado, não impugnou, encontrando ainda a matéria do ponto 42.º suporte probatório no documento n.º 2 junto com o articulado do Réu (
print
da mensagem).
Não merece, por conseguinte, qualquer reparo a decisão que julgou provada a factualidade mencionada nos indicados segmentos.
- Alíneas a) e b) dos factos não provados: reclama o recorrente que sejam considerados provados os factos que integram as ditas alíneas, convocando, para o efeito, fundamentalmente o depoimento da testemunha CC.
Sobre a factualidade em questão prestou o Réu declarações, negando-a, enquanto a testemunha CC confirmou a existência de vários avisos aos proprietários de embarcações parqueadas nos lugares afectos à oficina que DD explorou.
O depoimento da testemunha em causa, cuja credibilidade suscita fundadas reservas, pelas razões já antes apontadas, não foi corroborada por qualquer outro meio de prova, designadamente documental, quando é este o meio normalmente usado para a concretização de comunicações desta natureza.
Assim, totalmente em consonância com as razões descritas na decisão que teve por não provada a matéria em causa, entende-se não merecer a mesma, também nesta parte, qualquer censura.
- Alíneas c) e d) dos factos não provados:
Alega o apelante existir, desde logo, contradição com a matéria fixada nos pontos 6) e 7) dos factos dados como provados quanto à existência e afixação em local visível ao público dos Regulamento de Exploração da Marina e do Regulamento de Tarifas.
Mencionando a alínea d) que “Este regulamento encontra-se afixado em lugar bem visível ao público”, e interpretando-se a alusão a “
Este regulamento
” como sendo o Regulamento de Tarifas, indicado em último lugar na antecedente alínea c), não se detecta a invocada contradição com a factualidade assente nos ditos pontos 6), que refere a existência de “um “Regulamento de Exploração da Marina ...”, aprovado pela B... e que se encontra de forma permanente patente ao público, afixado em local visível das instalações”, e como que consta do ponto 7), que se reporta a “um “Regulamento de Tarifas”, actualizado anualmente, juntando-se a título exemplificativo o de 2021”, sem referência à sua afixação em local acessível ao público.
Arredada a existência da convocada contradição, e ponderando a prova indicada pelo apelante para sustentar a alteração do decidido quanto aos segmentos decisórios em análise, facilmente se conclui pela inexistência de prova confirmadora da factualidade neles referidos.
A testemunha CC apenas aludiu ao pagamento, pela acostagem do barco do Réu, nos anos de 2007 a 2011, do valor de € 1.150,00/ano, enquanto a testemunha BB, companheira do Réu desde 2005, confirmou o pagamento, presencialmente na marina, no escritório do Autor, ou por transferência bancária, dos valores devidos pela acostagem do barco entre os anos 2006 e 2015.
Deste modo, não tendo os depoimentos em causa virtualidade bastante para a comprovação da matéria factual inscrita nas referidas alíneas c) e d), e na ausência de outro meio de prova de que resulte a demonstração dessa matéria, necessariamente se teria de concluir em termos coincidentes com o decidido em primeira instância.
Por conseguinte, à excepção da alteração introduzida à redacção do ponto 18.º dos factos provados, mantém-se, sem outras modificações, o decidido quanto à demais matéria objecto de impugnação recursiva.
2. Da aplicação do direito aos factos provados.
Com a acção proposta pretende o Autor a condenação do Réu no pagamento da quantia de € 3.420,00, correspondente às mensalidades, à razão de € 60,00/mês, que entende serem devidas pelo parqueamento da embarcação deste no espaço da Marina ..., por aquele explorado, no período de Janeiro de 2017 a Setembro de 2021.
Como destaca a sentença sob recurso, no ano de 2016 o Réu acordou com EE - que, mediante acordo estabelecido com o Autor, explorava, em regime de concessão, uma oficina instalada no espaço da Marina ..., onde, designadamente, aquele prestava serviços de reparação, manutenção, tratamento e pintura de barcos de clientes do demandante – a reparação do motor do barco ....
Para o efeito, a referida embarcação retornou às instalações daquela oficina, que até meados do ano de 2015 foi explorada, em regime de sub-concessão, por DD, e à qual, por acordo entre este e o Autor,
pelo menos até este cessar a gestão da referida oficina
, foi cedido um conjunto de lugares de parqueamento adstritos à sua actividade, isentos do pagamento de qualquer valor pecuniário a título de parqueamento, e aí permanece, sem que tivesse sido reparada.
Na tese do Autor, finda a relação contratual que estabeleceu com DD e cessando este, em meados de 2015, a exploração da oficina existente na Marina ..., foi extinta a cedência gratuita de lugares de parqueamento para os barcos que nela fossem entregues para reparação, tendo aquele comunicado o facto aos proprietários das embarcações aparcadas naqueles lugares para, sob pena de lhes passar a ser cobrado o valor devido pelo acostamento, para procederem à sua retirada, concedendo-lhes um prazo de um ano para o efeito.
Não logrou o Autor, todavia, demonstrar esta factualidade, sendo, a esse respeito, irrelevante a modificação introduzida nesta instância à redacção do ponto 18.º dos factos provados.
Tal circunstância teria, necessariamente, de determinar a sucumbência, pelo menos em parte, da pretensão do Autor.
De todo o modo, tendo a embarcação do Réu sido colocada na Marina ... para reparação na oficina sub-concessionada a EE, qualquer valor devido pelo parqueamento da embarcação sempre seria da responsabilidade da pessoa incumbida da realização dos trabalhos de reparação, durante o tempo em que aguardou a reparação, fim para a qual a referida embarcação aí deu entrada, já que nenhum acordo foi estabelecido entre o Réu e o Autor quanto ao parqueamento durante esse período. Como assinala a sentença recorrida, “
[E]stando a embarcação confiada a EE para reparação, no período de 2017 a 2020, o estacionamento ou parqueamento da embarcação, a ser devido, teria de ser exigido aquele empreiteiro e não ao R. (já que o R. apenas estava obrigado a pagar a reparação ao empreiteiro, com todos os custos e despesas associados)”
.
A sentença recorrida julgou a acção parcialmente procedente, condenando o R. a pagar à A. a quantia de 180 (cento e oitenta) euros, acrescida dos juros, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento
[10]
, absolvendo o R. do demais peticionado.
Considerou, para o efeito, que
“[C]omo o empreiteiro deixou de ser concessionário da Marina em 2020, o R. devia ter retirado a sua embarcação da Marina ... assim que aquele saiu. Todavia, o R. não retirou a sua embarcação Marina e manteve-se em 2021 a ocupar um lugar de estacionamento na doca seca, o que não lhe era permitido e o fez incorrer na obrigação de indemnizar o A..
Essa indemnização terá de corresponder ao valor da tarifa do estacionamento de um barco daquela categoria, que é de 60 euros por mês, e é devida até à data, em Março de 2021, em que o R. foi impedido pelo A. de retirar a sua embarcação. O valor do estacionamento de um barco como o do R. é de 60 euros mensais, pelo que o R. terá de indemnizar o A. no montante de 180 euros (60 euros * 3 meses)”.
A mesma sentença julgou parcialmente procedente a reconvenção deduzida pelo Réu/Reconvinte, condenando o Autor/Reconvindo a “
entregar imediatamente ao R. a embarcação sob a designação “...”, de cor branca, com o Livrete nº..., com o motor de Marca ... nº ..., a gasolina, com o Casco nº ..., sita na Marina ..., Estrada Nacional ..., ... Porto a AA, seu legítimo proprietário”.
Depois de reconhecer que o Réu tem o dever de indemnizar o Autor no valor de € 180,00, à razão de € 60,00/mês, pela ocupação indevida de espaço destinado a parqueamento de embarcações desde a data em que EE cessou a exploração da oficina em que o Réu entregou o seu barco para reparação, até Março de 2021, altura em que pretendeu retirar o barco das instalações do Autor e foi impedido de o fazer, acrescenta a mesma sentença que “
Como se infere do que já se deixou dito, o crédito peticionado não existe, pelo que o A. não goza de direito de retenção sobre a embarcação do R.
A retenção da embarcação do R. na Marina pelo A. é assim ilegal e faz o A. incorrer na obrigação de indemnizar o R. e de lhe entregar a embarcação ...
”.
Também com esta decisão não conformou o Autor, insurgindo-se pelo facto de na mesma sentença se afirmar que o “o crédito peticionado não existe”, negando, com esse fundamento, qualquer direito de retenção sobre a embarcação e, contraditoriamente no seu entender, lhe ser reconhecido um crédito de € 180,00 sobre o Réu.
Não há dúvida que o recorrente explora, em seu benefício, algumas imprecisões que afectam a sentença recorrida ou, pelo menos, alguma falta de clareza na exposição dos seus fundamentos.
Sem necessidade de um transcendente esforço de interpretação, extrai-se, porém, da sentença que o crédito reclamado pelo Autor a título de contrapartida devida, porque contratualizada com o Réu, pelo parqueamento do barco deste não existia à data em que foi ao demandado recusada a retirada da sua embarcação. Daí, e bem, concluir ter sido ilegal tal retenção.
Contudo, reconhece a mesma sentença ter o Autor um crédito sobre o Réu no valor de € 180,00, pela ocupação, durante três meses, de espaço reservado a parqueamento de embarcações.
Esse reconhecimento não é, ao contrário do que esgrime o Autor, contraditório com a afirmação de que o crédito por ele peticionado não existe: a sentença nega que tenha o Autor direito a receber qualquer importância a título de preço devido pelo parqueamento do barco do Réu, mas reconhece que lhe assiste o direito de ser indemnizado pelos prejuízos decorrentes desse aparcamento abusivo, fixando, com recurso a critérios de equidade, o valor da indemnização devida a esse título, cujo crédito se consolida com a decisão que reconhece esse direito e fixa o valor indemnizatório.
Neste concreto contexto, pode-se seguramente afirmar que no momento em que o Autor se recusou a entregar o barco ao Réu não gozava de qualquer direito de retenção que legitimasse essa recusa.
Mas reconhecendo a sentença que o Réu deve indemnizar o Autor pela abusiva ocupação, pelo período de três meses, de um lugar de aparcamento de embarcações, existe fundamento para a condenação do Reconvindo na entrega imediata do barco ao Réu?
Segundo o artigo 754.º do Código Civil, “
O devedor que disponha de um crédito contra o seu credor goza do direito de retenção se, estando obrigado a entregar certa coisa, o seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela ou de danos por ela causados”.
Para Pires de Lima e Antunes Varela, “
consiste o direito de retenção na faculdade que tem o detentor de uma coisa de a não entregar a quem lha pode exigir, enquanto este não cumprir a obrigação a que está adstrito para com aquele”
[11]
, acrescentando: “
Para que exista direito de retenção, nos termos deste artigo 754º, é necessário, em primeiro lugar, que o respectivo titular detenha (ilicitamente: cfr. art.º 756º, alin. a)) uma coisa que deva entregar a outrem; em seguindo lugar, que, simultaneamente, seja credor daquele a quem deve a restituição; por último, que entre os dois créditos haja uma relação de conexão (debitum cum re junctum), nas condições definidas naquele artigo – despesas feitas por causa da coisa ou danos por ela causados.”
Galvão Telles
[12]
caracterizava o direito de retenção como “(…)
um direito a se, que não se integra no direito de crédito como um seu atributo ou faculdade, antes lhe acresce como uma prerrogativa complementar que, por claras razões de justiça e equidade, a lei concede ao credor para robustecer a sua posição
”.
Trata-se, para o mesmo autor, de um verdadeiro direito real, um direito absoluto, a todos oponível e que reveste uma dupla natureza, apresentando-se, por um lado, como uma garantia real indireta, ou seja, como um meio de coerção ao cumprimento da obrigação, na medida em que o devedor, ou quem quer que porventura se haja tornado entretanto proprietário do objecto, sabe que não pode exigir o mesmo senão mediante o simultâneo pagamento de quanto ao retentor é devido, sentindo-se, assim, compelido a efectuar o pagamento.
A propósito da natureza do direito de retenção, escreveu-se no Acórdão do STJ, de 04.10.2005
[13]
que trata-se de “
um direito real de garantia - que não de gozo -, em virtude do qual o credor fica com o poder sobre a coisa de que tem a posse, o direito de a reter, direito que, por resultar apenas de uma certa conexão eleita pela lei, e não, por exemplo da própria natureza da obrigação, representa uma garantia direta e especialmente concedida pela lei”.
No caso em apreço, mostram-se reunidos os pressupostos do direito de retenção a que alude o citado artigo 754.º do Código Civil: i) a posse e obrigação de entrega duma coisa; ii) a existência, a favor do devedor, dum crédito exigível sobre o credor; iii) e a existência de uma conexão causal entre o crédito do detentor e a coisa, ou seja, este crédito acha-se ligado à coisa, visando o pagamento de despesas que o detentor com ela efetuou ou a indemnização de prejuízos que em razão dela sofreu –
“debitum cum re junctum”.
Ora, gozando o Autor do direito de retenção sobre a embarcação do Réu, pode aquele recusar a entrega da referida embarcação, que tem na sua posse, enquanto não for satisfeito o crédito que tem sobre este, reconhecido na sentença recorrida, que condenou o Réu no pagamento da quantia de € 180,00, acrescida de juros de mora desde a citação.
Consequentemente, não poderia proceder a pretensão do reconvinte quanto à entrega imediata do barco, pelo que, nesta parte, terá de proceder o recurso do apelante, impondo-se a revogação da sentença na parte em que condenou o Autor a proceder a essa entrega – segmento constante do n.º 2, alínea a) do dispositivo da sentença.
Tendo a sentença condenando o Autor “a pagar ao R./ ao Reconvinte a quantia correspondente aos danos patrimoniais sofridos pelo R. em virtude da sua conduta, acrescidos dos juros vincendos peticionados, a determinar em sede de liquidação” – n.º 2, alínea b) do dispositivo da sentença - também o recorrente manifestou, por via do recurso interposto, a sua dissidência contra este segmento condenatório, enjeitando qualquer responsabilidade pela reparação desses danos, alegando a inexistência de qualquer contrato de depósito tendo por objecto o barco do Réu, bem como violação de um dever de vigilância incumprido.
Como fundamento do mencionado segmento condenatório, escreveu-se na sentença aqui sindicada: “
O R. alegou que o A. tinha e tem o dever o de vigilância sobre as embarcações acostadas na água ou estacionadas na área seca e que incumpriu tal dever, pelo que é responsável pelos danos patrimoniais e/ou danos não patrimoniais que sofreu em virtude da conduta do A..
[...] aquele EE ficou adstrito à obrigação de realizar a obra de reparação da embarcação, mas, também, uma vez que o embarcação lhe foi confiada para reparação, a obrigação de a guardar e conservar, no período de 2017 a 2020.
Incumbia assim aquele EE e - não ao A. - no período de 2017 a 2020 -, guardar, vigiar e conservar a embarcação, pois a ele estava confiada. Assim, a ter sido incumprido o dever de vigilância, é aquele EE - e não a A. - que terá de responder pelos danos eventualmente sofridos pelo R. naquele período.
O A. é todavia responsável pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelo R. a partir de 5 de Março de 2021, em virtude da retenção - ilícita e culposa - da embarcação "..." pelo A. naquela data e que se mantém até hoje
”.
Precisa, mais à frente, a mesma sentença que o Autor só responde pelos danos causados no barco do Réu a partir de 5 de Março de 2021, data em que impediu que este procedesse ao seu levantamento.
Ou seja, a sentença não funda o dever de indemnização pelos danos causados à embarcação do Réu a partir de 5 de Março de 2021 num eventual contrato de depósito – que, na verdade, não tendo ocorrido qualquer acordo entre Autor e Réu quanto à entrega da mencionada embarcação para efeitos de aparcamento em espaço gerido pelo primeiro, não existe -, mas antes na responsabilidade civil por factos ilícitos decorrente da retenção ilícita e culposa do barco por determinação do Autor.
Neste enquadramento, não faz qualquer sentido a convocação feita pelo recorrente do disposto no artigo 27.º do Regulamento de Exploração da Marina ..., aprovado pela B..., para justificar a desoneração do Autor de qualquer responsabilidade por acidentes, danos na embarcação, furtos e/ou roubos, assim como outros prejuízos, porquanto a exclusão de responsabilidade assegurada pelo normativo em causa apenas actua no âmbito da responsabilidade contratual.
Em suma: o Autor é responsável por quaisquer danos que a embarcação do Réu possa ter sofrido no período em que a reteve ilicitamente, isto é, no período compreendido entre 5 de Março de 2021 e a data do presente acórdão, que, confirmando ter o Autor um crédito sobre o Réu, resultante da ocupação, com a sua embarcação, de um lugar de aparcamento no espaço explorado pelo primeiro, também reconheceu gozar o Autor de retenção da referida embarcação enquanto não for garantida a satisfação daquele crédito.
Procede, assim, o recurso do apelante, alterando-se a sentença nos ditos termos.
*
Síntese conclusiva:
………………………………
………………………………
………………………………
*
Pelo exposto, acordam as juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo apelante A..., e, em consequência:
- revoga-se a sentença na parte em que condenou o Autor a entregar ao Réu a embarcação nos termos fixados no n.º 2, alínea a) do respectivo dispositivo;
- altera-se o segmento decisório do n.º 2, alínea b) do dispositivo da mesma sentença, condenando-se o Autor/Reconvindo a indemnizar o Réu/Reconvinte pelos danos patrimoniais por este sofridos em consequência de estragos/deteriorações causados à embarcação no período compreendido entre 5 de Março de 2021 e a data do presente acórdão, cuja quantificação se relega para ulterior liquidação;
- quanto ao demais, confirma-se a sentença recorrida.
Custas da apelação – por apelante e apelado, na proporção do respectivo decaimento, fixado em 40% e 60%, repectivamente: artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil.
Notifique.
Porto, 10 de Abril de 2025
Acórdão processado informaticamente e revisto pela primeira signatária.
Judite Pires
Isabel Peixoto Pereira
Isabel Ferreira
______________
[1]
“Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2013, Almedina, pág. 224 e 225.
[2]
Artigos 396º do C.C. e 607º, nº5 do Novo Código de Processo Civil.
[3]
Abrantes Geraldes, “Temas da Reforma do Processo Civil”, vol. II, 1997, pág. 258. Cfr. ainda, o Acórdão Relação de Coimbra de 11.03.2003, C.J., Ano XXVIII, T.V., pág. 63 e o Ac. do STJ de 20.09.2005, proferido no processo 05A2007,
www.dgsi.pt
, podendo extrair-se deste último: “De salientar a este propósito, como se faz no acórdão recorrido, que o controlo de facto em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade.
Na verdade, a convicção do tribunal é construída dialecticamente, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im) parcialidade, serenidade, "olhares de súplica" para alguns dos presentes, "linguagem silenciosa e do comportamento", coerência do raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, por ventura transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos (sobre a comunicação interpessoal, RICCI BOTTI/BRUNA ZANI, A Comunicação como Processo Social, Editorial Estampa, Lisboa, 1997)”.
[4]
Anselmo de Castro, “Direito Processual Civil”, Vol. 3º, pág. 173 e L. Freitas, “Introdução ao Processo Civil”, 1ª Ed., pág. 157.
[5]
Processo nº 5797/04.2TVLSB.L1-7, l1-7,
www.dgsi.pt
.
[6]
“A Acção Declarativa Comum, À Luz do Processo Civil de 2013”, Coimbra Editora, 2013, pág. 278.
[7]
“Declarações de Parte”, Universidade de Coimbra, 2015, pág. 58.
[8]
https://blogippc.blogspot.pt/2017/01/jurisprudencia-536.html#links
, texto publicado a 20.01.2017.
[9]
“A Prova por Declarações de Parte”, FDUL, 2015, pág. 80.
[10]
Decisão que o Réu não impugnou.
[11]
Código Civil Anotado
, Volume I, pág. 696
[12]
O direito de retenção no contrato de empreitada
, in “O Direito”, 119, 1987, págs. 15 a 17.
[13]
Processo n.º 05A2158,
www.dgsi.pt
.
|
TRP
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https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/7bb095a1e253c37380258c7b004b07ad?OpenDocument
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1,747,180,800,000
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CONFIRMADA
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246/20.5PCCBR.C1
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246/20.5PCCBR.C1
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MARIA TERESA COIMBRA
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1 - O crime de branqueamento, nas modalidades tipificadas nos nº 2 e 3 do artigo 368-A do Código Penal, é um crime de intenção a exigir o dolo específico – que acresce à consciência e vontade relativa aos elementos objetivos do crime – de atuar com o fim de dissimular a origem ilícita das vantagens obtidas e/ou de evitar que o autor das infrações subjacentes seja criminalmente punido.
2 - Estando em causa a intenção na atuação, que se processa a nível psicológico, na falta de confissão, o tribunal tem de socorrer-se de prova indireta, cuja capacidade demonstrativa não é necessariamente menor, por força da pluralidade de indícios concordantes e convergentes, que permitem alcançar a suficiência probatória de tal prova no processo penal.
3 - A factualidade apurada não permite que se conclua que o arguido se limitou a depositar o dinheiro ilicitamente obtido em contas da sua titularidade e que não disfarçou a sua atuação, pois transferiu dinheiro ilicitamente obtido para contas de familiares e a partir daí o geriu, assim o distanciando das fontes de onde provieram as quantias ilícitas.
4 - Sendo certo não se tratar no presente caso de branqueamento ao nível de operações internacionais ou sofisticadas, ainda assim percebe-se no comportamento adotado pelo arguido uma forma de tornar menos visível e detetável a fonte e origem do dinheiro obtido.
5 - O regime da Perda Alargada, estabelecido pela Lei 5/2002 de 11.01, pressupõe um catálogo de crimes em que está previsto o branqueamento de capitais (artigo 1º, nº 1, alínea i)).
|
[
"CRIME DE BURLA QUALIFICADA",
"CRIME DE BRANQUEAMENTO DE CAPITAIS",
"DOLO ESPECÍFICO",
"FALTA DE CONFISSÃO - PROVA INDIRETA",
"REGIME DA PERDA ALARGADA"
] |
Acordam, em conferência, no tribunal da Relação de Coimbra.
I.
No processo comum com intervenção de tribunal coletivo que, com o nº 246/20.5PCCBR, corre termos pelo juízo central criminal de Viseu foi decidido (transcrição):
I) Julgar totalmente procedente a acusação deduzida contra o arguido AA e consequentemente condená-lo pela prática, em concurso efetivo, de:
- Seis crimes de burla qualificada, na forma consumada,
previsto e punido pelos artigos 217º e 218º, n.º2, alínea b), do Código Penal,
cada um deles na pena de 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão;
- Um crime de branqueamento,
previsto e punido pelo artigo 368º- A, n.ºs 1 a 3, do Código Penal (na redação dada pela Lei n.º 83/2017, de 18.08),
na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão;
- Em cúmulo jurídico, condenar o arguido na pena de 5 (cinco) anos e 2 (dois) meses de prisão;
II) Declaro perdoado 1 (um) ano à pena de 5 anos e 2 meses aplicada ao arguido AA,
sob as condições resolutivas de o arguido não praticar infração dolosa no ano subsequente à entrada em vigor da
Lei 38-A/2023, de 02.08, e de pagamento da indemnização a que será condenado, nos 90 dias imediatos à notificação para o efeito – artigo 8º, n.ºs 2 e 3. ao abrigo dos artigos 2º, n.º1, 3º, n.ºs 1 e 4, 7º a contrario e 8º, da Lei 38-A/2023, de 02.08;
III)
Ao abrigo do disposto no artigo 110.º, n.º 1, al. b) e n.º4, do Código Penal,
declarar a perda a favor do Estado da quantia de € 10.315,00, condenando o arguido no respetivo pagamento ao Estado, sem prejuízo dos direitos dos ofendidos;
IV) Julgar procedente por provado o incidente de liquidação deduzido pelo Ministério Público
nos termos do disposto nos artigos 7º e 8º, da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro e, em consequência,
declarar a perda (alargada) a favor do Estado a quantia de € 77.800,43 (setenta e sete mil oitocentos euros e quarenta e três cêntimos), condenando-se o arguido AA a pagar este valor ao Estado;
V) Relativamente aos pedidos de indemnização cível:
V1.
Julgar totalmente procedente o pedido de indemnização cível deduzido pela ofendida BB
e, consequentemente, condenar o arguido a pagar-lhe a quantia de € 145,00;
V2.
Julgar totalmente procedente o pedido de indemnização cível deduzido pela ofendida CC
e, consequentemente, condenar o arguido a pagar-lhe a quantia de € 1.202,00, acrescida de juros de mora vincendos desde a notificação até efetivo e integral pagamento;
V3.
Julgar totalmente procedente o pedido de indemnização cível deduzido pelo ofendido DD
e, consequentemente, condenar o arguido a pagar-lhe a quantia de € 500,00, quantia acrescida de juros vincendos desde a notificação até integral pagamento;
V4.
Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização cível deduzido pelo ofendido EE
e, consequentemente, condenar o arguido a pagar-lhe a quantia de € 200,00;
VI) Custas:
- Condena-se o arguido no pagamento das custas criminais do processo, fixando-se em 3 UC’s a taxa de justiça devida e nos demais encargos do processo (
artigos 374º, n.º4, 513º, n.º1 e 514º, n.º1, do Código de Processo Penal, e artigos 3º e 8º, n.º5, do Regulamento das Custas Processuais, e tabela III anexa ao mesmo);
- As custas do pedido cível formulado pelo ofendido EE serão suportadas pelo demandado e pelo demandante na proporção do respetivo decaimento
(artigos 523º, do Código de Processo Penal e 446º, do Código de Processo Civil);
- Os demais pedidos cíveis não dão lugar ao pagamento de custas
(artigo 4º, n.º1, al.n), do Regulamento das Custas Processuais).
*
(…)
*
Inconformado com a condenação recorreu o arguido para este tribunal, concluindo o seu recurso do seguinte modo (transcrição):
1º - O Arguido / Recorrente foi condenado pela prática, em concurso efetivo, de seis crimes de burla qualificada e um crime de branqueamento, em cúmulo jurídico, na pena de 5 anos e 2 meses de prisão.
2º - Vem o presente recurso interposto da douta Sentença proferida nos autos por se entender, que se impõe a modificação da decisão do tribunal a quo sobre um concreto ponto da matéria de facto e, consequentemente, da interpretação do direito aplicado.
3º - O tribunal a quo julgou provado o propósito de o Arguido dissimular a sua identidade e esconder a proveniência ilícita das quantias monetárias.
4º - Há elementos de prova nos autos (que até foram considerados pelas Meritíssimas Juízes a quo na motivação) que determinam decisão em sentido contrário.
5º - A conta bancária utilizada pelo Arguido / Recorrente para receber os valores pagos pelas vítimas era uma conta bancária titulada por si.
6º - Como pode o tribunal a quo concluir á luz das regras de experiência comum, que o Arguido agiu com o propósito, entre outros, de evitar vir a ser implicado na prática dos factos que estiveram na génese da obtenção do dinheiro, se a conta para onde foram efetuados os pagamentos das vítimas era conta titulada pelo Arguido?
7º - Não há qualquer propósito de ocultação. Não há qualquer intenção de dissimulação. Tudo foi feito através de conta devidamente identificada do Arguido / Recorrente.
8º - Tomando em atenção as circunstâncias em que ocorreram os factos em julgamento, a conclusão das Meritíssimas Juízes a quo de que: “foi provado o propósito de o Arguido dissimular a sua identidade e esconder a proveniência ilícita das quantias monetárias” padece de erro de julgamento.
9º - Deverão ser julgados NÃO PROVADOS os pontos 139 e 140, quanto ao propósito de o Arguido / Recorrente dissimular a sua identidade e esconder a proveniência ilícita das quantias monetárias.
10º - Ainda que assim não se entenda, o que só por mera hipótese se concebe, resulta da prova produzida em julgamento (e da falta dela) factos conducentes a decisão diversa da proferida.
11º - A prática do de crime de branqueamento de capitais pressupõe que o seu autor tenha praticado pelo menos uma das condutas previstas no n.º 2 do artigo 368º-A do Código Penal: “converter, transferir, auxiliar ou facilitar alguma operação de conversão ou transferência de vantagens, obtidas por si ou por terceiro, direta ou indiretamente, com o fim de dissimular a sua origem ilícita, ou de evitar que o autor ou participante dessas infrações seja criminalmente perseguido ou submetido a uma reação criminal.”
12º - Dos factos dados como provados relativamente ao Arguido/ Recorrente não resulta provada a prática de qualquer operação capaz de ocultar ou dissimular a origem das quantias em causa ou evitar a punição do Arguido ou de terceiros pela prática dos factos descritos no n.º 2 do artigo 368.º - A do Código Penal.
13º - Pelo que deve o Arguido/ Recorrente ser absolvido do crime de branqueamento de capitais por não se terem provado os factos de que depende o preenchimento do tipo de ilícito em causa.
14º - Por consequência, deverá ser descontado o período correspondente da condenação do Arguido / Recorrente, sendo revisto o cúmulo jurídico.
15º - Concomitantemente, será forçoso concluir pela improcedência do incidente da liquidação com vista à perda alargada de bens.
16º - Porquanto, o Regime da Perda Alargada previsto nos artigos 7º e 8º da Lei n.º 5/2002 de 11 de Janeiro, pressupõe a condenação por um dos crimes previstos no n.º 1.
17º - No caso sub judice, caindo a condenação do Arguido / Recorrente pelo crime de branqueamento de capitais, nos termos acima expostos, deixa de ser aplicável o regime da perda alargada.
18º - Razão pelo qual, deverá ser julgado improcedente o incidente de liquidação com vista à perda alargada de bens e, nessa medida, ser o Arguido / Recorrente Absolvido do mesmo.
19º - Em consequência da alteração da decisão nos termos acima expostos (absolvição do crime de branqueamento e do incidente de liquidação com vista à perda alargada), a pena concreta a aplicar ao Arguido / Recorrente, com o perdão já aplicado na decisão a quo, passará a cair no campo de aplicação da possibilidade de suspensão de execução da pena de prisão.
20º - Não se olvida o elevado número de condenações da Arguido / Recorrente pelo mesmo tipo de crime nem os demais fatores ponderados (em desfavor do Arguido) na decisão a quo.
21º - Porém, também terá de ser valorado o facto de esta série de acontecimentos ter decorrido num período limitado na vida do Arguido. Desde 2022, não há mais notícia da prática de factos do mesmo tipo pelo Arguido.
22º - Não há notícia da prática de factos do mesmo tipo pelo Arguido em data posterior às condenações do Arguido / Recorrente.
23º - Nessa medida, entendemos haver evidências nos autos que a Justiça está a cumprir a sua função punitiva de forma exemplar para o Arguido / Recorrente.
24º - A forma como se afastou da prática destes factos, o início do tratamento à adição do jogo e ao consumo de estupefacientes demonstram a vontade firme de o Arguido / Recorrente arrepiar caminho.
25º - A reparação às vitimas será efetuada e por isso não contesta a aplicação do perdão parcial da pena condicionada ao pagamento da indemnização às vitimas (em que foi condenado).
26º - Assim se entende ser ainda possível cumprir as finalidades da punição mediante a aplicação ao Arguido / Recorrente de pena de prisão suspensa na sua execução, ainda que condicionada ao cumprimento de deveres e /ou regime de prova.
Termos em que deve conceder-se integral provimento ao presente recurso, modificando-se a decisão sobre a matéria de facto da primeira instância e, em consequência, alterar-se a decisão recorrida, por forma a concluir-se pela absolvição do Arguido / Recorrente na parte do crime de branqueamento de capitais e a consequente absolvição do Arguido / Recorrente do Incidente de Liquidação com vista à perda alargada, com a respetiva redução na pena de prisão aplicada e a suspensão da sua execução, ainda que condicionada ao cumprimento de deveres e/ou regime de prova, conforme o acima exposto e como é de JUSTIÇA!
*
Recebido o recurso a ele respondeu o Ministério Público pugnando pela sua improcedência, resposta que concluiu assim (transcrição):
1. O arguido não impugna, da forma legalmente prevista, a decisão recorrida quanto à matéria de facto, pese embora invoque erro de julgamento, concretamente quanto aos pontos 139 e 140 da matéria de facto provada;
2. O arguido não indicou as provas que impunham decisão diversa, nem dado cumprimento ao ónus de impugnação especificada, correlacionando tais provas com os factos que pretendia ver como não provados e explicitando como é que as mesmas impunham decisão diversa;
3. Não invocando qualquer um dos vícios da decisão previstos no artigo 410º,nº2 do Código de Processo Penal, parece pretender-se invocar a existência de erro notório na apreciação da prova, ao afirmar-se que à luz das regras da experiência comum não podia o Tribunal a quo concluir como fez nos pontos 139 e 140 da factualidade provada.
4. Tal vicio não resulta da decisão recorrida, o mesmo sucedendo com qualquer outro previsto no artigo 410º, nº 2 citado;
5. A convicção alcançada pelo Tribunal quanto aos referidos pontos de facto não é contrária às regras da experiência comum ou da lógica como o arguido procura fazer crer.
6. O próprio arguido, em sede de inquérito (declarações validamente valoradas em sede de julgamento), admitiu ter agido daquela forma, afastando qualquer participação da mãe, da companheira e da irmã, titulares de contas para onde foram transferidos alguns dos valores, apenas negando o propósito, alegando que o fez “para poder usar cartão, pois que não dispunha de cartão da sua conta”
7. Tal versão é contrariada pela prova documental dos autos (vg. elementos bancários de fls. 54 e ss.) e pelas demais circunstâncias apuradas
8. Já que o arguido, depois de depois de transferir o dinheiro para as contas bancárias da mãe e da FF (provenientes da sua conta), utiliza-o em sites de apostas de jogo, transferência, o que poderia fazer diretamente da sua conta,
9. Constituindo a realização das apostas de jogo online uma forma de reintroduzir nas contas bancárias, como prémios de jogo, o dinheiro obtido ilicitamente, dando-lhe uma aparência lícita e obstando a que se relacionassem aquelas quantias com os factos ilícitos que estavam na origem da sua transferência patrimonial para a esfera do arguido
10. Conclusão que se alcança quer pela forma como o arguido age logo imediatamente após a entrada das quantias em dinheiro provenientes das burlas na sua esfera patrimonial (no próprio dia ou no dia a seguir), movimentando imediatamente o dinheiro que caía na sua conta para outras contas bancárias - que, formalmente, tinham outras pessoas como titulares, mas que estavam no domínio e disponibilidade do arguido, como a da sua mãe GG, ou para a conta da sua irmã FF;
11. E quer ainda pela natureza de tais operações (transferências, pagamentos, fazendo apostas on line, seja através da sua conta ou das que detinha o efectivo controlo e recebendoemmomentoposteriorodinheirodosprémiosdejogonessasmesmascontas),
12. Condutas idóneas a evitar que o arguido fosse detetado, bem como a dissimular a origem do dinheiro ou a dar-lhe uma nova aparência lícita, pela reintrodução do dinheiro no sistema bancário, na economia regular;
13. Nem se compreendendo a razão para tais movimentações, a não ser por esse motivo e finalidade: de evitar, por um lado, que se estabelecesse uma relação direta com a sua proveniência e, por outro lado, que viesse a ser implicado na prática dos factos que estiveram na sua génese, introduzindo na economia legal, activos financeiros ilícitos, sob aparência de licitude;
14. O que é conforme às regras da experiência, tanto mais que foi afastada a explicação dada pelo arguido para tal actuação.
15. Inexistem outros motivos válidos para a movimentação imediata dos valores/vantagens obtidas com as burlas, para a sua movimentação para contas de terceiros (irmã, mãe e companheira), para a sua reintrodução na sua esfera patrimonial (mormente com os prémios de jogo),para a efectivação de apostas através de tais contas e com esses valores,
16. São disso exemplo os factos provados nos pontos 23, 40, 41, 52, 68, 69, 81, 82, 93, 94 e 95, bem assim como nos pontos 108, 111, 114, 115, 118, 119, 122, 125, 126 e 128 a 130
17. Os actos acima descritos e resultantes da factualidade dada como provada são de molde a concluir que o arguido actuou de forma a disseminar tais depósitos e transferências para a sua conta bancária por diversas operações bancárias e aplicações financeiras (pagamentos, transferências, levantamentos, carregamentos de contas de jogo, etc…) que, a final, pudessem dar uma imagem de licitude quanto à proveniência de tais valores
18. Não se tendo o arguido limitado a depositar os valores na sua conta bancária, mas antes:
- procedendo à movimentação imediata dos valores obtidos/vantagens obtidas -dissipandotaisvaloresevantagensporcontasdeterceiros(trêspessoasdiferentes)eporcontas de que tinha a real disponibilidade de movimentação
- dividindo e dissipando tais vantages através de várias operações seguidas, de diferentes natureza e com diversos valores não inteiramente coincidentes com os obtidos
- aplicando tais vantagens em apostas de jogo on line, utilizando contas de terceiros, e ali recebendo os respectivos prémios, bem assim como conseguindo o carregamento de tais contas através de pagamento de referência Multibanco
19. A actuação do arguido apenas se coaduna com a intencionalidade especifica subjacente ao crime de branqueamento de capitais: dissimular a origem ilícita de tais vantagens, do mesmo passo que procurava, naturalmente, evitar que fosse criminalmente perseguido por tais factos
20. Pelo que não foram violadas as regras da experiência comum, nem existe erro notório na apreciação da prova ou qualquer insuficiência quanto à matéria de facto dada como provada
21. Estão preenchidos os elementos típicos objectivos e subjectivos do crime de branqueamento de capitais
22. No caso concreto, arguido não se limitou a depositar as vantagens do crime em conta própria, antes desenvolveu uma actividade de verdadeira dissimulação das vantagens através dasua repartição por váriascontas, suadeslocalização,movimentação eaplicação nos termos descritos na factualidade dada como provada…
23. Sendo certo que, ainda que assim fosse, a “a mera introdução de dinheiro proveniente da prática de crimes base, (…) através de um mero depósito bancário, ainda que menos grave e perigosa do que outras mais sofisticadas e engenhosas, é já branqueamento de capitais, sob pena de restrição ilegal do âmbito objectivo do tipo e de desarticulação funcional com o bem jurídico tutelado com a incriminação
24. A medida da pena única de prisão aplicada ao arguido não admite, nos termos do artigo 50º, nº 1 do Código Penal a suspensão da execução da pena única aplicada
25. Sendo certo que a aplicação do perdão só pode ser decidida depois de escolhida e fixada a medida da respectiva pena, pelo que a decisão sobre se deve ou não ser suspensa a execução da pena de prisão tem de ser proferida antes da aplicação do perdão, não sendo admissível no caso concreto.
Deve, pois, improceder o recurso do arguido.
Contudo, Vossas Excelências melhor decidirão.
*
Remetidos os autos a este Tribunal, o Ministério Público emitiu parecer concordante com a posição expressa na primeira instância.
*
Foi cumprido o art.º 417.º nº 2 do Código de Processo Penal.
*
Após os vistos, realizou-se conferência.
*
II.
Cumpre apreciar e decidir, tendo em conta que são as conclusões do recorrente que delimitam a apreciação a fazer por este Tribunal – sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – e que, analisando a síntese conclusiva, se impõe apreciar:
- se os pontos 139 e 140 deveriam ser julgados não provados;
- se não se mostra praticado o crime de branqueamento de capitais;
- se deve ser julgado improcedente o incidente de liquidação com vista à perda alargada de bens e o arguido dela absolvido;
- se deve ser aplicada pena suspensa na sua execução.
*
É a seguinte a matéria de facto fixada em primeira instância (transcrição):
Discutida a causa, o Tribunal julga provados os seguintes factos:
Da parte criminal
I
l .
O arguido AA desde, pelo menos o ano de 2017, não exerce de forma permanente qualquer profissão ou atividade lícita remunerada.
2. Em data não concretamente apurada, mas anterior a dezembro de 2018, AA concebeu um plano com o fito de obter quantias monetárias que lhe proporcionariam a subsistência.
3. Para tanto apresentaria aos ofendidos situações que sabia não corresponderem à realidade, levando-os a acreditar nelas e, por via disso, a entregar-lhes as quantias monetárias com que se pretendia locupletar.
4. A concretização do plano do arguido AA passava pelo aproveitamento das potencialidades proporcionadas pelos negócios celebrados através de internet — como o anonimato dos intervenientes, a transação não presencial, a grande procura de bens como telemóveis, consolas de jogos e artigos de puericultura, a possibilidade de envio diferido e pagamento por meios não presenciais — bem como pelo aproveitamento serviço de pagamento MBWAY — que permitia o anonimato decorrente do uso de contactos telefónicos realizados através de números de telemóvel pré-pagos (cuja aquisição não pressupõe qualquer identificação), e cujo correto modo de
funcionamento não era conhecido da generalidade das pessoas.
5. Com efeito, o serviço MBWAY é uma solução Multibanco que permite a realização de compras online e em lojas fisicas, a criação de cartões virtuais MB NET, o
envio e o pedido de quantias monetárias ou a divisão de uma conta, bem como a utilização e o levantamento de quantias monetárias através do smartphone, numa “app” (aplicação) própria criada para esse efeito ou nos canais da instituição de crédito associada ao cartão bancário de cada pessoa.
6. Em termos de funcionamento, o envio e o pedido de quantias monetárias através do serviço MBWAY, processam-se de forma idêntica:
- no envio de dinheiro, a pessoa escolha um dos cartões bancários que tem associado ao serviço MBWAY, seleciona a opção “Enviar dinheiro”, seleciona o contacto a quem vai enviar dinheiro, indica o valor e confirma a operação introduzindo o seu “pin” MBWAY — por sua vez, o destinatário recebe uma notificação de que alguém lhe enviou uma determinada quantia monetária, bastando clicar em “aceitar” para que a operação se conclua;
- no pedido de dinheiro, a pessoa seleciona a opção “Pedir dinheiro”, seleciona o contacto a quem vai pedir dinheiro, indica o valor e confirma a operação introduzindo o seu “pin” MBWAY — por sua vez, o destinatário recebe uma notificação de que alguém lhe pediu uma determinada quantia monetária, bastando clicar em “aceitar” para que a operação se concretize;
7. O plano do arguido AA passava sempre pela utilização de sítios de vendas na internet, atuado através de duas modalidades:
- como anunciante/vendedor de bens que despertavam o interesse dos visitantes daquelas páginas, convencendo as pessoas a transferir-lhe parte ou a totalidade do preço desses bens, sendo que não nem tinha qualquer intenção de os vender, tanto mais que nem sequer os detinha;
- como interessado na aquisição de bens, contactando os vendedores e aproveitando o desconhecimento sobre o funcionamento da aplicação MBWAY para os determinar a enviarem-lhe dinheiro, na convicção de que estavam a receber o valor dos bens que ele alegadamente estava a comprar.
8. Para ocultar a sua identificação e que fosse detetado, assim como para dissimular a origem do dinheiro e lhe dar uma nova aparência licita, logo após a sua receção, circulava as quantias, de forma fracionada, por algumas contas bancárias de que tinha a disponibilidade e faziam circular o dinheiro por sites de apostas de jogo, recebendo os prémios nessas contas.
Assim:
II
9. No dia 1.03.2020, a ofendida BB colocou no sítio de internet OLX um anúncio para venda de vários objetos, indicando para contacto o seu telemóvel com o n.º ...32.
10. O arguido AA viu o anúncio, logo decidindo contactar a anunciante com o objetivo de a fazerem crer que pretendiam adquirir um carrinho de bebé, levando-a a transferir dinheiro para a sua conta bancaria através da aplicação MBWAY.
11. Na concretização desse propósito, ainda nesse dia 1.03.2020, o arguido AA, através do telemóvel com o n.º ...08, enviou uma mensagem para o telemóvel com o n.º ...32, manifestando o seu interesse em adquirir um carrinho de bebé que estava anunciado para venda.
12. De modo a ludibriar a ofendida, o arguido AA transmitiu-lhe que para fazer o pagamento só podia utilizar a aplicação MBWAY, predispondo-se a efetuar
o pagamento, de imediato.
13. Como a ofendida lhe transmitiu que não tinha instalada a aplicação MBWAY, o arguido AA sugeriu-lhe que a fosse instalar, alegando que era simples e que pretendia ainda nesse dia tratar do transporte do carrinho.
14. No entanto, a ofendida BB não acedeu, pelo que não foi concretizada a transação.
15. Ainda assim, no dia 2.03.2020, BB deslocou-se a uma Caixa Multibanco do Banco 1..., no Largo ..., em Coimbra, onde, pelas 8h49, efetuou a adesão ao serviço MBWAY, associando a este serviço o seu n.º de telemóvel, ...32.
16. O arguido AA, percebendo que a ofendida BB não conhecia a aplicação MBWAY, o que facilitaria as suas intenções de a fazer dispor de dinheiro a seu favor, pelas 10h33 do dia 2.03.2020, remeteu-lhe nova mensagem, em que reafirmou o interesse na aquisição do caninho e em efetuar o pagamento através da
aplicação MBWAY.
17. Nessa sequência e uma vez que a ofendida lhe disse já ter a aplicação instalada, o arguido AA solicitou a indicação do telemóvel associado à aplicação e o valor a pagar, tendo BB indicado que o contacto era o do seu número de telemóvel e o valor 145,00 €.
18. O arguido AA, como era sua intenção, através da aplicação MBWAY (contacto ...08) efetuou um pedido de pagamento de 145,00 € e deu indicação a BB para que esta aceitasse o pedido no seu telemóvel, o que ela fez, convicta que estava a aceitar o pagamento de 145,00 € e não a efetuar um pagamento nesse valor.
19. Pouco depois a ofendida BB consultou o saldo da sua conta, verificando que tinham sido debitados da sua conta 145,00 €, enviando uma mensagem ao arguido AA a dar conta do erro e a solicitar que lhe fosse devolvido o dinheiro.
20. O arguido AA, com o objetivo de a continuar a enganar e de se apoderar de mais dinheiro, explicou à ofendida BB que era esse o funcionamento da aplicação e, através da aplicação MBWAY, remeteu novo pedido de
saldo a BB, bem como uma mensagem de texto a dar indicação para que aceitasse.
21. Com esta mensagem e pedido o arguido AA pretendia obter mais uma transferência para a conta por ele indicada, o que apenas não conseguiu porque BB percebeu que tinha sido enganada.
22. O valor de 145,00 € foi transferido da conta da Banco 2..., com o número ...00, titulada por BB, através da aplicação MBWAY, tendo como ordenante da operação o n.º de telemóvel ...32, pertença da ofendida para a conta com o IBAN ...42, do Banco 3..., titulada e movimentada pelo arguido AA que, nessa data, tinha associado o telemóvel n. º ...08, pelo que as transferências que se realizavam para este número através da aplicação MBWAY eram creditadas nessa conta.
23. Depois de BB transferir o dinheiro para a conta bancária ...42, do Banco 3..., esta conta passou a apresentar um saldo de 143,84 €, tendo o arguido AA, ainda nesse mesmo dia 2.03.2020, procedido às seguintes operações:
• transferiu, através da aplicação MBWay, para o n.º ...77, o montante de 30,00€; levantou em numerário a quantia de 50,00 €;
• transferiu, através da aplicação MBWay, para o n.º ...36, o montante de 10,00€ e de 70,00€, valores que foram creditados na conta do Banco 3... com o ...09, titulada pela irmã do arguido, FF;
• Ao creditar a conta do Banco 3... com o ...09, esta ficou com um saldo de 80,28 €, tendo FF, por indicação do arguido AA, procedido ainda nesse mesmo dia 2.03.2020 aos seguintes movimentos:
• levantou em numerário a quantia de 60,00 €;
• efetuou 2 transferências para A..., no valor de 10,00€, cada, vindo a receber um prémio de jogo de 200,00 € no dia 5.03.2020.
25. Com a conduta descrita o arguido AA queria e conseguiu induzir a ofendia BB em erro, fazendo-a crer que estava a receber uma transferência de dinheiro por conta da venda de um carrinho de bebé, bem sabendo que tal não correspondia à verdade e que, pelo contrário, ela estava a realizar, sem conhecimento, uma transferência de 145,00 € a seu favor, obtendo desta forma um beneficio patrimonial ilegítimo desse valor e causando à ofendida um prejuízo
patrimonial correspondente.
26. O arguido AA nunca teve qualquer intenção de adquirir à ofendida o carrinho de bebé ou de lhe devolver o dinheiro que dela recebesse, apenas tendo alcançado os seus objetivos porque, através do esquema ardiloso descrito, beneficiando do anonimato e dos contactos à distância com que se concretizam as vendas de internet e aproveitando o fraco conhecimento da ofendida sobre o modo de funcionamento da aplicação MBWAY, conseguiu determinar a ofendida à realização de transferência monetária a seu favor e à correspondente diminuição do seu património.
III
27. Em data próxima do dia 5.04.2020, a ofendida CC colocou no sítio de internet OLX um anúncio para venda de vários objetos, indicando para contacto o telemóvel com o n. ...91....
28. O arguido AA depois de ver o anúncio decidiu contactar o anunciante com o objetivo de o fazer crer que pretendia adquirir uma cama, levando-o a
transferir dinheiro para a sua conta bancária através da aplicação MBWAY.
29. Na concretização desse propósito, ao início da tarde do dia 5.04.2020, o arguido AA, através do telemóvel com o n. ...14, enviou uma mensagem para o telemóvel com o n.º ...91 , na qual manifestou o seu interesse em adquirir uma cama que estava anunciada para venda.
30. Nos contactos entretanto realizados por telefone com a ofendida CC e com HH, o arguido AA, que se identificou como II, informou que pretendia efetuar a compra com urgência, ficando acordado
o preço de 650,00 €.
31. A ofendida CC deu indicação ao arguido AA para fazer o pagamento através de transferência bancária.
32. O arguido percebendo que a ofendida CC não utilizava a aplicação MBWAY e com o fito de a enganar, insistiu para que a instalasse.
33. A ofendida CC, perante a insistência do arguido AA, acedeu a instalar a aplicação MBWAY, deslocando-se a uma caixa multibanco para o efeito, tendo, pelas 16h33 do dia 5.04.2020, efetuado a adesão ao serviço MBWAY, associando a este serviço o seu n. 0 de telemóvel, ...76....
34. Quando se encontrava a proceder à instalação da aplicação, CC recebeu nova chamada do arguido AA, que a questionou se já havia terminado e lhe solicitou a indicação do número de telemóvel associado à aplicação, avisando-a de que iria fazer o pagamento em duas parcelas e que ela quando recebesse a mensagem teria de aceitar para que o dinheiro fosse transferido para a sua conta.
35. CC, acreditando no que o arguido lhe transmitia, informou-o que número associado à aplicação fora o ...76....
36. Pelas 16h46 do dia 5.04.2020, o arguido AA, através da aplicação MBWAY e utilizando o número de telemóvel ...19, efetuou um pedido de pagamento de 300,00 € dirigido ao telemóvel de CC, que esta aceitou, convicta que estava a aceitar o pagamento de 300,00 € e não a efetuar um pagamento nesse valor.
37. O arguido de imediato, pelas 16h47, fez novo pedido de pagamento do valor de 350,00 €, que também foi aceite pela ofendida na mesma convicção de estar a aceitar dinheiro e não a transferir.
38. O arguido AA ainda efetuou mais pedidos de dinheiro, mas como CC percebeu que tinham sido debitados da sua conta 650,00 e, não aceitou os pedidos e contactou-o solicitando a sua devolução.
39. O valor de 650,00 € foi transferido da conta da Banco 4..., com o número ...47, titulada por CC, através da aplicação MBWAY, tendo como ordenante da operação o n.º de telemóvel ...79, pertença da ofendida, para a conta com o IBAN ...42, do Banco 3..., titulada e movimentada pelo arguido AA que, nessa data, tinha associado o telemóvel n.º ...19, pelo que as transferências realizadas na aplicação MBWAY para este número, eram creditadas nessa conta.
40. Depois de CC transferir o dinheiro para conta bancária ...42, do Banco 3..., esta conta passou a apresentar um saldo de 652,75 €, tendo o arguido AA, nesse mesmo dia 5.04.2020, procedido
às seguintes operações:
- transferiu, através da aplicação MBWay, para o n.º ...36, o montante de 400,00€, valor que foi creditado na conta do Banco 3... com o ...09, titulada por FF;
- levantou em numerário a quantia de 50,00 €;
41. Ao creditar a conta do Banco 3... com o ...09, esta ficou com um saldo de 400,16 €, tendo FF, por indicação do arguido AA, procedido ainda nesse mesmo dia 5.04.2020 aos seguintes movimentos:
- levantou em numerário a quantia de 360,00 €;
- efetuou 2 transferências para apostas on line A..., no valor de 20,00€, cada, vindo a receber um prémio de jogo de 50,00 € no dia 22.05.2020;
42. Com a conduta descrita o arguido AA queria e conseguiu induzir a ofendida CC em erro, fazendo-a crer que estava a receber uma transferência de dinheiro por conta da venda de uma cama, bem sabendo que tal não correspondia à verdade e que, pelo contrário, ela estava a realizar, sem conhecimento, duas transferências no valor total de 650,00 € a seu favor, obtendo desta forma um beneficio patrimonial ilegítimo desse valor e causando à ofendida um prejuízo patrimonial correspondente.
43. O arguido AA nunca teve qualquer intenção de adquirir à ofendida a cama ou de lhe devolver o dinheiro que dela recebesse, apenas tendo alcançado os seus objetivos porque, através do esquema ardiloso descrito, beneficiando do anonimato e dos contactos à distância com que se concretizam as vendas de internet e aproveitando o fraco conhecimento da ofendida sobre o modo de funcionamento da aplicação MBWAY, conseguiu determinar a ofendida à realização de duas transferências monetárias a seu favor e à correspondente diminuição do seu património.
IV
44. Em data anterior ao dia 11.12.2018, o arguido AA diligenciou pela colocação no sítio OLX de um anúncio com o ID ...78, em que publicitava a venda de uma PlayStation 4, pelo valor de € 150,00, identificando-se o vendedor como JJ e fornecendo para contacto o telemóvel ...31.
45. O ofendido DD, depois de efetuar uma pesquisa no sítio OLX em que visualizou o anúncio da PlayStation 4, no dia 11.12.2018, cerca das 20h00, contactou com AA, através do telemóvel ...31, tendo este afiançado ter a PlayStation para venda, acordando ambos na transação da mesma pelo valor de € 150,00.
46. O arguido deu indicação ao ofendido para que o pagamento do equipamento fosse efetuado através da aplicação MBWAY, utilizando o n.º de telemóvel ...31 como o destinatário do montante.
47. O ofendido, com o objetivo e convencido de que estava a pagar o equipamento que o arguido lhe ia enviar, acedeu à aplicação MBWAY e fez o envio de
150,00 € para o telemóvel ...31.
48. Depois de enviar o montante, o ofendido DD contactou o arguido AA para confirmar o pagamento, tendo este afirmado que não tinha recebido a quantia, que a indicação que tinha era a de que o movimento estava pendente, pelo que o ofendido deveria repetir a transferência.
49. Acreditando na explicação que o arguido AA lhe dava e que o pagamento não se tinha concretizado, o ofendido, utilizando a aplicação MBWAY, procedeu a novo envio de 150,00 € para o mesmo telemóvel ...31.
50. Depois de confirmar a transferência dos 300,00 €, o ofendido DD tentou contactar com o arguido AA pelo telemóvel, não tendo conseguido estabelecer ligação, pese embora as diversas tentativas que efetuou.
51. Os 300,00 € foram transferidos da conta do ofendido DD, através da aplicação MBWAY tendo como telemóvel destinatário o telemóvel n.º ...31, que estava associado à conta com o IBAN ...42, do Banco 3..., a qual era titulada e movimentada pelo arguido AA (pelo que as transferências que se realizavam para este número através da aplicação MBWAY eram creditadas nesta conta).
52. Depois de creditada com o dinheiro transferido pelo ofendido DD a conta bancária ...42, passou a apresentar um saldo de 311,20 €, tendo o arguido AA procedido às seguintes operações:
- levantou em numerário a quantia de 280,00 € no dia 11.12.2018;
- efetuou o pagamento de uma referência MB Generic Payment para a entidade ...20 com a referência ...50, no valor de 25,00€, no dia 13.12.2018 para apostas on line.
53. Não obstante ter recebido duas vezes o preço acordado pela venda da PlayStation 4, o arguido AA não procedeu ao envio do equipamento para o ofendido DD, antes se apoderando do valor de € 300,00, que o ofendido
transferiu para a sua conta bancária
54. Com a conduta descrita o arguido AA queria e conseguiu induzir o ofendido KK em erro, fazendo-o crer que tinha uma PlayStation 4 para vender, que mediante o pagamento do preço acordado lha enviaria, e que a primeira transferência não tinha sido bem sucedida, bem sabendo que tal não correspondia à verdade e que o ofendido apenas lhe fez as transferências por acreditar no que ele lhe transmitia, ou seja, que estava a adquirir a PlayStation 4 e que a primeira transferência tinha ficado sem efeito.
55. Mais sabia o arguido AA que com a descrita conduta obtinha um benefício patrimonial ilegítimo no valor de 300,00 €, causando ao ofendido um prejuízo patrimonial correspondente.
56. O arguido AA nunca teve qualquer intenção de vender ou enviar ao ofendido qualquer objeto ou de lhe devolver o dinheiro que dele recebesse, apenas tendo alcançado os seus objetivos porque, através do esquema ardiloso descrito, beneficiando do anonimato e dos contactos à distância com que se concretizam as vendas de internet e aproveitando o fraco conhecimento do ofendido sobre o modo de funcionamento da aplicação MBWAY, conseguiu determinar o ofendido à realização de duas transferências monetárias a seu favor e à correspondente diminuição do seu património.
V
57. Em data anterior ao dia 28.11.2019, o arguido AA diligenciou pela colocação no sítio OLX de um anúncio em que se publicitava a venda de um telemóvel da marca APPLE, modelo IPHONE XR, pelo valor de € 260,00, fornecendo para contacto o telemóvel ...84....
58. A ofendida LL, viu o anúncio publicitado pelo arguido AA, tendo, no dia 28.11.2019, estabelecido contacto com o mesmo, através de sms enviada para o telemóvel ...84....
59. Nas mensagens trocadas com LL, o arguido AA sempre afirmou ter o telemóvel para venda, pelo que acordaram na sua transação, pelo valor de € 260,00.
60. O arguido deu indicação à ofendida para que o pagamento fosse efetuado através da aplicação MBWAY, utilizando o n.º de telemóvel ...62 como o destinatário do montante.
61. No dia 28.11.2019, pelas 13h18, LL, com o objetivo e convencida de que estava a pagar o telemóvel que lhe ia ser enviado, procedeu ao envido de 260,00 € através da aplicação MBWAY para o número de telemóvel indicado
por AA.
62. Depois de LL confirmar a transferência do dinheiro, AA comunicou-lhe que faria o envio do equipamento através dos Banco 3....
63. A ofendida LL questionou ainda o arguido AA se tinha outros equipamentos para venda, tendo este visto aqui uma oportunidade para se apropriar de mais dinheiro, pelo que logo lhe referiu ter disponível o telemóvel IP HONE XS MAX, pelo preço de € 350,00.
64. LL manifestou interesse na aquisição deste segundo equipamento, mas referiu que só concretizaria a compra depois de receber o telemóvel que tinha adquirido momentos antes.
65. O arguido AA, com o objetivo de a levar a transferir-lhe mais dinheiro, insistiu várias vezes para que ela o adquirisse de imediato, propondo-se mesmo fazer um desconto de 50,00 € se ela comprasse o segundo telemóvel nesse momento.
66. A ofendida LL, acreditando que o arguido AA tinha para venda o telemóvel e que estava a propor-lhe um desconto no preço, acedeu comprar este segundo equipamento, procedendo de imediato ao pagamento do respetivo preço, no valor de 300,00 €, tendo para o efeito transferido aquela quantia, através da aplicação MBWAY, para telemóvel com o n.º ...62.
67. Os valores de 260,00 € e de 300,00 € foram transferidos da conta da ofendida LL, através da aplicação MBWAY tendo como telemóvel destinatário o telemóvel n.º ...62, que estava associado à conta com o IBAN ...42, do Banco 3..., titulada e movimentada pelo arguido AA (pelo que as transferências que se realizavam para este número através da aplicação MBWAY eram creditadas nesta conta).
68. Depois de creditada com o dinheiro transferido por LL a conta bancária ...42, passou a apresentar um saldo de 562,35 €, tendo o arguido AA procedido às seguintes operações:
- transferiu, através da aplicação MBWay, para o n.º ...99, o montante de 10,00€ e de 30,00€, valores que foram creditados na conta do Banco 3... com o ...09, titulada pela sua irmã FF;
- levantou em numerário, no dia 28.11.2019, a quantia de 350,00 €, e, no dia 29.11.2019, a quantia de 80,00 €;
- efetuou 3 transferências para apostas on line A..., 2, no dia 28.11.2019, no valor de 30,00€ cada, e l, no dia 29.11.2019, no valor de 25,00 €, vindo a receber um prémio de jogo de 5.000,00 € no dia 5.12.2019;
69. Ao creditar a conta do Banco 3... com o ...09, esta ficou com um saldo de 40,19 €, tendo FF, por indicação do arguido AA, procedido, ainda nesse mesmo dia 28.11.2019, aos seguintes movimentos:
- efetuou 2 transferências para apostas on line A..., no valor de 20,00€, cada, vindo a receber um prémio de jogo de 150,00 € no dia 3.12.2019.
70. Depois de confirmar o recebimento dos valores, o arguido AA garantiu à ofendida que os telemóveis seriam remetidos, nesse dia, via Banco 3..., sendo-lhes entregues no dia 29.11.2019.
71. Não tendo recebido os equipamentos, LL contactou com o arguido AA, que afiançou que chegariam na segunda-feira seguinte.
72. Não obstante ter recebido o preço acordado por cada um dos telemóveis, o arguido AA não procedeu ao seu envio para a ofendida LL, antes se tendo apoderado do valor de 560,00 €, que a ofendida transferiu para a sua conta.
73. Com a conduta descrita o arguido AA queria e conseguiu induzir a ofendida LL em erro, fazendo-a crer que tinha dois telemóveis para vender e que mediante o pagamento do preço acordado lhos enviaria, bem sabendo que tal não correspondia à verdade e que a ofendida apenas lhe fez as transferências por acreditar no que ele lhe transmitia, ou seja, que estava a adquirir 2 telemóveis.
74. Mais sabia o arguido AA que com a descrita conduta obtinha um benefício patrimonial ilegítimo no valor de 560,00 €, causando à ofendida um prejuízo patrimonial correspondente.
75. O arguido AA nunca teve qualquer intenção de vender ou enviar à ofendida qualquer objeto ou de lhe devolver o dinheiro que dela recebesse, apenas tendo alcançado os seus objetivos porque, através do esquema ardiloso descrito, beneficiando do anonimato e dos contactos à distância com que se concretizam as vendas de internet, conseguiu determinar a ofendida à realização de duas transferências monetárias a seu favor e à correspondente diminuição do seu património.
VI
76. Em data anterior ao dia 15.04.2020, o arguido AA colocou no sítio OLX o anúncio em que publicitava que tinha para venda uma PlayStation 4, pelo valor de € 220,00, fornecendo o telemóvel ...29... para contacto.
77. Como tinha interesse em adquirir uma consola com estas características, a ofendida MM, no dia 15.04.2020, cerca das 15h50, contactou com o arguido, através do telemóvel ...29....
78. Percebendo o interesse da MM na PlayStation e por forma a convencer a fazer-lhe um pagamento, o arguido AA sugeriu-lhe que fosse ver a consola a sua casa, que referiu ser em ....
79. Convencida que o arguido AA tinha efetivamente uma consola para vender e aproveitando o facto de ele afirmar que, no dia seguinte, se deslocava a ... e poderia entregar-lha em mão, aceitou a proposta do arguido, de adquirir a PlayStation, pelo valor de 220,00 €, fazendo o pagamento por transferência bancária, para a conta por ele indicada.
80. Nessa sequência, a ofendida MM, no dia 16.04.2020, procedeu à transferência de 220,00 € da conta por si titulada na Banco 2..., com 0 IBAN ...75, para a conta do Banco 3..., com 0 IBAN ...42, titulada e movimentada pelo arguido AA.
81. Depois de receber o dinheiro transferido pela ofendida MM na sua conta bancária ...42, do Banco 3..., esta conta passou a apresentar um saldo de 220,13 €, tendo o arguido AA, nesse mesmo dia 16.04.2020, procedido às seguintes operações:
- efetuou o pagamento de duas referências MB Generic Payment para a entidade ...93, uma com a referência ...53 e a outra com a referência ...68, cada uma no valor de 20,00 € para apostas on line;
- transferiu para a conta do Banco 3... com o NIB ...56, titulada por GG, mas movimentada pelo arguido AA, a quantia de 180,00 €.
82. Ao creditar na conta titulada por GG com 180,00 €, esta passou a apresentar um saldo de 265,03 €, tendo o arguido AA movimentado a conta, nesse mesmo dia 16.04.2020, através de:
- 1 levantamento em numerário de 80,00 €;
- 3 transferências para apostas on line A..., 2 no valor de 20,00 € e I no valor de 10,00 €.
83. Depois de confirmar a transferência, a ofendida MM não voltou a conseguir contactar com o arguido AA.
84. Não obstante ter recebido o preço acordado pela venda da PlayStation 4, o arguido AA não procedeu ao envio do equipamento para a ofendida MM, antes se apoderando do valor de € 220,00, que a ofendida transferiu para a sua conta bancária
85. Com a conduta descrita o arguido AA queria e conseguiu induzir a ofendida MM em erro, fazendo-a crer que tinha uma PlayStation 4 para vender, que mediante o pagamento do preço acordado lha entregaria, bem sabendo que tal não correspondia à verdade e que a ofendida apenas lhe fez a transferência bancária por acreditar no que ele lhe transmitia, ou seja, que estava a adquirir a PlayStation 4.
86. Mais sabia o arguido AA que com a descrita conduta obtinha um beneficio patrimonial ilegítimo no valor de 220,00 €, causando à ofendida um prejuízo patrimonial correspondente.
87. O arguido AA nunca teve qualquer intenção de vender ou enviar à ofendida qualquer objeto ou de lhe devolver o dinheiro que dela recebesse, apenas tendo alcançado os seus objetivos porque, através do esquema ardiloso descrito, beneficiando do anonimato e dos contactos à distância com que se concretizam as vendas de internet, conseguiu determinar a ofendida à realização de uma transferência monetária a seu favor e à correspondente diminuição do seu património.
VII
88. Em data próxima do dia 17.04.2020, o ofendido EE efetuou uma pesquisa, via intemet, no sítio OLX, onde localizou e visualizou o anúncio que o arguido AA havia colocado, no qual era anunciada para venda PlayStation 4, pelo valor de € 220,00, fornecendo para contacto o telemóvel ...29....
89. Como tinha interesse em adquirir uma consola com estas características, o ofendido EE, no dia 17.04.2020, contactou com o arguido AA.
90. Percebendo o interesse de EE na consola de jogos e por forma a convencer a fazer-lhe um pagamento, o arguido AA sugeriu-lhe que o pagamento fosse feito por transferência bancária, indicando a conta de destino.
91. Nessa sequência e convencido da veracidade do que o arguido AA lhe transmitia, EE acordou na transação da PlayStation, pelo valor de 200,00 €.
92. EE, no dia 17.04.2020, procedeu à transferência de 200,00 € da conta por si titulada na Banco 5..., com o NIB ...81, para a conta titulada pelo arguido no Banco 3... com o IBAN ...42.
93. Depois de receber o dinheiro transferido por EE na sua conta bancária ...42, do Banco 3..., esta conta passou a apresentar um saldo de 200,13 €, tendo o arguido AA, ainda no dia 17.04.2020, procedido às seguintes operações:
- efetuou o pagamento de uma referência MB Generic Payment para a entidade ...93, uma com a referência ...79, no valor de 30,00 €, para apostas on line;
- transferiu para a conta do Banco 3... com o NIB ...56, titulada por GG, mas movimentada pelo arguido, as quantias de 120,00 C, no dia 17.04.2020, e de 50,00 €, no dia 18.04.2020.
94. Ao creditar na conta titulada por GG 120,00 €, esta passou a apresentar um saldo de 220,03 €, tendo o arguido AA movimentado a conta, nesse mesmo dia 17.04.2020, através de:
- 1 levantamento em numerário de 100,00 €;
- 1 transferência para apostas on line A..., no valor de 20,00 €;
95. Ao creditar na mesma conta, no dia 18.04.2020, os 50,00 €, esta passou a apresentar um saldo de 173,59 €, tendo o arguido AA movimentado a conta através de um levantamento em numerário no mesmo valor.
96. Não obstante ter recebido o preço acordado pela venda da PlayStation 4, o arguido AA não procedeu ao envio do equipamento para EE, antes se apoderando do valor de € 200,00, que o ofendido transferiu para a sua conta bancária
97. Com a conduta descrita o arguido AA queria e conseguiu induzir o ofendido EE em erro, fazendo-a crer que tinha uma PlayStation 4 para vender, que mediante o pagamento do preço acordado lha enviaria, bem sabendo que tal não correspondia à verdade e que o ofendido apenas lhe fez a transferência bancária por acreditar no que ele lhe transmitia, ou seja, que estava a adquirir a PlayStation 4.
98. Mais sabia o arguido AA que com a descrita conduta obtinha um benefício patrimonial ilegítimo no valor de 200,00 €, causando ao ofendido EE um prejuízo patrimonial correspondente.
99. O arguido AA nunca teve qualquer intenção de vender ou enviar ao ofendido qualquer objeto ou de lhe devolver o dinheiro que dele recebesse, apenas tendo alcançado os seus objetivos porque, através do esquema ardiloso descrito, beneficiando do anonimato e dos contactos à distância com que se concretizam as vendas de internet, conseguiu determinar o ofendido à realização de uma transferência monetária a seu favor e à correspondente diminuição do seu património.
VIII
100. O arguido AA estava ciente que as suas condutas constituíam crimes e que o dinheiro que as vítimas lhe entregavam era resultado desses crimes, tendo concebido e executado um esquema para evitar ser detetado, bem como para dissimular a origem do dinheiro e para lhe dar uma nova aparência lícita.
101. Assim, logo que as vítimas transferiam o dinheiro para a conta bancária ...42, do Banco 3..., o arguido movimentava-o, pelo menos em parte, para outras contas bancárias que, formalmente, tinha outras pessoas como titulares, mas que estavam no domínio e disponibilidade do arguido, ou para a conta da sua irmã FF.
102. O arguido, com o mesmo objetivo, fazia apostas de jogo on line, quer através da sua conta, quer das contas de que tinha controlo, recebendo em momento posterior o dinheiro dos prémios de jogo nessas mesmas contas.
103. Para o efeito o arguido AA utilizou a sua conta bancária supra indicada, bem com as contas bancárias da sua mãe, GG - conta do Banco 3... com o NIB ...56, e a conta titulada pela sua irmã, FF, com o IBAN ...09.
104. O arguido AA por si ou através da sua irmã FF, fez apostas de jogo, para além de outros, através do pagamento de referências multibanco MB Generic Payment ou diretamente para A..., para a B... — Terminal Internacional, para a STARS, entre outras, estando as referências associadas a uma conta de jogo do arguido na sociedade C..., e as apostas A... estavam associadas à KAIZEN.
105. Foi na execução deste esquema que o arguido AA movimentou a sua conta bancária ...42, do Banco 3..., da forma descrita supra, nomeadamente:
-fazendo as apostas nos sites de jogo on line indicados nos pontos IV a VII;
- transferindo as quantias descritas nos pontos II, III e V para a conta titulada por FF, sua irmã, dando-lhe indicação para que ela fizesse as apostas de jogo on line descritas nos referidos pontos,
- transferindo as quantias descritas nos pontos VI a VII para a conta titulada por GG, sua mãe, mas que o mesmo movimentava em exclusivo, fazendo as apostas de jogo on line discriminadas nesses pontos da acusação.
106. O arguido AA procedeu de forma idênticas nas situações infra descritas, sendo que os valores com que a sua conta bancária ...42, foi creditada foram transferidos porque o arguido AA, com o objetivo, conseguido, de se apoderar do dinheiro e mediante a utilização de vários expedientes enganosos, criou nos visados a convicção de estarem a receber dinheiro do arguido para pagar bens que ele lhes pretendia adquirir, ou a convicção de estarem a pagar ao arguido AA bens que ele anunciou na internet e que eles lhe haviam adquirido, mas que o arguido não tinha, nem nunca teve, qualquer intenção de lhes enviar.
Assim sucedeu:
107. Em 1.12.2018 e 3.12.2018, quando a conta bancária ...42, do Banco 3..., titulada pelo arguido AA foi creditada com as quantias de 200,00 € e 70,00 €, transferidas por NN, na
convicção de que estaria a pagar ao arguido AA a consola de jogos que ele estava a publicitar para venda na internet e que NN acabara de adquirir.
108. Depois de receber aqueles valores na sua conta bancária o arguido procedeu, nesses dias 1 e 3.12.2018, às seguintes operações:
- 1 levantamento em numerário de 100,00 € cada;
- pagamento de várias referências MB Generic Payment, e transferências para
STARS, todas destinadas a apostas on line.
109. Por tais factos foi deduzida acusação contra o arguido AA no inquérito 214/18...., da Secção de Nelas do DIAP de Viseu, sendo-lhe imputada a prática do crime de burla simples, previsto e punido pelo artigo 217º, do Código Penal.
110. Em 23.01.2020, quando a conta bancária ...42, do Banco 3..., titulada pelo arguido AA foi creditada com a quantia de 600,00 €, transferida por OO, na convicção de que estaria a receber aquela quantia do arguido AA para pagamento de um frigorifico que estava a publicitar para venda na internet.
111. Depois de receber aquele valor a sua conta bancária apresentou um saldo de 655,205 e, tendo o arguido procedido, ainda nesse dia 23.01.2020, às seguintes operações:
- 2 levantamento em numerário de 200,00 € cada;
- 3 transferências para apostas on line A... — Terminal
Internacional, no valor de 40,00 €, 50,00 € e 50,00 €;
- 1 transferência para apostas on line B... Terminal Internacional, no valor de 20,00 €;
112. Por tais factos foi deduzida acusação contra o arguido AA no inquérito 243/20...., da 8. a Secção do DIAP de Lisboa, sendo-lhe imputada a prática do crime de burla simples, previsto e punido pelo artigo 217º, do Código Penal.
113. Em 11.02.2020, quando a conta bancária ...42, do Banco 3..., titulada pelo arguido AA foi creditada com a quantia de 250,00 €, transferida por PP, na convicção de que estaria a receber essa quantia do arguido AA, para pagamento de um carrinho de bebé que estava a publicitar para venda na internet.
114. Depois de receber aquele valor a sua conta bancária apresentou um saldo de 439,76 €, tendo o arguido procedido, ainda nesse dia 11.02.2020, às seguintes operações:
- 1 levantamento em numerário de 150,00 €;
- 1 transferência MBWAY para o número de telefone ...36 (que estava associado à conta do Banco 3... ...09, titulada por FF), no valor de 20,00 €;
-1 transferência para apostas on line A..., no valor de 29,00 €.
115. Ao creditar na conta titulada por FF 20,00 €, esta passou a apresentar um saldo de 370,03 €, tendo FF, por indicação do arguido AA, movimentado a conta, nesse mesmo dia ...20, através de:
- 1 transferência para apostas on line A..., no valor de 20,00 €, vindo a receber um prémio de jogo de 500,00 € no dia 13.02.2020.
116. Por tais factos foi deduzida acusação contra o arguido AA no inquérito 243/20...., da 8. a Secção do DIAP de Lisboa, sendo-lhe imputada a prática do crime de burla simples, previsto e punido pelo artigo 217º, do Código Penal.
117. Em 12.02.2020, quando a conta bancária ...42, do Banco 3..., titulada pelo arguido AA foi creditada com a quantia de 300,00 €, transferida por QQ, na convicção de que estaria a receber essa quantia do arguido AA, para pagamento de uma cama que estava a publicitar para venda na internet.
118. Depois de receber aquele valor a sua conta bancária apresentou um saldo de 509,76 e, tendo o arguido procedido, ainda nesse dia 12.02.2020, às seguintes operações:
- 1 levantamento em numerário de 100,00 €;
- 2 transferências MBWAY para o número de telefone ...36 (que estava associado à conta do Banco 3... ...09, titulada por FF), no valor de 20,00 € cada;
- 3 transferência para apostas on line A..., 2 no valor de 30,00 € e 1 no valor de 10,00 € vindo a receber um prémio de jogo de 400,00 € no dia 13.02.2020
119. Ao creditar na conta titulada por FF 40,00 €, esta passou a apresentar um saldo de 240,03 €, tendo FF, por indicação do arguido AA, movimentado a conta, nesse mesmo dia ...20, através de 2 transferências para apostas on line A..., no valor de 20,00 € cada, vindo a receber um prémio de jogo de 250,00 € no dia 13.02.2020.
120. Por tais factos foi deduzida acusação contra o arguido AA no inquérito 176/20...., da 2ª Secção do DIAP de Leiria, sendo-lhe imputada a prática do crime de apropriação ilegítima de coisa achada, previsto e punido pelo artigo 209º do Código Penal.
121. Em 27.03.2020, quando a conta bancária ...42, do Banco 3..., titulada pelo arguido AA foi creditada com a quantia de 140,00 €, transferida por RR, na convicção de que estaria a receber do arguido AA a quantia de 140,00 € para pagamento de um carrinho de bebé que estava a publicitar para venda na internet.
122. Depois de receber aquele valor a sua conta bancária apresentou um saldo de 156,75 €, tendo o arguido procedido, ainda nesse dia 27.03.2020, às seguintes operações:
- 1 levantamento em numerário de 50,00 €;
- 3 transferências para apostas on line A..., no valor de 25,00 €, 30,00 € e 20,00 €;
- 1 transferência para apostas on line B... Terminal Internacional, no valor de 10,00 €;
123. Por tais factos foi deduzida acusação contra o arguido AA no inquérito 253/20...., da l. a Secção do DIAP de Viana de Castelo, sendo-lhe imputada a prática do crime de burla simples, previsto e punido pelo artigo 217. 0 do Código Penal.
124. Em 17.04.2020, quando a conta bancária ...42, do Banco 3..., titulada pelo arguido AA foi creditada com a quantia de 30,00 €, transferida por SS, na convicção de que estaria a proceder ao pagamento dos
portes de uma playstation 4 que tinha acordado adquirir a AA.
125. Depois de receber aquele valor a sua conta bancária apresentou um saldo de 80,13 €, tendo o arguido procedido, ainda nesse dia 17.04.2020, às seguintes operações:
- 1 transferência para a conta do Banco 3... ...56, titulada por GG, no valor de 20,00 €;
- pagamento da referência ...88 da entidade ...01, MB Generic Payment, no valor de 10,00 € para apostas on line.
126. Ao creditar na conta titulada por GG 20,00 €, esta passou a apresentar um saldo de 140,03 €, tendo o arguido AA movimentado a conta, nesse mesmo dia 17.04.2020, através de:
- 1 transferência para apostas on line A..., no valor de 10,00 €.
127. Por tais factos foi deduzida acusação contra o arguido AA no inquérito 399/20...., da 3. a Secção do DIAP de Sintra, sendo-lhe imputada a prática do crime de burla simples, previsto e punido pelo artigo 217º, do Código Penal.
128. O arguido AA, com o objetivo de não ser relacionado com a autoria dos factos criminosos que praticava, utilizou também as contas de terceiros para receber e movimentar quantias provenientes dos crimes de burla que cometeu.
129. Foi com esse propósito que utilizou a conta bancária com o IBAN ...56 titulada pela sua mãe, GG, que associou à conta cliente que detinha na Sociedade C..., SA, que servia também para receber os prémios de jogo.
130. A conta de jogo foi carregada, através do pagamento de uma referência multibanco, no valor de 100,00 €, em 15.07.2018, tendo esse pagamento sido efetuado por TT, na convicção de que estava a pagar o preço referente a um carrinho de bebé que o arguido publicitava na internet, tendo sido deduzida acusação por tais factos no processo 272/18...., da Secção de Ponte de Lima do DIAP de Viana de Castelo.
131. O arguido não tem, desde data não concretamente apurada, mas seguramente anterior ao início do ano de 2017, atividade profissional regular e remunerada, dedicando-se de forma reiterada à prática de factos idênticos aos descritos nesta acusação, por via dos quais obtém os meios económicos com que faz face a todos os seus gastos, sejam eles essenciais ou supérfluos. Com efeito:
132. O arguido AA foi já condenado, com sentença transitada em julgado, nos processos:
a) 35/19...., que correu termos no Juízo 2 do Juízo Criminal de Barcelos, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, onde lhe foi aplicada uma pena de 120 dias de multa, pela prática de um crime de burla simples, previsto e punido pelo artigo 217. 0 do Código Penal, por factos idênticos aos aqui imputados, praticados em 17.01.2019, tendo a decisão condenatória transitado em julgado a 14.11.2019, sendo extinta a 21.07.2020;
b) 565/18...., que correu termos no Juízo 7 do Juízo Criminal de Lisboa, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, onde lhe foi aplicada uma pena de 140 dias de multa, pela prática de um crime de burla simples, previsto e punido pelo artigo 217º do Código Penal, por factos semelhantes aos aqui imputados, praticados em 30.11.2018, tendo a decisão condenatória transitado em julgado a 3.02.2020, sendo extinta a 3.11.2021;
c) 351/19...., que correu termos no Juízo 1, do Juízo Local Criminal de Viana do Castelo, onde lhe foi aplicada uma pena de 130 dias de multa, pela prática de um crime de burla simples, previsto e punido pelo artigo 217.º do Código Penal, por factos idênticos aos aqui imputados, praticados em março de 2019, tendo a decisão condenatória transitado em julgado a 15.09.2020, sendo extinta a 6.09.2021;
d) 1028/19...., que correu termos no Juízo 5, do Juízo Local Criminal de Setúbal, onde lhe foi aplicada uma pena de 135 dias de multa, pela prática de um crime de burla simples, previsto e punido pelo artigo 217º, do Código Penal, por factos idênticos aos aqui imputados, praticados em outubro de 2019, tendo a decisão condenatória transitado em julgado a 10.12.2020;
e) 389/17.... que correu termos no Juízo l, do Juízo Local Criminal de Santo Tirso, onde lhe foi aplicada uma pena de 1 ano de prisão, suspensa por 1 ano, sujeita ao dever de proceder ao pagamento da quantia de 1.000,00 € ao ofendido, pela prática de um crime de burla simples, previsto e punido pelo artigo 217º do Código Penal, por factos praticados nos meses de junho a agosto de 2017, tendo a decisão condenatória transitado em julgado a 7.06.2021.
133. Contra o arguido foram deduzidas acusações nos processos adiante indicados:
a) 272/18...., acusado em 2.11.2020, pela Secção de Ponte de Lima do DIAP de Viana de Castelo, por factos subsumíveis no crime de burla qualificada, praticados a 15.07.2018, sendo ofendida TT, sendo a atuação do arguido idêntica à supra descrita;
b) 253/20...., acusado em 20.10.2020, pela lª a Secção do DIAP de Viana
de Castelo, por factos subsumíveis no crime de burla simples, praticados a 27.03.2020, sendo ofendida RR, sendo a atuação do arguido idêntica à supra descrita;
c) 399/20...., acusado em 29.01.2021, pela 3. a Secção de Sintra do DIAP de Lisboa Oeste, por factos subsumíveis no crime de burla simples, praticados em 17.04.2020, em que é ofendido SS, sendo a atuação do arguido idêntica à supra descrita;
d) 176/20...., acusado em 26.11.2021, Secção do DIAP de Leiria, por factos subsumíveis no crime de apropriação ilegítima de acessão ou coisa achada, praticados em 12.02.2020, em que é ofendida QQ, sendo a atuação do arguido idêntica à supra descrita;
e) 284/21...., acusado em 6.03.2022, pela Secção de Sesimbra do DIAP de Setúbal, por factos subsumíveis no crime de burla simples, praticados em 16.05.2021, em que é ofendido UU, sendo a atuação do arguido idêntica à supra descrita.
134. Ao arguido foi aplicada a suspensão provisória do processo no inquérito 7/18...., que correu termos no DIAP do Porto, Secção de Santo Tirso, pela prática de um crime de burla simples, previsto e punido pelo artigo 217º, n.º1, do Código Penal, reportado a factos ocorridos em 3.01.2018, sendo a atuação do arguido idêntica à supra descrita.
135. Contra o arguido AA, para além dos inquéritos, já referidos, foram ainda instaurados
outros inquéritos por condutas idênticas às supra descritas nesta acusação, nomeadamente os inquéritos:
- 632/19....;
- 71/20....;
- 689/18....;
- 736/19....;
- 184/20....;
- 103/20.....
136. Contra o arguido foram ainda deduzidas
acusações nos processos infra identificados, tendo os processos terminado com desistência de queixa, na sequência do pagamento, pelo arguido, aos ofendidos, dos valores indevidamente apropriados por via de condutas idênticas às supra descritas nesta acusação:
a) 19/19...., foi acusado em 10.12.2020, pela Secção de Águeda do DIAP de Aveiro, por factos subsumíveis na prática de um crime de burla simples, praticados a 2.01.2019, sendo ofendida VV;
b) 243/20...., foi acusado em 25.02.2021, pela 8ª Secção do DIAP de Lisboa, por factos subsumíveis na prática de dois crimes de burla simples, praticados a 23.01.2020, sendo ofendido OO, e a 11.02.2020, sendo ofendido PP;
c) 214/18...., foi acusado em 27.11.2019, pela Secção de Nelas do DIAP de Viseu, por factos subsumíveis na prática de um crime de burla simples, praticados a 1.12.2018, sendo ofendido NN
137. O arguido estava ciente de que as condutas que adotava perante os utilizadores de internet não correspondiam à verdade e eram aptas a criar, como criaram, nos seus interlocutores uma falsa perceção da realidade, que os determinou a abrir mão de quantias monetárias em seu favor, tendo o arguido agido sempre com o propósito de os ludibriar e de se apropriar do dinheiro que eles lhe viessem a entregar.
138. Tendo o arguido nessa atividade fraudulenta e apropriativa a sua principal forma de obtenção de rendimentos e de manter o modo de vida desafogado em que vivia.
139. O arguido agiu nos termos acima descritos em relação ao dinheiro que era depositado na sua conta pelas vítimas dos seus esquemas enganosos e que sabia não lhe pertencer, consciente que tais quantias tinham sido obtidas de forma fraudulenta, movimentando-as com o propósito de esconder a proveniência ilícita daquelas quantias monetárias e de dificultar a ação da justiça e vir a ser associado a tais factos.
140. Agiu o arguido com o propósito de dissimular a sua identidade e a origem do dinheiro de que se apropriou, impedindo que os ofendidos e as autoridades judiciárias o detetassem, por um lado e, por outro, visando ocultar essa origem e integrar no circuito bancário legítimo esses valores, que sabia provenientes de factos que constituíam a prática de crime, o que fez movimentando o dinheiro e gastando em proveito próprio, recorrendo a transferências para contas de outras pessoas, através das quais procedia à reintrodução do dinheiro no sistema bancário cortando a relação com os crimes de onde provinha.
141. Com o mesmo objetivo o arguido fazia apostas de jogo on line, assim procurando reintroduzir nas contas bancárias, como prémios de jogo, o dinheiro que obteve com a prática de crimes, dando-lhe uma aparência lícita, e obstando a que se relacionassem aquelas quantias com os factos ilícitos que estavam na origem da sua transferência patrimonial para a esfera do arguido.
142. Com esta conduta de transferências e apostas o arguido introduziu, como era sua vontade, as quantias indicadas supra, que era vantagem da sua conduta ilícita, na
economia regular, tendo-o feito de forma livre deliberada e consciente, com o propósito, conseguido, de evitar, por um lado, que se estabelecesse uma relação direta com a sua proveniência e, por outro lado, que viesse a ser implicado na prática dos factos que estiveram na sua génese, apesar de saber que com tal conduta estava a introduzir na economia legal ativos financeiros ilícitos, contaminando-a e dando a estes ativos a aparência de licitude.
143. O arguido praticou todos os factos acima descritos de forma consciente, livre e deliberada, bem sabendo que todas as condutas que adotava eram proibidas e punidas por lei penal.
Ainda se provou (dos pedidos de indemnização cível):
144.
Como consequência da conduta do arguido descrita nos pontos 44 a 50, o ofendido DD sentiu-se perturbado e frustrado, por ter falhado a promessa ao neto de lhe oferecer no Natal uma playstation.
145.
A conduta do arguido descrita nos pontos 17 a 39, deixou a ofendida CC preocupada e nervosa, casando-lhe angústia e transtorno, por ficar privada do valor de €650,00 e não poder contar com o produto da venda que pretendia efetuar.
Das condições pessoais do arguido
146.
Para além das condenações supra referidas, o arguido foi ainda condenado:
.
Por sentença de 27.02.2014, transitada em julgado em 22.04.2014, pela prática, em 17.04.2012, de um crime de consumo de estupefacientes, na pena de 50 dias de multa, à taxa diária de € 5,50 (processo n.º 126/12...., do 2º Juízo Criminal de Santo Tirso);
. Por sentença de 10.09.2021, transitada em julgado em 02.12.2021, pela prática, em 16.07.2021, de um crime de burla qualificada, na pena de 90 dias de prisão, substituída por 90 dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (processo n.º 272/18...., do Juízo Local Criminal de Ponte de Lima);
. Por sentença de 25.04.2022, transitada em julgado em 13.05.2022, pela prática, em 12.02.2020, de um crime de apropriação ilegítima, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de € 5,50 (processo n.º 176/20...., do Juízo Local Criminal de Leiria, J1);
. Por sentença de 06.07.2023, transitada em julgado em 02.10.2023, pela prática, em 09.09.2018, de um crime de burla simples, na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de € 8,00 (processo n.º 290/18...., do Juízo de Competência Genérica de Vila Real de Santo António, J2);
. Por sentença de 06.10.2023, transitada em julgado em 13.11.2023, pela prática, em 25.01.2020, de um crime de burla informática e nas comunicações, na pena de 6 meses de prisão suspensa por 1 ano (processo n.º 185/20...., do Juízo Local Criminal de Portimão, J2).
. Por sentença de 09.05.2022, transitada em julgado em 09.05.2022, pela prática, em 17.05.2021, de um crime de burla simples, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão suspensa por igual período, na condição de pagamento ao ofendido (processo n.º 284/21...., do Juízo de Competência Genérica de Setúbal, J2);
. Por sentença de 08.09.2022, transitada em julgado em 13.10.2022, pela prática, em 09.10.2018, de um crime de burla simples, na pena de 1 ano de prisão, suspensa por 1 ano (processo n.º 689/18...., do Juízo Local Criminal de Guimarães, J4);
. Por sentença de 20.06.2023, transitada em julgado em 12.09.2023, pela prática, em 20.03.2020, de um crime de burla simples, na pena de 6 meses de prisão suspensa por 1 ano (processo n.º 151/20...., do Juízo de Competência Genérica de Tavira).
. Por sentença de 10.07.2023, transitada em julgado em 25.09.2023, pela prática, em 2020, de dois crimes de burla simples, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão suspensa por igual período, com sujeição a deveres (processo n.º 702/20...., do Juízo Local Criminal de Braga, J3);
147. No processo de socialização de AA, destaque para a disfuncionalidade do grupo familiar de referência e exposição nos primeiros anos de vida a situações de negligência familiar.
148. Entre 2000/2005, face à incapacidade da progenitora para levar a cabo o necessário acompanhamento/supervisão do arguido e face à reclusão do progenitor, o menor foi judicialmente entregue aos cuidados de um tio paterno.
149. Naquele agregado terá beneficiado de uma integração adequada e supervisão satisfatória, não existindo informação de comportamentos desajustados ou de risco, durante aquele período.
150. Em julho de 2005 no contexto de reorganização pessoal e familiar da progenitora, o arguido reintegrou o agregado familiar desta. Neste período a dinâmica familiar ficou marcada pela disfuncionalidade, patenteada por uma prática educativa permissiva e desculpabilizadora.
151. O progenitor do arguido cumpriu pena de prisão entre outubro de 1997 e junho de 2007, sendo uma figura pouco interventiva no processo educativo de AA.
152. Embora AA tenha frequentado a escola até aos 16 anos, apenas concluiu o primeiro ciclo. Na transição para o segundo ciclo começou a evidenciar comportamentos problemáticos, de rebeldia e agressividade com os colegas e de elevado absentismo escolar, convivendo com grupo de pares desviantes e iniciando nesta fase o consumo de substâncias estupefacientes (haxixe). É também nesta fase que o arguido é sujeito a processo tutelar educativo, com implementação de medida de acompanhamento.
153. Apesar dos esforços das várias entidades envolvidas ao longo do processo de acompanhamento, AA nem sempre correspondeu de forma satisfatória, inviabilizando algumas intervenções destinadas a corrigir fragilidades na sua personalidade e alterar comportamentos.
154. Aos 16 anos começou a trabalhar numa padaria, onde se manteve apenas alguns meses. O seu percurso profissional, caracteriza-se pela irregularidade e desempenho de curta duração, com situações de desemprego prolongadas ou recurso a trabalhos temporários.
155. Há sete anos AA estabeleceu relação afetiva com companheira e tem dois filhos de 5 e 4 anos.
156. À data da prática dos factos (2019/ 2020), AA constituía agregado com companheira e dois filhos menores, coabitando com a mãe e irmão mais velho do arguido, no 1º andar de uma moradia. O espaço habitacional de tipologia 3, arrendado, apresenta-se subdimensionado para as necessidades do agregado, no entanto a família perceciona as condições habitacionais como satisfatórias.
157.
A dinâmica relacional no grupo familiar, indicia sentido de entreajuda. Relativamente ao comportamento criminal do arguido a atitude da família é indiciadora de alguma minimização/desculpabilização.
158. Profissionalmente AA não apresenta atividade regular, tendo desenvolvido alguma atividade na área da restauração, nas reparações de computadores e telemóveis ou na construção civil, atividades que decorrem num registo informal e de forma ocasional.
159. É um indivíduo com rotinas pouco estruturadas, um quotidiano inoperante pela inatividade laboral, assumindo problemática aditiva ao jogo (apostas on line), com implicações a outros níveis, designadamente na sua autonomia e capacidade económica.
160. AA assume também ser consumidor de haxixe, substância que o mesmo refere ter influência no controlo das crises de ansiedade de que padece, existindo também intenção de controlar esta problemática.
161. Face a estas problemáticas aditivas, o arguido procurou apoio junto do centro de Respostas Integradas Porto Ocidental, tendo efetuado consultas.
162. A companheira do arguido é funcionária de um hipermercado.
163. O grupo familiar reside em casa arrendada suportando uma renda mensal de 300 euros. As despesas relacionadas com o espaço habitacional (luz, água, gás e comunicações) totalizam uma média mensal de 130/150 euros e são partilhadas pelos vários coabitantes.
164. O agregado requereu recentemente o rendimento social de inserção, tendo sido deferido o pagamento de uma prestação de 99,23 euros, face á existência de rendimentos de trabalho de um dos elementos do agregado (companheira do arguido).
165. De acordo com o relatório social, o arguido denota alguma irresponsabilidade e imaturidade, é caracterizado com um individuo permeável, com ligações familiares a elementos com comportamentos desviantes.
166. AA encontra-se em acompanhamento pela DGRSP, no âmbito de uma pena de prisão suspensa, aplicada no processo 689/18.... do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, encontrando-se a cumprir de forma minimamente satisfatória as ações estabelecidas no plano.
167. O arguido não apresenta projeto laboral e revela fraca proatividade na sua integração no mercado de trabalho, sem um quotidiano estruturado.
****
Do incidente de liquidação resultaram provados os seguintes factos:
1-
AA foi constituído arguido nos presentes autos no dia 17.02.2022.
2-
À data dos factos, o arguido vivia em união de facto com WW e o casal residia com GG, a mãe do arguido AA.
3-
No período compreendido entre 17 de fevereiro de 2017 e 31 de março de 2022, o arguido foi titular das contas bancárias infra indicadas, as quais eram por si movimentadas:
Conta com o IBAN ...05
do Banco 6..., aberta a 24.09.2019 e encerrada a 6.07.2020;
Conta com o IBAN ...42
do Banco 3..., aberta a 16.06.2017 e encerrada a 23.11.2021;
Conta com o IBAN ...18
do Banco 7..., encerrada a 16.12.2019, mas inativa desde ../../2012;
4.
No mesmo período o arguido movimentou quantias monetárias nas contas bancárias infra indicadas, contas que apesar de tituladas pela sua companheira, WW, e pela sua mãe, GG, eram por si acedidas e movimentadas no seu interesse, sem intervenção das titulares:
Conta com o IBAN ...80 do Banco 3...,
titulada por WW, mas movimentada por AA, aberta a 24.10.2018 e encerrada a 20.08.2021 (mas inativa desde 23.12.2020);
Conta com o IBAN nº ...56 do Banco 3...
, titulada por GG, mas movimentada pelo arguido AA, aberta a 7.03.2018 e encerrada a 23.11.2021.
5.
No período que mediou entre 17.02.2017 e 31.03.2022, as contas tituladas e/ou movimentadas pelo arguido AA (com exceção da conta com o IBAN ...18 do Banco 7... que não teve qualquer movimentação no período) foram creditadas com diversos valores, assim:
- 5.1. A conta com o IBAN ...05 do Banco 6...
apresentou um total de créditos discriminados no quadro infra, em que o valor dos créditos não justificados corresponde à diferença entre os créditos totais e o valor do crédito que proveio de adiantamento de cartão
:
Período/Ano
17.02.2017 a 31.12.2017
2018
2019
2020
2021
Total
Créditos total
0,00
0,00
5.767,97
2.010,00
0,00
7.777,97
Cash advance cartão
0,00
0,00
450,00
0,00
450,00
Créditos não justificados
0,00
0,00
5.317,97
2.010,00
0,00
7.327,97
5.2. A conta com o IBAN nº ...42 do Banco 3...,
apresentou um total de créditos discriminados no quadro infra, em que o valor dos créditos não justificados corresponde à diferença entre os créditos totais e a soma dos créditos que provinham das outras contas movimentadas pelo arguido (ainda que formalmente tituladas pela sua mãe e pela sua companheira), de devoluções e anulações de operações e de transferências realizadas pela sociedade de recursos humanos ocorridas no ano de 2021:
Período/Ano
17.02.2017 a 31.12.2017
2018
2019
2020
2021
Total
Créditos total
3.861,71
19.281,40
24.392,32
19.603,33
8.790,58
75.929,34
Transf. da conta GG
0,00
1.193,00
570,00
0,00
0,00
1.763,00
Transf. da conta WW
0,00
0,00
0,00
534,20
0,00
534,20
Devoluções e anulações
0,00
2,20
5.433,32
5,47
0,00
5.440,99
Transf. Soc. Randstad Rec. Humanos
0,00
0,00
0,00
0,00
516,88
516,88
Créditos não justificados
3.861,71
18.086,20
18.389,00
19.063,66
8.273,70
67.674,27
5.3 A conta com o IBAN nº ...80 do Banco 3..., titulada por WW, mas movimentada pelo arguido AA,
apresentou um total de créditos discriminados no quadro infra, em que o valor dos créditos não justificados corresponde à diferença entre os créditos totais e a soma dos créditos que provinham da outra conta titulada pelo arguido no Banco 3... e de devoluções e anulações de operações
:
Período/Ano
17.02.2017 a 31.12.2017
2018
2019
2020
2021
Total
Créditos total
0,00
220,00
1.572,12
3.623,00
0,00
5.415,19
Transf. da conta B. CTT AA
0,00
0,00
817,12
52,00
0,00
869,12
Devoluções e anulações
0,00
0,00
0,00
4,07
0,00
4,07
Créditos não justificados
0,00
220,00
755,00
3.567,00
0,00
4.542,00
5.4. A conta com o IBAN nº ...56 do Banco 3..., titulada por de GG, mas movimentada pelo arguido AA,
apresentou um total de créditos discriminados no quadro infra, em que o valor dos créditos não justificados corresponde à diferença entre os créditos totais e a soma dos créditos que provinham da Segurança Social (relativos ao rendimentos social de inserção de GG), de outras contas tituladas e/ou movimentadas pelo arguido (designadamente da conta titulada pelo arguido no Banco 3... e da conta por ele movimentada, mas formalmente titulada pela sua companheira WW), e de devoluções e anulações de operações:
Período/Ano
17.02.2017 a 31.12.2017
2018
2019
2020
2021
Total
Créditos total
0,00
7.351,74
13.516,33
7.517,95
6.634,13
35.020,15
Inst. Seg Social
0,00
5.540,81
4.944,26
3.731,08
2.641,40
16.857,55
Transf. da conta B CTT AA
0,00
0,00
1.351,10
2.475,00
1.960,27
5.786,37
Transf. da conta B CTT WW
0,00
0,00
0,00
0,00
110,00
110,00
Devoluções e anulações
0,00
1,70
126,59
73,07
115,57
316,93
Créditos não justificados
0,00
1.809,23
7.094,38
1.238,80
1.806,89
11.949,30
6.
No período compreendido entre 17 de fevereiro de 2017 e até ao final do mês de fevereiro de 2022 o arguido apenas apresentou uma declaração de IRS relativa ao ano de 2018, declarando um rendimento bruto total de 1.932,70 €.
7. P
ara esse período de 2017 a 2022, foram declarados pelas entidades patronais do arguido à Segurança Social vencimentos para efeitos de cálculo de contribuição nos valores discriminados no quadro do ponto 13, dos quais resulta que o arguido teve uma atividade profissional esporádica (trabalhando apenas no período de agosto a novembro de 2018, 3 dias no mês de maio de 2019 e de setembro de 2021 em diante, encontrando-se em situação de inatividade entre dezembro de 2018 e setembro de 20221 – exceto os 3 dias de maio de 2019 já mencionados).
8.
Para além disso, o arguido foi também beneficiário de prestações sociais, pagas pela Segurança Social, correspondentes a proteção social no âmbito da maternidade e a prestações por doença, auferido os valores das prestações sociais discriminados no quadro infra:
Ano
Trabalho
Prestação doença
Prestação maternidade
17.02.2017 a 31.12.2017
0,00
0,00
281,00
2018
1.875,08
0,00
45,76
2019
32,88
0,00
244,02
2020
0,00
0,00
0,00
2021
1.804,69
112,50
0,00
2022
305,50
343,56
0,00
Total
4.018,15
456,06
570,78
Total Global
5.044,99
9.
No período entre 17 de fevereiro de 2017 e 31.03.2022 o arguido recorreu a adiantamento de crédito no valor de 450,00 €, que foi creditado na sua conta
com o IBAN ...05 do Banco 6...
.
10.
Para além deste rendimento lícito, o arguido viu as contas por si tituladas e/ou movimentadas creditadas com o valor total de 9.062,69 €, proveniente de contas por si tituladas e/ou movimentadas.
11.
As contas tituladas e movimentadas por AA foram ainda creditadas com o valor de 5.761,99 € de devoluções e anulações de operações.
12.
O arguido não obteve durante o referido período outros rendimentos lícitos.
13.
Acresce que, entre março de 2018 e outubro de 2021, a conta do Banco 3... com o
IBAN nº ...56 do Banco 3...,
titulada por GG, mãe do arguido, foi creditada com o valor de 16.857,55 €, recebidos a título de prestação de rendimento social de inserção.
14.
Computa-se em 5.494,99 € o rendimento lícito do arguido AA no período compreendido entre 17 de fevereiro de 2017 e 31 de março de 2022.
15.
A soma de todos os valores creditados nas contas do arguido acima identificadas, entre 17 de fevereiro de 2017 e 31 de março de 2022, ascende a €
124.142,65.
*
2.2. Matéria de Facto Não Provada
Não ficaram por provar quaisquer factos com relevância para a decisão da causa.
*
2.3. Motivação da Decisão de Facto
O Tribunal fundou a sua convicção na análise crítica do conjunto da prova produzida e examinada em audiência de discussão e julgamento em conjugação com os documentos juntos aos autos, de acordo com a sua livre convicção e as regras da experiência comum, como determina o artigo 127º, do Código de Processo Penal.
Valorou, além do mais, as declarações prestadas pelo arguido AA em sede de inquérito,
perante magistrado do Ministério Público, assistido por defensor e advertido nos termos previstos no artigo 141º, n.º4, alínea b), do Código de Processo Penal (cfr. fls. 974 a 979), as quais estão sujeitas à livre apreciação do Tribunal – artigo 357º, n.º1, al.b), do Código de Processo Penal.
Confrontado com as situações aqui em discussão, o arguido assumiu todos os comportamentos que lhe são imputados, justificando-os como forma de sustentar o vício do jogo. Nega, apenas, que tenha agido com o propósito de esconder a proveniência ilícita das quantias monetárias e de dificultar a ação da justiça, escamoteando a sua associação aos factos - a esse propósito explica que procedeu às transferências para contas da titularidade de terceiros (concretamente, a mãe e a irmã) porque precisava de efetuar movimentos com cartão e não dispunha de cartão associado às suas contas.
Aquilo que o arguido admite resulta também dos depoimentos prestados pelas testemunhas em audiência de discussão e julgamento – que se afiguraram objetivos, coerentes e circunstanciados - em conjugação com o teor dos documentos juntos aos autos.
Assim, para além de se ter considerado o teor dos documentos juntos aos autos, designadamente:
- De fls. 42 a 78 (informação do Banco 3..., relativa a conta titulada pelo arguido, de onde é possível extrair os movimentos, designadamente os valores creditados, bem como a origem);
- De fls. 89 e ss. (lista de faturação de chamadas e de mensagens);
- De fls. 162-164 (informação da SIBS, relacionada com telemóveis em nome de FF);
- De fls. 215 e ss. 305 e ss., 312 e ss., 323 e ss., 435 e ss., 651 e ss., 659, 713 e ss., 802 e 803 (informação do Banco 3...);
- De fls. 304 (informação do Banco de Portugal);
- De fls. 642 (informação do Banco 6...);
- De fls. 708 e ss. (informação da Vodafone);
- De fls. 717 a 721, 739 A a 743, 774 a 790, 797 a 799, 826 a 839, 865 e 866 (informação da Kaisen, que explora a Betano, antes A..., aludindo a transações para o IBAN do arguido, com origem em prémios de jogo);
- De fls. 792 a 796 (informação da Solverde, relativa a movimentos de jogo, com a identificação de conta titulada por FF);
- Elementos bancários constantes dos anexos 1, 2, 3, 4 e 5.
O Tribunal valorou, concretamente, em relação a cada uma das situações:
- Ponto II, factos 9 a 26,
o depoimento prestado pela ofendida BB
(localizou no tempo a situação ocorrida na sequência de ter colocado à venda um carrinho de bébé no OLX, confirmando que o seu número de telemóvel é o que consta do anúncio de fls. 118, explicando que a combinação da transação foi efetuada através de mensagem, e que foi seguindo os passos que lhe foram transmitidos pelo arguido na aplicação MBWAY que instalou para o efeito, até que se apercebeu que o dinheiro saiu da sua conta, o que transmitiu ao seu interlocutor que lhe sugeriu que repetisse o procedimento; disse que nunca recuperou o valor, nem voltou a ser contactada), em conjugação com os documentos de fls. 15 a 20 (print de mensagem telemóvel, sms), 40-41 (informação), 136 (adesão ao serviço MBWAY), bem como os elementos bancários de fls. 14 – consulta de movimento de conta da Banco 2..., no dia 02.03.2020 -, 70, 136 e ss. (informação da Banco 2...) e
os comprovativos de movimentos de fls. 31 verso do Anexo e de fls. 3 e 16 verso do Anexo 5;
-
Ponto III, factos 27 a 43
, o depoimento prestado pela
ofendida CC ((localizou no tempo a situação ocorrida na sequência de ter colocado à venda uma cama no OLX, colocando o seu número de telemóvel no anúncio, explicando que a pessoa que a contactou, interessada na aquisição, induziu-a a instalar a aplicação MBWAY, sugerindo o pagamento através de duas operações, que efetuou, satisfazendo os pedidos formulados pelo interlocutor na aplicação, tendo percebido, logo no mesmo dia, através do seu extrato bancário, que o dinheiro saiu da sua conta – da primeira vez, € 300,00 e da segunda vez € 350,00; tendo confrontado o interlocutor com isso, este disse que ia devolver o dinheiro mas continuou a efetuar pedidos através da aplicação, os quais já não aceitou por ter percebido que tinha sido enganada; identificou o número de telefone que colocou no anúncio do OLX e o número de telefone que associou à aplicação MBWAY que instalou; disse que nunca recuperou o valor, nem voltou a ser contactada), em conjugação com o auto de notícia de fls. 20, print de imagem de fls. 25, o comprovativo de adesão ao serviço MBWAY de fls. 65 do Apenso 140/20...., os elementos desta aplicação de fls. 25 e 66 a 69 do mesmo Apenso e de fls. 30 a 32 e 72-72, os elementos bancários de fls. 14, 59, 60, 66 a 69, 72 e 73 do Apenso, bem como a informação de fls. 74 dos autos principais (de onde resulta a ofendida como ordenante), os elementos bancários 44 e ss. dos autos principais e de fls. 33 verso, bem como as informações de fls. 30 a 32 e 72-73 (de onde resulta o arguido como destinatário), e os comprovativos de movimentos de fls. 33 verso do Anexo 1 e de fls. 3 e 17 verso do Anexo 5;
- Ponto IV, factos 44 a 56,
o depoimento prestado pelo ofendido DD (
localizou no tempo a situação em que contactou o anunciante no site do OLX, para o número de telefone aí indicado, da venda de uma Playstation 4, pelo valor de € 150,00 – explicando que era para oferecer no Natal -, na sequência do que fez, por indicação do interlocutor, o pagamento de € 150,00 através do MBWAY, operação que repetiu depois de o interlocutor lhe ter dado essa indicação, por não ter recebido o valor; conclui que efetuou, afinal, um pagamento de € 300,00, mas nunca recebeu a playstation, não mais tendo sido contactado pelo vendedor, nem tendo conseguido contactá-lo apesar de o ter tentado, para o mesmo telemóvel), em conjugação com o aditamento de fls. 11, cópia da consulta bancária de fls. 12, informação da Vodafone de fls. 28 a 32, os elementos bancários de fls. 44 e ss. dos autos principais e 15 verso do Anexo 1, para além dos comprovativos de operações de fls. 15 verso do Anexo 1, e a informação do Banco 3... de fls. 75 a 81;
- Ponto V, factos 57 a 75,
o depoimento prestado pela ofendida LL
(localizou no tempo a situação em que contactou o anunciante no site do OLX, para o número de telefone aí indicado, da venda de um IPHONE, pelo valor de € 260,00, na sequência do que fez, por indicação do interlocutor, o pagamento desse valor através do MBWAY, após o que fez, pela mesma via, o pagamento de mais € 300,00, relativo a um outro IPHONE que o interlocutor referiu ter disponível e pelo qual manifestou interesse, explicando a conversa que a levou a aceitar o pagamento de imediato), em conjugação com as mensagens de correio eletrónico de fls. 66 e ss. e de fls. 123 ss., a informação da NOS de fls. 103, o anúncio OLX de fls. 83 e ss., os prints da aplicação MBWAY de fls. 23 verso do Anexo 1 e de fls. 81-82 do inquérito apenso, os elementos bancários de fls. 44 e ss. dos autos principais e de fls. 23 verso do Anexo 1, os comprovativos de operações de fls. 23 verso do Anexo 1, fls. 3 e 10 verso do Anexo 5, fls. 713;
- Ponto VI, factos 76 a 87,
o depoimento prestado pela testemunha MM (localizou no tempo a situação em que contactou o anunciante no site do OLX, para o número de telefone aí indicado, da venda de uma Playstation, na sequência do que fez, por indicação do interlocutor, que se identificou como AA e que foi simpático e disponível, oferecendo-se até para passar em casa,, o pagamento do valor por transferência bancária para o IBAN que lhe foi indicado; embora não tenha conseguido precisar o valor que transferiu, confrontada com o extrato bancário da sua conta da Banco 2..., confirma o valor de € 220,00; disse que não recuperou o valor, nem recebeu o objeto), em conjugação com o print de mensagens de fls. 711-712, os elementos bancários de fls. 44 e ss. dos autos principais e 34 do Anexo 1, os comprovativos de operações de fls. 34 do Anexo 1, 652, 3 e 12 do Anexo 2 e a informação da Banco 2... de fls. 515;
- Ponto VII, factos 88 a 99,
o depoimento prestado pela testemunha EE
(localizou no tempo a situação em que contactou o anunciante no site do OLX, para o número de telefone aí indicado, da venda de uma Playstation, na sequência do que fez, por indicação do interlocutor, que se identificou como AA, o pagamento do valor por transferência bancária para o IBAN que lhe foi indicado; disse que a Playstation nunca lhe chegou, e que efetuou contactos para os números de telefone de que disponha, quer o indicado no anúncio, quer o outro através do qual comunicaram, nunca tendo sido atendido), em conjugação com os elementos bancários de fls. 44 e ss. dos autos principais e 34 do Anexo 1, os comprovativos de operações de fls. 34 do Anexo 1, 652, fls. 3 e 12 do Anexo 2, e a informação da Banco 5... de fls. 513. Refira-se que destes documentos apenas se extrai a transferência do valor de € 200,00, quando o anúncio de venda estipulava o preço de € 220,00, pelo que admitimos que possa ter havido um desconto no decurso das negociações; embora a testemunha tenha inicialmente referido o valor de € 250,00, confrontado com os referidos documentos, admitiu não ter sido exato no valor indicado; embora a testemunha tenha referido que fez duas transferências do mesmo valor, tal não tem respaldo documental, pelo que apenas se julga provado, com a segurança que se exige, que foi efetuada a transferência documentalmente comprovada, de € 200,00.
Relativamente às situações idênticas pelas quais o arguido foi acusado, o Tribunal valorou:
- Pontos 107 a 109, fls. 1017 a 1020 dos autos principais e fls. 14 verso e 15 do Anexo 1);
- Pontos 110 a 112, fls. 1037 a 1046 dos autos principais e fls. 27 verso e 28 do Anexo 1);
- Pontos 113 a 117, fls. 1037 a 1046 e fls. 29 verso do Anexo 1 e fls. 15 do Anexo 5;
- Pontos 117 a 120, fls. 29 verso e 30, 1004 a 1016, 29 verso do Anexo 1, 15 verso do Anexo 5;
- Pontos 121 a 123, fls. 280 a 297 dos autos principais e fls. 33 verso do Anexo 1;
- Pontos 124 a 127, fls. 531 a 538, 556 a 563 dos autos principais e fls. 34 do Anexo 1, fls. 12 do Anexo 2 e fls. 630 e resposta de fls. 652 dos autos principais;
- Pontos 128 a 130, fls. 262 e ss e 539 a 552.
A propósito das outras condenações de que foi objeto
o arguido, o Tribunal valorou, para além do CRC junto aos autos, as certidões de fls. 182 a 187, fls. 635 a 637, 672 a 677, fls. 762 a 773, fls. 848 a 864 e a informação de fls. 565.
Da certidão junta a fls. 188 a 193 extrai-se a suspensão provisória de processo de que beneficiou o arguido.
As outras acusações deduzidas contra o arguido por factos idênticos resultam de fls. 262 a 279, 280 a 295, 296 a 302, 531 a 538, 539 e seguintes, 556 a 563, 1004 a 1016, 1017 a 1029 e 1028 a 1034.
Apurou-se a existência de outros inquéritos por condutas idênticas em face de fls. 336, 337 a 344, 444 a 452, 591 a 615, 654 e ss., 869 a 872 e 874 a 876.
Da análise conjugada da aludida prova declarativa e documental resulta o “modus operandi” descrito na acusação, bem como a autoria pelo arguido, designadamente por serem creditados valores em contas da sua titularidade, bem como serem transferidos valores através do MBWAY para telemóvel associado a contas da sua titularidade. O próprio arguido, em sede de inquérito, admitiu ter agido daquela forma, afastando qualquer participação da mãe, da companheira e da irmã, titulares de contas para onde foram transferidos alguns dos valores.
Resultando da informação da Segurança Social e da AT constante do Anexo 6), bem como da informação da AT de fls. 940 que o arguido AA desde, pelo menos o ano de 2017, não exerce de forma permanente qualquer profissão ou atividade lícita remunerada, em conjugação com toda a demais prova supra referida – designadamente, para além das seis situações aqui em discussão, as condenações de que foi objeto o arguido, bem como os demais processos que lhe foram instaurados por comportamentos idênticos, tudo abrangendo um considerável lapso temporal – concluímos que o arguido tinha na apurada forma de agir a atividade de obtenção de rendimentos que lhe permitia subsistir.
Os factos relativos aos elementos intelectual e volitivo do dolo concernente à conduta do arguido
foram considerados assentes a partir do conjunto das circunstâncias de facto dadas como provadas supra, já que o dolo é uma realidade que não é apreensível diretamente, decorrendo antes da materialidade dos factos analisada à luz das regras da experiência comum.
O próprio arguido não põe em causa que agiu com o propósito de ludibriar os ofendidos e de se apropriar do dinheiro que lhe vieram a entregar, através da falsa perceção da realidade que criou, e que os determinou a abrir mão das quantias monetárias.
Contudo, o arguido já não admite que agiu com o propósito de esconder a proveniência ilícita das quantias monetárias que foram depositadas nas suas contas, de dificultar a ação da justiça e vir a ser associado a tais factos. Para tal, invoca o arguido que movimentou o dinheiro, transferindo para as contas das suas familiares, para poder usar cartão, pois que não dispunha de cartão da sua conta. Ora, tal versão é contrariada pela prova documental dos autos e pelas demais circunstâncias apuradas, senão vejamos:
- Desde logo, resulta dos elementos bancários de fls. 54 e ss. que a conta Banco 3... titulada pelo arguido era movimentada através do sistema Multibanco, pois que daí se extraem levantamentos efetuados no Multibanco;
- Além disso, apurou-se que, depois de transferir o dinheiro para as contas bancárias da mãe e da FF, o arguido utiliza-o em sites de apostas de jogo, transferência que poderia fazer diretamente da sua conta;
- A própria realização das apostas de jogo online constitui uma forma de reintroduzir nas contas bancárias, como prémios de jogo, o dinheiro obtido ilicitamente, dando-lhe uma aparência lícita e obstando a que se relacionassem aquelas quantias com os factos ilícitos que estavam na origem da sua transferência patrimonial para a esfera do arguido.
Assim, quer pela forma como o arguido age logo imediatamente após a entrada das quantias em dinheiro provenientes das burlas na sua esfera patrimonial (no próprio dia ou no dia a seguir), quer pela natureza das operações (movimentar imediatamente o dinheiro que caía na sua conta para outras contas bancárias - que, formalmente, tinha outras pessoas como titulares, mas que estavam no domínio e disponibilidade do arguido, como a da sua mãe GG, ou para a conta da sua irmã FF; fazer apostas de jogo on line, quer através da sua conta, quer das contas de que tinha controlo, recebendo em momento posterior o dinheiro dos prémios de jogo nessas mesmas contas) – idóneas a evitar que o arguido fosse detetado, bem como a dissimular a origem do dinheiro ou a dar-lhe uma nova aparência lícita, pela reintrodução do dinheiro no sistema bancário, na economia regular -, quer porque não se vislumbra que as mesmas tenham outra utilidade, designadamente a indicada pelo arguido, concluímos, à luz das regras da experiência comum, que arguido agiu com o propósito, de evitar, por um lado, que se estabelecesse uma relação direta com a sua proveniência e, por outro lado, que viesse a ser implicado na prática dos factos que estiveram na sua génese, apesar de saber que com tal conduta estava a introduzir na economia legal ativos financeiros ilícitos, contaminando-a e dando a estes ativos a aparência de licitude.
Em relação às condições pessoais e de vida do arguido
, o Tribunal teve em conta o teor do relatório social junto aos autos, em conjugação com o resultado da pesquisa à base de dados da Segurança Social, junto aos autos no decurso da audiência de discussão e julgamento.
Relativamente aos factos dos pedidos de indemnização cível
, para além dos prejuízos materiais já supra aludidos, o Tribunal valorou ainda os depoimentos prestados pelos ofendidos DD e CC que, de uma forma sincera, explicaram as consequências sentidas pelo vivenciar da situação causada pelo arguido, o que se afigurou consonante com o padrão de pessoa média.
*
Dos factos referentes ao incidente de liquidação
Os seguintes pontos da matéria de facto retiram-se da análise de todos os documentos juntos ao apenso de liquidação, para além dos infra referidos documentos dos autos principais:
Ponto 1 - fls. 972 dos autos principais;
Ponto 2 – relatório social
Pontos 3 a 5 – para além da informação de fls. 660 dos autos principais, elementos juntos: no Anexo 4 dos autos e no Separador 7 do Apenso de Liquidação, no Anexo 1 e a fls. 4 a 14 do Separador 6 do Apenso de Liquidação, no Anexo 3 e a fls. 20 a 21 do Separador 6 do Apenso de Liquidação, no Anexo 2 e a fls. 15 a 19 do Separador 6 do Apenso de Liquidação, no Anexo 2 e a fls. 15 a 19 do Separador 6 do Apenso de Liquidação);
Ponto 6- informação de fls. 1 a 5 do Separador 2 do Apenso de liquidação;
Ponto 7- informação de fls. 2 a 4 do Separador 3 do Apenso de Liquidação;
Ponto 8 - informação de fls. 2 a 4 do Separador 3 do Apenso de Liquidação;
Ponto 13 - informação de fls. 2 do Separador 3 do Apenso de Liquidação.
Para além dos necessários cálculos aritméticos efetuados, foi tomada em consideração a presunção estabelecida no art. 7.º, n.
os
1 e 2 da Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro, notando-se que o arguido não veio demonstrar a existência de outros rendimentos lícitos no período em referência. Daí que, não tendo sido ilidida, nem existindo nos autos elementos probatórios que permitam afastá-la, a presunção estabelecida naquela disposição legal importa a comprovação dos factos em apreço.
(…)
*
Apreciação do recurso.
A primeira questão trazida à apreciação deste tribunal diz respeito aos factos 139 e 140 que o recorrente entende não terem ficado provados.
Recordemo-los:
139. O arguido agiu nos termos acima descritos em relação ao dinheiro que era depositado na sua conta pelas vítimas dos seus esquemas enganosos e que sabia não lhe pertencer, consciente que tais quantias tinham sido obtidas de forma fraudulenta, movimentando-as com o propósito de esconder a proveniência ilícita daquelas quantias monetárias e de dificultar a ação da justiça e vir a ser associado a tais factos.
140. Agiu o arguido com o propósito de dissimular a sua identidade e a origem do dinheiro de que se apropriou, impedindo que os ofendidos e as autoridades judiciárias o detetassem, por um lado e, por outro, visando ocultar essa origem e integrar no circuito bancário legítimo esses valores, que sabia provenientes de factos que constituíam a prática de crime, o que fez movimentando o dinheiro e gastando em proveito próprio, recorrendo a transferências para contas de outras pessoas, através das quais procedia à reintrodução do dinheiro no sistema bancário cortando a relação com os crimes de onde provinha.
Como se constata da respetiva leitura, tais factos sustentam o crime de branqueamento de capitais pelo qual o arguido entende dever ser absolvido. Efetivamente, afirma o recorrente que não só não foi produzida qualquer prova de tais factos, como os elementos dos autos determinam decisão em sentido contrário.
A decisão recorrida faz considerações corretas sobre o crime de branqueamento, pelo que não há que repeti-las. Deter-nos-emos, portanto, essencialmente, apenas, na situação
sub iudice
.
Defende o recorrente que o facto de a conta bancária por si utilizada para receber os valores pagos pelas vítimas ser da sua titularidade, com plena identificação do destinatário pela associação do número de telefone, não permite concluir pelo propósito de dissimulação que o tipo de crime pressupõe. Entende, então, o recorrente que não basta o simples depósito, em conta própria, de vantagens provenientes dos crimes praticados para se poder concluir pela verificação do crime de branqueamento (Neste sentido também o Ac. RP de 07/02/2007 proferido no processo 0616509, merecedor da concordância do Professor Pedro Caeiro, neste particular aspeto, (embora já não noutros) Cfr. A consunção do branqueamento pelo facto precedente in STVDIA IVRIDICA 100 – AD HONOREM – 5 – UC, Coimbra Editora, 198,199).
No entanto tal entendimento não é incontroverso. De facto, há também quem defenda que a simples introdução do capital no circuito bancário e/ou financeiro é já suscetível de integrar a prática do crime de branqueamento (cfr. por exemplo o Ac. STJ de 20/06/2002, proferido no processo 02P472 e o Ac Rel. Lisboa 18/07/2013 proferido no processo 1/05.2JFLSB.L1-3), não obstante não se perceber nesse comportamento um grau de elaboração, gravidade ou perigo que outras formas mais sofisticadas de dissimular dinheiro de origem criminosa evidenciam. Idêntica posição foi adotada no Acórdão da Relação de Guimarães de 27 de maio de 2019 proferido no processo 85/08.1 TAMCD.G2 ao afirmar “
o preenchimento do crime de branqueamento basta-se com a mera operação de transferência de vantagens de crimes de catálogo, não sendo necessária a existência de retorno de vantagens ao agente do crime pré-existente, bastando-se com o simples depósito bancário da vantagem deste crime, desde que o autor desse depósito saiba a origem dela e aja com a vontade de a dissimular” (…) Aquele depósito da vantagem do crime faz o dinheiro entrar no sistema bancário, sendo à partida, retirado de qualquer relação com o crime e se tal não se considerar “…corria-se o risco de restringir excessivamente (contra a vontade do legislador) a área de tutela típica da incriminação por aquele crime
”.
Discordando de tais posições, a questão que o recorrente enfatiza é, então, a ausência de intenção de dissimulação no comportamento financeiro por si adotado quanto aos valores provenientes das burlas cometidas e, portanto, a discordância do arguido dirige-se, essencialmente, à intenção com que atuou, concluindo não ter havido qualquer propósito de ocultação ou de dissimulação.
Vejamos se assim é.
Numa definição simples, o branqueamento (de dinheiro ou outros bens) deve entender-se como o procedimento mediante o qual o produto de uma atividade criminosa e, portanto, ilícita é investido em atividades lícitas com dissimulação da origem ilícita. Por isso, é um crime autónomo da criminalidade que lhe está subjacente e com ele visa-se, além do mais, privar o agente dos produtos do crime.
Por outro lado, não há dúvida de que o crime de branqueamento, nas modalidades tipificadas nos nº 2 e 3 do artigo 368-A do Código Penal, é um crime de intenção a exigir o dolo específico – que acresce à consciência e vontade relativa aos elementos objetivos do crime – de atuar com o fim de dissimular a origem ilícita das vantagens obtidas e/ou de evitar que o autor das infrações subjacentes seja criminalmente punido.
É esta intenção, a sua existência, ou não, que separa o entendimento do tribunal recorrido, do defendido pelo recorrente.
Como é evidente, estando em causa a intenção na atuação, está-se ao nível psicológico do agir humano, pelo que, na falta de confissão, o tribunal tem de socorrer-se de prova indireta, sendo certo que a capacidade demonstrativa da prova indireta não é necessariamente menor. Como é dito no acórdão da RL de 7.01.2009 proferido no processo10693/08- 3ª secção:
A capacidade demonstrativa da prova indireta não é determinável de um modo apriorístico e meramente formal.
“Só em sede de valoração final do manancial probatório obtido num determinado processo se poderá verificar a maior ou menor eficácia persuasiva da prova direta em relação à prova indiciária e vice versa”. “Um único indício nem sempre tem uma força persuasiva inferior à da prova direta ou demonstrativa”. (…)
Embora se trate de uma prova de natureza indutiva que, como todo o conhecimento baseado em raciocínios desta natureza, só proporciona um conhecimento provável, não é, por isso, e à partida, menos fiável que a prova direta que também pressupõe operações de natureza indutiva
.
Em geral a força probatória dos indícios resulta da sua independência, concordância e pluralidade
.
Ora, não tendo o arguido admitido a intenção de dissimular o dinheiro ilicitamente obtido, o tribunal
a quo
socorreu-se de dados objetivos constantes dos autos e deles retirou as ilações que expressou do seguinte modo (transcrição):
O próprio arguido não põe em causa que agiu com o propósito de ludibriar os ofendidos e de se apropriar do dinheiro que lhe vieram a entregar, através da falsa perceção da realidade que criou, e que os determinou a abrir mão das quantias monetárias.
Contudo, o arguido já não admite que agiu com o propósito de esconder a proveniência ilícita das quantias monetárias que foram depositadas nas suas contas, de dificultar a ação da justiça e vir a ser associado a tais factos. Para tal, invoca o arguido que movimentou o dinheiro, transferindo para as contas das suas familiares, para poder usar cartão, pois que não dispunha de cartão da sua conta. Ora, tal versão é contrariada pela prova documental dos autos e pelas demais circunstâncias apuradas, senão vejamos:
- Desde logo, resulta dos elementos bancários de fls. 54 e ss. que a conta Banco 3... titulada pelo arguido era movimentada através do sistema Multibanco, pois que daí se extraem levantamentos efetuados no Multibanco;
- Além disso, apurou-se que, depois de transferir o dinheiro para as contas bancárias da mãe e da FF, o arguido utiliza-o em sites de apostas de jogo, transferência que poderia fazer diretamente da sua conta;
- A própria realização das apostas de jogo online constitui uma forma de reintroduzir nas contas bancárias, como prémios de jogo, o dinheiro obtido ilicitamente, dando-lhe uma aparência lícita e obstando a que se relacionassem aquelas quantias com os factos ilícitos que estavam na origem da sua transferência patrimonial para a esfera do arguido.
Assim, quer pela forma como o arguido age logo imediatamente após a entrada das quantias em dinheiro provenientes das burlas na sua esfera patrimonial (no próprio dia ou no dia a seguir), quer pela natureza das operações (movimentar imediatamente o dinheiro que caía na sua conta para outras contas bancárias - que, formalmente, tinha outras pessoas como titulares, mas que estavam no domínio e disponibilidade do arguido, como a da sua mãe GG, ou para a conta da sua irmã FF; fazer apostas de jogo on line, quer através da sua conta, quer das contas de que tinha controlo, recebendo em momento posterior o dinheiro dos prémios de jogo nessas mesmas contas) – idóneas a evitar que o arguido fosse detetado, bem como a dissimular a origem do dinheiro ou a dar-lhe uma nova aparência lícita, pela reintrodução do dinheiro no sistema bancário, na economia regular -, quer porque não se vislumbra que as mesmas tenham outra utilidade, designadamente a indicada pelo arguido, concluímos, à luz das regras da experiência comum, que arguido agiu com o propósito, de evitar, por um lado, que se estabelecesse uma relação direta com a sua proveniência e, por outro lado, que viesse a ser implicado na prática dos factos que estiveram na sua génese, apesar de saber que com tal conduta estava a introduzir na economia legal ativos financeiros ilícitos, contaminando-a e dando a estes ativos a aparência de licitude.
A análise acabada de expor feita pelo tribunal
a quo
é correta, razoável, respeita a experiência comum, pelo que não nos permite concordar com o recorrente quando diz que não teve, na sua atuação, qualquer propósito de ocultação ou dissimulação. É que, em face da factualidade apurada não se pode dizer que se limitou a depositar o dinheiro ilicitamente obtido em contas da sua titularidade e que não disfarçou a sua atuação, porquanto transferiu dinheiro ilicitamente obtido para contas de familiares e a partir daí o geriu, assim o distanciando das fontes de onde provieram as quantias ilícitas.
É evidente que o comportamento adotado não projeta a complexidade de procedimento a que o recorrente faz apelo para sustentar a sua posição. Mas falar de
money laundering
não implica apenas e necessariamente falar de mecanismos complexos de atuação, porque a complexidade da atuação de cada um há-de ser proporcional ao estilo de vida e à atividade desenvolvida. É verdade que não se está a falar de branqueamento ao nível de operações internacionais ou sofisticadas, mas tal não invalida que se perceba no comportamento adotado pelo arguido uma forma de tornar menos visível e detetável a fonte e origem do dinheiro obtido.
Assim ter-se-á de concluir que não há que alterar a matéria de facto por forma a considerar não provados os factos 139 e 140 - que assim se manterão na factualidade provada -, nem o arguido poderá ser absolvido do crime de branqueamento, ficando, por essa razão, prejudicadas as consequências ao nível da pena única por si pretendidas.
Da reclamada absolvição relativamente ao crime de branqueamento retira ainda o recorrente a impossibilidade da consideração da perda alargada de bens decidida pelo tribunal
a quo
. Não discute o recorrente os termos em que o incidente da perda alargada foi instruído, nem o que ficou provado, nem o montante da perda alcançado. A discordância do recorrente assenta no seu entendimento de que, como não poderia ser condenado pelo crime de branqueamento, também não haveria lugar à aplicação do referido incidente. Só que, uma vez que
o regime da Perda Alargada, estabelecido pela lei 5/2002 de 11.01, pressupõe um catálogo de crimes e que nele está previsto o branqueamento de capitais (artigo 1º, nº 1, alínea i)), mantendo-se, como se disse, a condenação do recorrente pelo crime de branqueamento, necessariamente ter-se-á de manter intocada a decisão quanto ao incidente de liquidação com vista à perda alargada de bens, pelo que também neste segmento o recurso improcede.
Ainda como consequência da pretendida absolvição pelo crime de branqueamento, entende o recorrente que a pena imposta
“passará a cair no campo da aplicação da possibilidade de suspender a execução da pena de prisão”
.
Isto é o recorrente não discute as penas parcelares impostas, nem a pena única, apenas entende que devendo ser retirada a punição pelo branqueamento e descontando-se o período correspondente na condenação do arguido (com a consequente revisão do cúmulo jurídico), a pena se quedaria numa dimensão inferior a 5 anos, suscetível de suspensão, a qual teria que ter em conta que, desde 2022, não há notícia de novos crimes para além de ter o arguido iniciado tratamento à adição ao jogo e ao consumo de estupefacientes.
Ocorre que, como se disse, não havendo que absolver o recorrente do crime de branqueamento, terá de manter-se a pena única de 5 anos e 2 meses imposta – a qual é insuscetível de suspensão (artigo 50º do Código Penal
a contrario sensu
).
*
III.
DECISÃO
Em face do exposto decide-se julgar improcedente o recurso interposto pelo recorrente AA e confirmar o acórdão recorrido.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 Ucs.
Notifique.
Coimbra, 14 de maio de 2025
Maria Teresa Coimbra
Helena Lamas
Fátima Sanches
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TRC
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https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/d6bcfddd28cc28d380258c9d00464377?OpenDocument
|
1,754,265,600,000
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CONFIRMADA
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237/21.9T8SEI.C1
|
237/21.9T8SEI.C1
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CRISTINA NEVES
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I- A relação de consumo
depende de aquele a quem sejam destinados os bens ou serviços os destine a um uso não profissional, sendo por sua vez o fornecedor destes bens ou serviços um profissional que exerça uma actividade económica, na acepção da Lei nº 24/96 de 31 de Julho.
II- O condomínio pode ser considerado consumidor desde que pelo menos uma das fracções
que compõem o condomínio
seja destinada a uso privado (artº 1-B, al. a) da Lei nº 67/2003 de 08/04).
III-Cabe ao condomínio a alegação e prova de factos que integrem a noção de consumidor (artº 342, nº1, do C.C.).
IV- Nas empreitadas de consumo a lei prevê três prazos distintos de caducidade:
-o prazo da garantia referente aos imóveis de 5 anos (se outro superior não tiver sido convencionado), contados a partir da entrega do imóvel ao adquirente ou dono da obra
,
(artºs 1225 nº1 e 4 do C.C. e artº 5 nº1 DL nº 67/2003);
- o prazo para denúncia dos defeitos da obra de 1 ano, a contar do conhecimento do defeito (artº 1225 nº2 e 4 do C.C. e artº 5 nº3 (parte final) do DL nº 67/2003);
-o prazo para o exercício dos direitos previstos no artº 4 do D.L. nº 67/2003 (prazo para a interposição da acção/reconvenção), de 3 anos a contar da data da denúncia (artº 5-A nº3 do DL nº 67/2003).
V- A caducidade pelo decurso deste último prazo só é impedida pela prática, dentro do prazo legal, do acto a que lei atribui eficácia impeditiva, ou seja, pela interposição da acção ou injunção contra o devedor (artº 331, nº1 do C.C.) ou pelo reconhecimento do direito por parte daquele contra quem deva ser exercido, caso se trate de direito disponível (art.° 331, nº 2, do C.C.).
VI-O reconhecimento tácito do direito verifica-se quando dele resulte uma vontade inequívoca de assumpção da responsabilidade pela existência do defeito, só desta forma se impedindo a caducidade dos direitos do dono da obra.
(Sumário elaborado pela Relatora)
|
[
"DIREITO DO CONSUMIDOR",
"CONDOMÍNIO",
"RELAÇÃO DE CONSUMO",
"ÓNUS DA PROVA",
"GARANTIA REFERENTE A IMÓVEIS",
"EMPREITADA DE CONSUMO",
"DEFEITOS",
"RECONHECIMENTO TÁCITO DO DIREITO",
"CADUCIDADE",
"PRAZOS"
] |
***
Recorrente:
Condomínio do Prédio A..., sito em Rua ..., ..., ...
Recorrida:
B..., Lda.
Juiz Desembargador Relator:
Cristina Neves
Juízes Desembargadores Adjuntos:
Hugo Meireles
Luís Miguel Caldas
*
Acordam os Juízes na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:
RELATÓRIO
B..., Lda., intentou acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra Condomínio do Prédio A..., sito em Rua ..., ..., ..., pedindo a condenação do Réu no pagamento da quantia de 7.164,70€, a título de capital, acrescido dos juros comerciais vencidos e vincendos, até efectivo e integral pagamento, importando os primeiros a quantia de 2.817,90€, o que totaliza no momento a quantia de 9.982,60€, mais se condenando o Réu na quantia de 50,00€ por cada dia de atraso no cumprimento da obrigação, a contar da data da decisão de condenação em primeira instância e até integral pagamento, a título de sanção pecuniária compulsória, bem como nos respectivos juros de mora.
Alegou, para o efeito e em síntese, que no exercício da sua actividade de construção civil, executou para o Réu, a sua solicitação, os trabalhos de arranjos exteriores (caleiras, telas asfálticas e chaminés) a que se refere a factura n.º 15/68, emitida e vencida em 22.10.2015, no valor global de 12.164,70€, da qual foi paga apenas a quantia de 5.000,00€, encontrando-se em dívida, a título de capital, o montante de 7.164,70€.
*
Regularmente citado, veio o Réu apresentar contestação, na qual apresentou defesa por excepção e deduziu reconvenção, pugnando pela improcedência da acção ou, caso assim não se entenda, “
deverá apurar-se (através de prova pericial) custo dos trabalhos mal executados, e consequentemente reduzir-se o valor dos mesmos ao valor orçamentado, e verificando-se que a R tenha pago em excesso, ser o valor devolvido, tudo nos termos dos artigos 556º, nº 2, al. b) e 569º, 2º parte do CC.
Deverá ainda a R ser condenada ao pagamento do valor que se vier a apurar em perícia, em consequência dos trabalhos necessários e a acrescer para remoção das anomalias por si criadas, tudo nos termos dos artigos 556º, nº 2, al. b)e 569º, 2º parte do CC.
Ou, caso assim o Douto tribunal não entenda, deve a R ver o custo dos trabalhos não executados e dos trabalhos mal executados ser reduzido ao valor da empreitada, sendo que, a ter a R pago mais do que deveria, ser-lhe consequentemente restituído tudo quanto a mais tenha pago.
”
Para tanto invocou, em síntese que, não obstante ter sido acordado, não foi efectuada a substituição das telhas ao nível da cobertura, nem foi efectuada a pintura das paredes exteriores do prédio, sendo que as telas betuminosas com acabamento mineralizado nas caleiras e superfície interior de platibandas, foi apenas realizado no lado nascente do edifício.
Mais alegou que nos trabalhos de impermeabilização realizados em caleiras e platibandas (do lado nascente da cobertura do edifício), ao invés de ser aplicado um perfil de remate periférico com pingadeira, como a norma construtiva manda e está descrito, foi colocada chapa metálica lisa, com cortes (remendos) e que a inclinação das caleiras se encontra virada para o interior da cobertura, estando as saídas de água instaladas no lado oposto, junto aos muros exteriores, provocando a acumulação de águas pluviais.
Acrescentou, ainda, que as saídas de águas existentes junto às platibandas possuem um diâmetro muito reduzido, impedindo um remate adequado da impermeabilização às embocaduras, sustentando que as membranas betuminosas deveriam ter entrado dentro das embocaduras, e que, sempre que chove, é visível a existência de água sob as membranas betuminosas aplicadas, em zonas pontuais das caleiras.
Por último que, no que se refere às telas asfálticas, o acabamento previsto era em filme termofusível e no local foi feito um acabamento com proteção mineral, sendo que a tela não está uniformemente aderida ao suporte e está cheia de cortes, acrescentando que os remates dos rufos têm elementos a perfurar as telas, o que tem potenciado as infiltrações de água.
Sustentou que todos os defeitos foram denunciados à A. e que esta nunca se dispôs a proceder à sua reparação, nem a terminar a obra.
*
Notificada da contestação/reconvenção, veio a A. apresentar réplica, na qual sustentou, em síntese, que os pontos 2 e 3 do orçamento oferecido sob doc. n.º 1 não foram contratualizados e veio invocar a caducidade do direito da R. de excepcionar os defeitos da obra, nos termos do artigo 1225.º do Código Civil.
Impugnou ainda todos os factos invocados pelo reconvinte.
Mais requereu que seja aferida a conduta processual do Réu para o efeito do disposto no artigo 542.º do Código de Processo Civil.
*
Por despacho proferido em 08.05.2022, foi admitida a reconvenção, fixado o valor à acção e dispensada a identificação do objecto do litigio e a enunciação dos temas da prova.
*
Realizou-se audiência de julgamento, após a qual foi proferida sentença na qual decidiu o tribunal:
“a) Julgar a acção parcialmente procedente e, em consequência, condenar o Réu Condomínio do Prédio A..., sito em Rua ..., ..., ..., a pagar à Autora
«
B..., Lda» a quantia de 7.164,70€ (sete mil cento e sessenta e quatro euros e setenta cêntimos), acrescida da quantia de 2.817,90€ (dois mil oitocentos e dezassete euros e noventa cêntimos) – referente aos juros de mora comerciais vencidos até 03.06.2021 – e dos juros de mora comerciais (artigo 102º, parágrafo 3º do Código Comercial) vencidos desde 04.06.2021 até efectivo e integral pagamento, às taxas legais que sucessivamente entraram ou vierem a entrar em vigor; absolvendo-se o Réu do demais peticionado.
b) Julgar procedente a excepção de caducidade invocada pela Autora e, em consequência, absolvo a Autora
«
B..., Lda» do pedido reconvencional formulado pelo Réu Condomínio do Prédio A..., sito em Rua ..., ..., ....
c) Absolver o Réu do pedido de condenação como litigante de má-fé.
Custas pelo Réu (cfr. artigo 527.º, n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil).”
*
Não conformado com esta decisão, impetrou a R. recurso da mesma, formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem:
“I. Vem a Douta Sentença condenar a Ré , parcialmente ao pagamento a quantia de 7.164,70€ (sete mil cento é sessenta é quatro euros é setenta cêntimos), acrescida da quantia de 2.817,90€ (dois mil oitocentos é dezassete euros é noventa cêntimos) – referente aos juros de mora comerciais vencidos até 03.06.2021 – é dos juros de mora comerciais (artigo 102º, para grafo 3º do Co digo Comercial) vencidos desde 04.06.2021 até efetivo é integral pagamento, às taxas legais que sucessivamente entraram ou vierem a entrar em vigor; absolvendo-se o Ré u do demais peticionado.
II. E ainda: Julgar procedente a exceção de caducidade invocada pela Autora e, em consequência, absolver a Autora «B..., Lda.» do pedido reconvencional formulado pelo Réu Condomínio do Prédio A..., sito em Rua ..., ..., .... Absolvendo ainda do mais.
III. O Tribunal ao apreciar e decidir a matéria constante do pedido fez errada interpretação o da matéria de facto é aplicação da Lei, pelo que se requer desde já que para alem da apreciação o de direito seja reapreciada de acordo com os dados como provados.
IV. Importa considerar para a boa decisão da causa os factos dados como provados pelo tribunal e que aqui se têm por integralmente reproduzidos na sua integra para todos os legais efeitos.
V. Face aos factos dados como provados, a aplicação do direito deveria ter ditado outra decisão.
VI. Vejamos o que diz a decisão de que sé recorre na Motivação de Direito:
Demonstrou-se, porém, a existência de vícios/desconformidades dos trabalhos realizados pela Autora no âmbito do contrato de empreitada celebrado com o Réu (pontos 6., a 14.).
Ora, para além das situações de irresponsabilidade do empreiteiro previstas no artigo 1219.º do Código Civil e das situações de incumprimento contratual obrigacional previstas na parte geral do mesmo código (cfr.: artigos 798.º a 808.º do Código Civil), os artigos 1220.º a 1226.º do Código Civil estatuem especificamente o tratamento jurídico do cumprimento defeituoso do contrato de empreitada. Do conjunto de direitos conferidos pelos artigos 1221.º a 1223.º do Código Civil e das restrições ao seu exercício, resulta apodítico que o recurso a qualquer um deles não é arbitrário.
(…)
Os prazos para o exercício dos direitos de eliminação dos defeitos, redução do preço, resolução do contrato e indemnização, previstos nos artigos 1224.º e 1225.º do Código Civil, são prazos de caducidade. De facto, o Legislador optou por prazos de caducidade e não de prescrição por se entender que os institutos da suspensão e da interrupção da prescrição não se harmonizavam com as razões que justificavam o estabelecimento de prazos curtos para o exercício dos direitos resultando do descobrimento de defeitos (Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, CC anotado, vol. II, 3ª edição, 1986, pág. 824) (…)
(…)
Conforme resulta da factualidade provada, a comunicação de denúncia dos defeitos e de que o Réu não aceitava os trabalhos foi efectuada através de carta da respectiva administradora em 16.02.2016. Assim, o Réu teria até ao dia 16.02.2017 para instaurar a acção para exercitar os direitos que pretende fazer valer. Porém, o mesmo não o fez, tendo a presente reconvenção dado entrada em 26.08.2021, sendo que a oposição/reconvenção que apresentou no processo n.º 9073/20.... deu entrada após a apresentação do requerimento de injunção, tendo este sido apresentado em 05.02.2020.
Note-se que entendemos ser este prazo de um ano a considerar e não o prazo de três anos previsto no artigo 5.º-A do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de abril, com as alterações introduzidas pelo DL n.º 84/2008 de 21 de Maio (e que procedeu à transposição para o direito interno da Directiva 1999/44/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Maio, respeitante ao contrato de compra e venda e outros contratos de consumo e que tem por objectivo assegurar a protecção dos interesses dos consumidores nesses contratos). Com efeito, para que o Réu condomínio pudesse ser considerado consumidor era necessário que pelo menos uma das fracções que o compõem fosse destinada a uso privado (cfr. acórdão do STJ de 20.01.2022, acessível in www.dgsi.pt). Por outro lado, a qualidade do contraente que permitiria estabelecer a relação de consumo teria que ser alegada e demonstrada no processo, incumbindo ao consumidor o respectivo ónus, pelo que, desconhecendo-se no caso sub judice a que se destinam as fracções (se estão afectas a habitação ou a uso profissional), não é possível qualificar o contrato de empreitada celebrado como de consumo. De todo o modo, ainda que fosse aplicável o referido prazo de três anos, também o mesmo teria sido ultrapassado, já que, nesse caso, o Réu teria até ao dia 16.02.2019 para exercitar os referidos direitos, o que o mesmo não fez. Por conseguinte, resta concluir que caducou o direito do Réu à pretendida redução do preço e indemnização.”
VII. E na conclusa o que supra se transcreve que andou mal o tribunal.
VIII. Até o invocado Acórdão do STJ de 20.01.2020, têm interpretação diferente da extraída.
IX. Diz o tribunal que, para que o condomínio seja considerado consumidor e se aplique o regime mais favorável, teria de ser proprietário de pelo menos uma fração, quando deveria ter decidido exatamente ao contrário!
X. O condomínio é considerado consumidor, conforme infra sé explica.
XI. Vejamos o que diz o STJ no já supra referido Acórdão invocado em sentença:
XII. “A primeira questão consiste em averiguar se o Condomínio do edifício sito na ..... deve considerar-se como consumidor para efeitos do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de Abril, alterado pelo Decreto-Lei n.º 84/2008, de 21 de Maio…”
(…)
O art. 2.º da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho contém uma definição de consumidor de alcance geral. O n.º 1 define como consumidor “todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios” e o n.º 2 esclarece que, entre os profissionais, — que entre as pessoas que exercem com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios, — estão as pessoas colectivas públicas, incluindo as regiões autónomas e as autarquias locais, as empresas de capitais públicos, ou de capitais detidos maioritariamente pelo Estado, e as empresas concessionárias de serviços públicos.”
(…)
. O art. 1.º-B do Decreto-Lei n.º 67/2003, alterado pelo Decreto-Lei n.º 84/2008, de 21 de Maio, remete para a definição de consumidor do art. 2.º da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho:
“Para efeitos de aplicação do disposto no presente decreto-lei, entende-se por […] consumidor aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios, nos termos do n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho”. (…)
“Ora a palavra “aquele” ou as palavras “todo aquele” devem interpretar-se em termos de abranger associações ou comissões sem personalidade jurídica, e em termos de abranger o condomínio, pelo que há tão-só que enunciar o critério da qualificação do condomínio como consumidor. (…)
XIII. O problema está em que o conceito de consumidor é um conceito relacional.
XIV. Ou seja, a interpretação é exatamente o contrário da interpretação dada pelo tribunal ao não considerar a ora Ré – Condomínio – como não consumidor.
XV. Sendo a Ré consumidor devera ser aplicado regime especial mais favorável em detrimento do regime geral.
XVI. Assim sendo, deve, pois, aplicar-se e considerar-se o prazo estipulado no artigo 5º A do DL 67/2008 de 8/4, com as alterações introduzidas pelo DL 84/2208 de 21/05, de 3 anos.
XVII. Vejamos agora o caso sob Júdice: nos negócios jurídicos de consumo, como é o caso é onde se subentende o contrato dé émpréitada a tutéla do consumidor é, por esse motivo, assegurada de uma forma distinta do que corresponde ao modelo clássico do cumprimento defeituoso.
XVIII. O âmbito de aplicação do regime de garantia contratual de bens de consumo, instituí do pelo citado DL n.º 67/2003, vai, no entanto, muito mais longe do que o da referida Diretiva, porquanto, enquanto esta abrange apenas os bens móveis corpóreos, o nosso legislador previu expressamente a aplicação desta garantia a bens imoveis (artigo 3º, n.º 2 do DL 67/2003).
XIX. Importa, delineada abstratamente a questão, indagar se, no caso concreto, se configura a exceção da caducidade invocada pela A e cuja verificação é reconhecida na decisão ora sob recurso.
XX. Sem prejuízo de se ter em particular atenção o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra - 1393/08.7TBSTB.E1 – de 05.11.2017:
“Dispõe o art.º 298.º, n.º 2 do C.C. que, “Quando, por força da lei ou por vontade das partes, um direito deva ser exercido dentro de certo prazo, são aplicáveis as regras da caducidade, a menos que a lei se refira expressamente à prescrição.”.
Nos termos do art.º 331º nº1, do mesmo diploma a caducidade só é impedida pela prática do acto, a que a lei ou convenção atribua efeito impeditivo, dentro do prazo legal ou convencional. Mas quando a lei fixa um prazo para o exercício de certo direito, não quer tornar esse direito dependente da observância do prazo, mas apenas fazê-lo extinguir, se o prazo não for observado (Manuel de Andrade, citado por Vaz Serra, Prescrição Extintiva e Caducidade, Pág. 587 e ss.). Assim, não há dúvidas que o fundamento do instituto da caducidade é a necessidade da certeza jurídica, isto é, a exigência de que certos direitos sejam exercidos durante certo prazo, a fim de que a situação jurídica fique definida e inalterável (Manuel Andrade in ob. cit. pág. 464). Dispõe o nº 1 do art.º 331º do C.C. que a caducidade só é impedida pela prática do acto dentro do prazo legal, decorrendo do n.º 1 do art.º 332º, e assim tem sido entendido pela doutrina e pela jurisprudência, que o momento relevante para impedir a caducidade do direito, quando este tem de ser exercido através de uma acção judicial a propor dentro de certo prazo, é o momento da propositura da acção – art. 259º nº1
do CPC. Nos termos do n.º 2, a caducidade pode, igualmente, ser impedida pelo reconhecimento do direito por parte do seu beneficiário, nos casos em que resulte de estipulação negocial (caducidade convencional), ou de disposição legal relativa a direitos disponíveis.”
XXI. No que respeita aos limites subjetivos do reconhecimento, pressupõe-se que o ato seja praticado pelo sujeito a quem a caducidade aproveita, através de uma declaração dirigida ao titular do direito, impondo-se, por outro lado um limite temporal ao reconhecimento, só valendo como tal o ato que ocorra antes de esgotado o prazo de caducidade.
XXII. Tem a ré o prazo de 5 anos a contar da entrega da obra, dentro dos quais terá de ser efetuada denuncia e proposta a ação de indemnização ou reparação dos defeitos, e dentro deste o prazo de 3 anos apos denuncia para intentar ação.
XXIII. Ora, os trabalhos decorreram em finais de 2015.
XXIV. Foi enviada carta a não aceitar os trabalhos já em 2016.
XXV. Posteriormente foi enviado relatório com os defeitos e efetuados contatos telefónicos com a A como de resto resulta do depoimento da testemunha AA é das declarações de parte prestadas pela Administradora da Ré .
XXVI. Já em 2020, a A tentou cobrança através de Injunção (injunção nº 9073/20....) – Juiz ... – Juízo de Comp. Genérica de ...), conforme documentos que se encontram juntos aos autos.
XXVII. Tendo sido apresentada contestação com reconvenção dando conta dos defeitos e do agudizar da situação e face à omissão no que respeita ao tratamento dos mesmos.
XXVIII. Tudo dentro dos limites é prazos legalmente estabelecidos.
XXIX. Mais, encontra-se junto aos autos carta enviada pela A em que a mesma não contesta nem se opõe a existência dos defeitos (aqui dados como provados).
XXX. Nem a Ré nunca referiu que a prestação da A estaria terminada.
XXXI. Ora, sem prejuízo do que já supra se disse quanto a exceção da caducidade, não pode deixar de relevar o disposto do artigo 331º do Co digo Civil.
XXXII. Que apesar de invocado em sede de contestação, a decisão é omissa quanto a analise da questão, sob aplicação deste preceito normativo.
XXXIII. Sem prejuízo do estipulado no DL. Nº 67/2003, alterado pelo DL nº 84/2008 de 21/05, uma vez que no Acórdão do STJ de 3.11.09: “a lei não impõe que a ação destinada a eliminar os defeitos ou a pedir indemnização seja proposta dentro desses 5 anos, importa que os defeitos ocorram nesse período, o que é coisa diversa.
XXXIV. Violando-se desta forma os artigos 298º, 331º, 1225 do Co digo Civil, é ainda artigos 2º é 3º, 5º é 6º do DL 67/2003 alterado pelo DL 84/2008 de 21/05, e ainda Lei 27/96 de 31/07 – artigo 2º.
Pelo exposto e pelo que for mais doutamente suprido por V. Exas, deve conceder-se provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida devendo a exceção da caducidade ser julgada improcedente e em consequência reduzir-se ao pagamento a efetuar a A, o valor dos trabalhos mal-executados, bem como condenar a A ao pagamento do valor que sé vier a apurar para remoção das anomalias.
Assim sé fazendo JUSTIÇA!”
*
Foram interpostas contra-alegações, concluindo-se da seguinte forma:
“1. A sentença recorrida deverá manter-se na ordem jurídica.
2. Devendo, em primeiro lugar, a apreciação do recurso ficar condicionada ao pagamento da multa e penalização respectiva, uma vez que foi interposto no denominado “1.º dia de multa”; ao passo que o efeito a atribuir ao mesmo deverá ser o devolutivo.
3. Quanto à substância ou fundamentos, não cremos existir qualquer razão recursiva que permita a modificação da sentença condenatória sub judice.
4. Como se nota das próprias declarações da Legal Representante do Condomínio Recorrente (balizadas supra), a Autora/Recorrida cumpriu a prestação dos trabalhos contratados e sempre rejeitou quaisquer responsabilidades.
5. Inexistindo qualquer causa que impedisse a caducidade dos direitos invocados.
6. Conforme oposto nos autos.
7. Independentemente da aplicação judicativa dos regimes legais (Código Civil vs D.L. n.º67/2003), é forçoso concluir pelo correcto sentido da sentença recorrida.
8. A qual se apresenta correcta e devidamente fundamentada.
9. Não se apresentando violadora de qualquer das normas legais invocadas pelo Recorrente.
10. Devendo, pois, o recurso ser julgado totalmente improcedente.
Nestes termos, e nos melhores de Direito que V.Exas. doutamente suprirão, deve o Recurso
ser julgado totalmente improcedente, com legais consequências.”
***
Recebidos os autos nesta Relação, prevendo a possibilidade de deferimento do recurso no que se reporta à excepção de caducidade, foi proferido despacho convidando as partes a pronunciarem-se sobre as questões prejudicadas pela decisão que considerou caducados os direitos da R.- redução do preço e indemnização pelo cumprimento defeituoso da empreitada. (artº 665, nº2 do C.P.C.).
***
Em cumprimento desse despacho, veio a recorrente pronunciar-se requerendo a condenação da A. no pagamento do valor necessário à reparação dos trabalhos mal efectuados e na redução do preço pelos trabalhos não executados.
A recorrida pronunciou-se pugnando pela manutenção da sentença recorrida.
***
QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos do disposto nos artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal
ad quem
, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial. Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de
questões novas
que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.
Nestes termos, as questões a decidir que delimitam o objecto deste recurso, consiste em apurar:
a) Se o condomínio deve ser considerado consumidor;
b) Se, nessa sequência, deve ser alterada a decisão recorrida, julgando-se que não ocorreu a caducidade do direito da R. de excepcionar os defeitos da obra;
c) Nessa sequência, se a obra enferma de defeitos, não reparados pela empreiteira devendo ser reduzido o preço da empreitada e indemnizada a dona da obra pelo valor necessário à reparação.
*
Corridos que se mostram os vistos aos Srs. Juízes Desembargadores adjuntos, cumpre decidir.
***
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
O tribunal recorrido considerou a seguinte matéria de facto:
“Factos Provados
Da discussão da causa e com interesse para a decisão resultaram provados os seguintes factos:
1 – A Autora dedica-se, nomeadamente, à actividade de construção civil.
2 – A Autora e o Réu acordaram que a primeira, no âmbito da sua actividade de construção civil, mediante o preço de 9.890,00€, acrescido de IVA à taxa legal em vigor, realizaria para este último os seguintes trabalhos no respectivo prédio:
“1 – Arranjos exteriores (caleiras, tela asfáltica e chaminés)
1.1 – Fornecimento e execução de novas pendentes nas caleiras interiores para as descargas existentes.
1.2 – Fornecimento e colocação de telas asfálticas, desde o topo das platibandas interiores até à telha do beirado (esta será descolada e novamente assente).
1.3 – Pintura de todas as chaminés acima do telhado com telas armadas e barramento, seguido de pintura com tinta plástica acrílica “DYRUP
”.
3 – Os trabalhos referidos em 2., foram executados pela Autora em datas não concretamente apuradas, mas situadas em setembro e/ou outubro de 2015.
4 – Pelos referidos trabalhos, a Autora procedeu à emissão da factura n.º 15/68 em 22.10.2015, com vencimento na mesma data, no valor de 12.164,70€, e interpelou o Réu, através da sua administração, para pagamento.
5 – Em 16.11.2015, o Réu procedeu ao pagamento à Autora da quantia de 5.000,00€, por conta dos referidos trabalhos, mediante a entrega do cheque n.º ...94, sacado sobre o Banco 1....
6 – As telas betuminosas com acabamento mineralizado foram colocadas no interior das platibandas e sobre os topos das mesmas apenas no lado nascente do edifício.
7 – Foi aplicada sobre as platibandas uma chapa metálica que só cobre uma parte dos muretes das mesmas.
8 – Não é possível verificar as características das membranas betuminosas aplicadas.
9 – Não foi colocado o remate metálico com pingadeira, o que evitaria o recurso à colocação de pequenos pedaços de tela, tendo ao invés sido colocada uma cantoneira em chapa de zinco, com cortes que foram necessários para a sua colocação.
10 – As caleiras encontram-se com pouco desnível, não permitindo o escoamento das águas pluviais para as duas saídas de ligação aos tubos de queda de forma rápida e eficiente.
11 – As saídas de águas possuem um diâmetro muito pequeno para a área a drenar, impedindo um remate adequado da impermeabilização às embocaduras, concretamente a entrada das membranas betuminosas dentro das embocaduras.
12 – Tal é susceptível de originar a ocorrência de infiltrações junto às ligações das embocaduras com as platibandas e com a tela de impermeabilização.
13 – Quando chove, é visível a existência de água sob as membranas betuminosas aplicadas, em zonas pontuais das caleiras.
14 – A tela aplicada não está uniformemente aderida ao suporte, existindo empolamento em várias zonas.
15 – No dia 13 de outubro de 2015, o Réu, através da sua administradora, remeteu à Autora carta registada com aviso de receção, rececionada em 14.10.2015, cuja cópia se encontra junta sob o doc. n.º 12 junto com a contestação e que aqui se dá por integralmente reproduzido, através da qual lhe solicitou as respectivas fichas técnicas dos produtos utilizados, assim como a disposição construtiva e comunicou que, após uma visita ao local, a água continua a acumular-se em determinadas partes do terraço e as chaminés não foram intervencionadas.
16 – No dia 15 de fevereiro de 2016, o Réu, através da sua administradora, remeteu à Autora carta registada com aviso de receção, reccepcionada em 16.02.2016, à qual anexou o relatório cuja cópia foi junta sob o documento n.º 14 e que aqui se dá por integralmente reproduzido, e na qual lhe comunicou o seguinte:
«(…) Na qualidade de administradora do A..., em ..., e após a realização das obras realizadas pela vossa empresa, no terraço do edifício, venho pela presente comunicar que não aceitamos os trabalhos da forma como nos foram apresentados.
Após os trabalhos, solicitamos um parecer a um técnico, do qual foi elaborado um relatório, apontando para a existência de anomalias e de deficiências nos trabalhos realizados.
Desta forma, foi solicitado a correcção dos mesmos, o que não aconteceu.
Por consequência, vimos informar que exigimos uma intervenção adequada, de acordo com os trabalhos previstos no vosso orçamento datado de 23 de Março de 2015, corrigindo as anomalias do relatório de peritagem, que se junta em anexo. (…)».
17 – Em 5 de fevereiro de 2020, a Autora requereu procedimento de injunção contra o Réu, que correu termos neste Juízo de Competência Genérica ... sob o Processo n.º 9073/20...., através do qual a Autora peticionou o pagamento, a título de capital, do valor remanescente da factura referida em 4., tendo o aqui Réu vindo a apresentar oposição, conforme documento junto com o requerimento com a referência electrónica n.º 1827277, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
18 - A contestação/reconvenção da presente acção deu entrada em juízo no dia 26.08.2021.
Factos não provados
Não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a boa decisão da causa para além dos
supra
referidos, designadamente que:
a) A Autora e o Réu acordaram que a primeira realizaria para este os trabalhos elencados nos pontos 2. e 3., do orçamento junto com a petição inicial como documento n.º 1, que aqui se dá por reproduzido.
b) O acabamento das telas asfálticas acordado entre as partes era em filme termofusível.
c) Nos trabalhos realizados pela Autora, os remates dos rufos têm elementos a perfurar as telas.
*
Com interesse para a decisão da causa, não resultaram provados quaisquer outros factos, alegados nos articulados ou discutidos em audiência final, que não estejam já em oposição ou não tenham ficado prejudicados pelos que foram considerados provados e não provados, sendo que outros houve que não foram objecto de resposta por consubstanciarem matéria conclusiva ou de direito ou inócua para a decisão.”
***
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Funda o R. condomínio a sua discordância quanto à decisão que julgou caducados os seus direitos de invocar defeitos da obra e de peticionar uma indemnização e a redução do preço, no facto de ser considerado consumidor, sendo-lhe assim aplicável o disposto no artº 5 do D.L. nº 67/2003 de 08/04.
Alega para o efeito que o tribunal considerou que “
para que o condomínio seja considerado consumidor e se aplique o regime mais favorável, teria de ser proprietário de pelo menos uma fração
” (conclusão IX), mais alegando que o condomínio é sempre consumidor (conclusão X).
Por último, considera que os defeitos foram denunciados dentro do prazo de cinco anos e a acção intentada no prazo de três anos, tendo em conta que deduziu oposição ao procedimento de injunção contra si intentado, em data anterior, pela A., denunciando estes defeitos (conclusões XXII a XXVII) e que, em todo o caso, se deve considerar o disposto no artº 331 do C.C. por se encontrar “
junto aos autos carta enviada pela A em que a mesma não contesta nem se opõe a existência dos defeitos (aqui dados como provados)”
(conclusões XXIX e XXXI).
Vejamos por partes, começando por apreciar o primeiro fundamento de recurso:
a) Se o condomínio pode ser considerado consumidor.
Ao contrário do que alega o recorrente, o tribunal recorrido nunca considerou que para que o condomínio fosse considerado consumidor teria de ser proprietário de pelo menos uma fracção. O que aquele tribunal referiu textualmente foi que “
para que o Réu condomínio pudesse ser considerado consumidor era necessário que pelo menos uma das fracções que o compõem fosse destinada a uso privado (cfr. acórdão do STJ de 20.01.2022, acessível in
www.dgsi.pt
). Por outro lado, a qualidade do contraente que permitiria estabelecer a relação de consumo teria que ser alegada e demonstrada no processo, incumbindo ao consumidor o respectivo ónus, pelo que, desconhecendo-se no caso sub judice a que se destinam as fracções (se estão afectas a habitação ou a uso profissional), não é possível qualificar o contrato de empreitada celebrado como de consumo”.
Como resulta de forma clara e compreensível do acima reproduzido, o que era necessário era a alegação e prova de que pelo menos uma das fracções
que compõem o condomínio
fosse destinada a uso privado e não que este condomínio fosse proprietário de uma fracção. Os factos relevantes são os referentes ao uso das fracçãos (no título constitutivo da propriedade horizontal) que compõem este condomínio e que deveriam ter sido alegados e não a propriedade, por parte do condomínio, de uma fracção.
Isto porque, ao contrário do que alega o recorrente, nem sempre o condomínio pode ser considerado consumidor. Como já referia Ferreira de Almeida
[1]
“
uma pessoa será ou não consumidor num determinado acto ou numa determinada situação, mas não há pessoas que, em absoluto, sejam consumidores.
” A relação de consumo,
depende de aquele a quem sejam destinados os bens ou serviços os destine a um uso não profissional, sendo por sua vez o fornecedor destes bens ou serviços, um profissional que exerça uma actividade económica, na acepção da Lei 24/96 de 31 de Julho (Lei de Defesa do Consumidor).
Com efeito, consumidor para efeito da aplicação do disposto no D.L. nº 67/2003 de 08/04, (na redacção do D.L. nº
84/2008, de 21/05) é todo “
aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios, nos termos do n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho
; (artº 1-B, al a)).
Como elucida o Ac. do STJ de
20/01/2022
[2]
,
“a palavra “aquele” ou as palavras “todo aquele” devem interpretar-se em termos de abranger associações ou comissões sem personalidade jurídica, e em termos de abranger o condomínio, pelo que há tão-só que enunciar o critério da qualificação do condomínio como consumidor”.
O critério para consideração do condomínio como consumidor, depende da leitura que se faça da exigência do “uso não profissional”, como referindo-se a todas as fracções que compõem o condomínio, à maioria destas fracções ou a pelo menos uma destas fracções, que se terá de destinar a uso não profissional, tendo em conta que, sendo as obras realizadas em partes comuns, cada condómino, sendo proprietário da sua própria fracção é comproprietário destas partes comuns (cfr. decorre do artº 1420, nº1 do C.C.).
Volvendo ao Ac. do S.T.J. de 20/01/22, defende este que o entendimento de que o artº 1-B al a) do D.L. 67/2003 exige tão só que pelo menos uma das fracções se destine ao uso privado, pelo que “
os negócios jurídicos — p. ex., os contratos de compra e venda ou os contratos de empreitada — relacionados com as partes comuns do edifício deveriam ser considerados como negócios jurídicos de consumo desde que o proprietário, ou desde que algum dos proprietários, das partes comuns devesse ser qualificado como consumidor. Em consequência, os negócios jurídicos relacionados com as partes comuns devem ser considerados como negócios jurídicos do consumo desde que um dos condóminos seja um consumidor”.
[3]
Posição seguida por Morais de Carvalho
[4]
para quem o condomínio deve ser considerado como consumidor “
sempre que, numa perspectiva objectiva, o bem ou o serviço em causa possa ser considerado um bem ou um serviço para uma das pessoas que o condomínio representa
.”, acrescentando que
“[n]este sentido, as partes comuns constituem bens de consumo quando o seu proprietário (ou um dos seus proprietários) poder ser qualificado como consumidor (…)
”.
Já no Ac. do STJ de 11/05/2023
[5]
, se defendeu que a qualificação do condomínio “
como consumidor, depende do tipo de utilização a que se destinam as fracções que compõem o edifício a que o Condomínio respeita: se têm maioritariamente um destino não profissional (v.g., a habitação), então o condomínio deve ser qualificado como consumidor.”
pelo que “
os negócios jurídicos relacionados com as partes comuns devem ser considerados como negócios jurídicos de consumo, pois cada condómino é um consumidor relativamente à fracção de que é proprietário”.
Por sua vez Cura Mariano
[6]
, defende que o condomínio só deveria considerar-se como consumidor desde que a maioria das fracções tivesse um destino não profissional
.
Como quer que seja, essencial era que estivesse alegado e, concomitantemente, que tivessem sido provados factos dos quais resultasse a afectação, o uso das diversas fracções que compõem este condomínio.
Volvendo a Morais Carvalho
[7]
, o “
ónus de alegação dos factos que consubstanciam a noção de consumidor, nos casos em que o consumidor pretenda exercer os seus direitos enquanto tal, é seu, por se tratar de factos que o direito material consagra como constitutivos do direito que pretende fazer valer, sem prejuízo do dever do juiz de o convidar a completar a sua exposição
.”
Quer isto dizer que, por um lado, a R. deveria ter alegado os factos que permitiriam enquadrar a relação contratual estabelecida com a A., numa relação de consumo, por a tanto estar onerada (artº 342 nº1 do C.P.C.), por outro, deveria ter sido proferido despacho nos termos do artº 590 nº4 do C.P.C., a convidá-la a indicar o uso que era dado
às fracções que o compunham, uma vez que era alegado ser o condomínio consumidor e a relação estabelecida com a R. constituir uma relação e consumo, sendo esta uma profissional que se destina a esta actividade (de empreitada).
O que nos conduz à 2ª questão colocada em sede de recurso. A qualificação da R. como consumidora é susceptível de alterar a decisão proferida que julgou procedente a excepção de caducidade invocada pela A.?
Caso a resposta seja afirmativa, impor-se-ia a anulação da decisão proferida em primeira instância, a fim de ser proferido despacho de convite ao aperfeiçoamento do articulado, esclarecendo o uso dado às fracções.
A este respeito considerou a decisão recorrida que “
ainda que fosse aplicável o referido prazo de três anos, também o mesmo teria sido ultrapassado, já que, nesse caso, o Réu teria até ao dia 16.02.2019 para exercitar os referidos direitos, o que o mesmo não fez.”
Vejamos se assim é:
b) dos prazos de caducidade para exercício dos direitos conferidos ao dono da obra por defeitos da obra.
No que respeita às empreitadas de consumo, a lei prevê três prazos distintos de caducidade:
-o prazo da garantia referente aos imóveis de 5 anos (se outro superior não tiver sido convencionado), contados a partir da entrega do imóvel ao adquirente ou dono da obra
,
(artºs 1225 nº1 e 4 do C.C. e artº 5 nº1do DL nº 67/2003);
- o prazo para denúncia dos defeitos da obra de 1 ano, a contar do conhecimento do defeito (artº 1225 nº2 e 4 do C.C. e artº 5 nº3 (parte final) do DL nº 67/2003);
-o prazo para o exercício dos direitos previstos no artº 4 do D.L. nº 67/2003 (prazo para a interposição da acção/reconvenção) já não é de 1 ano a contar da data da denúncia (artº 1225 nº3 e 4 do C.C.), mas, por se tratar de empreitada de consumo, de 3 anos a contar da data da denúncia (artº 5-A nº3 do DL nº 67/2003).
Que os defeitos foram denunciados pelo condomínio no prazo de garantia e de denuncia, não oferece dúvidas, tendo em conta que a obra foi executada em Setembro e/ou Outubro de 2015 (ponto 3) e logo em 15 de Fevereiro de 2016, a R. remeteu carta à A. reclamando a existência de defeitos e juntando relatório de peritagem que mandou elaborar e onde constam os defeitos que entendia verificarem-se nas obras realizadas pela A. (ponto 16).
O que está em causa nesta acção é o decurso do prazo para o exercício do direito de acção contra a A./empreiteira, para exercício dos direitos que assistiriam ao dono de obra (quer pelo artº 1221 a 1223 do C.C. quer pelo artº 4 do D.L. nº 67/2003) que é um prazo de caducidade e que, quer se considere o prazo de 1 ano, quer se considere o prazo de 3 anos, já tinha decorrido à data da apresentação da contestação/reconvenção nesta acção, em 26/08/2021.
E teria decorrido ainda que se considerasse a data de apresentação da oposição referida no ponto 16, ao procedimento de injunção. Como bem considerou a decisão sob recurso, o prazo para exercício dos direitos da R. condomínio, terminaria em 16 de Fevereiro de 2017 ou, a considerar-se a R. consumidora, em 16/02/2019. A injunção foi intentada em 2020, pelo que à data de dedução da oposição já tinha decorrido aquele prazo.
Considera por último o recorrente que é necessário ter em consideração o disposto no artº 331 do C.C., afirmando que da ausência de resposta à sua missiva se tem de considerar que a R. reconheceu a existência de defeitos, não tendo a decisão recorrida emitido pronúncia sobre esta questão.
Sobre esta questão veio a R., em sede de resposta à excepção de caducidade oposta pela A., alegar o seguinte:
“
22.Para além disso, já antes a A enviou missiva que se encontra junto a contestação, e a ora A nunca referiu qualquer falta de responsabilidade sobre os referidos defeitos ou se opôs á existência dos mesmos.
23. Nem a R nunca referiu que considerava a prestação da A por terminada.
24. Pelo contrário, assumindo pois, a existência destes, pois bem sabe que não terminou sequer os trabalhos.
25. E, nesse sentido, conforme conta do artigo 331º do código civil os efeitos da caducidade deixam de operar.”
Desta críptica argumentação, não se retira que a R./reconvinte tenha alegado que a empreiteira A. reconheceu a existência de defeitos, nem este reconhecimento resulta de qualquer facto que tenha sido provado (sequer alegado).
Com efeito, o fundamento da caducidade, ao contrário da prescrição, não assenta na inércia e desinteresse do titular do direito, mas antes em critérios de certeza e segurança jurídicas. Por essa razão, a caducidade traduz a extinção de uma posição jurídica pela verificação de um facto
stricto sensu
, dotado de eficácia extintiva. Como ensina Menezes Cordeiro
[8]
“
a caducidade é uma forma de repercussão do tempo nas situações jurídicas que, por lei ou por contrato, devam ser exercidas dentro de certo termo. Expirado o respectivo prazo sem que se verifique o exercício, há extinção
.”.
A diferente natureza destes prazos, comporta diversos regimes jurídicos no que se reporta às causas de suspensão e interrupção. Aos prazos de caducidade não se aplicam as causas interruptivas e suspensivas da prescrição, excepto estipulação válida das partes (cfr. artº 330 do C.C.).
Este prazo de caducidade começa a correr no momento em que o direito puder legalmente ser exercido, ou seja, no momento em que foi feita a denúncia dos defeitos da obra.
Por outro lado, a caducidade pelo decurso deste prazo só é impedida pela prática, dentro do prazo legal, do acto a que lei atribui eficácia impeditiva, ou seja, pela interposição da acção ou injunção contra o devedor (artº 331, nº1 do C.C.) ou pelo reconhecimento do direito por parte daquele contra quem deva ser exercido, caso se trate de direito disponível (art.° 331, nº 2, do C.C.).
Este reconhecimento – da falta de conformidade ou dos defeitos da obra - pode ser expresso ou tácito, uma vez que, conforme resulta do disposto no artº 217, nº1 do C.C. “
A declaração negocial pode ser expressa ou tácita: é expressa, quando feita por palavras, escrito ou qualquer outro meio directo de manifestação da vontade, e tácita, quando se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam
.”
Em todo o caso deste reconhecimento deve resultar o mesmo que se “
alcançaria com a prática tempestiva do acto a que a lei ou uma convenção atribuam efeito impeditivo
”
[9]
, ou seja, dele deve resultar uma vontade inequívoca de assumpção da responsabilidade pela existência do defeito, só desta forma se impedindo a caducidade dos direitos do dono da obra.
[10]
Quer isto dizer que, na ausência de uma declaração expressa de manifestação da vontade perante a R., teriam de ter sido praticados factos pela empreiteira dos quais resultasse com toda a probabilidade que assumia a responsabilidade pela existência de defeitos na obra.
Neste Tribunal, em Ac. de 28/09/2022
[11]
já se decidiu que “
são requisitos do reconhecimento do direito, nos termos do citado art. 331º nº 2 do C.Civil: (i) a concretude; (ii) a clareza; (iii) a inequivocidade.
Ou seja, o reconhecimento deve ser concreto, no sentido de delimitado e suficientemente preciso.
Em segundo lugar, deve ser claro e não assentar em declarações vagas e ambíguas.
Em terceiro lugar, deve evidenciar o propósito do beneficiário da caducidade aceitar o direito do titular.
Temos presente que a declaração de reconhecimento do direito por parte do beneficiário da caducidade, não tem de ser necessariamente expressa, podendo ocorrer, validamente, de modo tácito nos termos do art. 217º nº 1, 2ª parte do C.Civil.
No entanto, como já foi doutamente sublinhado a este propósito, «(…) deve distinguir-se entre o regime geral da declaração tácita e eventuais casos excepcionais em que a lei ou a doutrina requeiram, não apenas factos que permitam a ilação “com toda a probabilidade”, mas antes comportamentos inequivocamente concludentes (…) dever-se-á fazer uma distinção entre a, normalmente bastante concludência relativa e uma excepcional concludência absoluta do comportamento (…) de facto, esta última não é hoje exigida para a declaração negocial tácita em geral (…) mas há hipóteses excepcionais onde se requerem factos inequívocos – é o caso da hipótese do artº 325º nº 2 (…) e outros que eventualmente se lhe devam juntar em que deverá ser excluída toda a inconcludência - no sentido de que não é admissível qualquer outra interpretação no caso concreto(…)”.
Constituiria reconhecimento expresso a declaração do empreiteiro perante a dona da obra de aceitação da existência e responsabilidade pelos defeitos da obra. Constituiria reconhecimento tácito os actos por este praticados no sentido de proceder à sua reparação, ainda que os não tivesse reconhecido expressamente nem aceite a responsabilidade
[12]
.
Quer um caso, quer outro, não resultam nem alegados nem provados.
Improcede nesta medida a apelação, mantendo-se inalterável a decisão que julgou verificada a excepção peremptória de caducidade dos direitos da R. reconvinte.
***
DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar totalmente improcedente a apelação interposta pelo R.
***
Custas pelo apelante (artº 527 nº1 do C.P.C.)
Coimbra 08/04/25
[1]
Ferreira de Almeida, Carlos,
Direito do Consumo,
Julho de 2005, Almedina, pág 45.
[2]
Proferido na revista nº 1451/16.4T8MTS.P1.S1., de que foi relator Nuno Pinto Oliveira, disponível em www.dgsi.pt.
[3]
No mesmo sentido vide ainda o Ac. do TRP de 18/04/2024, proferido no proc. nº 8948/18.0T8VNG.P2, de que foi relator Paulo Dias da Silva, disponível em www.dgsi.pt.
[4]
CARVALHO, Jorge Morais de,
Manual de Direito do Consumo,
8ª edição, 2022, Almedina, pág. 44.
[5]
Proferido na revista nº 1080/21.0T8FNC.L1.S1, de que foi relator Fernando Baptista, disponível em
www.dgsi.pt
. No mesmo sentido vide ainda o Ac. do STJ de 23/01/2024, proferido no proc. nº 5983/20.1T8GMR.G1.S1, de que foi relator Jorge Arcanjo; Ac. do TRG de 10/11/2022, proferido no proc. 346/20.1T8EPS.G1, de que foi relatora Maria Cristina Cerdeira, defendendo que “
o condomínio pode ser considerado como “consumidor” (artº. 1º-B, al. a), desde que as fracções que compõem o respectivo imóvel, constituído em propriedade horizontal, se destinem maioritariamente à habitação (uso não profissional).”,
todos disponíveis em
www.dgsi.pt
.
[6]
MARIANO, João Cura,
Responsabilidade contratual do empreiteiro pelos defeitos da obra
, 6.ª edição, Almedina, 2015, págs. 242.
[7]
Ob. cit, pág. 59.
[8]
CORDEIRO, António de Menezes, “Da Caducidade no Direito Português”,
Revista O Direito,
nº 136 (2004) V, págs. 19 e 20.
[9]
PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA,
Código Civil Anotado,
Vol. I, 4º edição, Coimbra Editora, pág. 295/296.
[10]
CURA MARIANO, ob. cit. pág. 103.
[11]
Proferido no proc. nº 325/21.1T8VNG.C1, de que foi relator Luís Cravo, disponível em www.dgsi.pt.
[12]
Neste sentido vide o Ac. do STJ de 09/07/2015, proferido no proc. nº 3137/09.7TBCSC.L1.S1 de que foi relator Paulo Sá, disponível em www.dgsi.pt.
|
TRC
|
https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/8bd3649f98787b2280258c7c002da3d2?OpenDocument
|
1,738,195,200,000
| null |
1749/23.5T8TMR.E1
|
1749/23.5T8TMR.E1
|
ANA MARGARIDA LEITE
|
I – Assente que o réu se apropriou das chaves de um veículo automóvel pertencente ao autor e se apoderou da viatura, conduzindo-a, não se tendo provado que o fez com autorização daquele, violou o direito de propriedade do mesmo;
II - Considerando que o uso da coisa integra o conjunto das faculdades essenciais integradoras do gozo reconhecidas ao proprietário, ao se apropriar do veículo, o réu impediu o uso da coisa pelo autor, pelo que se mostra ilícita a sua atuação, por violadora do direito de propriedade daquele;
III - A apreciação da conduta do réu na sua relação com o comportamento devido, que lhe impunha respeitar o direito de propriedade do autor sobre o veículo e não o utilizar, salvo se previamente autorizado, o que não fez, tendo-se deslocado à habitação do autor, numa ocasião em que o mesmo aí se não encontrava, o que era do seu conhecimento, apoderando-se das chaves do veículo, que utilizou para se deslocar, sabendo que não lhe pertencia, conduz à qualificação como dolosa da atuação do réu;
IV – É de considerar verificada a existência de nexo de causalidade entre a atuação do réu e os danos sofridos pelo autor, se a viatura sofreu estragos enquanto se encontrava em poder do réu, os quais se mostram compatíveis com embate com o veículo, evento que não teria sucedido se o réu não tivesse utilizado a viatura, pelo que a atuação deste, ao utilizar o veículo, foi condição necessária para a verificação dos estragos, sendo certo que a circulação de um veículo constitui atividade que tem aptidão para provocar um embate causador de danos na viatura.
(Sumário da Relatora)
|
[
"PRIVAÇÃO DE USO DE VEÍCULO",
"DIREITO DE PROPRIEDADE",
"NEXO DE CAUSALIDADE"
] |
Processo n.º 1749/23.5T8TMR.E1
Juízo Local Cível de Tomar
Tribunal Judicial da Comarca de Santarém
Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:
1.
Relatório
(…) intentou a presente ação declarativa, com processo comum, contra (…), pedindo a condenação do réu a pagar-lhe a quantia de € 25.163,00, a título de indemnização com base em responsabilidade civil extracontratual, por danos sofridos em virtude estragos causados num veículo automóvel de que é proprietário, ocorridos no contexto que descreve, como tudo melhor consta da petição inicial.
Regularmente citado, o réu não contestou.
Por despacho de 13-03-2024, foram considerados confessados os factos articulados pelo autor, na sequência do que foi dado cumprimento ao disposto no artigo 567.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
O autor apresentou alegações escritas.
Foi proferida sentença, na qual se julgou a ação improcedente, absolvendo-se o réu do pedido e condenando-se o autor nas custas.
Inconformado, o autor interpôs recurso desta decisão, pugnando pela respetiva revogação e substituição por decisão que condene o réu no pedido formulado, terminando as alegações com a dedução das conclusões que se transcrevem:
«a) - O Réu ao circular na Av. (…), em Tomar e ao embater, voluntariamente, na rotunda aí existente actuou com culpa
b) - Uma vez que ao fazê-lo voluntariamente a sua conduta é reprovável quer pelas normas e valores da cidadania e convivência, quer pelas normas jurídicas tornando-se por isso censurável ético-juridicamente.
ALIÁS
c) - Ao Réu era exigível outra condução, isto é, que circulasse por essa avenida sem embater com a viatura na rotunda aí existente.
d) - Desta forma o Réu preencheu com a sua conduta os requisitos para a existência de culpa tal como vêm definidos na própria sentença, ou seja, que este, o agente aqui Réu, “ao agir como agiu, seja passível de censura por o ter feito, sendo de lhe exigir que tivesse agido de outro modo.”
e) - A douta sentença ao decidir absolvendo o Réu, violou o disposto no artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil uma vez que o requisito da culpa como censura ético-jurídica à condução do R. se verifica
f) - E, em consequência deveria ter condenado o Réu no pedido.»
Não foram apresentadas contra-alegações.
Face às conclusões das alegações do recorrente, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, cumpre apreciar se a factualidade provada permite considerar preenchidos os pressupostos da obrigação de indemnizar com base na responsabilidade civil extracontratual e, em caso afirmativo, quantificar o montante indemnizatório devido pelo réu ao autor.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
2.
Fundamentos
2.1.
Decisão de facto
A 1.ª instância considerou confessados os factos articulados pelo autor na petição inicial, pelo que se mostram provados os factos seguintes:
1. O autor é dono do veículo Volkswagen Golf com a matrícula (…);
2. O veículo encontrava-se à venda no Facebook pelo preço de € 8.950,00, com a indicação de se tratar de um Volkswagen Golf 1.9 TDI 6V GT Sport do ano de 2007;
3. O autor comprou o veículo por € 7.000,00;
4. No dia 28-08-2022, domingo, (…), mãe do autor, encontrava-se no restaurante onde o autor trabalha como empregado de mesa, denominado “A (…)”, sito em Tomar, a tomar café com o réu, seu companheiro e namorado, tendo-se sentido maldisposta, pelo que foi chamada uma ambulância;
5. A ambulância levou a mãe do autor para o Hospital de Tomar;
6. Após a saída da ambulância, o réu dirigiu-se à casa onde o autor reside com a sua avó, junto ao aludido restaurante, entrou e retirou as chaves do veículo Volkswagen, que o autor deixa sempre em cima da mesa de cabeceira ou da cómoda existente no quarto;
7. De seguida, o réu arrancou com o carro do autor;
8. No dia seguinte, segunda-feira, o réu telefonou à tia do autor, (…), e disse-lhe que tinha estampado o carro do autor na rotunda perto do (…), na Av.ª (…), em Tomar;
9. O autor dirigiu-se imediatamente para esse local, onde se deparou com o veículo Volkswagen com a frente e toda a lateral direita, incluindo as jantes dos pneus desse lado, danificadas, os
airbags
disparados e o vidro para-brisas da frente partido;
10. O réu informou prontamente o autor que iria mandar reparar a viatura;
11. O réu esclareceu que, como a reparação iria ser superior ao valor de € 7.000,00 que o autor tinha pago pelo carro, lhe daria antes esse montante;
12. Decorrido mais de um ano, o réu, embora instado pelo autor a pagar, não mandou reparar a viatura, nem pagou ao autor qualquer valor a título dos € 7.000,00 pelo mesmo pagos como preço da viatura;
13. O autor, como proprietário do veículo, teve que pagar uma multa de € 120,00 pelo óleo que o veículo, em consequência do acidente, tinha derramado na estrada;
14. O que é sintoma de que o veículo, no acidente, danificou também o motor;
15. O autor pediu um orçamento à firma (…) de Tomar, de (…), a qual avaliou em € 20.715,35, com IVA incluído, a reparação dos estragos provocados na viatura do autor pelo acidente;
16. Tendo pago € 31,50 pelo orçamento e € 61,50 pelo reboque da viatura;
17. O autor ficou privado do uso da viatura desde 28-08-2022, o que lhe tem causado incómodos nas suas deslocações e desgosto, por se ver privado do uso da viatura na qual tinha investido as suas poupanças.
2.2.
Apreciação do objeto do recurso
2.2.1.
Pressupostos da responsabilidade civil extracontratual
Pretende o autor, com a presente ação, ser indemnizado por danos que alega ter sofrido em virtude estragos causados num veículo automóvel de que é proprietário, ocorridos na sequência de o réu se ter apoderado da viatura, baseando o pedido formulado na responsabilidade civil extracontratual e invocando o disposto no artigo 483.º do Código Civil.
A 1.ª instância considerou que não decorre da factualidade alegada pelo autor, e considerada provada, qualquer elemento relativo à culpa do réu na verificação dos danos cuja indemnização vem peticionada na ação, pelo que se concluiu não se encontrarem preenchidos todos os requisitos da responsabilidade civil por factos ilícitos previstos no artigo 483.º do Código Civil, motivo pelo qual se absolveu o réu do pedido formulado.
No recurso que interpôs, o apelante manifesta discordância relativamente à decisão proferida, sustentando que a factualidade provada permite considerar preenchidos todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual.
Vejamos se lhe assiste razão.
O autor baseia o pedido indemnizatório formulado na responsabilidade civil extracontratual, pelo que cumpre atender ao princípio geral em matéria de responsabilidade por factos ilícitos plasmado no artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil, norma que impõe a quem, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, a obrigação de indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.
Daqui se extrai que são pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos: o facto voluntário do agente, a ilicitude, o dano, o nexo de causalidade entre o facto e o dano e a culpa do lesante.
Encontra-se assente que:
- o réu, no dia 28-08-2022, no contexto descrito nos pontos 4 a 6, entrou na residência onde habita o autor – localizada em Tomar, junto ao restaurante denominado “A (…)” –, daí retirou as chaves do veículo com a matrícula (…), àquele pertencente, e arrancou com o carro;
- no dia seguinte, o veículo encontrava-se imobilizado na rotunda existente na Av.ª (…), em Tomar, perto do estabelecimento denominado (…), apresentando os estragos descritos no ponto 9;
- o réu comunicou a uma tia do autor que
tinha estampado o carro do autor na rotunda perto do (…), na Av.ª (…), em Tomar
;
- o réu informou o autor que iria mandar reparar o veículo, após o que esclareceu que lhe entregaria o montante de € 7.000,00, correspondente ao preço pelo mesmo pago pelo veículo, por entender que o valor da reparação iria ser superior.
Analisada a pretensão formulada pelo autor na petição inicial, verifica-se que a peticionada condenação do réu no pagamento da quantia em causa não se baseia num eventual reconhecimento de dívida por parte deste, tendo unicamente como fundamento a invocada responsabilidade extracontratual. Assim sendo, face à causa de pedir invocada pelo autor, verifica-se que a factualidade relativa à promessa de reparação do veículo ou de pagamento pelo réu do montante de € 7.000,00 não assume relevo jurídico autónomo.
Porém, extrai-se da factualidade tida por provada que o autor é o proprietário do veículo de matrícula (…), que o réu se apropriou das respetivas chaves e o utilizou, bem como que a viatura sofreu estragos enquanto se encontrava em poder do réu, ficando impedida de circular, o que impõe se aprecie se assiste ao réu a obrigação de indemnizar o autor pelos danos sofridos em resultado daquela atuação.
Sob a epígrafe
Propriedade das coisas
, o artigo 1305.º do Código Civil dispõe o seguinte:
O proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas
.
Face ao conteúdo do direito de propriedade estabelecido neste preceito, verifica-se que o réu, ao se apropriar das chaves e do veículo pertencente ao autor, conduzindo-o, não se tendo provado que o fez com autorização do mesmo, violou o direito de propriedade do apelante.
Em anotação ao citado preceito, afirmam Henrique Sousa Antunes / Rodrigo Moreira (
Comentário ao Código Civil: Direito das Coisas
, Coord. Henrique Sousa Antunes, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2021, pág. 129) o seguinte: «O artigo 1305.º confirma a propriedade como o direito real de gozo
máximo
ou pleno, reconhecendo ao seu titular a generalidade das faculdades atribuíveis em vista ao aproveitamento de todas as utilidades de uma coisa corpórea, dirigido à satisfação das suas necessidades legítimas». Esclarecem os autores (
loc. cit.
) que «O
uso
compreende todas as formas de aproveitamento direto das utilidades da coisa corpórea, para satisfação das necessidades do seu proprietário».
Considerando que o uso da coisa integra o conjunto das faculdades essenciais integradoras do gozo reconhecidas ao proprietário, verifica-se que o réu, ao se apropriar do veículo, conduzindo-o, impediu o uso da coisa pelo autor, pelo que se mostra ilícita a sua atuação, por violadora do direito de propriedade do apelante.
Conforme
supra
exposto, entre os requisitos da obrigação de indemnizar definidos no n.º 1 do artigo 483.º, inclui-se a culpa –
dolo ou mera culpa
–, esclarecendo o n.º 2 do preceito que só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei.
Constituindo a culpabilidade um pressuposto da responsabilidade extracontratual, há que apreciar a conduta do agente na sua relação com o comportamento devido, isto é, na perspetiva da violação de um dever jurídico ou da omissão do dever de diligência que lhe é imposto, bem como da intervenção da vontade nessa atuação.
[1]
Consagrando o Código Civil, no n.º 2 do artigo 487.º, um critério de apreciação da culpa em abstrato
[2]
, há que analisar a conduta adotada pelo réu, a concreta ação ou omissão em causa, por comparação com a conduta exigível nas concretas circunstâncias, com vista a verificar se omitiu o comportamento devido e, em caso afirmativo, se o fez voluntariamente.
No que respeita à intervenção da vontade, relevam, nesta sede, as duas modalidades da culpa em sentido amplo a que se refere o artigo 483.º, n.º 1, ao impor que o agente tenha “agido com dolo ou mera culpa”. No dolo, a imputação do ato ilícito ao agente assume maior gravidade, por ser mais intensa a intervenção da vontade, dado que o agente prevê sempre e aceita o resultado ilícito, o que não sucede na negligência, em que o agente não prevê ou, caso preveja, não aceita tal resultado.
[3]
Analisando a atuação do réu, dúvidas não há de que a utilização do veículo pertencente ao autor se mostra voluntária, decorrendo da factualidade provada que o fez sabendo que o veículo não lhe pertencia, dado ter-se deslocado à casa onde o autor habitava, numa ocasião em que o mesmo aí se não encontrava, o que era do seu conhecimento, conforme se extrai dos pontos 4 e 6, tendo-se apoderado das chaves do veículo, que utilizou para o conduzir.
A apreciação desta conduta do réu na sua relação com o comportamento devido, que lhe impunha respeitar o direito de propriedade do autor sobre o veículo e não o utilizar, salvo se previamente autorizado, conduz à qualificação como dolosa da atuação do réu.
A lei faz depender a responsabilidade civil da existência de um dano, não definindo, porém, em que consiste esta condição da obrigação de indemnizar.
Ao estatuir, no n.º 1 do citado artigo 483.º, o princípio geral em matéria de responsabilidade extracontratual, a lei define os requisitos da obrigação de indemnizar, entre os quais inclui a existência de um dano como pressuposto da responsabilidade civil.
No âmbito dos Princípios de Direito Europeu da Responsabilidade Civil
[4]
, o dano constitui igualmente pressuposto da responsabilidade e é definido, no artigo 2:101, sob a epígrafe “Dano ressarcível”, nos termos seguintes: “O dano consiste numa lesão material ou imaterial a um interesse juridicamente protegido”.
Tradicionalmente, o dano tem sido considerado pela doutrina como uma lesão de bens ou interesses juridicamente tutelados
[5]
, o que implica necessariamente uma alteração na situação que se verificaria sem o evento lesivo, evidenciada por comparação entre tal hipotética situação e a efetivamente existente
[6]
.
No caso presente, em que o veículo apresentava os estragos elencados no ponto 9 e que os mesmos impediam a circulação da viatura, dúvidas não há de que ocorreu uma alteração da situação em que o autor estaria, consubstanciada na circunstância de o seu veículo, que se encontra apto a circular, ter ficado estragado e impedido de circular.
Verificando-se que a viatura sofreu estragos enquanto se encontrava em poder do réu, ficando impedida de circular, cumpre averiguar se existe nexo de causalidade entre a descrita atuação ilícita do réu e os danos sofridos pelo autor.
Sob a epígrafe
Nexo de causalidade
, dispõe o artigo 563.º do Código Civil que a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.
No caso presente, os estragos ocorreram quando o veículo se encontrava em poder do réu, que o retirou do local onde o autor o tinha estacionado e se deslocou nele, conduzindo-o para outro local, mostrando-se os estragos compatíveis com embate ocorrido com o veículo, o qual não se teria verificado se o réu o não tivesse utilizado. Verifica-se, assim, que a atuação do réu, ao utilizar o veículo, foi condição necessária para a verificação dos estragos, sendo certo que a circulação de um veículo automóvel constitui atividade que tem aptidão para provocar um embate causador de danos na viatura, assim podendo concluir-se que a atuação ilícita do réu é causa adequada dos prejuízos sofridos pelo autor.
Nesta conformidade, mostram-se preenchidos os todos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, pelo que se constituiu o réu na obrigação de indemnizar o autor pelos danos causados.
2.2.2.
Obrigação de indemnização
Cumpre determinar a medida da indemnização devida ao autor, tendo em consideração a pretensão formulada e os prejuízos sofridos.
Tratando-se de danos patrimoniais, a natureza material da lesão sofrida permite a efetiva indemnização do lesado, com a remoção da alteração causada no respetivo património, seja por via da reconstituição natural, seja através do pagamento de uma quantia monetária, visando em qualquer dos casos torná-lo indemne.
Podendo os danos patrimoniais consistir numa direta diminuição do património, através da redução do ativo ou do aumento do passivo, ou numa privação do seu potencial aumento, a obrigação de indemnizar abrange o prejuízo causado, bem como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão, devendo o obrigado reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação (artigo 562.º do Código Civil).
Decorre da factualidade assente que, no contexto
supra
analisado, o veículo pertencente ao autor sofreu danos cuja reparação ascende a montante superior ao valor do veículo. Assim, provou-se que, antes da ocorrência dos estragos, a viatura tinha valor não superior a € 7.000,00, preço pelo qual o autor o havia adquirido, tendo o custo da reparação dos estragos sofridos sido avaliado em € 20.715,35, incluindo IVA.
Como tal, face ao critério estatuído no artigo 566.º, n.º 1, do Código Civil, cumpre considerar que a indemnização deve ser cumprida em dinheiro e não através da reparação do veículo, que se mostra excessivamente onerosa para o réu, sendo devido ao autor o montante de € 7.000,00, correspondente ao valor do veículo.
Assente que, em consequência dos estragos que sofreu, o veículo: i) derramou óleo na estrada, o que determinou a aplicação ao autor de uma multa no montante de € 120,00, que o mesmo pagou; ii) ficou impossibilitado de circular pelos seus meios, tendo de ser rebocado, o que importou o pagamento pelo autor do valor de € 61,50; iii) foi submetido a avaliação do custo da reparação, o que importou o pagamento pelo autor da quantia de € 31,50.
Assiste ao autor o direito a ser ressarcido de tais prejuízos, que sofreu em consequência da atuação do réu, no montante global de (€ 7.000,00 + € 120.00 + € 61,50 + € 31,50) € 7.213,00.
Peticiona o autor, ainda, lhe seja arbitrada indemnização pela privação do uso do veículo, que ficou impossibilitado de circular em virtude dos estragos sofridos.
Decorre da factualidade assente que o réu não reparou os danos sofridos pelo veículo, não tendo indemnizado o autor ou colocado à disposição deste a indemnização devida, igualmente lhe não tendo disponibilizado um veículo de substituição até ser processado tal pagamento.
Visando a indemnização reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação, conforme princípio geral estatuído no artigo 562.º do Código Civil e que preside à obrigação de indemnizar danos patrimoniais, verifica-se que, não tendo o autor sido indemnizada pela perda do veículo e não lhe tendo sido disponibilizado um veículo de substituição, subsiste o dano da privação do uso do veículo.
Conforme se entendeu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-10-2010 (relator: Moreira Alves), proferido na revista n.º 70/06.8TBCVL.C1.S1 - 1.ª Secção (cujo sumário se encontra publicado em
www.stj.pt
), a privação mantém-se enquanto o responsável não reparar o veículo ou não indemnizar, em equivalente, no caso de perda total, o lesado, obrigação jurídica que lhe compete exclusivamente; só com a reparação ou a indemnização cessa o dano e, por isso, só nessa altura pode deixar de falar-se na privação do uso.
No caso presente, não tendo o réu ressarcido o autor pela perda total do veículo, a privação mantém-se, pelo que subsiste o dano da privação do uso do veículo.
Extrai-se da matéria de facto provada que o veículo era utilizado pelo autor para as suas deslocações, tendo sofrido incómodos vários ao ser privado do respetivo uso.
Decorre destes elementos factuais que a privação do uso do veículo causou concretos danos ao autor, encontrando-se provada a existência de prejuízos diretamente decorrentes da não utilização do bem, pelo que se mostra dispensável tomar posição quanto à questão, controvertida na jurisprudência, de saber se a indemnização pela privação do uso de certo bem dependerá da prova do dano concreto ou se a simples privação do uso constitui, só por si, um dano indemnizável
[7]
.
Tendo o autor ficado impedido de exercer os poderes correspondentes ao seu direito de propriedade sobre a viatura, designadamente utilizando-as nas suas deslocações, assiste-lhe o direito a ser indemnizado pela privação do uso do veículo.
O cálculo da indemnização do dano em apreciação deve ser efetuado com base na equidade, conforme dispõe o artigo 566.º, n.º 3, do Código Civil, considerando que não pode ser averiguado o valor exato dos danos sofridos.
Impondo o artigo 8.º do Código Civil ao julgador, além do dever de obediência à lei (n.º 2), que tenha em consideração, nas decisões a proferir, todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito (n.º 3), mostra-se oportuno analisar casos análogos, de forma a aferir os critérios utilizados na determinação da indemnização pela privação do uso de veículo.
Em situações de contornos factuais semelhantes, detetadas na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, verifica-se o seguinte: no acórdão de 28-04-2009, proferido na Revista n.º 789/04.8TBCTX.S1 - 1.ª Secção, considerando que durante 2 meses e 4 dias, o autor e o seu agregado familiar esteve privado de viatura própria nas deslocações pessoais diárias e de fins-de-semana, tendo necessitado de se socorrer de transportes públicos ou de usar um veículo cedido gratuitamente por um familiar, sofrendo, para além de incómodos, uma situação de desconforto ou desgosto, e uma vez que o custo do aluguer de um veículo com as características do sinistrado ascenderia a quantia não inferior a 25,00/dia, entendeu-se deve a ré ser condenada a pagar-lhe, a título de privação de uso de veículo, a quantia de € 1.600,00; no acórdão de 16-06-2009, proferido na Revista n.º 146/09.0YFLSB - 6.ª Secção, tendo-se provado que o veículo do autor, devido a acidente ocorrido em 08-02-2005, ficou impossibilitado de circular, permanecendo imobilizado até à propositura da ação, sendo que o autor o utilizava nas suas deslocações diárias; durante cerca de um mês, o autor socorreu-se de automóveis de familiares e amigos, a título de favor; e que o aluguer diário de um veículo de idêntica classe custa cerca de € 24,00 por dia, mas não se tendo apurado que o autor tivesse de utilizar o veículo para deslocações todos os dias, entendendo-se razoável admitir a possibilidade de utilização de transportes públicos para muitas das deslocações, notoriamente mais baratos do que o aluguer de uma viatura e em que o autor não teria de custear o combustível, admite-se como suficiente para compensar a privação do uso de veículo automóvel uma quantia média diária de € 15,00, pelo que, atendendo ao período de cerca de 30 dias em que o autor pode dispor de outros veículos sem dispêndio de dinheiro, entendeu-se equitativo, por razoável, computar o montante indemnizatório respetivo, para o período de efetiva privação que decorreu desde a data do acidente até à da propositura da ação (394 menos os ditos 30 dias), em € 5.460,00, aditado de € 15,00 diários a partir de então até ao pagamento do montante correspondente àquela reparação; no acórdão de 10-05-2011, proferido na Revista n.º 1253/07.9TBVFR.P1.S1 - 6.ª Secção, considerou-se que, devendo o valor da privação do uso de veículo ser calculado de acordo com a equidade, cumpre ver, além do mais, as importâncias que para este efeito têm sido fixadas neste tribunal, que orçam a € 25 diários, para veículos automóveis; no acórdão de 27-09-2011, proferido na Revista n.º 2365/04.6TCLRS.L1.S1 - 6.ª Secção, tendo-se provado que o autor, advogado, necessita muitas vezes de deslocações longas, rápidas e seguras, não só profissionais como pessoais e familiares, a que o veículo danificado correspondeu, e que, com a sua imobilização, ficou sem carro para a sua atividade profissional, para as suas viagens e afazeres pessoais e familiares, e que esta situação lhe tem causado incómodos, mas não havendo elementos nos autos para quantificar o dano resultante da imobilização do veículo, tendo o tribunal recorrido lançado mão da equidade para fixação dos danos sofridos e fixado em € 40,00 por dia o valor do dano sofrido pelo autor, em consequência da paralisação do seu veículo automóvel, entendeu-se que, não contendo os autos elementos que permitam alterar aquele valor, não merece censura do STJ (acórdãos estes cujos sumários se encontram publicados em
www.stj.pt
).
Atendendo a que o autor deixou de dispor de veículo desde 28-08-2022, vendo-se impedido de o utilizar para as suas deslocações, o que constitui causa idónea de dificuldades várias e de despesas acrescidas com outros transportes, e tendo presentes os critérios utilizados na determinação da indemnização pela privação do uso de veículo em casos de contornos factuais análogos, mostra-se conforme à equidade fixar a indemnização devida no montante de € 300,00 por mês, conforme peticionado pelo autor. Considerando que a indemnização peticionada se reporta a um período de 14 meses (até outubro de 2023), tal importa um montante global de € 4.200,00, o qual se mostra adequado para compensar o autor pela privação do uso do veículo que sofreu.
Em conclusão, assiste ao autor o direito a ser indemnizado pelo réu no montante global de € 11.413,00, o que conduz à parcial procedência da ação.
Nesta conformidade, procede parcialmente a apelação, cumprindo revogar, em conformidade, a decisão recorrida.
Custas pelo apelado, na vertente das custas de parte e na proporção do decaimento (artigo 527.º, n.º 1, do CPC), estando o apelante dispensado do pagamento de custas por força do benefício do apoio judiciário.
Em conclusão
: (…)
3.
Decisão
Nestes termos, acorda-se em
julgar parcialmente procedente a apelação
, em consequência do que se decide o seguinte:
a) na parcial procedência da ação, condenar o réu a pagar ao autor a quantia de € 11.413,00 (onze mil e quatrocentos e treze euros);
b) revogar nesta parte e manter no mais a decisão recorrida.
Custas pelo apelado, na vertente das custas de parte e na proporção do decaimento
Notifique.
Évora, 30-01-2025
(Acórdão assinado digitalmente)
Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite
(Relatora)
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
(1.ª Adjunta)
José Saruga Martins
(2.º Adjunto)
__________________________________________________
[1] Cfr., sobre a culpa, em direito civil, Ana Prata, “Responsabilidade delitual nos Códigos Civis português de 1966 e brasileiro de 2002”, Estudos em homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, vol. I, Coimbra, Coimbra Editora, 2013, p. 94-97 e, sobre a interdependência entre a culpabilidade e a omissão do comportamento devido, Fernando Pessoa Jorge, Ensaio sobre os pressupostos da responsabilidade civil, 1968, 3.ª reimpressão, Coimbra, Almedina, 1999, págs. 316-317.
[2] Nos Princípios de Direito Europeu da Responsabilidade Civil (disponível em:
http://civil.udg.edu/php//index.php?id=295
), sob a epígrafe “Culpa”, dispõe o artigo 4:101: “A pessoa que, intencionalmente ou por negligência, violar o padrão de conduta exigível responde por culpa”. Quanto ao “padrão de conduta exigível”, esclarece o artigo 4:102 o seguinte: ”(1) O padrão de conduta exigível corresponde ao de uma pessoa razoável colocada nas mesmas circunstâncias e depende, especialmente, da natureza e valor do interesse protegido em questão, da periculosidade da actividade, da perícia que é de esperar da pessoa que a exerce, da previsibilidade do dano, da relação de proximidade ou da particular confiança entre as partes envolvidas, bem como da disponibilidade e custos de métodos preventivos ou alternativos. (2) O padrão de conduta pode ser ajustado em função da idade, de deficiência psíquica ou física, ou quando, devido a circunstâncias extraordinárias, não se possa legitimamente esperar que a pessoa em causa actue em conformidade com o mesmo. (3) As disposições que prescrevem ou proíbem uma determinada conduta devem ser tomadas em consideração a fim de se estabelecer o padrão de conduta exigível”.
[3] Cfr. Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12.ª edição revista e atualizada, 2.ª reimpressão, Coimbra, Almedina, 2013, págs. 582-583; Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, 6.ª edição revista e atualizada, Coimbra, Coimbra Editora, 1989, págs. 341-345.
[4] Disponível, na versão traduzida para português por Jorge Ferreira Sinde Monteiro e André Gonçalo Dias Pereira, em:
http://www.egtl.org/PETLPortuguese.html
.
[5] Adriano Vaz Serra, “Obrigação de indemnização (Colocação. Fontes. Conceito e espécies de dano. Nexo causal. Extensão do dever de indemnizar. Espécies de indemnização). Direito de abstenção e de remoção”, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 84 (1959), págs. 8-9; Rui de Alarcão, Direito das Obrigações, texto elaborado por J. Sousa Ribeiro, J. Sinde Monteiro, Almeno de Sá e J. C. Proença, com base nas lições ao 3.º ano jurídico, Coimbra, policopiado, 1983, pág. 270; João de Matos Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 6.ª ed. revista e atualizada, Coimbra, Almedina, 1989, pág. 568; Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, 6.ª ed. revista e atualizada, Coimbra, Coimbra Editora, 1989, pág. 370; Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12.ª ed. revista e atualizada, 2.ª reimpressão, Coimbra, Almedina, 2013, pág. 591; António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, tomo I, 2.ª reimpressão da 3.ª ed. de março/2005, aumentada e revista, Coimbra, Almedina, 2009, pág. 419; Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. I, 4.ª ed., Coimbra, Almedina, 2005, pág. 314.
[6] Sobre o conceito de dano, v. Paulo Mota Pinto, Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo, vol. I, Coimbra, Coimbra Editora, 2008, págs. 536-552.
[7] A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem divergido sobre a questão da indemnização pela privação do uso, podendo detetar-se as duas indicadas correntes.
No sentido de que a mera privação do uso de um veículo gera obrigação de indemnizar, independentemente de alegação e prova de dano concreto que seja consequência dessa privação, podem indicar-se, por exemplo: os acórdãos de 05-03-2002 – Revista n.º 3968/01 - 1.ª Secção, 09-05-2002 – Revista n.º 935/02 - 1.ª Secção, 23-09-2004 – Revista n.º 2093/04 - 2.ª Secção, 21-04-2005 – Revista n.º 2246/03 - 2.ª Secção, 20-09-2005 – Revista n.º 1992/05 - 6.ª Secção, 29-11-2005 – Revista n.º 3122/05 - 7.ª Secção, 10-10-2006 – Revista n.º 2503/06 - 6.ª Secção, 19-12-2006 – Revista n.º 4077/05 - 7.ª Secção, 03-05-2007 – Revista n.º 966/07 - 7.ª Secção, 05-07-2007 – Revista n.º 1849/07 - 2.ª Secção, 10-07-2007 – Revista n.º 2102/07 - 2.ª Secção, 13-12-2007 – Revista n.º 3958/07 - 1.ª Secção, 15-01-2008 – Revista n.º 4436/07 - 6.ª Secção, 07-02-2008 – Revista n.º 4505/07 - 6.ª Secção, 17-04-2008 – Revista n.º 478/08 - 2.ª Secção, 06-05-2008 – Revista n.º 1279/08 - 1.ª Secção, 10-07-2008 – Revista n.º 958/08 - 7.ª Secção, 04-11-2008 – Revista n.º 3113/08 - 6.ª Secção, 12-02-2009 – Revista n.º 14/09 - 6.ª Secção, 31-03-2009 – Revista n.º 287/09 - 6.ª Secção, 16-06-2009 – Revista n.º 146/09.0YFLSB - 6.ª Secção, 08-10-2009 – Revista n.º 1362/06.1TBVCD.S1 - 2.ª Secção, 03-12-2009 – Revista n.º 1252/08.3TBFUN.L1.S1 - 7.ª Secção, 12-01-2010 – Revista n.º 314/06.6TBCSC.S1 - 1.ª Secção, 29-06-2010 – Revista n.º 1040/07.4TVPRT.S1 - 6.ª Secção, 03-02-2011 – Revista n.º 1705/05.5TBLLE.E1.S1 - 7.ª Secção, 05-05-2011 – Revista n.º 1292/04.1TBPTL.S1 - 2.ª Secção, 10-05-2011 – Revista n.º 1253/07.9TBVFR.P1.S1 - 6.ª Secção, 12-07-2011 – Revista n.º 319-A/2001.C1.S1 - 6.ª Secção, 27-09-2011 – Revista n.º 2365/04.6TCLRS.L1.S1 - 6.ª Secção, cujos sumários se encontram publicados em www.stj.pt.
No sentido de que a indemnização pela privação do uso de certo bem, designadamente de veículo automóvel, dependerá da prova do dano concreto, isto é, da prova da existência de prejuízos decorrentes diretamente da não utilização do bem, podem indicar-se, por exemplo: os acórdãos de 17-11-1998 – Revista n.º 977/98 - 1.ª Secção, 23-01-2001 – Revista n.º 3670/00 - 2.ª Secção, 04-12-2003 – Revista n.º 3030/03 - 7.ª Secção, 12-01-2006 – Revista n.º 4176/05 - 7.ª Secção, 19-12-2006 – Revista n.º 4157/06 - 6.ª Secção, 31-01-2007 – Revista n.º 4575/06 - 7.ª Secção, 17-04-2007 – Revista n.º 2122/06 - 2.ª Secção, 03-05-2007 – Revista n.º 1184/07 - 7.ª Secção, 26-06-2007 – Revista n.º 982/07 - 6.ª Secção, 05-07-2007 – Revista n.º 2138/07 - 1.ª Secção, 05-07-2007 – Revista n.º 2111/07 - 7.ª Secção, 04-10-2007 – Revista n.º 2457/07 - 2.ª Secção, 04-10-2007 – Revista n.º 3012/07 - 2.ª Secção, 04-10-2007 – Revista n.º 1961/07 - 7.ª Secção, 13-12-2007 – Revista n.º 3927/07 - 1.ª Secção, 18-12-2007 – Revista n.º 4058/07 - 6.ª Secção, 17-04-2008 – Revista n.º 273/08 - 1.ª Secção, 16-09-2008 – Revista n.º 2094/08 - 1.ª Secção, 30-10-2008 – Revista n.º 2662/08 - 2.ª Secção, 30-10-2008 – Revista n.º 2131/07 - 7.ª Secção, 06-11-2008 – Revista n.º 3402/08 - 7.ª Secção, 09-12-2008 – Revista n.º 3401/08 - 1.ª Secção, 13-01-2009 – Revista n.º 3575/08 - 1.ª Secção, 28-04-2009 – Revista n.º 789/04.8TBCTX.S1 - 1.ª Secção, 02-06-2009 – Revista n.º 1583/1999.S1 - 1.ª Secção, 10-09-2009 – Revista n.º 376/09.4YFLSB - 7.ª Secção, 27-10-2009 – Revista n.º 4769/06.0TBAVR.C1.S1 - 1.ª Secção, 19-11-2009 – Revista n.º 31/04.1TBLSD.S1 - 1.ª Secção, 09-03-2010 – Revista n.º 1247/07.4TJVNF.P1.S1 - 1.ª Secção, 16-03-2010 – Revista n.º 440/06.1TBACB.C1.S1 - 1.ª Secção, 21-04-2010 – Revista n.º 17/07.4TBCBR.C1.S1 - 1.ª Secção, 04-05-2010 – Revista n.º 5780/04.1TVLSB.L1.S1 - 1.ª Secção, 04-05-2010 – Revista n.º 727/06.3TBBCL.G1.S1 - 1.ª Secção, 07-07-2010 – Revista n.º 2286/04.2TBOVR.P1.S1 - 7.ª Secção, 07-10-2010 – Revista n.º 3515/03.5TBALM.L1.S1 - 7.ª Secção, 19-10-2010 – Revista n.º 70/06.8TBCVL.C1.S1 - 1.ª Secção, 21-10-2010 – Revista n.º 4487/04.4TBSTB.E1.S1 - 2.ª Secção, 28-10-2010 – Revista n.º 87/06.2TBEPS.G1.S1 - 7.ª Secção, 28-10-2010 – Revista n.º 272/06.7TBMTR.P1.S1 - 7.ª Secção, 23-11-2010 – Revista n.º 2393/06.7TBSTS.P1.S1 - 1.ª Secção, 08-02-2011 – Revista n.º 5466/05.0TBSXL.L1.S1 - 6.ª Secção, 16-03-2011 – Revista n.º 3922/07.2TBVCT.G1.S1 - 1.ª Secção, 03-05-2011 – Revista n.º 2618/05.6TBOVR.P1.S1 - 6.ª Secção, cujos sumários se encontram publicados em
www.stj.pt
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TRE
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https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/6146c682cd1dcab780258c2f0057ff23?OpenDocument
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1,750,809,600,000
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ALTERADA A DECISÃO RECORRIDA
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3646/23.5T8PTM-C.E1
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3646/23.5T8PTM-C.E1
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BEATRIZ MARQUES BORGES
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Sumário:
I.
Estando pendente um processo onde se investiga crime de natureza sexual sobre a criança e no qual, decorrido quase dois anos, o progenitor não foi constituído arguido justifica-se, no processo de regulação das responsabilidades parentais, o alargamento do regime de convívios do pai à criança, quando, para além do mais, esta manifestou vontade nesse sentido e o CAFAP observou em contexto de visitas, durante o período de um ano, a existência de cumplicidade e afetividade entre a criança e o progenitor.
II.
Por ocorrer risco de incumprimento do regime alargado de convívios fixado é de determinar o acompanhamento da sua execução pelos serviços de assessoria técnica, ao abrigo do artigo 40.º, n.º 6 do RGPTC.
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[
"RESPONSABILIDADES PARENTAIS",
"VISITAS",
"PROCESSO PENAL",
"PROCESSO PENDENTE"
] |
Acordam as juízas da 1.ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório.
No P. 3646/23.5T8PTM-C de regulação do exercício das responsabilidades parentais que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo de Família e Menores de Portimão - Juiz 1, iniciado por requerimento de AA contra BB, pais da criança CC, nascida em ...-...-2018, foi proferida decisão provisória, datada de 10-12-2024, que manteve o regime de visitas, a ocorrer por via do CAFAP, ou através de acordo entre os progenitores, devendo neste caso contar com a supervisão de um terceiro, que o Tribunal admitiu poder ser a avó paterna.
1. O regime provisório fixado em 10-12-2024 tem o seguinte teor (transcrição):
“Tendo presente o estado dos autos, impõe-se no imediato decidir a questão reportada às visitas/contatos do pai com o menor.
Nessa óptica, tendo presente o promovido pelo Ministério Público, sem se olvidar a posição do progenitor, importa em primeiro lugar fazer realçar que o regime de visitas vigente assenta num regime de contactos por via do CAFAP, admitindo o Tribunal que perante o acordo dos progenitores e nos termos em que o concretizem que o menor possa ter outros contactos com o progenitor.
Ante tal quadro e em segundo lugar, será de responder à pregunta: estarão reunidas as condições para se alterar tal regime nos termos solicitados pelo pai?
Na resposta a tal questão temos em primeiro lugar que do evidenciado pelo CAFAP as visitas entre filho e progenitor decorreram de forma perfeitamente normal havendo vontade do menor em estar com o pai e não havendo igualmente reporte de situações de natureza sexual que tenham decorrido no contexto de tais visitas, o que aponta em certa medida para a expansão das visitas; sucede que noutro quadrante o Tribunal não pode ignorar a circunstância de o relatório pericial médico legal no âmbito da psicologia não afastar a possibilidade da presença de abusos quando afirma que se consegue identificar alterações psicológicas, sociais e físicas que em conjunto com a presença de comportamento bizarros de natureza sexual permitem classificar como possível a existência de abusos de natureza sexual, o que aponta no sentido de que caso haja contactos do menor com o pai os mesmo ocorram com alguma cautela que mais não seja até melhor luz se fazer sobre a situação.
Nessa circunstância na ponderação dos interesses em jogo (e não deixando de ter presente o previsto no art.º 28.º do RGPTC e no art.º 1906.º e ss. do CC), ou seja do interesse do pai em estar com o menor e do superior interesse deste em também ter contactos com o seu pai (que é o que indica o CAFAP que serão profícuas para ambas as partes), não deixando de se olvidar também o interesse do mesmo em que ainda assim haja alguma precaução em tais contactos posto que os termos do relatório já referido não deixa de levantar algumas interrogações quanto a eventuais abusos que reclamarão a proteção do menor no contexto em que se encontra, decide-se nesta fase ainda embrionária do processo e por ora manter as visitas nos termos em que estão fixadas ou seja, a ocorrerem por via do CAFAP , ou a ocorrerem através de acordo dos progenitores e nos termos em que os mesmo acordem, devendo neste caso as mesmas contar com a supervisão de um terceiro que o Tribunal admite que possa ser a avó paterna.
Aqui chegados importando definir um rumo a seguir nos autos, deverão os mesmos aguardar por 30 dias no que diz respeito à evolução do processo crime reequacionando-se então os termos a seguir no processo.
Notifique.”
2.
Inconformado com tal decisão o requerido interpôs recurso contra a mesma, apresentando as seguintes as conclusões do recurso (transcrição):
«1.
Vem o presente recurso interposto da douta decisão proferida em 10.12.2024 , que indeferiu a alteração do regime provisório instituído e manteve o de visitas supervisionadas pelo CAFAP (de duas horas por semana),
2. Para assim julgar, bastou-se a douta sentença ora recorrida com a pendência do procedimento criminal intentado pela progenitora em momento imediatamente anterior à propositura do presente processo de regulação das responsabilidades parentais. (por pretensos abuso de natureza sexual do progenitor relativamente ao menor)
3. Ora, no entender do Apelante, não só o que decorre daqueles autos de processo crime não autoriza tal decisão, como todos os demais elementos carreados para os presentes autos são relevadores que os facto participados pela progenitora são infundados e inconsubstanciados.
4. Releva para análise do presente recurso o histórico procedimental e o conteúdo do processado. Assim,
5. Em 12.12.2023 o Tribunal a quo proferiu douto despacho que fixou a residência do menor exclusiva com a progenitora e decidiu afastar o menor de convívios com o progenitor privando-o dos direitos de visita, sem audição prévia do progenitor e estribada, exclusivamente, em argumentação expendida pela progenitora na sua petição inicial, não tendo sido ouvidas quaisquer testemunhas ou técnicos.
6. Nas duas sessões da primeira conferência de pais realizadas nos dias 06 e 18 de Março de 2024, foram ouvidos os progenitores e o menor.
7. Das declarações do menor não se extraiu a ocorrência de factos de natureza sexual entre pai e filho, tal como concedeu o Tribunal na acta, então lavrada,
8. Não obstante, o Tribula decidiu fixar, ulteriormente, visitas supervisionadas pelo CFAP, que decorreram entre os meses de Junho e Dezembro de 2024 (primeiramente de uma vez por semana, por períodos de 60 a 120 minutos).
9. Dos relatórios elaborados pelo CAFAP e secundados pelas declarações prestadas em juízos pelos técnicos da equipa que supervisionaram as visitas ressalta a existência de cumplicidade e afectividade entre a criança e o progenitor, não havendo qualquer recusa por parte daquele em estar na presença deste, e da verbalização do menor pretender a companhia do pai e manifestar ensejos de com ele conviver, bem como com os demais familiares ( irmã , tios, e avó paterna) fora daquele espaço.
10. Até à presente data não foi deduzida qualquer acusação no processo com o nº 3046/23.7... ( ainda em sede de Inquérito) a que estes autos alude, e foi, por duas vezes, recusada, pelo ministério Público a constituição do progenitor como arguido, por não se considerado interveniente no mesmo.
11. Da documentação extraída daqueles autos de inquérito 3046/23.7... concretamente o relatório pericial de natureza sexual de onde não se extrai qualquer tipo de lesão ao menor e o relatório da perícia de psicológica médico legal.
12. Nenhum elemento ora juntos aos autos indiciam a existência de traumas ou memórias compatíveis com os relatos efetuados pela progenitora.
13. As alusões ínvias insertas nos relatórios da perícia de natureza sexual e o da perícia médico-legal psicológica - que instruem aquele Inquérito - enfermam de incorreção de metodologia e inquinado de ausência de rigor técnico e científico, por falta de fundamentação teórica e/ou empírica para a análise de resultados obtidos com as provas aplicadas em contexto forense.
14. O registo áudio trazido aos autos pela progenitora não foi objeto de perícia técnica seja, quanto à sua fidedignidade de tempo, modo e lugar, seja de análise sobre a modelação e sugestionabilidade que o discurso e conduta da progenitora inflecte no menor aquando de tal registo.
15. Em face de todo o sobredito, não pode o Apelante conformar-se com a douta decisão por, no seu entender e salvo o devido respeito, inexistir fundamento que alicerce o sentido decisório tendo em conta a globalidade de elementos constantes nos autos que constatam que o Apelante não actuou, nem sequer de forma indiciária, de forma moral ou criminalmente censurável contra o seu filho.
16. Ao assim julgar, o tribunal a quo desconsiderou o superior interesse do menor e proferiu decisão contrária ao mesmo, qual seja, o direito de conviver com o pai.
17. Pelo que e por forma a proteger aquele superior interesse, deverá a decisão ora posta em crise ser revogada e substituída por outra que determine a alteração do regime provisório de molde a ser concedido o direito de visitas diárias –não inferiores a três por semana -ao progenitor, sem a supervisão do CAFAP, ainda que a entrega e recolha do menor seja efectuada na casa da avó paterna, o que salvaguardará o superior interesse do menor.
Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão que manteve o regime provisório fixado, decidindo-se pela alteração do mesmo por forma a ser concedido ao progenitor o direito de visitas diárias, não inferiores a três por semana, sem a supervisão do CAFAP, ainda que a entrega e recolha do menor seja efetuada na casa da avó paterna. (
…)”.
3. Nas contra-alegações o Ministério Público alegou o seguinte (transcrição):
«(…) Objecto do Recurso
Atendendo ao disposto nos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil, e em conformidade com a generalidade da jurisprudência dos Tribunais Superiores, o âmbito de recurso encontra-se delimitado e define-se pelas conclusões que o apelante extrai das alegações de recurso, sem prejuízo do Tribunal ad quem apreciar questões de conhecimento oficioso, devendo as conclusões ser precisas e claras, tendo por base que as questões nelas sumariadas serão objecto de decisão.
Assim, todas as questões de mérito que tenham sido apreciadas na decisão recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do apelante, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de ser consideradas decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o Tribunal de recurso.
Posto isto, em apertada síntese, consideramos que o apelante invoca como fundamentos do recurso a sua discordância relativamente à valoração dos elementos probatórios que fundamentaram a manutenção do regime de visitas, alegando que o que decorre do processo crime não autoriza tal decisão, e os demais elementos carreados para os autos são reveladores que os factos participados pela progenitora são infundados.
Ademais, as alusões insertas nos relatórios de perícia psicológica e de natureza sexual enfermam de incorrecção metodológica, estando inquinados de ausência de rigor técnico e científico, conforme parecer que o apelante junta com as suas alegações.
Em nosso modo de ver, salvo o devido respeito por opinião distinta, o apelante carece de razão.
III – Da Resposta às Alegações apresentadas
Estamos perante um processo de jurisdição voluntária, em que, nas providências a tomar, o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, e em que, atenta a sua especificidade - processo de regulação das responsabilidades parentais no âmbito do Regime Geral do Processo Tutelar Cível - o tribunal, deve adoptar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna em defesa do superior interesse da criança, já que este, se assume, como o valor fulcral ou fundamental do processo, sendo esse interesse que deve presidir a qualquer decisão no âmbito da regulação das responsabilidades parentais.
Quando chamado a intervir na regulação das responsabilidades parentais, deve o tribunal nortear-se pela consideração plena e exclusiva do interesse da criança, nos termos previstos nos arts. 1906º nº 5 e 7do Código Civil, ou seja, pelo seu direito a um desenvolvimento são e normal no plano físico, moral, intelectual e social, em condições de liberdade e dignidade, tal como resulta da Lei Fundamental e da Convenção Sobre os Direitos da Criança.
Nos termos do disposto no art.º 40º, do R.G.P.T.C., “Na sentença, o exercício das responsabilidades parentais é regulado de harmonia com os interesses da criança, devendo determinar-se que seja confiada a ambos ou a um dos progenitores, a outro familiar, a terceira pessoa ou a instituição de acolhimento, aí se fixando a residência daquela”.
Vemos, assim, que na regulação do exercício das responsabilidades parentais deverão ser observados, entre outros, os princípios fundamentais do interesse da criança e da igualdade entre os progenitores, atendendo-se, prioritariamente, ao interesse do menor, sem prejuízo da consideração de outros interesses legítimos que concorram no caso concreto.
Atentando no caso sub iudice, embora não se ignore que, na data em que foi proferido o despacho colocado em crise, o recorrente não havia sido constituído arguido, certo é que no inquérito crime consta um relatório psicológico, tendo o Senhor Perito identificado alterações psicológicas, físicas e sociais, que em conjunto com a presença de comportamentos bizarros de natureza sexual permitem classificar como possível a hipótese da presença de abusos de natureza sexual, verificando-se que o titular do dito processo pondera a possibilidade de proceder, novamente, à audição da criança para memória futura.
Como bem se esclarece no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21.3.2024, proferido no proc. 2979/22.2T8SNT-B.L1-6, acessível para consulta em www.dgsi.pt, , o direito de visitas é pensado de modo a salvaguarda do superior interesse da criança, o seu desenvolvimento integral e harmonioso, psíquico e emocional, visando o estabelecimento de laços afectivos e emocionais com o progenitor não guardião e deve ser desenhado de acordo com as concretas circunstâncias do caso, nomeadamente da existência, ou não, de anteriores contactos e convivência, a idade da criança e até o posicionamento dos pais em relação aos filhos e contactos com o outro progenitor.
Só excepcionalmente esse direito de visitas pode ser afastado ponderando o superior interesse da criança e considerando o interesse na manutenção do vínculo afetivo com o visitante (artº 40º nº 3 do RGPTC), designadamente quando as circunstâncias concretas do caso o desaconselhem, por existir algum tipo de risco efectivo, psicológico, emocional ou físico para a criança.
Porém, como se referiu acima, o Direito de Visitas ao progenitor não guardião, não pode estar dissociado do superior interesse do filho e do seu bem-estar psíquico e emocional. O mesmo é dizer que quando o direito de visitas entra em conflito com o interesse da criança é o interesse da criança que deve prevalecer.
Ora, no caso em análise, como se salientou no despacho recorrido, o relatório psicológico demanda que os contactos com o pai ocorram com alguma prudência, até que melhor luz se faça sobre a situação.
Nessa medida, de acordo com os elementos carreados até esse momento, é acertada a decisão de manutenção das visitas supervisionadas no CAFAP.
Deve, por isso, ser julgado improcedente o recurso e manter-se a decisão recorrida. (…).».
4.
Notificada a progenitora das alegações do progenitor (ref. 13255158) e das contra-alegações apresentadas pelo MP (135445111) aquela silenciou.
5.
Concedidos os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.
Os factos com relevância para a decisão do recurso são os constantes deste relatório e os que adiante se assinalarão.
II. Análise do recurso
1.
O apelante invoca como fundamentos do recurso a sua discordância relativamente à valoração dos elementos probatórios que fundamentaram a manutenção do regime de visitas, alegando que o constante do processo crime não autoriza tal decisão, e os demais elementos carreados para os autos são reveladores que os factos participados pela progenitora são infundados.
Depois salienta que as alusões insertas nos relatórios de perícia psicológica e de natureza sexual (constantes do processo crime) enfermam de incorreção metodológica, estando inquinados de ausência de rigor técnico e científico, conforme parecer que o apelante junta com as suas alegações.
Por fim, o recorrente considera padecer a decisão recorrida de falta de fundamentação.
2.
O presente recurso foi interposto da decisão provisória proferida em 10-12-2024, que indeferiu a alteração do regime provisório instituído em 12-12-2023 e manteve as visitas do pai à criança supervisionadas pelo CAFAP (de duas horas por semana).
O apelante progenitor considera, todavia, não existir fundamento que alicerce o sentido da decisão recorrida face à globalidade de elementos constantes do processo dos quais resulta que (cf. conclusão 15):
1- Nenhum elemento indicia a existência na criança de lesão física, trauma ou memórias compatíveis com os relatos efetuados pela progenitora;
2- Os relatórios da perícia de natureza sexual e o da perícia médico-legal psicológica, que instruem o processo de Inquérito, enfermam de incorreção de metodologia e estão inquinados de ausência de rigor técnico e científico, por falta de fundamentação teórica e/ou empírica para a análise de resultados obtidos com as provas aplicadas em contexto forense;
3- O registo áudio apresentado pela progenitora não foi objeto de perícia técnica seja, quanto à sua fidedignidade de tempo, modo e lugar, seja de análise sobre a modelação e sugestionabilidade que o discurso e conduta da progenitora inflete no filho aquando de tal registo.
Acresceria, na perspetiva do arguido, resultar provado que:
4- No processo com o n.º 3046/23.7... (ainda em sede de Inquérito) até à presente data não foi deduzida qualquer acusação (conclusão 10);
5- Nesse Inquérito já foi, por duas vezes, recusada, pelo Ministério Público a constituição do apelante como arguido, por não ser considerado interveniente no mesmo.
6- Das declarações da criança produzidas neste processo de RRP não resultou a ocorrência de factos de natureza sexual entre pai e filho, tal como admitido pelo tribunal (conclusão 7);
7- Das visitas realizadas no CAFAP ressalta a existência de cumplicidade e afetividade entre a criança e o progenitor, não havendo qualquer recusa por parte daquele em estar na presença deste, e da verbalização do filho pretender a companhia do pai e manifestar ensejos de com ele conviver, bem como com os demais familiares (irmã, tios, e avó paterna) fora daquele espaço (conclusão 9).
Salienta o recorrente que a decisão recorrida de manutenção do regime provisório se fundamentou tão só na pendência do procedimento criminal despoletado pela progenitora em momento imediatamente anterior à propositura do presente processo de RRP (por pretenso abuso de natureza sexual do progenitor relativamente ao filho).
Analisando o despacho recorrido o Tribunal
a quo,
não se pode deixar assinalar que o mesmo se mostra suficientemente fundamentado quanto às razões que conduziram à manutenção do regime provisório anteriormente fixado, a saber:
- A circunstância de o relatório pericial médico legal no âmbito da psicologia não afastar a possibilidade da presença de abusos quando afirma que se consegue identificar alterações psicológicas, sociais e físicas que em conjunto com a presença de comportamento bizarros de natureza sexual permitem classificar como possível a existência de abusos de natureza sexual, o que aponta no sentido de que caso haja contactos do menor com o pai os mesmo ocorram com alguma cautela que mais não seja até melhor luz se fazer sobre a situação.
- O interesse da criança reclama alguma precaução em tais contactos posto que os termos do relatório já referido não deixa de levantar algumas interrogações quanto a eventuais abusos que reclamarão a proteção do menor no contexto em que se encontra.
Assim, ao contrário do alegado pelo progenitor não se pode concluir pela falta de fundamentação do despacho recorrido.
Em todo o caso, tendo em consideração a restante fundamentação constante da mesma decisão provisória (cf. I. ponto 1 deste Acórdão) e, ainda, os elementos existentes do processo não se pode deixar de notar que:
- A presente ação de regulação do exercício das responsabilidades foi intentada, em 8-11-2023, pela requerente mãe contra o requerido progenitor, relativamente ao filho de ambos, nascido em ...-...-2018, relatando factos passíveis de configurar a prática de crimes de violência doméstica e de abuso sexual na pessoa da criança por parte do requerido.
- Em 12-12-2023 foi fixado um regime provisório no qual, com base no relatado pela progenitora a fls. 2 e segs. e 25 e segs. e atendendo ao teor de fls. 33 e 49 segs., o Tribunal concluiu pela existência de elementos perturbadores e resolveu fixar a residência da criança em exclusivo junto da mãe sem fixação de regime de visitas entre a criança e o pai atenta a eventualidade da existência de contactos de natureza sexual entre o progenitor e o filho.
- Depois em 18-03-2024 a criança foi ouvida pelo tribunal, tendo o julgador concluído que das declarações da criança não se extraíam quaisquer atos do pai sobre o filho de natureza sexual e que a criança revelou ter presente o dissídio existente entre os pais e mostrou abertura para voltar a contactar com o pai (cf. despacho judicial de 18-03-2024).
- Os progenitores, entretanto, alcançaram entendimento na sequência do qual o pai almoçou, no dia 19-03-2024 com o filho, na companhia da tia paterna da criança, indo buscá-lo à escola no termo das atividades letivas da manhã;
- Na sequência do pedido dirigido ao CAFAP foram iniciados em 11-06-2024 contactos do pai à criança na presença dos técnicos, tendo os intervenientes sido assíduos e pontuais.
- O CAFAP assinalou que as visitas entre o filho e o progenitor decorreram de forma perfeitamente normal havendo vontade de a criança estar com o pai e não havendo igualmente reporte de situações de natureza sexual que tivessem decorrido no contexto de tais visitas, tendo sido apontada a possibilidade de uma expansão das visitas;
- Depois em 10-10-2024 o CAFAP voltou a informar que nos encontros semanais com duração de 120 minutos a criança mostrava-se sempre entusiasmada por ver o progenitor, procurando-o, assim que chegava à sala para o abraçar e no decorrer dos encontros familiares procurava o contacto físico com o progenitor (colo; abraços e outras manifestações de afeto) sendo o pai bastante adequado em todas as brincadeiras criadas em conjunto. O CAFAP fez notar que embora a duração do encontro familiar fosse de 120 minutos a criança continuava a mostrar resistência em ir embora, mantendo temas de diálogo e brincadeiras com o progenitor para prolongar as visitas. Verbalizando inclusive vontade de ficar mais tempo com o progenitor fora do centro do CAFAP (andar de mota; cozinhar, partilhar refeições com o pai e elementos da família com a irmã, o padrinho ou a avó). Tendo sido observado cumplicidade e afetividade entre a criança e o progenitor, não havendo qualquer recusa por parte da criança em estar na presença do progenitor.
- A progenitora em 15-11-2024 juntou um áudio ao processo com a respetiva transcrição tendo esclarecido ter sido realizada por ela própria e na qual colocou questões à criança para que esta falasse sobre o suposto abuso.
- Em 28-11-2024 apesar de o progenitor ter solicitado a fixação de visitas ao filho na casa da avó paterna e na presença da tia paterna, sugerindo que as mesmas ocorressem dois sábados das 10:00 às 18:00 horas com entrega na casa da avó paterna e recolha na mesma, o tribunal manteve as vistas via CAFAP, sem prejuízo de os progenitores poderem acordar em outros contactos.
Tendo em consideração o referido cumpre apreciar se, no presente momento processual se se justificava um alargamento provisório dos convívios da criança com o pai, perante a pendência de um processo crime onde se investiga um eventual abuso sexual sobre a criança e no qual foi realizado um relatório pericial em que essa possibilidade é admitida face aos comportamentos sexualizados da criança (que se desconhecem quais sejam, nem perante quem foram exteriorizados ou quem os presenciou – o relatório é dúbio quanto a essa matéria).
No referido processo de Inquérito com o n.º 3046/23.7... intentado no ano de 2023 no qual se investiga a prática de crime de natureza sexual na pessoa da criança o progenitor até à data não foi constituído arguido.
Tendo decorrido, entretanto, mais de um ano desde que se iniciaram os contactos da criança com o pai no CAFAP e revelando o CC, agora com seis anos de idade (nasceu a ...-...-2018), interesse em almoçar com o pai e manter com ele contactos fora do CAFAP bem como a restante família e sendo evidente a cumplicidade e afeto entre a criança e o pai, não tendo, por outro lado, este sido constituído arguido e sujeito a qualquer medida coativa (cf. artigo 40.º, n.º 9 do RGPTC) justifica-se que, no interesse superior da criança seja respeitada e considerada a sua opinião e vontade, embora salvaguardando a sua segurança, face às suspeitas lançadas sobre a pessoa do progenitor na sequência do conflito parental determinando-se, que tal como sucedeu no dia do pai (em 19-03-2024) que:
- A criança uma vez por semana almoce com o pai na presença da avó paterna de acordo com os horários e interesses daquela (ex: terça-feira);
- Sem prejuízo do referido e por ocorrer risco de incumprimento do ora decidido determina-se que haja acompanhamento da execução do regime ora estabelecido pelos serviços de assessoria técnica, até à fixação de um regime definitivo (tudo nos termos do artigo 40.º, n.º 6 do RGPTC);
- Os serviços de assessoria técnica informarão o tribunal sobre a forma como decorre a execução da decisão agora fixada, com periodicidade semanal, sem prejuízo de articulação com o CAFAP.
- A criança continuará a manter contactos com o pai no CAFAP de acordo com o delineado por esta instituição;
O regime agora fixado não inviabiliza, naturalmente, o Tribunal
a quo
de ir alargando o regime de convívios do pai à criança de acordo com os interesses desta e na sequência das informações semanais prestadas pelos serviços de assessoria técnica.
4 – Dispositivo.
Pelo exposto, acordam os juízes da secção cível deste Tribunal da Relação em julgar procedente parcialmente o recurso de apelação interposto, alterando-se a decisão provisória recorrida, fixando-se quanto ao regime de convívios o seguinte:
1- A criança uma vez por semana almoçará com o pai na presença da avó paterna de acordo com os horários e interesses daquela com recolha e entrega em moldes semelhantes aos ocorridos no dia do pai do ano de 2024 (ex: terça-feira);
2- Sem prejuízo do referido, por ocorrer risco de incumprimento do ora decidido determina-se que haja acompanhamento da execução do regime ora estabelecido pelos serviços de assessoria técnica, até à fixação de um regime definitivo (tudo nos termos do artigo 40.º, n.º 6 do RGPTC);
3- Os serviços de assessoria técnica informarão o tribunal sobre a forma como decorre a execução da decisão agora fixada, com periodicidade semanal, sem prejuízo de articulação com o CAFAP.
4- A criança continuará a manter contactos com o pai no CAFAP de acordo com o delineado por esta instituição;
5- Em tudo o mais mantém-se a decisão provisória proferida.
O regime agora fixado não inviabiliza que o Tribunal
a quo
defina horários e locais de recolha e entrega da criança bem como alargue o regime de convívios do pai à criança de acordo com os interesses desta e na sequência das informações semanais prestadas pelos serviços de assessoria técnica.
Sem custas.
Évora 25-06-2025.
Beatriz Marques Borges
Rosa Barroso
Carla Francisco
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TRE
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https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/5687341f2127dd1080258cc20045c47d?OpenDocument
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1,740,355,200,000
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REVOGADA
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4557/24.2T8MTS-A.P1
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4557/24.2T8MTS-A.P1
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FÁTIMA ANDRADE
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I - Requisito da admissibilidade do pedido a formular ao abrigo do procedimento cautelar previsto no artigo 409º do CPC é, no que ora releva, a pendência de ação de divórcio sobre a qual o legislador pressupõe a existência de uma situação de conflito e consequente presumido receio de extravio ou ocultação de bens. Bens comuns, ou bens próprios sob a administração do outro cônjuge.
II - Consequentemente, a admissibilidade do pedido de arrolamento a formular neste âmbito, não está dependente da posterior instauração de processo de inventário para partilha, o qual pressupõe a existência de bens comuns, in casu inexistentes.
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[
"AÇÃO DE DIVÓRCIO",
"ARROLAMENTO"
] |
Processo nº. 4557/24.2T8MTS-A.P1
3ª Secção Cível
Relatora – M. Fátima Andrade
Adjunta – Ana Olívia Loureiro
Adjunto –Manuel Fernandes
Tribunal de Origem do Recurso – T J Comarca do Porto – Jz. de Família e Menores de Matosinhos
Apelante/ AA
Apelada/ BB
Sumário:
………………………………
………………………………
………………………………
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I- Relatório
i
[1]
- AA instaurou contra BB
a 24/09/2024
ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, a qual foi convertida em divórcio por mútuo consentimento
em diligência ocorrida a
19/11/2024
[2]
.
Diligência em que as partes declararam:
“1 - Não existem filhos menores.
2 – Não existem animais de companhia.
3 – Não existem bens comuns a partilhar;
4 - Prescindem mútua e reciprocamente de alimentos.”
Quanto à utilização da casa de morada de família tendo requerido prazo para tentar chegar a acordo. O qual foi concedido, sendo suspensa a instância por 30 dias.
A 27/12/2024 as partes impetraram pela prorrogação da suspensão da instância, a qual foi concedida por mais 30 dias em 10/01/2025.
E, em novo requerimento apresentado a 03/02/2025, requereram as partes de novo a prorrogação da suspensão da instância, a qual foi concedida por mais 30 dias em 06/02/2025.
ii- Em 30/10/2024,
o requerente AA
instaurou
, por apenso aos autos de ação de divórcio,
o presente procedimento cautelar especificado de Arrolamento Especial, nos termos do artigo 409º do CPC,
requerendo pela sua procedência:
“o arrolamento dos bens descritos no artigo 1º, nomeando-se o Requerente seu fiel depositário.”
Para tanto e em suma alegou:
- Ser o dono e legítimo possuidor dos bens móveis descritos no artigo 1º do requerimento inicial;
- Tendo casado com a requerida sobre o regime imperativo de separação de bens em 13/06/2015, instalaram a casa de morada de família na fração BO descrita no artigo 3º do R.I.
- Sendo os bens em causa da propriedade exclusiva do requerente, está este impedido de aceder à casa que foi casa de morada de família desde o dia 22/04/24.
Tendo já solicitado a entrega dos bens à requerida, esta não fez;
- Os bens, para além de grande valor estimativo para o Requerente, têm valor venal significativo, superior a € 30.000,00 no seu conjunto:
- A conduta da Requerida é de modo a que o Requerente tenha receio, fundado e justo, que aquela extravie, oculte ou dissipe os bens que pertencem ao Requerente, tendo o mesmo interesse na conservação dos bens e dos seus documentos pessoais;
- A lei dispensa até a prova do justo receio de extravio, ocultação ou dissipação, antes os presumindo jure et de jure, face ao que considera ser recorrente nas situações de divórcio, demonstrativas desses comportamentos ilícitos;
- Este arrolamento especial é o meio processual próprio, na dependência e como incidente da ação de divórcio, para arrolar bens próprios do cônjuge que estejam sob administração do outro, como é o caso.
- Face à conduta da Requerida, que lhe privou o acesso à casa e aos seus bens por decisão unilateral e se recusa a proceder à entrega destes ao Requerente, existe manifesto inconveniente em que a Requerida seja nomeada depositária destes mesmos bens. Tanto mais quando não são objeto de seguro multirrisco que cubra o risco de extravio ou perecimento, evitando razões para recear pela efetiva dissipação de bens na pendência da ação principal.
Finalmente requereu a não audição prévia da requerida.
Não audição prévia da requerida que foi deferida por decisão de 20/11/2024.
*
Tendo chegado a ser agendada audiência para produção da prova oferecida pelo requerente, veio, entretanto, a ser proferida decisão, apreciando o mérito do requerido e decidindo a final
“Indefiro liminarmente o arrolamento requerido por AA, porquanto o pedido é manifestamente improcedente - art.º 234.º-A, n.º 1, do C. P. Civil, por referência à al. b), do n.º 4, do art.º 234.º do mesmo código.
Fixo o valor do incidente em € 30.000,01 (trinta mil euros e um cêntimo)”
Consequentemente dando sem efeito a diligência para produção de prova previamente agendada.
*
Notificado o requerente do assim decidido, interpôs recurso de apelação, tendo apresentado motivação, formulando a final as seguintes
CONCLUSÕES
“1ª. O arrolamento especial previsto no art. 409º nº 1 do CPC pode ter por objeto bens próprios de um dos cônjuges que estejam sobre a administração do outro.
2ª. O arrolamento especial previsto no art. 409º nº 1 do CPC não é dependente de um eventual processo de inventário, o que no caso dos autos não pode ter lugar porque Recorrente e Recorrida são casados sob o regime imperativo da separação de bens.
3ª. O arrolamento especial previsto no art. 409º nº 1 do CPC é dependente da ação de divórcio, sendo que no caso dos autos, o mesmo foi incidente da ação de divórcio já instaurada pelo Recorrente.
4ª. É indiferente, do ponto de vista legal, se os bens pertencentes só a um dos cônjuges e sob a administração do outro, serem, ou não, insuscetíveis de produzirem frutos, porquanto administrar não é apenas cuidar de que as coisas produzam frutos ou curar da colheita dos frutos, sendo que atos de conservação, limpeza e guarda são típicos e inerentes à administração das coisas.
5ª. Ainda assim, os bens móveis cujo arrolamento o Recorrente requereu, são suscetíveis de produzirem frutos civis, rendas que constituam contrapartida do gozo concedido no âmbito de um contrato de aluguer.
6ª. A administração por um cônjuge de bens do outro, pode ser lícita, consentida, ou ilícita, quando o cônjuge administrador não tenha esses poderes, e os cônjuges a quem os bens pertencem se oponha, verificando-se, neste caso, situação de administração de facto dos bens do outro equiparável por lei à posse de má-fé, nos termos do disposto no art. 1681º nº 3 2ª parte.
7ª. Tendo o Recorrente alegado que os bens cuja arrolamento requereu lhe pertencem em exclusivo, por os ter adquirido, quer derivadamente, quer originariamente, e que o seu cônjuge se encontra a administrá-los contra a sua vontade e com a sua oposição, impedindo o Recorrente de o efetuar, através da mudanças das fechaduras da casa onde os bens se encontram e da recusa em os entregar, assiste-lhe o direito de requerer, como fez, o arrolamento desses bens, como incidente do divórcio que havia instaurado, arrolamento esse que é especial, nos termos do art. 409º do CPC, prescindindo a lei da demonstração do justo receio de dissipação ou extravio dos mesmos.
8ª. Pelo exposto, decidindo de forma contrária e indeferindo liminarmente o arrolamento requerido, a sentença impugnada, violou, fazendo menos feliz interpretação e aplicação, o disposto nos artigos 409º do CPC e 1678º, 1681º nº 3 e 1735º do CC, pelo que deve ser revogada.
Termos em que, deverá o recurso ser julgado procedente e revogada a sentença impugnada, assim se fazendo JUSTIÇA.”
*
O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata e efeito meramente devolutivo
[artigos 644º nº 1 a). 645º nº1 d) e 647º nº 3 d) do CPC].
Foram dispensados os vistos legais.
*
II- Âmbito do recurso.
Delimitado como está o recurso pelas conclusões das alegações, sem prejuízo de e em relação às mesmas não estar o tribunal sujeito à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito nem limitado ao conhecimento das questões de que cumpra oficiosamente conhecer – vide artigos 5º n.º 3, 608º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4 e 639º n.ºs 1 e 3 do CPC – resulta das formuladas pelo apelante ser
questão a apreciar:
se o alegado pelo requerente é suscetível de preencher os pressupostos do procedimento especial de arrolamento instaurado por apenso e como incidente da ação de divórcio.
***
III- Fundamentação.
Para apreciação da pretensão formulada, releva o circunstancialismo processual supra relatado.
*
***
Apreciando e conhecendo.
O presente procedimento cautelar de arrolamento especial foi instaurado ao abrigo do disposto no artigo 409º do CPC, como incidente tramitado por apenso aos autos de processo de divórcio ainda pendente de decisão.
Preceitua este normativo legal, no que ora releva:
“1- Como preliminar ou incidente da ação de separação judicial de pessoas e bens, divórcio, declaração de nulidade ou anulação de casamento, qualquer dos cônjuges pode requerer o arrolamento de bens comuns, ou de bens próprios que estejam sob a administração do outro.
(...)
3 - Não é aplicável aos arrolamentos previstos nos números anteriores o disposto no n.º 1 do artigo 403.º.”
A exclusão do previsto no nº 1 do artigo 403º - ou seja a exigência da alegação e prova de que existe
“justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens, móveis ou imóveis, ou de documentos”
para a procedência do arrolamento especial peticionado
-
tem subjacente o conhecimento pelo legislador do reflexo dos conflitos conjugais no modo como cada um dos cônjuges se passa a comportar relativamente aos bens comuns, ou aos bens próprios do outro colocados sob a sua administração. Levando à “presunção”
[3]
“juris et de jure” do “periculum in mora”, quer no plano da prova quer da própria alegação, evitando adicionais motivos de conflito entre os cônjuges.
Ao requerente do arrolamento especial previsto no artigo 409º do CPC, como dependência ou incidente de ação de divórcio, basta-lhe, por tal, alegar a existência de bens comuns ou de bens próprios sob a administração do outro.
Estando dispensado da alegação e prova do periculum in mora.
É certo, tal qual refere a decisão recorrida, que in casu o divórcio instaurado pelo requerente contra a requerida foi em sede de tentativa de conciliação convertido em divórcio por mútuo consentimento, então ali tendo ficado a constar, quanto às questões a que alude o artigo 994º do CPC e em concreto quanto aos bens, inexistirem bens comuns. Estando a instância suspensa a requerimento das partes com vista a tentarem chegar a acordo
“quanto ao destino da casa de morada de família”
, sita em Guimarães.
Casa à qual alega o requerente, deixou de ter acesso por a tal impedido pela requerida desde 22/04/24 e onde se encontram os bens que descreveu na p.i. e cujo arrolamento peticionou, uma vez que sendo de sua única e exclusiva propriedade, aos mesmos não tem acesso nem a requerida lhos entrega. Apesar de a tal já ter sido instada.
A alegação enquadra-se precisamente no, pelo legislador, presumido conflito entre os cônjuges na pendência da ação de divórcio que pode conduzir à prática de atos suscetíveis de colocar em crise os direitos do cônjuge interessado – pela ocultação, dissipação ou extravio quer de bens comuns quer bens próprios do outro cônjuge sob a administração do outro:
Realça-se a conjunção
“ou”
que indica alternativa ou opção ínsita no nº 1 do artigo 409º do CPC:
“
1 - Como preliminar ou incidente da ação de separação judicial de pessoas e bens, divórcio, declaração de nulidade ou anulação de casamento, qualquer dos cônjuges pode requerer o arrolamento de bens comuns,
ou
de bens próprios que estejam sob a administração do outro
”.
O arrolamento geral – vide artigo 403º - visa assegurar a manutenção de bens tidos por litigiosos, salvaguardar a sua dissipação e extravio, enquanto a definição da sua titularidade está em discussão. É igualmente o meio de obter a descrição desses mesmos bens e respetiva avaliação.
Servindo depois o auto de arrolamento como descrição no inventário – vide artigo 408º nº 2 do CPC, caso ao mesmo haja lugar.
Estando em causa arrolamento como preliminar ou incidente da ação de separação judicial de pessoas e bens, divórcio, declaração de nulidade ou anulação de casamento, então tem aplicação o arrolamento especial previsto no já citado artigo 409º, com as especificidades indicadas no nº 3 deste mesmo artigo e já supra mencionadas.
Arrolamento que depende da invocação da existência de “bens comuns,
ou
de bens próprios que estejam sob a administração do outro
”.
In casu o requerente alegou serem os bens cujo arrolamento peticiona da sua exclusiva propriedade, bem como encontrarem-se sob a administração da requerida, contra sua vontade.
O fundamento do decidido indeferimento do requerimento inicial, mesmo antes de ter sido produzida qualquer prova, resultou do entendimento do tribunal a quo de que:
- os bens descritos pelo requerente se não enquadram na
“categoria de bens próprios sob a administração do outro cônjuge, pois são insuscetíveis de dar frutos”
;
- este procedimento visa acautelar o direito à justa partilha do património comum, in casu inexistente, atenta a declaração dos cônjuges efetuada na ata de tentativa de conciliação ocorrida no processo de divórcio, ainda pendente.
No que concerne ao argumento de que os bens descritos não são suscetíveis de dar frutos como pressuposto de poderem ser alvo de administração pelo outro cônjuge, não encontra o mesmo sustentação jurídica.
Atenta a definição de frutos constante do artigo 212º do CC, tanto são frutos os que provêm diretamente da coisa – frutos naturais (aqueles que podem ser separados da coisa principal, sem afetação da sua substância); como o são aqueles que a coisa produz em consequência de uma relação jurídica, “rendas ou interesses” – frutos civis.
Em abstrato, são os bens em causa suscetíveis de gerar frutos civis – basta pensar no seu aluguer (vide artigos 1022º e 1023º do CC), o qual constitui por definição um ato de administração ordinária, exceto quando for celebrado por prazo superior a 6 anos (vide artigo 1024º do CC).
Acresce que o conceito de administração, in casu dos bens próprios pelo outro cônjuge, tampouco está dependente desta capacidade de gerar frutos, civis ou naturais.
A administração de um bem inclui tanto os atos tendentes à sua frutificação normal, como à sua conservação. Incluindo esta a manutenção dos bens de acordo com critérios de razoabilidade, reparações de rotina e atos necessários a evitar que os bens se percam ou deteriorem
[4]
.
Neste pressuposto procede a crítica apontada à decisão recorrida quando afirma não serem os bens em questão suscetíveis de ser enquadrados na
“categoria de bens próprios sob administração do outro cônjuge, pois são insuscetíveis de dar frutos”
.
Afastado este argumento, analisemos o segundo argumento apresentado pelo recorrente como fundamento da crítica apontada à decisão recorrida. Defendendo que a sua pretensão formulada neste requerimento não está dependente da instauração de inventário e da partilha de bens subsequente ao divórcio.
O que, na verdade, foi o argumento decisivo afirmado pelo tribunal a quo, como resulta do trecho que infra deixamos reproduzido:
«Enquanto preliminar ou incidente de ação de divórcio, a providência de arrolamento, nos termos do artigo 409.°, visa acautelar o direito à justa partilha do património comum.
(...)
Importa salientar que o arrolamento pode ter como objeto, para além dos bens próprios do requerente que se encontrem na posse do outro cônjuge, os bens do casal a serem partilhados e “tem como finalidade garantir que tais bens existam no momento em que se efetue a partilha” .
Vale isto por dizer que, tendo em conta as suas finalidades especificas, não pode ser pedido o arrolamento de bens próprios do requerido, nem tão-pouco de bens de que o requerente e requerido sejam comproprietários, já que esses bens não podem ser objeto de partilha no âmbito de um processo de inventário subsequente à dissolução do casamento.
Ora, sendo os bens cujo arrolamento se requer, bens particulares, não podem ser objeto de arrolamento previsto com preliminar da ação de divórcio ou como incidente da mesma, uma vez que não podem ser objeto de partilha subsequente a divórcio, partilha essa que face ao declarado pelos cônjuges na tentativa de conciliação não haverá lugar após o decretamento do divórcio.»
O arrolamento previsto no artigo 403º do CPC é dependência da ação à qual interessa a especificação de bens ou a prova da titularidade dos direitos relativos às coisas arroladas (nº 1 do artigo 403º) e depende da verificação e demonstração pelo requerente do justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens, móveis ou imóveis, ou de documentos (nº 2 do artigo 403º).
Invocando o requerente ser proprietário de determinados bens que se encontram na posse ou detenção de terceiro e sobre os quais alegue recear o seu extravio, dissipação ou ocultação até que na ação a intentar seja definida a titularidade desses mesmos bens, é-lhe facultado o recurso ao procedimento cautelar de arrolamento previsto neste artigo.
Visa este procedimento, a que alude o artigo 403º do CPC, acautelar a manutenção dos bens litigiosos até que seja definida a titularidade dos mesmos, no âmbito da ação de que é dependência.
Seguindo a tramitação regulada nos subsequentes artigos 405º a 408º.
Dos quais se destaca o artigo 405º, o qual sobre a epígrafe “Processo para o decretamento da providência” disciplina:
“1 - O requerente faz prova sumária do direito relativo aos bens e dos factos em que fundamenta o receio do seu extravio ou dissipação; se o direito relativo aos bens depender de ação proposta ou a propor, tem o requerente de convencer o tribunal da provável procedência do pedido correspondente.
2 - Produzidas as provas que forem julgadas necessárias, o juiz ordena as providências se adquirir a convicção de que, sem o arrolamento, o interesse do requerente corre risco sério.”
A norma específica aplicável ao caso sub judice (artigo 409º) regula situações especiais em que o legislador presumiu “juris et de jure”, pelo conflito que usualmente lhes está subjacente, o periculum in mora quer no plano da prova quer no plano da alegação
[5]
.
E assim, quando em causa esteja ação de separação judicial de pessoas e bens, divórcio, declaração de nulidade ou anulação de casamento, como preliminar ou incidente das mesmas, pode qualquer dos cônjuges requerer o arrolamento de bens comuns,
ou
de bens próprios que estejam sob a administração do outro (nº 1 do artigo 409º), sem que tenha de provar, sequer alegar, o receio mencionado no nº 1 do artigo 403º, atenta a já mencionada presunção legal.
Os bens alvo do pedido de arrolamento previsto no artigo 409º do CPC, são tanto os bens comuns, como os bens próprios do requerente que estejam sob a administração do outro.
Requisito da admissibilidade do pedido a formular ao abrigo do procedimento cautelar previsto no artigo 409º do CPC é, no que ora releva, a pendência de ação de divórcio sobre a qual o legislador pressupõe a existência de uma situação de conflito e consequente presumido receio de extravio ou ocultação de bens. Bens comuns, ou bens próprios sob a administração do outro cônjuge.
Consequentemente, a admissibilidade do pedido de arrolamento a formular neste âmbito, não está dependente da posterior instauração de processo de inventário para partilha, o qual pressupõe a existência de bens comuns, in casu inexistentes.
Tais requisitos estão suficientemente alegados no requerimento inicial e como tal deveria a pretensão ter sido apreciada, com a produção da prova oferecida.
Concluindo, impõe-se revogar a decisão recorrida.
*
IV. Decisão.
Pelo exposto, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar totalmente procedente o recurso interposto, consequentemente revogando a decisão recorrida e ordenando a prossecução dos ulteriores termos processuais.
Custas pelo requerente.
Porto, 2025-02-24
Fátima Andrade
Ana Olívia Loureiro
Manuel Domingos Fernandes
_______________
[1] Este ponto 1 resulta da consulta eletrónica dos autos principais.
[2] A menção, na ata, ao ano de 2025 é uma evidente gralha.
[3] Cfr. António S. Abrantes Geraldes in “Temas da Reforma do Processo Civil”, IV volume, “Procedimentos Cautelares Especificados”, ed. Almedina de 2001, p. 269/270, ainda por referência ao anterior CPC, então artigo 427º, com idêntica redação ao atual artigo 409º em análise; bem como José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre in CPC Anotado, vol. II, 3ª edição em anotação ao artigo 409º - p. 198/199. Aqui se dando nota de que a “presunção” “juris et jure” do periculum in mora por abranger tanto o plano da prova como o da alegação, “não se trata rigorosamente de presunção”- vide p. 198.
[4]Sobre o conceito de conservação enquanto ato de administração, cfr. Pedro Pais de Vasconcelos e outro in “Teoria Geral do Direito Civil”, 9ª edição Almedina, p. 454.
[5] Vide Lebre de Freitas in CPC Anotado, vol. II, p. 198 e Marco Carvalho Gonçalves, in “Providências Cautelares”, 4ª edição Almedina, p. 266/267, citando também o anterior autor.
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TRP
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https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/e507697284e09b8d80258c4500516479?OpenDocument
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1,745,971,200,000
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NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO
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875/24.8PDVNG-A.P1
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875/24.8PDVNG-A.P1
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MARIA ÂNGELA REGUENGO DA LUZ
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I - Com o GPS
“os dados de localização existem porque o veículo está equipado com um sistema localizador de origem (ou mandado instalar pelo seu proprietário) visando acautelar a prontidão de socorro urgente e eficiente em caso de acidente e que, por isso mesmo, permitirá (pelo menos em tese) conhecer o paradeiro do mesmo.
II - Consequentemente, tais dados - à semelhança de outros armazenados nos equipamentos de segurança e ajuda ao condutor, como por exemplo a Via Verde - poderão ser obtidos pelo próprio ofendido, no âmbito dos direitos que lhe assistem enquanto dono da viatura, sem necessidade de prévia autorização judicial. É ele o titular dos dados não lhe podendo ser negado o direito de acesso.
(…)
III -
Porém a intervenção do juiz é exigível sempre que esteja em causa a junção a um processo penal de dados recolhidos por um GPS instalado em veículo pelo respetivo proprietário, entregues por este a pedido da Polícia Judiciária para fins de investigação criminal.
“Não havendo intervenção do juiz, retira-se a possibilidade de ponderação judicial da proporcionalidade da restrição do direito fundamental previsto no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição, de onde resulta a violação do disposto no artigo 18.º, n.º 2, da Lei Fundamental, porquanto inexiste o mecanismo processual destinado a tornar o juízo de proporcionalidade atuante, bem como processualmente efetivo e consequente.».
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[
"DADOS RECOLHIDOS POR GPS",
"INTERVENÇÃO DO JUIZ"
] |
Processo:
875/24.8PDVNG-A.P1
Acórdão deliberado em conferência na 1.ª secção do Tribunal da Relação do Porto
I - RELATÓRIO
No âmbito do inquérito supra referenciado, a correr termos pela ... do DIAP de Vila Nova de Gaia, dos Serviços do Ministério Público da Procuradoria da República da Comarca do Porto, por factos que, abstractamente considerados, poderão integrar o crime de furto qualificado, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos arts. 203º, n.º 1 e 204º, n.º 2, al. a), do Cód. Penal, relativamente ao veículo automóvel, Peugeot, modelo ..., com a matrícula ..-ZZ-.., pertencente à empresa “A..., Lda.”, o Ministério Público requereu ao Juiz de Instrução Criminal respectivo que se ordenasse a notificação do operador de telecomunicações Vodafone para fornecer a geolocalização do cartão ...99, desde o dia 09/12/2024, 20:00 horas, às autoridades policiais para apreensão imediata do veículo, nos termos do art. º178 n. º1, 2, 3, 5 e 6 do C.P.Penal.
Por despacho datado de 17/02/2025, tal pretensão foi indeferida por entender o juiz de instrução que o pretendido teria que ser requerido ao abrigo da Lei n. º32/2008 de 17/07
Inconformado com o decidido o Ministério Público interpôs recurso cuja motivação finaliza com as seguintes conclusões (transcrição):
“..(…). 1) O M°P° promoveu ao MM° Juiz que ordenasse à operadora de telecomunicações Vodafone que fornecesse a geolocalização do veiculo com matricula ..-ZZ-.. (furtado), cujo GPS se encontra associado ao numero ...99, porquanto a referida operadora recusa fornecer tal dado ao ofendido, alegando o "sigilo" que lhe é imposto pelo Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados;
2) O MM° Juiz indeferiu tal promoção, com o fundamento que, pretendendo o M°P° o fornecimento da localização celular do número de telemóvel, desde o dia 09/12/2024 até à presente data, deve esse pedido seguir o regime processual previsto na Lei 32/2008, algo que não se mostra demonstrado nos presentes autos ter sucedido.
3) É pois deste despacho, de fls. 15, que o M°P° interpõe recurso, com os seguintes fundamentos;
a) Os dados de localização, inseridos no âmbito de tráfego, são os dados tratados numa rede de comunicações eletrónicas que indicam a posição geográfica do equipamento terminal de um assistente ou de qualquer utilizador de um serviço de comunicações eletrônicas acessíveis ao publico. Mas só cabem dentro dos dados de localização, os autênticos dados de comunicação ou de trafego, isto é, aqueles que se reportam a comunicações efetivamente realizadas ou tentadas/falhadas entre pessoas;
b) Ora, o regime estabelecido pela Lei 32/2008, que fundamentou o despacho de indeferimento agora sob censura aplica-se à obtenção de dados correspondentes a comunicações já ocorridas e que se encontram preservados ou conservados, o que não está em causa nos presentes autos;
c) O que está em causa nos presentes autos é a possível localização de um veículo furtado, através de um mecanismo ligado a um telemôvel, pertencente a urna operadora de telecomunicações móvel, que recusa fornecer esse dado ao seu cliente, com o pretexto, que sendo um dado de trafego, nos termos do RGPD, sô fornecerá esses dados a pedido de Autoridade Judiciária (Juiz).
d) Pelo que, as regras da Lei que fundamentou o despacho sob censura não se aplicam, mas antes o disposto no art.º 187 n°1 e n°4 do CPP;
e) Que o MM° Juiz violou ao não deferir a pretensão do M°P°;
f) Assim, deve tal despacho ser revogado e ordenada a sua substituição no sentido de ordenar à VODAFONE que forneça para os autos os dados pretendidos, imprescindíveis à investigação.
Pois, assim, se fará Justiça!”
O M.mo JIC determinou os actos que deviam instruir o apenso de recurso e ordenou a subida dos autos a este Tribunal
ad quem
.
Nesta instância, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer no sentido da procedência do recurso.
Realizado exame preliminar e colhidos os vistos legais, vieram os autos à conferência que decorreu com observância do formalismo legal, nada obstando à decisão.
***
II – FUNDAMENTAÇÃO
Sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso, são apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar [v., Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Tomo III, 2ª ed., pág. 335 e Ac. do STJ de 19/6/1996, BMJ n.º 458, pág. 98].
Assim, no caso em apreço, a única questão suscitada é a
de saber qual o regime jurídico ao abrigo do qual deve ser formulada a solicitação de acesso ao sistema de GPS instalado no veículo furtado por força de contrato celebrado entre uma entidade privada (Vodafone) e o ofendido (proprietário do veículo furtado), o mesmo é dizer
– da verificação dos requisitos para a solicitação à operadora competente dos eventos de rede referentes ao sistema GPS de modo a localizar uma viatura furtada
.
***
O Ministério Público, em sede do requerimento alvo do teor do despacho recorrido, havia sustentado a sua pretensão nos seguintes termos (transcrição).
“
Localização através da tecnologia GPS (Global Positioning System)
Entre as 19:20 horas do dia 9/12/2024 e as 8:00 horas do dia 10/12/2024, desconhecidos e por meio não concretamente apurado, apropriaram-se do veículo da marca “PEUGEOT”, modelo ..., com a matrícula ..-ZZ-.. e n.º chassis ...30, no valor de 20.000 Euros, bem como dos bens existentes no seu interior (os cabos de carregamento do veículo, uma carteira de cor azul em pele de marca Emidio Tucci, no valor aproximado de 30 (trinta) Euros, um Cartão de Cidadão, um Cartão de Débito e um Cartão de Crédito, ambos do Banco Montepio, um Par de óculos de marca Mont Blanc no valor de 190 Euros, propriedade de AA e ainda mochila de cor cinza com um computador portátil de marca HP e respetivos componentes, um capacete e calçado de proteção, da propriedade da Empresa denominada A...), que se encontrava aparcado na Rua ..., ..., em ..., ..., incorrendo na prática de um crime de furto qualificado previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 202.º, al. a) e 204.º, n.º 1, al. a) e b) do Código Penal, com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias.
O participante desconhece quem praticou os factos participados, não foram colhidos vestígios com valor identificativo, não são conhecidas testemunhas dos factos, não foi possível a recolha de imagens de videovigilância e o veículo continua desaparecido, mas possui sistema de localização de veículos, associado ao cartão da Vodafone ...99 (conforme aditamento n.º 2 – RC ...74 de 15/01/2025), podendo-se, só por tal via, localizar-se, apreender-se e restituir-se o veículo ao seu proprietário.
Acresce que, quem se encontrar na posse do referido veículo, atenta a sua origem ilícita, será ou o agente do crime de furto qualificado ou do crime de recetação, sendo como tal suspeito, a individualizar (pessoa concreta, passível de individualização).
Estão verificados os pressupostos para a obtenção de dados de localização celular, nomeadamente, estão preordenadas à perseguição dos chamados crimes do catálogo [artigo 187.º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Penal], existe suspeita da prática do crime e tal meio de obtenção de prova respeita, in casu, o princípio de subsidiariedade (não há outro meio eficaz, menos gravoso, para alcançar o resultado probatório em vista), reveste grande interesse para a descoberta da verdade e para a prova e está circunscrita ao tempo em causa e ao(s) suspeito(s) em causa (detentor do veículo).
Nessa conformidade, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 187.º, n.º 1, a), 189.º, n.º 2 e 269.º, nº 1, e) do Código de Processo Penal e ainda dos artigos 18.º, n.º 1, al. b), n.º 2 e 3 da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro, promove-se que se ordene a notificação do operador de telecomunicações VODAFONE para, fornecer a geolocalização do cartão ...99, desde 9/12/2024, 20:00 horas, às autoridades policiais para a apreensão imediata do veículo da marca veículo da marca “PEUGEOT”, modelo ..., com a matrícula ..-ZZ-.. e n.º chassis ...30, nos termos do artigo 178.º, n.º 1, 2, 3, 5 e 6 do Código de Processo Penal.
Para o efeito, remeta os autos ao Mmo. Juiz de Instrução Criminal.(…)
”.
*
3. Por seu turno, o teor da decisão recorrida é o seguinte:
“Ressalvado o devido respeito por diferente opinião, aquilo que parece ser objectivo do Ministério Público é o fornecimento da localização celular do número de telemóvel indicado na promoção que antecede, desde o dia 09/12/2024 até à presente data.
Afigura-se, assim, a este Tribunal de Instrução Criminal que o peticionado pelo Ministério Público deve seguir
o regime processual previsto na Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho
, algo que não se mostra demonstrado nos presentes autos ter sucedido.
Assim sendo, e pelo menos por agora, vai indeferido o promovido pelo Ministério Público.(…).”
*
Apreciação do objecto do recurso.
Tendo presentes, quer a pretensão deduzida pelo Ministério Público no seu requerimento alvo da decisão recorrida, assim como subsequentes conclusões do recurso, verificamos que nestas últimas o Ministério Público defende que o regime estabelecido pela Lei 32/2008 que fundamentou o despacho recorrido de indeferimento aplica-se tão somente às comunicações já ocorridas e que se encontram preservados ou conservados, o que não está em causa nestes autos. Porque o que se pretendia com o requerimento alvo do despacho recorrido era a localização do veículo furtado através do mecanismo de GPS no mesmo existente dada a recusa da operadora Vodafone a fornecer esse dado de tráfego (de localização) ao proprietário do veículo e seu cliente, alegando que, tratando-se de uma violação do sigilo, carece de autorização judicial.
Entende o Ministério Público que, perante a recusa da operadora de fornecer os dados ao seu próprio cliente (sendo certo que foi contratada por este para lhe fornecer tais dados, entre outros), e porque não se coloca aqui qualquer questão de privacidade pois é aquele proprietário que pretende o acesso a tais dados para os fornecer aos autos, o regime jurídico atendível é o invocado no seu requerimento alvo do despacho recorrido.
Cumpre assim apreciar a seguinte questão:
–
a de saber qual o regime jurídico ao abrigo do qual deve ser formulada a solicitação de acesso ao sistema de GPS instalado no veículo furtado por força de contrato celebrado entre uma entidade privada (Vodafone) e o ofendido (proprietário do veículo furtado), o mesmo é dizer -
verificação dos requisitos para a solicitação à operadora competente dos eventos de rede referentes ao sistema GPS de modo a localizar uma viatura furtada
.
Para tanto importa chamar à colação os preceitos legais do Código de Processo Penal à luz dos quais o Ministério Público
solicitou autorização judicial para aceder aos dados de geolocalização acessíveis através do sistema GPS
instalado no próprio veículo furtado ao abrigo de um contrato de natureza civil e particular (sublinhados da autoria da ora relatora):
Artigo 187.º
Admissibilidade
1 - A intercepção e a gravação de conversações ou comunicações telefónicas só podem ser autorizadas durante o inquérito, se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter, por despacho fundamentado do juiz de instrução e mediante requerimento do Ministério Público, quanto a crimes:
a) Puníveis com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos;
b) Relativos ao tráfico de estupefacientes;
c) De detenção de arma proibida e de tráfico de armas;
d) De contrabando;
e) De injúria, de ameaça, de coacção, de devassa da vida privada e perturbação da paz e do sossego, quando cometidos através de telefone;
f) De ameaça com prática de crime ou de abuso e simulação de sinais de perigo; ou
g) De evasão, quando o arguido haja sido condenado por algum dos crimes previstos nas alíneas anteriores.
2 - A autorização a que alude o número anterior pode ser solicitada ao juiz dos lugares onde eventualmente se puder efectivar a conversação ou comunicação telefónica ou da sede da entidade competente para a investigação criminal, tratando-se dos seguintes crimes:
a) Terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada;
b) Sequestro, rapto e tomada de reféns;
c) Contra a identidade cultural e integridade pessoal, previstos no título iii do livro ii do Código Penal e previstos na Lei Penal Relativa às Violações do Direito Internacional Humanitário;
d) Contra a segurança do Estado previstos no capítulo i do título v do livro ii do Código Penal;
e) Falsificação de moeda ou títulos equiparados a moeda prevista nos artigos 262.º, 264.º, na parte em que remete para o artigo 262.º, e 267.º, na parte em que remete para os artigos 262.º e 264.º do Código Penal, bem como contrafação de cartões ou outros dispositivos de pagamento e uso de cartões ou outros dispositivos de pagamento contrafeitos, previstos no artigo 3.º-A e no n.º 3 do artigo 3.º-B da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro;
f) Abrangidos por convenção sobre segurança da navegação aérea ou marítima.
3 - Nos casos previstos no número anterior, a autorização é levada, no prazo máximo de setenta e duas horas, ao conhecimento do juiz do processo, a quem cabe praticar os actos jurisdicionais subsequentes.
4 - A intercepção e a gravação previstas nos números anteriores só podem ser autorizadas, independentemente da titularidade do meio de comunicação utilizado, contra:
a) Suspeito ou arguido;
b) Pessoa que sirva de intermediário, relativamente à qual haja fundadas razões para crer que recebe ou transmite mensagens destinadas ou provenientes de suspeito ou arguido; ou
c) Vítima de crime, mediante o respectivo consentimento, efectivo ou presumido.
5 - É proibida a intercepção e a gravação de conversações ou comunicações entre o arguido e o seu defensor, salvo se o juiz tiver fundadas razões para crer que elas constituem objecto ou elemento de crime.
6 - A intercepção e a gravação de conversações ou comunicações são autorizadas pelo prazo máximo de três meses, renovável por períodos sujeitos ao mesmo limite, desde que se verifiquem os respectivos requisitos de admissibilidade.
7 - Sem prejuízo do disposto no artigo 248.º, a gravação de conversações ou comunicações só pode ser utilizada em outro processo, em curso ou a instaurar, se tiver resultado de intercepção de meio de comunicação utilizado por pessoa referida no n.º 4 e na medida em que for indispensável à prova de crime previsto no n.º 1.
8 - Nos casos previstos no número anterior, os suportes técnicos das conversações ou comunicações e os despachos que fundamentaram as respectivas intercepções são juntos, mediante despacho do juiz, ao processo em que devam ser usados como meio de prova, sendo extraídas, se necessário, cópias para o efeito.
Artigo 189.º
Extensão
1 - O disposto nos artigos 187.º e 188.º é correspondentemente aplicável às conversações ou comunicações transmitidas
por qualquer meio técnico diferente do telefone,
designadamente correio electrónico ou
outras formas de transmissão de dados
por via telemática, mesmo que se encontrem guardadas em suporte digital, e à intercepção das comunicações entre presentes.
2 - A obtenção e junção aos autos de
dados sobre a localização celular
ou de registos da realização de conversações ou comunicações só podem ser ordenadas ou autorizadas, em qualquer fase do processo,
por despacho do juiz, quanto a crimes previstos no n.º 1 do artigo 187.º e em relação às pessoas referidas no n.º 4 do mesmo artigo.
A
rtigo 18.º da Lei 109/2009 de 15/09
Intercepção de comunicações
1 - É admissível o recurso à intercepção de comunicações em processos relativos a crimes:
a) Previstos na presente lei; ou
b)
Cometidos por meio de um sistema informático ou em relação aos quais seja necessário proceder à recolha de prova em suporte electrónico, quando tais crimes se encontrem previstos no artigo 187.º do Código de Processo Penal.
2 -
A intercepção e o registo de transmissões de dados informáticos só podem ser autorizados durante o inquérito, se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter, por despacho fundamentado do juiz de instrução e mediante requerimento do Ministério Público.
3 - A
intercepção pode destinar-se ao registo de dados relativos ao conteúdo das comunicações ou visar apenas a recolha e registo de dados de tráfego, devendo o despacho referido no número anterior especificar o respectivo âmbito, de acordo com as necessidades concretas da investigação.
4 - Em tudo o que não for contrariado pelo presente artigo, à intercepção e registo de transmissões de dados informáticos é aplicável o regime da intercepção e gravação de conversações ou comunicações telefónicas constante dos artigos 187.º, 188.º e 190.º do Código de Processo Penal.
Tendo em mente tal quadro legislativo, importa relembrar que a obtenção de dados das tecnologias GPS (Global Positioning System) ou “eCall” [instrumento introduzido nos veículos automóveis com base no Regulamento EU 2015/758 e que, com base nas coordenadas de GPS,
sabe precisamente onde se encontram as vítimas que precisam de auxílio em caso de acidente ou emergência médica], - sistemas que permitem determinar a localização geográfica do objecto/veículo onde são colocados
, com um elevado grau de precisão – ainda não se encontra directamente reguladas no nosso ordenamento jurídico processual penal e têm sido alvo de controvérsia doutrinária e jurisprudencial (nomeadamente no quadro laboral quando colocado nas frotas dos veículos das empresas). Tal problemática tem encontrado respostas diversas, entendendo uns que trata-se de um
método de obtenção de prova atípico
, abrangido pelo art. 125º, do Código de Processo Penal, e sujeito ao regime legal da localização celular prevista pelo art. 189.º n.º 2, do mesmo diploma legal ou, em determinadas circunstâncias ao regime da prova documental.
Neste sentido o entendeu Duarte Rodrigues Nunes em “A admissibilidade da obtenção, diretamente pelas autoridades, de dados de localização por meio de sistema GPS à luz do Direito processual penal português”, in Julgar, n.º 32, pp. 97 e ss. Concluiu então este autor “
que tal meio de obtenção de prova é admissível, como meio de obtenção de prova atípico, à luz do art. 125.º do CPP. Porém, de jure condito, considerámos que, por igualdade de razão face ao regime da obtenção de dados de localização celular diretamente pelas autoridades, este meio de obtenção de prova está sujeito ao regime das escutas telefónicas, embora levando-se em conta aquilo que possa resultar da circunstância de o art. 189.º, n.º 2, do CPP não operar uma remissão para a totalidade do regime do art. 187.º3. E concluímos, ainda, que, de jure condendo, pela pouca danosidade deste meio de obtenção de prova e justificando-se a sua previsão e regulamentação específicas, deveria ser adotado um regime muito similar ao do art. 14.º da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro
.
Posteriormente à publicação da obra referenciada este mesmo autor chama a atenção para a posição assumida pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, no Acórdão de 8 de maio de 2018
[1]
, Ben Faiza c. França (de 8 de maio de 2018)6, na parte em que versou sobre a obtenção de dados de localização por sistema GPS pelas autoridades (mediante a colocação de um recetor de GPS no veículo do arguido), considerou que ocorreu uma violação do art. 8.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem
[2]
num caso em que os Tribunais franceses haviam admitido a obtenção, em tempo real, de dados de localização por sistema GPS como meio de obtenção de prova atípico. Porém, conclui ainda assim que “
O entendimento plasmado no Acórdão Ben Faiza c. França não obsta a que, tal como entendemos no estudo referido em 3, se considere que a obtenção de dados de localização em tempo real, diretamente pelas autoridades, através de sistema GPS é admissível, de jure condito, no Direito português, nos termos do art. 125.º do CPP, como meio de obtenção de prova atípico, sendo-lhe aplicável, por analogia, o disposto no art. 189.º, n.º 2, do CPP
.”
Temos como certo é que o acesso aos dados transmitidos por um localizador instalado
na viatura de um suspeito/arguido
implica um grau de intromissão na respectiva privacidade, sendo tal acesso apenas legitimado após prévia autorização do juiz competente, de harmonia com a previsão normativa citada
[3]
. Neste sentido citamos o Acórdão do STJ de 24/10/2014, Proc. n.º 780/10.5PRT.S1-5ª Secção[disponível in
www.dgsi.pt
], segundo o qual
“É em função desse secretismo que o uso do GPS representa uma intromissão na vida privada, em consequência do que, à face da falada norma do nº 3 do artº 126º do CPP, as provas obtidas mediante a sua utilização só não são nulas e de valoração proibida se esse meio de obtenção da prova estiver previsto na lei.
E está.
Nos termos do artº 187º do CPP, a intercepção e gravação de conversações ou comunicações telefónicas é admissível, para além do mais que aqui não importa, se forem autorizadas por «despacho fundamentado do juiz de instrução», e «houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter».
Por sua vez o artº 189º, nº 1, estende o regime implementado no art. º187 acima citado às conversações ou comunicações transmitidas por qualquer outro meio técnico diferente do telefone, designadamente ao «
correio electrónico ou outras formas de transmissão de dados por via telemática (…) e à intercepção das comunicações entre presentes
».
E no seu o nº 2 estipula que: «
A obtenção e junção aos autos de dados sobre a localização celular ou de registos da realização de conversações ou comunicações só podem ser ordenadas ou autorizadas, em qualquer fase do processo, por despacho do juiz, quanto a crimes previstos no nº 1 do artigo 187º e em relação às pessoas referidas no nº 4 do mesmo artigo
».
Bruno de Carvalho Pereira, na sua tese “
O SISTEMA DE GEOLOCALIZAÇÃO GPS NO PROCESSO PENAL PORTUGUÊS Visão integradora ou atípica no quadro dos meios de obtenção de prova
”
[4]
, clarifica as diferenças técnicas dos dois sistemas – GPS e localização celular - do seguinte modo: “
A localização celular é obtida através de um sistema de antenas de transmissão de ondas rádio designadas por BTS (Base Transceiver System) que disponibilizam canais de onda, para que o tráfego comunicacional se possa fazer, sendo essa comutação assegurada e gerida por uma BSC (Base Station Controller) à qual estão alocadas várias BTS´s. Ora, cada uma das BTS´s dispõe de uma área de cobertura que poderá ser omnidireccional (cobrindo um raio de 360.º graus) ou sectorizada (normalmente em 3 (120.º) ou 4 sectores (90.º) de forma a permitir um fornecimento mais limpo do canal de onda dependente do posicionamento do transmissor móvel)…
As BTS´s, de acordo com a disponibilidade de banda e a intensidade do sinal (dependente das condições ambientais que poderão atrasar o sinal) emitido pela MS (Mobile Station – telemóvel), procedem à cedência do canal, reencaminhando o sinal à BSC, que tratará de estabelecer a ponte com a BSC responsável pela BTS onde se encontra o receptor da chamada. As BTS funcionam numa lógica de mosaico, com áreas de cobertura parcialmente sobrepostas - vide figura 2 - para facilitar o processo de transferência de sinal, em caso de sobrelotação do canal ou deficiência no sinal, podendo ter um raio maior ou menor face tipologia de área que cobrem – urbana (50 – 300mts) ou rural (pode ir até aos 20 km) (Pratas, 2009, p.10).
O processo de localização resume-se ao fornecimento do CGI (Cell Global Identity), que é, basicamente, o código identificativo da antena que captou o sinal da MS, normalmente a que está mais próxima daquele, e que nos permite obter a localização da mesma através dum software apropriado, já com codificações individualizadas para cada antena, ou então, numa forma mais prosaica, fornecendo as coordenadas de latitude e longitude da antena para depois serem inseridas num mapa (e.g Google maps). Ora, a única localização exacta (denominada por Cell-id) que temos corresponde à antena de telecomunicações que nos dará uma área, mais ou menos, extensa conforme o raio de cobertura da antena – urbana ou rural – e o tipo de antena captadora – omnidireccional ou sectorizada. A título exemplificativo, se a antena fornecedora do sinal for uma antena omni-direccional, que irradia o mesmo sinal em todas as direcções do raio de cobertura, e se esta estiver a cobrir uma zona rural com imaginemos 10 km de raio, a MS poderá localizar-se numa área de 314 km2 (presumindo a regularidade dum círculo perfeito – Área = π * r2) correspondente à totalidade da área de cobertura. A diferença (significativa) das antenas sectorizadas é, como o próprio nome indica, delimitar a área de cobertura da antena, sendo tanto menor conforme a proximidade entre antenas. É por isso que na melhor das hipóteses, a variação da precisão pode variar, em absoluto, entre “100mts e 20km” segundo Broering (2010, p. 28) e, em média, “243-248mts para locais urbanos e 755-785mts para áreas rurais” segundo Cordeiro (2009, p. 7). Esta variação pode ser encurtada se o sistema de BTS estiver provido de um equipamento de cálculo algorítmico, o AoA (Angle of Arrival) que permite às mesmas fazerem um cálculo estimativo do ângulo daquela à MS, ou o ToA (Time of Arrival) que permite fazer uma estimativa de distância entre aquela e a MS111, através do tempo de resposta a um impulso da BTS, visando ambas uma redução substancial da área provável onde a MS se encontra. Este cálculo, será tanto mais preciso quanto o número de BTS envolvidas no processo e a desobstrução do feixe de emparelhamento. Limitador será sempre o número de BTS, cujas áreas de cobertura abarquem o sinal da MS, raramente em maior número que 3 e mais comum em áreas urbanas onde a malha de antenas é mais condensada (Broering, 2010)….
O único problema neste sistema é a determinação estimada do ângulo ou do tempo entre a BTS e a MS que poderá, como já vimos, por circunstâncias exógenas ao sistema, perturbar o cálculo, aumentando a margem de erro que se reflectirá, necessariamente, na precisão do cálculo.
(…)
Por sua vez o GPS (Global Positioning System) constitui um sistema tecnologicamente mais evoluído, concebido unicamente para cálculo da distância dos receptores GPS na terra, permitindo aferições de localização muito mais rigorosas fidedignas. O teorema de cálculo é, exactamente, o mesmo que já explicitámos para as antenas BTS. A grande diferença está no relógio atómico dos satélites, que consegue cálculos de distância, com uma margem de erro mínima, pela sua capacidade de acerto temporal feita ao milissegundo – conhecido como tempo GPS - assegurada por uma permanente comunicação bilateral com estações terrestres espalhadas por todo o globo. Ademais, a rotação orbital, permite, normalmente, que os receptores terrestres tenham uma média de 3/4 satélites disponíveis, com os quais podem emparelhar, podendo em algumas zonas chegar aos 13 (Broering, 2010). Sendo o cálculo da distância quase exacto, o resultado do cruzamento trigonométrico ou triangulação, irá permitir obter um resultado, igualmente, próximo do real, sendo até possível obter dados sobre a altitude se o cálculo envolver, no mínimo, dados de 4 satélites.(…)
No fim, importa reter apenas que o grau de precisão média se situa nos 2.5-6mts, podendo, com melhoramentos nos sistemas de correcção e com o aumento de estações de leitura e calibração pelo globo, chegar a pouco mais de um metro.
Existe uma outra grande diferença que se refere ao provider do serviço e que poderá dificultar mais o acesso remoto à informação. Enquanto que a obtenção de dados sobre a localização celular é feita junto das operadoras nacionais, que nos termos da Lei 32/2008, art. 5.º n.º 2, conserva apenas dados e elementos inerentes a comunicações realizadas, pese embora detenha a capacidade de detectar MS bastando que estas emitam sinal rádio113, i.e., que estejam ligados ou em função stand-by, designados por muitos como dados não autênticos da comunicação114 (Andrade, 2009; Andrade in Pratas, 2009), não pressupondo um acto de «comunicação» entre pessoas mas sim entre máquinas. Ora, no caso do GPS115, sendo aquele monopolizado pelos EUA, será difícil proceder a uma «intercepção»116 do sinal, se não existir uma cedência desses dados por parte do provider, restando apenas a possibilidade de aceder a eles por via indirecta, ou seja, através do canal de telecomunicações no caso dos telemóveis, acedendo ocultamente ao conteúdo do mesmo e criando um espelho através da instalação de uma aplicação oculta que nos irá fornecendo a informação sobre a localização GPS do aparelho. A dificuldade, e, ao mesmo tempo, a perigosidade desta acção é delimitar o acesso apenas à informação pretendida, deixando sem mácula toda a restante informação contida no telemóvel (dados de tráfego, dados de conteúdo in live e armazenados na memória). Já no que toca a GPS´s instalados em viaturas, apenas será possível fazer isto caso o mesmo seja um sistema hibrido que esteja ao mesmo tempo conectado à rede de telecomunicações, de outro modo é tecnicamente impossível. Face ao que apreendemos, dúvidas não restam que a localização feita por GPS é mais insidiosa que a localização celular como a conhecemos face à rigorosidade e qualidade da informação que permite obter.(…)”
Partindo dos conceitos ora clarificados, justifica-se adoptar uma interpretação extensiva que permita considerar que aquela mesma disposição legal abrange os dados de localização
de um alvo
obtidos
por GPS
(sistema de localização com recurso a satélites) dada a similitude de alcance dos dois meios de obtenção da prova (e apesar da eficácia do GPS ser manifestamente superior), isto é, a localização celular (recorre à localização por estação base, a estação base da operadora calcula a distância até um telemóvel para determinar a localização do telemóvel) e o GPS. Tal preceito deverá abarcar qualquer método científico e tecnológico que permita a geolocalização, entendendo-se esta como o conceito geral de localizar algo ou alguém no mapa terrestre, utilizando diferentes tecnologias, incluindo o GPS.
Porém, como já anteriormente foi salientado, no caso dos autos o acesso aos dados transmitidos realiza-se, não através de um localizador instalado na viatura de um suspeito/arguido mas através de um localizador
instalado no veículo furtado com o consentimento do seu proprietário e no quadro de um contrato de prestação de serviços, entre os quais, a localização do mesmo
em tempo real.
No caso concreto, os dados a que pretende aceder-se não resultam de qualquer prévia actividade de investigação nem por esta são originados.
Os dados de localização existem porque o veículo está equipado com um sistema localizador de origem
(ou mandado instalar pelo seu proprietário) visando acautelar a prontidão de socorro urgente e eficiente em caso de acidente e que, por isso mesmo, permitirá conhecer o paradeiro do mesmo.
E assim sendo, tais dados - à semelhança de outros armazenados nos equipamentos de segurança e ajuda ao condutor, como por exemplo a Via Verde - poderão ser obtidos pelo próprio ofendido, no âmbito dos direitos que lhe assistem enquanto dono da viatura, sem necessidade de
prévia autorização judicial
. É ele o titular dos dados não lhe podendo ser negado o direito de acesso. O Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra datado de 18 de Maio de 2022 (Pº 171/21.2GGCBR-A.C1) salientou que:
«A Lei n.º 41/2004, de 18 de Agosto, refere-se ao tratamento de dados pessoais e à protecção da privacidade no sector das comunicações electrónicas, regulando o tratamento e a conservação desses dados, no contexto das relações estabelecidas entre as empresas fornecedoras de serviços de comunicações electrónicas e os seus clientes.Este diploma de 2004, que transpôs para a ordem jurídica nacional a Directiva n.º 2002/58/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Julho, relativa ao tratamento de dados pessoais e à protecção da privacidade no sector das comunicações electrónicas, versa sobre a regulamentação de serviços de comunicações e visa acautelar a protecção de dados dos clientes, afastando expressamente do seu âmbito de aplicação a prevenção, investigação e repressão de infracções penais, as quais são definidas em legislação especial, tal como estatui o seu artigo 1.º, n.ºs 4 e 5:«4. As excepções à aplicação da presente lei que se mostrem estritamente necessárias para a protecção de actividades relacionadas com a segurança pública, a defesa, a segurança do Estado e a prevenção, investigação e repressão de infracçõespenais são definidas em legislação especial.
5. Nas situações previstas no número anterior, as empresas que oferecem serviços de comunicações electrónicas acessíveis ao público devem estabelecer procedimentos internos que permitam responder aos pedidos de acesso a dados pessoais dos utilizadores apresentados pelas autoridades judiciárias competentes, em conformidade com a referida legislação especial».
Citamos, a este propósito, o Acórdão n.º 506/2024, da 1ª Secção do Tribunal Constitucional, de 28/06/2024
[5]
, no qual se decidiu, entre o mais e no que ao caso interessa:
a) Não julgar inconstitucional a norma contida no artigo 125.º do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que é permitido valorar os dados recolhidos por um GPS instalado em veículo pelo respectivo proprietário,
entregues por este
a pedido da Polícia Judiciária para fins de investigação criminal;
b) (…)
c) Julgar inconstitucional a norma contida no artigo 125.º do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que a junção a um processo penal de dados recolhidos por um GPS instalado em veículo pelo respetivo proprietário,
entregues por este
a pedido da Polícia Judiciária para fins de investigação criminal,
não carece de validação por um juiz
, por violação do disposto nos artigos 26.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
A jurisprudência referida sustentou-se, além do mais, nos argumentos seguintes:
(transcrição)
«Para a apreciação da questão de inconstitucionalidade da norma contida no artigo 125.º do CPP, quando interpretada no sentido de que é permitido valorar os dados recolhidos por um GPS instalado em veículo pelo respetivo proprietário, entregues por este a pedido da Polícia Judiciária para fins de investigação criminal, importa, pois, saber se é de aceitar a primeira das referidas teses, já que entre a segunda e a terceira se encontrará a resposta para a outra norma objeto do recurso.
No caso, importa recordar que, nos termos da norma em apreço, a prova em causa
não é gerada no âmbito de uma investigação, nem por impulso do órgão de polícia criminal.
Trata-se de dados recolhidos por um GPS instalado em veículo pelo respetivo proprietário (ou seja, não pela pessoa investigada), entregues por este (voluntariamente) a pedido da Polícia Judiciária para fins de investigação criminal.
Assim, está fora de causa a necessidade de autorização prévia, já que os dados não se relacionaram, inicialmente, com uma investigação criminal, pré-existindo licitamente no âmbito de relações jurídico-privadas (no caso, gerados por um aparelho de GPS instalado por uma empresa de aluguer de automóveis nos seus veículos). O problema não se coloca, nestes casos, aquando da produção da prova, mas sim a partir do momento da sua junção ao processo penal.
(…)
Importa sublinhar, antes de mais, que não está em causa – nem no enunciado da norma sub judice, nem no caso a ela subjacente – a utilização de um veículo do próprio arguido
, mas sim de um que consabidamente pertencia a terceiro
, pelo que, ao contrário do que sucederia naquele caso (e do que sucede, designadamente, nos casos de localização celular a partir do telemóvel usado pela pessoa sob investigação), não se aproveita um mecanismo que segue intensamente os percursos de vida do arguido, permitindo formar padrões de deslocação duradouros, reveladores de preferências, hábitos e características pessoais da pessoa visada. A localização que aproveita a interação
do suspeito ou arguido
com meios de transporte de terceiros
(transportes públicos, veículos de aluguer ou veículos emprestados)
não é suscetível, pela sua natureza precária, de devassar intensamente a privacidade desses sujeitos, para além de que se fará, em grande medida, no espaço público ou quase público. Também não está em causa um seguimento ativamente prosseguido pela investigação criminal, nem o mesmo ocorre em tempo real – trata-se apenas de aproveitar dados que já existiam e continuariam a existir independentemente da investigação criminal, pois decorreram do normal exercício do direito de propriedade,
num quadro referenciável como respeitante a “regulações do dono”
(cfr.Pedro Múrias, “Regulações do Dono. Uma Fonte de Obrigações”in ttps://muriasjuridico.weebly.com/uploads/1/4/6/1/146133835/pm-2002-reguls do_dono.pdf )
[6]
.
Com efeito, é o dono do veículo que voluntariamente instala o localizador, para uso no âmbito das suas relações de direito privado.
(…)
Mostra-se claro, em consequência, que devemos distinguir duas realidades que reclamam um enquadramentos legal e jurídico-constitucional não integralmente coincidentes: a colocação, pelas autoridades de investigação, de aparelhos GPS em veículos, ativamente intrusiva na privacidade dos visados, ela própria criando, de um modo oculto e com caráter inovador face ao status quo anterior, as condições de facto que permitirão gerar os dados – uma atividade não expressamente prevista no CPP, mas que uma parte da doutrina aceita ter cobertura legal por analogia com o regime da localização celular; e ii)
a mera obtenção de dados de localização que pré-existiam licitamente fora do processo penal e não foram gerados com finalidade probatória nesse âmbito penal, que é consideravelmente menos intrusiva (já que a investigação penal não interferiu sequer com a produção dos dados) e pode reconduzir-se a meios de obtenção de prova já legalmente previstos, como sejam a prova documental e a obtenção de dados informáticos
nos termos da Lei do Cibercrime – cfr. Tiago Caiado Milheiro, em nota ao artigo 189.º do CPP, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, tomo II, 3.ª edição, Coimbra, 2021, p. 840:
“[…]
A ‘verdadeira’ individualização dos dados de localização prende-se com a sua obtenção sem conexão com a realização de conversações e comunicações. Apenas para efeito de apurar a posição geográfica de uma pessoa (ou objeto). Já não relacionados com o sigilo de comunicações e não sendo por este tutelado (art. 34.º/4 CRP), mas comprimindo outros direitos fundamentais (destarte vida privada, autodeterminação informacional, direito a be alone, proteção de dados pessoais – art. 35.º/4 CRP) e que consoante o nível de restrição poderão ter tratamento idêntico. Situação também distinta são dados de localização que não são acedidos em tempo real, nem são transmitidos por fornecedores de serviço ou recolhidos por mecanismos utilizados pelas autoridades de investigação com esse desiderato e que resultam da análise de documentos ou de outra prova (v.g. pesquisa do
histórico
de localização de telemóvel ou do GPS, informação documental de circulação assente no uso de identificadores da via verde ou dispositivos eletrónicos instalados nos veículos para pagamento de portagens, análise de passaportes, vídeos de vigilância, bilhetes de avião, de comboio, de entrada num estádio; ou seja, toda a prova que demonstra a localização num determinado momento, mas que não é logrado por um meio especialmente direcionado para esse efeito situando-se a sua admissibilidade probatória no domínio do meio de prova em causa, nomeadamente documental).
[…]”.(…)” (fim de transcrição)
Ora, in casu, o Digno Recorrente pretende, na verdade, o acesso ao GPS do veículo da vítima, acesso, diga-se, já autorizado e pretendido por esta última e que lhe foi recusado pela operadora Vodafone, para
alcançar a localização de tal veículo
.
Deste modo, é por demais evidente que
a diligência pretendida não tem o necessário enquadramento legal por não ser possível aferir se visaria alguma das pessoas contempladas no preceito invocado, já que os autores do furto do veículo são, de momento, incertos, por desconhecidos. E não se diga que a situação se enquadra no n.º4 do art.º187 dado que é evidente o consentimento da vitima para a utilização de tais dados pressupõe o conhecimento da identidade do alvo/suspeito, sendo a identidade deste um pressuposto da necessidade de uma intervenção por parte do Estado.
Isto é, o enquadramento legal que resulta dos artigos e preceitos citados em que o Ministério Público assenta a sua pretensão para aceder aos dados GPS assenta na circunstância de tais dados terem sido obtidos através de um meio oculto e com o suspeito identificado.
Neste sentido encontramos o teor do Acórdão do STJ de 24/10/2014, Proc. n.º 780/10.5PRT.S1-5ª Secção
:
“É em função desse secretismo que o uso do GPS representa uma intromissão na vida privada, em consequência do que, à face da falada norma do nº 3 do artº 126º do CPP, as provas obtidas mediante a sua utilização só não são nulas e de valoração proibida se esse meio de obtenção da prova estiver previsto na lei.
E está.
Nos termos do artº 187º do CPP, a intercepção e gravação de conversações ou comunicações telefónicas é admissível, para além do mais que aqui não importa, se forem autorizadas por «despacho fundamentado do juiz de instrução», e «houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter».
O artº 189º, nº 1, estende esse regime às conversações ou comunicações transmitidas por qualquer outro meio técnico diferente do telefone, designadamente ao «correio electrónico ou outras formas de transmissão de dados por via telemática (…) e à intercepção das comunicações entre presentes».
Por sua vez, o nº 2 do artº 189º estabelece: «A obtenção e junção aos autos de dados sobre a localização celular ou de registos da realização de conversações ou comunicações só podem ser ordenadas ou autorizadas, em qualquer fase do processo, por despacho do juiz, quanto a crimes previstos no nº 1 do artigo 187º e em relação às pessoas referidas no nº 4 do mesmo artigo».
A disposição não fala nos dados de localização de um alvo obtidos por GPS, mas deve fazer-se dela uma interpretação extensiva, de modo a abranger esses dados. De facto, o artº 189º traduz o propósito do legislador de regular, além do mais, a localização de alvos por meios electrónicos, referindo um desses tipos de localização, a celular. Dada a similitude de alcance dos dois meios de obtenção da prova, as razões que levaram a prever a localização celular aplicam-se ao GPS. Até porque, como se informa no acórdão do Tribunal Constitucional nº 486/2009, acolhendo ensinamentos de Rui de Sá (Sistemas e Redes de Telecomunicações, 2007), a tecnologia GPS, com a sua recente incorporação nos equipamentos móveis, já se encontra presente na localização celular, permitindo-lhe atingir «um grau de precisão muito elevado em matéria de determinação da posição geográfica».
Donde a conclusão de que nesta matéria a letra da lei ficou aquém do seu espírito. Da própria razão de ser da lei resulta que o legislador, querendo referir-se a um género –
meios electrónicos de localização geográfica de um alvo
– mencionou apenas uma espécie desse género. Dizendo a letra da lei menos do que se pretendia, há que alargar o texto legal fazendo-o corresponder ao seu espírito.
O uso de aparelho de GPS para obter a localização geográfica, em tempo real, de um alvo é aceite por Benjamim Silva Rodrigues, desde que autorizado por despacho do juiz de instrução e tenha lugar na investigação de casos de média ou grande criminalidade, não pela via aqui seguida, mas com apelo às disposições dos artºs 18º, nºs 2 e 3, 32º, nº 4, e 202º, nºs 1 e 2, da Constituição (ob. cit., página 93).
Cabendo, desta forma, os dados obtidos por meio de
GPS no âmbito de previsão do nº 2 do artº 189º,
o seu uso tinha de ser autorizado por despacho do juiz de instrução, como aí se estabelece”
.- v., também em sentido idêntico, Tiago Caiado Milheiro, in “Comentário Judiciário do Código de Processo Penal”, Tomo II, Almedina, 2ª Ed., pág. 824 e segs., §§ 27 a 30.(…)”
E é a expressa menção a UM ALVO que permite o deslindar da questão recursiva
.
Deslindar esse claramente alcançado e esclarecido no âmbito do Acórdão da Relação do Porto de …., relatado por Deolinda…..
[7]
:
“Na verdade,
os dados a que pretende aceder-se não resultam de qualquer prévia actividade de investigação nem por esta são originados. Os dados de localização existem porque o veículo está equipado com um sistema localizador de origem (ou mandado instalar pelo seu proprietário) visando acautelar a prontidão de socorro urgente e eficiente em caso de acidente e que, por isso mesmo, permitirá (pelo menos em tese
[3]
) conhecer o paradeiro do mesmo.
Consequentemente, tais dados - à semelhança de outros armazenados nos equipamentos de segurança e ajuda ao condutor, como por exemplo a Via Verde - poderão ser obtidos pelo próprio ofendido, no âmbito dos direitos que lhe assistem enquanto dono da viatura, sem necessidade de prévia autorização judicial. É ele o titular dos dados não lhe podendo ser negado o direito de acesso.
Todavia, ainda que directamente tais dados não contendam com a vida privada de outrem, o certo é que tais elementos de prova associados a outros que daí possam vir a desenvolver-se poderão potenciar o conhecimento da identidade de utilizadores do veículo – eventualmente até 3ºs de boa-fé - e de determinados actos da sua vida com a consequente lesão de direitos fundamentais, pelo que a diligência nunca será totalmente inócua.
E citando o Acórdão constitucional a que já acima aludimos, o mesmo Acórdão da Relação do Porto retira daquele que:
“Apesar de, através do meio de prova em causa, não ser atingido o núcleo mais íntimo da esfera da vida privada, ainda assim o grau de intensidade da afetação pode ser muito variável, conforme a maior ou menor quantidade de dados disponíveis junto do terceiro e do período a que dizem respeito. Esta variabilidade, associada à falta de um quadro legal específico que regule a prova através de dados de localização contidos em aparelhos GPS, coloca especiais exigências de controlo de proporcionalidade da concreta restrição do direito consagrado no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição, face aos fins visados (com ponderação, designadamente, sobre a gravidade do crime, as alternativas e correspondente grau de necessidade probatória, a quantidade e qualidade dos dados apreendidos), que só a um terceiro rigorosamente imparcial, e não o dominus da investigação, pode assegurar – diverge-se, pois, da decisão recorrida, quando ali se afirma que o meio de prova em causa “não pode ser visto como uma intromissão na vida privada de quem vai [no] veículo”. Não se afigura que seja especialmente relevante a circunstância, assinalada na decisão recorrida, de o sistema GPS ser “um aparelho surdo e cego no sentido de que não transmite a identificação do condutor e dos passageiros, nem as suas conversas ou os seus movimentos, apenas informa do local onde o veículo circula ou aparca”. Sendo em si mesma verdadeira esta afirmação, a verdade é que não só essa identificação é frequente através do cruzamento com outros dados, como, por regra, a utilidade dos dados de localização por GPS está, precisamente, associada à possibilidade de realizar tal cruzamento de dados. Por outras palavras, embora aquele sistema não identifique o condutor, a sua principal utilidade revela-se quando, através de outros dados, ele acaba por ser determinado.
Assim, não pode olhar-se para a potencialidade lesiva deste meio de prova sem considerar que a sua utilização radica, as mais das vezes, na prévia determinação da pessoa associada aos dados e visada pela investigação. Se é verdade que, em certos casos, a obtenção de dados de localização por GPS pode servir apenas como “meio coadjuvante do seguimento clássico” (nas palavras do acórdão recorrido – que talvez digam mais respeito à colocação de aparelho para seguimento, e não tanto à obtenção posterior de dados), outros haverá em que, pela quantidade de dados adquiridos, a interferência com a privacidade é mais intensa – ora, o presente recurso é normativo, pelo que interessa atentar na potencialidade da norma objeto do recurso
. Deste modo, não obstante as diferenças face à apreensão de comunicações, não pode perder-se de vista que continua a estar em causa a potencial afetação de direitos fundamentais, em grau variável e só determinável in concreto, o que constitui o terreno por excelência da imperativa atuação do juiz, ele que tem “[…] nos termos da CRP, uma competência exclusiva e não delegável de garantia de direitos fundamentais no âmbito do processo criminal (à luz do artigo 32.º, n.º 4, do CPP), pelo que a lei apenas pode dispensar a sua intervenção em casos excecionais devidamente delimitados e justificados. Por outras palavras, tal dispensa é constitucionalmente admissível apenas em situações pontuais e definidas com rigor, em que não constitua um meio excessivo para prosseguir interesses particularmente relevantes de investigação criminal. Será o caso, por exemplo, de atuações preventivas ou cautelares, em que haja particular urgência ou perigo na demora no que toca à conservação de elementos probatórios, e desde que se assegure uma posterior validação judicial da atuação das autoridades competentes”.
Tanto basta para concluir pela exigência de intervenção do juiz sempre que esteja em causa a junção a um processo penal de dados recolhidos por um GPS instalado em veículo pelo respetivo proprietário, entregues por este a pedido da Polícia Judiciária para fins de investigação criminal.
Não havendo intervenção do juiz, retira-se a possibilidade de ponderação judicial da proporcionalidade da restrição do direito fundamental previsto no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição, de onde resulta a violação do disposto no artigo 18.º, n.º 2, da Lei Fundamental, porquanto inexiste o mecanismo processual destinado a tornar o juízo de proporcionalidade atuante, bem como processualmente efetivo e consequente.».
Conclui, por fim o citado Acórdao do TRP:
“Dos elementos fornecidos pelos autos constata-se que os dados que se pretendem obter não dependem de prévia autorização do juiz de instrução criminal nem a situação se enquadra na previsão dos art. 187º, n.ºs 1 e 4, ex vi do art. 189º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, por ser impossível, por ora, determinar as pessoas visadas (ainda que indirectamente) pela diligência e se estas integram alguma das qualidades prevista no elenco legal, pressuposto essencial e intransponível para o seu deferimento.
Consequentemente, nenhuma censura merece a decisão recorrida, carecendo de fundamento a impugnação apresentada.”
Podemos assim concluir que, não obstante a operadora dos dados de localização
não carecer de autorização prévia do Juiz de Instrução para disponibilizar os mesmos ao seu cliente,
certo é que a sua posterior junção ao processo penal e a sua utilização carece, indiscutivelmente, de validação por parte daquele magistrado judicial na medida em que apenas tem legitimidade para aferir da potencial afetação de direitos fundamentais que o recurso a tal meio de obtenção de prova poderá, em concreto, implicar.
Donde decorre que, apesar do fundamento do Juiz de Instrução Criminal para o indeferimento da pretensão do Ministério Público basear-se no recurso a um regime legal inaplicável à pretensão daquele
[8]
, pois que o que se pretendia era alcançar uma localização em tempo real, ainda assim o teor do despacho recorrido não carece de revogação no que toca ao indeferimento que do mesmo resulta, quer porque:
- por um lado, a intervenção do JIC foi solicitada previamente à obtenção daqueles dados e não para validação da sua junção aos autos; note-se que, o que se extrai do já acima expendido, o proprietário do veículo e contratante do serviço de
GPS não carece de qualquer autorização judicial para que a operadora lhe disponibilize os mesmos
;
- por outro lado, a situação dos autos não se enquadra na previsão dos art. 187º, n.ºs 1 e 4,
ex vi
do art. 189º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, por ser impossível, por ora, determinar as pessoas visadas (ainda que indirectamente) pela diligência e se estas integram alguma das qualidades prevista no elenco legal.
***
III - DISPOSITIVO
Em face do exposto, acordam os Juízes desta ... Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso.
Sem tributação atenta a isenção do recorrente - art. 522º, do Cód. Proc. Penal.
Notifique.
[Elaborado e revisto pela relatora – art. 94º, n.º 2, do CPP[5]]
Porto, 30/4/2025
(data e assinaturas electrónicas no topo do documento).
Maria Ângela Reguengo da Luz
Paulo Costa
Nuno Pires Salpico
____________________________________
[1]
https://hudoc.echr.coe.int
.
[2]
Artigo este com a seguinte redacção:
Direito ao respeito pela vida privada e familiar
1. Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência. 2. Não pode haver ingerência da autoridade pública no exercício deste direito senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem - estar económico do país, a defesa da ordem e a prevenção das infracções penais, a protecção da saúde ou da moral, ou a protecção dos direitos e das liberdades de terceiros
.
[3]
Abrangendo o conceito de localização “celular” todos os outros meios que permitam a localização e/ou monotorização de um veículo através da tecnologia de GPS; esta recorre a um sistema de posicionamento geográfico que informa as coordenadas de determinado lugar na terra, permitindo comparar a informação/localização detectada com um mapa e neste registando a sua posição.
[4]
Disponível in ulfd132671_tese.pdf;
[5]
Disponível in tribunalconstitucional.pt;
[6]
Na mesma obra o autor define “As regulações do dono mais simples são a
proibição
e a
autorização
. O dono tem o poder de proibir a actuação de terceiros sobre o seu bem (…). Mas, se o ponto de partida é a ilicitude de qualquer intervenção, teria sentido prever na lei o acto jurídico de autorização, que torna lícitas tais intervenções. Dir-se-ia que a validade da autorização resulta da autonomia privada, mas a autonomia que assim se exerce é uma autonomia qualificada pela titularidade do direito de propriedade, e não a autonomia negocial de um sujeito indiferenciado. Qualquer pessoa pode determinar que,
para si
,33 no que lhe diz respeito, a actuação sobre certa coisa valha como lícita, mas só o dono pode tornar
objectivamente
lícita essa mesma actuação.34
Apesar do silêncio legal, ninguém tentará refutar que a autorização dada pelo dono ou, em especial, pelo proprietário torna lícito o gozo, o aproveitamento do bem por terceiros.
[7]
https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/214b9a996927e94180258c0b0053665a?OpenDocument
;
[8]
Fundamento esse impróprio uma vez que o regime previsto na Lei 32/2008 de 17/07 apenas se aplica à obtenção de dados correspondentes a comunicações já ocorridas e que se encontram preservados ou conservados – cfr. Acórdão do TRC de 12/10/2022 disponível in
www.dgsi.pt
;
igualmente, do teor do acórdão do STJ datado de 18 de Maio de 2022 (Pº 618/16.0SMPRT-B.S1) retira-se o seguinte:
«Perante a diversidade de meios de prova vêm a doutrina e a jurisprudência assinalando que, em termos de unidade do sistema jurídico, se impõe a necessidade de harmonização entre os regimes dos artigos 187º e 189º do CPP e o regime da Lei n.º 32/2008, de 17/7, donde resulta que
o daquele se aplica à interceção de comunicações, obtida em tempo real
, a decorrer, e interceção da comunicação entre presentes, enquanto o desta tem como âmbito de aplicação a obtenção de dados que concernem a
comunicações relativas ao passado
, ou seja, conservadas ou armazenadas em arquivo, como se extrai até do consagrado no seu artigo 1º, n.º 1. (…) Por isso, seja conversação ou comunicação e o que lhe é conexo, necessariamente, a fonte telefónica ou informática, caberá nas normas dos artigos 187º e 189º do CPP. Já se o que interessa são comunicações passadas, localizadas no tempo e no espaço, chama-se à colação a Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho».
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TRP
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https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/560514ad0b629f3680258c8b00503d6a?OpenDocument
|
1,748,908,800,000
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SENTENÇA REVOGADA PARCIALMENTE
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240/23.4T8VNG.P1
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240/23.4T8VNG.P1
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ISABEL FERREIRA
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I – As comunicações enviadas durante a tentativa de resolução extrajudicial do litígio pela seguradora à segurada, nas quais aquela propôs o pagamento de uma quantia a título de ressarcimento de danos sofridos por esta, mas não se pronunciou sobre quaisquer factos concretos do sinistro em causa, não havendo assunção da realidade de factos, não constituem declaração confessória, não permitindo, só por si, considerar como provados os factos atinentes ao concreto sinistro ocorrido e aos danos sofridos pela segurada em consequência do mesmo
.
II – Estando provado que “em virtude das fortes chuvas e do vento que se fizeram sentir nos dias 15 e 16 de Janeiro de 2020, a água transbordou das caleiras do imóvel e danificou tectos e paredes e o vento danificou o telhado”, sem mais
,
tal situação não integra a cobertura da apólice de seguro respeitante a “tempestades”, cuja cláusula abrange os danos que sejam causados directamente por tufões, ciclones, tornados, ventos fortes ou choque de objectos arremessados ou projectados pelos mesmos, na condição de que a violência daqueles eventos da natureza destrua ou danifique vários edifícios de boa construção, objectos ou árvores sãs, num raio de 5 km envolventes do local onde os bens seguros se encontrem, definindo-se na respectiva cláusula o que são edifícios de boa construção, e admitindo-se que, em caso de dúvida, o segurado possa provar, mediante apresentação de documento emitido pela estação meteorológica mais próxima, que os ventos atingiram velocidade superior a 90 km/hora.
III – A conduta de danificar parcialmente a pintura de uma parede é adequada a produzir a necessidade de pintar toda a parede, sendo razoável que o obrigado seja responsável pela indemnização da totalidade da pintura, resultado com que razoavelmente poderia contar, não podendo ter-se a tinta descascada em algumas zonas como uma circunstância extraordinária.
IV – Assim
,
deve considerar-se que a pintura da totalidade das paredes integra um dano directamente causado pelo evento coberto pelo seguro
,
sendo esta interpretação a que conduz ao maior equilíbrio das prestações (o contrato é oneroso) e a que um contratante indeterminado normal lhe daria, se se limitasse a subscrever ou aceitar a cláusula em questão, para além de ser o sentido mais favorável ao aderente.
|
[
"CONTRATO DE SEGURO",
"SINISTRO",
"NEGOCIAÇÃO EXTRAJUDICIAL - PROPOSTA DE INDEMNIZAÇÃO",
"VALOR PROBATÓRIO"
] |
Proc. n.º 240/23.4T8VNG.P1
*
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I
–
“A..., Lda.”
intentou, no Juízo Local Cível ... do Tribunal Judicial da Comarca do Porto,
acção declarativa
,
com
processo comum
, contra
“B..., S.A.”
, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 7.324,39.
Alegou para tal ter celebrado com a R. um contrato de seguro “Multirriscos-Habitação”, respeitante ao imóvel referido no art. 1º da petição inicial, que cobria, entre outros riscos, danos provocados por “tempestades”, “inundações” e “por água”, com uma franquia de 10% a cargo da A., e que no dia 16/01/2020, em virtude das fortes chuvas e ventos que se fizeram sentir nas duas primeiras semanas desse mês, as caleiras do imóvel transbordaram e danificaram o telhado, tectos e paredes, situação que participou à R., que providenciou pela realização de uma peritagem ao local, concluindo que o sinistro se encontrava garantido pela apólice, sendo que o custo da reparação daqueles danos ascende a € 8.138,21, mas a R. só aceitou pagar €5.568,14, por entender que os danos no telhado não estão abrangidos pelo contrato de seguro, que a área das paredes a pintar é apenas de 57 m2 e que o tecto falso a colocar é só de 266 m2.
A R. contestou, aceitando a celebração do contrato de seguro, indicando que se trata de um contrato do ramo “Multi-riscos Industrial”, alegando que a loja objecto do contrato estava devoluta e ao abandono, estando o imóvel “descuidado” e necessitado de reabilitação e invocando que os danos são decorrentes de falta da adequada manutenção do edifício e que não houve registo de “tempestade” com valores sequer próximos dos incluídos nas coberturas do seguro, pelo que o sinistro em causa está excluído da cobertura da apólice, e impugnando os factos alegados na petição inicial atinentes ao sinistro ocorrido e aos danos sofridos, invocando que apenas entendeu serem as causas alegadas plausíveis de, em abstracto, produzirem concretos danos com enquadramento no seguro contratado, que esteve disposta a ressarcir, em sede de tentativa extrajudicial de litígio, sem que se discutissem as eventuais exclusões do mesmo.
A A. respondeu, defendendo não se verificarem as exclusões invocadas pela R. na contestação, aduzindo ainda que o imóvel estava apenas devoluto de pessoas e bens, mas em perfeitas condições de utilização, e impugnando os factos em contrário alegados pela R..
Foi dispensada a realização de audiência prévia, foi elaborado despacho saneador e foi dispensado o despacho de fixação do objecto do litígio e de enunciação dos temas da prova.
Procedeu-se seguidamente a julgamento.
Após, foi proferida sentença, na qual se decidiu condenar a R. a pagar à A. a quantia de € 7.324,39, acrescida de juros moratórios à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.
De tal sentença veio a R. interpor recurso, tendo, na sequência da respectiva motivação, apresentado as seguintes
conclusões
, que se transcrevem:
«
1)
Andou mal o tribunal
a quo
ao julgar a presente ação procedente e ao condenar a recorrente, com a sentença a notificada a 18/03/2024 (refª 458228522), no pagamento, à A., da quantia de € 7.324,39 (sete mil, trezentos e vinte e quatro euros e trinta e nove cêntimos);
2)
Não só incorreu o tribunal
a quo
em erro de julgamento quanto à valoração dos referidos meios de prova, como omitiu a valoração crítica dos meios de prova que demonstram, os factos alegados pela Ré, com interesse para a boa decisão da causa, os quais não podia omitir, nos termos e para os efeitos do art.º 607.º, n.º 4 do CPCiv.;
3)
Os concretos meios de
prova documental
junta como doc.6, doc.9, doc.11 e doc.12 com a PI, doc.2, doc.3, doc.4 e doc.5 junto com a contestação, concretas passagens de minutos 0:58 a 1:44, 4:45 a 5:23, 7:34 a 9:18, 9:40 a 10:21, 10:58 a 11:57 do depoimento da
testemunha AA
, 7:49 a 8:52, 9:29 a 10:45, 10:48 a 11:55, 25:24 a 25:50 a 27:39 a 28:29, e 31:39 a 31:45 do depoimento da
testemunha BB
e as concretas passagens de minutos 1:19 a 1:33 e 3:33 a 11:50 das declarações do gerente da A.
CC
, impõem que os concretos segmentos
“12. Em virtude das fortes chuvas e vento que se fizeram sentir nas duas primeiras semanas de janeiro, a 16 de janeiro do mesmo ano”
e
“as caleiras do imóvel transbordaram e danificaram o telhado”
sejam julgados não provados, devendo o concreto ponto de facto
“12.”
provado ser alterado para
“as caleiras do imóvel transbordaram e danificaram tectos e paredes”
;
4)
Os concretos meios de
prova documental
junta como doc.6, doc.9 e doc.11 com PI, doc.2, doc.3, doc.4 e doc.5 junto com a contestação, concretas passagens de minutos 0:58 a 1:44, 4:45 a 5:23, 7:34 a 9:18, 9:40 a 10:21, 10:58 a 11:57 do depoimento da
testemunha AA
, 7:49 a 8:52, 8:55 a 10:45, 10:48 a 11:55, 12:46 a 14:20, 25:24 a 25:50 a 27:39 a 28:29 do depoimento da testemunha
BB
e as concretas passagens de minutos 1:19 a 1:33 e 3:33 a 11:50 das declarações do gerente da A.
CC
, impõem que os concretos pontos de facto
“C”
,
“D”
e
“E”
julgados não provados sejam julgados provados e aditados ao referido elenco;
5)
Os concretos meios de
prova documental
junta como doc.6, doc.9, doc.11 e doc.12 com a PI, doc.2, doc.3, doc.4 e doc.5 junto com a contestação, concretas passagens de minutos 0:58 a 1:44, 4:45 a 5:23, 7:34 a 9:18, 9:40 a 10:21, 10:58 a 11:57 do depoimento da
testemunha AA
, 7:49 a 8:52, 9:29 a 10:45, 10:48 a 11:55, 25:24 a 25:50 a 27:39 a 28:29, e 31:39 a 31:45 do depoimento da
testemunha BB
e as concretas passagens de minutos 1:19 a 1:33 e 3:33 a 11:50 das declarações do gerente da A.
CC
, impõem que o concreto ponto de facto
“13.”
julgado provado, seja julgado não provado, devendo ser removido do elenco no qual se encontra e aditado no elenco dos factos não provados;
6)
Os concretos meios de
prova documental
junta como doc.5 com a PI, e doc.5 junto com a contestação, impõem que o concreto ponto de facto
“17.”
julgado provado, seja alterado para
“17.A autora enviou à ré orçamentos de reparação e a caderneta predial do imóvel, que haviam sido solicitados”
;
7)
Os concretos meios de prova documental junta como doc.6, doc.9, doc.11 e doc.12 com a PI, doc.2, doc.3, doc.4 e doc.5 junto com a contestação, conjugados com as [
as
] concretas passagens de minutos 13:15 a 14:05 do depoimento da
testemunha AA
e as concretas passagens de minutos 8:55 a 9:50 e 23:00 a 26:00 do depoimento da
testemunha BB
, impõem que o concreto ponto de facto
“24.”
julgado provado, seja julgado não provado, devendo ser removido do elenco no qual se encontra e aditado no elenco dos factos não provados;
8)
A ausência de elementos probatórios que o demonstrem, os concretos meios de
prova documental
junta como doc.6, doc.9, doc.11 e doc.12 com a PI, doc.2, doc.3, doc.4 e doc.5 junto com a contestação, as concretas passagens de minutos 0:58 a 1:44, 4:45 a 5:23, 7:34 a 9:18, 9:40 a 10:21, 10:58 a 11:57 do depoimento da
testemunha AA
, as concretas passagens de minutos 7:49 a 8:52, 9:29 a 10:45, 10:48 a 11:55, 12:46 a 14:20, 25:24 a 25:50, 27:39 a 28:29, e 31:39 a 31:45 do depoimento da
testemunha BB
e as concretas passagens de minutos 1:19 a 1:33, 1:58 a 2:36 e 3:33 a 11:50 das declarações do gerente da A.
CC
, impõem que os concretos pontos de facto “26.”, “28.” e “29.” provados sejam julgados não provados, excluídos do elenco no qual se encontram e aditados no elenco dos factos provados;
9)
A ausência de prova produzida em contrário, conjugada com o doc.8 junto com a PI e as concretas passagens de minutos 25:23 a 25:50 do depoimento da
testemunha BB
impõe que o concreto ponto de facto “27.” julgado provado seja julgado não provado, que o concreto segmento
tecto falso, com uma área de 266 m2
,”
do ponto de facto
“F.”
julgado não provado seja retirado daquele ponto de facto, por provado, devendo ainda ser aditado o novo facto provado
“O tecto falso tem uma área de 266 m2
;
10)
A contratação de serviços de peritagem pela recorrente, para a averiguação do sinistro participado e averiguação condicional dos danos apurados, inclusive a proposta de resolução extrajudicial do litígio não inverte ou desonera a A./ recorrida de demonstrar os factos que alega, dos quais depende a tutela civil que pretende desencadear, o que não fez;
11)
A recorrente demonstrou que a recorrida havia, no mínimo, desde setembro de 2019, deixado o imóvel
sub judice
ao abandono, sem que tomasse qualquer medida preventiva ou de manutenção do mesmo durante vários meses em que inexistiam quaisquer novas negociações de arrendamentos de espaços comerciais em plena pandemia;
12)
Nenhuma prova fez a Autora – como lhe competia - quanto à verificação de um fenómeno meteorológico anormal. Apenas foi referido as chuvas e ventos característicos de um Inverno nortenho;
13)
Não se demonstrou a ocorrência de um sinistro, evento súbito e externo à recorrida, susceptível de desencadear qualquer cobertura do seguro contratado, não podendo, por essa via contratual, ser a recorrida ressarcida pela recorrente, a qual deve ser absolvida de todos os pedidos contra a mesma formulados;
14)
Com a sentença recorrida, o tribunal a quo violou o normativo constante dos art.º 342.º, 346.º, 347.º e 483.º do CCiv. e dos art.º 5.º, n.º 1, 410.º, 411.º, 413.º, 414.º, 607.º, n.º 4 e n.º 5 do CPCiv.
NESTES TERMOS E MAIS DE DIREITO, DEVE SER CONCEDIDO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO DE APELAÇÃO, DEVENDO SER REVOGADA A DECISÃO RECORRIDA, ALTERADA A MATÉRIA DE FACTOS NOS TERMOS SOBREDITOS, E, CONSQUENTEMENTE, SER A RÉ/ RECORRIDA ABSOLVIDA DE TODOS OS PEDIDOS CONTRA ELA FORMULADOS, SEGUINDO-SE OS ULTERIORES TRÂMITES LEGAIS, POR SER DE INTEIRA
J U S T I Ç A !
».
A A. apresentou contra-alegações, defendendo que deve ser negado provimento ao recurso e confirmada a sentença recorrida
.
*
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
***
II -
Considerando que o objecto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (cfr. arts. 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do C.P.C.), são as seguintes as
questões
a tratar:
a)
impugnação da matéria de facto;
b)
do direito da A. a ser indemnizada pela R., e em que montante, no âmbito do contrato de seguro em causa nos autos.
**
Apreciemos a primeira questão.
O recurso pode ter como objecto a impugnação da decisão sobre a matéria de facto e a reapreciação da prova gravada (cfr. art. 638º, nº 7, e 640º do C.P.C.).
Neste caso, o recorrente deve
obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição
(nº 1 do art. 640º):
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas
.
No que respeita à alínea b) do nº 1, e de acordo com o previsto na alínea a) do nº 2 da mesma norma,
quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes
.
Uma vez que a impugnação da decisão de facto não se destina a que o tribunal de recurso reaprecie global e genericamente a prova valorada em primeira instância, a lei impõe ao recorrente um especial ónus de alegação, no que respeita à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação.
No caso concreto, verifica-se que a recorrente deu cumprimento às referidas exigências, especificando os concretos factos que põe em causa e indicando as razões da sua discordância, nomeadamente por referência aos meios de prova que, em seu entender, sustentam a solução que propugna.
Apreciemos então, sendo os seguintes os factos dados como provados na sentença recorrida (transcrição):
«
1.
A autora celebrou com a ré um contrato de seguro do ramo multi-riscos industrial, titulado pela apólice n.º ...52, referente ao imóvel sito na Rua ..., ..., Vila Nova de Gaia.
2.
O contrato de seguro foi celebrado pelo período de um ano, renovável, com início em 1 de Dezembro de 2017.
3.
A referida apólice, à data de janeiro de 2020, estava em vigor e com um capital seguro de € 151.500,00.
4.
De acordo com as definições constantes do art.º 1º das CGA e para efeito das coberturas da apólice, “sinistro” consubstancia-se num “acontecimento de carácter fortuito, súbito e imprevisto, suscetível de fazer funcionar as garantias do contrato”.
5.
No que às coberturas especiais contende, encontra-se prevista e aplicável a cobertura 100 - “TEMPESTADES” pela qual estão cobertos “os danos diretamente causados aos bens seguros em consequência de: a) Tufões, ciclones, tornados e ventos fortes ou choque de objetos arremessados ou projetados pelos mesmos, sempre que a sua violência destrua ou danifique vários edifícios de boa construção, objetos ou árvores sãs, num raio de 5 km envolventes do local onde se encontram os bens seguros. Para efeitos da presente cobertura consideram-se como edifícios de boa construção, aqueles cuja estrutura, paredes exteriores e cobertura sejam construídas de acordo com a regulamentação vigente à data da construção, utilizando materiais resistentes ao vento, designadamente betão armado, alvenaria e telha cerâmica. Em caso de dúvida, poderá o segurado fazer prova, por documento emitido pela estação meteorológica mais próxima, de que, no momento do sinistro, os ventos atingiram velocidade excecional (velocidade superior a 90 km/hora); b) Queda de neve ou granizo; c) Alagamento pela queda de chuva, neve ou granizo, desde que estes agentes atmosféricos penetrem no interior do edifício em consequência dos riscos cobertos pela alínea a), na condição que estes danos se verifiquem nas 48 horas seguintes ao momento da destruição parcial do edifício”.
6.
Nos termos do art.º 6.º das CGA, “Nunca ficam cobertos por esta apólice os danos que derivem direta ou indiretamente de: (…) 6. Atos ou omissões dolosas do tomador do seguro, do segurado ou de pessoas por quem sejam civilmente responsáveis, mas apenas no que se refere aos danos ocorridos na sua propriedade; (…) 11. Uso ou desgaste, corrosão, oxidação, embolorecimento, apodrecimento seco ou húmido, deterioração gradual, deformação lenta ou distorção”.
7.
Para além das exclusões previstas nas CGA, “ficam ainda excluídos do âmbito da presente cobertura as perdas ou danos causados: a) Pela ação do mar e outras superfícies de água naturais ou artificiais, mesmo que estes acontecimentos resultem de temporal; b) Por infiltrações através de paredes, tetos, portas, janelas, claraboias, terraços ou marquises, bem como por goteiras, humidade, condensação e/ou oxidação, exceto quando se trate de danos resultantes da cobertura; c) Por água, areia ou pó, que penetre por portas, janelas ou outras aberturas do edifício deixadas abertas ou cujo isolamento seja defeituoso. d) Em construções que não tenham sido dimensionadas de acordo com a regulamentação vigente à data da construção e cuja estrutura, paredes exteriores e cobertura não sejam maioritariamente construídas com materiais resistentes ao vento, designadamente betão armado, alvenaria e telha cerâmica, assim como naquelas em que os materiais de construção ditos resistentes não predominem em, pelo menos, 50%, e, ainda, quando os edifícios se encontrem em estado de degradação no momento da ocorrência”.
8.
No que concerne a cobertura 150 - “DANOS POR ÁGUA” são cobertos “os danos diretamente causados aos bens seguros em consequência de: a) Rotura, defeito, entupimento ou transbordamento, súbito e imprevisível, da rede interior de distribuição de água e esgotos do edifício, incluindo os sistemas de esgoto das águas pluviais, assim como dos aparelhos ou utensílios ligados à rede de distribuição de água e de esgotos e respetivas ligações”.
9.
“Para além das exclusões previstas nas condições gerais, ficam ainda excluídos do âmbito da presente cobertura, os danos causados: a) Por infiltrações através de paredes, tetos, portas, janelas, claraboias, terraços ou marquises, bem como por goteiras, humidade, condensação e/ou oxidação, exceto quando se trate de danos resultantes da cobertura e ainda o refluxo de águas provenientes de canalizações ou esgotos não pertencentes ao edifício; […] c) Em edifícios, devidos a notória falta de manutenção ou conservação das respetivas redes de água e esgotos do edifício após a existência de vestígios claros e inequívocos de que se encontra deteriorada ou danificada, constatáveis nomeadamente por oxidação, infiltrações ou manchas”.
10.
Para ambas as coberturas, vigora [
a
] uma franquia, a cargo do segurado, de 10% sobre o valor do sinistro, de valor mínimo de € 100,00.
11.
De acordo com o art.º 25.º, n.º 2, alínea c) das CGA, é obrigação do segurado não impedir, dificultar e colaborar com o segurador no apuramento da causa do sinistro.
12.
Em virtude das fortes chuvas e vento que se fizeram sentir nas duas primeiras semanas de Janeiro de 2020, a 16 de Janeiro do mesmo ano, as caleiras do imóvel transbordaram e danificaram o telhado, tectos e paredes.
13.
No que respeita ao telhado, os danos consistiram em telhas mexidas e danificadas.
14.
A autora participou o sinistro à ré no dia 17 de Janeiro de 2020, tendo a participação o seguinte teor: “Vimos pelo presente participar que na rua ..., ... – ..., devido à água que entrou provocada pelas fortes chuvas e vento que se fizeram sentir, não dando vazão de escoamento às respectivas caleiras que transbordaram entrou água na loja danificando tectos, paredes, etc”.
15.
No dia 26 de fevereiro de 2020, a ré realizou uma peritagem ao local do sinistro.
16.
No seguimento da peritagem, a ré solicitou à autora, por e-mail, o envio de orçamentos de reparação do imóvel, a Caderneta Predial Urbana e o IBAN da Autora.
17.
A autora enviou à [
autora
]
[ré]
os documentos solicitados.
18.
A ré propôs à autora indemnizá-la em € 4.710,16 mais IVA para a regularização dos prejuízos resultantes do sinistro.
19.
A autora não aceitou o valor proposto.
20.
A 11 de março de 2021, a autora solicitou à ré uma nova verificação para que se lograsse alcançar o motivo da divergência de valores e proceder à sua retificação,
21.
No dia 5 de abril de 2021, a ré propôs indemnizar a autora em €4.792,22.
22.
A reparação do telhado apresenta um custo de € 1.402,20.
23.
A reparação das paredes e tectos do referido imóvel custa € 1.200,00.
24.
Para que não resulte uma discrepância de cores, não deverão ser repintados apenas os pontos de humidade existentes na parede, mas sim a totalidade das paredes, com uma área de 110 m2.
25.
O tecto falso deverá ser substituído.
26.
O custo da mão de obra para a colocação do tecto falso é de €3.700,00.
27.
Uma vez que o teto do imóvel segurado não é plano, a sua substituição implica realizar recortes e desperdício de material.
28.
O material para a reparação do tecto falso tem um custo de € 1.836,01.
29.
A reparação dos danos supra indicados apresenta um custo total de € 8.138,21 e, descontando a franquia contratualmente prevista de 10%, €7.324,39.
30.
Quando o sinistro ocorreu, o imóvel seguro encontrava-se devoluto, com a informação “Aluga-se”.
».
Tendo sido dados como não provados os seguintes factos (transcrição):
«
A. A autora inviabilizou sempre o agendamento de peritagem a empresa para esse efeito contratada pela ré.
B. A autora permitiu o acesso ao imóvel sinistrado à empresa de peritagem apenas no dia 26 de Fevereiro de 2020, e não antes.
C. Quando ocorreu o sinistro, o imóvel seguro encontrava-se ao abandono.
D. Previamente à ocorrência do sinistro, a autora não adoptara medidas preventivas tendentes à sua protecção contra eventuais sinistros.
E. Os danos verificados no imóvel seguro são consequência, não de fortes chuvas e ventos, mas sim de falta de adequada manutenção do edifício.
F. A reparação do tecto falso, com uma área de 266 m2, comporta um custo de € 3.325,00 de mão-de-obra e um custo de € 1.338,51 de material.
G. Para a reparação do imóvel seguro, é necessário apenas rectificar pinturas numa área de 57 m2 (três paredes), com um custo de € 570,00.
».
*
Antes de apreciar cada ponto da matéria de facto impugnado pela recorrente há que apreciar a questão levantada pela recorrida nas contra-alegações, de que “a proposta de resolução extrajudicial do litígio por parte da Ré/Recorrente demonstra a aceitação desta da ocorrência do sinistro, da verificação dos danos e da sua responsabilidade pelos mesmos”.
As propostas da seguradora, referidas nos pontos 18 e 21 dos factos provados, mais a que resulta do email de 23/04/2021, junto com a petição inicial e com a contestação (não referido no elenco dos factos provados), não contemplam os danos no telhado, que aquela nunca considerou estarem abrangidos no contrato de seguro, nem a área considerada para a aplicação do tecto falso, nem a pintura da totalidade das paredes. Em sede de resolução extrajudicial aquela propôs-se aceitar a garantia de danos causados por entupimento da rede de águas pluviais (caleiras) no tecto falso e nas paredes do imóvel, tendo em conta as áreas indicadas no relatório da peritagem que promoveu.
Mas em nenhuma parte dessas comunicações a seguradora, ora recorrente, se pronunciou sobre factos concretos do sinistro em causa, não havendo, por isso, qualquer assunção da realidade de factos (
o que poderia suceder se, por exemplo, a seguradora indicasse nas suas cartas que naquele período temporal houve fortes chuvas e ventos e que estes eventos levantaram o telhado ou fizeram cair as placas do tecto falso – o que efectivamente não ocorreu no caso
). Donde, não há aqui nenhuma confissão, para efeitos de aplicação do regime previsto nos arts. 352º e segs. do Código Civil, posto que não houve nenhum reconhecimento da
realidade de factos
desfavoráveis e que favorecem a parte contrária.
Como se diz no Ac. da R.P. de 09/11/2023, publicado em www.dgsi.pt, com o nº de proc. 8056/22.9T8PRT.P1, “
a aceitação da responsabilidade por uma determinada situação jurídica não se confunde com a confissão dos factos que integram essa mesma situação. Enquanto aquela respeita à posição jurídica de uma das partes sobre os factos que podem constituir fundamento da ação, porventura prévia à própria ação, a confissão, seja ela judicial ou extrajudicial, incide diretamente sobre factos-fundamento (art.º 352º do Código Civil), como é o caso do pagamento, acima exemplificado, ou das circunstâncias de um acidente/sinistro.
Logo, não é por via daquele documento que o tribunal poderá dar como provados aqueles factos que a 1ª instância considerou indemonstrados sob as alíneas versadas no recurso.
Sempre aquela declaração não constitui confissão do pedido da ação, a outra via (processual) pela qual uma confissão pode ser relevante e produzir o efeito da condenação (art.ºs 277º, al. d), 283º, nº 1, 284º e 290º, nº 2, do Código de Processo Civil.
Por tudo o que o documento chamado à colação não pode ter aqui valor de confissão das circunstâncias do sinistro.
Nesta sede (…) a declaração não se constitui com eficácia probatória plena dos factos nos quais o Autor alicerçava a responsabilidade/culpa da Ré empreiteira.
Sem prejuízo, não deixa de se constituir como um elemento probatório a ter em conta, nos termos gerais da liberdade de apreciação da prova.
”.
Não podem, pois, as comunicações da recorrente, enviadas em sede de tentativa de resolução extra-judicial do litígio, valer como prova plena dos factos atinentes ao concreto sinistro ocorrido e aos danos sofridos pela recorrida em consequência do mesmo, havendo que apreciar toda a prova produzida em conformidade para decidir da impugnação da matéria de facto.
Passando à análise dos concretos pontos impugnados, pretende a recorrente que:
1)
Seja alterada a redacção do ponto 12 dos factos provados [
Em virtude das fortes chuvas e vento que se fizeram sentir nas duas primeiras semanas de Janeiro de 2020, a 16 de Janeiro do mesmo ano, as caleiras do imóvel transbordaram e danificaram o telhado, tectos e paredes.
], que corresponde ao facto alegado no art. 3º da petição inicial, para passar a ser: “As caleiras do imóvel transbordaram e danificaram tectos e paredes”, e o ponto 13 dos factos provados [
No que respeita ao telhado, os danos consistiram em telhas mexidas e danificadas.
], que corresponde ao facto alegado no art. 28º da petição inicial, seja considerado não provado.
Para o efeito, invoca o teor dos documentos juntos como Docs. 6, 9, 11 e 12 da petição inicial e Docs. 2, 3, 4 e 5 da contestação, os depoimentos das testemunhas AA e BB e as declarações de parte do gerente da A..
Considerando as alterações pretendidas, verifica-se que a recorrente efectivamente pretende eliminar a referência às “fortes chuvas e vento que se fizeram sentir nas duas primeiras semanas de Janeiro de 2020”, à data de 16 de Janeiro e aos danos do telhado.
Ora, a prova por si indicada não permite concluir que não existiram as fortes chuvas e vento, nem que não foi no dia 16 de Janeiro de 2020 que sucedeu a situação participada, nem que não houve danos no telhado.
Os documentos 6, 9 e 11 da petição inicial constituem apenas comunicações enviadas pela R. à A., que comprovam o que foi comunicado pela R. e a posição por esta assumida perante o sinistro comunicado, mas nada permitem demonstrar sobre a situação fáctica objectiva subjacente, nomeadamente sobre os factos em questão. Também nada permitem concluir sobre estes factos os documentos 2 (condições gerais da apólice) e 4 da contestação (fotografias da parte da frente da loja pertencente à A.).
Por seu turno os restantes documentos invocados apontam em sentido diferente do preconizado pela recorrente: o documento 12 da petição inicial respeita à factura e ao recibo de um serviço de reparação do telhado de chapa de fibrocimento efectuado em Abril de 2020 na Rua ..., ..., em Vila Nova de Gaia, do que resulta que houve efectivamente necessidade de reparar o telhado do local em causa, e os documentos 3 e 5 da contestação respeitam ao relatório da averiguação sobre o sinistro participado pela A. que foi efectuada para a R. e ao respectivo aditamento, sendo que o perito que se deslocou ao local deu conta da existência de condições atmosféricas adversas em Janeiro de 2020, admitindo que os danos fossem consequência da precipitação intensa, e tirou fotografias que incluiu no relatório, sendo visível na fotografia nº 3 tirada ao tecto falso, num local onde faltavam placas deste tecto e se vê o telhado exterior por cima, a falta ou deslocação de pelo menos uma placa de fibrocimento.
Quanto às testemunhas, a testemunha BB, o perito averiguador que se deslocou ao local em serviço da R., apenas referiu que não lhe foi transmitida, na primeira visita, a existência de danos no telhado, e que não foi verificar o telhado, pelo que obviamente não tem conhecimento sobre se existiam ou não esses danos, embora, como se disse, uma das fotografias que tirou denuncia a existência de danos no telhado exterior, do que se poderá não ter apercebido quando a tirou. No mais, posteriormente a testemunha não considerou os danos do telhado não porque não existissem, mas porque, como tinha concluído que o sinistro era devido a ter transbordado água da caleira, considerou que a situação do telhado não era decorrência destes danos. E de todo o modo, há que atentar em que a testemunha não verificou efectivamente o entupimento da caleira (posto que não foi ver o telhado, não tendo visto também a caleira, como salientou a testemunha AA, funcionária da A., que acompanhou o perito na visita que fez ao local), pelo que a causa da entrada da água podia não ser essa, ou não ser só essa (existindo pelo menos a abertura que se vê na referida fotografia do relatório da averiguação, também é possível que tenha entrado água por aí).
Por sua vez, quer a testemunha AA, quer o legal representante da A. afirmaram precisamente a existência de mau tempo, ambos se referindo às chuvas e a testemunha também a vento, e a ocorrência, em consequência, dos danos no telhado.
Finalmente, há que considerar que houve efectivamente mau tempo na zona do grande Porto, incluindo Vila Nova de Gaia, nos dias 15 e 16 de Janeiro de 2020, com chuva e vento fora do normal, como é facto notório, que pode ser consultado nos noticiários de televisão, rádio e jornais da época:
- “Público”, 14/01/2020, notícia consultável, e consultada, em
https://www.publico.pt/2020/01/14/sociedade/noticia/chuva-ventos-fortes-ondulacao-maritima-marcam-proximos-dias-1900325:
“As regiões Norte e o Centro serão as mais afectadas pela chuva durante os próximos dias, com o instituto a prever períodos de precipitação “forte e persistente” para a manhã desta quarta-feira. Os distritos do Porto, Viana do Castelo, Aveiro e Braga estão sob aviso amarelo, prevendo-se que chova de forma intensa até ao início da tarde de quarta-feira.” (…) “Entre as 18h desta terça-feira e as 6h de quarta-feira o IPMA prevê que as rajadas de vento cheguem até 80 quilómetros por hora no litoral e até 100 quilómetros por hora nas terras altas, nos distritos de Vila Real, Porto, Braga e Viana do Castelo.”
;
- “Público”, 15/01/2020, notícia consultável, e consultada, em
https://www.publico.pt/2020/01/15/sociedade/noticia/quatro-distritos-aviso-amarelo-causa-chuva-forte-1900391:
“Sete distritos de Portugal continental estão nesta quarta-feira sob aviso amarelo devido à previsão de agitação marítima forte e quatro estão sob aviso amarelo por causa da chuva forte, segundo o Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA). No Porto, um dos distritos abrangidos pelos dois avisos, a forte precipitação da madrugada desta quarta-feira entupiu as sarjetas e impediu o acesso das viaturas de emergência ao Hospital ..., em Vila Nova de Gaia.” (…) “O IPMA colocou também os distritos de Viana do Castelo, Braga, Porto e Aveiro sob aviso amarelo devido à previsão de períodos de chuva, por vezes forte, até às 9h desta quarta-feira.” (…) “A previsão aponta também para vento fraco a moderado do quadrante sul, soprando por vezes forte no litoral, com rajadas até 80 quilómetros por hora a norte do Cabo Mondego até ao início da manhã.”
;
- “Sic Notícias”, 15/01/2020, notícia consultável, e consultada, em
https://sicnoticias.pt/pais/2020-01-15-Protecao-Civil-alerta-para-chuva-e-vento-forte-no-Porto:
“
A chuva e o vento da última madrugada provocaram inundações na região do Porto. A Proteção Civil alerta agora para o estado do tempo na tarde de quinta-feira.
”;
- “Rádio Renascença”, 15/01/2020, notícia consultável, e consultada, em
https://rr.pt/noticia/pais/2020/01/15/chuva-forte-fez-dezenas-de-inundacoes-no-grande-porto/178415/:
“
O mau tempo no Grande Porto está a dar bastante trabalho aos bombeiros. Fonte da Proteção Civil Distrital confirmou à Renascença que, desde as 3h00 deram entrada cerca de 50 pedidos de ajuda, sobretudo, devido a inundações em casas e na via pública, consequência da chuva intensa que tem caído nas últimas horas na zona. A chuva intensa entupiu as sarjetas junto ao Hospital ..., em Vila Nova de Gaia, impedindo o acesso das viaturas de emergência às urgências. (…) Os distritos de Viana do Castelo, Braga, Porto e Aveiro sob aviso amarelo devido à previsão de períodos de chuva, por vezes forte.
”;
- “Observador”, 15/01/2020, notícia consultável, e consultada, em
https://observador.pt/2020/01/15/previsao-de-chuva-dita-fecho-da-avenida-gustavo-eiffel-no-porto-na-quinta-feira/:
“
A Avenida Gustavo Eiffel, no Porto, vai ser encerrada por precaução ao início da tarde de quinta-feira devido a uma precipitação acumulada esperada de entre 30 a 40 milímetros por metro quadrado, anunciou esta quarta-feira o comandante dos Sapadores Bombeiros. DD falava na conferência de imprensa que decorreu no Centro de Gestão Integrada, no Porto, onde fez o balanço das ocorrências que tiveram lugar na última madrugada decorrente das fortes chuvadas.
“Durante esta madrugada tivemos 30 ocorrências, a maioria devido a infiltrações ou inundações em espaço público. A ocorrência mais grave registada foi o arrastamento ou queda de alguns inertes na Avenida Gustavo Eiffel e Avenida ..., na zona da escarpa das ...”, declarou o responsável. (…)
Por prevenção, DD anunciou para quinta-feira, em que “há também a previsão de chuva intensa a partir das 15h (…) prolongando-se até às 21h com precipitações na ordem dos 30 a 40 milímetros por metro quadrado (…) o corte da Avenida Gustavo Eiffel ao início da tarde”. (…)
Questionado sobre se o nível de precipitação registado surpreendeu as autoridades, o responsável respondeu que o Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) lançou o aviso amarelo de precipitação para a última madrugada, mas que isso “não fazia prever este tipo de precipitação”. Na última madrugada registaram-se cerca de 34 milímetros de precipitação em oito horas, pelo que se espera uma precipitação idêntica [para quinta-feira]”, acrescentou.
O comandante lembrou ser esta a terceira vez que num curto espaço de tempo “há um fenómeno de precipitação intensa na cidade do Porto” (…).
Na última madrugada, acrescentou, houve “um pico de precipitação intensa entre as 5h e as 5h30, e a precipitação acumulada ao longo de oito horas, desde a meia-noite até às 8h, foi de 34 milímetros por metro quadrado”, informou DD.”
;
- “Observador”, 15/01/2020, notícia consultável, e consultada, em
https://observador.pt/2020/01/15/chuva-forte-provoca-inundacoes-no-porto-e-nas-urgencias-do-hospital-de-gaia/:
“
A forte precipitação registada na madrugada desta quarta-feira em Vila Nova de Gaia entupiu sargetas e impediu o acesso das viaturas de emergência às urgências do Hospital ... (…). De acordo com a TSF, que cita fonte do Comando Distrital de Operações de Socorro, a chuva intensa provocou também inundações em casas e ruas do Porto, Matosinhos e Gaia. Entre as 4h e as 8h os bombeiros foram chamados para mais de 40 ocorrências. Em declarações à Rádio Observador, fonte dos Bombeiros Sapadores de Vila Nova de Gaia explicou que a situação no hospital, provocada pela “forte precipitação registada entre as 5h30 e as 6h15”, foi rapidamente resolvida cerca das 7h.
”;
- “Público”, 15/01/2020, notícia consultável, e consultada, em
https://www.publico.pt/2020/01/15/local/noticia/chuva-forte-entupiu-sargetas-impediu-acesso-urgencias-hospital-gaia-1900389:
“As regiões Norte e o Centro são as mais afectadas pela chuva prevista para estes dias, com o Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) a prever períodos de precipitação “forte e persistente” para a manhã desta quarta-feira. O distrito do Porto é um dos que está sob aviso amarelo, prevendo-se que chova de forma intensa até ao início da tarde de quarta-feira.”
;
- “TVI Notícias”, 15/01/2020, notícia consultável, e consultada, em
https://tvi.iol.pt/noticias/videos/quedas-de-arvores-e-pequenas-derrocadas-devido-a-chuva-no-porto/5e1f0d110cf2f02ca42d009a:
“Quedas de árvores e pequenas derrocadas devido à chuva no Porto. Há registo de 50 pedidos de auxílio.”
. Do vídeo respeitante à notícia transmitida na televisão retira-se ainda que: “
Foi uma madrugada de precipitação intensa no distrito do Porto e em especial em Vila Nova de Gaia. No total os bombeiros contabilizaram aqui 15 ocorrências entre inundações e derrocadas”. (…) “A chuva forte que se fez sentir após as 5h30m da manhã e também alguma trovoada e alguns ventos no período de cerca de uma hora levou a que entre as 06h00 da manhã e as 07h00 da manhã se registassem mais de 50 ocorrências só no distrito do Porto (…) Situações nomeadamente de algumas quedas de árvores de algumas derrocadas e também de algumas inundações em meio urbano
”;
- “JPN” (“JornalismoPortoNet”), 15/01/2020, notícia consultável, e consultada, em
https://www.jpn.up.pt/2020/01/15/chuva-forte-regressa-esta-quinta-feira-ao-porto/:
“A
precipitação forte
que se abateu na madrugada desta quarta-feira sobre o distrito do Porto deve repetir-se amanhã, quinta-feira, sobretudo na parte da tarde. O período mais crítico, de acordo com informação recolhida pelo JPN junto do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA), deverá ocorrer “
entre as 15h00 e as 18h00
” de quinta-feira (16).
De acordo com o site de notícias da Câmara do Porto, citando informações da Proteção Civil Municipal, são esperadas, ao final da tarde de quinta-feira, “acumulações na ordem dos
30/40mm, em três horas
”.
A título comparativo, entre as 05h00 e as 06h00 da madrugada de quarta-feira, foi registada uma acumulação de 21 a 25 milímetros, numa hora, na estação meteorológica de ..., no Porto, segundo apurou o JPN.
O distrito do Porto está sob
aviso amarelo
devido à previsão de
agitação marítima forte
e de
vento forte
.
“Foi emitido um aviso de rajada para o distrito do Porto para o dia de amanhã [quinta-feira],
rajadas que podem ocorrer especialmente entre as 09h00 e as 18h00
. As rajadas podem atingir os 80 quilómetros por hora”, explicou ainda ao JPN a meteorologista EE. (…)
Nos distritos do Porto e Gaia as ocorrências registadas, nesta madrugada, prenderam-se com
infiltrações, lençóis-de-água na cidade e inundações na via pública e em casas
. (…)
FF, presidente da comissão distrital da Proteção Civil do Porto, apontou o registo de “cerca de
cinco dezenas de ocorrências
a maioria das quais relacionadas com a forte precipitação e com algumas inundações em meio urbano, mas felizmente sem danos materiais avultados nem registo de vítimas”, afirmou em declarações à Antena 1. (…) FF alertou, ainda à estação pública, para as previsões de
agravamento da situação meteorológica esta quinta-feira
, sendo provável que o número de ocorrências seja “maior”.
”;
- “RTP”, 16/01/2020, notícia consultável, e consultada, em
https://www.rtp.pt/noticias/pais/chuva-intensa-ate-sabado_a1198387:
“As regiões norte e centro de Portugal continental vão continuar a ser fustigadas pelo mau tempo até este sábado. A chuva vai cair com força e com frequência, acompanhada de fortes rajadas de vento, que podem atingir os 100 quilómetros por hora. (…) Os distritos de Porto, Braga, Viana do Castelo e Aveiro estão sob aviso laranja, a partir do meio-dia e até às seis da tarde.”
;
- “RTP”, 16/01/2020, notícia consultável, e consultada, em
https://www.rtp.pt/noticias/pais/chuva-forte-ate-sabado-e-depois-regressa-o-tempo-seco-e-frio_n1198357:
“A chuva deverá hoje cair com intensidade e frequência, especialmente nas regiões do norte e centro (…). Em declarações à Lusa, a meteorologista GG, do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA), adiantou que até sábado está prevista a passagem de sucessivas ondulações frontais que vão trazer chuva forte. "Hoje de manhã temos já períodos de chuva em geral fraca e a partir da manhã prevê-se um aumento da intensidade e frequência da precipitação, especialmente no norte e cento, acompanhada de vento forte com rajadas nas terras altas até 100 quilómetros por hora", disse.
Esta situação levou já a Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil (ANEPC) a emitir na quarta-feira um alerta para o agravamento das condições meteorológicas, em particular nos distritos de Viana do Castelo, Vila Real, Braga e Porto. (…)
O IPMA emitiu também aviso amarelo para Viana do Castelo, Braga e Porto devido à previsão de períodos de chuva, por vezes forte, entre as 12:00 e as 18:00 de hoje. Os distritos de Viana do Castelo, Porto, Braga, Aveiro, Vila Real, Guarda, Viseu e Coimbra devido ao vento forte de sul, com rajadas até 80 quilómetros por hora no litoral e rajadas até 100 quilómetros por hora nas terras altas entre as 09:00 e as 18:00 de hoje.”
.
Assim, dos elementos de prova referidos, e tendo nomeadamente em conta o que a testemunha AA referiu sobre a última visita que havia feito ao local antes do dia em que constatou os danos verificados, pode efectivamente considerar-se demonstrado que ocorreram fortes chuvas e vento nos dias 15 e 16 Janeiro, o que causou, num desses dias, que as caleiras transbordassem e causassem danos nos tectos e nas paredes (a chuva), bem como que tenham sido mexidas e danificadas as chapas de fibrocimento (não propriamente denominadas de telhas) do telhado (o vento).
Donde, não tem razão a recorrente na alteração pretendida, que não é suportada pela prova produzida, havendo apenas que efectuar pequenas alterações aos dois pontos da matéria de facto, no sentido de melhor ajustar a sua redacção ao que efectivamente sucedeu.
Altera-se, pois, a
redacção dos pontos 12 e 13 dos factos provados
, mas unicamente nos seguintes termos:
- «12. Em virtude das fortes chuvas e do vento que se fizeram sentir nos dias 15 e 16 de Janeiro de 2020, a água transbordou das caleiras do imóvel e danificou tectos e paredes e o vento danificou o telhado.»;
- «13. No que respeita ao telhado, os danos consistiram em chapas de fibrocimento mexidas e danificadas.».
2)
Seja alterada a redacção do ponto 17 dos factos provados [
A autora enviou à ré os documentos solicitados.
], para passar a ser: “A autora enviou à ré orçamentos de reparação e a caderneta predial do imóvel, que haviam sido solicitados”.
Considerando as alterações pretendidas, verifica-se que a recorrente efectivamente pretende que não se considere provado que a A. enviou o IBAN (cfr. ponto 16 da matéria de facto).
Ora, tendo em conta o objecto da acção e do recurso, a factualidade pretendida alterar quanto a este ponto não tem qualquer utilidade, sendo irrelevante, para a apreciação do mérito da causa e do presente recurso.
Sendo irrelevante tal factualidade para a apreciação do mérito da causa, e a fim de não se praticarem actos inúteis no processo (o que até se proíbe no art. 130º do C.P.C.), não há que conhecer da impugnação deduzida nesta parte, quanto a este ponto dos factos provados (neste sentido cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina, 2022, 7ª edição actualizada, pág. 334, nota 526, e, entre outros, o Ac. do STJ de 23/1/2020 (proc. 4172/16.4TFNC.L1.S1), C.J.S.T.J., tomo I, pág. 13, e o Ac. da R.P. de 05/11/2018, publicado na Internet, em www.dgsi.pt, com o nº de processo 3737/13.0TBSTS.P1).
Donde, não se conhece da impugnação da matéria de facto apresentada pela recorrente no que respeita ao ponto 17 dos factos provados.
3)
O ponto 24 dos factos provados [
Para que não resulte uma discrepância de cores, não deverão ser repintados apenas os pontos de humidade existentes na parede, mas sim a totalidade das paredes, com uma área de 110 m2.
], que corresponde a matéria alegada nos arts. 36º, 38º e 39º da petição inicial, seja considerado não provado.
Para o efeito, invoca o teor dos documentos juntos como Docs. 6, 9, 11 e 12 da petição inicial e Docs. 2, 3, 4 e 5 da contestação e os depoimentos das testemunhas AA e BB.
Vista a argumentação da recorrente na motivação do recurso, verifica-se que no fundo o que a mesma questiona é a eventual obrigação de ressarcir a totalidade da pintura das paredes do imóvel, aduzindo que a pintura já era necessária antes da ocorrência do sinistro e que sempre ocorreria antes da celebração de novo arrendamento, sendo a reclamação da A. um aproveitamento por parte desta, e alegando que o imóvel tinha as paredes degradadas devido ao decurso do tempo e da normal utilização comercial.
Ora, a questão de saber se a recorrente é responsável por ressarcir o valor de toda a pintura das paredes é questão de direito, independentemente de, em termos de facto, ser necessário pintar todas as paredes, sendo o facto de haver degradação, um facto que pode ter relevância para essa apreciação.
Logo, o que se conclui é que o que verdadeiramente se pretende é incluir nos factos provados a degradação das paredes, sendo que o facto que consta do ponto 24 é um facto notório, de conhecimento comum: qualquer pessoa de médio conhecimento sabe que a pintura parcial de paredes tem como consequência a discrepância de cores, até porque as cores diferem de lote para lote de tinta (o bege de um lote de tinta do ano de 2020 é diferente do bege de um lote de tinta do ano de 2024) e a própria tonalidade da cor se vai alterando com o tempo, por exemplo por influência da luz (mesmo que as paredes sejam regularmente lavadas e bem tratadas), pelo que quando há que pintar paredes por algum motivo, tem de se pintar a totalidade – não havendo qualquer motivo para considerar tal facto não provado.
A recorrente alegou o referido facto no art. 22º da contestação, remetendo para o aditamento ao relatório de peritagem, nos seguintes termos: “paredes deterioradas pelo uso e utilização do anterior inquilino”, não constando o mesmo dos factos provados nem dos factos não provados, pelo que a sua pretensão é de inclusão de facto alegado que não consta do elenco da matéria de facto.
Considerando o depoimento da testemunha BB, que referiu que havia no local paredes “degradadas”, numa parte “relativa a água” e outra parte “degradada da utilização”, e a fotografia nº 11 do aditamento ao relatório elaborado pela testemunha, onde é visível deterioração da tinta (aparentemente decorrente de algum móvel que ali esteve encostado durante muito tempo), vendo-se que a mesma descascou por utilização, e não em consequência de água, afigura-se que é de dar como provado que “nas paredes existiam zonas de tinta descascada devido ao uso”, aditando-se esse facto ao elenco dos factos provados, passando a ser o ponto 24-A.
Adita-se, pois, aos factos provados
o ponto 24-A
, com a seguinte redacção:
- «24-A. Nas paredes existiam zonas de tinta descascada devido ao uso.».
4)
Os pontos 26, 27 e 28 dos factos provados [
26. O custo da mão de obra para a colocação do tecto falso é de €3.700,00. 27. Uma vez que o teto do imóvel segurado não é plano, a sua substituição implica realizar recortes e desperdício de material. 28. O material para a reparação do tecto falso tem um custo de € 1.836,01.
], que corresponde a matéria alegada nos arts. 45º, 49º e 51º da petição inicial, sejam considerados não provados, e a parte respeitante à área do tecto falso do facto da alínea F) dos factos não provados [
A reparação do tecto falso, com uma área de 266 m2, comporta um custo de € 3.325,00 de mão-de-obra e um custo de € 1.338,51 de material.
], correspondente a matéria alegada no art. 23º da contestação, seja considerada provada, com a seguinte redacção: “o tecto falso tem uma área de 266 m2”.
Para o efeito, invoca o teor dos documentos juntos como Docs. 6, 8, 9, 11 e 12 da petição inicial e Docs. 2, 3, 4 e 5 da contestação, os depoimentos das testemunhas AA e BB e as declarações de parte do gerente da A..
Está aqui em causa a matéria respeitante ao tecto falso do imóvel e sua reparação.
Como já se disse
supra
, “os documentos 6, 9 e 11 da petição inicial constituem apenas comunicações enviadas pela R. à A., que comprovam o que foi comunicado pela R. e a posição por esta assumida perante o sinistro comunicado, mas nada permitem demonstrar sobre a situação fáctica objectiva subjacente, nomeadamente sobre os factos em questão. Também nada permitem concluir sobre estes factos os documentos 2 (condições gerais da apólice) e 4 da contestação (fotografias da parte da frente da loja pertencente à A.)”. Igualmente o documento 12 da petição inicial respeita à factura e ao recibo de um serviço de reparação do telhado exterior (de chapa de fibrocimento) do imóvel e não ao tecto falso.
Por sua vez, a testemunha AA apenas esclareceu que foram efectuadas as reparações (“foi pintada a loja, foram colocadas todas as placas e arranjaram o telhado”), não sabendo, mas tendo ideia que tal custou “à volta de oito mil euros”, nada referindo no seu depoimento sobre o facto do ponto 27 (nenhuma pergunta lhe foi colocada a propósito). E o representante legal da A. igualmente referiu a reparação do tecto interior e do exterior e a pintura do local, o que custou “oito mil e tal euros”, que já foram pagos, tendo os respectivos comprovativos, que “é tudo o que está no processo”, acrescentando ainda que “foram apresentados os orçamentos e foi realizada a obra mediante esses orçamentos”. Das suas declarações nada resulta, do mesmo modo, sobre o facto do ponto 27 (também a si nada foi perguntado a propósito).
Quanto à testemunha BB, a mesma explicou o que viu quando foi ao local e confirmou o teor do relatório e do respectivo aditamento que elaborou, e que constituem os documentos 3 e 5 da contestação, mas igualmente nada referiu sobre o facto constante do ponto 27 (igualmente nada lhe foi perguntado).
Assim, quanto à matéria em causa nestes pontos impugnados, a prova produzida é a que resulta do relatório e do respectivo aditamento, confirmados pela testemunha BB, conjugados com o orçamento para a mão-de-obra respeitante à colocação do tecto falso e a “factura pró-forma” respeitante aos materiais a aplicar no tecto falso, que constituem os documentos 14 e 16 da petição inicial, que foram apresentados àquela testemunha e são por si referidos no aditamento, esclarecendo a mesma que aceitou “os custos unitários” e que a divergência entre o valor por si encontrado e o reclamado pela segurada decorre da diferença quanto às áreas consideradas, posto que os custos unitários utilizados para os cálculos foram os mesmos (anote-se que a testemunha HH, também ouvida, não indicada pela recorrente, nada sabia sobre os contornos concretos do sinistro em causa, apenas conhecendo o que constava do processo da seguradora aberto na sequência da participação da segurada).
Destes elementos, e ainda do documento 8 junto com a petição inicial, cujo teor é invocado pela recorrente, retira-se que a área para aplicação do tecto falso é de 266 m2, mas como as placas a aplicar têm as medidas de 1,2 m por 0,6 m o total a adquirir tem de medir mais do que os 266 m2 (tendo cada placa a área de 0,72 m2 [1,2m x 0,6 m], 369 placas correspondem a 265,68 m2, o que não chega para cobrir o tecto, e 370 placas correspondem a 266,40 m2, ultrapassando em 40 cm a medida do tecto a cobrir), que o custo unitário de mão-de-obra para aplicar o tecto falso é de € 12,50/m2 e que o custo unitário das placas a aplicar, de 1,20 m por 0,6 m cada, é de € 6,29/m2. E retira-se ainda que a reclamação de 296 m2 para o material a aplicar no tecto falso por parte da A. não se deveu ao tecto não ser plano, mas à circunstância de haver “uma perda de material relativamente à obra que não é aproveitável visto serem placas de 1200x600”, como refere o gerente da A. na missiva enviada à R. em 29/03/2021, que constitui o aludido documento 8 junto com a petição inicial.
Que a aplicação de um tecto falso em material constituído por diversas placas pressupõe em regra a necessidade de realizar recortes para adaptação aos ângulos e formato de cada concreto local, com o consequente desperdício de algum material, é facto do conhecimento comum das pessoas de saber médio – aliás, as empresas do ramo, que vendem tal tipo de material, costumam aconselhar o acréscimo de uma percentagem das medidas à compra (a título de exemplo, veja-se que a “Casa Peixoto” recomenda que se adicione “10% extra” à encomenda de painel de vinil – in
https://casapeixoto.pt/pavimentos-e-revestimentos/vinilicos-e-pvc/revestimentos-vinilicos-e-pvc/36571-painel-vinil-1220x2440x3-5mm-out?gpsh&gad_source=1&gclid=Cj0KCQiA_NC9BhCkARIsABSnSTb5ICim9DvTgaKBxt
L053QNAVvBNHnHiCXNLl5T1aRsgc1Lmzk66GoaAsXkEALw_wcB
).
Em face do acabado de referir, há que alterar a
redacção dos pontos 26, 27 e 28 dos factos provados e da alínea F) dos factos não provados
nos seguintes termos:
- «26. O custo da mão-de-obra para a colocação do tecto falso é de € 12,50/m2.»;
- «27. A substituição do tecto falso, com uma área de 266 m2, implica realizar recortes e desperdício de material.»;
- «28. O material para a reparação do tecto falso, composto por placas vinílicas de 1,2 m x 0,6 m cada, tem o custo de € 6,29/m2.»;
- «F. O tecto do imóvel não é plano.».
Quanto à matéria desconsiderada [
26. O custo da mão de obra é de €3.700,00. 28. O material para a reparação tem um custo de € 1.836,01.
F. A reparação do tecto falso comporta um custo de € 3.325,00 de mão-de-obra e um custo de € 1.338,51 de material.
], trata-se de matéria conclusiva, que depende de mero cálculo aritmético (multiplicação do custo unitário pela dimensão a considerar - sendo os valores diferentes referidos pelas partes decorrentes precisamente das diferenças com que efectuaram esse cálculo quanto às áreas) e da consideração, ao nível da matéria de direito, de qual o valor da área a ter em conta para o cálculo (sendo que não há dúvidas entre as partes quanto ao facto real de que o tecto tem a área de 266 m2, a diferença está no entendimento de que só esta área deve ser considerada ou de que deve ser contemplado um valor para desperdícios).
Com efeito, no elenco dos factos provados e não provados apenas devem constar “factos” e não matéria conclusiva e/ou de direito, e daí a eliminação dos segmentos referidos do elenco dos factos provados e dos factos não provados onde constava.
No sentido da exclusão da matéria conclusiva do elenco dos factos provados da sentença, por via do disposto no art. 607º, nº 4, do C.P.C., cfr. o Ac. do STJ de 29/04/2015, publicado em www.dgsi.pt, com o nº de proc. 306/12.6TTCVL.C1.S1, e o Ac. da R.E. de 28/06/2018, publicado no mesmo sítio da Internet, com o nº de proc. 170/16.6T8MMN.E1. Como se refere neste último acórdão, “na decisão sobre a matéria de facto apenas devem constar os factos provados e os factos não provados, com exclusão de afirmações genéricas, conclusivas e que comportem matéria de direito”, pelo que, “mesmo no âmbito da vigência do actual CPC, a decisão sobre a matéria de facto deve estar expurgada” dessas afirmações,
devendo ser eliminado qualquer ponto da matéria de facto que “integre uma afirmação ou valoração de factos que se insira na análise das questões jurídicas que definem o objecto da acção, comportando uma resposta, ou componente de resposta àquelas questões
” – sublinhado nosso.
5)
O ponto 29 dos factos provados [
29. A reparação dos danos supra indicados apresenta um custo total de € 8.138,21 e, descontando a franquia contratualmente prevista de 10%, €7.324,39.
] seja considerado não provado, e a matéria das alíneas D) e E) dos factos não provados [
D.
Previamente à ocorrência do sinistro, a autora não adoptara medidas preventivas tendentes à sua protecção contra eventuais sinistros. E. Os danos verificados no imóvel seguro são consequência, não de fortes chuvas e ventos, mas sim de falta de adequada manutenção do edifício.
] seja considerada provada.
Trata-se aqui também de matéria conclusiva: no caso do ponto 29, dependente de mero cálculo aritmético, nos mesmos termos já referidos, implicando a soma do custo da pintura das paredes e da reparação do tecto falso e do telhado exterior, sendo que a factualidade que deve constar da matéria de facto é precisamente aquela que permita efectuar o referido cálculo e concluir pela responsabilidade, e em que medida, da seguradora, pela reparação dos danos, o que constitui matéria de direito e não de facto.
No caso das alíneas D) e E), a matéria em causa é puramente conclusiva: dizer que a A. não adoptou medidas preventivas tendentes à protecção contra eventuais sinistros é uma conclusão a retirar de factos concretos respeitantes a que medidas específicas sejam essas e quais as que não foram adoptadas (o que não foi alegado pela R., que se limitou a aduzir a conclusão, sem os factos que a permitiam retirar), assim como dizer que os danos resultaram de falta de adequada manutenção do edifício – trata-se de uma conclusão que só se poderia retirar dos factos caracterizadores (também estes não alegados) do que seria uma manutenção adequada do edifício (que actos teriam que ser praticados para o manter) e para evitar a específica situação ocorrida (por exemplo dizer que no local existia matéria combustível não seria uma causa adequada de uma ocorrência relacionada com entrada de água, assim como dizer que falta de isolamento das portas e janelas não seria causa adequada de um incêndio …).
E ainda que assim se não entendesse, sempre no caso não foi produzida qualquer prova da qual resultasse essa falta de prevenção e de manutenção por parte da A..
Assim, nos mesmos termos já referidos, há que eliminar a matéria conclusiva do elenco dos factos provados e não provados, pelo que se
eliminam as alíneas D) e E) dos factos não provados
.
Quanto ao ponto 29 dos factos provados, eliminando-se a matéria conclusiva, há que substituí-la pelos factos concretos que permitem alcançar a conclusão em sede de tratamento de matéria de direito (e decidir as questões de direito colocadas no recurso pela recorrente), que foram alegados, sendo que, considerando o que consta dos pontos 22, 23 e 24 dos factos provados e da alteração determinada aos pontos 26, 27 e 28 dos factos provados, se verifica que apenas falta o facto respeitante à área das paredes afectada pela entrada de água, que foi alegado no art. 23º da contestação (57 m2), e consta da alínea G) dos factos não provados.
Ora, tal facto resulta efectivamente provado, nos mesmo termos já referidos, da conjugação do depoimento da testemunha BB com o teor do relatório e do respectivo aditamento que elaborou e confirmou, devendo o mesmo passar a constar do ponto 24 dos factos provados.
Donde, há que
eliminar o ponto 29 do elenco dos factos provados
, não havendo que passar o mesmo para os factos não provados, havendo ainda que
alterar a redacção do ponto 24 dos factos provados e da alínea G) dos factos não provados
nos seguintes termos:
- «24. Para que não resulte uma discrepância de cores, não deverão ser repintados apenas os pontos de humidade existentes na parede, numa área de 57 m2, mas sim a totalidade das paredes, com uma área de 110 m2.»;
- «G. Para a reparação do imóvel segurado é necessário apenas rectificar pinturas na referida área de 57 m2 (três paredes), com um custo de € 570,00.».
6)
A matéria da alínea C) dos factos não provados [
C. Quando ocorreu o sinistro, o imóvel seguro encontrava-se ao abandono.
] seja considerada provada.
Para o efeito, invoca o teor dos documentos juntos como Docs. 6, 9 e 11 da petição inicial e Docs. 2, 3, 4 e 5 da contestação, os depoimentos das testemunhas AA e BB e as declarações de parte do gerente da A..
Ora, como decorre até do que já se foi dizendo anteriormente, a propósito dos restantes pontos impugnados, os documentos 6, 9 e 11 da petição inicial e 2 da contestação nada contêm de que possa resultar este concreto facto.
Por sua vez, dos restantes documentos (fotografia da loja com a placa “aluga-se”, relatório e aditamento efectuados pelo perito ao serviço da seguradora), dos depoimentos indicados e das declarações de parte nada mais decorre senão que o espaço se encontrava devoluto, como ficou a constar do ponto 30 dos factos provados, não havendo qualquer elemento probatório que permita concluir que, para além disso se encontrava ao abandono (sendo que, obviamente, não é a mesma coisa um imóvel estar devoluto [desocupado, vazio] e estar abandonado [posto de lado, desprezado, maltratado]). Aliás, da segunda fotografia junta como documento 4 da contestação consegue ver-se que o local está desocupado, mas está limpo, não se vendo lixo, nem tem aspecto de abandonado.
Não resulta, pois, da prova produzida, que haja que ser diversa a resposta dada a este ponto da matéria de facto não provada, nada havendo que alterar nesta parte.
É, assim, de prover apenas parcialmente, nos termos
supra
referidos, a impugnação da matéria de facto apresentada pela recorrente.
*
Para além do resultado da impugnação da matéria de facto, há ainda que conhecer oficiosamente das seguintes questões que se levantam quanto a matéria elencada nos factos provados que decorre de prova documental, e quanto a lapso na transcrição do facto provado em comparação com o facto que foi alegado, atento o que decorre do art. 607º, nº 4, aplicável aos acórdãos por força do art. 663º, nº 2, ambos do C.P.C.:
- o
ponto 10
dos factos provados [
Para ambas as coberturas, vigora uma franquia, a cargo do segurado, de 10% sobre o valor do sinistro, de valor mínimo de € 100,00.
] alude à franquia aplicável às coberturas de “tempestades” (ponto 5) e “danos por água” (ponto 8) do contrato de seguro em causa nos autos. A franquia aplicável no caso é a que consta das respectivas condições particulares do referido contrato, conforme documento 1 junto com a contestação. Nas referidas condições particulares consta que a cobertura de “tempestades” tem efectivamente uma franquia de 10% sobre o valor do sinistro, no mínimo de € 100,00, mas já quanto à cobertura de “danos por água” a franquia contratada é somente de € 100,00. Assim, há que rectificar em conformidade a redacção deste ponto, de modo a reproduzir o que efectivamente consta do contrato nesta parte, pelo que a mesma passa a ser:
Para a cobertura referida no ponto 5 vigora uma franquia, a cargo do segurado, de 10% sobre o valor do sinistro, no mínimo de € 100,00, e para a cobertura referida no ponto 8 vigora uma franquia, a cargo do segurado, de € 100,00.
;
- o
ponto 23
dos factos provados [
A reparação das paredes e tectos do referido imóvel custa € 1.200,00.
] contém um lapso. Com efeito, o que foi alegado pela A., nos arts. 32º e 33º da petição inicial, foi que o valor de € 1.200,00 respeita à reparação (ou rectificação) da pintura das paredes, sendo esse o facto que decorre do documento respectivo (Doc. 13 da petição inicial), e que foi tido em conta pelo tribunal para fundamentar a sua resposta à matéria de facto, como consta da respectiva motivação. Assim, há que rectificar em conformidade a redacção deste ponto, de modo a reproduzir o que efectivamente consta do documento que serviu de base à sua prova, pelo que a mesma passa a ser:
A reparação da pintura das paredes do referido imóvel custa € 1.200,00.
.
**
Apreciemos a terceira questão.
Tendo em conta o resultado do tratamento da questão anterior, a factualidade a ter em conta para apreciação da pretensão da recorrente é a que consta dos factos dados como provados na sentença recorrida e já transcritos, com as seguintes alterações aos pontos 10, 12, 13, 23, 24, 24-A, 26, 27, 28 e 29:
10. Para a cobertura referida no ponto 5 vigora uma franquia, a cargo do segurado, de 10% sobre o valor do sinistro, no mínimo de € 100,00, e para a cobertura referida no ponto 8 vigora uma franquia, a cargo do segurado, de € 100,00.
12. Em virtude das fortes chuvas e do vento que se fizeram sentir nos dias 15 e 16 de Janeiro de 2020, a água transbordou das caleiras do imóvel e danificou tectos e paredes e o vento danificou o telhado.
13. No que respeita ao telhado, os danos consistiram em chapas de fibrocimento mexidas e danificadas.
23. A reparação da pintura das paredes do referido imóvel custa € 1.200,00.
24. Para que não resulte uma discrepância de cores, não deverão ser repintados apenas os pontos de humidade existentes na parede, numa área de 57 m2, mas sim a totalidade das paredes, com uma área de 110 m2.
24-A. Nas paredes existiam zonas de tinta descascada devido ao uso.
26. O custo da mão-de-obra para a colocação do tecto falso é de € 12,50/m2.
27. A substituição do tecto falso, com uma área de 266 m2, implica realizar recortes e desperdício de material.
28. O material para a reparação do tecto falso, composto por placas vinílicas de 1,2 m x 0,6 m cada, tem o custo de € 6,29/m2.
29.
eliminado
.
Havendo que considerar, igualmente, as alterações introduzidas à matéria de facto não provada, quanto às alíneas D), E), F) e G):
D.
eliminada
.
E.
eliminada
.
F. O tecto do imóvel não é plano.
G. Para a reparação do imóvel segurado é necessário apenas rectificar pinturas na referida área de 57 m2 (três paredes), com um custo de € 570,00.
*
Atenta a matéria de facto que se encontra definitivamente fixada, verifica-se que está provado que entre a A. e a R. foi celebrado um contrato de seguro do ramo “multi-riscos industrial”, incluindo as coberturas de “tempestades” e “danos por água”, tendo por objecto o imóvel referido no ponto 1 dos factos provados (a apólice e as respectivas condições gerais, especiais e particulares encontram-se juntas com a contestação), tendo sucedido que, em virtude das fortes chuvas e do vento que se fizeram sentir nos dias 15 e 16 de Janeiro de 2020, a água transbordou das caleiras do imóvel e danificou tectos e paredes e o vento danificou o telhado.
Das condições especiais da apólice do contrato de seguro fazem parte, entre outras, as seguintes cláusulas:
“
100 - TEMPESTADES
1. Esta condição especial garante os danos diretamente causados aos bens seguros em consequência de:
a) Tufões, ciclones, tornados e ventos fortes ou choque de objetos arremessados ou projetados pelos mesmos, sempre que a sua violência destrua ou danifique vários edifícios de boa construção, objetos ou árvores sãs, num raio de 5 km envolventes do local onde se encontram os bens seguros.
Para efeitos da presente cobertura consideram-se como edifícios de boa construção, aqueles cuja estrutura, paredes exteriores e cobertura sejam construídas de acordo com a regulamentação vigente à data da construção, utilizando materiais resistentes ao vento, designadamente betão armado, alvenaria e telha cerâmica. Em caso de dúvida, poderá o segurado fazer prova, por documento emitido pela estação meteorológica mais próxima, de que, no momento do sinistro, os ventos atingiram velocidade excecional (velocidade superior a 90 km/hora);
b) Queda de neve ou granizo;
c) Alagamento pela queda de chuva, neve ou granizo, desde que estes agentes atmosféricos penetrem no interior do edifício em consequência dos riscos cobertos pela alínea a), na condição que estes danos se verifiquem nas 48 horas seguintes ao momento da destruição parcial do edifício.
2. São considerados como constituindo um único e mesmo sinistro os estragos ocorridos nas 72 horas que se seguem ao momento em que os bens seguros sofram os primeiros danos.
(…)
150 - DANOS POR ÁGUA
GARANTIA
1. Pela presente condição especial ficam cobertos os danos diretamente causados aos bens seguros em consequência de:
a) Rotura, defeito, entupimento ou transbordamento, súbito e imprevisível, da rede interior de distribuição de água e esgotos do edifício, incluindo os sistemas de esgoto das águas pluviais, assim como dos aparelhos ou utensílios ligados à rede de distribuição de água e de esgotos e respetivas ligações;
b) Torneiras deixadas abertas durante falta de abastecimento de água por facto não imputável ao segurado, quando esta seja:
b.1) Comprovada pelos respetivos serviços abastecedores; ou
b.2) Decorrente da falta de energia elétrica comprovada pelos respetivos serviços abastecedores, nos casos em que o abastecimento de água dependa diretamente do fornecimento de energia elétrica;
2. Para além das exclusões previstas nas condições gerais, ficam ainda excluídos do âmbito da presente cobertura, os danos causados:
a) Por infiltrações através de paredes, tetos, portas, janelas, claraboias, terraços ou marquises, bem como por goteiras, humidade, condensação e/ou oxidação, exceto quando se trate de danos resultantes da cobertura e ainda o refluxo de águas provenientes de canalizações ou esgotos não pertencentes ao edifício;
(…)
c) Em edifícios, devidos a notória falta de manutenção ou conservação das respetivas redes de água e esgotos do edifício após a existência de vestígios claros e inequívocos de que se encontra deteriorada ou danificada, constatáveis nomeadamente por oxidação, infiltrações ou manchas;
(…)
”.
Na sentença recorrida considerou-se, sem outras explicações, que “a autora conseguiu demonstrar que os danos verificados no seu imóvel – telhado, tecto e paredes - tiveram como causa fortes chuvas e vento, que danificaram telhas, entupiram caleiras que transbordaram e permitiram a infiltração de água, danificando também tectos e paredes do seu interior, situação fáctica que se enquadra nos riscos seguros objecto do contrato entre as partes celebrado”.
Defende a R. que a situação ocorrida não está abrangida nas coberturas do seguro, porque não se verificou a ocorrência de um fenómeno meteorológico anormal, mas apenas chuvas e ventos característicos de um inverno nortenho.
Vejamos.
O regime jurídico do contrato de seguro está actualmente regulado no anexo ao D.L. 72/2008, de 16/04, que entrou em vigor no dia 01/01/2009 (art. 7º) e revogou, entre outras, as normas dos arts. 425º a 462º do Cód. Comercial (art. 6º).
Aplica-se, pois, à presente situação, considerando que quer o contrato de seguro, quer o próprio sinistro em causa ocorreram após a entrada em vigor daquele diploma.
«Contrato de seguro é o contrato pelo qual o segurador, em troca do pagamento de uma soma em dinheiro (prémio) por parte do contratante (segurado), se obriga a manter indemne o segurado dos prejuízos que podem derivar de determinados sinistros (ou casos fortuitos), ou ainda a pagar (ao segurado ou a terceiro) uma soma em dinheiro conforme a duração ou os eventos da vida de uma ou várias pessoas» - Francisco Guerra da Mota, O Contrato de Seguro Terrestre, vol. I, pág. 271,
apud
Clara Lopes, Seguro de Responsabilidade Civil Automóvel, Lisboa, 1987, pág. 15.
O contrato de seguro compreende, portanto, duas prestações: a da seguradora, de conteúdo complexo, consistente na assunção do risco e na obrigação de pagar um determinado capital se esse sinistro se verificar; e a do segurado, consistente na obrigação de pagamento do prémio.
Trata-se de um contrato:
- comercial, pelo menos quanto à seguradora;
- formal, nos termos entendidos no art. 32º, nº 2, do referido diploma legal, sendo esta agora uma formalidade
ad probationem
(cfr. Lei do Contrato de Seguro anotada, Pedro Romano Martinez e outros, Almedina, pág. 170);
- bilateral ou sinalagmático, pois, como vimos, dele resultam obrigações para ambas as partes, verificando-se um nexo de reciprocidade ou interdependência entre elas;
- oneroso, visto cada parte prosseguir uma vantagem pessoal que é contrapartida daquela que confere à outra;
- aleatório: o segurador não sabe se terá ou não de efectuar a prestação, ou se há certeza da prestação, quando esta se efectuará, não havendo, porém, incerteza na prestação do segurado;
- de execução continuada;
- de adesão;
- de boa-fé (a qual é um princípio geral das obrigações – arts. 227º e 762º do C.C. -, existindo, em matéria de seguros uma tutela reforçada deste princípio, que aí assume um significado muito próprio) – o segurador é obrigado a acreditar no segurado e, em contrapartida, este é obrigado a comportar-se com franqueza e lealdade, surgindo uma especial responsabilização do tomador do seguro perante as suas declarações, que, nos termos do disposto no art. 25º e 26º do mesmo diploma, devem ser exactas e não reticentes.
Entre as várias classificações possíveis de contratos de seguro, podemos qualificar o dos autos como um
seguro de danos
, os quais visam cobrir activos patrimoniais e têm como efeito colocar o segurado numa situação igual àquela em que se encontrava antes do evento, o que assim já não sucede com os seguros de responsabilidade civil, que visam cobrir valores patrimoniais passivos, obrigando-se as seguradoras a pagar indemnizações a terceiros.
Na verdade, o contrato celebrado entre a A. e a R. cobre o risco de ocorrência de danos no imóvel do segurado (activo patrimonial), por força de variados eventos concretamente previstos nas condições particulares da apólice.
Os seguros de danos são informados por dois princípios basilares:
- Em primeiro lugar, por um princípio indemnizatório, nos termos do qual as prestações a que o segurador está obrigado não podem ultrapassar os danos reais do segurado (cfr. art. 128º da Lei do Contrato de Seguro). Pretende-se, desta forma, evitar o enriquecimento do segurado e demovê-lo de eventuais tentações de provocar sinistros.
- Em segundo lugar, por um princípio de
liberdade contratual
. Este princípio resulta, desde logo, do art. 405º do Código Civil, sendo reafirmado pelo art. 11º da Lei do Contrato de Seguro.
O princípio em análise implica, quanto à seguradora, o poder de incluir na apólice cláusulas de exclusão da cobertura de determinados riscos, estipular um descoberto, isto é, assumir o risco de forma parcial, ficando o restante a cargo do segurado - estas cláusulas visam que o segurado se empenhe em evitar o dano -, ou estabelecer franquias, ou seja, estabelecer o montante mínimo a partir do qual a seguradora responderá – embora, hoje em dia, esta liberdade contratual esteja substancialmente cerceada, nomeadamente pela legislação sobre cláusulas contratuais gerais.
No caso, o contrato rege-se pelas condições particulares, gerais e especiais da apólice que foram juntas com a contestação, verificando-se, das condições particulares (doc. 1 da contestação), que foram contratadas, entre outras, as coberturas especiais de “tempestades” e “danos por água”.
Conforme o que consta da cobertura “tempestades”, conjugando o teor das três alíneas do nº 1, resulta que esta cobre os danos que sejam causados directamente por tufões, ciclones, tornados, ventos fortes ou choque de objectos arremessados ou projectados pelos mesmos, na condição de que a violência daqueles eventos da natureza destrua ou danifique vários edifícios de boa construção, objectos ou árvores sãs, num raio de 5 km envolventes do local onde aquele se encontre; queda de neve ou granizo; ou alagamento pela queda de chuva, neve ou granizo, desde que estes penetrem no interior do edifício em consequência dos riscos cobertos pela alínea a), na condição que os danos se verificarem nas 48 horas seguintes ao momento da destruição parcial do edifício.
Ou seja, a cobertura abrange situações de queda de neve ou granizo (
não foi o que ocorreu no caso
), de tufões, ciclones, tornados (
também não foi este o caso
) ou ventos fortes, ou arremesso de objectos em consequência destes (
igualmente não foi o caso
), desde que aqueles sejam de violência tal que destrua ou danifique vários edifícios de boa construção, objectos ou árvores sãs, num raio de 5 km envolventes do local onde os bens seguros se encontrem, definindo-se na respectiva cláusula o que são edifícios de boa construção, e admitindo-se que, em caso de dúvida, o segurado possa provar, mediante apresentação de documento emitido pela estação meteorológica mais próxima, que os ventos atingiram velocidade superior a 90 km/hora.
Abrange ainda as situações em que haja alagamento por queda de chuva, neve ou granizo, mas desde que estes penetrem no interior do edifício parcialmente destruído em consequência dos riscos previstos na alínea a) [
ciclones, tornados, ventos fortes, choque de objectos
] nas 48 horas seguintes ao momento daquela destruição.
Esta interpretação das coberturas constantes da cláusula é a que se afigura resultar de acordo com os critérios legais de interpretação previstos.
Com efeito, nos termos do art. 236º, nº 1, do Código Civil,
a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele
.
E de acordo com o disposto no art. 237º do Código Civil,
em caso de dúvida sobre o sentido da declaração, prevalece
(…)
, nos negócios onerosos, o que conduzir ao maior equilíbrio das prestações
.
Porém,
sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida
(art. 236º, nº 2).
Quando estiverem em causa negócios formais, há que ter em conta ainda que
não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso
- art. 238º, nº 1, do Código Civil.
Embora esse sentido possa valer
se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade
- art. 238º, nº 2, do Código Civil.
Considerando que o contrato de seguro é um contrato de adesão, como já se disse, e que nele são usadas cláusulas contratuais gerais, como são as condições gerais e especiais, há que ter ainda em conta o que dispõe o D.L. n.º 446/85, de 25/10.
O art. 10º do D.L. n.º 446/85, de 25/10, vem dizer que «As cláusulas contratuais gerais são interpretadas e integradas de harmonia com as regras relativas à interpretação e integração dos negócios jurídicos...», ou seja, nos termos do art. 236º e seguintes do Código Civil.
Assim, o sentido a atribuir a estas cláusulas será o que lhe atribuiria um declaratário normal, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, com os limites do art. 238º do Cód. Civil.
A mesma disposição legal obriga a que a aplicação desta regra geral se faça «sempre dentro do contexto de cada contrato singular em que se incluam» as cláusulas interpretandas, privilegiando uma justiça individualizadora.
Já os casos duvidosos estão regulados especialmente no art. 11º do mesmo diploma legal, prevendo-se no seu nº 1 que “as cláusulas contratuais gerais ambíguas têm o sentido que lhes daria o contratante indeterminado normal que se limitasse a subscrevê-las ou a aceitá-las, quando colocado na posição de aderente real”, prevalecendo em caso de dúvida, nos termos do nº 2, “o sentido mais favorável ao aderente”.
Nada tendo sido sequer alegado quanto à vontade real das partes, há que ter em conta, então, o sentido atribuído por um declaratário normal, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, que será, nos termos analisados, o de que a cobertura prevista na alínea a), nomeadamente no que respeita aos ventos fortes (única hipótese que poderia ser aplicável ao caso dos autos) só existe nos casos em que a violência dos ventos destrua ou danifique vários edifícios de boa construção, objectos ou árvores sãs, num raio de 5 km, e, em caso de dúvida sobre a boa construção dos edifícios, em que os ventos atinjam velocidade superior a 90 km/hora.
Este sentido, parece-nos, resulta claramente do teor da cláusula e do seu contexto no documento em que se insere, sendo, ademais, que, no caso concreto, a cláusula teve de ser expressamente avaliada pela tomadora do seguro, posto que foi contratada especificamente a sua inserção nas condições particulares, já que a mesma não consta das condições gerais, mas das condições especiais e a sua aplicação ao contrato concreto decorre da sua inserção expressa nas condições particulares.
Anote-se, ainda, que a segurada não invocou nenhum vício respeitante à inclusão de cláusulas contratuais gerais no contrato celebrado.
Ora, na situação concreta, dos factos provados, o que resulta é que “em virtude das fortes chuvas e do vento que se fizeram sentir nos dias 15 e 16 de Janeiro de 2020, a água transbordou das caleiras do imóvel e danificou tectos e paredes e o vento danificou o telhado”, nada mais se tendo apurado quanto ao evento sucedido, nomeadamente da matéria de facto não consta (nem tal foi alegado) que os ventos tenham atingido velocidade superior a 90 km/hora, nem que tenha havido destruição ou danificação de edifícios, objectos ou árvores num raio de 5 km.
O que significa que o evento ocorrido não integra a cobertura “tempestades”.
E integrará a cobertura “danos por água”?
Conforme o que consta desta cobertura, resulta que a mesma cobre os danos que sejam causados directamente por rotura, defeito, entupimento ou transbordamento, súbito e imprevisível, da rede interior de distribuição de água e esgotos do edifício, incluindo os sistemas de esgoto das águas pluviais, assim como dos aparelhos ou utensílios ligados à rede de distribuição de água e de esgotos e respectivas ligações; ou por torneiras deixadas abertas durante falta de abastecimento de água não imputável ao segurado.
Não se tratando no caso de situação de torneiras deixadas abertas, verifica-se que ocorreu o transbordamento das caleiras do imóvel, as quais integram a rede interior de distribuição de água e esgotos do edifício, e que tal facto foi súbito e imprevisível, na medida em que se deveu às fortes chuvas e vento que se fizeram sentir nos dias 15 e 16 de Janeiro de 2020.
Assim, considerando o teor da cláusula, à luz das regras de interpretação
supra
referidas, é de concluir que o evento ocorrido (água que transbordou das caleiras do imóvel) está incluído nesta cobertura de “danos por água”.
Note-se que não está demonstrada a ocorrência de qualquer circunstância prevista como exclusão na cláusula em apreço, não se tratando de infiltrações nem humidades ou condensação, nem havendo vestígios claros e inequívocos de que a rede de água e esgotos do edifício se encontra deteriorada ou danificada.
Esta cobertura garante os danos que sejam directamente consequência do sinistro aí previsto, ou seja, no caso, os danos decorrentes directamente do facto de a água ter transbordado das caleiras.
Como decorre do ponto 12 dos factos provados, esta água danificou tectos e paredes, mas não o telhado exterior, cujos danos foram causados pelo vento (situação que seria de integrar na cobertura “tempestades” e não nesta, acaso se tivessem demonstrado as condições previstas para o funcionamento daquela cobertura, o que não sucedeu, como já se viu).
Donde, os danos nos tectos (trata-se, concretamente, do tecto falso) e nas paredes estão abarcados nas coberturas da apólice do contrato de seguro celebrado entre as partes, mas já não os danos no telhado exterior.
Em conclusão, dos factos provados resulta a verificação do sinistro de “danos por água” cujo risco estava transferido para a recorrente mediante o contrato de seguro celebrado com a A., havendo a obrigação da parte daquela de cumprir com aquilo a que contratualmente se obrigou, ou seja o ressarcimento dos danos ocorridos em consequência daquele sinistro, nos termos contratados.
Há, pois, lugar à indemnização da A., restando apreciar do respectivo montante.
Dos pontos 23 e 24 dos factos provados resulta que a pintura da totalidade das paredes, com a área de 110 m2, custa € 1.200,00, sendo que a parte onde ocorreram os danos corresponde a uma área de 57 m2.
Resulta ainda dos pontos 24 e 24-A que para não haver discrepância de cores deve ser pintada a totalidade das paredes e que nestas existiam zonas de tinta descascada devido ao uso.
A recorrente pretende ser apenas responsável pela pintura da área de 57 m2.
Para aferir desta questão, há que interpretar o que se entende por “danos directamente causados aos bens seguros”, tendo em conta as regras de interpretação já
supra
referidas, designadamente a que determina que, em caso de dúvida, prevalece o sentido mais favorável ao aderente (posto que estamos perante uma cláusula contratual geral).
Socorrendo-nos dos princípios que resultam do Código Civil quanto à obrigação de indemnização, verifica-se que deve ser reconstituída a situação que existiria caso não tivesse ocorrido o evento que obriga à reparação (art. 562º), reconduzindo-se a obrigação de indemnizar aos danos que sejam causa provável da lesão (art. 563º).
Donde, sendo indesmentível que a pintura parcial de paredes se traduz em discrepância de cores, pelo que a norma é que a pintura de paredes se faça na totalidade numa mesma divisão (como já se referiu anteriormente, a propósito da impugnação do ponto 24), é manifesto que danificar a pintura com água em algumas zonas das paredes é causa provável da necessidade da sua pintura total, sendo irrelevante que no caso concreto existissem algumas zonas de tinta descascada devido ao uso (até porque a A. poderia não ter uma necessidade premente de pintar essa parte das paredes, fosse porque iria arrendar o espaço sem pintar, ficando essa possibilidade a cargo do arrendatário de acordo com a utilização que quisesse dar ao local, fosse por tal ocorrer em locais de pouca visibilidade, fosse porque se tratasse de local onde iria ficar encostado algum móvel que tapasse a tinta descascada…).
Esta consideração é consentânea com o que se entende pela doutrina da causalidade adequada: “determinada acção ou omissão será causa de certo prejuízo se, tomadas em conta todas as circunstâncias conhecidas do agente e as mais que um homem normal poderia conhecer, essa acção ou omissão se mostrava, à face da experiência comum, como adequada à produção do referido prejuízo, havendo fortes probabilidades de o originar” (formulação de Galvão Telles citada por P. Lima e A. Varela,
in
Código Civil anotado, vol. I, 1987, pág. 578).
A causa adequada respeitará “àquela ou àquelas condições que se encontrem para com o resultado numa relação mais estreita, isto é, numa relação tal que seja razoável impor ao agente responsabilidade por esse mesmo resultado. O problema não é um problema de ordem física ou, de um modo geral, um problema de causalidade tal como pode ser havido nas ciências da natureza, mas um problema de política legislativa: saber quando é que a conduta do agente deve ser tida como causa do resultado, a ponto de ele ser obrigado a indemnizar. Ora, sendo assim, parece razoável que o agente só responda pelos resultados para cuja produção a sua conduta era adequada, e não por aqueles que tal conduta, de acordo com a sua natureza geral e o curso normal das coisas, não era apta para produzir e que só se produziram em virtude de uma circunstância extraordinária” (
idem
, agora citando Vaz Serra).
Na verdade, a conduta de danificar parcialmente a pintura de uma parede é adequada a produzir a necessidade de pintar toda a parede, sendo razoável que o obrigado seja responsável pela indemnização da totalidade da pintura, resultado com que razoavelmente poderia contar, não podendo ter-se a tinta descascada em algumas zonas como uma circunstância extraordinária.
Pelo que, deve considerar-se que a pintura da totalidade das paredes integra um dano directamente causado pelo evento coberto, sendo esta interpretação a que conduz ao maior equilíbrio das prestações (o contrato é oneroso) e a que um contratante indeterminado normal lhe daria, se se limitasse a subscrever ou aceitar a cláusula em questão, para além de ser o sentido mais favorável ao aderente.
É, pois, a recorrente responsável pelo ressarcimento do custo da totalidade da pintura das paredes, no montante de
€ 1.200,00
.
Quanto ao tecto falso, decorre do ponto 25 que o mesmo tinha que ser substituído, sendo o respectivo custo, conforme consta dos pontos 26 e 28, de € 12,50/m2 quanto à mão-de-obra e de € 6,29/m2 quanto ao material.
Resulta ainda dos pontos 27 e 28 que o material é composto por placas vinílicas de 1,2 m x 0,6 m cada e que a substituição do tecto falso, com uma área de 266 m2, implica realizar recortes e desperdício de material.
Como já se disse a propósito da impugnação dos pontos 26 a 28 dos factos provados, considerando as medidas das concretas placas a aplicar, nunca podem ser considerados exactamente os 266 m2, pois tendo cada placa a área de 0,72 m2 [1,2m x 0,6 m], 369 placas correspondem a 265,68 m2, o que não chega para cobrir o tecto, e 370 placas correspondem a 266,40 m2, ultrapassando em 40 cm a medida do tecto a cobrir.
A questão coloca-se a propósito de saber se devem ser consideradas somente as 370 placas (portanto 266,40 m2), o que deixa apenas de sobra 40 cm, ou se devem considerar-se mais placas, nomeadamente as 412 placas (o que corresponde a 296,64 m2) que a A. reclama.
Sendo certo que a aplicação das placas implica recortes e desperdício de material, não só devido à situação já referida se as medidas das placas não permitirem um número exacto correspondente à área do espaço, mas também porque há sempre ajustes a fazer tendo em conta o total da largura e do comprimento do espaço que pode igualmente não “dar conta certa” com o número de placas a aplicar (por exemplo, 10 placas têm uma largura de 6 metros e 11 placas têm uma largura de 6,60 metros, se o espaço onde serão aplicadas tiver uma largura de 6,20 metros 10 placas não chegam e aplicar a 11ª placa implica um desperdício de 40 centímetros de largura desta).
Daí, considerando o referido e que, como também já se disse, “a aplicação de um tecto falso em material constituído por diversas placas pressupõe em regra a necessidade de realizar recortes para adaptação aos ângulos e formato de cada concreto local, com o consequente desperdício de algum material”, afigura-se-nos que deve considerar-se o acréscimo de material necessário a colmatar esta situação, parecendo-nos adequado considerar o adicional de 10% recomendado pelos vendedores deste tipo de material.
Com o referido adicional de 10% a área a considerar é de 292,60 m2, mas como tal não corresponde a um número certo de placas [406 placas x 0,72 m2 = 292,32 m2, área inferior, e 407 placas x 0,72 m2 = 293,04 m2], há que fixar a área de 293,04 m2, correspondente a 407 placas.
Tendo em conta o custo unitário de 12,50 m2 para a mão-de-obra e o custo unitário de € 6,29/m2 para o material, obtém-se o seguinte resultado: € 3.663,00 [€ 12,50 x 293,04 m2] para o custo da mão-de-obra e € 1.843,22 [€ 6,29 x 293,04 m2] para o custo do material, num total de
€ 5.506,22
.
Daqui resulta que o montante dos danos cobertos pelo contrato de seguro ascende ao total de
€ 6.706,22
.
Tendo em conta a franquia contratada de € 100,00 (ponto 10), o capital que a seguradora tem que entregar à segurada, em cumprimento do contratado, é de
€ 6.606,22
, montante que se situa dentro do limite do capital contratado para esta cobertura (de € 15.000,00, como consta das condições particulares).
Assim, merece provimento nesta parte o recurso interposto, devendo a R. ser condenada a pagar à A. apenas o montante de € 6.606,22, acrescido dos juros de mora nos termos determinados na sentença recorrida.
*
Em face do resultado do tratamento das questões analisadas, é de concluir pela alteração da matéria de facto nos termos analisados na primeira questão e pela obtenção de provimento parcial do recurso interposto pela R., com a consequente alteração da sentença recorrida no que concerne ao valor fixado da quantia a pagar pela R. à A., mantendo-se a mesma quanto ao mais (juros determinados).
***
III
- Por tudo o exposto, acorda-se em conceder provimento parcial ao recurso e, consequentemente:
a) alterar a decisão proferida quanto à matéria de facto, nos termos
supra
referidos;
b) condenar a R. a pagar à A. a quantia de
€ 6.606,22
(seis mil seiscentos e seis euros e vinte e dois cêntimos), acrescida de juros de mora nos termos determinados na sentença recorrida;
c) no mais, negar provimento ao recurso.
**
Custas da apelação e da acção por recorrente e recorrida, na proporção do respectivo decaimento (art. 527º, nºs 1 e 2, do C.P.C.).
*
Notifique.
**
Sumário
(
da exclusiva responsabilidade da relatora
-
art. 663º, nº 7, do C.P.C.
):
………………………………………………………………………………..
………………………………………………………………………………..
………………………………………………………………………………..
*
datado e assinado electronicamente
*
Porto, 06-03-2025.
Isabel Ferreira
Ana Luísa Loureiro
Manuel Machado
|
TRP
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https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/c7b8c13b344e137980258c520059236b?OpenDocument
|
1,756,944,000,000
|
REVOGADA PARCIALMENTE A DECISÃO RECORRIDA
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568/20.5T8LAG.E1
|
568/20.5T8LAG.E1
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FILIPE CÉSAR OSÓRIO
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Sumário
:
I.
A interpretação do texto vertido na acta da assembleia de condóminos deve resultar das regras da interpretação objectiva constantes dos artigos 236.º e seguintes do Código Civil, mormente, de acordo com a teoria da impressão do destinatário.
II.
As deliberações das assembleias de condóminos são anuláveis quando contrárias à lei ou a regulamentos anteriormente aprovados (cfr. art. 1433.º, n.º 1, do CC).
III.
São anuláveis as deliberações atinentes às contas de 2019 e ao orçamento de 2020 que tiveram por base a violação do regulamento anteriormente aprovado e ainda por dependerem de deliberação anulada.
|
[
"ACTA DA ASSEMBLEIA GERAL DE CONDÓMINOS",
"INTERPRETAÇÃO",
"DELIBERAÇÃO",
"ANULAÇÃO"
] |
*
Apelação n.º 568/20.5T8LAG.E1
(1.ª Secção Cível)
Relator:
Filipe César Osório
1.º Adjunto
: Filipe Aveiro Marques
2.º Adjunto:
Susana Ferrão da Costa Cabral
*
*
*
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
*
I. RELATÓRIO
Ação Declarativa, Processo Comum
1. As partes:
Autora/Recorrente – AA.
Réu/Recorrido – Condomínio do Bloco B do Empreendimento EE, representado pelos seus administradores BB, CC e DD
1
.
*
2. Objecto do litígio
– A Autora, na qualidade de proprietária de uma fracção autónoma, pede a anulação das deliberações relativas aos pontos 1, 3 e 5 da Assembleia de Condóminos realizada no dia 18 de Julho de 2020 exaradas na Acta nº 31 e seu aditamento, com fundamento na sua ilegalidade, o que o Réu discorda.
*
3. Dispositivo da Sentença em Primeira Instância
:
– Parcialmente procedente o pedido: Declaração de nulidade do ponto três da deliberação da assembleia geral de condóminos do réu Condomínio do Bloco B do Empreendimento EE, reunida em 18 de Julho de 2020, e exarada na Ata n.º 31, na parte onde se lê:
“1 - O Condomínio do Bloco B pagará 29/337 (8,61%) do custo total das despesas da Sociedade EE, Ld.° (orçamento), visto que são condóminos habitacionais do Bloco B 29 dos 337 acionistas desta sociedade (todos pessoas singulares titulares de fracções habitacionais), com iguais direitos e deveres. Embora as piscinas e o court de ténis sejam geridos pela União de Condomínios, todas as despesas da sua gestão integrarão o orçamento da Sociedade. A Administração do Bloco B procederá a transferência deste valor para a União de Condomínios, contra recibo, à medida que for recebendo dos seus referidos Condóminos”; e
“2 - As despesas da União de Condomínios relacionadas com jardinagem, segurança e administração são comparticipadas pelo Condomínio do Bloco B na base de 31/367(8,45%), visto que estas despesas respeitam e devem ser pagas não só pelos condóminos titulares das 337 frações habitacionais, mas também pelas 30 frações não habitacionais (comerciais). Estas despesas são comuns à Sociedade e à União, e o Bloco B tem 31 das 367 frações autónomas. Será igualmente centralizada a transferência, pela Administração do Bloco B, para a União de Condomínios, contra recibo, das verbas recebidas dos seus Condóminos”.
– E absolveu o Réu do restante pedido.
*
4. Objecto do recurso de apelação.
A Recorrente/Autora interpôs recurso de apelação da sentença com as seguintes conclusões:
«
1. O presente recurso interposto pela A., detém-se, fundamentalmente, no facto de a ora apelante considerar que, face à prova produzida na Audiência de Julgamento e demais elementos constantes dos autos, o Tribunal a quo deveria ter decidido também pela procedência do pedido de anulação das deliberações relativas aos pontos 1 e 5 da Assembleia de Condóminos em causa.
2. Quanto ao ponto 5 da acta da Assembleia entende a ora recorrente que a matéria da facto dada como não provada sob a letra “A.” deve passar a constar da matéria de facto provada, impugnando a decisão proferida sobre a matéria de facto.
3. Da modificação da matéria de facto dada como provada e não provada, decorrerá, sem margem para dúvidas, que o ponto 5 da mesma acta da Assembleia impugnada deve ser anulado, pois trata-se de deliberação contrária ao regulamento do condomínio e à lei geral.
4. Por outro lado, a própria anulação do ponto 3 da acta da Assembleia implicará a anulação do referido ponto 5.
5. Já a anulação do ponto 1 decorre da matéria dada como provada sob os pontos 6., 13. e 14. da matéria de facto dada como provada.
6. Andou mal a Meritíssima Juiz do Tribunal recorrido, pois há prova cabal que o orçamento referido em 23) e aprovado divide as Despesas Gerais do Empreendimento, que incluem a Segurança e a Jardinagem, entre outras, em partes iguais, a dividir por 31 frações, o que está em clara contradição com o próprio regulamento do condomínio R./recorrido.
7. Desde logo, basta atentar nas declarações do legal representante do R., Engº BB ao minuto 22:43 e ss., em resposta à questão da Meritíssima Juiz constante do 22:24 e ss. Do depopimento do referido legal representa do recorrido, que, o que este negam é que aquela fórmula de cálculo, na sua opinião não favorece os apartamentos maiores e penaliza os menores, já que, no entender do depoente essas despesas com a jardinagem não dependem da permilagem de cada um, mas apenas do facto de todos serem igualmente proprietários. Não nega que o orçamento aprovado divide as despesas gerais do Empreendimento, que incluem a Segurança e a Jardinagem, entre outras, em partes iguais, a dividir por 31 fracções. Aliás, confirma que assim foi feito e aprovado.
8. Importam também as declarações de parte da ora recorrente, ao minuto 4:25 e ss do respectivo depoimento em que refere: “As despesas gerais de segurança e jardinagem são divididas por 31 e não por permilagem…”
9. Dúvidas existissem que o orçamento foi aprovado nesses termos, a própria acta impugnada, acta nº 31, o confirma, ao referir, no ponto 5: “5. Apresentação e votação do Orçamento para o ano de 2020; ----------------------------------------A Administração apresentou o Orçamento, e explicou que o mesmo foi elaborado conforme o Acordo aprovado no ponto número três da ordem dos trabalhos. A distribuição do Orçamento pelos Condóminos fez-se exatamente como sempre, com o mesmo programa de cálculo. ----------------”
10. O “Acordo aprovado”, e cujo teor, aliás, consta do ponto 16. da matéria de facto dada como provada supra transcrito, diz: “2 - As despesas da União de Condomínios relacionadas com jardinagem, segurança e administração são comparticipadas pelo Condomínio do Bloco B na base de 31/367(8,45%), visto que estas despesas respeitam e devem ser pagas não só pelos condóminos titulares das 337 frações habitacionais, mas também pelas 30 frações não habitacionais (comerciais). Estas despesas são comuns à Sociedade e à União, e o Bloco B tem 31 das 367 frações autónomas…..”
11. Pelo que se impõe que a matéria de facto constante do ponto A. da matéria dada como provada, passe a constar dos pontos da matéria de facto dada como provada, passando a dar-se como assente o seguinte: “O orçamento referido em 23) e aprovado divide as Despesas Gerais do Empreendimento, que incluem a Segurança e a Jardinagem, entre outras, em partes iguais, a dividir por 31 frações ”.
12. A referida alteração da matéria de facto, juntamente com a circunstância de o Tribunal recorrido ter anulado todo o ponto 3. da deliberação da acta da Assembleia Geral de condóminos do R., de 18 de Julho de 2020, implica a alteração da decisão de direito quanto à anulação da deliberação constante do ponto 5 da mesma acta da dita Assembleia.
13. Desde logo, porque o orçamento está em contradição com o regulamento do condomínio, ao fazer a divisão das despesas de jardinagem em partes iguais pelas 31 fracções do condomínio. Por outro lado, se o referido ponto 5 da deliberação refere expressamente que o orçamento foi elaborado à luz dos critérios do “Acordo Adicional” e se a deliberação que aprovou o acordo adicional foi anulada, tal implica que a aprovação do orçamento também terá que o ser. Não é possível aprovar uma deliberação com base numa outra, que, por sua vez, foi anulada. Há uma clara situação de dependência da segunda deliberação face à primeira. Sendo a primeira anulada, como foi pela douta sentença, a segunda também sempre terá que o ser.
14. Contraria-se a fundamentação da sentença recorrida, pois, sendo, efectivamente, um orçamento, uma previsão, entre o mais, de receitas, tal implica o pagamento de quotizações por parte dos condóminos. Ora, as receitas previsíveis, nomeadamente, as quotizações a solicitar a cada um dos condóminos, se tiver uma base errada, como é o caso, vai prejudicar os condóminos, principalmente os condóminos que têm fracções com uma permilagem mais pequena, como é o caso da recorrente, pois algumas das despesas, como as supra referidas atinentes à jardinagem estão previstas como sendo devidas por fracção enquanto unidade e não pela permilagem da fracção no condomínio.
15. Impõe-se, pois, a anulação da deliberação em causa, relativa à apresentação e votação do orçamento para o ano 2020.
16. No que se refere à deliberação constante do ponto 1. da acta da Assembleia aqui em causa, entendeu a Meritíssima Juiz do Tribunal
a quo
não declarar a respectiva anulação uma vez que “não se demonstrou que a deliberação do ponto 1 viola a lei ou regulamento anterior, no caso, o Regulamento da União de Condomínios, razão pela qual, nos termos do art. 1433.º, n.º 1 do Código Civil, não se mostram verificados os pressupostos para declarar a respetiva anulabilidade.”
17. Mas, a deliberação do ponto 1. tem o seguinte teor: “Apresentação, discussão e votação das contas do Ano 2019” foi deliberado aprovar as contas de 2019 por maioria, com 581 votos dos presentes e representados, com 136 votos contra, e uma abstenção com 17 votos.”
18. Ora, consta da matéria dada como provada, no ponto 6. o teor do Regulamento da União de Condomínios do Empreendimento EE, importando nesta parte o teor do artº 4º desse mesmo regulamento.
19. Consta, sem margem para dúvidas, da matéria dada como provada, sob os pontos 13. e 14. que a aprovação das contas por parte da administração do R. viola o artº 4º do Regulamento da União de Condomínios do Empreendimento EE, razão pela qual se impõe a revogação da douta sentença recorrida nessa parte, passando a declarar-se a anulação da deliberação contante do ponto 1 da acta nº 31 da Assembleia de condóminos do Blobo B, ora R./recorrido, realizada em 18 de Julho de 2020. São termos em que, sem prescindir do mui douto suprimento de V. Exas., deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão, substituindo-a por outra que declare a nulidade também das deliberações constantes dos pontos 1 e 5 da acta da Assembleia de condomínio do Blobo B do empreendimento EE, de 20 de Julho de 2020.».
*
5. Questões a decidir:
5.1.
– Impugnação da decisão da matéria de facto constante do item A dos factos não provados
:
– se deve passar a provado passando a dar-se como assente o seguinte: “O orçamento referido em 23) e aprovado divide as Despesas Gerais do Empreendimento, que incluem a Segurança e a Jardinagem, entre outras, em partes iguais, a dividir por 31 frações ”;
5.2.
– Reapreciação jurídica da causa:
– saber se a deliberação constante do ponto 5 da mesma acta da Assembleia impugnada é contrária ao regulamento do condomínio e à lei geral, ao fazer a divisão das despesas de segurança e jardinagem em partes iguais pelas 31 fracções do condomínio, ao invés de o fazer por permilagem,
– se a própria anulação, proferida pela sentença, do ponto 3 da acta da Assembleia implicará a anulação do referido ponto 5,
– se a anulação do ponto 1 da deliberação decorre da matéria dada como provada sob os pontos 6., 13. e 14. da matéria de facto dada como provada.
*
II. FUNDAMENTAÇÃO
6. É o seguinte o teor da decisão de facto constante da sentença recorrida, destacando-se os factos objecto de dissenso da Recorrente/Autora:
«
1. FACTOS PROVADOS
1.
A autora AA consta como proprietária, na proporção de 1/2, da fração autónoma designada pela letra “F” correspondente ao apartamento 334 do prédio constituído em propriedade horizontal, sito no ..., Bloco B, em Local 1, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagos, sob o n.º 826-F, freguesia de Local 1.
2.
O prédio em causa encontra-se inserido no Empreendimento EE, o qual, além do mais, é constituído por 337 apartamentos, repartidos por 10 Blocos.
3.
O Bloco B, de que faz parte a fração propriedade da autora, é composto por 44 frações, sendo 29 frações de habitação, 13 garagens e 2 fracções de serviços.
4.
Os Condomínios dos dez blocos constituíram uma Associação denominada União de Condomínios do Empreendimento EE.
5.
No documento intitulado “Estatutos da União de Condomínios do Empreendimento EE” além do mais, consta o seguinte:
“Artigo 1º (…)
1. É instituída como associação de condomínios a denominada “União de Condomínios do Empreendimento EE”, adiante designada por “Associação” e que se rege pelos presentes estatutos. (…)
Artigo 2º (…)
2. A associação tem por finalidade:
a) A defesa, valorização e manutenção das áreas, equipamentos, zonas e demais patrimónios de utilização comum aos condomínios dos blocos A a J no ..., em Local 1.
b) Representar o conjunto dos associados junto das autoridades Administrativas, Judiciais, e Privadas. (…)
Artigo 4º (…)
O âmbito da Associação é de união de interesses e abrange os condomínios dos dez blocos identificados com as letras A a J no ..., em Local 1. (…)
Artigo 5º (…)
1. São associados os condomínios dos blocos A a J no ..., em Local 1, representados pelos Administradores ou Vice Administradores eleitos nos termos da lei por aqueles condomínios.
2. Os direitos e obrigações dos associados constarão do regulamento interno a aprovar em assembleia geral. (…)
Artigo 7º (…)
Pela participação na Associação é devida uma quota por parte de cada bloco, cujo montante, periodicidade e forma de pagamento são definidos nos termos do regulamento interno. (…)” – junto como documento 1 da petição inicial e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
6.
No documento intitulado “Regulamento da União de Condomínios do Empreendimento EE”, com data aposta de 20 de março de 1999, com aposição da assinatura de pessoas que se identificaram como os administradores dos Blocos A, B. C, D, E, F, G, H, I e J, além do mais, consta o seguinte:
“DISPOSIÇÕES GERAIS
Art.º 1.º
O presente regulamento é aplicável ao EMPREENDIMENTO IBERLAGOS, sito no ..., freguesia de ..., Concelho de Local 1, constituído pelos seguintes prédios urbanos, descritos na Conservatória do Registo Predial de Local 1 sob os números:
00725/290389 - F
00823/070789 - J
00726/290389 - G
00824/070789 - Í
00728/231288 - À
00825/070789 - 1
00729/231288 - Ñ
00826/070789 - Â
00730/231288 - Å
00827/070789 - D
Art.º 2.º
“1. O Empreendimento EE é um conjunto residencial de 337 apartamentos, composto por 10 edifícios em regime de propriedade horizontal, cada um dos quais constituindo um condomínio autónomo, designados por Blocos e identificados com letras de A a J (número de polícia), principalmente destinados à habitação, mas servidos por um conjunto de espaços não habitacionais destinados a comércio e outras actividades de lazer, constituídas pelas fracções A e J situadas no Piso menos dois – Terceira cave e Piso menos um – Segunda cave do Bloco B, duas piscinas, campos de ténis, zonas verdes e vinte e oito lojas no rés do chão do Bloco J, dispondo de uma portaria geral e de uma unidade comum onde estão instaladas duzentas e quarenta e quatro caixas de correio (para os Blocos A, B, C, D, E, F, G, H e I) do Empreendimento EE.
2. As piscinas, o campo de ténis e as duas fracções atrás identificadas no Bloco B, Lote 6 – 9, constituem fracções autónomas propriedade da “EE – Sociedade Imobiliária SA” [pessoa colectiva n.º ...], cujo capital social é de cinco milhões de Escudos (distribuído por cinco mil acções de mil Escudos cada) e que, à excepção de duzentos e oitenta, pertença da própria sociedade e de duas pertença da União de Condomínios e do Empreendimento EE, se encontra distribuído à razão de 1/337 (catorze acções) por cada um dos proprietários dos apartamentos.
3. A totalidade dos espaços exteriores aos edifícios, compreendendo jardins, acessos, arruamentos, passeios, circuitos de peões, estação elevatória de esgotos e central hidropressora pertencem à Câmara Municipal de Local 1. São privativos dos condóminos e utentes dos apartamentos os acessos às zonas menos um e menos dois (Segunda e terceira caves) do Bloco B, Lote 6 – 9, bem como as piscinas, campo de ténis, zonas de lazer e respectivas áreas envolventes.
4. O Empreendimento EE integra-se no tecido urbano da cidade de Lagos, mas a sua zona de implantação foi desde o início objecto de um tratamento integrado, reunindo condições para, face à Legislação actual, poder vir a ter um Estatuto equivalente a condomínio semi-fechado.
5. Com o presente Regulamento pretende-se definir o conjunto de Direitos e Obrigações dos associados, e dotar o Empreendimento EE com uma gestão que terá como principal objectivo zelar para que os equipamentos, zonas e serviços de utilização comuns, bem como a sua manutenção, sejam devidamente assegurados, e garantir que os custos correspondentes a desgaste rápido e deterioração dos mesmos não assumam proporções economicamente insuportáveis.
6. Entende-se abrangido neste regulamento tudo o que não integrar cada bloco enquanto condomínio autónomo, cada um com o seu regulamento interno devidamente aprovado em Assembleia Geral de Condóminos.
7. São exepções ao atrás referido, o terraço de cobertura das fracções 330 a 337 e do Ginásio situados no Bloco B, e as escadarias de acesso à zona propriedade da Sociedade EE S.A, situadas nos Blocos A e B. Estes espaços são considerados abrangidos pelo presente regulamento.
DIREITOS E OBRIGAÇÕES DOS ASSOCIADOS (…)
Art. 4.º
1. Constituem obrigações dos associados, além daquelas que resultem da legislação geral aplicável aos regimes de propriedade horizontal, suportar, através da quota do condomínio do Bloco, aprovada anualmente pelas Assembleias de Condóminos de Bloco, a quota parte que lhes corresponde no orçamento dos espaços e equipamentos comuns do Empreendimento.
2. A quota parte dos Condominios no pagamento das despesas aprovadas no orçamento anual será calculada de acordo com o peso relativo de cada bloco dentro do Empreendimento EE, tendo por base a respectiva área de construção.
3. Compete à Assembleia Geral fixar as importâncias das quotas mediante proposta da Direcção.
4. As quotas são pagas trimestralmente no 1° mês de cada trimestre.
ADMINISTRAÇÃO GERAL DO EMPREENDIMENTO IBERLAGOS (…)
Art. 5.º
1. Cada Associado tem, na Assembleia Geral de Administradores de Bloco, tantos votos quantos os pontos percentuais e respectivas centésimas que corresponderem ao peso relativo de cada bloco no Empreendimento.
2. As decisões serão sempre tomadas por maioria de votos dos presentes.
3. As votações serão sempre consideradas em função do peso global de cada Bloco, uma única por Bloco, independentemente do número de representantes que cada Bloco possa ter a participar na Assembleia de Administradores de Bloco.
§: Os Administradores ou Vice-Administradores podem-se representar nos termos da lei.
4. O peso relativo de cada Condomínio no Empreendimento, em função da respectiva área de construção, excluindo as áreas de utilização comum, e os correspondentes direitos de voto, são os constantes do seguinte quadro:
(…)” – junto como documento 4 da petição inicial e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
7.
À data do Regulamento referido em 6), a sociedade anónima EE Sociedade Imobiliária S.A. detinha a piscina e também as frações correspondentes ao Restaurante e Ginásio, estas últimas representativas da permilagem de 280/1000, do Bloco B.
8.
E os proprietários da empreendimento EE eram acionistas da referida sociedade anónima.
9.
Em 18 de Julho de 2020 foi realizada uma Assembleia-Geral Ordinária de Condóminos do Bloco B, notificada aos condóminos em 12 de Agosto de 2020, espelhada na Ata n.º 31, e em 19 de Agosto de 2020 efetuado e notificado aos condóminos um Aditamento à Ata nº 31.
10.
Consta da Ata n.º 31 da referida assembleia de condóminos, além do mais, o seguinte:
“Aos dezoito dias do mês de Julho do ano dois mil e vinte, pelas dez horas e dezoito minutos, na Salara de reuniões da Sociedade EE, junto às Piscinas, teve lugar, a Assembleia-Geral Ordinária de Condóminos do prédio em regime de propriedade horizontal, sito no Empreendimento EE, Bloco B, concelho de Local 1, com a seguinte ordem de trabalhos:
1.
Apresentação, discussão e votação das contas do Ano 2019;
2.
Análise do incumprimento dos Condóminos com quotizações em dívida, e decisão dos procedimentos e cobrança judicial;
3.
Eleição dos Administradores para os anos de 2020/21;
4.
Apresentações e votação do Orçamento para o ano de 2020;
5.
Apresentação, discussão e votação do Acordo adicional ao Regulamento do Condomínio do Bloco B do Empreendimento EE;
6.
Outros assuntos de interesse do Condomínio.
Estiveram presentes e representados os proprietários das seguintes frações, cada uma delas representada em permilagem:
(…)
No total de 761 por mil, verificando-se assim a existência de quórum legal para a tomada de deliberações por esta Assembleia, nos ermos do disposto no artigo mil quatrocentos e trinta e dois do Código Civil (…)” – junta como documento 2 da petição inicial e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
11.
No que se refere ao Ponto 1 da ordem de trabalhos, intitulado “Apresentação, discussão e votação das contas do Ano 2019” foi deliberado aprovar as contas de 2019 por maioria, com 581 votos dos presentes e representados, com 136 votos contra, e uma abstenção com 17 votos.
12.
Consta das contas de 2019 um valor de 25.261,24€ a título de dívidas a fornecedores, valor esse que em parte é referente a despesas debitadas pela União de Condomínios ao Bloco B e que este não reconhece.
13.
A atual Administração do condomínio do Bloco B discorda da forma de distribuição das despesas da União de Condomínios aprovado em 20 de Março de 1999, pelo que não procede ao pagamento àquela Associação das quantias reclamadas.
14.
Com efeito, das contas aprovadas resulta que a Administração do Condomínio do Bloco B, desde há vários anos, considera que deve pagar à União de Condomínios uma comparticipação na maioria das despesas comuns correspondente ao número de apartamentos nuns casos, noutros casos correspondente ao número total de frações autónomas, sendo outras despesas, mais reduzidas, a pagar de acordo com a proporção da área de construção, conforme definido no Regulamento da União de Condomínios, ou seja, a 10,28%.
15.
No que se refere ao Ponto 3 da ordem de trabalhos, intitulado “Apresentação, discussão e votação do Acordo Adicional ao Regulamento do Condomínio do Bloco B do Empreendimento EE” foi deliberado aprovar o denominado Acordo Adicional ao Regulamento do Condomínio do Bloco B do Empreendimento EE por maioria dos presentes e representados, com 635 votos a favor dos apartamentos 11, 12, 15, 17, 18, 20, 319, 330, 331 e EE-Sociedade Imobiliária, S.A. Com 83 votos contra dos apartamentos 334 e seus representados apartamentos 323, 324, 325, 333, e garagens 10 e 12. Também contra, o apartamento 332. E abstenção com 43 votos, dos apartamentos 16 e 329.
16.
No documento intitulado “Acordo Adicional ao Regulamento do Condomínio do Bloco B do Empreendimento EE”, consta o seguinte:
“Considerando que:
(i) o Regulamento do Condomínio do Bloco B do Empreendimento EE apenas abrange as obrigações dos Condóminos do Bloco B perante o Condomínio; (ii) os Condóminos do Bloco B recorrem ao Condomínio do Bloco B para centralizar o cumprimento das obrigações daqueles perante a União de Condomínios do Empreendimento EE (União de Condomínios) e da Sociedade EE, Ld.9; (iii) o Regulamentos da União de Condomínios e os Estatutos da Sociedade EE, são omissos nesta matéria; deliberaram os Condóminos do Bloco B, reunidos em Assembleia de Condomínio, formalizar os critérios para apuramento do valor da respectiva comparticipação nessas despesas, para efeito da centralização do seu pagamento às referidas entidades, pelo Condomínio do Bloco B.
Assim, deliberaram os Condóminos do Bloco B que:
1- O Condomínio do Bloco B pagará 29/337 (8,61%) do custo total das despesas da Sociedade EE, Ld.° (orçamento), visto que são condóminos habitacionais do Bloco B 29 dos 337 acionistas desta sociedade (todos pessoas singulares titulares de fracções habitacionais), com iguais direitos e deveres,. Embora as piscinas e o court de ténis sejam geridos pela União de Condomínios, todas as despesas da sua gestão integrarão o orçamento da Sociedade. A Administração do Bloco B procederá a transferência deste valor para a União de Condomínios, contra recibo, à medida que for recebendo dos seus referidos Condóminos.
2 - As despesas da União de Condomínios relacionadas com jardinagem, segurança e administração são comparticipadas pelo Condomínio do Bloco B na base de 31/367(8,45%), visto que estas despesas respeitam e devem ser pagas não só pelos condóminos titulares das 337 frações habitacionais, mas também pelas 30 frações não habitacionais (comerciais). Estas despesas são comuns à Sociedade e à União, e o Bloco B tem 31 das 367 frações autónomas. Será igualmente centralizada a transferência, pela Administração do Bloco B, para a União de Condomínios, contra recibo, das verbas recebidas dos seus Condóminos.
3 - As despesas de limpeza dos 10 blocos e de manutenção do miradouro de uso comum dos 10 blocos serão pagas consoante a proporção da área de construção de cada bloco na área de construção total dos 10 blocos, conforme definido no Regulamento da União de Condomínios. Assim, o Bloco B, pagará 10,28% do total dessas despesas. Após pagamento pelos respectivos Condóminos, será transferida para a União de Condomínios, contra recibo.
Nada do que acima se delibera respeita ou afeta o pagamento das despesas ordinárias do condomínio, devido a este pelos Condóminos do Bloco B” – junto como documento 5 da petição inicial e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
17.
Tal Acordo Adicional define a forma de pagamento de certos encargos pelo Condomínio do Bloco B à União de Condomínios do Empreendimento EE após recebimento dos seus condóminos.
18.
Prevendo a manutenção do pagamento à União de Condomínios de 10,28% dos encargos comuns dos dez Blocos, nomeadamente as despesas de limpeza e do Miradouro.
19.
Já quanto às despesas que atribui à sociedade Iberlagos, referentes às piscinas e courts de ténis, prevê o pagamento na proporção de 29/337 (8,61%), por serem 29 o número de fracções habitacionais do Bloco B dos 337 acionistas da sociedade.
20.
E quanto às despesas relacionadas com jardinagem, segurança e administração prevê o pagamento de 31/367 (8,45%), por estas despesas deverem ser pagas não só pelos condóminos das 337 frações habitacionais, mas também pelas 30 frações habitacionais (comerciais) e o Bloco B ter 31 das 367 as frações autónomas do Empreendimento.
21.
Já no Regulamento do condomínio do Bloco B do Empreendimento EE, além do mais, consta o seguinte:
“Artigo 18°
Despesas gerais
1. Salvo o disposto no n.º 2, são suportadas por todos os condóminos na proporção da permilagem estabelecida em relação às fracções, todas as despesas de interesse geral, necessárias à administração e conservação das partes comuns e ao pagamento de serviços de interesse comum, designadamente:
a. As despesas com pagamento dos honorários devidos à administração e com o pagamento das remunerações do pessoal afecto à manutenção, conservação, funcionamento, segurança e limpeza do edifício:
b. As despesas de consumo de eletricidade, iluminação e demais fontes de energia resultantes do consumo dos condóminos;
c. As despesas resultantes da substituição, reparação, manutenção e conservação de todo o equipamento afecto ao uso comum, designadamente dos elevadores, escadas, sistema de segurança e sistemas de emergência
d. As despesas resultantes da substituição, reparação, manutenção e conservação de todo o material afecto ao uso comum;
e. As despesas com o pagamento dos prémios de seguro previsto neste Regulamento.
2. A Assembleia de condóminos pode, de acordo com a Lei e no acto de aprovação do orçamento, definir outros critérios.
3. Compete exclusivamente aos condóminos respectivos, suportar as despesas e encargos relativos às partes comuns, que nos termos do título constitutivo da propriedade horizontal ou do presente Regulamento, sejam afectas ao seu uso exclusivo.
4. A Assembleia deve deliberar sobre a constituição de um fundo de reversa destinado a suportar despeças extraordinárias de conservação, manutenção e reparação, podendo as participações para o fundo serem efectuadas de uma só vez ou em prestações.
Artigo 19º
Quotizações
1. Cada condómino contribui mensalmente para a conta do condomínio, a constituir, com objectivo de fazer face às despesas correntes de conservação e fruição das partes comuns do edifício e as despesas com serviços de interesse comum.
2. A quotização mensal de cada condómino é calculada com base na permilagem da sua fracção ou fracções.
3. O valor da quotização mensal devida a todos os condóminos é inicialmente fixada por Assembleia.
4. A quotização mensal é atualizada anualmente, na Assembleia de aprovação do orçamento, e calculada com base nas despesas orçamentais”- junto como documento 6 da petição inicial e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
22.
Aquando da votação referida em 15) o administrador do condomínio referiu que com a aprovação do Acordo Adicional não se altera nenhum regulamento, mas a forma de pagamento desses encargos pelo Condomínio do Bloco B à União.
23.
No que se refere ao Ponto 5 da ordem de trabalhos, intitulado “Apresentação e votação do Orçamento para o ano 2020”, a administração apresentou o orçamento e explicou que o mesmo foi elaborado conforme o acordo aprovado no ponto número três da ordem dos trabalhos.
24.
Posto à votação, o orçamento contou com 87 votos contra do apartamento 334 e os seus representados apartamentos 323, 324, 325 e 333 e garagens 10 e 12, e ainda do apartamento 329. Fez-se constar que o apartamento 329 não vota. Tendo sido aprovado por maioria, com 647 votos a favor dos presentes e representados.
25.
Em comum às deliberações constantes dos pontos 1 e 5 da Ata 31 fez-se constar em ambas as deliberações que o “apartamento 12 não vota”.
*
2. FACTOS NÃO PROVADOS
A.
O orçamento referido em 23) e aprovado divide as Despesas Gerais do Empreendimento, que incluem a Segurança e a Jardinagem, entre outras, em partes iguais, a dividir por 31 frações
B.
O proprietário do apartamento 12, fração “Y”, passou uma procuração a favor da Administrador Sr. BB, na qual deu indicações sobre o seu sentido de voto relativamente à imputação dos encargos, que pretendia fosse por permilagem.
C.
Desde o início de 2023 as piscinas, court de ténis e zonas verdes, passaram a ser propriedade de uma outra sociedade que não a EE, Mediação Imobiliária, S.A., a FF, da qual apenas uma parte dos proprietários do Empreendimento EE é sócia e apenas essa parte está autorizada a gozar.
D.
O condomínio réu não aprovou a ata de 20 de março de 1999, na qual foi aprovada o Regulamento da União de Condomínios do Empreendimento EE.
E.
Nem esse Regulamento foi aprovado por qualquer assembleia de condóminos do Bloco B do Empreendimento Iberlagos.
*
A restante matéria alegada pelas partes nos articulados e não vertida nos “factos provados” ou nos “factos não provados” é meramente conclusiva, de Direito ou desprovida de interesse para a decisão da causa.».
*
8. Impugnação da decisão da matéria de facto:
Item A dos factos não provados: A.
O orçamento referido em 23) e aprovado divide as Despesas Gerais do Empreendimento, que incluem a Segurança e a Jardinagem, entre outras, em partes iguais, a dividir por 31 frações.
A Recorrente entende que este facto deve considerar-se como facto provado essencialmente porque o mesmo resulta desde logo das declarações do legal representante do Réu, Eng.º BB, das declarações de parte da Recorrente e da própria acta impugnada, acta nº 31 ao referir no ponto 5: “5. Apresentação e votação do Orçamento para o ano de 2020; ----------------------------------------A Administração apresentou o Orçamento, e explicou que o mesmo foi elaborado conforme o Acordo aprovado no ponto número três da ordem dos trabalhos. A distribuição do Orçamento pelos Condóminos fez-se exatamente como sempre, com o mesmo programa de cálculo. -----------------------------------------------”. E considera ainda que o referido “Acordo aprovado”, e cujo teor, aliás, consta do ponto 16. da matéria de facto dada como provada, supra transcrito, diz: “2 - As despesas da União de Condomínios relacionadas com jardinagem, segurança e administração são comparticipadas pelo Condomínio do Bloco B na base de 31/367(8,45%), visto que estas despesas respeitam e devem ser pagas não só pelos condóminos titulares das 337 frações habitacionais, mas também pelas 30 frações não habitacionais (comerciais). Estas despesas são comuns à Sociedade e à União, e o Bloco B tem 31 das 367 frações autónomas…..”.
Nada obsta à apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto porque se encontram reunidos os necessários pressupostos para o efeito – cfr. art. 640.º, do CPC.
Para fundamentar a decisão de facto do item A dos factos não provados, consta da sentença o seguinte:
«No que respeita à factualidade dada como não provada, o facto A resultou assim porquanto o orçamento junto com o requerimento de 25.11.2022 não demonstra em que medida ou proporção se encontram as despesas divididas, não se tendo produzida qualquer outra prova cabal que o sustentasse.».
Analisada a acta n.º 31 no seu ponto 5 relativo a “Apresentação e Votação do orçamento para o ano de 2020” refere que “…A Administração apresentou o Orçamento, e explicou que o mesmo foi elaborado conforme o Acordo aprovado no ponto número três da ordem dos trabalhos. A distribuição do Orçamento pelos Condóminos fez-se exatamente como sempre, com o mesmo programa de cálculo”.
E em momento algum do texto da acta, do orçamento ou de qualquer outro documento adicional se diz expressamente qual é esse programa de cálculo.
Por sua vez, analisado objectivamente o texto do orçamento em causa (referente ao ano de 2020) a que se refere o ponto 5 da acta n.º 31 [junto aos autos apenas com o requerimento de 25.11.2022], é patente que dele não consta em que medida ou proporção se encontram as despesas divididas.
Importa ainda referir que os factos em causa têm de resultar objectivamente expressos no documento – acta objecto de impugnação ou documentos adicionais – não estão dependentes de interpretações subjectivas dadas pelas partes.
A decisão de facto da sentença deve conter os factos objectivamente expressos no texto da deliberação que se pretende impugnar e não as eventuais interpretações dos mesmos que configuram matéria de direito.
Assim, é irrelevante a circunstância da Autora, ora Recorrente, em sede de declarações de parte, ter declarado que “As despesas gerais de segurança e jardinagem são divididas por 31 e não por permilagem…”.
E é de igual modo irrelevante pretender interpretar o depoimento/declarações de parte do legal representante do Réu para delas se poder retirar aquilo que não consta objectivamente nos documentos referidos.
- Juiz: “Diz aqui: O orçamento aprovado divide as despesas gerais do Empreendimento, que incluem a Segurança e a Jardinagem, entre outras, em partes iguais, a dividir por 31 fracções, e que esta forma de cálculo favorece os apartamentos maiores e penaliza os menores. Verdade ou mentira?
- Legal representante do R.: “Não, de maneira nenhuma. Isso é o mesmo que estar a dizer que uma pessoa é obrigada, ou, isto é, uma pessoa paga mais, se tiver uma permilagem maior; agora quando todos são igualmente proprietários, como é o caso, quer da sociedade, quer da jardinagem, ninguém é mais proprietário, um do que o outro; são todos igualmente proprietários, no caso concreto dos espaços públicos.”.
Ora, a Recorrente pretende interpretar tal depoimento em determinado sentido porque entende que o legal representante do Réu “não nega que o orçamento aprovado divide as despesas gerais do Empreendimento, que incluem a Segurança e a Jardinagem, entre outras, em partes iguais, a dividir por 31 fracções”, contudo, considerando que a declaração confessória tem de ser inequívoca (cfr. art. 357.º, do Código Civil), é patente que o legal representante do Réu nunca afirmou de modo expresso e inequívoco que as despesas em causa são divididas por 31 e não por permilagem.
Finalmente, pretende a Recorrente alcançar a mesma conclusão do teor do texto do Acordo Adicional – que consta do ponto 16 dos factos provados – quando ali se diz que “2 - As despesas da União de Condomínios relacionadas com jardinagem, segurança e administração são comparticipadas pelo Condomínio do Bloco B na base de 31/367(8,45%), visto que estas despesas respeitam e devem ser pagas não só pelos condóminos titulares das 337 frações habitacionais, mas também pelas 30 frações não habitacionais (comerciais). Estas despesas são comuns à Sociedade e à União, e o Bloco B tem 31 das 367 frações autónomas…..”.
No entanto, deste texto não resulta a mais leve referência ao modo de pagamento das despesas por permilagem ou em partes iguais mas apenas à percentagem de comparticipação do condomínio do Bloco B em relação aos demais blocos da União de Condomínios.
Deste modo, em suma, por todos os motivos expostos, improcede a impugnação da decisão da matéria de facto, mantendo-se os factos constantes do item A como factos não provados.
*
9. – Da reapreciação jurídica da causa:
9.1. – Saber se a deliberação constante do ponto 5 da mesma acta da Assembleia impugnada é contrária ao regulamento do condomínio e à lei geral, ao fazer a divisão das despesas de segurança e jardinagem em partes iguais pelas 31 fracções do condomínio, ao invés de o fazer por permilagem:
Já vimos que improcedeu a impugnação da decisão da matéria de facto relativa ao item A dos factos não provados.
Contudo, parte das razões invocadas pela Recorrente na sua impugnação da decisão da matéria de facto, como acima referido, são atinentes à interpretação do próprio conteúdo da deliberação impugnada o que nos remete para a matéria de direito.
E a este propósito valem as regras de interpretação de negócios jurídicos.
O art. 236.º, n.º 1, do Código Civil, estipula que “
A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele
.”
E o art. 237.º do Código Civil determina que “
Em caso de dúvida sobre o sentido da declaração, prevalece, nos negócios gratuitos, o menos gravoso para o disponente e, nos onerosos, o que conduzir ao maior equilíbrio das prestações
.”
A interpretação deve assim “atender à globalidade do contrato, à totalidade do comportamento das partes – anterior ou posterior ao contrato -, à particularização das expressões verbais, ao princípio da conservação dos actos – o
favor negotii
–, e à primazia do fim do contrato. O declaratário normal, figura normativamente fixada, atenderá a todos estes vectores.”
2
.
E o sentido atendível para um declaratário normal, à luz da teoria da impressão do destinatário, significa que a declaração negocial vale com o sentido que seria considerado por uma pessoa normalmente diligente, sagaz e experiente em face dos termos da declaração e de todas as circunstâncias situadas dentro do horizonte concreto do declaratário – em face daquilo que o concreto destinatário da declaração conhecia e daquilo que podia conhecer.
No domínio da interpretação dos negócios formais o artigo 238.º, n.º 1, do Código Civil, estabelece que “
A declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso.
”
Nesta sequência, de igual modo na interpretação do texto vertido na acta da assembleia de condóminos há que fazer apelo às regras da interpretação objectiva, atendendo ao significado normal e corrente das expressões utilizadas e, bem assim, a todo o contexto que conduziu à realização da assembleia e aos pontos da ordem de trabalhos nela incluídos – como de igual modo se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 30/10/2028 (Micaela Sousa, proc. n.º 17672/17.0T8LSB.L1-7, www.dgsi.pt)
3
.
Apreciando.
Para contextualizar a reapreciação jurídica da causa, importa salientar que a sentença recorrida fez um correcto enquadramento jurídico geral da propriedade horizontal e pressupostos de anulação das deliberações da assembleia de condóminos.
De igual modo a sentença recorrida analisou correctamente as particularidades do caso concreto ao destacar aquelas que entendeu qualificar como “considerações estruturantes”, salientando-se com relevância o seguinte:
- O Bloco B do prédio constituído em propriedade horizontal sito no ..., em Local 1, descrito na Conservatória do Registo Predial deLocal 1, sob o n.º 826-F, freguesia de Local 1, constitui um condomínio autónomo, tal significando que tem frações autónomas e partes comuns;
- O referido Bloco B encontra-se inserido no Empreendimento EE, constituído por dez Blocos (cada, um Condomínio autónomo) e espaços comuns àqueles;
- A Associação denominada União de Condomínios do EmpreendimentoEE foi constituída pelos Condomínios dos dez blocos do prédio;
- Foram tidos em conta os Estatutos da União de Condomínios do Empreendimento EE;
- Foi analisado o Regulamento da União de Condomínios do Empreendimento EE que o mesmo é aplicável ao Empreendimento EE, constituído pelos prédios urbanos descritos na Conservatória do Registo Predial de Local 1, sob os números 00728/231288-
À, 00826/070789-Â, 00729/231288-Ñ, 00827/070789-D, 00730/231288-Å, 00725/290389-F, 00726/290389-G, 00824/070789-Í, 00825/070789 -I e 00823/070789-J (art. 1.
º), isto é, os dez Blocos do prédio;
- E no que respeita à Sociedade EE – Sociedade Imobiliária S.A. resulta que à data da elaboração do Regulamento da União de Condóminos era tão-só a proprietária das piscinas, do campo de ténis e duas frações do Bloco B identificadas no art. 2.º, n. 1 do Regulamento, sendo duzentas e oitenta ações pertença da própria sociedade, duas pertença da União de Condomínios do Empreendimento EE e as demais ações distribuídas à razão de 1/3337 por cada um dos proprietários dos apartamentos.
Posto isto, importa salientar que ficou definitivamente decidido pela sentença recorrida (uma vez que não foi objecto de recurso) o seguinte:
«Declaração de nulidade do ponto três da deliberação da assembleia geral de condóminos do réu Condomínio do Bloco B do Empreendimento EE, reunida em 18 de Julho de 2020, e exarada na Ata n.º 31, na parte onde se lê:
“1 - O Condomínio do Bloco B pagará 29/337 (8,61%) do custo total das despesas da SociedadeEE, Ld.° (orçamento), visto que são condóminos habitacionais do Bloco B 29 dos 337 acionistas desta sociedade (todos pessoas singulares titulares de fracções habitacionais), com iguais direitos e deveres. Embora as piscinas e o court de ténis sejam geridos pela União de Condomínios, todas as despesas da sua gestão integrarão o orçamento da Sociedade. A Administração do Bloco B procederá a transferência deste valor para a União de Condomínios, contra recibo, à medida que for recebendo dos seus referidos Condóminos”; e
“2 - As despesas da União de Condomínios relacionadas com jardinagem, segurança e administração são comparticipadas pelo Condomínio do Bloco B na base de 31/367(8,45%), visto que estas despesas respeitam e devem ser pagas não só pelos condóminos titulares das 337 frações habitacionais, mas também pelas 30 frações não habitacionais (comerciais). Estas despesas são comuns à Sociedade e à União, e o Bloco B tem 31 das 367 frações autónomas. Será igualmente centralizada a transferência, pela Administração do Bloco B, para a União de Condomínios, contra recibo, das verbas recebidas dos seus Condóminos”.
».
Vejamos então se de igual modo deveria ter sido declarada a invalidade do ponto 5.
Ora, no caso concreto em apreciação, ficou provado que «No documento intitulado “Acordo Adicional ao Regulamento do Condomínio do Bloco B do Empreendimento EE”, consta o seguinte:
“
Considerando que:
(i) o Regulamento do Condomínio do Bloco B do Empreendimento EE apenas abrange as obrigações dos Condóminos do Bloco B perante o Condomínio; (ii) os Condóminos do Bloco B recorrem ao Condomínio do Bloco B para centralizar o cumprimento das obrigações daqueles perante a União de Condomínios do Empreendimento EE (União de Condomínios) e da Sociedade EE, Ld.9; (iii) o Regulamentos da União de Condomínios e os Estatutos da Sociedade EE, são omissos nesta matéria; deliberaram os Condóminos do Bloco B, reunidos em Assembleia de Condomínio, formalizar os critérios para apuramento do valor da respectiva comparticipação nessas despesas, para efeito da centralização do seu pagamento às referidas entidades, pelo Condomínio do Bloco B.
Assim, deliberaram os Condóminos do Bloco B que:
1- O Condomínio do Bloco B pagará 29/337 (8,61%) do custo total das despesas da Sociedade EE, Ld.° (orçamento), visto que são condóminos habitacionais do Bloco B 29 dos 337 acionistas desta sociedade (todos pessoas singulares titulares de fracções habitacionais), com iguais direitos e deveres,. Embora as piscinas e o court de ténis sejam geridos pela União de Condomínios, todas as despesas da sua gestão integrarão o orçamento da Sociedade. A Administração do Bloco B procederá a transferência deste valor para a União de Condomínios, contra recibo, à medida que for recebendo dos seus referidos Condóminos.
2 - As despesas da União de Condomínios relacionadas com jardinagem, segurança e administração são comparticipadas pelo Condomínio do Bloco B na base de 31/367(8,45%), visto que estas despesas respeitam e devem ser pagas não só pelos condóminos titulares das 337 frações habitacionais, mas também pelas 30 frações não habitacionais (comerciais). Estas despesas são comuns à Sociedade e à União, e o Bloco B tem 31 das 367 frações autónomas. Será igualmente centralizada a transferência, pela Administração do Bloco B, para a União de Condomínios, contra recibo, das verbas recebidas dos seus Condóminos.
3 - As despesas de limpeza dos 10 blocos e de manutenção do miradouro de uso comum dos 10 blocos serão pagas consoante a proporção da área de construção de cada bloco na área de construção total dos 10 blocos, conforme definido no Regulamento da União de Condomínios. Assim, o Bloco B, pagará 10,28% do total dessas despesas. Após pagamento pelos respectivos Condóminos, será transferida para a União de Condomínios, contra recibo.
Nada do que acima se delibera respeita ou afeta o pagamento das despesas ordinárias do condomínio, devido a este pelos Condóminos do Bloco B”
» – ponto 16 dos factos provados.
E do orçamento para o ano de 2020 resultam apenas as despesas, os custos e as quotas a cobrar.
Deste modo, analisado o teor objectivo da deliberação que se pretende impugnar, interpretada à luz das normas jurídicas aplicáveis, acima referidas, não é possível concluir que faz a divisão das despesas de segurança e jardinagem em partes iguais pelas 31 fracções do condomínio, ao invés de o fazer por permilagem, por isso, apenas com este fundamento não é possível anular a deliberação em causa.
*
9.2. – Saber se a própria anulação, proferida pela sentença, do ponto 3 da acta da Assembleia implicará a anulação do referido ponto 5:
Entende a Recorrente que se o referido ponto 5 da deliberação refere expressamente que o orçamento foi elaborado à luz dos critérios do “Acordo Adicional” e se a deliberação que aprovou o acordo adicional foi anulada, tal implica que a aprovação do orçamento também terá que o ser, ou seja, entende que não é possível aprovar uma deliberação com base numa outra, que, por sua vez, foi anulada, que há uma clara situação de dependência da segunda deliberação face à primeira: sendo a primeira anulada, como foi pela douta sentença, a segunda também sempre terá que o ser.
Entende ainda a Recorrente que um orçamento não é uma previsão, entre o mais, de receitas, porque tal implica o pagamento de quotizações por parte dos condóminos para fazer face às despesas previstas, que a administração poderá sempre exigir, em sede de processo executivo, o valor dessas quotizações, porque constantes do orçamento aprovado.
A propósito da pretendida anulação do ponto 5 da deliberação da assembleia de condóminos consta da sentença o seguinte:
«Finalmente,
autora requereu a anulação da deliberação relativa ao ponto 5 da Assembleia de Condóminos do Bloco B realizada em 18 de Julho de 2020, exarada na Ata n.º 31 e o no seu Aditamento, relativa à “apresentação e votação do Orçamento para o ano de 2020”.
Conforme vimos, decorre do art. 1431.º, n.º 1, 2 e 4 do Código Civil (na redação primitiva, anterior à alteração introduzida pela Lei n.º 8/2022, de 10 de outubro, em vigor à data da assembleia) que a assembleia de condóminos reúne-se anualmente para, além do mais, aprovar o orçamento das despesas a efetuar durante o ano.
Sucede que um orçamento configura uma previsão de receitas e despesas futuras para um determinado exercício. Como tal, justamente por se tratar de uma previsão, não tem caráter definitivo, não tem que apresentar rigor matemático, nem suporte documental das despesas previstas, porquanto são para futuro e podem ou não vir a verificar-se. Razão pela qual entendemos que a aprovação de um orçamento, precisamente por se tratar de mera previsão, um evento futuro, não é suscetível de configurar a violação de qualquer disposição legal ou regulamentar, termos pelos quais se conclui que, ao abrigo do disposto no art. 1433.º, n.º 1 do Código Civil,
deve improceder a peticionada anulabilidade do ponto 5 da deliberação da assembleia de condóminos realizada em 18 de julho de 2024.
».
Apreciando.
Consta do ponto 5 da acta n.º 31 o seguinte:
«5. Apresentação e votação do Orçamento para o ano de 2020; ----------------------------------------
A Administração apresentou o Orçamento, e explicou que o mesmo foi elaborado conforme o Acordo aprovado no ponto número três da ordem dos trabalhos.».
Já vimos que o ponto 3 da ordem de trabalhos (
Apresentação, discussão e votação do Acordo adicional ao Regulamento do Condomínio do Bloco B do Empreendimento EE
) foi anulado nos seus pontos 1 e 2 pela sentença proferida em primeira instância, mostrando-se esta questão definitivamente decidida.
Ora, considerando que o condomínio do Bloco B faz parte integrante da União de Condomínios dos restantes blocos do empreendimento, a partir do momento que foi anulada parte da deliberação do ponto 3 (constante dos pontos 1 e 2 do acordo adicional), consequentemente, cai por terra a deliberação da assembleia de condóminos relativa à aprovação do orçamento para o ano de 2020 constante do ponto 5 por dele constar expressamente que “foi elaborado conforme o Acordo aprovado no ponto número três da ordem dos trabalhos”.
Não é assim possível subsistir a deliberação relativa ao ponto 5 por ser dependente de deliberação já anulada pela sentença, assistindo assim nesta parte razão à Recorrente.
Deste modo, impõe-se anular a deliberação da assembleia de condóminos relativa ao ponto 5.
*
9.3. – Saber se a anulação do ponto 1 da deliberação decorre da matéria dada como provada sob os pontos 6., 13. e 14. da matéria de facto dada como provada:
O ponto 1 da deliberação da assembleia de condóminos diz respeito a “
1.Apresentação, discussão e votação das contas do Ano 2019”.
Consta a este propósito na sentença recorrida o seguinte:
«A
autora requereu ainda a anulação da deliberação relativa ao ponto 1 da Assembleia de Condóminos do Bloco B realizada em 18 de Julho de 2020, exarada na Ata n.º 31 e o no seu Aditamento, relativa à “apresentação, discussão e votação das contas do Ano 2019
”.
Estatui o art. 1431.º, n.º 1 do Código Civil (na redação primitiva, em vigor à data da assembleia) que “a assembleia reúne-se na primeira quinzena de Janeiro, mediante convocação do administrador, para discussão e aprovação das contas respeitantes ao último ano e aprovação do orçamento das despesas a efectuar durante o ano”.
Acrescentando o n.º 2 que “a assembleia também reunirá quando for convocada pelo administrador, ou por condóminos que representem, pelo menos, vinte e cinco por cento do capital investido. Podendo ainda, nos termos do n.º 4 “realizar-se, excecionalmente, no primeiro trimestre de cada ano se esta possibilidade estiver contemplada no regulamento de condomínio ou resultar de deliberação, aprovada por maioria, da assembleia de condóminos”.
Por seu turno, o art. 1436.º, n.º 1, al. j) do Código Civil (na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 267/94, de 25 de outubro, em vigor à data da assembleia) estatui que, entre outras, constitui função do administrador, prestar contas à assembleia.
Daqui extrai-se que é obrigação do administrador prestar, anualmente, contas à assembleia de condóminos.
Importando, no entanto, referir que «não existe norma a definir o modo concreto de prestação de tais contas à assembleia, nem para a tomada de deliberação sobre tal assunto, (ao contrário do que resulta previsto máxime no n.º 3 do artigo 1422.º, n.º 3, do artigo 1422.º-A, n.º 2, do artigo 1424.º, n.º 1 e do artigo 1425.º, todos do CC), sendo aplicável o disposto no n.º 5 do artigo 1432.º do CC que prevê que “(…) as deliberações são tomadas, salvo disposição especial, por maioria dos votos representativos do capital investido» (acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 23.04.2024, processo n.º 254/22.1T8LAG.E1, consultado em
www.dgsi.pt.pt
).
No caso em apreço encontra-se provado que na assembleia de condóminos no que se refere ao Ponto 1, intitulado “Apresentação, discussão e votação das contas do Ano 2019” foi deliberado aprovar as contas de 2019 por maioria, com 581 votos dos presentes e representados, com 136 votos contra, e uma abstenção, com 17 votos, nos termos do art. 1432.º, n.º 3 do Código Civil (na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 297/94, de 25 de outubro, em vigor à data da assembleia).
Mais se provou que das preditas contas de 2019 consta um valor de 25.261,24€ a título de dívidas a fornecedores, valor esse que em parte é referente a despesas debitadas pela União de Condomínios ao Bloco B, e que este não reconhece. E que a Administração do condomínio do Bloco B discorda da forma de distribuição das despesas da União de Condomínios aprovado em 20 de Março de 1999, pelo que não procede ao pagamento àquela Associação das quantias reclamadas, encontrando-se assim com a dívida referida a fornecedores nas contas agora aprovadas.
Sucede que, conforme vimos, o réu Condomínio do Bloco B do Empreendimento EE, enquanto associado da União de Condomínios do Empreendimento EE, encontra-se vinculado pelo Regulamento da União de Condomínios do Empreendimento EE”, com data aposta de 20 de março de 1999, decorrendo dos seus arts. 4.º, n.º 1 e 2 e 5.º, n.º 4 que deve pagar a quota do orçamento dos espaços e equipamentos comuns (e não outros) do Empreendimento que lhe corresponde, calculada em função do peso relativo do bloco, isto é, de 10,28%. Mas também o referido Regulamento prevê o pagamento de despesas que são propriedade exclusiva de terceiros, à data do Regulamento, da EE – Sociedade Imobiliária S.A. e que é matéria excluída da competência da assembleia de condóminos para administração.
Posto isto, certo é que não foi alegado, nem demonstrado, quanto à dívida de fornecedores no valor de 25.261,24€, qual a parte corresponde à União de Condomínios; tal como desconhece-se se no exercício do ano 2019 o réu Condomínio não pagou a totalidade ou apenas parcialmente a quota por si devida; além de que não foi alegado, nem demonstrado qual o valor reclamado pela União de Condomínios relativo ao ano de 2019, nem que despesas incluiu, a fim de se aferir se tais valores se encontram em conformidade com o Regulamento da União de Condomínios do Empreendimento EE, nos termos dos arts. 4.º, n.º 1 e 2 e 5.º, n.º 4 do Regulamento da União de Condomínios do Empreendimento EE e se são vinculativas. E em consequência, não se demonstrou que a deliberação do ponto 1 viola a lei ou regulamento anterior, no caso, o Regulamento da União de Condomínios, razão pela qual, nos termos do art. 1433.º, n.º 1 do Código Civil,
não se mostram verificados os pressupostos para declarar a respetiva anulabilidade.
De todo o modo, deve ter-se presente que das contas relativas ao exercício do ano de 2019, consta refletivo, justamente que o réu Condomínio mantém um valor de 25.261,24€ relativo a dívida a fornecedores, em parte referente às despesas debitadas pela União de Condomínios, o que não inviabiliza o seu pagamento voluntário ou eventualmente coercivo, caso seja devido.».
Apreciando.
A validade ou invalidade da deliberação depende da análise do seu conteúdo objectivo e não se saber se em concreto vai ser concretizado o seu conteúdo.
Com efeito, não tem relevância saber se foi ou não alegado ou demonstrado quanto à dívida de fornecedores no valor de 25.261,24€, qual a parte que corresponde à União de Condomínios para aferir da sua validade.
Nem tão pouco é relevante saber se no exercício do ano 2019 o réu Condomínio não pagou a totalidade ou apenas parcialmente a quota por si devida no âmbito da união de condomínios do empreendimento.
O que tem relevância no caso concreto em apreciação é saber se a deliberação em causa violou a lei ou o regulamento.
Assim sendo, considerando que ficou provado no ponto 6 que o Condomínio do Bloco B corresponde a 10,28% do empreendimento em causa, que ficou provado no ponto 13 que “A atual Administração do condomínio do Bloco B discorda da forma de distribuição das despesas da União de Condomínio aprovado em 20 de Março de 1999, pelo que não procede ao pagamento àquela Associação das quantias reclamadas” e que ficou provado no ponto 14 que “Com efeito, das contas aprovadas resulta que a Administração do Condomínio do Bloco B, desde há vários anos, considera que deve pagar à União de Condomínios uma comparticipação na maioria das despesas comuns correspondente ao número de apartamentos nuns casos, noutros casos correspondente ao número total de frações autónomas, sendo outras despesas, mais reduzidas, a pagar de acordo com a proporção da área de construção, conforme definido no Regulamento da União de Condomínios, ou seja, a 10,28%.”, esta deliberação constante do ponto 1 da acta da assembleia de condóminos de 18/07/2020 viola de igual modo o Regulamento da União de Condóminos do Empreendimento EE.
Deste modo, impõe-se de igual modo anular a deliberação constante do ponto 1 da assembleia de condóminos de condóminos de 18/07/2020.
*
10. Responsabilidade Tributária
As custas do recurso de Apelação são a cargo do Recorrido/Réu, contudo, como este não apresentou contra-alegações não é por si devida taxa de justiça.
*
III. DISPOSITIVO
Nos termos e fundamentos expostos,
1.
Acordam os Juízes da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar parcialmente procedente o recurso de apelação interposto pela Recorrente/Autora e, em consequência revogar parcialmente a sentença nos seguintes termos:
– Anulam-se as deliberações constantes dos pontos um e cinco da assembleia de condóminos de 18/07/2020 exaradas na acta n.º 31 e seu aditamento;
- Mantém-se o demais decidido na sentença.
2.
Custas do recurso de Apelação são a cargo do Recorrido/Réu, contudo, como este não apresentou contra-alegações não é por si devida taxa de justiça.
3.
Registe e notifique.
*
Évora, data e assinaturas certificadas
Relator:
Filipe César Osório
1.º Adjunto
: Filipe Aveiro Marques
2.º Adjunto:
Susana Ferrão da Costa Cabral
__________________________________________
1.
Na sequência de sentença que homologou a desistência da instância relativamente aos demais Réus identificados na Petição Inicial.
↩︎
2.
A. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, 2000, pág. 553
↩︎
3.
https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/8a18040af3f07f5b8025838d005d7285
↩︎
|
TRE
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https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/9449c5cd67961b9780258c7c0034cd21?OpenDocument
|
1,745,798,400,000
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IMPROCEDENTE. CONFIRMADA A SENTENÇA
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1366/24.2T8VLG.P1
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1366/24.2T8VLG.P1
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MARIA LUZIA CARVALHO
|
I - O assédio laboral não se confunde com situações de mera tensão laboral decorrente do conflito entre os interesses, tantas vezes opostos, do empregador e do trabalhador.
II - Não constitui assédio laboral justificante da resolução do contrato de trabalho, uma situação laboral de tensão e conflito no contexto de uma transmissão de unidade económica, caraterizada por hostilidade recíproca, na qual a empregadora assumiu um papel algo errático para com a trabalhadora, mas em que esta assumiu um papel de confronto permanente mesmo antes o início da reação laboral, e por vezes injustificado, sem que se tenha demonstrado que a atuação o empregador tenha tido em vista humilhar ou vexar a trabalhadora ou constrangê-la com o objetivo de a levar a cessar o contrato de trabalho, ou sequer que tenha sido esse o efeito causado.
III - Para se concluir pela existência de justa causa de resolução do contrato de trabalho, além da atuação ilícita e culposa do empregador é necessário que essa conduta do empregador torne imediata e praticamente impossível a manutenção da relação laboral.
(
Sumário da responsabilidade da relatora nos termos do art.º 663.º, n.º 7 do CPC)
|
[
"ASSÉDIO MORAL / HOSTILIDADE RECÍPROCA",
"NÃO JUSTA CAUSA DE RESOLUÇÃO DO CONTRATO"
] |
Processo n.º 1366/24.2T8VLG.P1
Origem: Comarca do Porto, Juízo do Trabalho ...
Acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação do Porto
Relatório
AA intentou a presente ação declarativa sob a forma de processo comum laboral contra A... S.A., pedindo que seja judicialmente declarado:
“- A licitude da resolução do contrato de justa causa operado pela autora;
- A condenação da ré no pagamento da quantia de 7.125,23€ a título de indemnização;
- A condenação da ré no pagamento da quantia de 1.825,06€ a título de créditos salariais;
- A Condenação da ré no pagamento da quantia de 1.052,91€ a título de crédito de horas de formação profissional não prestada;
- A condenação da ré no pagamento da quantia de 2.500€ a título de danos não patrimoniais.”
Alegou, em síntese, que devido a vários comportamentos protagonizados pela ré durante um determinado período de tempo existem motivos para resolver o contrato de trabalho com justa causa.
Frustrada a conciliação em sede de audiência de partes, a ré contestou, entendendo que não existiu qualquer fundamento para a resolução do contrato de trabalho por justa causa e que que a autora não fez qualquer comunicação à ré alegando, especificamente, o assédio nos 30 dias subsequentes ao conhecimento dos factos, conforme dispõe o nº 1 do artigo 395º do CT, o que, só por si, põe termo à presente questão, concluindo pela sua absolvição dos pedidos.
A autora apresentou resposta.
Foi realizada audiência prévia, no âmbito da qual foi proferido despacho saneador no qual, foi fixado o valor da causa em € 12.503,20 (doze mil, quinhentos e três euros e vinte cêntimos), foram elencados os factos assentes por acordo das partes, foi identificado o objeto do litígio e enunciados os temas de prova.
Realizou-se audiência de discussão e julgamento, na sequência da qual foi proferida sentença que julgando a ação parcialmente procedente, culminou com seguinte dispositivo:
“I- Condeno a ré A... S.A., a pagar à autora AA:
i. € 845,55 a título de horas de formação não ministradas;
ii. € 1825,06 a título de subsídio de férias e férias dos anos de 2023, acrescido de juros de mora desde as datas de vencimento.
II- Absolvo a ré dos restantes pedidos formulados pela autora.”
*
Inconformada, a autora interpôs o presente recurso, impugnado a sentença, quer de facto, quer de direito, apresentado alegações que concluiu nos seguintes termos:
(…)
*
A ré não apresentou contra-alegações.
*
O recurso foi regularmente admitido e recebidos os autos neste tribunal o Ministério Público emitiu parecer nos termos do art.º 87.º, n.º 3 do Código de Processo do Trabalho (CPT), no sentido da improcedência do recurso por entender que a recorrente não tem razão quanto à impugnação da matéria de facto, face à da inobservância do artigo 640.º, do Código de Processo Civil (CPC); que a sentença em crise está devidamente motivada e analisada criticamente, de forma refletida, não padecendo de discordância com os elementos probatórios disponíveis, devendo manter-se inalterada a matéria de facto, por estar afastado qualquer vício ou erro de julgamento que a possa inquinar e que bem andou o Mm.º Juiz nas considerações que teceu quanto à falta de fundamento para a resolução do contrato de trabalho com justa causa, o que se deveu, essencialmente, à circunstância de não se ter logrado fazer prova de que a Autora/recorrente foi vítima de assédio laboral e muito menos que a causa do mau estar psicológico da autora fossem os comportamentos emanados da sua entidade patronal.
*
A ré pronunciou-se em sentido concordante com o parecer do Ministério Público.
*
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
Delimitação objetiva do recurso
Resulta do art.º 81.º, n.º 1 do CPT e das disposições conjugadas dos arts. 639.º, nº 1, 635.º e 608.º, n.º 2, todos do CPC, aplicáveis por força do disposto pelo art.º 1.º, n.º 1 e 2, al. a) do CPT, que as conclusões delimitam objetivamente o âmbito do recurso, no sentido de que o tribunal deve pronunciar-se sobre todas as questões suscitadas pelas partes (delimitação positiva) e, com exceção das questões do conhecimento oficioso, apenas sobre essas questões (delimitação negativa).
Assim, são as seguintes as questões a decidir:
- impugnação da decisão da matéria de facto;
- existência da justa causa invocada pela trabalhadora para a resolução do contrato de trabalho.
*
Fundamentação de facto
A decisão da matéria de facto relativa aos factos provados e não provados foi a seguinte:
«Factos dados como assentes no saneador por acordo entre as partes, como da respectiva acta consta:
1. A adjudicação do contrato de prestação de serviços de vigilância e segurança humana nas instalações da CM... foi efetuada à ré em data que não se pode precisar anterior a 7 de setembro de 2023.
2. Exercendo já a autora a profissão de vigilante e segurança há vários anos não estranhou a possibilidade de ocorrer uma transmissão de posto como é prática habitual no setor.
3. Contudo, uma vez que apenas tinha tido um contacto telefónico informal para se deslocar à ré para assinar um contrato de trabalho, tomou ela própria a iniciativa de lhe enviar uma carta registada, datada do dia 02 de setembro de 2023, cujo corpo do texto se transcreve:
Assunto: Transmissão do contrato de trabalho por parte da empresa B..., S.A. decorrente da transmissão do estabelecimento correspondente ao Cliente Câmara Municipal de ...
Exmos. Senhores,
Os meus cumprimentos.
Com referência ao assunto acima identificado, cumpre-me informar-vos que fui notificada pela empresa acima aludida que os serviços de vigilância que a mesma prestava para a Câmara Municipal de ..., vos foram adjudicados, com efeitos a partir do dia 7 de setembro de 2023 e pelo facto de eu estar integrada como trabalhadora nessa unidade económica, o meu contrato de trabalho transita para a A..., ficando integrada, a partir de tal data, como vossa funcionária nos termos dos artigos 285 e 287 do Código do Trabalho, sem que daí resulte a perda de qualquer um dos meus direitos.
Face a essa realidade, manifesto desde já a minha total disponibilidade para cumprir com as funções que me estavam atribuídas pela B... ao serviço de V/EXa.s, solicitando ordens e autorização para a continuação ao serviço do normal cumprimento do meu contrato de trabalho, pois pretendo trabalhar, necessito do mesmo para sobreviver e não aceito a cessação do contrato.
Entretanto fui contactada por alguém dessa empresa que me solicitou a deslocação às vossas instalações para a assinatura de novo contrato de trabalho, o que me deixou algo confusa, pois ocorrendo uma transmissão do contrato de trabalho inexiste qualquer necessidade de se celebrar um “novo” contrato de trabalho porque o mesmo já existe. Nesta conformidade, muito grata ficava se me contactavam por escrito, que poderá ser através de e-mail que aqui indico AA..........@..... no sentido de manifestarem se aceitam a existência da transmissão do contrato de trabalho, a indicação de dia e hora para recolher o novo fardamento para que no dia 7 de setembro me apresente no posto de trabalho.
Mais informo que caso pretendam que assine alguma declaração ou preencha algum documento, ao qual queiram chamar contrato de trabalho, estou disponível para esse efeito desde que me seja acautelada a antiguidade, a dispensa de período experimental e o reconhecimento do direito a férias, subsídios de férias e de natal vencidos até ao dia 6 de setembro de 2023.
Na ausência de qualquer comunicação, no dia 7 de setembro de 2023, apresentar-me-ei no meu posto de trabalho, aguardando que até lá me enviem para a minha residência o novo fardamento ou então que o mesmo me seja entregue no local.
Fico, pois, a aguardar as vossas instruções para continuar o trabalho, esperando que se mantenha desde o início o bom relacionamento que deve caracterizar o normal desempenho do contrato de trabalho, não querendo de modo nenhum iniciar funções na empresa em situação de conflito, sendo certo que se for violado algum dos meus direitos serei obrigado a desenvolver todas as diligências para que os mesmos sejam respeitados, incluindo o recurso às vias judiciais, o que gostaria de evitar.
Na expetativa das V/prezadas notícias, subscrevo-me, atenciosamente”
4. Tendo recebido um e-mail por parte da Ré, no dia 05 de setembro de 2023, onde lhe foi transmitido para se deslocar às suas instalações no dia 06 de setembro de 2023, cujo texto do corpo se transcreve:
“
Cara Sra. AA,
Bom dia.
Vimos por este meio, no seguimento da sua comunicação e do nosso contato telefónico reiterar que foi adjudicada à A..., S.A., a prestação de serviços de vigilância e segurança nas instalações da Câmara Municipal de ..., a partir do dia 07.09.2023, considerando esta empresa que, no presente caso, ocorreu transmissão de estabelecimento nos termos do Artigo 285.º e seguintes do Código do Trabalho.
A A..., S.A. iniciou, assim, a tramitação processual para a concretização da transmissão, tendo encetado todas as diligências legais e necessárias junto dos trabalhadores, incluindo V. Exa., e até ao momento foi aceite pela maioria dos trabalhadores a integração nesta empresa.
Posição que também é assumida por V. Exa, pelo que consideramos que a partir do próximo dia 07.09.2023, passará a ser trabalhadora da A..., S.A., cuja comunicação será realizada ao Instituto da Segurança Social.
Informamos V. Exa que para a concretização da integração na A..., SA., terá de enviar ou entregar-nos em mão os seguintes documentos para o email: ..........@A.....: cópia do cartão profissional válido, cópia do cartão de cidadão, registo criminal, certificado de habilitações, comprovativo de morada, comprovativo de IBAN e fotografia, no prazo de 2 (dois) dias úteis, tendo em consideração que a transmissão tem início no próximo dia 07 de setembro.
Por fim, informamos V. Exa. que assumiremos a respetiva categoria profissional, antiguidade, retribuição e demais condições resultantes do correspetivo contrato de trabalho.
Qualquer dúvida que subsista poderá ser esclarecida aquando da deslocação à sede da A..., S.A., para que seja dado o cumprimento ao disposto no Código do Trabalho, bem como para que possa recolher o fardamento necessário para o desempenho da sua atividade profissional. Informamos, desde já, que os custos dessa deslocação serão suportados pela empresa.
Nesse decurso e tendo em consideração o nosso contato telefónico, deverá deslocar-se à sede da empresa amanhã, dia 06/09, no período da manhã, pelo que agradecemos a sua confirmação.
Sem mais de momento, e manifestando a nossa total disponibilidade para esclarecer quaisquer aspetos que suscitem dúvidas.
Cumprimentos,
BB
”.
5. Ao que a autora respondeu, no mesmo dia, a confirmar presença nas instalações da sede da ré nesse mesmo dia 06 de setembro, cujo corpo do texto se transcreve:
“
Exmos. senhores,
Acuso a receção do V. email, o qual mereceu a minha melhor atenção.
Asseguro desde já a minha presença nas V. instalações amanhã, dia 06.09.2023, no período da manhã como referido na comunicação anterior.
Mais informo que farei o envio dos respectivos documentos de seguida, com a exceção da fotografia que solicitam, em virtude de não ser de momento detentora de nenhuma, sendo que a mesma pode ser considerada pelos documentos legais de identificação que irei enviar.
Mais ainda, relembro que a documentação passível da minha assinatura no dia de amanhã, ao abrigo da TE que está a ocorrer, se deve encontrar em duplicado e com a assinatura da administração por forma a terem a devida legalidade, podendo esta assinatura ser substituída pelo envio antecipado dos referidos documentos pelo presente meio.
Não menos importante, refiro que para a minha deslocação às V. instalações no dia de amanhã, 06.09.2023 terei a necessidade de me ausentar do meu local de trabalho, pelo que agradeço que me informem quais os valores a serem suportados por V. Exs., bem como a forma de retribuição dos mesmos.
Por fim, continuo também a aguardar a confirmação pelo respetivo meio da data e hora e local de realização do exame médico.
Relembro também, conforme indicado na minha correspondência anterior, que disponho de horário flexível (9h às 17h) em virtude de ser progenitora de uma menor, como forma a assegurar as deslocações e respetivas tarefas inerentes à deslocação da criança para o Estabelecimento de Ensino.
Atenciosamente,
AA
”
6. Tendo Ré respondido nesse mesmo dia, e-mail cujo texto do corpo se transcreve:
“
Cara Sra. AA,
Boa tarde.
No seguimento da sua comunicação, ficamos a aguardar o envio da documentação.
Tendo em consideração que refere estar a trabalhar no dia de amanhã, poderá deslocar-se à empresa em horário pós-laboral, ou seja, a partir das 17h00.
Relativamente aos valores que a A... suportará, os mesmos respeitam à deslocação à sede da empresa, cujo comprovativo deverá apresentar.
Ficamos, assim, a aguardar que nos confirme o horário da deslocação às nossas instalações.
Cumprimentos
,”
7. A autora cumprindo o solicitado enviou a documentação por e-mail datado do mesmo dia (5 de setembro) e efetivamente deslocou-se à sede da ré em ..., ... no dia 6 de setembro de 2023 onde foi atendida pela Snra. CC.
8. Quando aí se deslocou foram apresentados diversos documentos à autora para que a mesma os assinasse.
9. Munidos dos documentos de identificação da autora e que esta previamente lhes tinha enviado, a ré já tinha elaborado toda a documentação que lhe estava a ser apresentada.
10. Sem qualquer acordo por parte da autora na sua elaboração ou no texto escolhido.
11. Outros documentos que lhe foram apresentados para a assinar foram os seguintes:
-acordo de horário concentrado
-adenda ao contrato de trabalho sem termo
-contrato de trabalho sem termo
-Declaração de aceitação do regime de adaptabilidade
-Declaração de formação de segurança e saúde no trabalho;
-Acordo de gozo de férias;
-Acordo de cumulação de férias.
12. A ré entregou posteriormente à autora as minutas sem a sua identificação, contudo no dia da reunião tais documentos já estavam preenchidos com os dados da autora.
–
alterado, passando a ter a seguinte redação:
12 – A ré entregou posteriormente à autora as minutas sem a sua identificação, com o teor dos documentos 8 a 13 juntos com a petição inicial, que se reproduz, contudo no dia da reunião tais documentos já estavam preenchidos com os dados da autora.
13. Documentação que a autora prontamente se recusou a assinar, invocando a assunção por parte da ré da existência de um contrato de trabalho prévio, datado de 14 de março de 2016 e que os seus direitos estavam a ser violados.
14. A autora não pretendia aceitar o horário concentrado.
15. Não admitia aceitar que pudesse ser transferida para “qualquer outro local de trabalho situado em Portugal Continental” como previa a cláusula 6 do contrato de trabalho.
16. Não aceitava manifestar que estava a receber equipamentos EPI´s quando nenhum lhe tinha sido entregue.
17. Não aceitava declarar que tinha recebido formação profissional com espaços em branco onde se poderia inserir à posteriori datas.
18. Não aceitaria a cumulação de férias antecipadamente.
19. Atento o comportamento da ré logo no início de funções e uma vez que no dia seguinte se tinha que apresentar no posto já ao serviço da ré e sem que lhe tenha sido entregue o fardamento dos funcionários desta, sentiu necessidade de pedir o livro de reclamações e manifestar por escrito a sua indignação e a situação porque estava a passar
. -
alterado, passando a ter a seguinte redação:
19 – Atento o comportamento da ré logo no início de funções e uma vez que no dia seguinte se tinha apresentado no posto de trabalho já ao serviço da ré e sem que lhe tenha sido entregue o fardamento dos funcionários desta, sentiu necessidade de pedir o livro de reclamações e manifestar por escrito a sua indignação e a situação porque estava a passar, nos termos constantes do documento 14 junto com a petição inicial, cujo teor se dá por reproduzido.
20. Ainda nesse dia 06 de setembro de 2023, a ré enviou uma carta registada à autora, cujo corpo do texto se transcreve:
“
Assunto: Transmissão de Estabelecimento –
Câmara Municipal de ...
Exma. Senhora,
Apresentamos, desde já, os nossos respeitosos cumprimentos.
No âmbito do Concurso Público em epígrafe e do processo de transmissão de estabelecimento, a sua entidade patronal, a sociedade B..., S.A.., comunicou à sociedade A..., S.A. a existência do seu contrato de trabalho, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 285.º e seguintes do Código do Trabalho, com o objetivo de a A... assumir a qualidade de sua entidade patronal, a partir do dia 07.09.2023.
Tendo sido informada pela A... da aceitação da transmissão de estabelecimento, com efeitos a partir do dia 07-09-2023, deslocou-se às instalações da empresa e demonstrou a sua intenção para integrar a empresa A... como trabalhadora.
Não obstante e apesar de ter procedido à assinatura de diversa documentação, recusou a assinatura do contrato de trabalho, tratando-se esse ato de um ato indispensável para que possa iniciar a sua jornada laboral com esta empresa.
Posto isto, a A..., S.A. não alcança razão para continuar a opor-se à assinatura do contrato, em virtude de lhe ter sido informado que o contrato seria enviado devidamente assinado pela administração, visto que aquando da sua deslocação à sede da empresa, um dos administradores não se encontrava presente.
Importa informar que, apesar de a transmissão ocorrer e ingressar nos quadros da A..., S.A., não poderá prestar funções até à assinatura do contrato de trabalho, uma vez que se trata de um requisito essencial nos termos da Lei da Segurança Privada.
Nessa medida e atento ao alegado, aguardamos que V.Exa. se pronuncie quanto ao alegado e se desloque à empresa para proceder à assinatura do referido contrato.
Sem mais de momento,
Com os melhores cumprimentos
,”.
21. No dia 7 de setembro de 2023, data do início da operação da ré na CM..., a autora estava de folga.
22. Face à recusa da entrada da autora na Casa Museu ... – CM... no dia 8 de setembro de 2023, pelas 08h30mn, e com receio de poder ser acusada de algum absentismo, a autora viu-se forçada a chamar ao local a PSP para registar a ocorrência.
23. Na presença dos agentes da PSP, o colega de trabalho DD remeteu esclarecimentos adicionais para o chefe de grupo EE.
24. Nesse mesmo dia, enviou a autora uma comunicação via e-mail à ré, cujo corpo do texto se transcreve:
“
Exmos. Senhores,
Desloquei-me hoje às 08H30 ao Posto onde estou afeta, Casa Museu ..., para iniciar as minhas funções diárias de trabalho e verifiquei que não estavam a contar com a minha presença, segundo escala disponibilizada ao Sr. Agente Principal da PSP FF em parelha com o Sr. Agente Principal GG, bem como a informação prestada verbalmente pelo meu colega Sr. DD quer à minha Pessoa quer aos Srs. Agentes.
De igual modo informou que não foi entregue no respetivo local, nenhuma peça de fardamento para me ser entregue pelo que não posso exercer, legalmente, funções sem o respetivo uniforme.
Assim sendo, e continuando a manifestar a minha intenção de exercer as minhas funções, aguardo que me enviem a escala de serviço, com os respetivos requisitos legais, bem como me possam ceder o fardamento inerente ao exercício das funções.
Por fim, informo que o contacto deve ser feito pelo presente meio, descartando qualquer informação passada telefonicamente, por carta para o meu domicílio ou através do meu Representante já anteriormente indicado e mencionado em comunicações anteriores (HH-...p@adv.oa.pt).
Na expectativa urgente das Vossas notícias, subscrevo-me
AA
”
25. Tendo recebido a seguinte resposta por parte do departamento jurídico da Ré, nesse mesmo dia, cujo corpo do texto se transcreve:
“
Cara Sra. AA,
Boa tarde.
É com alguma estranheza que rececionamos a sua comunicação infra.
Na sequência das nossas comunicações anteriores, transmitimos a V. Exa. que a A... aceitou a transmissão operada na Câmara Municipal de ..., tendo V. Exa. vindo à sede da empresa, a fim de formalizar todo o procedimento necessário nestes casos.
Nessa deslocação, foi-lhe prestada toda a informação relativa à presente transmissão, para que ficasse devidamente esclarecida quanto a todo o procedimento.
Não obstante, não foram cumpridos por V. Exa. os requisitos necessários, os quais já são do seu pleno conhecimento (não obstante terem sido explicados, como se disse) face à formação da qual é detentora.
Apesar disso e porque V. Exa se recusou a cumprir tais requisitos, ainda assim (porque a empresa cumpre sempre a sua função social para com os trabalhadores, de modo que não fiquem prejudicados) foi-lhe solicitado que se deslocasse à sede, no dia de hoje, de modo a cumprir os requisitos necessários a que está obrigada, para iniciar as suas funções no Posto.
Contudo, no dia de hoje não se apresentou na sede e foi com alguma surpresa que fomos confrontados com a sua deslocação ao Posto, sendo certo que era do seu conhecimento prévio toda esta situação, ou seja, era conhecedora de que estava a incumprir os requisitos para iniciar as suas funções de vigilante.
Assim, encontra-se, neste momento, a incorrer em faltas, situação que pode suprir, de imediato, caso pretenda deslocar-se, o mais brevemente possível (se possível, ainda no dia de hoje) à sede da empresa a fim de regularizar a sua situação.
Mais uma vez, relembramos que os custos da deslocação são suportados pela empresa, após a apresentação da despesa, visto que a empresa não tem conhecimento prévio do meio de transporte que utiliza na deslocação.
Ademais, enviamos cartas para a sua morada, às quais não obtivemos resposta e foram tentados contatos telefónicos no dia de ontem (cerca das 15h30) e no dia de hoje (cerca das 10h30), mas sem sucesso.
Todos os trabalhadores cumpriram os requisitos necessários de modo a iniciarem as suas funções, no momento que se concretizou a transmissão, sendo certo que este tipo de situação, condiciona e prejudica a atividade da empresa.
Assim, deverá V. Exa. regularizar a situação com a maior brevidade possível, deslocando-se à sede, tal como lhe foi comunicado, para suprir as exigências necessárias ao início das suas funções como vigilante no Posto que lhe está atribuído.
Relativamente à comunicação com o M/ Ilustre Colega Dr. HH, agradeço que o mesmo entre em contato comigo, caso assim o pretenda, ou que V. Exa. nos envie a Procuração que confere poderes ao M/ Ilustre Colega.
Na expetativa de uma breve resolução desta situação, ficamos a aguardar as suas notícias.
Cumprimentos
”.
26. Ao que a autora respondeu, cujo corpo do texto se transcreve:
“
Exma. Snra. Dra. BB.
Acuso a receção deste email, ao contrário das comunicações aí referidas (por telefone e carta) que nunca ocorreram.
A narrativa dos acontecimentos que descreve no seu email é completamente falsa.
Na verdade, estive nas instalações da A... no dia 06/09/2023 E cumpri com todas as obrigações que me solicitaram conforme documentos em anexo. Cabe-me informar-vos que não é possível fazer o anexo de todos em simultâneo neste e-mail, uma vez que excede o limite de anexos e o tamanho dos mesmos, no entanto poderei proceder ao envio em PDF se assim o pretenderem, embora os tenham como originais e em suporte físico).
No entanto não aceito que me apresentem um documento que apelidam de contrato de trabalho que pretendem que o assine numa sala sozinha ausente de qualquer apoio, sem que o possa mostrar a ninguém e do qual não me facultam cópia para ficar com um exemplar onde terei que manifestar que prescindo de todos os créditos que me são devidos até ao dia 6 de setembro, bem como do direito a férias.
A propósito no email que me enviam não referem em concreto quais os requisitos necessários para a transmissão em que incumpri.
Muito grata ficava se me concretizam por escrito quais os procedimentos a que se referem, sendo certo que estou disponível para cumprir todas as obrigações que pretendem dentro do limite da legalidade.
A este propósito não posso deixar de referir e assinalar que por lapso deixei assinada uma folha de formação profissional em branco sem data e que solicito que a inutilizem.
Quanto à consideração de faltas para a minha suposta ausência ao trabalho, naturalmente que resulta de um vosso lapso pois no dia de hoje apresentei-me no meu posto em virtude de não me terem comunicado qualquer alteração.
Por fim, mais uma vez manifesto a minha intenção e total disponibilidade para continuar a exercer as minhas funções, aguardando as vossas instruções por escrito, dos requisitos e procedimentos alegadamente em falta para operar a transmissão do contrato de trabalho acompanhado dos documentos supostamente em falta e que pretendem que assine.
Muito grata ficava se me comunicam o quanto antes, se possível ainda hoje. Na eventualidade de não me responderem no dia de hoje na próxima segunda-feira apresentar-me-ei novamente no meu posto de trabalho e caso não me permitam exercer as minhas funções deslocar-me-ei à sede da empresa para que me entreguem os documentos que pretendem que assine, comprometendo-me a devolve-los já assinados no dia imediatamente seguinte.
Na expectativa urgente das vossas notícias
AA.”
27. A autora recebeu no dia 07.09.2023 pelas 12h15 uma SMS escrita no seu telemóvel por parte da ré, para se deslocar à Clínica ... no dia 09 de setembro de 2023, às 8h40 para a realização de exames médicos.
28. A autora na esperança de uma relação laboral cordial, aceitou, tendo-se deslocado à aludida clínica e realizando os exames médicos solicitados pela Ré.
29. No dia 11 de setembro de 2023, pelas 8h30m, a autora deslocou-se uma vez mais ao seu posto de trabalho indagando sobre a existência do seu fardamento e pretendendo iniciar a sua jornada laboral.
30. Tendo-lhe sido transmitido pelo colega de trabalho, funcionário da Ré, II, que não existia qualquer uniforme para a autora e que não poderia iniciar funções.
31. Face a essa circunstância, viu-se a autora forçada a chamar de novo a PSP ao local.
32. Reiterando o aludido Colega de trabalho na presença da PSP que não existia qualquer uniforme para a autora.
33. Nesse mesmo dia deslocou-se às instalações da Ré de modo a solicitar o seu uniforme, bem como as cópias dos documentos que a Ré no dia 06 de setembro de 2023 solicitou-lhe que assinasse.
34. Numa atitude defensiva a autora voltou a solicitar o livre de reclamações para deixar registada a sua presença e a situação que estava a vivenciar.
–
alterado, passando a ter a seguinte redação:
34 – Numa atitude defensiva a autora voltou a solicitar o livro de reclamações para deixar registada a sua presença e a situação que esteve a vivenciar, o que fez nos termos constantes do documento 19 junto com a petição inicial, cujo teor se reproduz.
35. Nos dias seguintes a autora ia entrar no período de férias que já lhe tinham sido previamente agendadas ainda na vigência do contrato com a B... que perdurariam até ao dia 29 de setembro de 2023 e nesse pressuposto aguardou que o assunto se resolvesse de forma amigável.
36. No dia 26 de setembro de 2023 a autora enviou nova comunicação à Ré, através de e- mail, cujo corpo do texto se transcreve:
“Exmos. Senhores,
Os meus cumprimentos.
Como é do vosso conhecimento o meu período de férias irá terminar no próximo dia 29 de setembro, pelo que no dia 30 de setembro retomarei funções no posto que me foi atribuído.
Reitero as minhas comunicações anteriores, manifestando a minha total disponibilidade para o exercício das minhas funções, todavia, necessito que me seja entregue o fardamento, bem como me comuniquem as escalas mensais.
Em virtude de nos passados dias 06 de Setembro e 11 de Setembro me ter deslocado à vossa sede onde me solicitaram que assinasse determinada documentação sem que me facultassem as cópias assinadas pela empresa e sem possibilidade de me informar sobre a legalidade da mesma, manifesto, antecipadamente, que no cumprimento das minhas obrigações me deslocarei à sede da empresa se assim forem as vossas instruções, no entanto, não irei assinar qualquer documento que não me seja dado a conhecer previamente ou algum em que voluntariamente esteja a limitar os meus direitos.
Na eventualidade de não me indicarem a escala para o próximo dia 30 de setembro, nesse dia, apresentar-me-ei na Casa Museu ... às 09h para iniciar as minhas funções.
Cumprimentos, AA”.
37. Ao que a Ré respondeu no dia 29 de setembro, também através de e-mail, cujo corpo do texto se transcreve:
“
Cara Sra. AA,
Boa tarde.
Tendo em consideração que termina hoje o seu período de férias e que retoma a atividade laboral amanhã, enviamos em anexo a adenda alterada para que possa tomar conhecimento prévio e devolvê-la assinada, de modo a ser também assinada por ambos os administradores que apenas no decurso da próxima semana se encontrarão na sede.
Assim, poderá verificar a Adenda com o S/ I. Mandatário, tendo em vista a assinatura da mesma.
O nosso objetivo, como até então, é mantê-la informada, já que não limitamos os direitos dos trabalhadores e, por essa razão, tínhamos até procedido ao envio da restante documentação ao seu I. Mandatário devidamente assinada pela administração.
Não obstante, enviamos agora a presente Adenda, de modo a acautelar os direitos que lhe são inerentes e dos quais já lhe havíamos dado conhecimento, desde o início.
Nesse decurso, aconselhamos a sua deslocação à sede da empresa no dia de amanhã para a recolha do fardamento, pois só assim terá condições para se apresentar ao trabalho.
Como sabe, a ausência ao trabalho consubstancia a marcação de faltas, o que não se pretende, pois já foram causados enormes transtornos à empresa, face aos meios humanos em falta.
Nesse decurso, aguardamos a sua resposta, de modo a finalizar o seu processo de transmissão e integração na nossa empresa.
Cumprimentos, BB
”.
38. Respondeu a autora, nesse mesmo dia também, cujo corpo do texto se transcreve:
“
Exmos. Senhores,
Por uma questão de reposição da verdade, não é rigoroso que os documentos que pretenderam que eu assinasse fossem apenas o que agora me enviam.
Como já tive oportunidade de vos expor em diversas situações, os documentos que pretendiam que eu assinasse eram limitadores dos meus direitos, ao contrário deste.
Não deixo de fazer notar que não será por acaso que este é o único que me enviaram por email.
Naturalmente que este documento que me enviam em anexo com o seguinte teor:
ADENDA AO CONTRATO DE TRABALHO Entre: PRIMEIRO OUTORGANTE:
A..., S.A., pessoa coletiva nº ...24, com sede na Rua ..., Edifício ..., ... ..., concelho ...; ------------------------ E SEGUNDOOUTORGANTE:__________________________________________., Contribuinte n.º ________________ e Beneficiário da Segurança Social n.º ______________, residente________________________________________________.
É celebrada de boa-fé a presente adenda ao contrato de trabalho SEM TERMO outorgado entre as partes, que se rege pela seguinte cláusula: Cláusula Única 1. O Segundo Outorgante é admitido ao serviço do Primeiro Outorgante com efeitos a partir do dia __/__/____, para desempenhar as funções inerentes à profissão de Segurança Privado, a qual compreende as especialidades previstas no artigo 17º da Lei 34/2013 de 16 de Maio, sendo-lhe atribuída a categoria de Vigilante e respetivas funções de acordo com o Contrato Coletivo de Trabalho celebrado entre a AESIRF –Associação Nacional das Empresas de Segurança e a ASSP – Associação Sindical da Segurança Privada (publicado no BTE nº 26/2019 de 15 de Julho) e a autorização e habilitação que lhe é reconhecida pela entidade legalmente competente para o efeito.
2. O Primeiro Outorgante assume a antiguidade e categoria profissional do Segundo Outorgante, com efeitos a partir de 14/03/2016, que corresponde à data de admissão do trabalhador na empresa B... – conforme documentos anexos; ------------------------------------------
3. O Primeiro Outorgante e ao abrigo da presente adenda pagará ao Segundo Outorgante o subsídio de Natal e subsídio de férias vencido a 01.01.2023, na parte que falta gozar e liquidar, sendo que o Primeiro Outorgante ficará com o direito de exigir à anterior empresa B... e ao abrigo do direito de regresso aos direitos que competia à mesma segundo o Artigo 285.º, do Código do Trabalho. --------------------------------------------------
4. O Segundo Outorgante compromete-se a devolver à Primeira Outorgante o valor relativo aos direitos enunciados no ponto 2, caso a anterior entidade patronal B... lhe pague os mesmos. -----------
5. Caso o Segundo outorgante não proceda à devolução voluntária dos valores referidos no ponto 3, a primeira Outorgante intentará a devida ação judicial, ficando o Segundo Outorgante, desde já, com o devido conhecimento. ---------
6. Ficam inalteradas e permanecem em pleno vigor as demais cláusulas do contrato de trabalho celebrado entre as partes em 14.03.2016, não obstante as alterações que tenham decorrido por força das sucessivas alterações legislativas. -------------
Celebrado aos ___________________________________, constando de dois exemplares, devidamente assinados e distribuídos pelas partes outorgantes.
O Primeiro Outorgante O Segundo Outorgante
_______________________________ _______________________________
_______________________
***********
Não me merece qualquer reparo, desde que nos espaços em aberto seja preenchido que os efeitos da admissão ocorreram no dia 7 de setembro de 2023.
No email que me enviam fazem referência a demais documentação que enviaram ao M/ Advogado e o ponto é precisamente esse, pois tal como vos foi comunicado e explicado é precisamente essa documentação (ao contrário desta) que me recuso a assinar.
Assim sendo, amanhã deslocar-me-ei à sede da sociedade e apenas estarei disponível para assinar este documento.
Alerto, desde já, que não estarei disponível para assinar demais documentação, designadamente, o “recibo” da entrega de fardamento nos termos da declaração que me apresentaram.
Deste modo, sugiro que caso pretendam recolher a minha assinatura para outro tipo de documentação, a mesma me seja enviada por esta via ainda hoje para análise.
Nesta conformidade, amanhã estarei presente na sede da empresa no período da manhã e deixarei o documento acima identificado assinado, solicitando que assim que esteja assinado pelos dois administradores, o mesmo me seja enviado.
Cumprimentos,
AA
”.
39. Note-se que pela primeira vez a ré enviou documentação à autora de forma pública através de anexo a um e-mail e atendendo ao histórico da relação, sentiu esta necessidade de transcrever para o corpo do seu e-mail o documento em causa para que ficasse claro e público o que se dispunha a assinar.
40. Assim, conforme acordado entre autora e ré, a autora deslocou-se à sede na ré no dia 02 de outubro de 2024 de modo a proceder à entrega da adenda ao Contrato de Trabalho da B... e transmitido para a Ré.
41. Bem como para proceder ao levantamento do respetivo fardamento para iniciar as suas funções de Vigilante no posto que lhe era afeto (Casa Museu ... da C.M. ...).
42. O que de facto veio a ocorrer.
43. Tendo-lhe sido transmitido que iria ser contactada pelo Supervisor a fim de ser informada da data de início das suas funções.
44. Sucede que continuou a não existir qualquer contacto da ré à autora a comunicar a data de início das suas funções.
45. Terminado o final do mês de setembro de 2023, a ré não procedeu ao pagamento do vencimento correspondente àquele mês.
46. Necessitando de exercer a sua profissão e auferir o correspondente vencimento, a autora enviou nova comunicação à ré, através de e-mail, no dia 04 de outubro de 2023, cujo corpo do texto se transcreve:
“
Exmos. Senhores,
Desde já os meus melhores cumprimentos.
No seguimento da minha deslocação à V. sede no passado dia 02/10/2023, conforme agendado entre as partes, para entrega da adenda ao Contrato de Trabalho, da B... e transmitido para V. Exs., cujo foi entregue em duplicado devidamente rubricado e assinado e que aguardo que me seja entregue a 2ª via, bem como o levantamento do respetivo fardamento para iniciar as minhas funções de Vigilante no posto que me é afeto (Casa Museu ... da C.M. ...), fui informada que seria contactado
Acontece que, ainda não obtive qualquer tipo de contacto por V. parte a fim de me informar quando posso iniciar a minha prestação laboral, mantendo, como de início, a minha disponibilidade e intenção de exercer a atividade que desempenhava neste local anteriormente.
Aguardo, o mais urgente possível que me informem a respetiva escala de serviço.
Atenciosamente,
AA
”
47. No dia 11 de outubro de 2023 a autora recebeu uma mensagem escrita no seu telemóvel, por parte do Supervisor JJ, através do contacto telefónico ...84, a indicar que a autora iniciaria as suas funções no dia 13 de outubro de 2023.
48. No dia seguinte, a 12 de outubro de 2023, recebeu através do e-mail ..........@....., por parte do Chefe de Grupo EE, a escala de serviço.
49. Escala de serviço que foi enviada em simultâneo para os Colegas de posto DD, KK, II e LL.
50. A autora iniciou assim as suas funções apenas no dia 13 de outubro de 2023.
51. Decorridos já mais de um mês após a transmissão do seu contrato de trabalho da B... para a Ré.
52. E 13 dias depois de terminar o seu período de férias, durante o qual esteve sem qualquer ocupação efetiva.
53. A autora iniciou funções, pois, nessa altura, continuava a Ré a não proceder ao pagamento do vencimento relativo ao mês de setembro de 2023.
54. Não obstante variadas interpelações por parte da autora à ré para a regularização do mesmo.
55. Pelo que, numa situação de desespero, a autora enviou, no dia 17 de outubro de 2023 uma carta registada com aviso de recepção à Ré, manifestando a intenção de proceder à suspensão do contrato de trabalho devido à falta do pagamento da retribuição, a partir do dia 25 de outubro de 2023, cujo corpo do texto se transcreve:
“
Assunto: Comunicação de Suspensão do Contrato de Trabalho
Exmo.s Senhores,
Os meus cumprimentos.
Através da presente carta venho comunicar a V/EXas. a intenção de suspender o contrato de trabalho que me liga a essa empresa, ao abrigo do disposto no artº325º nº1 do Código do Trabalho, em virtude do pagamento da minha retribuição referente ao passado mês de setembro de 2023, no montante de 660.59€, se encontrar em atraso por um período superior a 15 dias desde a data do seu vencimento.
Atento o aludido comando legal mais comunico que a data do início da suspensão ocorrerá daqui a 8 dias, isto é, no dia 25 de outubro de 2023.
Solicito também o preenchimento da declaração de retribuições em mora e a sua entrega, no prazo de 5 dias, conforme estabelecido no nº 3 do aludido artigo, sob pena de infração contra ordenacional nos termos do nº5 do mesmo.
Por fim, cumpre-me informar-vos que nesta data dei conhecimento da presente comunicação à Inspeção Regional do Trabalho.
Sem outro assunto, de momento, subscrevo-me,
Atenciosamente
,” .
56. Ao que a ré respondeu, através de carta registada com aviso de receção, no dia 23 de outubro de 2023, cujo corpo do texto se transcreve:
“
Assunto: Comunicação de suspensão de contrato de trabalho – resposta
Carta Registada com Aviso de Receção
Exma. Senhora,
Apresentamos, desde já, os nossos respeitosos cumprimentos.
Servimo-nos do presente para acusar a receção da sua missiva datada de 17.10.2023 e rececionada pela empresa no dia 18.10.2023, a qual mereceu a nossa melhor atenção
Nesse decurso, tendo em consideração o exposto por V.Exa., informamos que estão a ser retificados os valores relativamente ao mês de setembro, de modo a serem pagos, pelo que fica inquinado o motivo inquinado por V.xa. relativamente à suspensão do contrato de trabalho.
Esta demora verificou-se pelo facto de a B... não ter fornecido em tempo útil (e ainda aguardamos essa informação) os Planos de Férias dos trabalhadores para o período posterior à transmissão de estabelecimento comercial.
Não obstante e tendo em consideração esse facto, a A... recebeu os Planos de Férias que foram enviados pelos trabalhadores e atentando à boa-fé que deve sempre imperar numa relação laboral, efetuou as correções dos pagamentos dos valores apurados com base nessa informação.
Contudo, caso se venha a ser prestada informação diversa pela B... relativamente aos referidos Planos, nesse momento, teremos de efetuar a retificação dos valores, ficando, desde já alertada para essa situação.
Assim, tendo em consideração que a situação vai ser retificada, padece de fundamento o alegado por V.Exa. quanto à suspensão do contrato de trabalho, o qual consideramos que se mantém em curso (…)
”.
57. A Ré procedeu no dia 25 de outubro de 2023 ao pagamento da quantia de 438,91€.
58. A ré enviou uma carta registada à autora, no dia 25 de outubro de 2023 a comunicar que se encontraria um cheque disponível para levantamento nas instalações da ré desde, e cujo corpo do texto se transcreve:
“
Assunto: Comunicação de suspensão de contrato de trabalho – resposta
Carta Registada com Aviso de Receção
Exma. Senhora,
Apresentamos, desse já, os nossos respeitosos cumprimentos.
Servimo-nos do presente para indicar que temos a informação que lhe foi comunicado que o montante correspondente à retribuição de setembro estaria disponível para pagamento, através de cheque nas nossas instalações, tendo em consideração o que lhe foi exposto quanto à ausência de informação por parte da B... no que concerne aos Planos de Férias dos trabalhadores para o período posterior à transmissão do estabelecimento comercial.
Não obstante e tendo em consideração que V.Exa. não compreendeu, nem ponderou tal situação, tendo, mais uma vez, imputado a responsabilidade a esta empresa (a qual não detém a responsabilidade quanto à ausência de informação por parte da empresa transmitente), já não compareceu no dia de hoje ao trabalho.
Nessa medida, indicamos que foi realizado, no dia de hoje, o pagamento da retribuição e das deslocações efetuadas à sede da nossa empresa, através de
transferência bancária.
Assim, tendo em consideração que a situação já se encontra sanada, reiteramos que padece de fundamento o alegado por V.Exa. quanto à suspensão do contrato de trabalho, o qual consideramos que se mantém em curso, devendo, assim, apresentar-se no seu posto de trabalho (...).
”
59. Nunca lhe foi comunicada a existência de cheque.
60. Necessitando a autora da quantia em causa para fazer face aos encargos da sua vida doméstica.
61. Considerou a ré terem existido várias faltas por parte da autora.
62. A autora enviou um e-mail à ré no dia 26 de outubro de 2023, cujo corpo do texto se transcreve:
“
Exmos. Senhores,
Ainda reportado a este assunto, apenas hoje verifiquei que me transferiram no dia de ontem a quantia de 438,91€ para a conta cujo IBAN indiquei.
Não me comunicaram por qualquer meio o pagamento, pelo que apenas hoje quando acedi à conta é que tomei conhecimento.
Sem prejuízo da aludida quantia não contemplar a totalidade do pagamento da retribuição do mês de Setembro, por cuja ausência, fundamentei a suspensão do contrato de trabalho, mas porque me encontro de boa fé e pretendo estabilizar esta relação laboral a partir de amanhã cessa a minha suspensão.
Quanto a esta situação e para evitar questões pendentes, chamo a vossa atenção para os seguintes pontos:
-No dia de amanhã (27/10) e de sábado (28/10) estarei de folga em função da escala que me foi enviada, todavia, estou disponível para alterar qualquer uma dessas folgas pelo dia de Domingo (29/10).
-Agradecia que me enviassem o recibo de vencimento referente ao mês de setembro contemplando os pagamentos efetuados, designadamente à Segurança Social, pois julgo que aquele montante é inferior ao que me é devido.
-Igualmente reclamo, uma vez mais, as despesas decorrentes das deslocações que tive de efetuar à sede da empresa no cumprimento das instruções que me foram indicadas, as quais foram assumidas por V/Exas. nas diversas cartas que me enviaram.
Devo dizer que essas deslocações totalizam 150km, não tendo efetuado o percurso por auto estrada porque desconhecia se assumiam os custos das portagens;
-Mais manifesto que na escala que me enviaram não acautelaram V/Exas. a minha situação de horário flexível, o qual devem considerar (9h às 17h ao invés do horário 8h às 16h conforme indicam).
Nessa escala manifestam que todos os trabalhadores se encontram no regime de adaptabilidade, o que não corresponde à realidade, pelo que chamo a vossa atenção para o quanto antes efetuem a competente retificação.
Na expetativa das V/notícias, subscrevo-me,
Atenciosamente,
AA
,”
63. E, após a receção da missiva enviada pela ré no dia 25 de outubro de 2023, no dia 27 de outubro de 2023 a autora enviou novo e-mail à ré, dando nota que o valor transferido era insuficiente, e cujo corpo do texto se transcreve:
“
Exmos. Senhores,
Acuso a receção no dia de ontem de uma nova carta que me enviaram, datada de 25 de outubro de 2023, a qual me mereceu a melhor atenção.
E se essa carta me mereceu a melhor atenção, as minhas sucessivas comunicações para a A... tem vindo a ser constantemente ignoradas.
Na mesma focam o plano de férias da empresa transmitente e a ausência dessa informação para justificar a omissão do pagamento devido e já vencido, quando a minha reclamação se prende com a retribuição de setembro e que em nada contende com a qualquer informação em falta da B....
Nessa última carta manifestam que foi efetuado o valor da retribuição e das deslocações à sede da empresa, mas continuam sem enviar o recibo para que eu consiga apurar a que título é que foi feito o pagamento bem como os descontos legais.
Mais uma vez insisto no envio dos recibos.
Sem prejuízo destas omissões, tal como manifestei em comunicação anterior, porque já me efetuaram o pagamento de uma determinada importância, cessei a suspensão do contrato de trabalho e apresentar-me-ei no meu posto pelo que a parte final da vossa carta fica prejudicada.
Reitero aqui os pedidos que vos efetuei no email ontem enviado.
Por fim, de forma a cessar, toda esta situação decorrente da transmissão do meu contrato de trabalho, volto a afirmar que não obstante reivindicar os direitos que me assistem pretendo exercer as minhas funções, manifestando total boa fé para esse efeito, solicitando o mesmo da vossa parte e nessa conformidade não posso deixar em claro a afirmação que veiculam na carta que me enviaram quando referem “que temos a informação que lhe foi comunicado que o montante correspondente á retribuição de Setembro estaria disponível para pagamento através de cheque nas nossas instalações”.
Esta situação é totalmente falsa como é do vosso conhecimento.
Para além de ser irreal neste setor efetuar pagamentos de retribuições através de cheques nas instalações da empresa, seria completamente despropositado com a constante troca de missivas escritas que temos trocado, que tal comunicação tenha sido efetuada de outra forma que nem sequer conseguem identificar.
Mais uma vez insisto nos pedidos que vos efetuei e que continuam a ignorar.
Cumprimentos,
AA
,”.
64. Solicitando assim o pagamento dos valores remanescentes e os recibos de vencimento para apuramento dos cálculos efetuados pela ré.
65. A autora continuou a exercer as suas funções.
66. A Ré procedeu à transferência para a Autora do valor de 645,31€.
67. Tendo novamente descontado uma quantia, neste caso de 201,82€, devido a 7 dias de faltas alegadamente injustificadas
. –
alterado passando a ter a seguinte redação:
67. Tendo novamente descontado uma quantia, neste caso de € 201,82, devido a 7 dias de faltas justificadas.
68. Que não tinham ocorrido.
69. A autora, no dia 01 de novembro de 2023 de imediato enviou nova comunicação à Ré, através de e-mail, a referir que o pagamento da sua retribuição do mês de outubro de 2023 (à semelhança do de setembro de 2023) não era o correto.
70. Reforçando o apelo à Ré de que o seu salário era a sua única fonte de rendimento.
71. E que os valores em falta lhe estavam a causar graves problemas financeiros.
72. Nessa mesma comunicação solicitou a autora à Ré o envio dos seus recibos de vencimentos relativos aos meses de setembro e outubro de 2023.
73. Que nunca lhe tinham sido cedidos.
74. Pelo que na comunicação de 01 de novembro de 2023 solicitou também a comunicação e regularização de tal situação, cujo corpo do texto se transcreve:
“
Exmos. Senhores,
Detetei hoje na minha conta bancária a transferência que me efetuaram de 645,31€.
Alegadamente esse montante reporta-se à retribuição do mês de outubro, contudo tal montante não corresponde à totalidade das quantias que me são devidas.
Noto que a quantia referente ao mês de setembro apenas me foi paga com atraso significativo e já após o envio de comunicação formal para essa empresa, bem como para o ACT.
Tal como já manifestei em comunicações anteriores, também essa quantia não cobre a totalidade do que me era devido referente ao aludido mês.
Saliento que esta é a minha única fonte de rendimento, sendo o mesmo crucial para assegurar as despesas do meu agregado familiar, pelo que esta retenção de importâncias que me são devidas me está a deixar com graves problemas financeiros.
Já vos solicitei por diversas vezes o envio dos recibos de vencimento para poder verificar a que título surge os aludidos pagamentos, contudo recusam-se a enviá-los ou a indicar, pelo menos, o acesso ao portal para que os possa recolher.
Acedendo à minha área pessoal na Segurança Social nada consta quanto a qualquer desconto que tenham efetuado.
Por outro lado, apesar de ser do vosso conhecimento que me encontro num horário flexível, continuam a elaborar as escalas sem acautelarem o mesmo.
Devo confessar que não consigo perceber a posição que a A... está a adotar comigo desde a data da transmissão, estando esta situação a atingir limites insuportáveis.
Assim sendo, com nota de urgência, solicito-vos;
-A retificação das escalas tendo presente o meu horário flexível;
-A comunicação à segurança social da minha qualidade de funcionária com a entrega dos descontos devidos;
-O envio dos recibos de vencimento referentes ao mês de setembro e outubro de 2023, ou em alternativa o envio por escrito dos elementos que me permitam a recolha dos mesmos no portal da empresa.
-O pagamento das quantias ainda em dívida
Reitero a maior urgência no envio da resposta a este email.
Cumprimentos,
AA
”.
75. A ré persistia sempre em colocar a autora nas escalas com horários entre as 8h e as 16h.
76. A ré comunica à autora que todos os elementos do posto de encontravam ao abrigo do regime de adaptabilidades.
77. A autora esteve de baixa médica nos períodos de 6.11.2023 a 17.11.2023.
78. Posteriormente de 22.11.2023 a 3.12.2023 com prorrogações de 4.12.2023 a 18.12.2023 e por fim de 19.12.2023 a 02.01.2024.
79. No que tange aos recibos de vencimento, apenas no dia 20 de novembro de 2023 e após várias insistências por parte da autora com a central da Ré é que lhe foi cedido o acesso ao login da sua página.
80. Só nessa data é que a autora teve acesso aos seus recibos de vencimento dos meses de setembro e outubro de 2023.
81. Após análise dos seus recibos de vencimento, a autora no dia seguinte, 21 de novembro de 2023, enviou novo e-mail à Ré a reclamar das alegadas faltas justificadas e injustificadas mencionadas nos aludidos recibos de vencimento que lhe foram indevidamente imputadas, cujo corpo do texto se transcreve:
“
Exmos. Senhores,
Os meus cumprimentos.
Apenas no dia de ontem me comunicaram o meu número mecanográfico o que me permitiu aceder no vosso portal aos meus recibos de vencimento que aqui envio em anexo.
Lamentavelmente a vossa postura comigo desde o início da transmissão do contrato de trabalho tem sido desleal e reveladora de má fé, estando a afetar a minha saúde psicológica, para além de me estar a causar graves prejuízos financeiros.
Não quero estar aqui a efetuar um histórico sobre todos os factos que ocorreram desde então, porque são do vosso conhecimento e estão documentados, contudo, agora que consegui aceder aos meus recibos, verifico que as quantias que tenho vindo a reclamar e que não foram pagas são motivadas pelo facto de consideraram que incorri em faltas (justificadas e injustificadas) quando é do vosso perfeito conhecimento que essa situação não ocorreu com exceção da ocorrida nos dias 29, 30 e 31 de Outubro e que foram justificadas conforme atestado médico anteriormente enviado por este meio.
Desta forma reclamo junto de V/Exa. o pagamento das quantias em falta e que me são devidas e que doravante os meus direitos laborais sejam cumpridos.
Na eventualidade desses pagamentos não sejam efetuados juntamente com o vencimento do corrente mês de novembro, irei intentar a competente ação judicial, onde, para além de tais montantes, não deixarei de peticionar outro tipo de danos, bem como efetuarei as competentes participações das infrações disciplinares às autoridades competentes.
Cumprimentos,
AA
,”.
82. Não ocorreram quaisquer faltas, com exceção dos dias em que a autora efetivamente não prestou trabalho por se encontrar de baixa médica.
83. No mesmo e-mail de 21 de novembro, a autora manifestou à ré que se sentia a ser alvo de assédio por parte desta.
84. Assim, enviou a autora, no dia 18 de dezembro de 2023 novo e-mail à ré, peticionando o pagamento dos valores erradamente descontados a título de faltas, cujo corpo do texto se transcreve:
“
Exmos. Senhores,
Após ter analisado os recibos de vencimento relacionados com a minha prestação laboral para essa empresa, isto é, desde que o meu contrato foi transmitido, deteto vários erros em meu prejuízo e que motivam a que todas as quantias que me assistem não se encontrem pagas.
Tendo presente os recibos de setembro, outubro e novembro, alerto para o seguinte:
Em todos os recibos surgem faltas justificadas e injustificadas geradoras de privação de retribuição, quando, na verdade, essas faltas não ocorreram.
Aliás, as mesmas não estão discriminadas por dia.
As únicas faltas que existem são aquelas que ocorreram nos dias 29, 30 e 31 de outubro no número de 3 por baixa médica.
No recibo 46220 existe esse desconto no montante de 86,50€ que aceito, no entanto, também no recibo 48496 ocorre desconto de igual montante.
Todos os outros descontos não estão corretos,
No recibo 51556 aparentemente creditam o desconto dos aludidos 86,50€ na primeira parcela, sucede que no item retificação de recibo negativo volta a retirar 90,20€.
Bem sei que a emissão dos vossos recibos é propícia a gerar confusão, não querendo admitir que essa circunstância seja propositada, contudo, é claro que existem valores que me são devidos.
Solicito o pagamento das seguintes quantias;
-90,20€
-201,82€
-57,66€
-28,33€
Caso o pagamento destas quantias não seja efetuada até ao final do corrente ano, de imediato, intentarei a competente ação judicial, sem prejuízo de me reservar a possibilidade de avançar com outras diligências judiciais devido ao vosso comportamento constante e permanente desde a data da transmissão.
Acresce ainda que as vossas comunicações à segurança social da minha retribuição são substancialmente diferentes das quantias efetivamente pagas, pelo que já efetuei a competente participação a esta entidade.
Cumprimentos, AA
”.
85. A ré enviou uma carta registada com aviso de receção à autora, no dia 27 de dezembro de 2023, referindo que não existiam quaisquer valores em dívida para com a autora dando o assunto por encerrado.
86. Relativamente ao pedido de envio da escala de serviço para o seu posto de trabalho, a ré comunicou que a mesma se encontrava no Posto de Trabalho da autora, nos termos da legislação em vigor.
87. O conteúdo da carta enviada pela ré à autora no dia 27 de dezembro de 2023 é o seguinte:
“
Assunto: Resposta a comunicação datada de 18 de dezembro de 2023
Carta Registada com Aviso de Receção
Exma. Senhora,
Apresentamos, desde já, os nossos respeitosos cumprimentos.
Servimo-nos do presente para acusar a receção da sua comunicação eletrónica datada de 18 de dezembro de 2023, a qual mereceu a nossa melhor atenção. Não obstante, continuamos a indicar que o meio preferencial de contato com a empresa é através do Portal ou de carta registada.
Não obstante, entendemos oferecer-lhe uma resposta. De facto, desde o início da transmissão de estabelecimento que V.Exa. tem demonstrado uma clara intransigência com a empresa, no sentido de perturbar o vínculo laboral, sem que se perceba a razão de fundo para tal. Não obstante e face à responsabilidade social que a A... assume perante os seus pares, tem existido a tentativa de ultrapassar a postura adotada por V.Exa.
Assim, relativamente aos valores que peticiona e que alegadamente lhe são devidos, temos a informar o seguinte:
Os descontos que invoca, da informação recolhida junto dos salários foram todos repostos, pelo que para que haja uma análise mais cabal do que refere terá de explicar os montantes acerca dos quais solicita o pagamento.
Quanto à escala, a mesma encontra-se no seu Posto de Trabalho, nos termos da legislação em vigor e poderá lá ser consultada. Não obstante, para que não subsistam dúvidas, caso V.Exa. pretenda, poderá deslocar-se à sede da empresa, onde lhe será entregue a escala em mão e esclarecidas quaisquer dúvidas que ainda possam existir.
Na expetativa de ter esclarecido todas as suas dúvidas (...)
”
88. A autora necessitava de regular e ter conhecimento do horário que a autora lhe havia determinado por causa da gestão da sua vida familiar, designadamente, para prestar todos os cuidados à sua filha menor.
89. A ré poderia ter enviado a escala por e-mail.
90. A A... e todas as empresas de vigilâncias enviam as escalas semanais ou mensais aos vigilantes através de e-mail.
91. Neste caso, a autora teve o transtorno e a despesas de se deslocar da sua residência sita em ... ao seu posto de trabalho em ... apenas para proceder à consulta da escala de serviço.
92. No dia 30 de dezembro de 2023, entre as 15h e as 16h, deslocou-se ao posto.
93. Tendo-lhe sido transmitido pelo funcionário da ré, MM não permitir à autora a consulta da escala de serviço pois encontrava-se proibido pelo Chefe de Grupo, Sr. NN.
94. Nunca a autora tinha tido conhecimento da existência do referido Sr. NN, muito menos como chefe de grupo.
95. Em face do sucedido, e na posse da missiva enviada pela ré a 27 de dezembro de 2023, a autora viu-se forçada a chamar a PSP ao seu posto de trabalho.
96. Os elementos da PSP destacados ao local, Agente OO e Agente PP da Esquadra da PSP de ..., procederam à identificação da autora e do colega e colaborador da ré DD.
97. O Sr. DD transmitiu aos agentes da PSP que a eles cedia a escala de serviço.
98. Transmitiu também que não cedia a aludida escala por se encontrar proibido pelo Chefe de Grupo Sr. NN.
99. No mesmo momento a autora entregou aos agentes supra indicados cópia da missiva enviada pela ré a 27 de dezembro de 2023.
100. Que mencionava expressamente “Quanto à escala, a mesma encontra-se no seu Posto de Trabalho, nos termos da legislação em vigor e poderá lá ser consultada.”
101. No dia 03 de janeiro de 2024 a autora enviou à ré uma carta registada com aviso de receção resolvendo o contrato de trabalho por justa causa, cujo corpo do texto se transcreve:
“
Assunto: Resolução do contrato de trabalho com justa causa
Exmos. Senhores.,
Desde já os meus melhores cumprimentos.
Através da presente carta pretendo manifestar a minha intenção de resolver o contrato de trabalho que me liga a essa empresa com fundamento em justa causa, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 394º e ss. do Código do Trabalho.
Adiante expressarei os factos nos quais fundamento este meu pedido de resolução do contrato de trabalho com justa causa, que pela sua continuidade, gravidade e consequências torna imediata e impossível a subsistência da relação laboral.
Nesta conformidade, cumpre-me manifestar o seguinte;
O contrato de trabalho que me liga a essa empresa data de 14.03.2016, originalmente celebrado com a empresa de segurança B... S.A., posteriormente denominada de B..., doravante denominada por B..., foi para V/Exas. transmitido ao abrigo do artigo 285ª e seguintes do código de trabalho, decorrentes da transmissão da unidade económica de prestação de serviços de vigilância junto da Câmara Municipal de ..., assumindo esta empresa todas as responsabilidades a partir de 07/09/2023 conforme carta registada que me enviaram na data de 06/09/2023.
Na sequência dessa transmissão, após a receção de uma chamada telefónica por parte da A..., desloquei-me às vossas instalações no dia 06/09/2023 com o intuito de proceder ao levantamento do fardamento para então começar a exercer as minhas funções de vigilante já envergando esta farda.
Nesse momento iniciou-se o longo calvário a que me vi sujeita até ao presente dia, devido aos comportamentos dessa empresa para comigo, designadamente, quando me apresentam inúmeros documentos para que os assinasse no momento e nos quais estaria a prescindir de direitos, muitos deles indisponíveis, designadamente;
-“acordo de gozo de férias”;
-“acordo de cumulação de férias”;
-“regime de adaptabilidade”;
-“regime de horário concentrado”
-“documento em que assumia que já me tinham prestado 40H de formação profissional”
-“Contrato de trabalho no qual pretendiam que poderia ser transferida para um local de trabalho em Portugal Continental
-“Adenda a contrato de trabalho no qual pretendiam que prescindisse de créditos salariais até ao dia 6 de setembro de 2023; (isto ao arrepio da vossa assunção da existência de contrato de trabalho com início desde o dia 14.03.2016 conforme acima expendido)
Perante a minha recusa na assinatura de tais documentos, foram os mesmos enviados e apresentados por V. Exs. através do ..........@A....., para mim e com CC ao meu mandatário e Dr. QQ apenas na data de 29/09/2023 pelas 18h26.
No aludido dia 06.09.2023 em que me desloquei às V/instalações manifestei que dispunha de documento carimbado e assinado que mencionava que o meu horário era das 9h às 17h devido ao facto de ter uma filha menor, com 5 anos de idade, e um companheiro também trabalhador por turnos.
Incompreensivelmente não me foi cedido o fardamento para que pudesse iniciar a minha prestação laboral prevista para o dia 8 de setembro de 2023, pelo que foi perdido um dia de trabalho, uma vez que foi descontado e considerado como falta injustificada tal dia, para além de ter de suportar desnecessariamente uma deslocação às vossas instalações que distam 25 Km da minha residência.
Essa factualidade ficou registado no livro de reclamações da A..., com a reclamação nº ...85.
No dia 08 de setembro, data do início das minhas funções, apresentei-me no meu posto de trabalho pelas 08h33, sem o devido uniforme pelos motivos acima expendidos, tendo a minha entrada sido recusada pelo Vigilante da A..., Sr. DD.
Perante tal recusa, foi solicitada a presença da PSP no local, que registou a ocorrência pelos Srs. Agentes FF e RR, tendo o colega Vigilante que se encontrava de serviço remetido esclarecimentos adicionais para o chefe de grupo Sr. EE, informando a PSP que o mesmo desempenha funções nos Serviços Técnicos.
Sem prejuízo de tudo isto e porque recebi uma mensagem escrita da vossa parte para proceder à realização de exames médicos na Clínica ... em Rua ... ... Porto, no dia 09.09.2023, cumprindo essas instruções e numa atitude de boa fé e da esperança de boas relações laborais, desloquei-me a tais instalações para proceder à realização dos exames médicos de admissão, onde solicitei declaração de presença. Note-se que esta deslocação em serviço, foi realizada em dia da minha folga, em virtude de nessa altura ainda vigorar a escala de trabalho que dispunha da B... (empresa transmitente do contrato de trabalho), dia esse que não me foi remunerado. No dia 11/09/2023, convencida da boa fé que a A... alegava nas suas comunicações, desloquei-me novamente ao meu posto de trabalho para compreender se já me teriam lá entregue o fardamento, uma vez que para o meu domicílio não enviaram nada.
No local fui informada pelo colega II que não havia uniforme para mim, pelo que, uma vez mais, foi chamada a PSP ao local que reduziu a Auto tais factos. De imediato, desloquei-me às instalações da A... para proceder ao levantamento do fardamento, tendo sido mais uma vez recusada a sua entrega, bem como o levantamento dos documentos para análise dos mesmos em local externo às instalações da A....
Estes factos estão documentados na reclamação efetuada no respetivo livro da A..., com a reclamação nº ...87. Desde então mantive-me em contacto com V/Exas. manifestando permanentemente a minha disponibilidade para exercer as funções, a minha vontade em trabalhar e particularmente a minha necessidade de auferir remuneração pois não possuo outros rendimentos que não os do exercício da minha profissão.
Sucede que no final do mês de setembro de 2023, não me foi efetuada qualquer remuneração, pelo que tive necessidade de recorrer a empréstimos junto de familiares para fazer face aos encargos da minha vida familiar, designadamente, o sustento da minha filha menor.
Através de email datado de 29/09/2023, solicitam-me uma nova deslocação à sede da A... no dia 02/10/2023, em virtude de nesse hiato de tempo e já com a intervenção do meu mandatário, me enviaram documentos para aprovação e que seriam por mim assinados e entregues nessa reunião contra a entrega do devido duplicado assinado pela A....
Assinale-se que esses documentos não eram os mesmos que me foram apresentados na primeira reunião, acima assinalada, nas instalações da A..., onde pretendiam que os assinasse de imediato sem a entrega dos meus duplicados.
Naturalmente que respeitei o compromisso e apresentei-me, sendo desnecessária a inserção da comunicação que me efetuaram com o seguinte teor: “Como sabe, a ausência ao trabalho consubstancia a marcação de faltas, o que não se pretende, pois já foram causados enormes transtornos à empresa…”uma vez que nunca ocorreu qualquer falta da minha parte.
Num ato de boa fé da minha parte, apesar de não me terem disponibilizado de imediato as cópias dos documentos, alegadamente porque os responsáveis da A... não estavam presentes, confiei e solicitei que me fossem enviados posteriormente por e-mail. O que aconteceu no dia 11.10.2023.
Finalmente, no dia 12/10/2023 recebi a escala de serviço por email pelo chefe de grupo Sr. EE, através do email ..........@..... que foi também enviada para os meus colegas do posto, DD, KK, II, LL, para o email da portaria e também para o Supervisor JJ.
Não obstante, no dia 11.10.2023 recebi uma SMS do Supervisor, Sr. JJ, através do nº ...84, confirmando o meu início de funções a 13.10.2023.
Desde o final do mês de setembro de 2023 que reclamei em diversas ocasiões o pagamento da minha retribuição referente a tal mês, o que nunca aconteceu.
Pelo que enviei à A..., no dia 17/10/2023, carta registada c/ar, manifestando a intenção de proceder à suspensão do contrato de trabalho devido à falta do pagamento da retribuição a partir de dia 25/10/2023 e de forma simultânea também enviei no mesmo dia carta de teor semelhante para a Inspeção Regional de Trabalho (ACT).
A A... recebe esta carta no dia 18 de outubro de 2023, contudo apenas procede ao pagamento através de uma ordem de transferência bancária no dia 25/10/2023 no montante de 438,91€.
Assinale-se o descaramento e a falta de respeito da A... quando manifestou por e-mail que existia um cheque para levantamento nas suas instalações, quando nunca fui informada dessa situação, aliado ao facto de terem recebido a carta de suspensão no dia 18 de outubro de 2023 e apenas terem dado a ordem de transferência no dia 25 de outubro de 2023, precisamente a data em que o contrato iria ser suspenso.
Acresce que o montante pago não estava correto pois a A... tinha considerado inúmeras faltas que nunca ocorreram.
Logo no dia 27.10.2023 foi reclamado o erro e solicitado o valor em falta, o que foi ignorado. Todavia, mais uma vez num ato de boa fé, a signatária não suspendeu o contrato de trabalho e continuou a exercer as suas funções.
Relativamente à remuneração do mês de outubro de 2023, a A... efetua uma transferência no montante de 645,31€ que naturalmente não correspondia ao valor devido.
Logo no dia 01/11/2023, pelas 11h23, foi enviada uma comunicação à A... com a indicação que o valor não estava correto, reforçando que a retribuição era a minha única fonte de rendimento e que estava a enfrentar graves problemas financeiros.
Igualmente solicitei o envio dos recibos de vencimento de setembro e de outubro de 2023 que não me eram cedidos.
Nessa altura consultei o meu extrato de remunerações referente à carreira contributiva junto da Segurança Social e verifiquei a ausência de descontos efetuados por essa empresa, pelo que também solicitei essa comunicação em falta.
Assinalei também para me inserirem na escala do posto num horário ao abrigo do meu horário de adaptabilidade das 9h às 17h e não das 8h às 16h como acontecia.
A A... menciona que todos os elementos afetos ao posto estão ao abrigo do regime de adaptabilidade, o que é falso, não procedendo posteriormente a qualquer alteração.
Apenas no dia 20 de novembro de 2023 é que consegui o acesso ao meu login através de contacto com a central da A... e visualizei os meus recibos.
No dia imediatamente seguinte, após análise dos mesmos, enviei novo email para a A... pelas 12h25 reclamando da existência de todas as faltas (justificadas e injustificadas) mencionadas nos aludidos recibos e que me foram imputadas (com exceção dos dias 29, 30 e 31 de outubro que efetivamente ocorreram devido a baixa médica) com a dedução dos valores correspondentes.
Tive oportunidade de também nessa comunicação manifestar aquilo que entendia e entendo, como estar a ser alvo de assédio por parte da entidade empregadora.
Esta comunicação mereceu resposta por parte da A..., através de carta registada c/ar datada de 24/11/2023 informando que no final do respetivo mês tudo seria reposto e não passaria de um erro informático.
Acontece que através do recibo de vencimento nº 51556/2023 de novembro de 2023, apesar de serem colocados alguns valores de reposição, não o foram em montante igual aos que me foram descontados, continuando a faltar determinadas parcelas anteriormente descontadas e ainda não repostas.
Na mesma altura também detetei junto da Segurança Social uma discrepância entre os valores pagos e aqueles declarados.
Foi comunicado à Segurança Social o valor de 908,28€, no recibo de vencimento nº 51556/2023 o montante era de 1458,67€. No recibo tardio de setembro declaram o montante de 432.84€, contudo o montante comunicado à Segurança Social é de 691.95€.
Sem prejuízo dos incumprimentos devidos à Segurança Social e junto da Autoridade Tributária por parte da A..., esta situação causa prejuízos na minha carreira contributiva.
Perante esta realidade, enviei novamente um email para a A..., a 18/12/2023 pelas 18h01, reclamando os valores que estavam ainda em falta e que fossem repostos os descontos à Segurança Social tendo por referência os valores efetivamente pagos.
Mais solicitando uma escala para o meu posto de trabalho para o mês de janeiro de 2024.
No dia 27/12/2023, através de carta registada c/ar, sou informada que não existem valores em dívida, acusando-me de, passo a citar; “desde o início da transmissão de estabelecimento que V.Exa. tem demonstrado uma clara intransigência com a empresa, no sentido de perturbar o vínculo laboral, sem que se perceba a razão de fundo para tal.”
Não sendo este o momento de qualificar esta afirmação, reservando-me para momento posterior, não posso ainda deixar de assinalar que no fardamento que me foi cedido apenas existem as seguintes peças de roupa; 2 calças; 2 camisas e 1 blusão (conforme discriminam no respetivo documento) de espessura fina e com uma gola de pelo, o que é manifestamente insuficiente para fazer face às temperaturas e condições climatéricas de Inverno, além de 1 fita; 1 gravata e 4 divisas, como consta no documento de levantamento de fardamento, no qual ainda consta, de forma ilegal, a existência de um valor a cobrar por essas peças em caso de deterioração durante um curto período.
Manifesto também no presente documento, a intenção de devolução do fardamento cedido.
A este propósito de classificar comportamentos, não posso ainda deixar de referir que que me encontro de baixa médica desde o dia 06.11.2023 devido a transtornos psicológicos causados por toda esta situação aqui descrita que me tem originado alterações de humor, ansiedade, irritabilidade, profunda tristeza e perda de auto estima, necessitando inclusive de ser medicada para estas questões por prescrição médica.
Devido a essa ausência por doença ao meu posto de trabalho e porque pretendia retomar as minhas funções, agora no início de janeiro de 2024, no aludido e-mail de 18.12.2013 solicitei que me fosse enviada a escala para o posto de trabalho.
Na mencionada carta que recebi por parte da A..., a este propósito referem “Quanto à escala, a mesma encontra-se no seu Posto de Trabalho, nos termos da legislação em vigor e poderá lá ser consultada.
Não obstante, para que não subsistam dúvidas, caso V. Exa pretenda, poderá deslocar-se à sede da empresa, onde lhe será entregue a escala em mão e esclarecidas quaisquer dúvidas que ainda possam existir.”
Face a esta comunicação, desloquei-me no dia 30/12/2023 ao meu posto de trabalho, já anteriormente referido, a fim de proceder à consulta da escala de serviço a retomar dia 03/01/2023.
Chegada ao local, encontrei o vigilante MM que me informou que não me permitia consultar a escala de serviço pois estava proibido pelo Chefe de grupo Sr. NN, pessoa que não conheço, nem nunca me foi apresentado como chefe de grupo, ou sequer colaborador da A....
Posto isto, na posse da carta recebida pela A..., chamei a PSP ao local, tendo-se deslocado uma patrulha composta pelos Srs. Agentes OO e PP da Esquadra da PSP ... que me identificaram a mim e ao colega de serviço Sr. DD, que já tinha substituído o anteriormente indicado, pelas 16h, tendo este informado os Srs. Agentes que cedia a escala à PSP mas a mim não pois estava proibido pelo chefe de grupo Sr. NN.
Entreguei cópia da carta aos Senhores Agentes da PSP, tendo todos estes factos ficado reduzidos em auto.
Todos estes comportamentos por parte dessa empresa ocorreram desde o primeiro momento em que o contrato de trabalho foi transmitido e perduraram continuamente até ao dia de hoje, data em que existe o montante em dívida de 378.02€ a título de retribuições devidas.
Quando pensava já estar em condições clínicas para iniciar funções e tentando preservar o meu contrato de trabalho e a minha fonte de rendimentos, de forma contínua sou violentada nos meus direitos, humilhada e desrespeitada enquanto pessoa e trabalhadora dessa empresa, estando essa situação a ser penosa para mim e profundamente perturbadora da minha vida privada e familiar, pelo que não me resta outra alternativa que não resolver o contrato de trabalho que a ela me ligava por forma a preservar a minha dignidade e também a minha saúde mental que tem vindo a ser abalada nos últimos meses.
Nesta conformidade deverão considerar a cessação do meu contrato de trabalho com efeitos imediatos no dia de hoje com fundamento em resolução por justa causa.
Aguardo pelo encerramento das contas, assinalando que não deixarei de considerar os danos morais sofridos nos últimos meses, a indemnização devida nos termos do artigo 396º do Código do Trabalho e os restantes créditos salariais onde se incluem a ausência de formação profissional, o montante compensatório pelos dias trabalhados em período de folga, os pagamentos das horas extraordinárias pelo valor constante na CCT e a ausência do direito do gozo de dia, após folga trabalhada.
Com os melhores cumprimentos,
AA
”.
*
Factos provados com base nas alegações factuais da petição inicial para além dos que foram dados como assentes no saneador:
102. A autora celebrou um contrato de trabalho com a empresa B... S.A., no passado dia14 de março de 2016.
103. Em data posterior aquela, a aludida B.... S.A., alterou o seu nome de firma, passando a denominar-se de B... passando a evidenciar essa alteração nos recibos de vencimento.
104. Esta sociedade é uma empresa de vigilância cujo escopo principal da sua atividade é a prestação de serviços de vigilância e segurança nas instalações dos seus clientes.
105. A autora comprometeu-se a desempenhar funções de vigilante, cumprindo um horário de trabalho e obedecendo a ordens dos seus superiores hierárquicos mediante o pagamento de uma quantia monetária mensal.
106. A autora exerceu as suas funções ao serviço da aludida B... em vários postos de trabalho, designadamente, no Tribunal de Matosinhos; IP ..., IPO Porto e desde de junho de 2020 e de forma ininterrupta até à data da cessação do contrato de trabalho, na Câmara Municipal de ..., doravante CM..., na Casa Museu ....
107. A aludida sociedade comercial B... prestou serviços de vigilância e segurança de forma ininterrupta desde o dia 1 de junho de 2020 até ao dia 6 de setembro de 2023 para a Câmara Municipal de ... que entre outros postos incluía a Casa Museu ....
108. A CM... em data que não se pode precisar, contudo anterior a 7 de setembro de 2023, iniciou um concurso junto de empresas de vigilância e segurança humana com o respetivo caderno de encargos de modo a assegurar a prestação dos serviços de vigilância e segurança humana nas suas instalações.
109. A autora recebeu, com data de 24 de agosto de 2023, carta registada com aviso de receção, enviada pela aludida B... cujo assunto era o seguinte:
“
Informação sobre a transmissão do estabelecimento correspondente ao cliente Câmara Municipal de ... e nova entidade, entidade empregadora – artº286º do Código do Trabalho” com o seguinte texto, no que para esta ação importa;
Exmo. Senhor, V. Exa. foi devidamente informado que os serviços de vigilância prestado pela B..., S. A. nas instalações do cliente Câmara Municipal de ... foram adjudicados à empresa de segurança A..., S. A. com efeito a partir do dia 7 de setembro de 2023.
Assim, e a partir dessa data a A... será a entidade patronal de V/Exa. Conforme resulta do disposto nos artigos 285º a 287º do Código do Trabalho que regulam a transmissão de empresa de estabelecimento.
Reiteramos que não resultam quaisquer consequências de maior ou substancias em termos jurídicos, económicos ou sociais para V/Exa. Porquanto lhe é garantida a manutenção de antiguidade, de retribuição e da categoria profissional em que se enquadra
.”
110. No dia 08 de setembro de 2023, a autora apresentou-se no seu local de trabalho, Casa- Museu ... – CM..., às 8h30m para recolher o fardamento e render o Colega que terminaria o turno 9h, horário em que iria iniciar funções.
111. Sucede que, ao tentar iniciar as suas funções a autora viu-se impedida pela Ré de o fazer.
112. A Ré não tinha cedido o fardamento necessário e foi-lhe comunicado pelo Colega de trabalho DD que não existiria qualquer indicação para que a autora iniciasse as suas funções no aludido local de trabalho.
113. Esse Colega, funcionário da Ré, impediu assim a entrada da autora nas instalações do seu local de trabalho.
114. A autora vive com o seu companheiro e com uma filha menor.
115. O único rendimento disponível que este agregado familiar tem é o decorrente dos seus vencimentos e com eles fazem face aos encargos da vida familiar, designadamente, pagamento de empréstimo da casa, alimentação, roupa, saúde, eletricidade, água, telecomunicações, etc..
116. Privado este agregado familiar do rendimento de um dos membros do casal, o seu orçamento mensal é deficitário.
117. O que no caso sucedeu.
118. A autora foi forçada a recorrer a empréstimos junto de familiares e pessoas amigas para fazer face aos encargos da sua vida, particularmente com sustento da sua filha, menor de idade.
119. A autora iniciou assim as suas funções apenas no dia 13 de outubro de 2023.
120. A ré recebeu a carta no dia 18 de outubro de 2023, e efetuou o pagamento para evitar a suspensão do contrato de trabalho por parte da autora.
121. Em razão da sua vida familiar prestava serviço para a B... no regime de adaptabilidade e com um horário flexível das 9h às 17h.
122. A ré procedeu ao desconto da quantia de 259,49€ do salário da autora relativo ao mês de setembro de 2023 considerando ter existido 9 dias de faltas injustificadas.
123. Em outubro de 2023 a ré pagou à autora o valor de € 645,31 considerando ter existido 3 faltas injustificadas e 7 faltas justificadas (correspondendo ao montante de € 86,50 e € 201,82).
124. Em novembro de 2023 a ré pagou à autora a quantia de € 259,47 relativa ao mês de setembro de 2023 e a quantia de € 86,49 relativa ao mês de outubro de 2023.
125. A filha da autora, SS, de 6 anos de idade, frequenta a escola básica ... em ....
126. O horário de abertura da escola é às 8h30m.
127. O companheiro da autora, Pai da menor, também trabalha por turnos, sendo motorista no Metro do Porto, pelo que também ele na maior parte das vezes não tinha possibilidade de levar a menor.
128. A autora recorria a pessoas da sua confiança para esse efeito, estando sempre dependente da disponibilidade de alguém.
129. A alternativa mais frequente era com os seus Pais, todavia, o seu progenitor é doente oncológico.
130. A autora recebeu apoio médico especializado que a diagnosticou com episódio depressivo, ficando por esse motivo numa situação de incapacidade profissional.
131. Relativamente ao vencimento correspondente ao mês de setembro de 2023, o recibo de vencimento refere a quantia de 432,84€, enquanto o valor declarado à Segurança Social foi de 691,95€ - provado com o esclarecimento de que os descontos à Segurança Social foram efectuados em dois momentos sendo num primeiro momento no valor de € 432,84 e num segundo momento de € 259,47 e ainda considerando o dado como provado anteriormente no que concerne ao pagamento desta última quantia em novembro de 2023.
132. Relativamente ao vencimento correspondente ao mês de novembro de 2023, o recibo de vencimento refere a quantia de 1458,67€, enquanto o valor declarado à Segurança Social foi de 908,28€ - provado que em novembro a ré declarou à Segurança Social € 201,83 respeitante a 7 dias de trabalho; € 39,92 respeitante a subsídios; € 864,96 respeitante a subsídio de Natal e € 3,40 relativo a subsídio de refeição.
133. A autora não gozou qualquer dia de férias referente ao ano de 2023 que se venceram no dia 1 de janeiro de 2024.
134. Igualmente não lhe foi pago o subsídio de férias referente à anuidade de 2023 que se venceu no dia 1 de janeiro de 2024.
135. Como formação profissional a autora recebeu 31,5horas em 2020 e 7,75 horas em 2022.
136. O valor da retribuição horária da autora é de 5,26€.
137. Sentiu-se desgastada.
138. O seu companheiro também trabalha por turnos.
139. A filha menor do casal, SS tem 6 anos de idade.
140. Recorreu a apoio clínico no dia 6.11.2023.
141. Que a diagnosticou com episódio depressivo.
142. Tendo iniciado tratamento antidepressivo e iniciado tratamento antidepressivo incluindo farmacológico.
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Factos provados da contestação – que não tenham sido já alegados pela autora:
143. No seguimento de tal transmissão, a Ré contactou a Autora, solicitando-lhe que se dirigisse às suas instalações, de forma a suprir todas as formalidades exigidas.
144. Contrariamente a todos os seus colegas que também foram transmitidos, a Autora recusou-se a dirigir-se à sede da Ré, onde teria sido devidamente esclarecida, sendo resolvida, prontamente, toda a situação
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eliminado
145. A Autora não foi a única trabalhadora transmitida, sendo que todos os outros processos de transmissão decorreram normalmente, sem qualquer entrave ou imposição.
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alterado passando a ter a seguinte redação:
145. A Autora não foi a única trabalhadora transmitida
146. A 05 de Setembro de 2023, a Ré remeteu nova comunicação à Autora, solicitando que esta se deslocasse às suas instalações no dia 06 de setembro, com a documentação necessária para efetivar a transmissão, tendo-lhe sido assegurado que “assumiremos a respectiva categoria profissional, antiguidade, retribuição e demais condições resultantes do correspetivo contrato de trabalho”.
147. Ao invés de contactar a Ré, a 08 de setembro de 2023, a Autora, apresentou-se no posto de trabalho onde exercia funções anteriormente, sendo que lhe foi transmitido para se dirigir à sede, que não tinham indicações.
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aletrado, passando a ter a seguinte redação:
147. A 08 de setembro de 2023, a autora apresentou-se no posto de trabalho onde exercia funções anteriormente, sendo que lhe foi transmitido para se dirigir à sede, que não tinham indicações
148. No dia 11 de setembro de 2023, a Autora apresentou-se no seu posto de trabalho anterior.
149. No seguimento dessa deslocação, a Autora finalmente deslocou-se à sede, mas sem qualquer aviso ou marcação prévia, sendo que, no dia em concreto, não se encontrava ninguém responsável da administração, pelo que a situação não ficou sanada.
150. Por sua vez, nos dias seguintes a Autora entrou de férias, que já tinham sido marcadas pela B..., sendo que só regressaria a 29 de setembro.
151. Nestes termos, e de forma a assegurar a prestação de serviço por parte da Autora assim que regressasse de férias, no dia 29 de setembro de 2023, a Ré remeteu à Autora um email, no qual anexa uma “adenda ao contrato de trabalho”.
152. Perante a adenda assinada, foi entregue pela Ré o devido fardamento à Autora, tendo esta começado a prestar funções a 13 de outubro de 2023.
153. Tendo-lhe sido atribuído um horário das 08h às 16h00, em virtude de a Ré desconhecer a atribuição de um horário flexível à Autora por parte da B....
154. A transmissão da Autora teve efeitos a partir de 07 de setembro de 2023,
155. A Ré sempre se dispôs a reunir com a Autora e a explicar-lhe as circunstâncias da transmissão e os documentos exigíveis para começar a prestar funções.
156. Todos os outros trabalhadores transmitidos começaram a prestar funções a 07 de setembro de 2023.
157. A Autora entrou de baixa médica a 06 de novembro de 2023, situação que durou até 02 de janeiro de 2024.
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eliminado
158. A função desempenhada pela Autora não implica um contacto direto diário com a Ré.
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Factos não provados da petição inicial:
1. No momento em que a autora se deslocou às instalações da ré foi confrontada com vários documentos pré preenchidos não admitindo sequer que a autora pudesse questionar a sua existência, o seu teor e a necessidade jurídica dos mesmos.
2. A autora assinou alguns documentos dos quais, na altura, não lhe foram dadas cópias com o argumento que não estava ninguém da Direção para os assinar.
3. Note-se que nesse dia a autora estava a gozar o seu dia de folga e não foi remunerada por essa deslocação.
4. Foi atendida pelo Dra. BB que se recusou a fornecer o que quer que fosse.
5. Não efetuando o pagamento do vencimento da autora atempadamente como meio de punição e chantagem.
6. Sabendo a ré que o não pagamento da retribuição, sendo a única fonte de rendimento da autora, lhe causaria enormes dificuldades financeiras.
7. Mais uma vez a ré ignora os pedidos da autora.
8. Não lhe prestando qualquer resposta ou informação.
9. Na mesma data, através de uma consulta ao seu extrato de remunerações referente à sua carreira contributiva junto da Segurança Social, a autora constatou a ausência de descontos para a aludida entidade por parte da Ré.
10. A B... comunicou esta situação à ré quando lhe enviou a documentação referente à transmissão do posto, no qual se incluía como trabalhadora à autora.
11. A própria autora manifestou desde o primeiro momento esta circunstância de horário que a ré devia observar atento o exercício da sua relação laboral nos últimos anos e particularmente as necessidades familiares que motivaram esse benefício.
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eliminado
12. O que não corresponde à verdade, pois a equipa que estava afeta ao posto era a mesma que transitou da B... em resultado da transmissão de contrato de trabalho decorrente da passagem de posto da CM... para a ré.
13. A ré não procedeu a qualquer alteração de pessoas nem de horários, pelo que não existia qualquer motivo para alterarem o horário da autora e não respeitarem o horário flexível.
14. Com esta alteração a vida familiar da ré sofreu um abalo.
15. Não respeitando a ré o horário flexível atribuído à autora desde sempre, não podia esta levar a sua filha à escola.
16. A progenitora é a cuidadora do marido e tinha sempre que estar acompanhada pelo marido quando ia levar a menor.
17. Atuou a Ré num ostensivo incumprimento junto da Segurança Social.
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eliminado
18. Bem como junto da Autoridade Tributária e Aduaneira
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eliminado
19. O que prejudica a carreira da autora e demonstra a forma como a trata desde o início da relação laboral
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eliminado
20. Sublinha-se a forma como os items parcelares aparecem nos recibos de vencimento da autora de forma a gerarem confusão permitindo a um leitor menos atento que a situação seja ignorada.
21. Quando na realidade a ré deu instruções aos seus restantes colaboradores que se encontravam absolutamente proibidos de ceder a escala de serviço à autora;
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eliminado
22. Impedindo assim a mesma de obter informação essencial quanto à prestação das suas funções; -
eliminado
23. Numa tentativa de a humilhar, assediar e também para lhe poder imputar faltas!
24. Desde o início da transmissão do contrato de trabalho a ré sempre pugnou por uma postura persecutória para com a autora;
25. Recorrendo a diversos meios e expedientes para impedir a normal prestação das suas funções.
26. Todos eles soezes, baixos e indignos
27. Tudo fazendo para rebaixar e abalar psicologicamente a autora;
28. Certamente com o único intuito a que fosse ela a cessar a relação laboral.
29. O que efetivamente veio a suceder.
30. A autora não conseguiu aguentar mais o comportamento da ré, nos termos que adiante e em sede de cálculo de danos, serão alvo de melhor exposição.
31. Alterou a sua rotina, quanto aos horários, pois na vigência da relação laboral com a ré iniciava funções às 8h como esta pretendia ao invés do que sempre aconteceu até ao dia 6 de setembro de 2023 na vigência do contrato com a B... em que iniciava às 9h.
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32. Vivendo na expetativa de “aguentar” um dia atrás do outro até que esse pagamento ocorresse e particularmente quando envia a carta de suspensão da relação laboral fundada em falta de retribuição, a ré apenas faz o pagamento, com o detalhe maquiavélico de ser no último dia e apenas em montante parcial.
33. Devido ao desgaste a autora passou a ficar triste e desmotivada com o que estava a acontecer.
34. Chorava com frequência.
35. Não tinha a mesma vontade de sair com a família e amigos.
36. Chorava frequentemente.
37. Até então jamais a autora tinha tido qualquer quadro sintomatológico relacionado com episódios depressivos.
38. Era uma pessoa alegre, confiante e de bem com a vida.
39. Nunca teve qualquer conflito laboral que lhe tivesse provocado qualquer constrangimento.
40. A autora iniciou o tratamento em novembro de 2023 nos termos anteriormente descritos.
41. Aguardou pelo final do ano civil estimando que os problemas iriam ser ultrapassados.
42. Quando no início do ano de 2024 se preparava para retomar o trabalho e nos termos anteriormente descritos, solicitou o envio da escala, sendo-lhe esta recusada com o argumento de que deveria dirigir-se ao posto de trabalho onde os Colegas e aí chegada lhe foi recusada pelos Colegas porque tinham sido proibidos de a facultarem, sentiu que não aguentava mais.
43. Sentiu-se humilhada, desconsiderada, violentada e percebeu que a ré iria persistir com os seus comportamentos.
44. Entrou em desespero.
45. Chorou copiosamente.
46. Estava desorientada e sem saber o que fazer.
47. Apesar de querer manter a relação laboral porque necessita de trabalhar para assegurar a sua subsistência e da sua filha sentiu-se emocionalmente incapaz
48. Percebeu que a sua saúde mental estava a ser afetada.
49. Recorreu novamente a consulta clínica e retomou a toma de medicação antidepressivo, designadamente, Fluxetina Nodepe.
50. E desistiu, pelo que não teve outra alternativa que não a resolução do contrato de trabalho por justa causa nos termos acima alinhados.
51. Quando é efetuado o pagamento do recibo de novembro de 2023, apesar de ter reposto alguns valores que tinha retido indevidamente em setembro e outubro, não o faz na sua totalidade.
52. Não provado que o pai da autora, na data dos factos, não tivesse saúde nem disponibilidade para deslocações e não pudesse ficar sozinho em casa.
*
*
Factos não provados da contestação:
1. Assim e contrariamente ao alegado pela Autora, foi esta quem, desde logo, teve uma atitude de falta de colaboração e confiança para com a nova entidade patronal, colocando entraves e imposições que poderiam obstar a prestação do seu trabalho, como se veio a verificar.
2. No dia 06 de setembro de 2023, a Autora dirigiu-se à sede da Ré e, contrariamente ao alegado, apenas lhe foram apresentados alguns documentos necessários para a formalização da transmissão e proposta a aceitação do regime de adaptabilidade, não lhe tendo sido imposta, nem forçada qualquer aceitação.
3. Na altura da transmissão, a empresa transmitente, B..., não remeteu os contratos escritos dos trabalhadores transmitidos, o que, infelizmente, é pratica comum no âmbito das transmissões entre empresas de segurança.
4. Sendo que, não podendo arriscar ser alvo de contraordenações e coimas avultadas, a Ré solicita aos trabalhadores transmitidos, a assinatura de um contrato de trabalho, no qual é assegurada, naturalmente, a categoria profissional do trabalhador, a antiguidade, retribuição e demais condições de que já dispunha.
5. Informação que, aliás, constava do contrato que foi apresentado à Autora.
6. Perante a intransigência da Autora e vendo-se obrigada a respeitar a lei, a Ré não facultou, nessa data, 6 de setembro, o fardamento àquela, em virtude de não poder arriscar que a mesma se apresentasse ao trabalho e fosse efetuada alguma fiscalização que verificasse que não se estava a cumprir a lei.
7. Tendo transmitido à Autora para diligenciar pela averiguação da situação junto de quem de direito, ficando a Ré a aguardar por resposta da trabalhadora.
8. Não provado que a adenda ao contrato de trabalho tivesse um teor e termos iguais ao contrato de trabalho que tinha sido apresentado à Autora, nomeadamente, com garantia de antiguidade, categoria, retribuição, entre outros, apenas se tendo mudado o nome do documento, para, de uma vez por todas, se conseguir regularizar a transmissão ocorrida.
9. Ou seja, contrariamente ao alegado, foi a Ré quem sempre se disponibilizou para formalizar a transmissão da Autora e face aos entraves colocados por esta, se arriscou legalmente, com vista a integrar a trabalhadora, agindo sempre de boa fé.
10. Sendo que, assim que a Autora fizesse chegar tal informação à Ré, com a documentação comprovativa do mesmo, tal iria ser naturalmente regularizado.
11. No que concerne aos descontos nos recibos dos meses de setembro e outubro de 2023 a título de faltas, tal deveu-se a uma falha no software informático, como foi devidamente comunicado à trabalhadora, tendo os mesmos sido repostos no final do mês de novembro.»
*
Apreciação
A primeira questão a resolver no presente recurso é a relativa à impugnação da matéria de facto.
Nos termos do disposto pelo art.º 662.º, n.º 1 Código de Processo Civil «A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.»
Consagra-se nesta disposição legal não apenas o poder/dever de reapreciação da decisão da matéria de facto proferida pela 1ª instância, através da (re)análise dos meios de prova produzidos em 1ª instância, no que respeita à prova sujeita à livre apreciação do julgado, desde que o recorrente impugna a decisão e cumpra os ónus definidos pelo art.º 640.º do Código de Processo Civil, mas também, e antes de mais, o poder de oficiosamente considerar a matéria de facto que se encontre plenamente provada por acordo das partes nos articulados, por documentos ou por confissão reduzida a escrito nos termos dos arts. 607º, nº 4 e 663.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Civil, desde que relevantes para a decisão a proferir atentas todas as soluções jurídicas possíveis.
Por outro lado, o Tribunal da Relação deve, mesmo oficiosamente, alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto no caso de existir matéria de direito e/ou conclusiva a invadir a matéria de facto.
Na verdade, o comando normativo do art.º 607.º relativo à discriminação dos factos aplica-se, também, ao Tribunal da Relação, atento o disposto pelo art.º 663.º, n.º 2 do CPC, não podendo o acórdão que aprecie o recurso interposto fundar-se em afirmações meramente conclusivas ou que constituam descrições jurídicas.
Como se escreve no Ac. RP de 08/02/2021
[1]
, “sendo a matéria daqueles itens de natureza conclusiva e também de direito, a mesma é contrária à matéria estritamente factual que deve ser seleccionada para a fundamentação de facto da sentença, como explicitamente decorre do nº4 do art. 607º do CPC [note-se que a inclusão nos fundamentos de facto da sentença de matéria conclusiva (desde que não se reconduza a juízos periciais de facto) e/ou de direito enquadra-se na alínea c), do nº 2, do artigo 662º, do CPC, considerando-se uma deficiência na decisão da matéria de facto]”. E como se lê no Ac. RP de 23/11/2017
[2]
, com o qual concordamos, “a selecção da matéria de facto só pode integrar acontecimentos ou factos concretos, que não conceitos, proposições normativas ou juízos jurídico-conclusivos. Caso contrário, as asserções que revistam tal natureza devem ser excluídas do acervo factual relevante- artº 607º, nº 4, NPCP”.
A recorrente começa por impugnara a decisão relativa à matéria de facto não provada constante dos pontos 17, 18 e 19, pretendendo que a mesma seja considerada provada, ainda que com exclusão das expressões conclusivas que identifica.
Invoca para o efeito os recibos de vencimento que constituem os documentos 43 a 46 da petição inicial e o ofício da Segurança Social junto aos autos em 15/07/2024.
O teor dos referidos pontos é o seguinte:
“17. Atuou a Ré num ostensivo incumprimento junto da Segurança Social.
18. Bem como junto da Autoridade Tributária e Aduaneira.
19. O que prejudica a carreira da autora e demonstra a forma como a trata desde o início da relação laboral.”
Do nosso ponto de vista, toda a matéria constante dos pontos em apreciação é vaga, conclusiva e jurídico-valorativa, pelo que deve a mesma ser eliminada do elenco dos factos não provados.
Na verdade, por um lado, o incumprimento, é um conceito estritamente jurídico e, por outro lado, sendo múltiplas as obrigações da empregadora junto da segurança social e da autoridade tributária e aduaneira, nem sequer se percebe quais foram incumpridas. Finalmente do ponto 19 apenas consta, de forma manifestamente conclusiva, a apreciação da relevância do incumprimento pela recorrida das tais obrigações, que se ignora quais são em concreto, sobre a carreira da autora (presume-se carreira contributiva) e para aferir a postura da recorrida relativamente à recorrente, matéria cujo lugar próprio será o da subsunção dos factos ao direito, a realizar na fundamentação de direito na sentença.
Assim, decide-se eliminar os pontos 17, 18 e 19 do elenco dos factos não provados, ficando prejudicada a apreciação da impugnação deduzida pela recorrente.
A recorrente impugna também a decisão relativa aos factos não provados sob os números 21 e 22, pretendendo que a matéria destes constantes seja considerada provada.
Alega que foram considerados provados os factos alegados nos arts. 154.º a 169.º da petição inicial, pelo que deveriam também ter sido dados como provados os factos alegados nos art.º 170.º e 171.º da mesma peça processual que correspondem aos pontos em causa em causa; que importa ter em conta o auto da PSP relativo à ocorrência de 30 de dezembro e que é do senso comum que para uma pessoa exercer funções terá que ter conhecimento do seu horário de trabalho e dos dias em irá prestar a sua atividade laboral, particularmente numa profissão como é de vigilante em que existem turnos e folgas semanais diversas.
O teor dos pontos 21 e 22 não provados é o seguinte:
“21. Quando na realidade a ré deu instruções aos seus restantes colaboradores que se encontravam absolutamente proibidos de ceder a escala de serviço à autora;
22. Impedindo assim a mesma de obter informação essencial quanto à prestação das suas funções;”
Ora, também a matéria aqui em causa é conclusiva e como tal deverá ser eliminada do elenco dos factos não provados.
Na verdade, tais pontos reproduzem o alegado pela recorrente nos arts. 170.º e 171.º da petição inicial, que mais não contém do que a conclusão ali retirada pela autora em apreciação dos factos alegados nos arts. 154.º a 169.º da mesma peça processual. Nessa medida, trata-se de matéria que não integra qualquer acontecimento ou facto concreto, mas apenas um juízo valorativo.
Determina-se, pois, a eliminação dos pontos 21 e 22 dos factos não provados, ficando prejudicada a apreciação da impugnação deduzida pela recorrente.
Vem ainda impugnada a decisão relativa aos pontos 11 e 31 da matéria de facto não provada, que a recorrente considera que deve ser considerada provada face o teor da comunicação transcrita no ponto 5 dos factos provados e ao que consta provado em 75.
O teor dos pontos 11 e 31 é o seguinte:
“11. A própria autora manifestou desde o primeiro momento esta circunstância de horário que a ré devia observar atento o exercício da sua relação laboral nos últimos anos e particularmente as necessidades familiares que motivaram esse benefício.”
“31. Alterou a sua rotina, quanto aos horários, pois na vigência da relação laboral com a ré iniciava funções às 8h como esta pretendia ao invés do que sempre aconteceu até ao dia 6 de setembro de 2023 na vigência do contrato com a B... em que iniciava às 9h.”
Do último parágrafo da comunicação que a recorrente remeteu à recorrida em 05/09/2023 e que se encontra transcrita no ponto 5 dos factos provados, consta o seguinte: “
Relembro também, conforme indicado na minha correspondência anterior, que disponho de horário flexível (9h às 17h) em virtude de ser progenitora de uma menor, como forma a assegurar as deslocações e respetivas tarefas inerentes à deslocação da criança para o Estabelecimento de Ensino
.”
Essa comunicação foi rececionada pela recorrida que, conforme resulta do ponto 6 dos fatos provados, lhe respondeu.
Assim, é evidente que a recorrente deu conhecimento à recorrida, pelo menos em 05/09/2023, de que tinha um horário flexível das 9h às 17h, bem como os motivos que o justificavam.
Ora, ainda que dele não resulte expressamente, o ponto 11 não provado, refere-se a tal regime de horário, já que constitui transcrição do art.º 121.º da petição inicial que tem de ser lido com referência ao art.º 119.º. O mesmo se diga do ponto 75 dos factos provados, do qual consta “A ré persistia sempre em colocar a autora nas escalas com horários entre as 8h e as16h” que reproduz, em parte o alegado no art.º 122.º da petição inicial.
Daí que a matéria constante do ponto 11, estando em contradição com o que está provado em 5 não possa permanecer no elenco dos factos não provados.
Ainda assim, considera-se que a mesma não deve ser considerada provada, pois, o que de concreto interessa ao caso dos autos, já consta do referido ponto 5.
Elimina-se, pois, a matéria do ponto 11 dos factos não provados.
Quanto à matéria do ponto 31 importa ter em atenção que ficou provado em 121 que “Em razão da sua vida familiar prestava serviço para a B... no regime de adaptabilidade e com um horário flexível das 9h às 17h”, tendo ficado provado em 75 que “A ré persistia sempre em colocar a autora nas escalas com horários entre as 8h e as 16h” e em 153 que foi “atribuído à autora um horário das 8h às 16h” relevando ainda a matéria provada de 125 a 129 quanto à idade da filha da autora, quanto à impossibilidade na maior parte das vezes, de ser o pai da menor a levá-la à escola, quanto à dependência da autora da disponibilidade de terceiros, designadamente dos seus pais, para levar a filha à escola.
Ora, esta matéria provada contraria, em parte, o teor do ponto 31 dos factos não provados, mas entende-se que a matéria constante deste ponto não é de levar aos factos provados, face ao que, de concreto, já consta dos pontos acima assinalados, sendo conclusiva quanto ao mais.
Nessa medida decide-se eliminar o ponto 31 dos factos não provados.
Finalmente a recorrente impugna a decisão relativa aos pontos 144, 145, 147 e 149 da matéria de facto provada, pretendendo a recorrente que tal matéria seja considerada não provada.
Alega que o tribunal ignorou a factualidade dada como provada no ponto 3 (a recorrente contacta a recorrida por carta datada de 2 de setembro, porque apenas tinha tido um contacto telefónico informar desta e a data da transmissão estava a aproximar-se), no ponto 4 (email recebido pela recorrida em 5 de setembro para se deslocar às instalações desta no dia 6 de setembro), no ponto 5 (resposta da recorrente no mesmo dia 5 a confirmar a presença no dia 6), no ponto 7 (deslocação à recorrida no dia 6 de setembro onde foi atendida pela Snra. CC), no ponto 19 (solicitação do livro de reclamações – reclamação junta aos autos com a p.i. onde se verifica a data da presença a 6 de setembro).
Alega também que a matéria em causa é em grande parte conclusiva, repescando conceitos genéricos alegados pela recorrida.
Diz ainda a recorrente que é assumido ao longo do processo que a autora não foi a única trabalhadora transmitida e dizer-se que nenhum outro trabalhador manifestou entrave ou oposição, para além de ser um conceito de direito, é irrelevante para o caso concreto, pois, o objeto da presente ação é apenas o de um contrato individual de trabalho, no caso o da recorrente, e à semelhança dos restantes trabalhadores, também ela não manifestou oposição à transmissão.
A matéria impugnada neste segmento do recurso tem o seguinte teor:
“144. Contrariamente a todos os seus colegas que também foram transmitidos, a Autora recusou-se a dirigir-se à sede da Ré, onde teria sido devidamente esclarecida, sendo resolvida, prontamente, toda a situação.
145. A Autora não foi a única trabalhadora transmitida, sendo que todos os outros processos de transmissão decorreram normalmente, sem qualquer entrave ou imposição.
(…)
147. Ao invés de contactar a Ré, a 08 de setembro de 2023, a Autora, apresentou-se no posto de trabalho onde exercia funções anteriormente, sendo que lhe foi transmitido para se dirigir à sede, que não tinham indicações.
(…)
149. No seguimento dessa deslocação, a Autora finalmente deslocou-se à sede, mas sem qualquer aviso ou marcação prévia, sendo que, no dia em concreto, não se encontrava ninguém responsável da administração, pelo que a situação não ficou sanada.”
Ora, a matéria constante do ponto 144 é, quanto à recusa de deslocação à sede da ré, meramente valorativa da atuação da recorrente e manifestamente especulativa quanto ao mais, pelo que não tem lugar na matéria de facto. Saber se a atuação da recorrente consubstanciou uma recusa é questão cuja apreciação pertence à subsunção jurídica dos factos ao direito aplicável, a fazer em sede de fundamentação de direito.
A impugnação procede parcialmente, eliminando-se o ponto provado 144.
O mesmo acontece relativamente a parte da matéria constante do ponto 145, mais concretamente quanto ao segmento “… sendo que todos os outros processos de transmissão decorreram normalmente, sem qualquer entrave ou imposição.” De resto, o que releva nesta parte é o que resulta do ponto 156 da matéria de facto provada, ou seja que “Todos os outros trabalhadores transmitidos começaram a prestar funções a 07 de setembro de 2023”.
Procede, assim, parcialmente a impugnação, decidindo-se eliminar o identificado segmento, passando a redação do ponto 145 a ser a seguinte:
“145. A Autora não foi a única trabalhadora transmitida.”
Quanto à matéria provada no ponto 147 importa ter em conta que a mesma reproduz o alegado no art.º 20.º da contestação, que se refere à atuação da autora subsequente à comunicação da ré de 06/09/2023, a que se refere o ponto 20 dos factos provados.
Nessa comunicação, que foi feita por carta registada, a ré reitera que a assinatura do contrato de trabalho é indispensável para que a autora possa iniciar funções e que até isso acontecer a autora não poderá prestar funções, informando que ficava a aguardar que a autora se pronunciasse e se deslocasse à empresa para proceder à assinatura do contrato.
Está provado nos autos, que a autora se apresentou no dia 08/09/2023, na Casa Museu ... – CM..., posto de trabalho onde exercia funções anteriormente (ponto 22 dos factos provados). Ignora-se, contudo quando é que a autora recebeu a dita carta registada e consequentemente, quando é que tomou conhecimento do seu teor, nomeadamente se antes do dia 08/09/2023, dia em que, estando a autora de folga no dia 07/09/2023 (ponto 21 da matéria de facto provada), se deveria apresentar ao trabalho, pelo que, não tem fundamento o segmento inicial do ponto 147 “ao invés de contactar a ré”, que se elimina.
Quanto ao mais constante do ponto 147, a recorrente nada invocou que seja suscetível de pôr em causa a decisão do tribunal, a qual tem até respaldo, em parte, nos factos provados em 112, pelo que, procedendo apenas em parte a impugnação, altera-se a redação do ponto 147, passando a ser a que se segue:
“147. A 08 de setembro de 2023, a autora apresentou-se no posto de trabalho onde exercia funções anteriormente, sendo que lhe foi transmitido para se dirigir à sede, que não tinham indicações.”
Quanto ao ponto 149, afigura-se que deve ser eliminada, por ser conclusiva, a expressão “finalmente”, a qual, de resto, não é compatível com o mais que ficou provado, pois tem implícita a ideia de que a autora só se deslocou às instalações da ré em 11/09/2023, quando na verdade a autora já se tinha ali deslocado no dia 06/09/2023 (facto provado 7).
No que respeita à parte restante do ponto 149, a recorrente não invocou qualquer meio probatório ou fundamento, capaz de pôr em causa o decidido, pelo que se julga a impugnação improcedente. Ainda assim, mostra-se imprescindível introduzir uma outra alteração na redação deste ponto, na parte em que foi considerado provado que a autora se deslocou à sede, sem qualquer aviso, já que a autora está provado que, por email de 08/09/2023 (facto provado 26), comunicou que se não lhe fosse permitido iniciar funções no seu posto de trabalho, como não foi, se deslocaria à sede na segunda feira seguinte, ou seja, no dia 11/09/2023, não se podendo manter como provada a afirmação em contrário.
A redação do ponto 149 da matéria de facto passará, portanto, a ser a seguinte:
149. No seguimento dessa deslocação, a Autora deslocou-se à sede, sem marcação prévia, sendo que, no dia em concreto, não se encontrava ninguém responsável da administração, pelo que a situação não ficou sanada.
Em resumo, eliminam-se os pontos 11, 17, 18, 19, 21, 22 e 31 dos factos não provados e os pontos 144 dos factos provados e alteram-se os pontos 145, 147 e 149 nos termos acima definidos.
Importa ainda, oficiosamente, introduzir algumas outras modificações à matéria de facto provada.
Nos termos do disposto pelo art.º 662.º, n.º 1 Código de Processo Civil «A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.»
Consagra-se nesta disposição legal não apenas o poder/dever de reapreciação da decisão da matéria de facto decidida pela 1ª instância, através da (re)análise dos meios de prova produzidos em 1ª instância, no que respeita à prova sujeita à livre apreciação do julgado, desde que o recorrente impugna a decisão e cumpra os ónus definidos pelo art.º 640.º do Código de Processo Civil, mas também, e antes de mais, o poder de oficiosamente considerar a matéria de facto que se encontre plenamente provada por acordo das partes nos articulados, por documentos ou por confissão reduzida a escrito nos termos dos arts. 607º, nº 4 e 663.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Civil, desde que relevantes para a decisão a proferir atentas todas as soluções jurídicas possíveis.
Assim, porque se trata de matéria admitida por acordo, suportada em documentos não impugnados, sendo relevante para a decisão, importa aditar à matéria de facto o seguinte, alterando-se a redação dos seguintes pontos:
12 – A ré entregou posteriormente à autora as minutas sem a sua identificação,
com o teor dos documentos 8 a 13 juntos com a petição inicial, que se reproduz
, contudo no dia da reunião tais documentos já estavam preenchidos com os dados da autora.
19 – Atento o comportamento da ré logo no início de funções e uma vez que no dia seguinte se tinha apresentado no posto de trabalho já ao serviço da ré e sem que lhe tenha sido entregue o fardamento dos funcionários desta, sentiu necessidade de pedir o livro de reclamações e manifestar por escrito a sua indignação e a situação porque estava a passar,
nos termos constantes do documento 14 junto com a petição inicial, cujo teor se dá por reproduzido
.
34 – Numa atitude defensiva a autora voltou a solicitar o livro de reclamações para deixar registada a sua presença e a situação que esteve a vivenciar,
o que fez nos termos constantes do documento 19 junto com a petição inicial, cujo teor se reproduz
.
Por outro lado, porque contém, o que se crê tratar-se de um lapso manifesto, como evidenciado pelo teor do ponto 123 da matéria de facto provada e pela análise do correspondente recibo de vencimento, junto com a petição inicial, impõe-se retificar o teor do ponto 67, já que as faltas a que o mesmo se refere foram consideradas faltas justificadas e não injustificadas.
Assim, o ponto 67 passará a ter a seguinte redação:
67 – Tendo novamente descontado uma quantia, neste caso de € 201,82, devido a 7 dias de
faltas justificadas
.
Por fim, decide-se eliminar o ponto 157 dos factos provados, por estar em contradição com o teor dos pontos 77 e 78, nos quais se deu como provado os concretos dias em que a recorrente esteve de baixa a partir de 06/11/2023, estando estes suportados nos certificados de incapacidade temporária juntos com a petição inicial, tendo havido um interregno na dita situação de 18/11/2023 a 21/11/2023.
*
Fixada a matéria de facto, importa agora averiguar se deve ser reconhecida a justa causa para a resolução do contrato de trabalho.
Resulta da matéria de facto que ficou provada que, por efeito da transmissão da unidade económica em que a recorrente prestava trabalho desde 14 de março de 2016, a mesma passou a estar, desde 07/09/2023, vinculada à recorrida, vínculo ao qual a autora pôs fim por carta registada de 3 de janeiro de 2024, tendo o tribunal “a quo” concluído pela improcedência dos fundamento invocados pela autora.
Começamos por referir que o art.º 394.º do Código do Trabalho (CT), sob a epígrafe “justa causa de resolução”, na parte que aqui interessa, dispõe que:
“1 - Ocorrendo justa causa, o trabalhador pode fazer cessar imediatamente o contrato.
2 - Constituem justa causa de resolução do contrato pelo trabalhador, nomeadamente, os seguintes comportamentos do empregador:
a) Falta culposa de pagamento pontual das retribuições devidas;
b) Violação culposa de garantias legais ou convencionais do trabalhador, designadamente a prática de assédio praticada pela entidade empregadora ou por outros trabalhadores;
e) Lesão culposa de interesses patrimoniais sérios do trabalhador (…);
f) Ofensa à integridade física ou moral, liberdade, honra ou dignidade do trabalhador, punível por lei, incluindo a prática de assédio denunciada ao serviço com competência inspectiva na área laboral, praticada pelo empregador ou seu representante; (…).
4 – A justa causa é apreciada nos termos do nº 3 do artigo 351º, com as necessárias adaptações.
5 – Considera-se culposa a falta de pagamento pontual da retribuição que se prolongue por período de 60 dias, ou quando o empregador, a pedido do trabalhador, declare por escrito a previsão de não pagamento da retribuição em falta, até ao termo daquele prazo.”
Por sua vez, dispõe o art.º 396.º do CT, sob a epígrafe “Indemnização devida ao trabalhador” que
“1. Em caso de resolução do contrato com fundamento em facto previsto no nº 2 do artigo 394º, o trabalhador tem direito a indemnização, a determinar entre 15 e 45 dias de retribuição base e diuturnidades por cada ano completo de antiguidade, atendendo ao valor da retribuição e ao grau de ilicitude do comportamento do empregador, não podendo ser inferior a três meses de retribuição base e diuturnidades. (…).
2 – Em caso de fracção de ano de antiguidade, o valor da indemnização é calculado proporcionalmente.
3 – O valor da indemnização pode ser superior ao que resultaria da aplicação do nº 1 sempre que o trabalhador sofra danos patrimoniais e não patrimoniais de montante mais elevado.”
Por outro lado, nos termos do disposto pelo art.º 394.º, n.º 4 do CT a justa causa para a resolução deverá ser apreciada nos termos do n.º 3 do artigo 351.º do CT, com as necessárias adaptações, preceito este que, por sua vez, dispõe que «Na apreciação da justa causa, deve atender-se, no quadro de gestão da empresa, ao grau de lesão dos interesses do empregador, ao carácter das relações entre as partes ou entre o trabalhador e os seus companheiros e às demais circunstâncias que no caso se mostrem relevantes.».
Acresce que, para o preenchimento valorativo da cláusula geral da resolução pelo trabalhador ínsita no n.º 1 do art. 394.º do CT, não basta a verificação material de qualquer dos comportamentos descritos no nº 2 do preceito, sendo ainda necessário que desse comportamento resultem efeitos de tal modo graves, em si ou nas suas consequências, que tornem inexigível ao trabalhador a continuação da sua atividade em benefício do empregador.
Conforme se referiu no acórdão do STJ de 11/05/2011
[3]
, citado no Ac. STJ de 11/09/2019
[4]
, ambos acessíveis em
www.dgsi.pt
, aplicando o Código de Trabalho de 2003, «[c]omo é entendimento reiterado deste Supremo Tribunal, a dimensão normativa da cláusula geral de rescisão exige mais do que a simples verificação material de um qualquer dos elencados comportamentos do empregador: é necessário que da imputada/factualizada atuação culposa do empregador resultem efeitos de tal modo graves, em si e nas suas consequências, que seja inexigível ao trabalhador – no contexto da empresa e considerados o grau de lesão dos seus interesses, o caráter das relações entre as partes e as demais circunstâncias que no caso se mostrem relevantes – a continuação da prestação da sua atividade».
Importa ainda considerar que a resolução deve ser efetuada mediante declaração escrita, com indicação sucinta dos factos que a justificam, nos termos do art.º 395.º, n.º 1 do CT., sendo relevante considerar que nos termos do disposto pelo art.º 398.º, n.º 3 do CT apenas são atendíveis para justificar a resolução os factos constantes daquela comunicação.
A necessidade de indicar, ainda que sucintamente, os factos integradores da justa causa visa assim, por um lado, permitir ao empregador aferir se os mesmos são ou não suficientes para configurar justa causa e por outro delimitar os factos relativamente aos quais a questão poderá ser suscitada judicialmente.
A recorrente sustentou a justa causa para a resolução do contrato numa série de comportamentos da ré, que alega terem perdurado desde o início da relação contratual, até à sua cessação, considerando que foi de forma contínua, violentada nos seus direitos, humilhada e desrespeitada enquanto pessoa e trabalhadora da recorrida, estando tal situação a ser penosa e profundamente perturbadora da sua via privada e familiar, constituindo a cessação do contrato a única forma de preservar a sua dignidade e a sua saúde mental.
Concretizou uma série de episódios que ocorreram ao longo da relação contratual, não invocando a justa causa, fundada em cada uma das situações que elenca, mas na situação globalmente considerada, que na petição inicial enquadra juridicamente como assédio não discriminatório com o intuito de fazer a autora cessar o contrato de trabalho (art.º 181.º da p.i.).
Importa, pois, antes de mais, averiguar se a recorrente foi efetivamente vítima de assédio como invoca.
O conceito de assédio moral, sociologicamente tratado sob a designação de “mobbing” tem, entre nós consagração no art.º 29.º do CT, no âmbito e na decorrência da afirmação dos princípios concretizadores dos comandos constitucionais do princípio da igualdade e da não discriminação.
Assim, dispõe o dito art.º 29.º, nº 1 do CT, na redação da Lei n.º 73/2017 de 16/08, sob a epígrafe “Assédio” que “Entende-se por assédio todo o comportamento indesejado, nomeadamente o baseado em factor de discriminação, praticado aquando do acesso ao emprego ou no próprio emprego, trabalho ou formação profissional, com o objetivo ou o efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afectar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador”.
Contêm-se na citada disposição legal dois tipos de assédio moral: o baseado numa atuação discriminatória do empregador e o que não sendo discriminatório, tem os mesmos efeitos, pelo seu carácter insidioso continuado, também por vezes designado como mobbing estratégico.
A recorrente não alega o assédio baseado em qualquer fator de discriminação a que alude o art.º 25.º, nº 1 do CT, pelo que não é aplicável no caso dos autos a presunção a que se refere o n.º 5 da mesma disposição legal, impendendo sobre a autora o ónus da prova dos factos em que assenta o seu direito face ao disposto pelo art.º 342.º, nº 1 do Código Civil.
Prescindindo, pois, do enquadramento da situação dos autos na figura do assédio discriminatório, importa, com vista à decisão, ter presente que, face ao citado art.º 29.º do CT, o assédio moral pode concretizar-se não apenas quando se apura que era
objetivo do empregador afetar a dignidade do trabalhador, como também nos casos em que, não tendo sido esse o objetivo, é, contudo, esse o efeito obtido, afetando a dignidade da pessoa ou criando um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador.
De acordo com os ensinamentos de Júlio Gomes
[5]
, aquilo que caracteriza o mobbing é a prática de determinados comportamentos, a sua duração e as consequências destes. Segundo este autor «[t]anto é para a nossa lei, assédio, o comportamento indesejado, com a intenção de "perturbar ou constranger a pessoa, afectar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador", como aquele que simplesmente tem esse efeito. O objectivo ou intenção persecutória não é, pois, um elemento constitutivo do tipo de assédio, pelo que a sua existência não tem que ser demonstrada pelo trabalhador e se o trabalhador não provar a existência de tal intenção não se deve, sem mais, concluir pela inexistência de assédio».
Mas, tal como se pode ler no Ac. STJ de 18/12/2013
[6]
, acessível em dgsi.pt “da circunstância de o legislador ter prescindido de um elemento volitivo dirigido às consequências de determinado comportamento não decorre que a intenção/finalidade do agente não seja um dos elementos a considerar para aferir da gravidade/“tipicidade” de certo comportamento (questão que se situa em momento que é logicamente anterior).
Especificamente quanto ao “assédio estratégico”, vale isto por dizer que a fórmula legislativa não impede a constatação de que a esta figura se encontra, em regra, associado o facto de o empregador agir animado por determinados objectivos/finalidades (afastar determinado trabalhador da empresa ou forçá-lo a aceitar condições laborais menos favoráveis), nos termos supra expostos; tal como não obsta à afirmação de que o assédio, em qualquer das suas modalidades, tem em regra associado um “objetivo final ilícito ou, no mínimo, eticamente reprovável”.
Interessa ainda ter em conta que o assédio constitui, por regra, um processo, não um mero ato isolado, pressupondo um conjunto mais ou menos encadeado de atos e condutas que ocorrem de forma sistemática
[7]
.
Trata-se de comportamentos, que ainda que muitas vezes individualmente considerados se apresentem como irrelevantes e até inseridos no âmbito dos poderes de direção do empregador, na sua globalidade e conjugação e essencialmente pelo seu carácter reiterado num certo período de tempo, transformam um mero conflito pontual e até normal numa relação de trabalho, num verdadeiro assédio moral, por serem suscetíveis de afetar a dignidade do trabalhador, o que é, em si mesmo, um resultado ilícito ou eticamente reprovável.
Importa ainda realçar que, tal como se refere no Ac. RP de 08/04/2013
[8]
, acessível em dgsi.pt, «a existência de mobbing não exige que se tenha verificado uma lesão da saúde do trabalhador. Mais uma vez se lança mão da palavra de Júlio Gomes, que, depois de referir que o conceito de mobbing foi identificado a partir de estudos realizados com sujeitos que em consequência do assédio apresentavam graves problemas de saúde mental e até física, assim escreveu: “À medida que um conceito jurídico de assédio emergiu, foi-se paulatinamente compreendendo que o assédio é, ou pode ser, uma conduta pluriofensiva: a criação de um ambiente hostil, degradante, humilhante, para o trabalhador, seja tal criação intencional ou não, viola, em primeiro lugar, a personalidade do trabalhador, a sua dignidade como pessoa ou até, como dizem alguns autores, a sua dignidade como pessoa que trabalha, a sua dignidade profissional, verificando-se, amiúde, a violação de outros direitos (como p. ex. o direito à saúde). A violação do direito geral de personalidade do trabalhador e da sua profissionalidade ou dignidade profissional não são apenas ilícitas, mas são susceptíveis de produzir um dano não patrimonial, mesmo que não haja lesões à saúde física ou mental do trabalhador ou danos patrimoniais».
Assim, embora a existência de consequências danosas a nível da saúde, física ou psíquica, do trabalhador seja um fator de relevo a ponderar como indiciador da existência da figura do assédio, não é de todo indispensável à integração de tal figura, já que a censurabilidade das condutas não pode ficar dependente da maior ou menor resistência anímica ou psicológica das vítimas.
O citado art.º 29.º do CT carece, porém, de uma interpretação, prudente, subordinada aos princípios ínsitos no art.º 9.º, nº 2 e 3 do Código Civil, sob pena de se reconduzirem à sua previsão, todas e quaisquer situações de mera tensão laboral decorrente do conflito entre os interesses, tantas vezes opostos, do empregador e do trabalhador geradas pelo exercício do poder de direção do empregador no desenvolvimento das relações laborais.
Vejamos a situação dos autos.
Na génese do conflito ente as partes esteve a transmissão da unidade económica em que a recorrente já prestava trabalho desde 2016.
É sabido, que os processos de transmissão de unidades económicas no setor da vigilância, são, por via de regra, difíceis e algo caóticos em resultado dos procedimentos a que estão sujeitos, por um lado, e da necessidade de a empresa transmissária “absorver” em simultâneo vários trabalhadores, por outro lado, o que é amplificado em razão do número de trabalhadores e de locais de trabalho em causa.
No caso, ao contrário do que muitas vezes acontece, a transmissária/recorrida, desde o início do contacto com a recorrente, afirmou aceitar a transmissão do contrato desta.
Não obstante, a relação entre as partes iniciou-se e decorreu de forma conturbada.
De facto, tendo sido informada em 24/08/2023, pela empresa para a qual prestava a sua atividade, a B..., de que “os serviços de vigilância pela mesma prestados nas instalações da Câmara Municipal de ..., foram adjudicados à recorrida com efeitos a partir de 07/09/2023”, no dia 02/09/2023, a recorrente dirigiu à recorrida uma carta registada manifestando a disponibilidade para cumprir as suas funções, “solicitando ordens e autorização para a continuação ao serviço do normal cumprimento do [seu] contrato de trabalho”, solicitando que, por ter sido contactada telefonicamente no sentido de ir às instalações da recorrida para assinar um novo contrato, o que entendia ser desnecessário porque o contrato já existia, a recorrida a contactasse por escrito no sentido de manifestar se aceitava a transmissão do contrato, bem como a indicação de dia e hora para recolher o fardamento de modo a poder apresentar-se no dia 07/09 no posto de trabalho.
Manifestou ainda disponibilidade para assinar declaração ou documento que fosse designado por contrato de trabalho, desde que fosse acautelada a antiguidade, a dispensa de período experimental e o reconhecimento do direito a férias, subsídio de ferias e de natal vencidos até ao dia 06/09/2023, dizendo que não queria iniciar funções na empresa em situação de conflito, mas que se fosse violado algum dos seus direitos seria obrigada a desenvolver todas as diligências para que os mesmos sejam respeitados, incluindo o recurso às via judiciais, o que gostaria de evitar.
A recorrida, respondeu por email do dia 05/09/2023, aceitando expressamente a transmissão do contrato de trabalho da autora, com salvaguarda da “respetiva categoria profissional, antiguidade, retribuição e demais condições resultantes do correspectivo contrato de trabalho” e solicitando à recorrente que comparecesse nas suas instalações no dia seguinte de manhã, para que fosse dado cumprimento ao disposto no Código do Trabalho e para aquela recolher o fardamento, informando que o custos da deslocação seriam suportados pela empresa.
A recorrente respondeu nesse mesmo dia (05/09/2023), confirmando a sua presença, afirmando que a documentação passível da sua assinatura se deveria encontrar em duplicado e com a assinatura da administração por forma a ter validade legal, podendo a assinatura ser substituída pelo envio antecipado dos documentos por email, afirmando que teria de se ausentar do local e trabalho para se deslocar às instalações da recorrida e solicitando informação sobre quais os valores que seriam suportados pela recorrida e sobre a forma de retribuição dos mesmos.
Solicitou ainda a marcação de exame médico, referindo ainda que: “relembro também, conforme indicado na minha correspondência anterior, que disponho de horário flexível (9h às 17h) em virtude de ser progenitora de uma menor, como forma a assegurar as deslocações e respetivas tarefas inerentes à deslocação da criança para o Estabelecimento de Ensino.”
A recorrida respondeu no mesmo dia (05/09/2023) e informou a recorrente de que poderia deslocar-se à sede após as 17h e que suportaria as despesas com a deslocação mediante apresentação de comprovativo.
Esta troca de comunicações deixa entrever uma postura de uma certa desconfiança e até hostilidade da recorrente face à recorrida, antecipando aquela, diga-se em crescendo, uma série de comportamentos da recorrida que, pelo menos, nessa data nada fazia prever (veja-se que a recorrente desconhecia o teor do “novo” contrato e que a recorrida afirmou desde logo e por escrito, como a própria recorrente solicitou, aceitar a transmissão do contrato e salvaguardar a categoria, antiguidade, retribuição e demais condições resultantes do contrato de trabalho em vigor), bem como anunciando recurso à via judicial, se necessário.
No dia 06/09/2023 a recorrente compareceu nas instalações da recorrida, onde lhe foram apresentados diversos documentos para assinar, previamente elaborados pela recorrida, sem qualquer intervenção da recorrente.
Tratava-se, entre outros, de um contrato de trabalho sem termo, de uma adenda ao contrato de trabalho sem termo, de um acordo de horário concentrado, de uma declaração de aceitação do regime de adaptabilidade, de uma declaração de formação de segurança e saúde no trabalho, de um acordo de gozo de férias e de um acordo de cumulação de funções.
A recorrente recusou assinar tais documentos, invocando a assunção pela ré da existência de um contrato de trabalho prévio e que os seus direitos estavam a ser violados, sendo certo que não pretendia aceitar o horário concentrado, a possibilidade de ser transferida para qualquer outro local de trabalho em Portugal Continental constante do contrato, nem aceitava declarar o recebimento de EPI´s quando nenhum lhe tinha sido entregue ou que tinha recebido formação sem que do documento constassem as concretas datas, bem como não aceitava a cumulação de férias antecipadamente.
Nesse mesmo dia, a recorrida enviou à recorrente uma carta registada, dando-lhe nota de que não compreendia a recusa de assinatura do contrato de trabalho, e de que tratando-se de requisito essencial, não poderia prestar funções até à assinatura do contrato, ficando a aguardar que a recorrente se pronunciasse e se deslocasse à empresa para proceder à assinatura.
Importa salientar que a condição imposta pela recorrida para o início da prestação de funções foi a assinatura do contrato de trabalho e não assinatura de qualquer outro dos documentos supra mencionados.
Ora, nos termos do disposto pelo art.º 21.º Lei n.º 34/2013, de 16/05 «Os contratos de trabalho do pessoal de vigilância, do coordenador de segurança e do diretor de segurança revestem a forma escrita, devendo expressamente mencionar a especificidade de cada função.»
É deste preceito que a recorrente retira que a celebração do contrato escrito constitui condição para a execução do contrato de trabalho.
Não temos dúvidas de que para o exercício da atividade de vigilância, regulado pela Lei supra citada, é imprescindível a celebração de contrato de trabalho escrito, o que se justifica, tendo em atenção o âmbito em que se desenvolve aquela atividade, que reclama que esta seja suficientemente regulada e limitada.
A propósito do âmbito de atuação e funções dos vigilantes, atente-se nas seguintes disposições da referida Lei n.º 34/2013:
«Art. 1º
(…)
3 - A segurança privada e a autoproteção só podem ser exercidas nos termos da presente lei e da sua regulamentação, e têm uma função complementar à atividade das forças e serviços de segurança do Estado.
4 - Para efeitos da presente lei, e sem prejuízo das atribuições das forças de segurança, a proteção de pessoas e bens e a prevenção da prática de crimes pode ser exercida:
a) Por entidade privada que vise a prestação de serviços de segurança privada a terceiros, nos termos da presente lei e regulamentação complementar.
Art. 2.º
(…)
j) «Pessoal de segurança privada» o trabalhador, devidamente habilitado e autorizado a exercer as funções previstas para o pessoal de vigilância, coordenador de segurança e diretor de segurança nos termos da presente lei;
k) «Pessoal de vigilância» o trabalhador, devidamente habilitado e autorizado a exercer as funções previstas na presente lei, vinculado por contrato de trabalho a entidades titulares de alvará ou licença; (…).
art. 3.º
1 - Os serviços de segurança privada referidos na alínea a) do n.º 4 do artigo 1.º compreendem:
a) A vigilância de imóveis e o controlo de entrada, presença e saída de pessoas, bem como a prevenção da entrada de armas, substâncias e artigos de uso e porte proibidos ou suscetíveis de provocar atos de violência no interior de edifícios ou outros locais, públicos ou privados, de acesso vedado ou condicionado ao público, ou ainda a vigilância de bens móveis em espaço delimitado fisicamente;
b) A proteção pessoal, sem prejuízo das competências exclusivas atribuídas às forças de segurança;
c) A monitorização de sinais de alarme:
i) Através da gestão de centrais de receção e monitorização de alarmes;
ii) Através da prestação de serviços de monitorização em centrais de controlo;
iii) Através da prestação de serviços de resposta a alarmes cuja realização não seja da competência das forças e serviços de segurança.
d) O transporte, a guarda, o tratamento e a distribuição de fundos e valores e demais objetos que pelo seu valor económico possam requerer proteção especial e tal seja requerido, sem prejuízo das atividades próprias das instituições financeiras reguladas por lei especial;
e) O rastreio, inspeção e filtragem de bagagens e cargas e o controlo de passageiros no acesso a zonas restritas de segurança nos portos e aeroportos, bem como a prevenção da entrada de armas, substâncias e artigos de uso e porte proibidos ou suscetíveis de provocar atos de violência nos aeroportos, nos portos e no interior de aeronaves e navios, sem prejuízo das competências exclusivas atribuídas às forças e serviços de segurança;
f) (Revogada.)
g) A elaboração de estudos e planos de segurança e de projetos de organização e montagem de serviços de segurança privada previstos na presente lei. (…)
Art. 18º
O pessoal de vigilância apenas pode exercer as funções previstas para as especialidades a que se encontra habilitado com cartão profissional.
2 - O vigilante exerce exclusivamente as seguintes funções:
a) Vigiar e proteger pessoas e bens em locais de acesso vedado ou condicionado ao público, bem como prevenir a prática de crimes;
b) Controlar a entrada, a presença e a saída de pessoas e bens em locais de acesso vedado ou condicionado ao público;
c) Prevenir a prática de crimes em relação ao objeto da sua proteção;
d) Executar serviços de resposta e intervenção relativamente a alarmes que se produzam em centrais de receção e monitorização de alarmes;
e) Realizar revistas pessoais de prevenção e segurança, quando autorizadas expressamente por despacho do membro do Governo responsável pela área da administração interna, em locais de acesso vedado ou condicionado ao púbico, sujeitos a medidas de segurança reforçada. (…)»
Compreende-se, pois, que o contrato de trabalho escrito, ao contrário do que sucede para a generalidade das profissões, seja uma formalidade essencial da constituição da relação laboral entre um trabalhador com funções de vigilante a empresa autorizada a exercer tal atividade, pela titularidade de alvará ou licença.
Mas, essa exigência, que se justifica no momento da constituição do vínculo laboral, não significa que, em caso de transmissão da posição de empregador, seja exigível a assinatura de novo contrato, enquanto condição da transmissão, da existência ou execução do contrato de trabalho. Nesse caso, não se trata da constituição do vínculo laboral, mas apenas da sua modificação no que respeita à identidade do empregador.
De facto, dispõe o art.º 285.º, n.º 1 do Código do Trabalho que «Em caso de transmissão, por qualquer título, da titularidade de empresa, ou estabelecimento ou ainda de parte de empresa ou estabelecimento que constitua uma unidade económica, transmitem-se para o adquirente a posição do empregador nos contratos de trabalho dos respectivos trabalhadores, bem como a responsabilidade pelo pagamento de coima aplicada pela prática de contra-ordenação laboral.»
A transmissão não afeta a subsistência do contrato de trabalho, nem o respetivo conteúdo, tudo se passando em relação aos trabalhadores, como se a transmissão não tivesse acontecido, mantendo-se inalterados os respetivos contratos de trabalho e assumindo o adquirente os direitos e obrigações emergentes dos contratos de trabalho celebrados com o anterior empregador. Os contratos de trabalho não só subsistem como continuam os mesmos, tudo se passando como se não tivesse acontecido qualquer alteração do empregador.
Nessa medida, o disposto pelo art.º 21.º da Lei 34/2013 ao exigir que os contratos de trabalho do pessoal de vigilância têm de revestir a forma escrita, não pode ser lido como exigindo que, sempre que se verifique a transmissão de uma unidade económica, os trabalhadores por ela abrangidos cujos contratos de trabalho se transmitem para o adquirente, estejam obrigados a celebrar com este um contrato escrito, sob pena de não poderem continuar a prestar a sua atividade, já que para que opere a transmissão da posição de empregador o contrato tem de existir no momento da transmissão e que por via dela tal contrato se mantém.
Porém, nos casos de transmissão da posição de empregador num contrato de trabalho por via da transmissão da unidade económica, a exigência de forma do contrato a que se refere o citado art.º 21.º, só se mostra cumprida se o contrato ao abrigo do qual o trabalhador exerce a sua atividade de vigilante antes da transmissão e que se mantém após esta, estiver já reduzido a escrito, pois tal exigência reporta-se à constituição do vínculo e não à sua transmissão.
No caso dos autos, não foi questionada a existência do contrato entre a recorrente e a B..., a transmitente, no momento da transmissão da unidade económica, nem os efeitos de tal transmissão no que respeita à continuidade do vínculo laboral com a recorrida. Contudo, não resulta dos autos que a recorrente prestava a sua atividade no local abrangido pela transferência da unidade económica ao abrigo de um contrato de trabalho reduzido a escrito. É certo que não ficou provado o alegado pela recorrida na contestação, segundo o que, na altura da transmissão, a empresa transmitente, B..., não remeteu os contratos escritos dos trabalhadores transmitidos, mas tal não significa que se tenha provado a existência do contrato escrito prévio. Veja-se que a própria recorrente, alegou a existência do contrato de trabalho mas nunca que ele tinha sido reduzido a escrito, suportando, de resto, a alegação apenas nos recibos de vencimento (art.º 1,º da p.i.), não tendo junto, como lhe competia, qualquer documento escrito que corporizasse a sua admissão e as condições contratuais.
Por isso, no caso dos autos era exigível à recorrente a assinatura de um documento escrito do qual contassem as condições contratuais em vigor, o que era efetivamente imprescindível para a prestação de trabalho como vigilante.
Assim, a exigência pela recorrida, de assinatura do contrato, em si mesma, nem foi ilícita, nem se pode, sem mais, concluir que violasse qualquer direito da recorrente.
Ainda assim, importa perceber se de tal documento resultava qualquer degradação, unilateralmente imposta pela empregadora, das condições contratuais vigentes à data da transmissão.
Ora, desconhecendo-se a globalidade das condições contratuais que vigoravam entre a recorrente e a B..., em face do teor da minuta do contrato que foi enviada à autora (documento n.º 10 da p.i), cuja única diferença relativamente ao documento que lhe foi apresentado para assinar no dia 06/07/2023 consiste no facto de não estar preenchido com os elementos de identificação da autora, não é possível afirmar a existência de qualquer violação dos direitos da autora, incluindo no que respeita à possibilidade de transferência de local com a abrangência de todo o território de Portal continental, que se desconhece se existia ou não anteriormente.
Acresce que, tal como resulta do documento n.º 14 junto com a petição inicial, que constitui o teor da reclamação que a autora inscreveu no livro de reclamações da recorrida no dia 06/09/2023, quando se deslocou às instalações desta para a assinatura dos documentos, a queixa da autora referia-se ao facto de lhe ter sido apresentado para assinar um contrato de trabalho que violava a lei - sem que ali tenha sido indicada qualquer concreta violação - e ao facto de tal contrato não estar assinado por nenhum representante da recorrida, sendo-lhe dito que o contrato lhe seria enviado posteriormente. Nada foi referido quanto ao mais, o que se estranha, já que face ao teor das comunicações anteriores que a recorrente dirigiu à recorrida, era expectável que fizesse também nessa oportunidade.
No que respeita aos demais documentos que foram apresentados à recorrente para assinar no dia 06/09, não podemos começar por deixar de salientar que, não se encontra na matéria de facto provada motivo para que a recorrente não aceitasse assinar, pelo menos, a declaração de adaptabilidade, já que ficou provado que prestava serviço para a B... nesse mesmo regime.
Acresce que, importa referir que na sequência da transmissão da unidade económica e consequentemente da posição de empregadora, mantendo-se o contrato de trabalho, nada obsta à modificação das condições contratuais vigentes à data da transmissão, desde que as mesmas se contenham dentro dos limites da legalidade e sejam acordadas pelas partes. Assim, nenhuma censura merece a apresentação à autora dos ditos documentos, sendo esta livre de os assinar ou não.
O que releva é que do facto de a autora não os assinar não resulte nenhuma consequência negativa na sua esfera jurídico-laboral. E não se provou que qualquer consequência dessa natureza tenha efetivamente existido. Relembra-se que a condição imposta pela recorrida para o início da prestação de funções foi a assinatura do contrato de trabalho e não assinatura de qualquer outro dos documentos supra mencionados.
Acrescenta-se que, do exposto resulta que também não se encontra motivo para que a recorrente se sentisse humilhada ou constrangida por qualquer das supra descritas atuações da recorrente ou que tal tenha efetivamente acontecido.
Retornamos agora ao momento em que ficámos. A recorrida, depois da recusa de assinatura do contrato, ficou a aguardar que a recorrente se pronunciasse e que assinasse o contrato, o que lhe comunicou por carta registada. Ainda assim, no dia 07/09/2023 a recorrente foi informada de que deveria ir fazer exames médicos no dia 09/09/2023 pelas 8h40, o que cumpriu.
Ignora-se quando é que a recorrente recebeu a referida carta registada tendo-se, no entanto, apresentado no seu anterior local de trabalho, sito na Casa Museu ... no dia 08/09/2023, sendo que no dia 07/09/2023, data em que produziu efeitos a transmissão do contrato de trabalho, a recorrente se encontrava de folga.
Aí, inexistia o fardamento necessário e a recorrente foi informada por um colega de trabalho de que não existia indicação para que ela iniciasse funções naquele local, impedindo-a de entrar, sendo-lhe transmitido que não tinham indicações e para se deslocar à sede.
Ora, considerando que a recorrente não tinha assinado o contrato, bem como o teor da carta registada de 06/09/2023 acima referida, a atitude da recorrida mostra-se como justificada, pois, não estavam reunidas as condições para que aquela pudesse iniciar a prestação de trabalho, sendo excessiva a conduta subsequente da recorrente que chamou a PSP ao local para registar a ocorrência, “por recear ser acusada de absentismo”, quando não podia ignorar que não tinha assinado o contrato e que tal era essencial para iniciar as suas funções.
Ainda no mesmo dia 08/09/2023, a recorrente enviou novo email à recorrida relatando o que tinha sucedido no local de trabalho e solicitando o envio da escala de serviço e do fardamento e que o contacto deveria ser feito por email, por carta para o seu domicílio ou através do representante já antes identificado, não aceitando qualquer informação telefónica.
Seguiu-se, nesse mesmo dia, novo email, da recorrida, designadamente do seu departamento jurídico, no qual, além do mais, foi manifestada a surpresa pela deslocação da recorrente ao posto de trabalho, quando sabia que estava a incumprir os requisitos para iniciar as funções e foi a recorrente informada de que consideravam que ela estava a incorrer em faltas, pedindo-lhe que, para suprir a situação, aquela, se possível naquele mesmo dia, se deslocasse à sede, suportando a recorrida as inerentes despesas, para regularizar a situação.
A recorrente respondeu, referindo, além do mais, que não aceitava que lhe apresentassem um documento apelidado de contrato de trabalho para assinar numa sala sozinha sem qualquer apoio e sem que o pudesse mostrar a ninguém e do qual não lhe facultaram cópia e onde teria que prescindir de todos os créditos devidos até 06/09, solicitando ainda que a recorrida concretizasse por escrito quais os requisitos necessários para operar a transmissão que teria incumprido e comunicou que, no caso de não lhe responderem esse dia, na segunda feira se apresentaria de novo no posto de trabalho e se não lhe fosse permitido exercer funções, deslocar-se-ia à sede para que lhe fossem entregues os documentos que pretendiam que ela assinasse, comprometendo-se a devolvê-los já assinados no dia imediatamente seguinte.
A autora nunca antes tinha referido que os documentos lhe tinham sido apresentados para assinar sozinha numa sala, sem qualquer apoio e sem que o pudesse mostrar a ninguém. E sublinha-se que não se provou que tal tenha efetivamente acontecido, não se confundindo as afirmações da autora na troca de comunicações com a recorrida, com a prova ou a verdade dos factos.
No dia 11/09/2023, segunda-feira, a recorrente apresentou-se no dito posto de trabalho, onde lhe foi transmitido por um trabalhador da recorrida que não existia uniforme para ela e que não podia iniciar funções.
Em consequência a recorrente chamou, de novo, a PSP ao local e nesse mesmo dia foi às instalações da ré para solicitar o uniforme e cópias dos documentos que a recorrida lhe tinha solicitado que assinasse no dia 06/09. Nesse dia não estava presente ninguém responsável da administração, pelo que a situação não foi sanda.
Ora, também aqui não se vislumbra qualquer atitude censurável por parte da recorrida, suscetível de gerar humilhação ou constrangimento à recorrente, pois, a falta de assinatura do contrato mantinha-se e a circunstância de não estar ninguém presente da administração, sempre deveria ter sido prevista pela recorrente, pois a sua deslocação apenas foi comunicada na sexta feira anterior, por email das 16h07, como se extrai do documento 16 junto com a p.i.
A autora voltou, ainda assim, a pedir o livro de reclamações fazendo dele constar que não lhe tinham sido entregues os documentos para proceder à transmissão do estabelecimento.
A recorrente revela, quer no email do dia 08/09/2023 (facto provado 26), quer no teor desta reclamação, lavrar num erro manifesto. Na verdade, talvez influenciada por outras eventuais situações de conflito em que as empresas transmissárias não aceitam a transmissão dos contratos dos vigilantes que exercem funções num determinado local de trabalho, como resulta bem evidente da carta de 02/09/2023, já acima referida, e dos documentos supra mencionados, tratou a questão, mesmo que afirmado a sua disponibilidade para trabalhar, como se a recorrida se recusasse a, no caso vertente, aceitar a transmissão do contrato de trabalho, o que não foi o caso, tendo a recorrida, desde o início, e por escrito, assumido a transmissão do contrato de trabalho da autora.
Nesta altura, a recorrente entrou de férias que perduraram até 29/09/2023 e no dia 26/09 enviou nova comunicação à recorrida, reiterando as comunicações anteriores quanto à disponibilidade para exercer funções e à necessidade de lhe entregarem os fardamento e de lhe comunicarem as escalas mensais, dizendo que se para tal lhe dessem instruções se deslocaria à sede, mas não assinaria nenhum documento que não lhe fosse dado previamente a conhecer ou algum em que voluntariamente estivesse a limitar os seu direito.
A recorrida, por email do mesmo dia 29/09/2023 enviou à recorrente “adenda alterada” para que pudesse ter conhecimento prévio, examiná-la com o mandatário e devolvê-la assinada de modo a ser assinada pelos administradores que apenas estariam presentes na sede na semana seguinte, aconselhando-a a ir à sede para recolher o fardamento para se poder apresentar ao trabalho, e referindo que “a ausência ao trabalho consubstancia a marcação de faltas, o que não se pretende, pois já foram causados enormes transtornos à empresa, face aos meios humanos em falta.”
A recorrente respondeu no mesmo dia, e além do mais, transcreveu na íntegra o documento que a recorrente lhe enviara para assinar, por necessidade de que “ficasse claro e público o que se dispunha a assinar” e comunicou que se deslocaria à sede no dia seguinte, mas apenas estaria disponível para assinar aquele documento.
No dia 02/10/2023, data acordada, a recorrente foi à sede, procedeu à entrega do documento denominado adenda ao contrato de trabalho assinado, procedeu ao levantamento da farda para iniciar as suas funções de vigilante no posto que lhe estava afeto, tendo-lhe sido transmitido que iria ser contactada pelo supervisor a fim de ser informada da data de início das suas funções.
O conflito não ficou, porém sanado!
A recorrente, em 04/10/2023, inexistindo qualquer contacto a comunicar o início de funções, enviou email, a solicitar informação sobre a escala de serviço, tendo-lhe sido comunicado, no dia 11/10/2023, que iniciaria funções no dia 13/10/2023 tendo recebido, em 12/10/2023, a escala de serviço.
A recorrente iniciou, então, funções no dia 13/10/2023.
A recorrida, no final do mês de Setembro, não procedeu ao pagamento do vencimento correspondente a esse mês. A recorrente, em Setembro, não prestou qualquer dia de trabalho, porque não assinou o contrato de trabalho (e já vimos que sem fundamento), porque esteve de férias até 29/09 e porque a assinatura do contrato só ocorreu no dia 02/10/2023, data acordada pelas partes e a partir da qual ficou reuniu as condições para iniciar funções.
Ora, nos dias em que a recorrida considerou que a recorrente havia faltado injustificadamente, a não ser que tal viesse a ser posteriormente considerado sem fundamento, a recorrente não tinha direito a receber a retribuição (art.º 256.º, n.º 1 do CT). Já relativamente ao período em que gozou férias, que a recorrida aceitou, tal direito manteve-se (art.º 237.º, n.º 1 e art.º 264.º, ambos do CT).
Não se demonstrou, contudo, que a falta de pagamento atempado da retribuição, foi um meio de punição e chantagem, como alegou a recorrente.
Quando a autora iniciou efetivamente funções, em 13/10/2023, a falta de pagamento subsistia, não obstante variadas interpelações à recorrida para a regularização da situação, pelo que a recorrente enviou uma carta registada com a/r, que a recorrida recebeu em 18/10/2023, manifestando a intenção de suspender o contrato devido à falta de pagamento da retribuição no valor de € 660,59, a partir de 25/10/2023.
Não foi questionada a licitude da atuação da recorrente que tem respaldo no disposto pelo art.º 325.º do CT, tendo a recorrida informado, também por carta registada de 23/10/2023, que estavam a ser retificados os valores relativos ao mês de setembro, de modo a serem pagos, justificando a demora pelo facto de a B... não ter fornecido os planos de férias dos trabalhadores, tendo recebido apenas os que foram enviados por estes, efetuando as correções dos pagamentos com base nessa informação e concluindo que uma vez que a situação iria ser retificada, padecia de fundamento o alegado, considerando que o contrato se mantinha em curso.
No dia 25/10/2023 a ré procedeu ao pagamento da quantia de € 438,19 (tendo procedido ao desconto de € 259,40 relativos a 9 dias de faltas injustificadas) e enviou carta registada à recorrente, alegando que tinham a informação e que lhe havia sido comunicado que a retribuição de setembro estaria disponível para pagamento através de cheque nas respetivas instalações, tendo em consideração a falta de comunicação dos planos de férias e que, não tendo a recorrente compreendido, nem ponderado tal situação imputando mais uma vez a responsabilidade à empresa, informavam que o pagamento da retribuição e das despesas de deslocação efetuadas à sede tinha sido efetuado nesse dia, por transferência bancária, considerando que o contrato se mantinha em vigor, apesar de a autora não ter comparecido ao trabalho nesse dia.
A existência do cheque nunca havia, no entanto, sido comunicada à recorrente e daquela comunicação não resulta sequer em que data ele teria ficado disponível.
Certo é que, antes de receber a carta de 25/10/2023, no dia 26/10/2023, por email, a recorrente, acusando o recebimento da quantia paga, informou a recorrida de que, apesar de aquela quantia ser inferior à devida, cessaria a suspensão do contrato no dia seguinte (estando de folga nos dias 27 e 28/10), tendo continuado a exercer as suas funções.
Ora, o facto de o pagamento ter sido feito no dia em que se iniciava a suspensão do contrato, não pode ser entendido nos termos em que a recorrente o faz. Na verdade, a recorrida informou que os valores devidos relativos ao mês de setembro estavam a ser retificados, justificando a demora no pagamento pelo facto de não lhe terem sido entregues pela B... os planos de férias dos trabalhadores para o período posterior à transmissão. Ignora-se se tal omissão se verificou, mas na apreciação da conduta da recorrida não podemos deixar de considerar que setembro foi o mês da concretização da transmissão que produziu efeitos em 07/09/2023, o que, se não justifica a falta de pagamento atempado, pelo menos mitiga a culpa da recorrida pelo incumprimento. E não se vislumbra qualquer relevância, do ponto de vista do assédio à recorrente, do facto de o pagamento ter sido efetuado no dia em que se iniciava a suspensão e para a evitar, constituindo o pagamento uma das forma de cessação da suspensão nos termos do art.º 327.º, al. b) do CT.
Acresce que não ficou provado, nem se infere, qualquer intenção da recorrida de punir ou chantagear a recorrente, sendo nesta perspetiva inócuo o tempo decorrido desde a comunicação da intenção de suspensão do contrato até ao pagamento.
No email de 26/10/2023 a recorrente solicitou o envio do recibo, reclamou o pagamento das despesas de deslocação à sede, solicitou que fosse considerado o regime de horário flexível que não tinha sido acautelado na escala que lhe havia sido enviada, o que reiterou, por email de 27/10/2023, solicitando o pagamento dos valores remanescentes e os recibos de vencimento para apuramento do cálculos feitos pela recorrida.
Em Outubro de 2023 a recorrida pagou à recorrente € 645,21, tendo descontado a quantia de € 86,50 relativa a 3 faltas injustificadas e a quantia de € 201,82 relativa a 7 faltas justificadas, pelo que a recorrente, por email de 01/11/2023, solicitou novamente os recibos de vencimento ou em alternativa o acesso ao portal da empresa, bem como solicitou a retificação das escalas tendo presente o horário flexível que continuava a não ser acautelado, a comunicação à Segurança Social da qualidade de funcionária e a entrega dos descontos devidos e o pagamento das quantias em dívida.
Entretanto, no dia 06/11/2023 a recorrente entrou de baixa médica até 17/11/2023, situação em que também esteve de 22/11/2023 a 03/12/2023, com prorrogação de 04/12/202 a 18/12/2023 e de 17/12/2023 até 02/01/2024, ou seja, a recorrente esteve de baixa médica desde 06/11/2023 até à cessação do contrato, com interregno nos dias 18/11/2023 a 21/11/20223, período em que se ignora se a recorrente se apresentou ao trabalho.
Em 20/11/2023, após várias insistências, foi cedido à recorrente o acesso ao login da página da recorrida, acedendo então a recorrente aos recibos de setembro e outubro de 2023, tendo em 21/11/2023, por email, referido que a postura da recorrida vinha sendo desde o início reveladora de má-fé, estando a afetar a sua saúde psicológica e causar graves prejuízos financeiros, tendo procedido a descontos por faltas justificadas e injustificadas que a recorrida sabia que não tinham ocorrido, com exceção de 3 dias em outubro justificadas por atestado médico, solicitando o pagamento das quantias em falta, sob pena de intentar ação judicial onde além de tais quantias, não deixaria de “peticionar outro tipo de danos”, e de efetuar participações às autoridades competentes das infrações disciplinares (esta referência será certamente um lapso) às autoridades competentes.
Em Novembro, a recorrida pagou à recorrente as quantias de € 259,47 que havia descontado em setembro por 9 faltas injustificadas e a quantia de € 86,49 que havia descontado em outubro por faltas injustificadas.
Relativamente ao mês de setembro a recorrida declarou à Segurança Social a retribuição de € 691,95, tendo os correspondentes descontos sido efetuados num primeiro momento relativamente ao montante de € 432,84 (correspondente ao valor bruto da retribuição paga em setembro) e num segundo momento relativamente ao montante de € 259,47 (valor referente a setembro, restituído à recorrente em novembro). Relativamente ao mês de Novembro a recorrente declarou à Segurança Social € 201,83 respeitante a 7 dias de trabalho, € 39,92 respeitante a subsídios, € 864,96 respeitante a subsídio de Natal e € 3,40 relativo a subsídio de refeição.
Em 18/12/2023, ainda durante a baixa médica, a recorrente voltou a reclamar da recorrida o pagamento de quantias (€ 90,20; € 201,82; € 57,66 e € 28,33) descontadas por faltas que alegou não terem ocorrido, referindo ainda que as quantias comunicadas à Segurança Social são diferentes das pagas, motivo pelo qual tinha efetuado participação aquela entidade, ao que a recorrida respondeu em 27/12/2023, que não existiam quaisquer quantias em dívida, tendo os descontos sido repostos, e solicitando que a recorrente explicasse os montantes cujo pagamento tinha solicitado.
Ora, não se duvida de que no que respeita ao pagamento das retribuições a atuação da recorrida foi confusa, com avanços e recuos e que dela resultaram para a recorrente e para o seu agregado familiar constrangimentos financeiros que a levaram a ter de recorrer a empréstimos junto de familiares e amigos para fazer face aos encargos da sua vida.
Mas, a matéria de facto provada não permite inferir que tal atuação tenha tido em vista humilhar ou vexar a recorrente ou constrangê-la com o objetivo de a levar a cessar o contrato de trabalho, ou sequer que tenha sido esse o efeito causado, antes revela uma enorme desorganização da parte da recorrida, à qual não terá sido alheia a tardia estabilização formal da relação contratual com a recorrente e o facto de esta apenas ter prestado efetivamente trabalho a partir de 13/10 e até 05/11/2023, ou seja, menos de um mês, durante o qual, ocorreram ainda, pelo menos 3 dias de baixa médica (29, 30 e 1/10) e um dia de suspensão do contrato (25/10/2023). No mesmo sentido, refere-se que a recorrida regularizou as retribuições pagas à recorrente, devolvendo quantias descontadas indevidamente, regularizou também a situação junto da Segurança Social, em conformidade com os valores que efetivamente pagou, não tendo qualquer sustentação o invocado prejuízo para a carreira contributiva da recorrente.
Através da carta da recorrida de 27/12/2023, a recorrente foi também informada de que a escala de serviço se encontrava no posto de trabalho, nos termos da legislação em vigor e poderia lá ser consultada ou, em alternativa, que a recorrente se poderia deslocar à sede da empresa, onde lhe seria entregue a escala em mão.
A circunstância de a recorrida não ter enviado a escala por email, podendo fazê-lo e de todas as empresas de vigilância enviarem escalas semanais ou mensais aos vigilantes por essa via é totalmente inócua, sendo a recorrida livre de se organizar da maneira que bem entender, independentemente do modo como outros o façam, não tendo a recorrente legitimidade para impor à empresa um determinado modo de funcionamento, sendo o adotado, manifestamente legal.
Por outro lado, sendo compreensível a necessidade da recorrente conhecer o seu horário para poder organizar a vida familiar, sobretudo porque a recorrida nem sequer vinha acautelando o regime de horário flexível, nem por isso o episódio que ocorreu em 30/12/2023 pode ser configurado como assediante.
De facto, na sequência da informação prestada pela recorrida pela carta de 27/12/2023, a recorrente, talvez porque tencionaria apresentar-se ao trabalho, sendo que nada ficou provado a esse respeito, no dia 30/12/2023 deslocou-se ao posto de trabalho e aí foi-lhe transmitido que por instruções do Chefe de Grupo, Sr. NN, não era permitido à recorrente consultar a escala, voltando esta a chamar a PSP.
Ora, diga-se antes de mais, que se ignora o contexto em que a recorrida comunicou que a escala estava no posto de trabalho, pois apesar de a carta de 27/12 ter sido envida pela recorrida em resposta à comunicação da recorrente de 18/12, desta nada resulta a propósito da escala. Por outro lado, não resulta da matéria de facto que a recorrente tenha comunicado quando é que se apresentaria ao serviço após a cessação da baixa médica que vinha sendo prorrogada, sendo que enquanto esta situação se mantivesse a recorrente certamente não constaria da escala, inexistindo fundamento para consultar uma escala que não se lhe reportaria.
Acresce que não se pode também concluir que a recorrida assumiu um comportamento contraditório, desrespeitador da recorrente, ao informá-la, por um lado, que a escala estava no posto de trabalho, mas sem referir a que data se reportava, e por outro lado, não sendo permitida a consulta da escala no posto de trabalho por instruções do chefe de grupo (veja-se que nem se sabe se tais instruções haviam sido dadas pela recorrida ou se eram da iniciativa do dito chefe de grupo, ou sequer que a recorrida disso tivesse conhecimento).
Finalmente não deixaremos de referir que apesar de a recorrente, desde o email de 05/09/2023 (facto provado 5), anterior à produção de efeitos da transmissão, ter informado a recorrida de que dispunha de horário flexível (9h às 17h) em virtude de ser progenitora de uma menor, como forma de assegurar as deslocações e respetivas tarefas inerentes à deslocação da criança para o estabelecimento de ensino, o que reiterou em comunicações subsequentes, a recorrida atribuiu-lhe o horário das 8h às 16h. Mas fê-lo em virtude de desconhecer a atribuição do horário flexível pela B..., como ficou provado em 153 (que se interpreta no sentido do desconhecimento se reportar à falta de comunicação pela B..., face ao alegado em 33.º e 34.º da contestação com base no qual foi considerado provado o teor do facto 153) e, apesar de ter ficado provado que a recorrente prestava serviço para a B... nesse regime (ponto 121) nada resulta da matéria de facto quanto à apresentação pela recorrente à recorrida de qualquer documento comprovativo de tal situação, ou da formalização do pedido perante a recorrida para os efeitos previstos pelo art.º 57.º do CT.
Neste contexto, e na falta de prova de qualquer intenção da recorrida de afetar a dignidade, ou o bem estar psicológico da recorrente ou de que foi essa a consequência produzida, não se pode concluir que o eventual incumprimento da recorrida, configure uma ato assediante.
Concluímos, pois, que a matéria de facto provada retrata uma situação laboral de tensão e conflito, um ambiente que pode ser considerado de alguma hostilidade, mas recíproca, no qual a recorrida assumiu um papel algo errático para com a recorrente, mas em que esta assumiu um papel de confronto permanente mesmo antes o início da reação laboral, e por vezes injustificado, devendo ambos os posicionamentos ser apreciados à luz do concreto momento em que ocorreram, importando não esquecer que o assédio não se confunde, como já afirmámos acima, com situações de mera tensão laboral decorrente do conflito entre os interesses opostos, do empregador e do trabalhador.
Nesta medida, não merece censura a sentença recorrida, ao concluir que analisados os factos dados como provados na sua globalidade, não é possível considerar que no caso concreto existiu assédio contra a trabalhadora, improcedendo a justa causa invocada para a resolução do contrato, naquele fundamentada (art.º 394.º, n.º 2, als. b) e f) do CT).
Não podemos, de todo o modo, face à alegação da recorrente, quer na petição inicial, quer no presente recurso, deixar de analisar se a situação acima retratada preenche, individualmente consideradas, as alíneas a), b), 1.ª parte e e) do n.º 2 do citado art.º 394.º.
A alínea a) reporta-se à falta culposa de pagamento pontual da retribuição e a alínea e) à lesão culposa de interesses patrimoniais sérios do trabalhador.
O preenchimento de qualquer uma destas previsões depende da demonstração de que o comportamento do empregador foi culposo e tornou imediata e praticamente impossível a manutenção da relação de trabalho.
No que respeita à questão dos descontos para a Segurança Social que a recorrente alegou que prejudicaram a sua carreira contributiva, tendo a recorrente regularizado a situação relativamente aos meses de setembro e outubro, na sequência da restituição à autora de quantias indevidamente descontadas, é evidente que não se pode concluir pela lesão de interesses patrimoniais da recorrente. E diga-se que, ainda que a situação não tivesse sido regularizada, atentos os valores em falta, nunca se poderia, sem mais, concluir estarem em causa interesses patrimoniais da recorrente suficientemente sérios para tornarem imediata e particamente impossível a subsistência da relação de trabalho.
No que respeita à falta de pagamento pontual da retribuição está em causa a retribuição de setembro de 2023 que a recorrida só pagou em 25/10/2023.
Estabelece o art.º 394.º, n.º 5 do CT que se considera culposa a falta de pagamento pontual da retribuição que se prolongue por período de 60 dias.
Tal como refere João Leal Amado
[9]
, afigura-se-nos que «neste tipo de casos, em que a mora do empregador excede estes marcos temporais, mais de que uma mera presunção juris tantum de culpa, estabelece-se uma ficção legal de culpa patronal na falta de pagamento da retribuição (a qual, portanto, não admite prova em contrário)».
Por outro lado, importa considerar que o art.º 799.º, n.º 1 do Código Civil, estabelece uma presunção ilidível de culpa do devedor.
A única interpretação razoável e harmoniosa da conjugação dos dois preceitos é a de que a presunção, ilidível, constante do art.º 799.º, n.º 1, do Cód. Civil se aplicará ao caso de atraso no pagamento da retribuição inferior a 60 dias. Por sua vez a ficção legal ou presunção, esta inilidível, constante do art.º 394.º, n.º 5, do CT aplicar-se-á aos casos de atraso, que se prolongue por 60 dias ou mais, no pagamento da retribuição.
No caso, o pagamento retardou 25 dias (admitindo-se que a retribuição era devida no fim do mês), pelo que não é aplicável a presunção prevista pelo art.º 394.º, n.º 5 do CT.
E, ainda que a culpa da recorrida se presuma nos termos do art.º 799.º, n.º 1 do Código Civil, nunca se poderia concluir que, no caso concreto, a falta de pagamento constitui justa causa de resolução do contrato porque, também aqui, da matéria de facto provada não resulta que a manutenção do contrato e trabalho se tenha tornado imediata e particamente impossível.
Na verdade, para a justa causa de resolução do contrato com este fundamento, é necessária a verificação cumulativa de três requisitos: um de natureza objetiva – não pagamento da retribuição, pontualmente; outro de natureza subjetiva - que essa falta de pagamento seja imputável ao empregador a título de culpa; e o terceiro - que essa conduta do empregador torne imediata e praticamente impossível a manutenção da relação laboral.
Ora, no caso concreto, não podemos deixar de levar em conta, além do contexto em que a situação ocorreu já acima suficientemente detalhada, que a própria recorrente não atribuiu relevância determinante e autónoma à falta de pagamento da retribuição de setembro, pois, quando resolveu o contrato, já a situação estava regularizada, e só a invocou passados mais de 3 meses após a falta de pagamento e mais de 2 meses após o recebimento da quantia em falta. Não esquecemos que a recorrente esteve de baixa desde 06/11/2023 até à cessação do contrato, mas, nos termos do disposto pelo art.º 295.º, n.º 3 a suspensão do contrato não obsta a que as partes façam cessar o contrato nos termos gerais, o que a recorrente optou por não fazer mais cedo.
Não se mostra, pois, no caso concreto, preenchida a causa de resolução do contrato de trabalho consagrada pelo art.º 394.º, n.º 1 e 2, alínea a) do CT.
O mesmo acontece quanto à invocada violação do dever de ocupação efetiva que a recorrente sustenta no facto de, tendo assinado o contrato em 02/10/2023, ficando reunidas todos os requisitos para iniciar a prestação de trabalho, a recorrente só lhe comunicou o início de funções a partir de 13/10/2023, tendo ficado 10 dias sem prestar trabalho.
Do art.º 129.º,n.º 1, al. b) do CT resulta que é proibido ao empregador obstar injustificadamente à prestação efetiva de trabalho, o que constitui uma das garantias do trabalhador.
E, em bom rigor, não se mostra justificado o motivo pelo qual, a recorrida, deu instruções à recorrente para iniciar a prestação de trabalho a partir de 13/10/2023, quando em 02/10 ficaram reunidas as condições para o efeito.
Contudo, não se descortina qualquer consequência que tenha resultado dessa circunstância com gravidade bastante para determinar a cessação do contrato, pois, a recorrida pagou a retribuição à recorrente, pelo menos em parte e, tal como aconteceu relativamente à falta de pagamento da retribuição, a recorrente não atribuiu relevância determinante e autónoma a esta situação, só resolvendo o contrato em 03/01/2024, mais de dois meses após o início de prestação da atividade.
A não atribuição do horário flexível, constituiria uma situação grave para fundamentar a justa causa de resolução, nos termos do art.º 3394.º, n.º 1, al. b) do CT se dela decorressem, em concreto, consequência graves para a recorrente, mas as mesmas não se depreendem da matéria de facto, já que não se provou que a recorrente tenha ficado impedida de prestar assistência à filha menor, pelo que em si mesma, apreciada nos termos do art.º 394.º, n.º 1 e 351.º, n.º 3, ambos do CT, também não constitui justa causa para a resolução do contrato.
Improcede, pois, o recurso, confirmando-se a sentença recorrida, sem prejuízo das alterações à matéria de facto determinadas supra.
*
Nos termos do disposto pelo art.º 527.º do CPC, as custas são da responsabilidade da recorrente, uma vez que decaiu integralmente no recurso.
*
*
Decisão
Por todo o exposto acorda-se julgar o recurso improcedente, confirmando-se a sentença recorrida, com as alterações à matéria de facto nos termos acima decididos.
Custas pela recorrente.
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Notifique.
*
Porto, 28/04/2025
Maria Luzia Carvalho(Relatora)
Sílvia Gil Saraiva (1.ª Adjunta)
Rui Penha (2.º Adjunto)
_______________________________
[1]
Processo, n.º 701/19.0T8PFR.P1, acessível em
www.dgsi.pt
.
[2]
Processo n.º 811/13.3TBPRD.P1 e no mesmo sentido, entre outros, o Ac. RP de 08/02/2021, Processo n.º 7011/19.0T8PFR.P1, ambos acessíveis em
www.dgsi.pt
.
[3]
Processo n.º 273/06.5TTABT.S1, acessível em
www.dgsi.pt
.
[4]
Processo n.º 2302/17.8T8BRR.L1.S1, acessível em
www.dgsi.pt
.
[5]
Direito do Trabalho, Vol. I, pág. 428 a 430.
[6]
Processo n.º 248/10.0TTBRG.P1.S1, acessível em
www.dgsi.pt
.
[7]
Ac. TRL de 25/10/2023, processo n.º 19979/21.2T8LSB.L1, acessível em
www.dgsi.pt
.
[8]
Processo n.º 248/10.0TTBRG.P1, acessível em
www.dgsi.pt
.
[9]
Contrato de Trabalho – à luz do novo Código do Trabalho, pág. 443.
|
TRP
|
https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/543ea168ba4f29cb80258c9e004e334a?OpenDocument
|
1,745,884,800,000
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IMPROCEDENTE
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1506/12.4TYLSB-L.L1-1
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1506/12.4TYLSB-L.L1-1
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ANA RUTE COSTA PEREIRA
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art.º 663º, n.º 7 do Código de Processo Civil.
1. A apreciação de mérito, total ou parcial, da ação em sede de despacho saneador deve ser reservada para situações excecionais, em que a clareza dos factos e a presença de uma solução de direito praticamente unívoca, autorizam que o tribunal antecipe a fase decisória.
2. É indiscutível a dificuldade de prova da motivação que preside à atuação do detentor/possuidor, já que o
animus
, por contender com matéria volitiva e com convicções pessoais, pode não evidenciar uma exteriorização diferenciada, razão pela qual – prevenindo situações de dúvida - a lei faz presumir a titularidade do direito na esfera jurídica do possuidor (art.º 1268º do Código Civil).
3. Há que apreciar se a sucessão de atos praticados pelo “possuidor” se reflete na definição do direito a que, em cada momento, correspondeu o exercício dos seus poderes de facto sobre a fração, isto é, se o
animus
que acompanhou o
corpus
é contínuo, inalterado e reflete uma persistente atuação correspondente ao exercício de poderes próprios de quem atua convicto de que é proprietário.
4. Não existe fundamento para se recorrer a presunções, ou necessidade de produzir prova acrescida, quando o
animus
que acompanhou o período de exercício de poderes de facto, pelo menos, a partir de março de 2009, torna manifesta a circunstância de o autor/apelante se assumir, em todos os momentos, como titular de um direito de crédito (ainda que com invocada garantia real sobre o imóvel ocupado) e não como titular de um direito de propriedade.
|
[
"SANEADOR-SENTENÇA",
"INSOLVÊNCIA",
"CONTRATO PROMESSA",
"TRADIÇÃO DA COISA",
"POSSE",
"ANIMUS",
"USUCAPIÃO",
"DIREITO DE CRÉDITO"
] |
Acordam na 1ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa
I.
a. Por apenso ao processo de insolvência que corre termos contra a devedora Euro 2007 – Construção Civil, Lda, declarada insolvente por sentença datada de 06.06.2013, transitada em julgado em 01.07.2013, veio AA., advogado, intentar ação declarativa comum contra a MASSA INSOLVENTE DA EMPRESA EURO 2007 – CONSTRUÇÃO CIVIL, LDA., representada pela Senhora Administradora de Insolvência Senhora Dra. BB., os CREDORES da identificada massa insolvente e a INSOLVENTE EURO 2007 – CONSTRUÇÃO CIVIL, LDA., que teve sede na Praceta da Juventude, Lote 14, 1.º, Sala A, 2975-339 Quinta do Conde, concluindo por pedir que:
- seja reconhecida a aquisição, originária, por usucapião, pelo A., da fracção H, incluindo o apartamento no 3º andar esquerdo e o lugar de estacionamento na cave que a integra, do prédio sito na Rua …;
- seja ainda ordenado o cancelamento de todas as inscrições, hipotecas e penhoras e/ou outras registadas na Conservatória do Registo Predial que ofendam a posse e a propriedade do Autor, reconhecida e a justificar, por, além do mais, serem ineficazes.
Alegou, para tanto e em síntese que:
- a fração objeto do litígio está registada como propriedade da insolvente e está na posse do autor, ininterruptamente, desde outubro de 2005, com entrega da chave pelos sócios da insolvente imediatamente após a sua conclusão; usa e frui a fração, desde abril de 2006, por si ou através da sua filha, de forma pública, pacífica e de boa-fé, na convicção de que exerce um direito próprio;
- a referida fração foi dada ao A., nesse mês de Outubro de 2005, em cumprimento parcial de uma obrigação de dívida de honorários por serviços prestados;
- a posse passou a ser titulada em 11/10/2006, data em que foram reconhecidas as assinaturas das partes em acordo feito em 10/8/2006, tendo sido redigidos os termos do contrato promessa (doc. 1 que anexa) para formalizar o negócio enquanto, por falta de constituição da propriedade horizontal e passagem das licenças finais, não era possível realizar a escritura pública definitiva;
- o autor interpelou repetidamente a gerência e sócios da ora insolvente para celebração da escritura pública, interpelou ainda para comparência em cartório notarial para outorga da escritura;
- o A. acabou por demandar a insolvente, pedindo em juízo a devolução do sinal em dobro, através de ação que intentou em Abril de 2009, e que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste - Juízo Central Cível de Cascais, sob o número de processo (…), pedindo a declaração de resolução do contrato e a restituição do sinal em dobro, que veio a ser julgada improcedente em 1ª instância, onde se considerou que a entrega do apartamento fora uma dação em pagamento de honorários; o recurso interposto veio a obter declaração de inutilidade superveniente por decorrência da sobrevinda declaração de insolvência da devedora, mas pode e deve considerar-se assente a decisão na parte do julgamento da matéria de facto, porquanto o A./ recorrente, não recorreu da matéria de facto;
- a atuação do autor enquanto promitente comprador que beneficiou da entrega do imóvel deve ser entendida como prática de atos de posse enquanto verdadeiro proprietário, concluindo que nem a declaração de insolvência, nem quaisquer vicissitudes do processo de insolvência (ainda pendente) se apresentam como passíveis de ter qualquer impacto na qualificação da posse ou na contagem do prazo prescritivo de aquisição.
b. Foi apresentada contestação pela massa insolvente, que:
- excecionou a litispendência com base na ação pendente como apenso H do processo de insolvência, na qual visava o aqui autor obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial peticionando que se declare que é proprietário da fração H. Pede, a título subsidiário, que se considere aquela ação como causa prejudicial, dado que é ali peticionada a separação da fração apreendida para a massa
- impugna a factualidade alegada pelo autor em suporte da aquisição originária do direito de propriedade, qualificando-o como mero detentor com perda de título de posse por efeito da opção de resolução do contrato promessa, com consequente presunção de má-fé da posse que continuou a exercer, corroborada pela oposição à posse associada às notificações que lhe foram dirigidas para desocupação do imóvel pela Administradora de Insolvência da massa insolvente, evidenciando a oposição à posse;
- invoca o abuso de direito do autor na modalidade de
venire contra factum proprium.
Conclui pedindo a improcedência da ação e a consequente absolvição da ré Massa Insolvente do pedido.
c. Por despacho de 07.02.2023, foi ordenada a notificação do autor para exercer contraditório em relação à matéria de exceção contida na contestação.
d. Foram citados editalmente os credores e dirigida citação à devedora, que não apresentaram contestação.
e. Por requerimento de 10.1.2024 o autor apresentou resposta às exceções arguidas na contestação.
f. Foi designada data para realização de audiência prévia, que teve lugar no dia 10.4.2024, no contexto da qual, sem oposição das partes, foi apreciada a conveniência da tramitação conjunta do apenso H no do apenso J, concretamente, da matéria da reconvenção daquele apenso H, única para cuja apreciação de mérito prosseguiam os referidos autos.
g. Em 22.5.2024 foi proferido despacho que julgou extemporânea a resposta apresentada pelo autor à matéria da contestação.
h. Em 1.7.2024 foi proferido despacho com o seguinte teor:
Analisada a factualidade alegada nestes autos (apenso J), tendo em vista a sua ulterior tramitação, concluímos que o processo reúne condições para conhecimento de imediato do pedido neles formulado (que não se confunde com a apreciação da questão pendente e com origem no apenso H).
Uma vez que esta questão não foi suscitada em sede de audiência prévia (que teve um fito distinto) e para evitar a prolação de decisões surpresa, determina-se a notificação das partes para, querendo, se pronunciarem
”
i. O autor pronunciou-se em 15.7.2024, pugnando pela procedência da ação.
j. Em 30.10.2024 foi proferido saneador-sentença que, conhecendo do mérito da causa, julgou a ação integralmente improcedente e absolveu os réus do pedido.
Mais ordenou o prosseguimento dos autos para apreciação do pedido reconvencional deduzido no apenso H.
k. Da decisão de 30.10.2024 vem o autor interpor o presente recurso de apelação, pedindo a revogação da decisão recorrida com declaração de procedência do pedido deduzido ou, subsidiariamente, que seja ordenado que os autos baixem à 1ª instância para prosseguimento dos termos da ação.
Suporta a pretensão em fundamentos que “sintetiza” nas seguintes conclusões:
1. No seu despacho/sentença recorrido, o douto Tribunal
a quo
decidiu, em sede de saneador, que o facto de o A. ter comunicado a resolução do contrato-promessa que celebrara com a insolvente teria comprometido o seu
animus
enquanto possuidor e que o facto de ter, por diversas vezes, invocado o direito de retenção sobre o apartamento na sua posse constituiria uma inversão do título da posse agora a seu desfavor, porquanto revelaria que, assim, se teria passado a apresentar, apenas, como credor. Não tem razão.
2. Assim sendo, embora pareça ter admitido que o A. chegou a ter a posse idónea para adquirir a propriedade mediante usucapião, o douto Tribunal
a quo
decidiu imediatamente a questão, sem outra produção de prova, no que não andou bem.
3. O douto Tribunal, sem apurar quando e em que circunstâncias o apartamento
sub juditio
foi entregue ao A, e sem julgar os factos alegados na PI, incluindo quanto a essa matéria, cuidou, erradamente e sem alegação nesse sentido, que a posse decorreria da entrega na sequência de um contrato-promessa, embora, paradoxalmente, reconheça que esse contrato nada diz a respeito. Não tem razão. E, por isso, decidiu nos termos do despacho/sentença recorrido.
4. Sem prescindirmos de invocar que existe uma corrente doutrinária que postula uma abordagem objectiva, reconhecemos que a Doutrina e Jurisprudência maioritárias no nosso país postulam a corrente subjectiva como mais conforme ao Código Civil, que demanda uma apreciação da atitude psicológica ou intencional do possuidor – o
animus
, a intenção do possuidor de se comportar como titular do direito real correspondente aos actos praticados e é nesse pressuposto que concluímos o que segue, já que a primeira tornaria inútil a discussão, pois que a posse objectiva
corpus
não foi colocada em crise.
5. A questão fundamental, conforme o despacho/sentença recorrido a colocou, é a de saber qual o
animus
com que o A. tem exercido a posse do apartamento objecto dos autos ao longo destes mais de 16 anos, até à dedução da acção. E, antes disso, frisamos nós, se sempre são, pelo menos, 15 anos…
6. Na PI, o A. alegou que entrou na posse, originária, do apartamento através da entrega, voluntária, dele como, ou a título, de dação em pagamento, pela empresa construtora e proprietária (a empresa Euro, 2007, que veio a ser a insolvente), logo após a conclusão do prédio, ainda antes deste ter sido constituído em propriedade horizontal, e antes e independentemente do contrato-promessa que veio a ser celebrado.
7. Todos os elementos (de prova) nos autos o sugerem, numa parte e confirmam, na outra, incluindo o próprio despacho/sentença recorrido, que reconhece que «Foi acordado entre o Autor e os sócios da Ré que a transacção da fracção consubstanciaria uma dação em cumprimento pelo crédito de honorários, que aquele detinha sobre estes, a título de serviços de advocacia prestados até maio de 2003».
8. O contrato-promessa celebrado depois do acordo e da própria entrega, foi, como o A. sustentou na PI, apenas instrumental; ocorreu porque, ao contrário do inicialmente previsto, a documentação necessária – incluindo a constituição da propriedade horizontal -, levou muito mais tempo a ser obtida do que o inicialmente previsto, tendo ele sido o mecanismo que ocorreu às partes para garantir os direitos do ora A.
9. O cumprimento do contrato-promessa foi pedido pelo A. no apenso H deste processo; sem sucesso, exactamente porque o douto Tribunal
a quo
julgou que o contrato havia sido resolvido… SMO, neste apenso J, discutindo-se a aquisição originária por usucapião, interessará saber se a posse originária e originada pela entrega do apartamento a título de dação em pagamento é boa, idónea, para usucapir, independentemente da longa discussão – apoiada em douta Doutrina e em mais douta Jurisprudência invocada - sobre se o contrato-promessa foi, ou não, resolvido.
10. O contrato-promessa foi o meio a que as partes recorreram para protegerem os interesses do A. enquanto a dação em cumprimento, materializada pela entrega do apartamento após a construção e ainda antes de ter sido constituída a propriedade horizontal, não podia ser formalizada e concluída, pela falta deste documento.
11. Como se alegou na PI, a materialização da dação em cumprimento através da entrega pela insolvente ao A. do apartamento após a construção gerou uma situação de posse.
12. Interessa saber, nesta acção, designadamente, se o
corpus
e o
animus
desta posse, que é originada pela entrega do apartamento para pagamento de honorários, a título de dação em pagamento, corresponde à posse do direito de propriedade, para efeitos do disposto no art.º 1287º do Código Civil (CC);
13. E quanto tempo durou;
14. Independentemente das vicissitudes do contrato-promessa entretanto celebrado.
15. O douto Tribunal
a quo
, mesmo tendo considerado provado – cfr. pontos 16 e 17 da fundamentação de facto - que a R., já depois da recepção da comunicação da resolução, continuou a tratar da marcação da escritura, embora não tenha chegado a conseguir obter do Montepio Geral o termo de cancelamento das hipotecas sobre a referida fracção, acabou por considerar o contrato-promessa resolvido, no que o A. não concorda, nem se conforma, apesar das doutas Doutrina e Jurisprudência invocadas;
16. Porque a resolução que comunicou foi instrumental para tentar sair do impasse em que a situação se encontrava; e também porque a Insolvente, como já referido – cfr. pontos 16 e da fundamentação de facto -, continuou a tratar da escritura, percebendo a pressão do A. e que era exactamente a escritura que ele queria finalmente poder realizar.
17. Se a Insolvente continuou a diligenciar na marcação da escritura após a comunicação recebida e o A. nunca se recusou a comparecer nela, pelo contrário, esteve sempre disponível, intentou uma primeira acção pedindo a devolução do sinal em dobro, pediu, já depois da insolvência, à Senhora Administradora de Insolvência o cumprimento do contrato e, face à recusa, intentou uma segunda acção pedindo esse cumprimento, dúvidas não surgem no espírito do A. de que para ele e para a insolvente, o contrato-promessa esteve em vigor até ao trânsito em julgado da decisão do douto Tribunal a quo no apenso H;
18. Mas, sobretudo, para o que nesta acção interessa, dúvidas pertinentes não podem surgir quanto à qualidade do
animus possidendi
, também referido como
animus domini,
do A. na posse que tem exercido sobre o apartamento que lhe foi entregue para o pagamento dos seus honorários.
19. Em Março de 2009, era já grande a mora para a realização da escritura, a insolvente tinha constituído a favor do referido banco várias hipotecas, que este não cancelava em relação à referida fracção e que aquela não se mostrava diligente em cancelar. Entretanto, ia celebrando as escrituras de compra e venda das outras fracções… Havia que fazer algo; e esse algo, naquelas circunstâncias, era accionar o mecanismo previsto no contrato-promessa que garantia os interesses do A…
20. Colocado nas mesmas circunstâncias do A. naquela altura, o que seria previsível que fizesse o homem médio com a formação dele? Ou, numa avaliação de prognose póstuma, poderá porventura considerar-se que a actuação do A., naquelas circunstâncias, foi desrazoável e que o facto de se ter visto forçado a recorrer a ela representa uma mudança no seu
animus possidendi,
ou intenção de continuar a exercer sobre a coisa o poder que já detinha correspondente ao domínio de facto do direito de propriedade?
21. Com a actuação referida - comunicar a resolução do contrato-promessa, exigindo a devolução do sinal em dobro – o A. esperava que, com o risco de ter que o pagar, a insolvente empenhar-se-ia finalmente na concretização do negócio prometido, como, de resto, foi anunciando. É assim que se justificam os factos considerados provados nos pontos 16) e 17) da Fundamentação de Facto;
22. E é assim que tem deve ser lida a actuação do A., que fez a comunicação referida na mesma altura em que, tendo destinado o apartamento para a residência da filha, esta já estava a viver nele! – cfr. pontos 15) e 29) da Fundamentação de Facto.
23. Não num qualquer prédio…, mas no mesmo prédio onde vivia e vive o A.;
24. Mesmo que, porventura, este facto – da resolução e do exercício do direito de retenção terem sido comunicadas pelo A. enquanto mantinha e queria manter a filha a residir no apartamento na sua posse - não influa na apreciação dos efeitos da comunicação da resolução do contrato-promessa, no que não se concede, influi, sem margem para dúvidas, na avaliação do
animus
com que, nessa altura, o A. continuou a encarar a posse que (passe o pleonasmo) possuía, sempre manteve e fez de tudo para manter, e que possui; Era, foi, continuo a ser e é um
animus possidendi
, coerente com o recebimento do apartamento como acto material de pagamento dos honorários;
25. Que, reitera-se, lhe adveio originariamente pela entrega voluntária a título de dação em pagamento.
26. O facto de ter invocado o direito de retenção, para um determinado efeito em nada abala o
animus possidendi
da posse anterior ou já existente, que era o de continuar a exercer sobre a coisa o domínio de facto correspondente ao exercício do direito de propriedade.
27. É esse
animus possidendi
, gerado pela entrega correspondente ao acto material da dação em cumprimento, que importa avaliar;
28. Recorde-se que o A. sentia-se e sente-se dono do apartamento, que lhe foi entregue para pagamento de uma dívida de honorários. Este sentimento, justo e compreensível, subjaz e permeia sempre a intenção com que o A. sempre exerceu e exerce a posse sobre ele.
29. Pode, a esta luz, o intérprete e julgador dizer com segurança que o possuidor, que manteve a filha a viver na casa, que continuou a utilizar o lugar de estacionamento, que directamente e através dela, na altura continuou a suportar as despesas relacionadas com o apartamento, que as suporta até hoje, que se continuou a apresentar como o dono dele perante toda a gente, afinal o manteve na sua posse apenas para, ao contrário do que acontecera até aí, passar a exercer um «mero » ou simples direito de retenção?
30. Ou será que, pelo contrário, in casu o A. manteve intacta a sua «… intenção de exercer sobre a coisa, como seu titular, um direito real, correspondente àquele domínio de facto», em latim, o
animus possidendi, animus domini
, ou o
animus sibi habendi
?
31. Os factos revelam que foi esta última a situação, o A. continuou sempre, incluindo nesse período, a manter «a actuação correspondente ao exercício do direito» de propriedade – cfr. art.º 1257º do CC -, ou seja;
32. O A. manteve o
animus (possidendi)
de dono, ou proprietário, o
animus sibi habendi
.
33. Na verdade, ao contrário do que entendeu o douto Tribunal a quo, é exactamente por o possuidor ser advogado que se pode concluir que ele, justamente, recorreu a todos os instrumentos legítimos e legais para garantir a manutenção da posse em seu poder até ser possível concretizar, quer por acordo, sempre insistentemente tentado, ou judicialmente, a regularização formal da aquisição;
34. Incluindo a invocação, reiterada, do direito de retenção;
35. Numa altura em que ainda não tinha decorrido o tempo necessário para que o possuidor – o A. – pudesse invocar a usucapião.
36. Vai exactamente nesse sentido a douta Jurisprudência deste mesmo TRL citada na PI, aqui aplicável com as necessárias adaptações, do Ac. 19/11/2002, no âmbito do processo n.º8205/2002-7, da qual se pode extrair o ensinamento de que o facto de o interessado ter actuado em diversas frentes para defender os seus interesses por cada uma das vias que a lei lhe consente, não basta para invalidar a sua posse para efeitos de usucapião.
37. Antes de se preocupar com o título invocado, o A. preocupou-se, sempre, em assegurar a manutenção da posse do apartamento que, para além da respectiva utilidade não só económica e prática, representa longas horas do seu esforço, da sua dedicação, do seu talento e de vários sucessos, alcançados por si e pelo seu escritório.
38. Enquanto não pôde usucapir, o A. – como está bem patente no processo, quer no apenso H, quer no processo principal, quer, mesmo, no procedimento cautelar que instaurou para defender a sua posse (apenso I) - invocou, naturalmente, o direito de retenção e tentou chegar a acordo, sempre para lograr sobretudo registar o apartamento em seu nome, nunca, primeiramente, para receber indemnização, enquanto tentou, também, denodadamente, quando não o conseguiu, obter sentença judicial que lhe permitisse a conclusão do negócio, com o mesmo fim;
39. Para, finalmente, conformar o registo à situação de facto e à vontade das partes quando realizaram a entrega do apartamento para pagamento dos honorários do A.
40. No ponto 33 da fundamentação de facto, a expressão «além do mais» refere certamente os pedidos principais dessa acção (apenso H). É que o primeiro pedido teve como objectivo a realização do negócio, o segundo também, o terceiro idem e só no quarto pedido, sem conceder nos anteriores, se pediu, à cautela, o pagamento de indemnização. E o pedido citado neste ponto 33, o quinto, é tão claramente instrumental, que começa com a expressão «Para tanto…» - cfr. PI no apenso H.
41. Não restam dúvidas, o
animus
do A. manteve-se
possidendi,
intacto e idóneo para usucapir;
42. E se dúvidas existissem, no que não se concede, sempre teriam que ser resolvidas a favor do A., nos termos do art.º 1253º n. 2 do CC.
43. Decorrido o tempo necessário para poder invocar a usucapião, o A. continuou a tentar chegar a acordo, mantendo-se sempre disponível para ele, mas, evidentemente, tratou de intentar a presente acção para o reconhecimento judicial da aquisição do apartamento por essa via, permitindo assim, ao fim de tantos (quase 20) anos, realizar a Justiça.
44. Que outro meio, legítimo e legal, restava ao A. para manter a posse e garantir que, um dia, se faria justiça, como agora, certamente, se irá fazer? A si próprio e ao seu advogado, na altura, só lhes ocorreu aquela via, apesar de mui laboriosa.
45. Porque era e é, também, de Justiça material que se trata!
46. Ninguém de boa-fé poderá insinuar – como não insinuou – que a pretensão do A. não seja materialmente justa. O apartamento foi-lhe entregue materialmente e deveria sê-lo juridicamente para pagamento das despesas e do trabalho havido com a prestação de serviços à insolvente; 19 anos depois, doença grave superada depois, pode ser contabilizado muito outro esforço e despesas para finalmente se conseguir regularizar esse pagamento por dação, através do registo do apartamento em nome do A., livre de ónus e encargos.
47. Enfim, é o próprio douto Tribunal a quo que reconhece, como já vimos, que «… a transacção da fracção consubstanciaria uma dação em cumprimento pelo crédito de honorários…». De notar que, atenta a redacção do facto assente anterior (T) na sentença de onde foi extraída esta conclusão, o verbo consubstanciaria, aqui, não está no futuro, mas no condicional, até porque se refere primeiramente à transacção material do apartamento, que já se verificara.
48. Na economia da sentença do Tribunal de Cascais, em que o douto Tribunal a quo se baseou para recolher a maior parte da Fundamentação de Facto, pressuposto ao contrato-promessa objecto daqueles autos, estava a referida dação em cumprimento…, que o explicava.
49. Isto para frisar que o douto Tribunal a quo reconheceu, e bem, que houve a entrega do bem, mas não identifica a data desta entrega; limita-se a reconhecer que a filha e o genro do A. vêm habitando a fracção desde Agosto de 2007 – cfr. 29) da Fundamentação de Facto – mas nada diz quanto à data e às circunstâncias da entrega. Matéria que é essencial nesta acção.
50. De resto, reconhece que no contrato-promessa «…não foi inscrita qualquer cláusula em que seja referida a entrega…», o que é lógico, porque, nessa altura, há muito que a entrega tinha sido feita;
51. E conclui, e bem, assim reconhecendo razão ao A. ora recorrente, que «… nenhuma evidência resulta do contrato promessa, de que se tenha transferido a posse por via do contrato (promessa)…»; o que se explica pela mesma razão, a entrega não decorreu do contrato-promessa, há muito que já tinha sido feita, enquanto acto material da dação em pagamento.
52. No que a sentença recorrida andou mal, foi ao ter abdicado de apurar quando;
53. E em que condições foi entregue o apartamento ao A.,
54. i.e., quando e porquê começou originariamente a posse do A.;
55. Ao invés de se ter dispersado especulando alguma inversão do título da posse.
56. E tinha que o fazer, porque o A. alegou expressamente essa matéria, nos arts. 2º a 12º, 15º e 16º, 20º, 25º a 28º da PI.
57. Desrespeitando o que a lei e os princípios processuais impõem – arts. 595º n. 1, b) a contrario, 608º n. 2, incorrendo no disposto no art.º 615º n1, d), todos do CPC e o Princípio do Dispositivo;
58. Aqui chegados, ou o douto Tribunal a quo mandava prosseguir a acção para instrução e julgamento, ou considerava, como o A., a partir de outros elementos de prova existentes nos autos, que deveria ter analisado e considerado, estarem demonstrados estes factos: em que condições e porquê foi entregue o apartamento pela insolvente ao A. e quando, ou, pelo menos, a partir de quando se pode considerar com segurança ter o A. a posse dele.
59. Como vimos, esta matéria é essencial:
60. - a duração da posse é matéria essencial numa acção de usucapião, o termo inicial dela tem que ser apurado;
61. - considerando que é inequívoco e foi alegado que o A. tem, pelo menos, o
corpus
da posse, é mister averiguar a data e as circunstâncias em que ela lhe veio, para se poder apurar o
animus
;
62. - tanto mais que o douto Tribunal a quo fez as considerações e retirou as conclusões que constam da sentença recorrida sobre a putativa resolução do contrato-promessa pelo A. Neste caso, por maioria de razão importa saber se a entrega do apartamento ocorreu em virtude do contrato-promessa, ou por outra razão, v.g. o já referido acordo de dação em cumprimento, como o A. alegou na PI.
63. Por outro lado, foi expressamente alegado pelo A. na PI, designadamente que:
64. - O apartamento foi entregue pela insolvente, na pessoa do seu gerente e sócios, mal ficou concluído, em Outubro de 2005;
65. - para pagamento de uma dívida de honorários, não dos sócios, mas da sociedade e também dos sócios.
66. - Desde esse mês, Outubro de 2005, o A. tem a posse do referido apartamento e do local de parqueamento, que lhe corresponde, na cave.
67. - o A., inicialmente, ainda pensou convencer alguns amigos a comprarem o apartamento e chegou a mostrá-lo a potenciais compradores;
68. - Nas relações do A. com os sócios e gerência da insolvente Euro 2007 e com as pessoas em geral, aquele foi considerado legítimo possuidor do apartamento desde Outubro de 2005, utilizando-o como dono e como se proprietário dele fosse;
69. - À vista de toda a gente e sem qualquer oposição ou ofensa do direito de outrem; Sem ter que pedir autorização, ou que contar com a tolerância de quem quer que seja; na convicção e certeza de que não prejudica ninguém e de que está a exercer um direito próprio.
70. - O A, e/ou os seus familiares, por indicação dele, paga as despesas do condomínio calculadas na proporção da permilagem, bem como a água e a energia. Docs. 2, 3, 3 A e 4.
71. - Para além de utilizar o apartamento, o A. e seus familiares, com a autorização deste, utilizam também, exclusivamente, pacificamente e à vista de todos, o parqueamento respectivo pelo menos desde o mês de Abril de 2006; Aí guardando os seus automóveis.
72. - Na pendência daquela acção – a que correu termos em Cascais - foi, entretanto, declarada a insolvência da Euro 2007, Lda. no processo principal;
73. - Facto que foi mantido fora do conhecimento do Tribunal de Cascais e do Tribunal da Relação e do A., por actuação omissiva da Requerente, CEMG e da Insolvente Euro 2007, Lda. que já reputámos ilícita, dolosa, desleal e de má-fé.
74. - Acresce que tanto a Euro 2007, Lda. como a CEMG, requerente e principal credor na respectiva insolvência, não comunicaram nos autos, principais, de insolvência a existência da dita acção, nem o direito do ora A., como era sua obrigação; nem foi dado, ali, cumprimento ao art.º 85º do C.I.R.E., o que comprometeu gravemente os direitos e interesses do A, que não foi notificado/citado da insolvência, apesar de ter pendente uma acção, onde invocava o direito de retenção sobre um bem e de poder ser – em função da eventual decisão dela – um dos 5 maiores credores da insolvente – cfr. os autos principais.
75. Sem a produção de prova testemunhal, não parecem existir, ainda, elementos nos autos que permitam considerar provada a alegação do A. de que o apartamento lhe foi entregue pela insolvente em Outubro de 2005 (v.g., entre outros, art.º 3º da PI) e que a sua filha tenha passado a residir nele pouco tempo depois de abril de 2006 (v.g., entre outros, art.º 22º da PI)…
76. Mas há prova nos autos que demonstra as circunstâncias e os motivos da entrega do apartamento, que ele já estava na posse do A. antes de Agosto de 2006 e o tipo de posse – com
corpus e animus domini
- que este (o A.) exercia e exerce.
77. Para além da douta sentença do Tribunal de Cascais em que o douto Tribunal a quo se baseou, o A. instruiu os autos com alguns documentos, incluindo as gravações e transcrições dos depoimentos das testemunhas naquele julgamento, relevantes porque, as duas que juntou, hostis, sobretudo o sócio da insolvente, CC., sócio da insolvente, mas também do Senhor DD., genro do A., que acabou por ficar incompatibilizado com este em virtude das vicissitudes com todo este caso (e cujo distanciamento se nota nas respectivas declarações).
78. A seguir à prova por documento autêntico, por confissão e por inspecção judicial, pouca prova há-de ser tão credível quanto o depoimento de testemunha hostil cujo conteúdo seja favorável à parte contrária…
79. Nesse depoimento – docs 5C (transcrição) do requerimento instrutório de junto em 11/4/2024 (referência Citius 39057724) e doc 5 (gravação original) do requerimento instrutório de 15/4/2024 (referência Citius 39079012), e doc. 5B (outra transcrição, menos profissional) da PI, o CC., sócio da insolvente, embora já não recordado da data da entrega do apartamento ao A., nem da celebração do contrato-promessa, e manifestamente confuso em relação à da constituição da propriedade horizontal, depôs com segurança e conhecimento de causa sobre as circunstâncias que presidiram a essa entrega e à celebração do negócio – o acordo para o pagamento dos honorários através de dação do apartamento -, e mesmo a causa deles (honorários devidos pela insolvente). Do depoimento de DD., concatenado com outros elementos, é possível retirar uma data mínima para o início da posse do apartamento pelo A.: pelo menos Agosto de 2006.
80. Assim, o referido CC., sócio da insolvente, depôs o seguinte no Tribunal de Cascais:
81. «…tive conhecimento directo do espírito a que presidiu a essa, a intenção desse… desse contrato. Isto é, na altura tinha sido feito um negócio por interposta acção do Doutor, acção não judicial, portanto, por intermédio do Doutor e em termos de honorários ficou acordado que a fracção, pronto, que ele até disse que seria para habitação da filha, que é a Ana, seria dada como pagamento de honorários quando o prédio estivesse construído.»
82. Já o Senhor DD., depôs o seguinte na mesma audiência no Tribunal de Cascais – cfr. a gravação original no Doc 5, junto com o requerimento instrutório de juntos de 15/4/2024 (referência Citius 39079012), e respectiva transcrição, como Doc. 5ª junta com o requerimento instrutório de 11/4/2024 (referência Citius 39057724):
83. - 00:01:58.0 a 00:02:10.8 - …que morava no terceiro esquerdo, da Rua …», confirmando que é precisamente a fracção aqui objecto de, de controvérsia, e que morava nessa fracção - 00:02:21.1 - «Desde Agosto de 2007»; que - 00:02:30.4 - «… tinha um acordo com o meu sogro, que é o proprietário, para mim, do, do, do referido andar, no sentido de, comecei a viver lá, de lhe fazer a aquisição desse mesmo andar…», e que - 00:03:17.1 - «… desde sempre, não tenho nenhuma palavra em contrário, quer dizer, era, era o que era do meu conhecimento, é que ele era o proprietário do andar.». Que - 00:03:41.6 - «…a única que eu sei é que, assim, eu fui para lá viver, por indicação do meu sogro, como sendo andar dele, na altura em que entrei naquela casa, falei com o Eng.º EE., que julgo que é uma das pessoas responsáveis pela empresa que construiu o prédio, nomeadamente porque tive necessidade de fazer obras de correcção, desde os estores a algumas infiltrações, portanto, aquelas obras que normalmente quando uma casa começa a funcionar, são necessárias serem feitas, fui sempre extremamente bem atendido pelo Eng.º EE…»; que a escritura - 00:06:12.3 - «Sim, era para ser celebrada com entidades envolvidas, não sei, mas que o dinheiro era para ser entregue ao meu sogro, isso era, porque era isso que eu tinha acordado com ele.»; que o sogro (o A.) - 00:06:29.7 - «E reside no, no 4.º andar.»; que o sogro, o A., pretendia, em relação à fracção, - 00:06:43.7- «Era vendê-la a mim, na circunstância de que, sendo eu casada com a filha dele, era intenção dele, gerir esse andar juntamente com os filhos e, portanto, eu compraria o andar, salvaguardando o outro filho que ele tem, dando-lhe o dinheiro a ele, ele depois … faria o que dele, o que dele entendesse, não é, isso aí já me ultrapassa.»; que - 00:07:27.2 -«Para mim, o andar era dele, e como lhe disse, inclusivamente, quando me, quando entrei naquela casa, em Agosto de 2007, tive contactos com o Eng.º EE., que julgo que é da, um dos responsáveis da empresa construtora, no sentido, que eu estava ali a viver, que ele sabia quem eu era, por intermédio do meu sogro e nessas circunstâncias, também da parte dessa entidade, nunca tive nenhum obstáculo, nem nenhum conflito, todos os problemas que havia de arranjos da casa, foram prontamente solucionado, sem qualquer dúvida ou questão, que se pudesse ser, portanto, também nunca senti daí que houvesse nenhum impasse, nem nenhum obstáculo em relação ao que fosse.»; que - 00:08:17.7 - «A fracção já era do nosso conhecimento, até muito anterior a essa situação, portanto, a situação que eu tinha conhecimento da fracção, através da minha mulher, como filha do Dr. AA., já há mais de 6 meses sensivelmente.»; que, quanto à intenção do A. de vender metade do apartamento à testemunha, - 00:08:53.6 - «Quando eu falei com o Eng.º EE., no primeiro contacto que tive com ele, pela necessidade do arranjo da casa, ele não, não demonstrou desconhecimento disso e, e depois a partir daí, tive relacionamento com o pai dele, que era uma pessoa que na altura ainda frequentava o prédio, porque havia outros andares para vender, com quem sempre estabeleci contacto relação, sem que daí houvesse, digamos, nenhuma situação ou até alguma percepção de conflito, bem como, o outro irmão dele, que mora por cima de nós e que, aliás, está aí como testemunha, o CC., continua lá a viver e, portanto, nunca houve da nossa parte, nem nenhuma conflitualidade, nem nenhuma informação que nos levasse a pensar, que a situação não era aquela que efectivamente eu tinha conhecimento…»; Já em sede de esclarecimentos à advogada da outra parte, que: - 00:12:12.5 - «Sempre foi, porque quando eu comecei a viver com ela, vivia num andar alugado em Lisboa, e, portanto, quando começámos os 2 a viver, e tivemos um, durante um ano, em vivência conjugal, antes de nos casarmos formalmente, na altura em que a minha mulher foi viver comigo, ela estava para vir viver precisamente para aquela casa, para Cascais, ela sozinha como filha dele.»; que - 00:13:02.3 - «Eu aquilo que eu depreendi, é que o Dr. AA., tinha destinado aos 2 filhos aquela casa.», que - 0:13:15.7 - «…a ideia que eu tinha, é que efectivamente, ele tendo 2 filhos e, iria doar aquela casa aos 2 filhos, e sei que de facto a filha estava para ir viver para lá, quando começou a viver comigo.»; que - 00:13:59.1 - «… mas se, aquilo que ela estava preparada era, de facto, era ir viver, e só não foi logo, na altura, viver para ali, porque decidimos iniciar a nossa vida conjugal em Lisboa, o que depois posteriormente, havendo a disponibilidade daquela casa, até por razões de renda em Lisboa, era mais vantajoso para nós, nós virmos para ali, portanto, foi nesse sentido que falando com o meu sogro, ficou decidido irmos para ali morar, e fomos.»
84. Portanto, embora (ainda) não esteja provado que, como o A. alegou na PI, o apartamento foi entregue pela insolvente, na pessoa do seu gerente e sócios, mal ficou concluído, em Outubro de 2005, pode e deve considerar-se provado que «O apartamento foi entregue pela insolvente ao A. em data seguramente anterior a Agosto de 2006.», para pagamento de uma dívida de honorários, não dos sócios, mas da sociedade.
85. A prova deste facto consta da sentença do Douto Tribunal de Cascais citada pelo douto Tribunal a quo na sentença recorrida, junta no apenso H, e ainda nos documentos 5 e 5 C, juntos em 11/4/2024 (referência Citius 39057724) e 15/4/2024 (referência Citius 39079012), o Senhor CC., sócio da insolvente e irmão do respectivo gerente, depôs em Juízo no Tribunal de Cascais, referindo-se sempre e exclusivamente à actividade da Euro 2007, Lda., ali R., a dada altura, com verdade, que o apartamento ora
sub juditio
foi entregue ao (aqui e ali) A., ora recorrente, porque:
86. «…tive conhecimento directo do espírito que presidiu à intenção desse contrato, i.e., na altura tinha sido feito um negócio por interposta acção do Doutor, acção não judicial, portanto, por intermédio do Doutor e em termos de honorários ficou acordado que a fracção, pronto, que ele até disse que seria para habitação da filha, que é a FF., seria dada como pagamento de honorários quando o prédio estivesse construído.»
87. Este depoimento está transcrito no doc. 5C e consta, originalmente, do doc. 5 «depoimento de CC.», em 16/11/2011, aos 10:37:56, ficheiro de som «20111116103754_384102_64251.wma» aos 04’:08” – 04’:30”. Ainda, a instâncias da advogada da outra parte, em sede de esclarecimentos, 10’44”-11’:29” e em 12’:48”- 13’04”.
88. – Ficou provado, igualmente, através destes depoimentos surpa referidos, a alegação na PI de que:
89. - Nas relações do A. com os sócios e gerência da insolvente Euro 2007 e com as pessoas em geral, aquele foi considerado legítimo possuidor do apartamento desde Outubro de 2005, utilizando-o como dono e como se proprietário dele fosse;
90. A prova deste facto consta, para além do mais, no já referido depoimento, do Senhor CC., sócio da insolvente e irmão do respectivo gerente no Tribunal de Cascais, transcrito no doc. 5C e cuja gravação original consta do doc. 5 «depoimento de CC.», juntos, ambos, no já referido requerimento probatório, em 16/11/2011, aos 10:37:56, ficheiro de som «20111116103754_384102_64 251.wma» aos 6’:00”-6’:46”. Embora não tendo presente a data, do contrato-promessa e a da constituição da propriedade horizontal, fazendo alguma confusão no que respeita à data da entrega, não tem dúvida, e não nos deixa qualquer dúvida, de que o apartamento foi entregue no âmbito do acordo de pagamento dos honorários, muito anterior e que para a insolvente e os seus sócios, o apartamento, ainda antes da conclusão da construção, era «intocável», tendo sido entregue ao A., que o destinou à filha - cfr. 6’:19”- 6’:21”. E, ainda, entre 7’10”-7’:24”, bem como 7’:35”-8’:01”. Ainda, a instâncias da advogada da outra parte, em sede de esclarecimentos, 10’44”-11’:29”, bem como 13’26”-13:57.
91. E, com os mesmos meios de prova, os factos, alegados na PI, de que:
92. - À vista de toda a gente e sem qualquer oposição ou ofensa do direito de outrem; Sem ter que pedir autorização, ou que contar com a tolerância de quem quer que seja; na convicção e certeza de que não prejudica ninguém e de que está a exercer um direito próprio.
93. - Para além de utilizar o apartamento, o A. e seus familiares, com a autorização deste, utilizam também, exclusivamente, pacificamente e à vista de todos, o parqueamento respectivo pelo menos desde o mês de Abril de 2006; Aí guardando os seus automóveis.
94. O facto alegado na PI de que:
95. - O A paga as despesas do condomínio calculadas na proporção da permilagem, bem como a água e a energia.
96. Ficou provado pelos Docs. 2, 3, 3 A e 4, juntos com o requerimento probatório de 11/4/2024 (referência Citius 39057724).
97. Estão provados no processo, nos autos principais e no apenso H, os seguintes factos alegados na PI:
98. - Na pendência daquela acção (a que correu termos no Tribunal de Cascais, citada e fundamento da sentença recorrida) foi, entretanto, declarada a insolvência da Euro 2007, Lda.;
99. - Facto que foi mantido fora do conhecimento do Tribunal de Cascais e do Tribunal da Relação e do A., por actuação omissiva da Requerente, CEMG e da Insolvente Euro 2007, Lda. que já reputámos ilícita, dolosa, desleal e de má-fé.;
100. - Acresce que tanto a Euro 2007, Lda. como a CEMG, requerente e principal credor na respectiva insolvência, não comunicaram nos autos, principais, de insolvência a existência da dita acção, nem o direito do ora A., como era sua obrigação; nem foi dado, ali, cumprimento ao art.º 85º do C.I.R.E., o que comprometeu gravemente os direitos e interesses do A, que não foi notificado/citado da insolvência, apesar de ter pendente uma acção, onde invocava o direito de retenção sobre um bem e de poder ser – em função da eventual decisão dela – um dos 5 maiores credores da insolvente.
101. Na P.I. o A. alegou ainda, nos arts. 154º a 156º que:
102. 154º. No caso
sub juditio,
verifica-se que a Devedora mais tarde declarada insolvente entregou –
traditio
– o apartamento ao A. para pagamento de uma dívida – dação em pagamento – antes mesmo de ter celebrado um contrato-promessa de compra e venda, e este foi necessário porquanto, na altura da respectiva celebração o prédio não estava, ainda, constituído em propriedade horizontal, o que impediu a imediata celebração da escritura definitiva;
103. 155º. E o A. passou, de imediato, a exercer actos materiais – como os supra descritos – sobre o apartamento, estando, assim, plenamente verificado o requisito do corpus;
104. 156º. Que a posterior celebração do contrato-promessa só veio confirmar.
105. Que também tinham que se considerar provados.
106. Tem entendido a jurisprudência do STJ, coerentemente, que «Num contrato promessa de compra e venda de fracção autónoma, a tradição da coisa, com o pagamento integral do preço, implica uma posse originária, dado que, nesse caso, o
animus
originário do promitente comprador é o de proprietário.»
107. Se assim é num contrato-promessa de compra e venda, por maioria de razão o é numa entrega de bem para dação em pagamento, como no caso
sub juditio
!
108. O facto de o A. ter tentado acautelar o seu direito de crédito e mesmo a sua posse, nada compromete o seu
animus domini
no que à posse se refere; muito pelo contrário, reforça-a.
109. O que deve ser apurado é, para além do
corpus
e desde quando, se o possuidor tem o
animus domini
, se no seu espírito resta intacta, como ficou, a intenção de continuar a exercer sobre a coisa o poder que já detinha correspondente ao domínio de facto do direito de propriedade; e não declarações instrumentais que tenha feito para assegurar os seus direitos e, até, salvaguardarem a posse de eventuais investidas.
110. O A. fez de tudo para manter a posse e, precisamente porque é advogado, numa altura em que não podia, ainda, invocar a usucapião, tratou de recorrer aos instrumentos legais (legítimos) que tinha a mão.
111. Comprador de um outro apartamento no mesmo prédio (no 5º andar), onde passou a residir, o A., depois de uma primeira fase em que tentou vender o apartamento sub juditio (no 3º andar) apresentando-o como coisa sua, esteve sempre, a partir dessa altura em que passou a residir no prédio, interessado em tornar-se formalmente no proprietário dele, regularizando a situação de facto e psicológica. Tal apartamento, que destinava aos filhos, não é, nunca foi, uma simples garantia. Para além do mais, foram celebrados contratos de abastecimento (de água e luz), é o A. quem paga as prestações de condomínio… o apartamento passou a ser habitado por familiares do A., por acto exclusivo de disposição do A., que os queria a viver perto de si.
112. Note-se, inclusivamente, que, como ficou provado no Tribunal de Cascais, na mesma data em que o A. comunicava a resolução do contrato-promessa e o exercício do direito de retenção sobre o apartamento, estavam e estariam ainda por muito tempo, a filha e o genro do A.;
113. Genro esse que depôs perante o Tribunal de Cascais – cfr. docs. 5 e 5 A - que o A. tencionara oferecer o apartamento à filha e que ele próprio, para adquirir a meação, apresentara pedido de financiamento bancário;
114. Estas condutas e disposições demonstram que o A. sempre se viu a si próprio como possuidor da fracção e que agiu como tal, e que todos os mecanismos jurídicos a que recorreu se destinaram, precisamente, a mantê-la sob o seu domínio.
115. Uma eventual condenação da devolução do sinal em dobro, como o A. na altura pediu ao Tribunal de Cascais, sem deixar de ser um negócio interessante, seria sobretudo e mais provavelmente, conforme o A. previa, o melhor estímulo para a R. e os seus sócios se empenharem em libertar a hipoteca e realizarem finalmente a escritura, em sede de transacção… e a única saída que o A., nas circunstâncias da altura, encontrou para superar o impasse então existente. Por isso marcou a escritura, comunicou a resolução e o exercício do direito de retenção e intentou a acção, sem nunca deixar de exercer o domínio sobre a fracção, estando a filha e o genro a viver nela, e o A. mantendo a expectativa de lhe dar a ela ½ da fracção, vendendo a outra metade ao genro. Como a(s) douta(s) sentença(s) reconhece(m).
116. O douto acórdão Ac. 27.9.2018, P. 11680/15.2T8LRS.L1-6, invocado no despacho sentença recorrido, que não é do STJ, mas do RL, é auto-ilustrativo no que respeita à sua inaplicabilidade ao caso sub juditio na parte pretendida pelo douto Tribunal a quo: citando a citação na sentença: «…a recorrente teve conhecimento, em 1995, que a ocupação ocorria sob um quadro de mero exercício de Direito de retenção.»
117. Citando uma outra parte, relevante, não citada na sentença recorrida deste douto aresto, «Tendo-se demonstrado, de forma clara, a inexistência de “animus possidendi” e a não materialização de um «corpus» relevante e próprio, nenhum sentido teria o proposto recurso a presunções; estas destinam-se a extrair de factos conhecidos outros de natureza desconhecida; ora, se conhecemos os factos, não tem qualquer sentido tratá-los como desconhecidos para a eles chegar por caminhos ínvios»;
118. Portanto, estaria em causa naquela acção julgada pelo douto acórdão citado, a pretensão e o pedido de se extrair uma presunção de uma situação de ocupação…
119. O contexto daquela «ocupação» foi, e bem, considerado «…substancialmente distinto do de “posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo”, para os efeitos do disposto no artigo 1287.º do Código Civil que fornece a definição normativa de usucapião.».
120. Já o contexto do caso
sub juditio
, como vimos, é inteiramente distinto. Não há presunções a retirar, apenas factos a apreciar e julgar. O apartamento foi entregue pela construtora sua proprietária ao A. ora recorrente como pagamento, num acordo de dação em pagamento, e este, desde essa altura, passou a agir como proprietário e a sentir-se como tal. Invocou depois o direito de retenção? Sim, mas nunca o mero direito de retenção; muitíssimo pelo contrário, invocou-o «para além do mais»…, como a própria sentença recorrida inclusivamente transcreve.
121. Está demonstrado – e pode voltar a ser ainda mais perfeitamente demonstrado – que o A. ora recorrente exerce ininterruptamente, desde, pelo menos, Agosto de 2006 (na verdade desde Outubro de 2005), o domínio de facto sobre a coisa, traduzido no exercício efectivo de poderes materiais sobre ela, verificando-se, assim, a materialização de um «corpus» relevante e próprio, que não carece de ser presumido.
122. Existe presunção a retirar, sim, mas a do art.º 1252º n. 2 do CC, no que respeita ao
animus
.
123. De facto, em caso de dúvida, a posse presume-se em quem exerce o poder de facto – art.º 1252º, nº 2, CC -, isto é, presume-se o exercício do
animus
naquele que detém o
corpus
, presunção a que subjaz a dificuldade de provar o dito
animus
.
124. A inversão do título vem prevista na al. d) do art.º 1263.º e 1265.º do Código Civil.
125. A Jurisprudência tem ensinado que «A inversão do título de posse (a interversio possessionis) supõe a substituição de uma posse precária, em nome de outrem, por uma posse em nome próprio (não basta que a detenção se prolongue para além do termo do título que lhe servia de base; necessário se torna que o detentor expresse directamente junto da pessoa em nome de quem possuía a sua intenção de actuar como titular do direito).»
126. Não se conhece caso jurisprudencial de inversão do título da posse que seja o contrário, como pretende o despacho sentença recorrido, i.e., a pretensa substituição de uma posse em nome próprio por uma posse precária, em nome de outrem.
127. Por outro lado, os casos de perda de posse estão tipicamente previstos no art.º 1267º do CC e nenhum deles se verificou no caso sub juditio, designadamente, o A. não abandonou a posse, a coisa não se perdeu, nem esta destruída – pelo contrário, tem sido cuidada pelo A. -, este não cedeu a coisa, a posse continua na esfera jurídico-patrimonial do A.
128. A mera comunicação do exercício do Direito de Retenção por quem já detinha a posse por título anterior, como forma de proteger essa posse e de assegurar a inércia do titular do registo, não constitui nenhuma inversão do título da posse.
129. De resto, sem conceder, não há possibilidade de inversão do título da posse, se o possuidor é o mesmo.
130. Mas, para rematar esta questão, e a dos alegados efeitos da putativa resolução do contrato-promessa, estribamo-nos no já citado supra douto acórdão do TRCoimbra, que, julgando uma situação diferente, mas com um certo paralelismo ao caso ora sub juditio, com o apoio em douta Doutrina, ensinou:
131. «A usucapião redunda de dois elementos nucleares, a posse e o decurso do tempo, correspondendo a um modo de aquisição originária de direitos reais, pela transformação em jurídica duma situação possessória duradoura no direito real correspondente. Posse que se traduz num elemento material de fruição de um direito (o
corpus
) e de um elemento intencional vertido na intenção de exercer um poder sobre as coisas (o
animus sibi habendi
).
Animus
que resulta da natureza do acto jurídico por que se transferiu o direito susceptível de posse, na apelidada teoria da causa. Elemento intencional que se dever aferir não pela vontade concreta do adquirente da posse mas pela natureza jurídica do acto que originou a posse. Como simplistamente clarificava Manuel Rodrigues: “… se a tradição se realizou em consequência de um acto de alienação da propriedade, a intenção que tem o adquirente é a de exercer o direito de propriedade. Se a tradição se realizou em consequência de um acto de locação, pelo qual se transferiu um determinado prédio, a intenção do locatário é a de exercer o direito pessoal de arrendatário".
132. Vale dizer que a vontade concreta do detentor só releva caso tenha invertido o título de posse. Doutro modo, o elemento intencional da posse mede-se pela natureza do acto jurídico que deu lugar à aquisição.
133. Princípios que se não modificaram com a vigência do actual Código Civil e que continuam a ter aplicação.»
134. O acto jurídico que, in casu deu lugar à aquisição da posse do A. do ora recorrente foi uma dação em pagamento, ou melhor, o acto material de uma dação em pagamento, que seria formalizada logo que a propriedade horizontal estivesse constituída. O elemento intencional do A./recorrente afere-se por esse negócio e não por qualquer situação de inversão do título da posse, como do douto Tribunal a quo especulou.
135. Mesmo em juízo, o A. ora recorrente revelou, lealmente, e tem revelado o seu
animus possidendi
, sempre, desde muito antes de poder invocar a usucapião.
136. Em Agosto de 2018, logo na questão prévia com que abriu a acção, o A. que:
137. «O requerente, que continua interessado em concluir o negócio, tornou-se credor da massa desde a falta de resposta no prazo de 90 dias pela Senhora Administradora;
138. [sem conteúdo]
139. Ignorando os requerimentos e a questão subjacente, conhecedora de que o requerente, ora A., obteve a tradição da fracção de que é promitente-comprador, que a pagou na totalidade, e de que tem desde há anos a posse legítima, pública, pacífica e titulada…»
140. No mês seguinte, Setembro de 2018, no art.º 28º do Procedimento Cautelar (apenso I), que instaurou (com o objectivo de defender a sua posse), o A. já alegou, também lealmente, que:
141. «A insolvência foi decretada Junho de 2013 a situação arrasta-se há 5 anos, e o requerente, que pagou integralmente o preço da fracção que prometeu comprar e em que habita, tem mantido, desde que a comprou, sem qualquer transtorno para quem quer que seja, a posse dela, não existindo razões ponderáveis para alterar a situação de facto neste período de tempo em que dura(rá) a pendência da acção intentada no apenso H e o conhecimento dos seus pedidos;»
142. [sem conteúdo]
143. Enfim, como frisou nos articulados, neste caso no de resposta às excepções:
144. «A posse que o A. exerce continua a transcender, em muito, o corpus, já que o A. manifestou e manifesta, sempre – e estes autos, incluindo os principais, bem o revelam -, de forma até apaixonada (fruto da indignação e sentimento de injustiça), um fortíssimo
animus possidendi
.
145. O A. nunca tergiversou ou sentiu abalado o convencimento do exercício de um poder sobre a coisa correspondente ao próprio direito e na sua própria esfera jurídica, nem a intenção de o exercer e defender por todos os meios legais, em seu próprio nome. Nunca baixou, nem baixará os braços. Nem que tivesse que chegar ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, o que a presente acção, procedendo, como confia, evitará.
146. O A. nunca deixou de estar interessado no apartamento, nunca se apresentou como mero possuidor ou detentor, pelo contrário, nunca deixou de exercer em seu nome os direitos relacionados com o apartamento e com a posse dele. Sempre o considerou, consistentemente, como coisa realmente sua, mesmo na pendência do processo de Cascais, faltando, apenas, colocá-lo em seu nome, tendo já tentado de tudo para conseguir esse objectivo inicial, dele e da insolvente. Incluindo pagar um valor acrescido.
147. Mais que não fosse, a decisão do douto Tribunal de Cascais, de não decretar a resolução do contrato-promessa absolvendo a ora insolvente dos pedidos, reforçou o
animus
do A. enquanto possuidor de um apartamento por dois, ou melhor, três títulos, enquanto possuidor dela entregue a título de dação em cumprimento (1º), enquanto credor de uma declaração de venda que concretizasse, por fim, a aquisição da propriedade prometida vender (2º) e, e enquanto exercício do direito de retenção (3º).»
148. A douta sentença recorrida violou, para além das normas processuais supra referidas, do CPC, os arts. 1251º, 1252º n. 2, 1253º a contrario, 1257º, 1263º b), 1256º a contrario, 1268º n. 1, 1287º, por referência aos arts. 1258º a 1262º, e 1316º, todos do CC.
Em resposta às alegações de recurso, a Massa Insolvente apelada apresentou contra-alegações, pedindo a improcedência da apelação e a confirmação da decisão recorrida.
Apresenta as seguintes conclusões:
1. O Recurso interposto pelo Recorrente tem por objecto a Douta Sentença proferida nos presentes autos, em sede de Despacho Saneador- Sentença, na qual o Tribunal a quo, julgou, e bem, a acção totalmente improcedente e em consequência absolveu os Réus do pedido.
2. A Douta decisão em crise não merece, no nosso entender, qualquer reparo e obedece às mais elementares regras jurídicas aplicáveis ao caso em apreço e, que nos seja permitido acrescentar, com todo o respeito, a Douta Sentença em causa é inatacável do ponto de vista jurídico e factual, tendo julgado com acerto e perfeita observância das disposições legais. Pelo que deverá a presente Apelação ser Julgada Totalmente Improcedente, por não provada, e, consequentemente confirmar a decisão proferida pelo Tribunal a quo com todas as consequências legais.
3. O Recorrente intentou a presente acção, contra a massa insolvente da Euro 2007 – Construção Civil, Lda., os credores da massa insolvente e a insolvente, peticionando que fosse reconhecida a aquisição originária, por usucapião, da fracção H, incluindo o apartamento no 3º andar esquerdo e o lugar de estacionamento na cave, do prédio sito na Rua …, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo …. Solicitando também o cancelamento de todas as inscrições, hipotecas e penhoras e/ou outras registadas na Conservatória do Registo Predial que “ofendam a posse e a propriedade do Autor”.
4. Diga-se, desde já que, o Recorrente, não só não é proprietário, como também não tem a posse do imóvel em causa e, a ter havido posse, que não se concede, a mesma findou em 2009.
5. O Recorrente não se conforma com a Douta Sentença do Tribunal
a quo
por entender, diremos sem lhe assistir qualquer razão, que a mesma “desrespeitou, designadamente, os arts. 595º n. 1, b)
a contrario
, 608º n. 2, incorrendo no disposto no art.º 615º n1, d), todos do CPC e o Princípio do Dispositivo” bem como “violou, para além das normas processuais supra referidas, do CPC, os arts. 1251º, 1252º n. 2, 1253º a contrario, 1257º, 1263º b), 1256º a contrario, 1268º n. 1, 1287º, por referência aos arts. 1258º a 1262º, e 1316º, todos do CC.”
6. Alegando, erradamente no nosso entender, que o Tribunal a quo andou mal por ter decidido, imediatamente, sem outra produção de prova arrolada pelo aqui Recorrente.
7. Diremos que não haveria prova que contrariassem os factos “irrefutavelmente” dados como provados na Douta Sentença em crise.
8. Pois o Tribunal
a quo
estava na posse de todos os elementos, de facto e de direito, para decidir do pedido do aqui Recorrente.
9. Razão pela qual, bem esteve o Tribunal
a quo
ao decidir, sem qualquer outra produção de prova, quando o primeiro pressuposto (posse) para se adquirir o direito real (propriedade) por usucapião não se encontra verificado e, os pressupostos para a aquisição do direito de propriedade por usucapião são cumulativos.
10. Nos termos do artigo 1251° do Código Civil "Posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real".
11. Pelo que é constituída por um corpus - consubstanciado na prática de atos materiais correspondentes ao exercício do direito, é o elemento material, que consiste no domínio de facto sobre a coisa e por um animus - sendo este o elemento psicológico, que consiste na intenção e convencimento do exercício de um poder sobre a coisa correspondente ao próprio direito e na sua própria esfera jurídica.
12. Ora, tal como referido na Douta Sentença em crise, “para se concluir pela existência de posse sobre uma coisa torna-se necessário o exercício de poderes de facto sobre a coisa objecto de posse, nos termos de um direito, com a convicção de actuação na qualidade de proprietário”.
13. E essa convicção, de que o Recorrente atua com a convicção de que é proprietário, não existe, pelo contrário. Todos os factos dados como provados, por si só, são o bastante para decidir no sentido decidido pelo Tribunal a quo.
14. E, atento às consequências que derivam de certas características da posse, o nosso código civil distingue várias espécies, previstas no artigo 1258.º do CC, - titulada ou não titulada, de boa ou de má-fé, pacifica ou violenta, publica ou oculta – e ser exercida, para efeitos da usucapião, por um certo lapso de tempo, características estas que, ao contrário do alegado pelo Recorrente, também não se verificam.
15. Mais se diga que, e não obstante o Tribunal a quo não se ter pronunciado acerca das mesmas, pois e desde logo, não se verificando o elemento psicológico – animus, não poderia o Recorrente ver procedente o seu pedido, a aqui Recorrida não pode deixar de se pronunciar sobre elas, de forma breve, atenta às alegações do Recorrente.
16. Assim, não obstante o alegado pelo Recorrente em que “O apartamento foi entregue pela insolvente, na pessoa do seu gerente e sócios, mal ficou concluído, em Outubro de 2005; - para pagamento de uma dívida de honorários, não dos sócios, mas da sociedade e também dos sócios; - Desde esse mês, Outubro de 2005, o A. tem a posse do referido apartamento e do local de parqueamento, que lhe corresponde, na cave”. Alega também que “Para além de utilizar o apartamento, o A. e seus familiares, com a autorização deste, utilizam também, exclusivamente, pacificamente e à vista de todos, o parqueamento respectivo pelo menos desde o mês de Abril de 2006 “(artigo 27º das conclusões) (sublinhado nosso).
17. Esta alegada entrega da fracção, que ocorreu em 2005 ou 2006 teve como fundamento uma dação em cumprimento pelo crédito de honorários, que aquele detinha sobre estes, a título de serviços de advocacia prestados até maio de 2003, o facto é que, essa entrega pressupunha, conforme Douta Sentença que “posteriormente seria celebrado um negócio pelo qual tal bem seria dado em pagamento de dívidas do sócio da insolvente para com o Autor”.
18. E, em 10 de agosto de 2006, foi outorgado (entre aqueles) um contrato-promessa de compra e venda relativo ao bem imóvel em questão, pelo que, bem esteve o Tribunal a quo quando verificou que, “nele não foi inscrita qualquer cláusula em que seja referida a entrega, antes se prevê a possibilidade de o promitente comprador exigir à promitente vendedora as quantias entregues a título de sinal e a possibilidade de execução específica, típicos de um contrato promessa de compra e venda. No mesmo contrato não há qualquer menção à dação em pagamento, apenas se mencionando que o preço estava pago. Por ser assim, não podemos concluir que esta entrega pretendeu constituir o Autor, naquele momento, em possuidor em nome próprio, pois o bem apenas seria seu após a dação em cumprimento ser firmada mediante a celebração do contrato prometido. Portanto, nenhuma evidência resulta do contrato promessa, de que se tenha transferido a posse por via do contrato.”
19. E, nem venha o Recorrente agora alegar que “o contrato-promessa celebrado depois do acordo e da própria entrega, foi, como o A. sustentou na PI, apenas instrumental” (artigo 8º das conclusões) ou até que “a resolução que comunicou foi instrumental para tentar sair do impasse em que a situação se encontrava” (artigo 11º das conclusões).
20. Se era efectivamente instrumental, não o teria resolvido por comunicação à sociedade, em 27 de março de 2009, no qual expressamente refere que “Assim, ficam V. Exas. notificados de que a partir desta data passo a possuir a fracção não com intenção de aquisição na qualidade de promitente comprador, qualidade que assumi até hoje, mas sim na qualidade de credor com direito de retenção sobre a fracção até ao pagamento daquela indemnização” (facto provado 15), (negrito e sublinhado nosso).
21. Se era efectivamente instrumental, teria respondido, e não respondeu, às comunicações enviadas pela Insolvente, em 30 de março e 3 de abril de 2009, comprovando-se desta forma que, desde 27 de março de 2009 o Recorrente deixou de se ver e de agir (se é que o tinha anteriormente) com o animus de um verdadeiro possuidor, assumindo, com a resolução do contrato, pública e inequivocamente a posição de mero detentor ou possuidor precário. (factos provados 16 e 17),
22. Se era instrumental não teria, com base no contrato de promessa de compra e venda peticionado ao Tribunal de Cascais, em 16 de abril de 2009, que deu origem ao Proc. …, que a Insolvente fosse condenada a pagar ao Recorrente “a quantia de € 340.000,00 (a título de sinal / importâncias pagas em dobro), acrescida de juros de mora vincendos, à taxa das operações comerciais”; e que lhe fosse reconhecido o direito “de retenção da fracção autónoma prometida vender, até ao integral pagamento dos aludidos € 340.000,00 e juros peticionados”. (facto provado 30).
23. Se era instrumental não teria no Apenso H, com base no contrato de promessa de compra e venda, peticionado ao Douto Tribunal, além do mais, que reconhecesse como “provada a existência do negócio e que o requerente cumpriu integralmente a sua obrigação no contrato bilateral não cumprido pela insolvente, se digne declarar, in casu, a não admissibilidade de recusa de cumprimento pela Senhora Administradora de Insolvência, devendo esta concluir o negócio.” Bem como peticionou para “Em qualquer caso, requer a V. Exa. se digne reconhecer, nos termos legais e da jurisprudência uniformizada, o direito de retenção do requerente sobre a fracção identificada no pedido supra, com efeitos sobre a graduação dos seus créditos” (facto provado 33, 34,)
24. Razão pela qual, com devido respeito, se indaga, como pode o Recorrente querer ver confirmado um direito real (o de propriedade), quando o mesmo confirmou e reconfirmou a sua verdadeira posição de mero detentor ou de possuidor precário, de má fé e sabendo que estava a lesar direitos de terceiros.
25. Bem sabe o Recorrente que a Administradora da Insolvência há muito (2018) o notificou para em 30 dias desocupar o imóvel livre de pessoas e bens, e disso mesmo deu conta ao Autos principais, mediante requerimento em 17 de julho de 2018.
26. Bem sabe o Recorrente da diligência agendada, em sede de liquidação, para a venda da fracção H, bem como as condições da mesma para o dia 13 de setembro de 2018, e que tinha sido designado para o dia 7 de setembro de 2018, entre as 11H30 e as 12H30 a visita à fracção H para os eventuais interessados na aquisição.
27. Da mesma forma, tem o Recorrente conhecimento que na diligência de venda em sede de liquidação, foram apresentadas várias propostas, tendo sido adjudicada a fracção H, sob condição, a um proponente pelo valor de 235.111,00€.
28. Factos que provam que a alegada posse (que não se admite) de boa-fé do Recorrente, seria sempre de má-fé, pelo menos desde o momento em que operou a resolução do contrato (2009) conforme sentença transitada em julgado no Apenso H.
29. De notar que, o Recorrente por inúmeras vezes invocou o direito de retenção sobre a fracção, como tal, assumiu o mesmo a condição de credor e não de proprietário.
30. Como alegado já em sede de contestação pela aqui Recorrida, poder-se-ia admitir que, de 2006 até 2009, o Recorrente poderia até ter a posse da referida fracção.
31. No entanto, ao outorgar em 10 de agosto de 2006 o contrato de promessa de compra e venda e resolvê-lo a 27 de março de 2009, aquando da comunicação à insolvente da resolução do contrato promessa, não só deixou de ter título válido, como se inverteu efectivamente o título da posse, mas, em sentido contrário ao consagrado no artigo 1265.º do CC, passando a posse a ser de má-fé e não titulada.
32. Ou seja, o recorrente confirmou este seu sentimento e convicção de não ser titular do alegado direito que aqui se arroga, quer aquando da resolução e subsequente apresentação da petição inicial que deu origem ao Proc. …, no qual peticionou a resolução do contrato e a devolução do sinal em dobro. Típico pedido de quem sabe que não é proprietário, que nunca foi e que nunca quis ser.
33. Todos os comportamentos, pedidos e acções judiciais do aqui Recorrente foram comprovadamente de quem é, um mero detentor ou possuidor precário relativamente à fracção em apreço.
34. Razão pela qual, o artigo 1253º do Código Civil classifica como detentores ou possuidores precários os que exercem o poder de facto sem intenção de agir como beneficiários do direito. Logo, por interpretação “a contrario”, só terá posse quem exercer esse poder de facto com intenção de agir como beneficiário do direito.
35. Pelo que, não se consente com as alegações do Recorrente nem se pode admitir o teor das mesmas, designadamente que o Tribunal a quo “não andou bem” ou que “Não tem razão”, como que, e mais uma vez, fazendo tábua rasa das suas próprias acções pois, diremos “é também de Justiça material que se trata”.
36. Pelo que bem esteve a Douta Decisão quando, decide que “o Autor é advogado de profissão e está patrocinado por Advogado, pelo que não é defensável que ao alegar como o fez não estivesse ciente da implicação do por si assumido. Sendo assim, é incontornável a conclusão que o Autor não tem, como alega, a posse do imóvel, ininterrupta, desde 2005. Ao invés, como se deixou expresso, seguramente desde 2009 que a utilização do imóvel é apenas como mero detentor, o que o Autor assume e alega no apenso H. Em face do exposto resulta que o Autor não demonstrou, sequer, a verificação do primeiro elemento - a posse - de que depende a invocada usucapião. Assim, não se verificando os elementos que integram a posse - o
corpus
e o
animus
(razão pela qual nos dispensamos de prosseguir na análise dos demais requisitos necessários para a aquisição de um imóvel por usucapião) improcede o pedido de reconhecimento do Autor como proprietário da fracção supra identificada.”
37. Mais uma vez, o Recorrente ignora das suas condutas e dos seus comportamentos, quando alega que “o facto de se ter invocado o direito de retenção para um determinado efeito em nada abala o animus domini da posse anterior ou já existente, que era o de continuar a exercer sobre a coisa o domínio de facto correspondente ao exercício do direito de propriedade”.
38. E, bem sabe, ou deveria saber o Recorrente que, o direito de retenção conferido ao promitente-comprador, não visa mantê-lo na fruição de qualquer direito de gozo, mas sim garantir o pagamento do seu crédito.
39. Entende o Recorrente que, o facto de ter comunicado a resolução do contrato-promessa de compra e venda que celebrara com a insolvente, bem como ter invocado por diversas vezes o direito de retenção sobre o imóvel, não comprometeu a sua posse e bem assim, o seu direito de usucapir. Não lhe assiste razão.
40. Entendemos, mais uma vez, que bem esteve a Douta Sentença, pois, não é, de todo o Tribunal a quo que “Não tem razão ou que não andou bem na Douta Decisão” mas, sim, é o Recorrente quem desconsidera, desta forma, os valores da Justiça, na medida em que, ao resolver o contrato da forma descrita e com perfeito conhecimento dos efeitos que operam tal resolução, ao apresentar a acção no Tribunal de Cascais e ao querer que lhe seja reconhecido o direito de retenção relativamente ao imóvel em apreço vem mais uma vez, e como lhe convém apresentar uma nova versão dos factos, alterado e modificado de acordo com os seus próprios interesses, sendo os mesmos manifestamente contraditórios.
41. Não sendo, por tudo quanto ficou alegado, a Douta Sentença em causa merecedora de qualquer reparo, mas sim o Recorrente que demonstra mais uma vez e pelo presente Recurso o seu “repúdio” pela ideia de Justiça e pelos valores jurídicos e de convivência social e, com todo o respeito que merece, vem mais uma vez o Recorrente, fazer tábua rasa do seu comportamento anterior e querer, o que não se admite, pelo presente Recurso, ver revogada a Douta Decisão em crise.
O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata em separado e efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.
II.
Dado que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, sem prejuízo das questões passíveis de conhecimento oficioso (artigos 608º, n.º 2, parte final,
ex vi
do art.º 663º, n.º 2, ambos do Código de Processo Civil), identificam-se, como questões a decidir:
i. apreciar se a factualidade apurada permite ter por verificados os pressupostos necessários ao reconhecimento, na esfera jurídica do autor/apelante, da aquisição originária do direito de propriedade (usucapião) sobre a fração H, do prédio sito na Rua…;
ii. apreciar se o tribunal recorrido dispunha dos elementos de facto e de direito necessários ao conhecimento parcial do mérito da causa em sede de despacho saneador (art.º 595º, n.º 1, al. b) do Código de Processo Civil);
III.
O tribunal recorrido considerou provados os seguintes factos:
1) Encontra-se descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de … o prédio urbano sito na Rua, freguesia e concelho de C.., inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo n.º...
2) O prédio encontra-se inscrito a favor da Ré mediante a apresentação n.º …, de 5 de Janeiro de 2007.
3) O prédio mostra-se constituído em regime de propriedade horizontal, existindo, além do mais, a fracção autónoma designada pela letra “H” (doravante designada por “fracção”).
4) Por documento reduzido a escrito, de 10 de Agosto de 2006, intitulado por “Contrato Promessa de Compra e Venda”, junto como Doc.1 nestes autos, a Ré, designada por promitente vendedor, prometeu vender ao Autor, que, por seu turno, prometeu comprar, designado por promitente comprador, pelo preço global de €170.000,00, a fracção.
5) O documento foi assinado presencialmente, com reconhecimento, no Cartório Notarial de…, em Lisboa, em 11 de Outubro de 2006.
6) Consta da cláusula 3.ª do documento que “O pagamento do preço encontra-se integralmente satisfeito”.
7) Consta do ponto 1. da cláusula 4.ª do documento que “A escritura de compra e venda será celebrada no prazo de 60 dias contados da data da Escritura de constituição de propriedade horizontal que o promitente vendedor marcará logo após a emissão das licenças necessárias pela C. M. de Cascais”.
8) A Ré outorgou a escritura de constituição da propriedade horizontal, o que se mostra registado mediante a apresentação n.º …, de 22 de Março de 2007.
9) A fracção, a par de outras fracções autónomas, tem constituída hipoteca voluntária a favor da Caixa Económica Montepio Geral, mediante a apresentação n.º …, de 16 de Novembro de 2004, hipoteca esta que veio a ser reforçada mediante as apresentações n.ºs … e …, de 17 de Janeiro de 2005.
10) Por carta registada com aviso de recepção, datada de 6 de Janeiro de 2009, remetida pelo Autor à Ré, que recebeu, cuja cópia se encontra junta aos autos a fls. 21, aquele comunicou que procedera “à marcação da escritura, no Cartório da Dr.ª ..-, na Rua …, no dia 23 de Janeiro de 2009, pelas 12 horas”.
11) Por fax de 20 de Janeiro de 2009, remetido pela Ré ao Autor, que recebeu, cuja cópia se encontra junta aos autos a fls. 26, aquela informou que “não nos foi ainda possível obter o certificado energético, o que se prevê acontecer nos próximos 15 dias úteis, sendo que, logo que possível, diligenciaremos pela marcação da escritura. Quanto à regularização da hipoteca, estamos a proceder perante o Montepio Geral por forma a tentar que coincida com a entrega do referido certificado”.
12) A Ré não compareceu no local e data referidos em J).
13) A Ré nunca notificou o Autor para a outorga da escritura de compra e venda.
14) A Ré nada disse ao Autor decorridos dois meses sobre a data do envio do fax referido em 11).
15) Por fax de 27 de Março de 2009, remetido pelo Autor à Ré, que recebeu, cuja cópia se encontra junta aos autos a fls. 27-28, aquele comunicou que “(…) após o decurso do prazo de 15 dias úteis requerido por V. Exas., considero por vós definitivamente incumprido o contrato, perdendo interesse na aquisição da fracção. 10. O incumprimento do contrato por V. Exas. determina, nos termos do contrato celebrado, a obrigação de indemnização pelo valor em dobro das quantias entregues a título de sinal e antecipação de pagamento, a saber 340.000,00 €. 11. Assim, ficam V. Exas. notificados de que a partir desta data passo a possuir a fracção não com intenção de aquisição na qualidade de promitente comprador, qualidade que assumi até hoje, mas sim na qualidade de credor com direito de retenção sobre a fracção até ao pagamento daquela indemnização. 12. Por este motivo, entregarei a fracção contra o recebimento da quantia de 340.000,00 €, o que aguardarei pelo prazo de 10 dias (…)”.
16) Por fax de 30 de Março de 2009, remetido pela Ré ao Autor, que recebeu, cuja cópia se encontra junta aos autos a fls. 31, aquela comunicou que “(…) já conseguimos obter o Certificado Energético da fracção em epígrafe e envidámos todos os esforços que nos foram possíveis junto ao Montepio Geral para nos fornecesse o documento de cancelamento das hipotecas sobre essa fracção. A agência de Alfragide na pessoa do seu gerente está a proceder a uma nova análise da situação dos distrates das várias fracções por forma a libertar esta. Como não depende só de nós, solicitamos que nos conceda uma prorrogação do prazo que menciona no fax até ao final do mês de Abril (…)”.
17) Por fax de 3 de Abril de 2009, remetido pela Ré ao Autor, que recebeu, cuja cópia se encontra junta aos autos a fls. 32, aquela comunicou que “Não tendo até esta data recebido a sua confirmação de que nos pode conceder um prazo mais alargado para a resolução da situação a contento de todos, com a celebração da escritura da fracção em epígrafe, renovamos o pedido por forma a nos permitir ter mais tempo para pressionar o Montepio Geral a emitir o termo de cancelamento das hipotecas sobre a referida fracção”.
18) O Autor não habita na fracção.
19) O Autor é advogado e titular da cédula profissional n.º 5577L.
20) Sem prejuízo do referido em F) [leia-se 6, face ao evidente lapso], o Autor não entregou à Ré, nem esta recebeu daquele, a quantia de € 170.000,00.
21) Foi acordado entre o Autor e os sócios da Ré que a transacção da fracção consubstanciaria uma dação em cumprimento pelo crédito de honorários, que aquele detinha sobre estes, a título de serviços de advocacia prestados até maio de 2003
22) O gerente da R. informou o Autor que a escritura seria celebrada até ao fim de Janeiro de 2008.
23) A R. foi instada posteriormente pelo Autor para indicar a data da celebração da escritura pública de compra e venda.
24) Tendo informado que só posteriormente poderia ser outorgada.
25) Em finais de Junho de 2008, a Ré assumiu perante o Autor que realizaria a escritura tão breve quanto o possível.
26) A aquisição da fracção, por parte do Autor, destinava-se à cedência a seus filhos.
27) Que pretendiam declarar prometer comprar a fracção, através de cessão da posição contratual do Autor, se a Ré nisto consentisse.
28) O que era do conhecimento dos sócios da Ré.
29) A filha e o genro do Autor vêm habitando a fracção desde Agosto de 2007.
30) O Autor demandou a insolvente, pedindo em juízo da devolução do sinal em dobro, através de acção que intentou em Abril de 2009, e que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste - Juízo Central Cível de Cascais, sob o número de processo….
31) Nesse processo foi proferida sentença em 13.4.2012, julgando a acção improcedente, da qual o Autor interpôs recurso, não impugnando a decisão de facto contida naquela sentença.
32) O Venerando Tribunal da Relação de Lisboa declarou a inutilidade superveniente do recurso por decisão de 3.2.2016.
33) Em 13.8.2018, o Autor instaurou acção que constitui o apenso H, nos termos da qual pediu, além do mais, “se digne reconhecer, nos termos legais e da jurisprudência uniformizada, o direito de retenção do requerente sobre a fracção identificada no pedido supra, com efeitos sobre a graduação dos seus créditos.”
34) Na acção mencionada em 33) o Autor invocou a seu favor, por diversas vezes, o direito de retenção, designadamente argumentando “22- Nessa acção e desde essa acção, o requerente sempre invocou o Direito de retenção sobre a fracção prometida vender (…)”.
35) No apenso H) foi proferida sentença em 1.7.2022 que conheceu do pedido, na qual se lê, além do mais “Efetivamente, atendendo ao teor do acima vertido ponto O), por comunicação de 27.03.2009, remetida à ali ré e aqui insolvente, que recebeu tal comunicação, o autor declarou “
considero
por
vós
definitivamente incumprido
o
contrato,
perdendo
interesse
na
aquisição
da
fracção
”.
A resolução do contrato consiste na destruição do vínculo negocial, em princípio retroativamente (n.º 1 do artigo 434º do Código Civil), e, entre as partes, com os efeitos previstos para a nulidade e anulação (artigo 433º do Código Civil).
Opera-se mediante declaração à outra parte (n.º 1 do artigo 436º do Código Civil), salientando Brandão Proença que
como
estrutura
negocial,
a
resolução
surge-nos
como
negócio
jurídico
unilateral
receptício,
integrando,
normalmente,
uma
declaração
extrajudicial,
não
sujeita
a
qualquer
formalidade
(
in
A
resolução
do
contrato
no
direito
civil
, vol. XXII, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1982, p. 76).
Consistindo numa declaração recetícia, torna-se eficaz logo que chegue ao poder do seu destinatário (n.º 1 do artigo 224º do Código Civil) e torna-se, desde então, irrevogável (n.º 1 do artigo 230.º).
Retornando ao caso vertente, o autor comunicou de forma eficaz à agora insolvente que havia considerado
definitivamente
incumprido
o
contrato-promessa,
perdendo
o
interesse
na
aquisição
da
fracção
. A partir do momento em que esta declaração chegou ao conhecimento do seu destinatário – a agora insolvente –, a opção do autor consolidou-se, passando a tutela da sua posição, enquanto contraente adimplente, a situar-se no
interesse
contratual
negativo
, ou seja, na reparação dos danos causados pelo não cumprimento definitivo do contrato-promessa.
O comportamento do autor posterior à comunicação acima aludida confirma, precisamente, a escolha de caminho trilhado pelo autor: à comunicação resolução de 27.03.2009 sucedeu-se a propositura, em 16.04.2009 (cfr. artigo 14.º da petição inicial), da referida ação n.º … em que peticiona a resolução do contrato (1) e a restituição do sinal em dobro.
A circunstância de, posteriormente à resolução extrajudicial, ser judicialmente peticionada a resolução não invalida a declaração resolutiva já emitida que, tendo chegado ao destinatário, se tornou eficaz e irrevogável, apenas tornando, isso sim, o pedido de declaração judicial da resolução inadmissível judicial (sendo admissível, outrossim, o pedido de apreciação judicial da resolução já efetuada) – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.01.2011, rel. Sousa Leite.“
Com relevância para a apreciação do objeto do recurso, resulta da consulta eletrónica efetuada ao apenso H, que:
36) A ação foi instaurada pelo aqui autor/apelante contra a massa insolvente, os credores e a devedora como “acção de verificação ulterior de créditos e de outros direitos, para reconhecimento e graduação de crédito e execução específica”, concluindo o autor com o seguinte pedido:
“
Termos em que requer a V. Exa. que, reconhecendo provada a existência do negócio e que o requerente cumpriu integralmente a sua obrigação no contrato bilateral não cumprido pela insolvente, se digne declarar, in casu, a não admissibilidade de recusa de cumprimento pela Senhora Administradora de Insolvência, devendo esta concluir o negócio.
Para tanto, requer a separação do bem objecto do negócio – a fracção autónoma designada pela letra H, correspondente ao 3º andar Esquerdo no prédio sito…, sito na R.,,,, inscrito na matriz sob o art.º … e descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de … sob o número … da freguesia de … -, devendo ele ser separado da relação de bens apreendidos, ser expurgada a hipoteca e vendido ao requerente, reconhecendo-se que o preço já foi pago, devendo a Senhora Administradora de Insolvência outorgar escritura de compra e venda;
Caso assim não se entenda, ou a Senhora Administradora de Insolvência não cumpra o pedido anterior, requer a Vossa Excelência se digne, com os mesmos fundamentos, proferir sentença que produza os efeitos da declaração negocial da faltosa, declarando a venda ao A. da fracção autónoma identificada no pedido anterior;
Caso assim não se entenda, no que não se concede, se se considerar admissível e verificada a opção da Senhora Administradora de Insolvência pela recusa da conclusão do negócio requer que seja reconhecido e graduado como privilegiado o crédito do A. sobre a massa falida no valor de 170.000,00€ (cento e setenta mil euros), correspondente ao valor da contraprestação da devedora na parte incumprida e ainda, no valor de 25.000,00€, a título de indemnização pelos prejuízos causados pelo incumprimento, no valor total de 195.000,00 (cento e noventa e cinco mil euros);
Em qualquer caso, requer a V. Exa. se digne reconhecer, nos termos legais e da jurisprudência uniformizada, o direito de retenção do requerente sobre a fracção identificada no pedido supra, com efeitos sobre a graduação dos seus créditos”
37) A sentença referida em 35) transitou em julgado e contém o seguinte dispositivo: “nos termos e pelos fundamentos expostos, julgo improcedente a ação e, em consequência, absolvo a ré de todos os pedidos contra si formulados pelo autor”, sendo ali determinado o prosseguimento dos autos apenas para apreciação do pedido reconvencional deduzido pela massa insolvente.
IV.
As questões enunciadas como objeto de recurso refletem as pretensões do apelante, que, a título principal, pretende ver reconhecida a procedência do pedido por si deduzido, com apreciação favorável e imediata do mérito da ação, que dispensaria o prosseguimento dos autos para instrução e julgamento, reservando esta última possibilidade para o caso de se considerar que tal reconhecimento depende de acrescida produção de prova.
É indiscutível que a apreciação de mérito, total ou parcial, da ação em sede de despacho saneador deve ser reservada para situações excecionais, em que a clareza dos factos e a presença de uma solução de direito praticamente unívoca, autorizam que o tribunal antecipe a fase decisória.
O juiz deve “
conhecer do pedido ou dos pedidos formulados sempre que não exista matéria controvertida suscetível de justificar a elaboração de temas da prova e a realização de audiência final. A antecipação do conhecimento de mérito pressupõe que, independentemente de estar em jogo matéria de direito ou de facto, o estado do processo possibilite tal decisão, sem necessidade de mais provas, e independentemente de a mesma favorecer uma ou outra das partes
”, o que acontecerá, designadamente, quando “
seja indiferente para qualquer das soluções plausíveis de direito a prova dos factos que permaneçam controvertidos: se, de acordo com as soluções plausíveis da questão de direito, a decisão final de modo algum puder ser afetada com a prova dos factos controvertidos, não existe qualquer interesse na enunciação dos temas da prova e, por isso, nada impede que o juiz profira logo decisão de mérito
” [Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 3ª edição, Almedina, p. 749].
Importa salientar que, no caso concreto, o apelante não questiona ou impugna os factos que o tribunal elencou como provados, antes considerando que estes factos são suporte de uma distinta solução de direito, impondo, no limite, que lhe seja autorizada a prova de factos complementares que conduziriam a uma solução jurídica distinta.
A pretensão do autor é a de ver reconhecida a aquisição originária, por usucapião, da fração H do prédio sito na Rua … e, para este efeito, invocou que:
- a Devedora mais tarde declarada insolvente entregou
– traditio
– o apartamento ao A. para pagamento de uma dívida – dação em pagamento – antes mesmo de ter celebrado um contrato-promessa de compra e venda, e este foi necessário porquanto, na altura da respetiva celebração o prédio não estava, ainda, constituído em propriedade horizontal, o que impediu a imediata celebração da escritura definitiva;
- o A. passou, de imediato, a exercer atos materiais sobre o apartamento, estando, assim, plenamente verificado o requisito do
corpus
, que a posterior celebração do contrato-promessa só veio confirmar;
- a prestação do A. estava já inteiramente realizada;
- o autor iniciou então uma atuação de promitente-comprador sobre o imóvel em nome próprio, enquanto verdadeiro proprietário, manifestada, designadamente, através da permanência e residência no imóvel, na realização de obras, do arrendamento ou comodato do imóvel a terceiro, da celebração de contratos de prestação de serviços, incluindo água e luz, em nome próprio ou dos seus familiares a quem cedeu a casa, entre outros;
- a partir da celebração do contrato-promessa, a intenção das partes no sentido de acordar e reconhecer ao Autor a constituição da posse sobre o apartamento e a aceitação expressa, pela Devedora ora Insolvente, da extensão e amplitude do exercício dessa posse, por ele enquanto verdadeiro proprietário;
- o exercício dos poderes de facto manteve-se de forma pública, pacífica e de boa-fé ao longo de 16 anos, período ao longo do qual teria o autor atuado com a convicção de que era o verdadeiro proprietário do imóvel.
O reconhecimento da aquisição da fração pela invocada via da usucapião, forma originária de aquisição de direitos reais, implicaria a prova de uma posse passível de ser subsumida à previsão do art.º 1251º do Código Civil, isto é, enquanto poder que se manifesta por uma atuação por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade.
Tal como o próprio apelante reconhece, são dois os elementos relevantes para que a posse constitua um meio adequado à aquisição do direito: um elemento material – o
corpus
–, traduzido nos atos materiais praticados sobre a coisa; um elemento psicológico – o
animus
-, consubstanciado na intenção de se comportar como titular do direito real correspondente aos atos materiais praticados.
Como define Orlando de Carvalho [RLJ, Ano 122, p. 104], “posse é o exercício de poderes de facto sobre uma coisa em termos de um direito real (
rectius
: do direito real correspondente a esse exercício). Envolve, portanto, um elemento empírico – exercício de poderes de facto – e um elemento psicológico – em termos de um direito real”.
A menção ao direito real “correspondente a esse exercício” não é despicienda.
Como prevê o art.º 1287º do Código Civil, “[A] posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação: é o que se chama usucapião”, acrescentando o art.º 1288º que, uma vez invocada a usucapião, os seus efeitos se retrotraem à data do início da posse.
Ainda com relevância para o caso concreto, preceitua o art.º 1257º, n.º 1 que a posse se mantém enquanto durar “
a atuação correspondente ao exercício do direito ou a possibilidade de a continuar
”.
Em suma, a posse, enquanto exercício de poderes de facto que, quando desenvolvida com específicas características e ao longo de um determinado lapso de tempo, permite a aquisição do direito de propriedade, corresponde a um poder que reclama uma contínua ou ininterrupta atuação nos termos correspondentes a esse direito real. Assim, o reconhecimento do direito do autor exigiria, não apenas a ocupação do imóvel ou ininterrupta utilização exclusiva do mesmo (por si ou através de terceiro) ao longo de um prolongado período de tempo, mas também que, ao longo de todo esse período, o autor, enquanto possuidor/detentor, houvesse mantido a convicção de que atuava como dono do imóvel.
É indiscutível a dificuldade de prova da motivação que preside à atuação do detentor/possuidor, já que o
animus
, por contender com matéria volitiva e com convicções pessoais, pode não evidenciar uma exteriorização diferenciada, razão pela qual – prevenindo situações de dúvida - a lei faz presumir a titularidade do direito na esfera jurídica do possuidor (art.º 1268º do Código Civil).
Vejamos, no caso concreto, se o autor/apelante adquiriu a posse do imóvel –
pela prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito
(art.º 1263º, a) do Código Civil) – e, caso tal haja ocorrido, se essa posse reúne as características reclamadas pelo art.º 1287º, passíveis de permitir a aquisição do direito de propriedade.
Partindo das razões que estiveram na base da tradição da fração para a disponibilidade do autor, resulta provado que, por documento reduzido a escrito em 10.8.2006, designado como “Contrato Promessa de Compra e Venda”, a Ré, designada por promitente vendedor, prometeu vender ao Autor, que, por seu turno, prometeu comprar, designado por promitente comprador, pelo preço global de €170.000,00, a fração em litígio, fazendo constar desse documento que o pagamento do preço se encontra integralmente satisfeito. Mais se provou ter sido acordado entre o Autor e os sócios da Ré que a transação da fração consubstanciaria uma dação em cumprimento pelo crédito de honorários que aquele detinha sobre estes, a título de serviços de advocacia prestados até maio de 2003.
No mais, tanto quanto resulta assente, após diligências no sentido de ver realizada a escritura pública de compra e venda para transmissão definitiva do imóvel, o autor remeteu à ré a carta reproduzida no ponto 15 dos factos provados (datada de 27.3.2009 – doc. anexo à contestação p. 149/238), notificando a ré de que, após o decurso de prazo de 15 dias, consideraria o contrato definitivamente incumprido, perdendo interesse na aquisição da fração, com consequente crédito indemnizatório correspondente ao dobro das quantias entregues a título de sinal, referindo que passava a “possuir a fracção não com intenção de aquisição na qualidade de promitente comprador, qualidade que assumi até hoje, mas sim na qualidade de credor com direito de retenção sobre a fracção até ao pagamento daquela indemnização”.
Mais resulta provado que, não obstante os subsequentes contactos da ré, o autor intentou ação contra a ré, em abril de 2009, pedindo em juízo a resolução do contrato-promessa e a devolução do sinal em dobro.
Já no contexto subsequente à declaração de insolvência, o autor instaurou a ação correspondente ao apenso H, em que pedia que se reconhecesse que havia cumprido integralmente a sua obrigação no contrato bilateral celebrado com a insolvente e não cumprido por esta, pretendendo que a Senhora Administradora de Insolvência concluísse o negócio, com separação da fração da relação de bens apreendidos, ou execução específica, ou ainda verificação e graduação do crédito com reconhecimento de que o mesmo se encontra garantido por direito de retenção.
A questão reside em apreciarmos se a sucessão de atos praticados pelo autor se reflete na definição do direito a que, em cada momento, correspondeu o exercício dos seus poderes de facto sobre a fração, isto é, se o
animus
que acompanhou o
corpus
é contínuo, inalterado e reflete uma persistente atuação correspondente ao exercício de poderes próprios de quem atua convicto de que é proprietário.
A esta luz, não assume verdadeira relevância discutir se a tradição do imóvel efetuada por ocasião ou em antecipação da celebração de um contrato promessa e dos seus efeitos é apta a transmitir uma posse juridicamente relevante ou se a resolução do contrato produziu integralmente os seus efeitos extintivos quando, por improcedência da ação judicial instaurada, se limitou à declaração extrajudicial nesse sentido dirigida pelo autor à ré (o que sempre decorreria diretamente da lei – art.º 436º, n.º1 do Código Civil), antes se centrando a solução da questão na apreciação objetiva da atuação do autor, avaliando-se a sua relevância para definição do direito que o mesmo, de forma expressa, manifestou estar convicto de titular sobre o imóvel.
Em suma, importa aferir se o processo reúne elementos de facto que nos permitam afirmar o
animus
que acompanhou o exercício pelo autor dos seus poderes de facto sobre o imóvel.
Cremos que a tese defendida pelo autor/apelante assenta no vício originário de considerar que o suporte jurídico justificativo da transmissão pela ré da disponibilidade do imóvel, que – segundo alega - marcou o início do exercício de poderes de facto sobre o bem, por obedecer ao propósito de realizar uma dação em pagamento, define, sem interrupção, o elemento psicológico dos poderes de facto que, de forma reiterada, exerceu sobre o imóvel. Contudo, ainda que, após prova, o tribunal considerasse ter sido essa a intenção inicial e pudesse situar o termo inicial da transmissão no referido ano de 2005 (art.º 25º da petição inicial), os demais factos provados evidenciam que a realidade da relação entre autor e ré não prosseguiu no sentido projetado por essa mesma intenção.
Resulta dos factos provados, que o autor não questiona, ter sido acordado entre o Autor e os sócios da Ré que a transmissão da fração consubstanciaria uma dação em cumprimento pelo crédito de honorários, que aquele detinha sobre estes, a título de serviços de advocacia prestados até maio de 2003.
Em anotação ao art.º 837º do Código Civil, referem Pires de Lima e Antunes Varela [Código Civil Anotado, Vol. II, 3ª edição, Coimbra Editora, p. 124] que “[A] dação em cumprimento (
datio in solutum)
, que é uma das formas possíveis de satisfação do direito do credor (cfr. art.º 523º), distingue-se da dação em função do cumprimento (
datio pro solvendo),
regulada no art.º 840º; no primeiro caso, o devedor pretende, com a prestação diversa da devida, extinguir imediatamente a obrigação, ao passo que, no segundo, pretende apenas facilitar o cumprimento, fornecendo ao credor os meios necessários para este obter a satisfação futura do seu crédito”.
Como o próprio apelante aceita, o contrato-promessa (designado como de compra e venda) foi outorgado por inviabilidade de, nessa ocasião, poder ser formalizada a escritura pública de transmissão da fração. Ou seja, a ré não poderia entregar a fração em pagamento da dívida de honorários, conduzindo essa entrega à exoneração do devedor perante o credor com consequente extinção da obrigação, pelo que se limitou a assumir a obrigação de, no futuro, transmitir a fração para o autor, assumindo como pago o valor correspondente ao preço (valor da dívida), postergando-se a efetiva extinção da obrigação da ré perante o autor para o momento em que se realizasse a escritura pública (contrato prometido) e se formalizasse a transmissão definitiva.
A formalização do contrato-promessa constitui comprovação bastante de que o devedor não ficou exonerado da obrigação pela simples entrega do imóvel ao credor – como parece sugerir o apelante -, antes mantendo o credor o seu direito de crédito até à realização do contrato definitivo, direito de cuja titularidade o autor se arrogou ao longo dos anos subsequentes.
O contrato-promessa é a convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato (art.º 410º, n.º1 do Cód. Civil) ou, na definição de Almeida e Costa, “consiste na convenção pela qual um ou ambos os contraentes se obrigam à realização futura de um contrato.” (in “Direito das Obrigações”, 2ª ed., p. 126).
A circunstância de o autor ser credor da ré à data em que foi celebrado o contrato-promessa, bem como o facto de as partes terem a acordada intenção de extinguir o direito de crédito do autor pela via da transmissão futura do imóvel, não constituem alicerce inabalável da aquisição da posse pela via da tradição imediata do bem. Tal só ocorreria se fosse possível assumir que a disponibilização imediata do bem correspondia a uma vontade conjugada das partes de transmitir para o autor, a título definitivo, a posse correspondente ao direito de propriedade.
Esta vontade, contudo, é contrariada pelos comportamentos exteriorizados pelo autor ao longo de todo o período que se seguiu à formalização do contrato-promessa.
O autor/apelante não aceitou a extinção imediata da obrigação da ré por efeito da tradição da fração, como o evidencia a sua opção por formalizar a vontade de extinção dos efeitos do contrato-promessa pela via da resolução e pela expressa manifestação de desinteresse na aquisição do imóvel (factos 15 e 30), mantendo o exercício de poderes de facto sobre o bem no que assumiu corresponder ao exercício do direito de retenção em garantia do crédito de que sempre se arrogou ser titular – quer na carta remetida à ré aludida em 15, quer na ação instaurada contra a ré referida em 30 (cujo pedido se encontra resumido no documento 2 anexo à contestação), quer ainda no apenso H, cujo pedido se transcreve no facto 36.
A posse, como resulta do disposto no art.º 1263º, al. a) do Código Civil, adquire-se pela prática reiterada dos atos materiais
correspondentes ao exercício do direito
, sendo a aquisição por usucapião uma faculdade autorizada àquele que mantém a posse “do direito de propriedade” por certo lapso de tempo, atuação reiterada que lhe permite adquirir o direito “
a cujo exercício corresponde a sua atuação
” – art.º 1287º.
Nesta medida, ainda que o tribunal considerasse provada a matéria factual alegada pelo autor e mencionada nas conclusões 56 e 63 a 74, a solução jurídica da causa não seria diferenciada, porquanto ainda que se viesse a apurar que o autor adquiriu a posse em outubro de 2005 e passou nessa ocasião a praticar atos correspondentes ao exercício de direito de propriedade, não poderia desconsiderar-se a evidente alteração de
animus
que resulta dos factos provados, sendo que estes têm por base a atuação do próprio autor.
Não existe fundamento para se recorrer a presunções ou necessidade de produzir prova acrescida, quando o
animus
que acompanhou o período de exercício de poderes de facto pelo autor/apelante que se desenvolve, pelo menos, a partir de março de 2009 (facto 15) torna manifesta a circunstância de aquele se assumir, em todos os momentos, como titular de um direito de crédito (ainda que com invocada garantia real sobre o imóvel ocupado) e não como titular de um direito de propriedade.
Neste conspecto, tem particular pertinência o decidido no Acórdão citado pela 1ª instância (por lapso mencionado como sendo do STJ, quando corresponde a um aresto do Tribunal da Relação de Lisboa) - proc.º n.º11680/15.2T8LRS.L1-6, disponível para consulta
nesta ligação
-, onde se refere que “(…)
Neste quadro circunstancial, é insofismável a ausência de «animus» – intenção de actuar sobre a coisa com um determinado estatuto – da parte da Recorrente, enquanto fenómeno do foro psicológico, cognitivo e volitivo que materializa uma expressão do pensamento coerente e compatível com o corpus enquanto laço físico e material assente no contacto e na expressão de uma relação entre o sujeito e o objecto no domínio da matéria – possibilidade de exercer influência sobre a coisa não toldável pela acção de terceiros. Tendo-se demonstrado de forma clara a impossibilidade de existência de «animus possidendi» e a não materialização de um «corpus» relevante e próprio, nenhum sentido teria o proposto recurso a presunções. Estas destinam-se a extrair de factos conhecidos outros, de natureza desconhecida – vd. art.º 349.º do Código Civil. Ora, se conhecemos os factos, não podemos tratá-los como desconhecidos para a eles chegar por caminhos ínvios
.
O mesmo sucede no caso em apreço.
Se a atuação do autor/apelante, ao longo de todos os anos que se seguiram à declaração resolutiva do contrato-promessa, foi acompanhada pela expressão clara de que a entrega do imóvel pela ré não produziu um efeito extintivo da obrigação desta de pagamento do valor devido a título de honorários, mantendo aquele a inequívoca manifestação de titularidade de um direito de cariz obrigacional, não poderá convolar, nesta fase, o elemento volitivo por si expressamente assumido, passando a invocar a existência de uma atuação desenvolvida na convicção de que titulava os direitos próprios de dono do imóvel, ou de que a sua ligação ao imóvel foi ininterruptamente desenvolvida na certeza interior de que seria dono do mesmo. Todas essas afirmações são contrariadas pelos factos, sendo que estes factos são a expressão do que sempre afirmou o próprio apelante.
Note-se, aliás, que no apenso H – ainda que negando a situação de incumprimento definitivo e de resolução do contrato-promessa e pretendendo, pela via da execução específica, obter a transmissão definitiva do imóvel -, o apelante manteve sempre a defesa do seu direito de crédito, não podendo, numa inversão de toda a sua atuação precedente e apenas por invocação do período de tempo entretanto decorrido, inverter a sua posição, convertendo a até então invocada possibilidade de “retenção” do imóvel em garantia do direito de crédito, numa súbita titularidade de um direito real de propriedade.
A contagem do tempo para efeitos de aquisição originária do direito de propriedade reclama a posse
reiterada
nos termos correspondentes ao exercício desse direito, que, ainda que com prova integral dos factos alegados na petição inicial e ora salientados pelo apelante, não poderia ser reconhecida.
Refere o apelante – conclusões 26 e 27 – que o
facto de ter invocado o direito de retenção, para um determinado efeito em nada abala o animus possidendi da posse anterior ou já existente, que era o de continuar a exercer sobre a coisa o domínio de facto correspondente ao exercício do direito de propriedade. É esse animus possidendi, gerado pela entrega correspondente ao acto material da dação em cumprimento, que importa avaliar
.
Acrescenta que ao tribunal recorrido se impunha apurar em que condições foi entregue o apartamento ao autor e quando e porquê começou a posse (conclusões 52 a 54 e 58), por se tratar de matéria essencial, referindo ainda (conclusão 134) que, sendo o ato jurídico que deu lugar à aquisição da posse um ato destinado a transferir a propriedade do imóvel (dação em pagamento), o elemento intencional do ato se afere por esse negócio.
Contudo, essa posição, tendo em conta a matéria provada e não impugnada – que se situa no momento temporal posterior àquele que terá definido a “investidura na posse” - não corresponde a uma solução jurídica plausível.
Como refere Manuel Henrique Mesquita [Direito Reais, Coimbra, Sumários das Lições ao Curso de 1966-1967, p. 93/94], “(…) O acto de aquisição da posse (ou de investidura na posse) tem de conter os dois elementos definidores deste conceito: o corpus e o animus. O elemento intencional reveste sempre as mesmas características: o possuidor há-de actuar com a convicção de estar a exercer sobre a coisa um direito real próprio”.
Também José de Oliveira Ascensão [Direito Civil Reais, 4ª edição, 1987, p.91], a propósito do
animus
ou da
intenção específica do sujeito
que deve complementar o
corpus
para que haja posse, refere que “(..) Em caso nenhum o
animus
poderia ser confundido com a
convicção
de ser titular do direito (…) Nem é a intenção de ter a coisa como proprietário, ou
animus domini
, pois a posse pode referir-se a muitos outros direitos, além da propriedade. Não é sequer a intenção de exercer sobre a coisa um poder no próprio interesse (…) O
animus
seria assim a intenção de agir como o titular do direito a que o exercício do poder de facto se refere”.
No caso em apreço, ainda que se provasse a versão do autor de que havia iniciado atos de posse por decorrência de um projetado ato jurídico translativo da propriedade, que teria determinado a sua “investidura” no exercício de poderes de facto e definido o
animus
, a factualidade apurada (e, repete-se, não impugnada) nega de forma clara a existência de uma intenção persistente, contínua e inalterada de atuar sobre o bem com a intenção de exercer os poderes próprios de dono.
Como refere a apelada, a ter havido posse, ela findou em 2009.
São detentores ou possuidores precários aqueles que, tendo embora o
corpus
da posse, a detenção da coisa, não exercem o poder de facto com o
animus
de exercer o direito real correspondente (com
animus possidendi
) - cfr. al. a) do artigo 1253º do Código Civil -, apenas se presumindo a posse daquele que exerce o poder de facto em caso de dúvida, situação que, no caso concreto, não se verifica.
A situação jurídica do autor/apelante subsume-se à citada previsão, limitando-se, ao longo dos anos, com distintos argumentos jurídicos, a atuar no sentido de defender o seu direito de crédito, procurando não perder a possibilidade de adquirir o imóvel, mas ciente de que não se podia considerar seu dono.
Nessa medida, a partir do momento em que passa a atuar como mero detentor (sendo aqui indiferente que tal haja ocorrido no termo inicial ou, como com segurança se pode afirmar, a partir de março de 2009), a possibilidade de ser reconhecida ao autor a posse dependeria da alegação e prova de que a ocupação desenvolvida a título precário, em algum momento, houvesse sido convertida em posse passível de conduzir à aquisição do direito, o que, a ocorrer, teria que verificar-se de acordo com a previsão do art.º 1265º do CC, isto é, por inversão do título de posse.
A inversão do título de posse pode dar-se por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía ou por ato de terceiro capaz de transferir a posse (artigo 1265º do código Civil), sendo generalizado o entendimento de que a oposição tem de traduzir-se em atos positivos (materiais ou jurídicos) que revelem de forma inequívoca que o possuidor precário quer, daí em diante, ser um possuidor com “animus” de exercer o direito real que corresponde ao “corpus” (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª ed., Coimbra, 1984, pág. 30 e ss., Henrique Mesquita, Direitos Reais, Coimbra, 1967, pág. 98 e ss., Menezes Cordeiro, Direitos Reais, Lisboa, 1978, vol. II, pag. 664 e ss.).
No nosso caso, o único momento em que o autor exterioriza a clara intenção de atuar como dono corresponde à propositura da presente ação, no contexto da qual alega factos que não convergem com os alegados no apenso H, numa atuação que, como o próprio reconhece, se destina a evitar, com recurso a todas as possibilidades jurídicas, ser desapossado do bem apreendido em benefício da massa insolvente.
O apelante refere (conclusões 108 e 109) que
o facto de ter tentado acautelar o seu direito de crédito e mesmo a sua posse, nada compromete o seu animus domini no que à posse se refere; muito pelo contrário, reforça-a
e que
o que deve ser apurado é, para além do corpus e desde quando, se o possuidor tem o animus domini, se no seu espírito resta intacta, como ficou, a intenção de continuar a exercer sobre a coisa o poder que já detinha correspondente ao domínio de facto do direito de propriedade; e não declarações instrumentais que tenha feito para assegurar os seus direitos e, até, salvaguardarem a posse de eventuais investidas
.
Parece-nos claro que o apelante confunde poder de facto, utilização ou detenção com posse juridicamente relevante, mantendo a firme defesa de que a circunstância de ter atuado perante todos, incluindo os tribunais, de forma não correspondente ao exercício de um direito de propriedade, exteriorizando e procurando ver judicialmente reconhecida a sua qualidade de credor, garantido por direito de retenção, seria despida de consequências jurídicas, o que, conforme referimos, não obtém sustentação na lei, nem reflete uma tese a que possa ser reconhecida plausibilidade jurídica.
A jurisprudência citada pelo apelante em apoio da sua tese – Ac. do TRL de 19.11.2002, proc.º n.º 8205/2002-7, acessível em
www.dgsi.pt
- não contende com a solução do caso concreto. Na situação factual do referido acórdão, o promitente comprador que obteve a tradição do imóvel, com pagamento integral do preço, manteve a posse reiterada e contínua do mesmo num contexto em que o promitente vendedor abdicou dos poderes associados ao direito de propriedade, passando o promitente comprador a atuar como dono – inclusivamente dando-o de arrendamento -, sem que existisse, ao longo do período em que exerceu os seus poderes, qualquer ato passível de ser considerado como interruptivo da posse, concluindo-se no referido aresto que “a tentativa de o promitente comprador defender os seus interesses por cada uma das vias que a lei lhe consente não pode significar, de modo imediato, a renúncia aos efeitos derivados da invocação da posse”, nem invalida o lapso de tempo já decorrido para efeitos de prescrição aquisitiva, tratando o aresto a situação como excecional, já que “na eventualidade da ausência de prova de outros factos complementares, a mera detenção da coisa prometida, ao abrigo de um contrato-promessa de compra e venda, seria insusceptível de atribuir ao promitente comprador os atributos do verdadeiro possuidor. Antes ele se assumiria, em geral, como mero detentor ou possuidor em nome de outrem”, ali se referindo, com relevância, que “a vida nem sempre se reduz aos estritos quadros sintetizados. Circunstâncias de diversa ordem podem confluir para atribuir, desde logo, ao promitente comprador a qualidade de verdadeiro possuidor”.
No caso concreto, ainda que se pudesse considerar que o apelante havia iniciado os seus poderes de facto sobre o imóvel em outubro de 2005 (como o mesmo alegou), o próprio, desde março de 2009, definitivamente deixou de atuar de forma correspondente ao exercício do direito de propriedade – ainda que houvesse posse, expressamente renunciou à sua situação de possuidor em ação movida contra a promitente vendedora, que reconhecia como dona do imóvel. Não existe o quadro estável, continuado e juridicamente relevante que o aresto citado considerou corresponder a uma situação de vida que escapava ao tratamento jurídico habitual da situação de possuidor precário própria do promitente comprador que passa a deter a coisa prometida vender, antes ocorrendo uma típica situação de detenção ou posse precária reconhecida pelo autor/apelante que, numa fase precoce da detenção, manifestou de forma ativa pretender defender o seu direito de crédito, reconhecendo a indiscutível base contratual da detenção, optando pela destruição dos efeitos do contrato e procurando garantir, com recurso aos tribunais, que esse mesmo crédito obtinha satisfação.
Inexistindo qualquer elemento probatório com base no qual se possa concluir que, quer por exercício de poderes de facto ao longo de um reiterado e contínuo lapso de tempo com a convicção de que atuava como dono, quer por inversão da convicção com que detinha o prédio manifestada perante o titular do direito de propriedade, o autor haja, pelo menos a partir de março de 2009, praticado atos materiais sobre o imóvel na convicção de que era seu dono, sempre teria que improceder a ação instaurada.
A matéria de facto controvertida, associada à data em que a ocupação se iniciou ou às tentativas negociais de solução da situação do imóvel que se terão desenvolvido ao longo dos anos, mostra-se irrelevante para contrariar a posição exteriorizada pelo autor de forma persistente, como titular de um direito de crédito ou como retentor do imóvel em garantia desse crédito, motivo pelo qual não merece censura a opção do tribunal recorrido de proferir imediata decisão de mérito.
Impõe-se, em conclusão, julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
***
V.
Nos termos e fundamentos expostos, acordam as juízas desta secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente a apelação e, em consequência, em confirmar a decisão recorrida.
Custas a cargo do apelante (art.º 527º do Código de Processo Civil.
*********
Lisboa, 29-04-2025
Ana Rute Costa Pereira
Renata Linhares de Castro
Isabel Brás Fonseca
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TRL
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https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/bc51c04a9b6bc58680258c890037b5c0?OpenDocument
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1,750,809,600,000
| null |
28869/24.6YIPRT.E1
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28869/24.6YIPRT.E1
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CRISTINA DÁ MESQUITA
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O facto de a entidade concessionária poder cobrar taxas e através dos seus funcionários equiparados a agentes de autoridade administrativa, poder exercer poderes de fiscalização nas áreas de estacionamento concessionadas no que respeita às contraordenações previstas no artigo 71.º do Código da Estrada, os quais implicam, nomeadamente,
o levantamento de auto de contra-ordenação ao titular do documento de identificação do veículo, implica que aquela entidade
esteja investida no exercício de poderes públicos. Donde a relação jurídica estabelecida entre a concessionária e os utilizadores das zonas de estacionamento objeto do contrato de concessão revestir a natureza de relação jurídica administrativa (artigo 1.º/1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais), caindo, também, na previsão do artigo 4.º, n.º 2, alínea o) do ETAF.
(Sumário da Relatora)
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[
"COMPETÊNCIA MATERIAL",
"TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS",
"CONCESSÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS",
"PARQUE DE ESTACIONAMENTO"
] |
Apelação n.º 28869/24.6YIPRT.E1
(2.ª Secção)
Relatora: Cristina Dá Mesquita
1.ª Adjunta: Eduarda Branquinho
2.º Adjunto: Vítor Sequinho dos Santos
Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:
I. RELATÓRIO
I.1.
(…), SA, autora na presente ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias movida ao abrigo do D/L n.º 269/98, de 1 de setembro, que moveu contra (…), interpôs recurso da decisão proferida pelo Juízo Local Cível de Setúbal, Juiz 3, do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, o qual julgou verificada a exceção dilatória de incompetência do tribunal em razão da matéria e, em conformidade, declarou os Juízos Locais Cíveis de Setúbal incompetentes em razão da matéria para apreciar o mérito da ação, absolvendo o réu da instância.
O despacho recorrido tem o seguinte teor:
«
I – Súmula
(…), S.A., NUIPC (…), demandou (…), NIF (...), pedindo a sua condenação ao pagamento do valor de € 1.822,99, sustentando para tanto e em suma, que se dedica à exploração e prestação de serviços na área do parqueamento automóvel, o que faz em vários locais da cidade de Setúbal, utilizando para o efeito máquinas para pagamento de estacionamento automóvel, com a indicação dos preços e condições de utilização dos mesmos.
Nesse âmbito, o Réu, como proprietário do veículo com a matrícula (…), estacionou o veículo nos vários parques de estacionamento que a Autora explora na cidade de Setúbal, sem proceder ao pagamento do tempo de utilização, conforme regras devidamente publicitadas no local, o que vez no conjunto de locais/horas que discrimina no R.I., tendo tais ocorrências correspondido à utilização dos espaços em valor que ascende ao montante de € 1.774,95, acrescido de juros de mora.
Uma vez citado, o Réu invocou a prescrição dos créditos, na parte em que se reportam aos anos de 2021 e 2022, assim como invocou a incompetência absoluta dos Tribunais judiciais, por se tratar de matéria que cai no âmbito dos tribunais administrativos e fiscais. Invocou também a sua ilegitimidade passiva e impugnou os fundamentos da demanda.
Concedido o contraditório à Autora em matéria de exceção, a mesma sustentou que o contrato de concessão de exploração celebrado com a Câmara Municipal de Setúbal para o fornecimento, instalação e exploração de parquímetros, em zonas e parques de estacionamento automóvel de duração limitada, não é sintomático de que os termos da presente ação devam ser deferidos aos tribunais com jurisdição administrativa, pois os atos por si praticados não revestem natureza administrativa, tratando-se de atos correspondentes à contraprestação da utilização de estacionamentos concessionados, no âmbito de uma relação contratual de facto, tanto mais que a Autora não efetua atos de fiscalização, não tendo poderes para autuar coimas ou multas por incumprimento das regras rodoviárias, tarefa exclusivamente atribuída às autoridades públicas de fiscalização do espaço, devendo tal exceção ser julgada improcedente.
***
II – Fundamentação
Não há dúvidas que a invocada incompetência absoluta, enquanto exceção dilatória (cfr. artigo 577.º, alínea a), e 578.º, ambos do Código de Processo Civil), pode ser arguida pelas partes e deve ser suscitada oficiosamente pelo tribunal em qualquer estado do processo, enquanto não houver sentença com trânsito em julgado proferido sobre o fundo da causa (cfr. artigos 97.º, n.º 1, e 278.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil).
Neste contexto, importa atentar que a
causa de pedir
desta ação, decorre da alegada utilização, pelo Réu, de espaços públicos que se destinam ao estacionamento de veículos, espaços esses que foram concessionados pelo Município de Setúbal à Autora, para que dentro do seu objeto social, melhor possa aproveitar e gerir os parquímetros instalados na cidade.
Dito isto e como é entendimento pacífico, a competência do Tribunal é fixada em função do
pedido
que na ação se faz, admitindo-se, no entanto, que complementarmente, mas apenas para melhor compreender e situar o pedido formulado nos casos em que tal se mostre necessário, que se atenda à
causa de pedir
nos precisos termos em que são configurados pelo Autor1.
Nos termos do artigo 211.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, “
os tribunais judicias são os tribunais comuns em matéria civil e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens jurídicas
”.
Por sua vez, nos termos do artigo 212.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, “
compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais
”.
Vieira de Andrade define a relação jurídica administrativa como sendo “
aquela em que um dos sujeitos, pelo menos, é uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, atuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido
”2.
Quanto à concessão, enquanto forma de transferência direta da gestão e administração de coisas públicas para entidades de direito privado, consiste “
na realização de tarefas essencialmente administrativas através de um contrato administrativo, pelo que suas ações e omissões não podem deixar de ser integradas e reguladas pelas disposições e princípios do direito administrativo
.”3
3 Assim, citando vária outra jurisprudência,
vide
Ac. do TCA Norte de 17-04-2015, proc. n.º 02010/13.9BEBRG.
Por conseguinte, o conceito de relação jurídica administrativa é, assim, erigido, tanto pela Constituição como pela lei ordinária, como o critério nuclear da repartição da jurisdição entre os tribunais administrativos e os tribunais judiciais. Todavia, não se esgota aí.
O artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (Lei n.º 13/2002, de 19/02) delimita o âmbito da jurisdição administrativa, nas suas diversas vertentes, relevando para este efeito, face aos contornos da ação, de entre as várias alíneas do n.º 1, a alínea e), onde se estatui que “
Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a:
(…)
e) Validade de actos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas colectivas de direito público ou outras entidades adjudicantes;
(…)”.
A referida norma, com ajuste de redação, corresponde ao anterior artigo 4.º, n.º 1, alínea f), do ETAF, na redação vigente até à entrada em vigor da alteração operada pelo DL n.º 214-G/2015, de 02/10, norma que atribuía competência aos Tribunais Administrativos e Fiscais quanto a:
“
f) Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de ato administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspetos específicos do respetivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que atue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público
;”
Dito isto, importa considerar que a Autora propôs a presente ação, legitimada pela qualidade de concessionária de estacionamentos públicos na cidade de Setúbal, cujo regime legal vem disciplinado, de um modo geral, no Decreto-Lei n.º 146/2014, de 9 de Outubro, que regula as condições em que as empresas privadas concessionárias de estacionamento sujeito ao pagamento de taxa em vias sob jurisdição municipal podem exercer a atividade de fiscalização do estacionamento nas zonas que lhes estão concessionadas.
Assim, o direito da Autora em cobrar determinado montante pela utilização dos parques de estacionamento de que é concessionária, advém-lhe de um contrato administrativo que versa sobre questão do interesse público que o Município de Setúbal deliberou concessionar-lhe, pois de outro modo não o poderia fazer em relação a um espaço que é público e cuja gestão cabe, em primeira linha, aos respetivos municípios, através das Câmaras Municipais (cfr. artigo 33.º, n.º 1, al. rr), da Lei n.º 75/2013, de 12 de Setembro).
É, pois, inequívoco que se trata de um “
contrato administrativo, um contrato através do qual um município concede uma empresa provada a exploração, gestão e manutenção de espaços públicos destinados ao estacionamento de veículos, bem como a instalação e exploração de parquímetros, contrato segundo o qual os utilizadores daqueles espaços de estacionamento ficam obrigados ao pagamento de taxa, cujo montante varia em função do tempo de utilização
.”4
No fundo, como em situação análoga, e perante argumentos similares aos sustentados pela Autora, o Supremo Tribunal de Justiça, no Ac. de 12-10-2010, já teve oportunidade de frisar, que «
a Autora exerce determinadas funções de carácter e interesse público que pertencem às funções do Município, mas que este deliberou concessionar à A. Consequentemente, a cobrança do crédito em causa nesta ação só é possível porque a recorrente está investida em poderes de autoridade, que se impõem aos particulares.
De contrário, jamais a A. podia cobrar, de quem quer que fosse, uma taxa pela ocupação temporária de um espaço público.
Portanto, embora a relação estabelecida entre a A. e os particulares que usam o espaço de estacionamento concessionado seja diferente do que existe entre a A. e o Município de Ponta Delgada, o certo é que, como se refere no acórdão recorrido “... os atos praticados pela recorrente não revestem a natureza de atos privados, suscetíveis de serem desenvolvidos por um qualquer particular, mas, ao invés, revestem-se de natureza pública, na medida em que são praticados no exercício de um poder público, isto é, na realização de funções públicas no domínio de atos de gestão pública”, por isso que, “na relação jurídica que estabelece com o recorrido, surge investida de prorrogativas próprias de um sujeito público, revestido de jus imperii, podendo cobrar-lhe uma taxa pelo estacionamento nas zonas concessionadas ...”.
Ora o recorrido ao utilizar os parques de estacionamento sabe que está a utilizar um espaço público concessionado à A e aceita as condições em que pode fazê-lo, ao menos tacitamente.
Mas, como se disse, essas condições são as que constam do Regulamento das Zonas de Estacionamento de Duração Limitada de Ponta Delgada, que é um Regulamento Municipal devidamente aprovado e publicitado, contendo, como é evidente, normas de direito público, que obrigam, quer a concessionária, quer os utentes dos parques de estacionamento concessionados.
Portanto o R., ao contratar com a A. a utilização dos espaços de estacionamento que a esta foram concessionados sabe que esse contrato ou acordo tácito está submetido a um regime substantivo de direito público. (E, não vemos que a situação seja diferente, mesmo que se entenda, como quer a recorrente, estamos perante “relações contratuais de facto”).
Daí que, para além do que acima se referiu quanto aos poderes exercidos pela A., na qualidade de concessionária de um serviço de natureza pública, o dito acordo ou contrato cabe perfeitamente no âmbito do disposto no artigo 4.º, alínea f), do ETAF.
Tanto basta para concluir, como as instâncias, que o litígio que opõe as partes nesta acção deve ser dirimido pelo Tribunal Administrativo, que é o competente em razão da matéria.
”» 5.
É igualmente assim que os tribunais superiores, quer na jurisdição comum6, quer nos tribunais superiores na jurisdição administrativa7, quer ainda no tribunal dos conflitos8, têm reiteradamente decidido, o que nos dispensa de outras maiores ou particulares lucubrações, aderindo-se aos argumentos já expressos nos acórdãos citados.
Aliás, o STA já afirmou categoricamente, quando se trata da intervenção de um concessionário, que “
a doutrina que este Supremo Tribunal tem seguido, entre outros, no acórdão proferido no recurso n.º 0124/15
(…)
como no acórdão datado de 28.10.2015, no recurso n.º 0125/14, como em muitos outros acórdãos, já este Supremo tribunal esclareceu com suficiente clareza que o requerimento de injunção para cobrança de taxas ou tarifas apresentado pelos concessionários municipais ao qual haja sido deduzida oposição, consubstancia-se, nos termos da lei, numa ação cujo conhecimento é da competência dos TAFs, com a seguinte argumentação: Ora, no caso em apreço, a recorrente apresenta requerimento de injunção, por não terem sido pagas «as faturas nº (...) com as datas de vencimento de (...) relativas aos serviços contratados de abastecimento de água e saneamento, efetivamente prestados pela Requerente ao requerido (...)», ou seja, a ação consubstancia-se num procedimento de injunção relativo a quantia resultante de tarifas unilateralmente fixadas e aprovadas nos termos do enquadramento legal aplicável, tendo o recorrida contestado a obrigação de pagamento de tal dívida.
Porém, não obstante a providência de injunção se destinar a conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento de obrigações (cfr. artigo 7.º do DL n.º 269/98, de 1/9, na redação introduzida pelo DL n.º 32/2003, de 17/2) no caso, tendo sido deduzida oposição à injunção esta deixou de se destinar, tendencialmente, à formação de um título executivo, convertendo-se numa petição inicial declarativa, já que o título executivo apenas se formaria na hipótese de ausência de oposição/contestação (cfr. artigo 14.º e ss. do DL n.º 269/98). Sendo que a autora e ora recorrente é concessionária do serviço público de fornecimento de água do concelho de Barcelos e nessa medida, atua em substituição do Município e munida dos poderes que lhe são atribuídos nessa área.
Daí que, como se consignou na supra citada jurisprudência do Tribunal de Conflitos (a que se adere sobretudo pela importância da uniformidade na interpretação e aplicação da lei, que encontra consagração no artigo 8.º, n.º 3, do Código Civil) e nomeadamente no Acórdão de 25.11.2014, proferido no processo 40/14, «Dúvidas não existem, pois, que prossegue fins de interesse público, estando para tanto munida dos necessários poderes de autoridade, o que nos permite dar como certo que, subjacente à questão em controvérsia, está uma relação jurídica administrativa na medida em que se entende como tal aquela em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, atuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido – neste sentido, ver Vieira de Andrade “in” “A Justiça Administrativa”, Lições, 2000, página 79.
Concluímos, assim, tendo em atenção aquela jurisprudência do Tribunal de Conflitos e o disposto nas alíneas f) do n.º 1 do artigo 4.º e c) do n.º 1 do artigo 49.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, que a presente ação é da competência dos tribunais de jurisdição administrativa e fiscal, sendo competentes os tribunais administrativos e fiscais, através dos tribunais tributários
.”9
Tanto mais assim é que a Autora, pese embora possa não os ter no momento, está legitimada a despoletar, para vir a beneficiar, dos mecanismos que lhe permitam levantar autos de contra-ordenação por estacionamento proibido, caso os seus trabalhadores venham a ser equiparados a agentes de autoridade administrativa pelo presidente da ANSR (artigo 9.º e ss. do DL n.º 146/2014, de 09 de outubro e artigo 71.º do Código da Estrada).
Neste contexto somos levados a concluir que os Juízos Locais Cíveis de Setúbal, não são competentes para tramitar e decidir a presente ação, por dizer a mesma respeito a matéria acometida aos tribunais com jurisdição em matéria administrativa e fiscal.
Consequentemente, nos termos dos artigos 96.º, alínea a) e 97.º, n.º 1, 98.º, 576º, n.º 1 e 577º, alínea a), todos do Código de Processo Civil, declara-se que os Juízos Locais Cíveis de Setúbal não são competentes em razão da matéria para tramitar e decidir estes autos.
A incompetência absoluta (em razão da matéria) determina a absolvição da instância, conforme o postulado nos artigos 99.º, n.º 1 e 2 e 278.º, n.º 1, alínea a), todos do Código Processo Civil, o que se julga.
Custas por quem deu causa, que no caso foi o Autor (cfr. artigo 527.º do Código de Processo Civil).»
I.2.
A recorrente formula alegações que culminam com as seguintes conclusões:
«a) Vem o presente recurso apresentado contra a douta Sentença
a quo
que decidiu julgar a incompetência material do Juízo Local Cível de Setúbal, para cobrança dos créditos da Autora.
b) No âmbito da sua atividade, a Autora celebrou um contrato de concessão com a Câmara Municipal de Setúbal, através do qual lhe foi cedida a exploração particular de zonas de estacionamento automóvel na cidade sem cedência de quaisquer poderes de autoridade, ou de disciplina.
c) No seguimento deste contrato de concessão, a (…) adquiriu e instalou em vários locais da cidade de Setúbal, onerosas máquinas para pagamento dos tempos de estacionamento automóvel, para as quais desenvolveu o necessário software informático.
d) Enquanto utilizador do veículo automóvel (…), o Réu estacionou o mesmo em diversos Parques de Estacionamento que a Autora explora comercialmente na cidade de Setúbal, sem, contudo, proceder ao pagamento dos tempos de utilização, num total em dívida de € 1.774,95, que o Réu recusa pagar.
e) Para cobrança deste valor, a Autora viu-se obrigada a recorrer aos tribunais comuns, peticionando o seu pagamento, pois a sua nota de cobrança está desprovida de força executiva, não podendo, portanto, dar lugar a um imediato processo de execução, seja administrativo ou fiscal.
f) A natureza jurídica da quantia paga pelos utentes em contrapartida da prestação do serviço de parqueamento é a de um preço e não de um encargo ou contrapartida com natureza fiscal ou tributária.
g) As ações intentadas pela Autora contra os proprietários de veículos automóveis inadimplentes, que não tenham procedido ao pagamento dos montantes devidos, não se inserem em prorrogativas de autoridade pública munida de
ius imperii
, mas sim no âmbito da gestão enquanto entidade privada.
h) A Recorrente ao atuar perante terceiros, não se encontra munida de poderes de entidade pública, agindo como mera entidade privada, pelo que, contrariamente ao entendimento do Tribunal
a quo
, o contrato estabelecido entre si e os automobilistas, relativo à utilização dos parqueamentos explorados, é de natureza privada, cuja violação é suscetível de fazer o utilizador incorrer em responsabilidade por incumprimento do contrato.
i) A doutrina qualifica este tipo de contrato como uma relação contratual de facto – em virtude de não nascer de negócio jurídico – assente em puras atuações de facto, em que se verifica uma subordinação da situação criada pelo comportamento do utente ao regime jurídico das relações contratuais, com a eventual necessidade de algumas adaptações.
j) O estacionamento remunerado, apresenta-se como uma afloração clara da relevância das relações contratuais de facto e a relação entre o concessionário e o utente resulta de um comportamento típico de confiança.
k) Comportamento de confiança, que não envolve nenhuma declaração de vontade expressa, e sim uma proposta tácita temporária de um espaço de estacionamento, mediante retribuição.
l) Proposta tácita temporária da Autora, que se transforma num verdadeiro contrato obrigacional, mediante aceitação pura e simples do automobilista, o qual, ao estacionar o seu automóvel nos parques explorados pela Autora, concorda com os termos de utilização propostos pela Autora, amplamente publicitados no local.
m) O conceito de relação jurídica administrativa pode ser tomado em diversos sentidos, seja numa
aceção subjetiva
, objetiva, ou funcional, sendo certo que nenhuma das acessões permite englobar a presente situação.
n) Caso contrário, teríamos de entender como públicas quaisquer relações jurídicas, já que todo o interesse de regulação, é em si mesmo um interesse público e nessa medida, tudo seria público, até à mais ténue e simples regulamentação de relações entre particulares, desde que geradoras de direitos e obrigações suscetíveis de ser impostos coativamente.
o) A (…), S.A., não efetua atos de fiscalização, não tendo poderes para autuar coimas ou multas por incumprimento das regras estradais, tarefa que está exclusivamente atribuída às autoridades públicas de fiscalização do espaço rodoviário da cidade.
p) Nos termos do disposto no artigo 2.º do DL 146/2014, de 09 de outubro, a atividade de fiscalização incide exclusivamente na aplicação das contraordenações previstas no artigo 71.º do Código da Estrada, o qual estabelece as coimas aplicáveis às infrações rodoviárias ali identificadas.
q) Os montantes cobrados pela (…), S.A. também não consubstanciam a aplicação de quaisquer coimas, nem a empresa processa quaisquer infrações praticadas pelos utentes dos parqueamentos.
r) Quaisquer infrações ou coimas que devam ser aplicadas aos automobilistas prevaricadores de regras estradais, ficam a cargo da Autarquia, sem qualquer intervenção ou conexão com a atividade da empresa concessionária.
s) A (…), ao contrário o que vem referido na douta sentença, nunca atuou nem quis atuar, em substituição da autarquia, munida de poderes públicos concessionados.
t) Entender que os tribunais competentes são os administrativos e de entre estes os fiscais, corresponde a esvaziar de conteúdo e utilidade o Contrato de Concessão de Exploração dos Parqueamentos, por retirar à concessionária o poder de reclamar judicialmente os seus créditos.
u) Fundamental é que a Recorrente carece, em absoluto, de poderes de autoridade, fiscalização ou ordenação efetiva, apenas podendo registar os incumprimentos de pagamento e tentar recuperar judicialmente, sem acesso direto a um título executivo, os valores que tiverem sido sonegados, em violação da relação contratual de confiança, pelos utentes.
v) Não estando em causa a natureza pública do contrato celebrado entre a Câmara Municipal e a (…), S.A., não pode, contudo, este primeiro contrato, ser equiparado aos posteriores contratos tacitamente celebrados entre a (…) e os utentes, pois tais contratos têm natureza privada, não só pela forma como os seus intervenientes atuam, como também pelas normas que regulam as relações jurídicas em causa.
w) Refira-se finalmente que, ainda que se entenda estarmos perante a prestação de serviços de natureza pública, o que apenas se concebe para mero efeito de raciocínio, as competências dos tribunais administrativos e fiscais estão definidas no artigo 4.º do ETAF (Lei n.º 13/2002, de 19 de fevereiro, aplicável nestes autos na redação introduzida pela Lei n.º 114/2019, de 12 de setembro, que introduziu a alínea e) ao n.º 4 do artigo 4.º do E.T.A.F).
x) Nos termos dessa alínea, “estão… excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva”.
y) Da exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 167/XIII-4ª, que esteve na origem da Lei n.º 114/2019, consta: “A necessidade de clarificar determinados regimes, que originam inusitadas dificuldades interpretativas e conflitos de competência, aumentando a entropia e a morosidade, determinaram as alterações introduzidas no âmbito da jurisdição. Esclarece-se que fica excluída da jurisdição a competência para a apreciação de litígios decorrentes da prestação e fornecimento de serviços públicos essenciais. Da Lei dos Serviços Públicos (Lei n.º 23/96, de 26 de julho) resulta claramente que a matéria atinente à prestação e fornecimento dos serviços públicos aí elencados constitui uma relação de consumo típica, não se justificando que fossem submetidos à jurisdição administrativa e tributária; concomitantemente, fica agora clara a competência dos tribunais judiciais para a apreciação destes litígios de consumo.”
z) O serviço de estacionamento não é um dos serviços elencados no artigo 1.º, n.º 2, da Lei n.º 23/96, mas, tal como ocorre nos serviços públicos essenciais, a relação entre o prestador do serviço e o utente é uma relação de direito privado. Veja-se por tudo, o Douto Acórdão da Veneranda Relação de Lisboa de 18.12.2024, proferido no âmbito do Processo n.º 16685/24.0YIPRT, da 8ª Secção.
Mal andou, assim, o Tribunal
a quo
ao declarar-se incompetente em razão da matéria, pois o Tribunal recorrido é o competente, motivo pelo qual foram violados, entre outros, os artigos 96.º, alínea a), 278.º, n.º 1, alínea a), 577.º, alínea a) e 578.º do CPC, quer o artigo 4.º, n.º 1, alínea e), do ETAF, quer ainda a artigo 40.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto.
Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente, e em consequência, ser a douta sentença recorrida substituída por outra que, julgando competente o Juízo Local Cível de Setúbal, ordene o prosseguimento dos autos, conforme é de do Direito e da JUSTIÇA.»
I.3.
O recorrido respondeu às alegações de recurso, culminando com as seguintes conclusões:
«a) A decisão proferida pelo tribunal da comarca de Setúbal é perfeita e a mesma deve manter-se inalterada e suficiente seria oferecer o merecimento dos autos e propugnar a manutenção da douta decisão recorrida.
b) O artigo 4.º, n.º 4, alínea e), não se aplica a caso
sub judice
, nem o parqueamento é uma relação de consumo, nem sequer estamos no domínio da prestação de serviços públicos essenciais.
c) Estamos sim no domínio de um contrato administrativo em que através de uma concessão o município concede a uma empresa privada a exploração de espaços públicos para parqueamento/estacionamento.
d) O STA já estipulou que se trata do exercício de funções de caracter e interesse publico e tem de ser regulada como tal, logo os tribunais cíveis são incompetentes.
e) Trata-se de uma concessão do poder da autarquia para uma empresa a exploração de estacionamento de duração limitada,
f) O Tribunal da Relação em 2009-10-20 consignou cita-se “… podemos afirmar que o contrato de locação do estacionamento celebrado entre a Ré e a Autora é um contrato de direito público, e não privado, em que a concessionária surge na relação com o particular investida de prerrogativas próprias de um sujeito de direito público – a Câmara Municipal – revestido de
ius imperium
, podendo cobrar, não um preço, mas uma taxa pelo estacionamento, fiscalizar a regularidade do mesmo, aplicar taxas sancionatórias e determinar a remoção do veículo em infracção. (…) Não estamos, pois, numa relação horizontal entre dois particulares, em que o incumprimento gera responsabilidade contratual regida pelo Código Civil, mas numa relação própria do direito público e do direito de mera ordenação social. Donde que, salvo melhor opinião, o presente litígio – que tem na sua génese a cobrança, pela Autora de uma taxa sancionatória máxima diária pelo estacionamento não pago – deve ser dirimido pelo tribunal administrativo (…)”.
g) as relações contratuais estabelecidas entre o município, ou o concessionário, e os utentes do estacionamento de duração limitada tarifada, está sujeito a um regime substantivo parcialmente regulado por normas de direito administrativo, sendo pois, competentes para a ação, os Tribunais Administrativos e Fiscais.
h) Pelo que compete aos tribunais administrativos e fiscais conhecer de ação intentada por empresa a quem o Município adjudicou a concessão da exploração e gestão de zonas de estacionamento de duração limitada.
i) Por conseguinte, a Autora está agir no uso dos poderes de autoridade em que foi investida através dos contratos de concessão, a fim de prosseguir no lugar da autarquia um fim de interesse público.
j) Pelo que, nos termos dos artigos previstos no ETAF (artigo 4.º) são os tribunais administrativos os competentes para conhecer a questão relativa à cobrança da taxa sancionatória pelo estacionamento não pago.
k) Pelo que decidiu bem o tribunal judicial de Setúbal ao verificar a exceção dilatória de incompetência em razão da matéria e absolver o Reu da instância.
l) E assim se fez justiça, a qual deve ser mantida e inalterada.
Termos m que, nos melhores de Direito e com o sempre mui douto suprimento de Vossas Excelências, deve o presente recurso ser considerado totalmente improcedente e mantida a douta sentença recorrida, nos seus precisos termos, com o que se fará a sã e serena JUSTIÇA!»
I.4.
O recurso foi recebido pelo tribunal
a quo
.
Corridos os vistos em conformidade com o disposto no artigo 657.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, cumpre decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1.
As conclusões das alegações de recurso (cfr.
supra
I.2) delimitam o respetivo objeto de acordo com o disposto nas disposições conjugadas dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, nº 1, ambos do CPC, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2 e artigo 663.º, n.º 2, ambos do CPC), não havendo lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (artigos 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, ambos do CPC).
II.2.
No caso, a única questão que cumpre apreciar consiste em saber qual a jurisdição – comum ou administrativa – que é competente para dirimir o presente litígio.
II.3.
FACTOS
Os factos a considerar constam do relatório
supra
.
II.4.
Apreciação do objeto do recurso
No presente recurso está em causa decidir quais os tribunais que são materialmente competentes
para decidir a presente ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias através da qual a autora e ora apelante pretende que o réu seja condenado no pagamento da contraprestação devida pela utilização, por aquele, de parques de estacionamento automóvel sitos na cidade de Setúbal.
O tribunal recorrido decidiu que os juízos locais cíveis não são materialmente competentes para dirimir o presente litígio e, consequentemente, absolveu o réu da instância.
Insurge-se a autora e ora recorrente contra tal decisão, defendendo que os tribunais materialmente competentes para dirimir o litígio em causa nos autos são os tribunais comuns, alegando, em síntese, que o ato de intentar a presente ação contra o proprietário de um veículo que não procedeu ao pagamento dos valores devidos pela utilização de parques de estacionamento «
não se insere em prerrogativas de uma autoridade pública, mas sim no âmbito da gestão que compete à concessionária fazer enquanto entidade privada
» e que «
a autora não age enquanto funcionária ou agente delegada de um órgão público, não beneficiando de qualquer poder de autoridade ou título executivo que a equipare a uma entidade pública na prossecução de interesses públicos
» e, ainda, que «
a fiscalização do cumprimento das regras estradais permanece em exclusivo sob a alçada da autarquia e dos respetivos agentes de
autoridade
».
Quid juris
?
É pacífico que a competência em razão da matéria se deve aferir em face da relação jurídica
tal como configurada pelo autor no seu requerimento inicial, isto é,
de acordo com os termos da pretensão do(a) autor(a), compreendendo os respetivos fundamentos
.
Resulta da conjugação do disposto no artigo 64.º do Código de Processo Civil e do artigo 40.º, n.º 1, da Lei da Organização do Sistema Judiciário que os tribunais judiciais têm uma competência residual, isto é, têm competência para decidir as causas que não sejam atribuídas a outros tribunais. Os tribunais administrativos e tributários, por seu turno, têm a sua competência limitada às causas que lhes são especialmente atribuídas.
De harmonia com o disposto no 1.º/1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de fevereiro, doravante designado por ETAF, os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das
relações jurídicas administrativas e fiscais
, nos termos compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º do Estatuto. O referido artigo 1.º, n.º 1, é um preceito que decorre da norma constitucional vertida no artigo 212.º/3, da Constituição da República, incorporando uma
cláusula geral positiva de atribuição de competência aos tribunais administrativos
, constituindo a regra básica sobre a delimitação da competência jurisdicional dos tribunais administrativos no confronto com os demais tribunais
[1]
.
O artigo 1.º do ETAF adota o critério da
relação jurídico - administrativa
para aferição da competência dos tribunais administrativos e o artigo 4.º
[2]
contém um elenco exemplificativo de casos-tipo que se consideram ser da competência dos tribunais administrativos. A propósito da conjugação entre aqueles dois preceitos normativos (artigos 1.º e 4.º do ETAF), refere-se no acórdão do Tribunal dos Conflitos de 05-02-2021
[3]
que a enumeração positiva dos litígios cuja resolução compete aos tribunais administrativos prevista no artigo 4.º é, em princípio,
meramente concretizadora da cláusula geral prevista no artigo 1.º/1 que deriva da Constituição
,
mas tem de ser considerada aditiva
quando seja inequívoco que visa atribuir competências que não caberiam no âmbito definido por essa cláusula
.
A propósito do conceito de “
relações jurídicas administrativas”
, chamamos à colação o acórdão do Tribunal de Conflitos datado de 24.05-2017, proferido no âmbito do processo n.º 030/16
[4]
, onde se escreveu o seguinte: «
Na opinião de Gomes Canotilho de Vital Moreira (cfr. Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume II, 4.ª Edição revista, 2010, Coimbra Editora, pp. 566/567) em anotação ao artigo 212.º, n.º 3 da CRP “na jurisdição
administrativa estão em causa apenas os litígios emergentes de relações jurídico administrativas (ou fiscais). Esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: 1 – as ações e recursos incidem sobre
relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente da administração
); 2 – as
relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal.
Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza “privada” ou “jurídico-civil”.
Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico- administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e /ou fiscal
(cfr. ETAF, artigo 4.º)
.
O conceito de relações jurídico-administrativas deve ser entendido neste contexto como uma referência à possibilidade de alargamento da jurisdição administrativa a outras realidades diversas das tradicionais formas de atuação (ato, contrato e regulamento) complementando aquele critério. Pretende-se, com o recurso a este conceito genérico, viabilizar a inclusão na jurisprudência administrativa do amplo leque de relações bilaterais e poligonais, externas e internas, entre a Administração e as pessoas civis e entre entes da Administração, que possam ser reconduzidas à atividade de direito público, cuja característica essencial reside na prossecução de funções de direito administrativo, excluindo-se apenas as relações jurídicas de direito privado. Trata-se de um conceito suficientemente dúctil e flexível para enfrentar os desafios do novo direito administrativo, mas que não pode deixar de ser entendido como complementar da tradicional dogmáticas das formas de atuação administrativa
». No mesmo acórdão, e citando-se Mário Aroso de Almeida (
O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos
, 2005, 4.ª Edição, Revista e atualizada, Almedina, pág. 57) refere-se que «
as relações jurídico administrativas não devem ser definidas segundo um critério estatutário, reportado às entidades públicas, mas segundo um critério teológico, reportado ao escopo subjacente às normas aplicáveis. São, assim, jurídico-administrativas as relações jurídicas que, independentemente do estatuto dos sujeitos nelas intervenientes, sejam reguladas por normas de direito administrativo – isto é, segundo a melhor doutrina, por normas que atribuam prerrogativas ou imponham deveres, sujeições ou limitações especiais por razões de interesse público, que não intervêm no âmbito de relações de natureza jurídico-privada. (…)
».
Mais recentemente, no Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 08.05.2025, processo n.º 0118032/24.5YIPRT.L1.S1, consultável em
www.dgsi.pt
., citando-se Vieira de Andrade (
A Justiça Administrativa
, 17.ª Edição, Almedina, 2019, pág. 49) escreveu-se que a relação jurídica administrativa (seguindo um critério estatutário que combina sujeitos, fins e meios) «
é aquela em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, atuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido
».
Na síntese do acórdão do Tribunal dos Conflitos de 05.02.2021
supra
referido para que se reconheça estar-se perante uma relação jurídico-administrativa «impõe-se que uma das partes integre a Administração, seja um ente administrativo, e que atue dotada do seu
ius imperium
ou a coberto de normas públicas, ou que, não o sendo, esteja investida, por lei, no exercício de poderes públicos»
.
Regressando ao caso
sub judice
, resulta dos autos, concretamente do documento que foi junto aos autos pela autora a convite deste tribunal de segunda instância, que entre o Município de Setúbal e a (…), SA, ali identificados, respetivamente, como primeiro e segundo outorgantes, foi celebrado, em 28.11.2018, um contrato que as partes denominaram de “
Contrato de Adjudicação de Prestação de Serviços de Gestão, Manutenção e Fiscalização da Zona de Estacionamento de Duração Limitada na Cidade de Setúbal
”.
Resulta da
cláusula primeira
do referido contrato que o seu objeto consiste «na contratação de serviços de gestão, manutenção e assistência técnica e fiscalização das áreas de estacionamento tarifado à superfície, por parcómetro instalados na via pública, apoiado através de aluguer do sistema informático de gestão de dados e fiscalização com transmissão em tempo real ao primeiro Outorgante, compatível com os equipamentos instalados, de acordo com as características técnicas, definições e todas as condições previstas no caderno de encargos em anexo» e que a prestação de serviços inclui todos os serviços e fornecimentos relativos à gestão, manutenção e fiscalização na zona de estacionamento de duração limitada da cidade de Setúbal, já regulada pela utilização de parcómetros, conforme Anexo V do caderno de encargos».
Não se suscitando dúvidas que o contrato
supra
referido é um contrato administrativo, regulado, nomeadamente, pelas disposições do Código dos Contratos Públicos, aprovado pelo D/L n.º 18/2008, de 29 de janeiro (
vide
cláusula 2.ª), a relação jurídica que está em causa nos presentes autos é aquela que se estabelece entre os utilizadores das zonas de estacionamento de duração limitada da cidade de Setúbal e a (…), SA, a qual é, nos termos do contrato de concessão
supra
referido, responsável pela gestão, manutenção, assistência técnica e fiscalização daquelas áreas de estacionamento.
A
gestão
do estacionamento
latu sensu
em espaços públicos
– que implica a organização da oferta do estacionamento, o controlo do estacionamento de longa duração, a reserva de oferta para utilizadores específicos, a fiscalização do estacionamento ilegal na via pública – é uma função de caráter e interesse público que, na cidade de Setúbal incumbe ao Município de Setúbal, mas que este decidiu concessionar à ora apelante, autora nos autos.
Aquela
gestão
é, além do mais, regulada pelo Regulamento Municipal de Estacionamento Público Tarifado e de Duração Limitada no Concelho de Setúbal, cujo projeto foi submetido a apreciação pública e foi devidamente publicitado e
contém normas de natureza administrativa
. Ali está prevista, nomeadamente, o pagamento de taxas pelo estacionamento nas zonas de estacionamento de estacionamento de duração limitada (artigo 13.º) bem como o
pagamento de uma quantia a título de compensação resultante da ocupação indevida de local de estacionamento, concretamente quando o utente estacione sem título de estacionamento válido ou por tempo superior ao limite máximo admitido
(artigo 17.º) e ali está prevista, também, a
competência dos trabalhadores da entidade concessionária com funções de fiscalização
nas zonas que lhe estão concessionadas,
para fiscalizarem o cumprimento das disposições do Regulamento
(artigo 44.º, n.º 2),
desde que equiparados a agentes de autoridade administrativa
(artigo 44.º, n.º 3),
relativamente às contra-ordenações previstas no artigo 71.º do Código da Estrada
(artigo 44.º, n.º 4), cabendo-lhe, nomeadamente, e no exercício de tais funções de fiscalização, levantar autos de notícia nos termos do disposto no Código da Estrada, proceder à identificação do arguido e às notificações previstas no Código da Estrada, proceder às ações necessárias à autuação, bloqueamento e remoção de veículos em infração, participar aos agentes da Polícia de Segurança Pública as situações de incumprimento e com ele colaborar no cumprimento do Regulamento (artigo 45.º). Ora o acabado de descrever traduz prorrogativas próprias de um sujeito público, revestido de
ius imperii
.
O facto de a entidade concessionária poder cobrar taxas e através dos seus funcionários equiparados a agentes de autoridade administrativa, poder exercer poderes de fiscalização nas áreas de estacionamento concessionadas no que respeita às contraordenações previstas no artigo 71.º do Código da Estrada, os quais implicam, nomeadamente,
o levantamento de auto de contraordenação ao titular do documento de identificação do veículo, implica que aquela entidade
esteja investida no exercício de poderes públicos
. Donde a relação jurídica estabelecida entre a (…) e os utilizadores das zonas de estacionamento objeto do contrato de concessão outorgado entre a primeira e o Município de Setúbal revestir a natureza de relação jurídica administrativa (artigo 1.º/1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais), caindo, também, na previsão do artigo 4.º, n.º 2, alínea o), do ETAF.
No mesmo sentido se decidiu, por exemplo:
- No Acórdão do Tribunal de Conflitos do Supremo Tribunal Administrativo de 25.11.2020, processo n.º 012/10, em cujo sumário se lê o seguinte: «III. Por relações jurídicas administrativas devem entender-se aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja, uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, atuando com vista à realização de interesse público legalmente definido. IV. Assim, compete à jurisdição administrativa conhecer de uma ação especial para cumprimento de obrigações emergentes de contrato, na qual a autora, concessionária da exploração e manutenção de parques de estacionamento em espaços públicos, em conformidade com determinado regulamento municipal, pede a condenação da ré no pagamento de quantias devidas pela utilização desses parques»;
- No acórdão do Tribunal de Conflitos do Supremo Tribunal Administrativo, de 08.05.2025, proc. n.º 0118032/24.5YIPRT.L1.S1, em cujo sumário se escreveu o seguinte: «I. A concessionária da gestão e exploração do serviço público de estacionamento nas vias municipais, mediante contrato de concessão de serviços públicos, nesse âmbito, atua em substituição da autarquia, munida dos poderes que a esta são legalmente atribuídos nesse domínio. II. Compete aos tribunais da jurisdição administrativa conhecer da ação intentada pela empresa a que o Município adjudicou a gestão e exploração do estacionamento de veículos em ZEDL, requerendo do particular o pagamento da contraprestação devida pela utilização do referido estacionamento».
Por todo o exposto, não merece censura a decisão sob recurso, a qual se deverá, por isso, manter, improcedendo a apelação.
Sumário
: (…)
III.
DECISÃO
Em face do exposto, acordam julgara apelação improcedente, mantendo o despacho recorrido.
As custas na presente instância são da responsabilidade da recorrente, porque vencida, sendo que a esse título apenas são devidas custas de partes pois que aquela procedeu ao pagamento da taxa de justiça devida pelo impulso processual e não há lugar ao pagamento de encargos.
Notifique.
DN.
Évora, 25 de junho de 2025
Cristina Dá Mesquita
Eduarda Branquinho
Vítor Sequinho dos Santos
__________________________________________________
[1] Maria Helena Barbosa Canelas, A competência dos Tribunais Administrativos, Julgar, n.º 15, Setembro-Dezembro de 2011, págs. 103 e ss.
[2] Nos termos do artigo 4.º do ETAF compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto as seguintes questões enunciadas nas alíneas a) a o) do seu n.º 1, a saber:
«a) Tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais;
b) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos emanados por órgãos da Administração Pública, ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal;
c) Fiscalização da legalidade de atos administrativos praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas não integrados na Administração Pública;
d) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos praticados por quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, no exercício de poderes públicos;
e) Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes;
f) Responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 4 do presente artigo;
g) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes, trabalhadores e demais servidores públicos, incluindo ações de regresso;
h) Responsabilidade civil extracontratual dos demais sujeitos aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público;
i) Condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime;
j) Relações jurídicas entre pessoas coletivas de direito público ou entre órgãos públicos, reguladas por disposições de direito administrativo ou fiscal;
k) Prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, habitação, educação, ambiente, ordenamento do território, urbanismo, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas;
l) Impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo e do ilícito de mera ordenação social por violação de normas tributárias;
m) Contencioso eleitoral relativo a órgãos de pessoas coletivas de direito público para que não seja competente outro tribunal;
n) Execução da satisfação de obrigações ou respeito por limitações decorrentes de atos administrativos que não possam ser impostos coercivamente pela Administração;
o) Relações jurídico-administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores.
[3] Processo n.º 00736/19.2BEBRG, consultável em
www.dgsi.pt
.
[4] Consultável em
www.dgsi.pt
.
|
TRE
|
https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/c693d7a45e1ed44880258cd700534615?OpenDocument
|
1,762,128,000,000
|
SENTENÇA REVOGADA PARCIALMENTE
|
1136/22.2T8PVZ.P1
|
1136/22.2T8PVZ.P1
|
ANABELA MIRANDA
|
I -
Por ser reconhecida a manifesta dificuldade ou mesmo impossibilidade probatória (numa acção cível destinada a obter uma indemnização emergente do contrato de seguro) do crime de furto, a jurisprudência tem considerado suficiente, para esse efeito, a
participação
do desaparecimento do veículo à autoridade policial desde que as circunstâncias relatadas sejam dotadas de
verosimilhança
de acordo com os ditames práticos da experiência de vida.
II - A prova designada de
primeira aparência
(facto-base da presunção) que é conferida à
participação criminal
não altera as regras do
ónus da prova
uma vez que o julgador deverá, em face do objecto do processo, aplicar as regras da lógica e da experiência de vida e em conformidade com o princípio da livre apreciação da prova, formar a sua convicção positiva ou negativa, devidamente fundamentada, sobre a ocorrência do sinistro.
III - No âmbito de um contrato de seguro facultativo, os
deveres de informação
e de
celeridade
exigidos à seguradora, assumem especial importância no caso de se verificar a perda total do veículo (furto) já que a entrega do capital permitirá, ao tomador/beneficiário do seguro, a compra de um outro veículo substitutivo.
IV - Quando se verifique, em face das circunstâncias apuradas, que não foram observados os deveres de informação e de prontidão, o segurado tem direito a ser indemnizado pelo dano patrimonial da privação do uso do veículo, por violação dos
deveres acessórios de conduta
por parte da seguradora.
|
[
"CONTRATO DE SEGURO",
"DEVERES DE INFORMAÇÃO E DE PRONTIDÃO",
"VIOLAÇÃO PELA SEGURADORA",
"EFEITOS",
"INDEMNIZAÇÃO AO SEGURADO"
] |
Processo n.º 1136/22.2T8PVZ.P1
Relatora: Anabela Andrade Miranda
Adjunto: Rui Moreira
Adjunta: Lina Castro Baptista
*
Sumário
……………………………………….
……………………………………….
……………………………………….
*
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I—RELATÓRIO
AA
intentou a presente acção declarativa, com processo comum, contra “A..., S.A.–Sucursal em Portugal”, pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de €31.315,72, acrescida de juros de mora contados à taxa legal, desde 15/01/2021, até integral pagamento, e de €75,00 por dia desde 15/01/2021, até integral pagamento da mesma quantia, liquidada em 1/09/2022 em €42.300,00, juros de mora, desde a citação, até integral pagamento, e ainda €2.500,00, acrescidos de juros, desde a citação, até integral pagamento.
Para tanto alegou, em resumo, ser proprietário de um veículo automóvel que foi furtado. A Ré assumiu os danos decorrentes de tal furto, mediante contrato de seguro celebrado com a mutuária BMW Bank GmbH – Sucursal portuguesa. O Autor celebrara contrato de mútuo para aquisição do veículo em causa, que revogou por acordo após o furto, após ter pago o montante ainda em dívida, sendo sub-rogado pela segurada perante a Ré dos direitos emergentes do contrato de seguro. Participou à Ré o furto. Encontra-se privado do uso do veículo em causa desde a data do furto e sofreu por via do incumprimento da Ré diversos danos não patrimoniais.
A Ré contestou alegando que não ocorreu o sinistro pelas razões que expôs.
*
Proferiu-se sentença que julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência:
A) Condenou a Ré a pagar ao Autor o montante a liquidar em decisão ulterior, correspondente ao valor do veículo automóvel com a matrícula n.º ..-XA-.., marca BMW, referida na alínea a) dos factos provados, determinado à data de 15 de Dezembro de 2020, acrescido de juros de mora, contados desde 1 de Agosto de 2021, à taxa legal para juros civis, até integral pagamento;
B) Julgou a presente acção improcedente, no restante e, em consequência, absolveu a Ré do pedido nessa parte.
*
Inconformado com a sentença, o Autor interpôs recurso finalizando com as seguintes
Conclusões
I-O Recorrente não se conforma com a sentença, na parte em que nela se absolve a Recorrida de lhe pagar uma indemnização pela privação do uso do seu veículo automóvel.
II- Como se evidencia, como provado, na sentença, o Recorrente era, nomeadamente em 15/12/2020, o proprietário do veículo ligeiro de passageiros, com a matrícula ..-XA-.., marca BMW; já que não dispunha de meios financeiros próprios, o Recorrente, para adquirir o referido veículo, celebrou com a BMW Bank GmbH, Sucursal Portuguesa, um contrato de crédito a consumidor; foi celebrado um contrato de seguro, titulado pela apólice nº ...00, através do qual a Recorrida declarou assumir perante a tomadora do seguro (entidade mutuante), o risco por roubo ou furto do referido veículo automóvel propriedade do Recorrente; no dia 15 de dezembro de 2020, o referido veículo automóvel foi apoderado por desconhecidos quando se encontrava estacionado na via pública, que o levaram para local desconhecido, não tendo o Recorrente voltado a recuperá-lo; no dia 16 de dezembro de 2020, o Recorrente comunicou à Recorrida a ocorrência do furto, entregando-lhe as chaves do veículo e os documentos; em 1 de julho de 2021, a Recorrida comunicou ao Recorrente que declinava qualquer responsabilidade pelo sinistro; o Recorrente, através do seu pai, pagou à entidade mutuante o valor de 28.360,32 € e, em contrapartida, esta declarou, por escrito, que sub-rogava o Recorrente em todos os direitos que detinha sobre a Recorrida, relativamente ao contrato de seguro; na sequência da privação do veículo, o Recorrente não dispôs de meios financeiros para adquirir um outro, e viu-se privado do uso que dele retirava.
III-Da conjugação do preceituado nos artigos 102º, nº1 e 104º ambos do RJCS, e atendendo às vicissitudes do caso concreto, resulta que a obrigação da Recorrida de proceder ao pagamento do valor do veículo furtado, pertencente ao Recorrente, venceu-se, no máximo, no dia 16 de março de 2021.
IV-A violação, por parte da Recorrida, da obrigação de proceder ao pagamento da prestação acordada, representa a violação de uma obrigação essencial do contrato de seguro,
V- Que teve, e tem ainda, como consequência o facto de o Recorrente ficar privado do uso de um veículo automóvel, nomeadamente de um veículo idêntico àquele lhe foi subtraído por terceiros e, assim, impedido de dele retirar todas as utilidades possíveis, pois,
VI-Como está demonstrado na sentença, o Recorrido, na sequência da privação do veículo, não dispôs de meios financeiros para adquirir um outro, e viu-se privado do uso que dele retirava (vide al.i) dos factos provados).
VII-Este dano – privação do uso do veículo – é um prejuízo que resulta diretamente, e nele encontra a sua causa adequada, do incumprimento contratual por parte da Recorrida,
VIII-A qual, por essa razão – artº798º do C.Civil -, fica responsável pelo ressarcimento do prejuízo causado.
IX-É certo que o contrato de seguro não contempla a cobertura da privação do uso do veículo,
X- Todavia, neste caso, a obrigação de ressarcimento desse dano a cargo da seguradora Recorrida não advém do contrato mas, antes, da consequência do seu incumprimento contratual,
XI-É o incumprimento contratual que está, portanto, na génese da obrigação, a cargo da Recorrida, de reparar os danos decorrentes da privação do uso do veículo.
XII-Repare-se, em prol do que acabamos de expor e pela forma lapidar como se apresenta, o que, a propósito, está escrito no acórdão do Tribunal da Relação ..., de 23/11/2020, relatado pelo Exmo. Desembargador Carlos Gil, e publicado em www.dgsi.pt: “O quadro em que se admite a ressarcibilidade do dano da privação do uso no caso de recusa injustificada do pagamento da prestação acordada no seguro de danos é bem distinto daquele em que essa obrigação resulta do próprio contrato de seguro. De facto, sendo a indemnização pela privação do uso prevista no contrato, o mesmo é ressarcível desde a data do sinistro; já no caso de tal indemnização se fundar em incumprimento do contrato de seguro de danos, esse dano apenas será ressarcível a partir do momento em que se verificar o vencimento da obrigação de pagamento da prestação acordada no contrato de seguro e fundado em incumprimento contratual.”.
XIII-Em idêntico sentido pronunciou-se o Supremo Tribunal de Justiça, mais concretamente no Ac. do STJ, de 27/11/2018, relatado pelo Exmo. Conselheiro Cabral Tavares, acessível em www.dgsi.pt, onde, no respetivo sumário, pode ler-se: “Contudo, ainda que o risco de privação do uso do veículo não se encontre adicionalmente coberto pelo contrato de seguro, pode tal ocorrência ser objeto de indemnização, em razão da violação culposa por parte da seguradora, de deveres acessórios de conduta, com a boa-fé conexionados na execução do contrato.”.
XIV-Assim, a Recorrida está incursa, desde, pelo menos, 16 de março de 2021 e até efetivo e integral pagamento, na obrigação de pagar ao Recorrente o valor do prejuízo decorrente da privação do uso do seu veículo automóvel, acrescido dos juros de mora, contabilizados à taxa legalmente prevista, desde a citação e até efetivo e integral pagamento.
XV-Ora, o dano de privação do uso de bem constitui dano autónomo indemnizável, bastando-se com a prova genérica que o lesado utilizava a viatura para fins de lazer/trabalho e, consequentemente, por via daquela privação deixou de poder fazê-lo; não podendo ser averiguado o valor exato do dano, e dentro dos limites do que for provado, será ele determinado pela equidade, nos termos previstos pelo artº566º, nº3 do C.Civil – neste sentido, veja-se o referido Ac. do STJ, de 27/11/2018.
XVI-Quer parecer ao Recorrente que o valor da indemnização a que tem direito por força do referido dano por si sofrido, há de corresponder, por cada dia de privação, ao valor diário do aluguer de um automóvel com as mesmas características do seu, ou seja, um veículo da mesma classe do que o seu.
XVII-O veículo do Recorrente era, recorde-se, de marca BMW, modelo ..., versão desportiva ..., com caixa automática.
XVIII-Consultando – a consulta é pública - os preços publicitados pelas mais diversas empresas que se dedicam à atividade de aluguer de veículos automóveis, muito facilmente se chega à conclusão de que não se consegue alugar um veículo automóvel com as mesmas características das do que foi subtraído ao Recorrente, por menos de 75 €/dia.
XIX-Assim, a sentença sob recurso deve, nesta parte específica, ser revogada por outra decisão que condene a Recorrida a pagar ao Recorrente, a título de privação do uso do seu veículo, a quantia de 75 €/dia, desde 16 de março de 2021 e até efetivo e integral pagamento do valor do veículo furtado, determinado à data do furto, acrescida dos juros de mora, contabilizados à taxa legalmente prevista, desde a citação e até integral pagamento.
XX-Ao decidir de forma diversa, a sentença sob recurso violou, entre outras normas jurídicas, as consignadas nos artºs 102º e 104º do RJCS, bem como, as constantes dos artºs 798º, 562º, 564º, nº1 e 566º, nº3 todos do Código Civil.
XXI-E a esta conclusão não obsta, salvo o devido respeito e melhor opinião contrária, o facto de não ser o Recorrente a figurar no contrato de seguro celebrado com a Recorrida, como tomador.
XXII-Com efeito, e desde logo, caso a Recorrida tivesse cumprido a sua obrigação de pagar à entidade mutuante e, simultaneamente, credora hipotecária do veículo pertencente ao Recorrente, o montante correspondente à soma de todas as prestações vencidas e não pagas e respetivos juros, e o capital ainda em dívida, dando o sobrante ao Recorrente,
XXIII-Libertando-o, dessa forma, das suas responsabilidades em função do contrato de crédito,
XXIV-Este ficaria, de novo, habilitado a adquirir um outro veículo automóvel, para substituir o que lhe foi subtraído, ainda que por recurso a um novo contrato de crédito e, dessa forma, não padeceria mais do prejuízo decorrente da privação do uso do veículo.
XXV-A Recorrida, ao proceder de forma bem diversa, declinando injustificadamente a sua responsabilidade, deixou o Recorrente adstrito às obrigações emergentes do contrato de crédito e, dessa forma,
XXVI-Impossibilitado, quer por ausência de meios financeiros próprios quer por inacessibilidade e um novo crédito, de adquirir um outro veículo automóvel para substituir o que lhe foi furtado,
XXVII- Perpetuando, assim, o dano da privação do uso.
XXVIII-É que, dada a relação jurídica – contrato de crédito com hipoteca – que está subjacente à celebração do contrato de seguro, este não pode deixar de classificar-se, também, como um contrato a favor de terceiro,
XXIX-Em que o terceiro é, obviamente, o Recorrente.
XXX-E, sendo o Recorrente o proprietário do veículo, é a ele que compete o gozo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição do bem em causa.
XXXI-Acresce que, de qualquer forma, como vimos, o Recorrente, mediante o escrito que constitui o documento nº10 junto aos autos com a petição inicial, ficou investido em todos os direitos que a entidade mutuante detinha sobre a Recorrida, relativamente ao contrato de seguro aqui em causa.
*
A Ré apresentou
recurso subordinado
:
1 -Vem a demandada, porque não se conforma, recorrer da Douta Sentença de fls..., na parte em que julga parcialmente improcedente o pedido e, por conseguinte, condena parcialmente a demandada num dos pedidos formulados, mais concretamente, a condenação constante da alínea A) da Parte Decisória.
2 - Não pode a demandada sufragar o entendimento, por um lado, que não logrou provar a versão por si alegada nos presentes autos e, por outro, que essa falta de prova conduza à procedência parcial do pedido, até porque o ónus probatório quanto à existência do alegado furto era do demandante.
3- A demandada desde já delimita o objecto do recurso subordinado às seguintes questões:
Alteração da matéria de facto por manifesta contradição entre os depoimentos prestados e a factualidade dada como provada;
Em função dessa alteração, considerar-se que a demandada não responde, nem pode responder, por manifesta falta de prova quanto à existência do alegado furto.
4 - A demandada entende, na sua modesta opinião, que a reapreciação, quer dos depoimentos prestados em audiência de discussão e julgamento, quer dos restantes elementos probatórios constantes dos autos, deverá conduzir à procedência do presente recurso e, em consequência, à absolvição da demandada de todos os pedidos formulados pelo demandante.
5 - Assim, uma vez que a demandada pretende impugnar a decisão sobre a matéria de facto, no cumprimento da alínea b) do nº 1 do artº 640, bem como da alínea a) do nº 2 do mesmo artº 640º, ambos do Código de Processo Civil, desde já se indica os depoimentos em que funda essa sua pretensão, acompanhados da indicação exacta das respectivas passagens da gravação da audiência de discussão e julgamento em que se funda o seu recurso:
- BB: o seu depoimento ficou gravado em suporte digital, em 04/10/2023, com início a 00:00:01 e termo a 00:08:10, por referência à acta de audiência de discussão e julgamento;
- CC: o seu depoimento ficou gravado em suporte digital, em 04/10/2023, com início a 00:00:00 e termo a 00:18:22, por referência à acta de audiência de discussão e julgamento.
6 - Na modesta opinião da demandada, a reapreciação, em primeira linha, dos depoimentos das testemunhas acima identificadas, deverá levar à alteração da resposta dada ao Facto Provado sob a alíneas D).
7 - Sendo certo que a demandada procurará demonstrar, desde já, que, através da reapreciação da prova gravada, deverá ser esta a resposta final a dar: Alínea D) dos Factos Provados: NÃO PROVADO (até agora dado como provado).
8 - Conforme é referido na Douta Sentença aqui em recurso, ou conforme se retira dessa mesma Douta Sentença, para apreciar e decidir da verificação do alegado furto, foram tidos em consideração dois depoimentos, a saber:
- AA, na qualidade de demandante, em sede de declarações de parte;
- BB, na qualidade de testemunha, à altura dos factos namorada do demandante.
- Não considerou, o Tribunal, de todo, o depoimento da testemunha CC, na qualidade de Perito Averiguador que efectuou a averiguação do alegado furto participado.
9 - Nos termos e para os efeitos da alínea a) do nº 2 do artº 640º do Código de Processo Civil, as passagens da gravação em que a demandada funda o seu recurso são as que estão sublinhadas e em carregado.
BB – Testemunha
Nome do ficheiro áudio: Diligencia_1136-22.2T8PVZ_2023-10-04_14-56-13.mp3 Tempo áudio: 00:08:10 Data: 04/10/2023
Observações: BB designado(a) como BB: [00:06:04] Mandatária do Autor (Dra. DD): As chaves estavam consigo?
[00:06:05] BB: Estavam.
[00:06:15] Mandatário da Ré (Dr. EE): Quando é que estacionou lá o carro, pela última vez?
[00:06:19] BB: Antes de ir ao dentista.
[00:06:21] Mandatário da Ré (Dr. EE): E tinha andado com ele antes?
[00:06:23] BB: Sim.
[00:06:24] Mandatário da Ré (Dr. EE): Tinha-o trazido na véspera por via de ter vindo dormir a casa dos seus pais?
[00:06:28] BB: Acho que sim, é o que...
[00:06:29] Mandatário da Ré (Dr. EE): Acha que sim. E estacionou e ele ficou, nesse dia já ficou na Póvoa?
[00:06:34] BB: Sim.
[00:06:35] Mandatário da Ré (Dr. EE): Portanto, de 14 para 15 de dezembro?
[00:06:37] BB: Não lhe sei dizer.
[00:06:38] Mandatário da Ré (Dr. EE): Não sabe. Mas
[impercetível].
[00:06:41] BB: Na véspera, é como lhe digo, eu não sei se fui dormir aos meus pais nesse dia, ou se fui...
[00:06:46] Mandatário da Ré (Dr. EE): Já não consegue lembrar-se bem.
[00:06:47] BB: Não.
[00:06:48] Mandatário da Ré (Dr. EE): Pois, foi o que disse inicialmente. Mas a senhora já falou com alguém sobre este assunto, pergunto.
[00:06:53] BB: Não.
[00:06:54] Mandatário da Ré (Dr. EE): Nunca falou com ninguém sobre este assunto?
[00:06:56] BB:Com os meus pais.
[00:06:57] Mandatário da Ré (Dr. EE): Sim. Nunca foi abordada por um perito de uma companhia de seguros?
[00:07:01] BB:Sim, sim, em casa.
[00:07:02] Mandatário da Ré (Dr. EE): Ah, e falou consigo?
[00:07:04] BB: Sim, sim, sim.
[00:07:04] Mandatário da Ré (Dr. EE): E a menina falou com ele?
[00:07:06] BB: Certo.
[00:07:06] Mandatário da Ré (Dr. EE): Contou-lhe coisas sobre como isto foi?
[00:07:08] BB: Sim. Mas não me recordo.
[00:07:11] Mandatário da Ré (Dr. EE): Não se recorda.
[00:07:12] BB: Em que dia foi.
[00:07:14] Mandatário da Ré (Dr. EE): Mas já foi há algum tempo?
[00:07:16] BB: Já.
[00:07:17] Mandatário da Ré (Dr. EE): Foi logo a seguir ao desaparecimento dele?
[00:07:18] BB: Acho que foi logo a seguir que o perito falou connosco.
[00:07:21] Mandatário da Ré (Dr. EE): Sim.
[00:07:22] BB: Até foi na casa dos meus pais, que ele veio lá.
[00:07:24] Mandatário da Ré (Dr. EE): Sim senhor. E a menina contou-lhe o que na altura tinha para contar?
[00:07:27] BB:Acontecido.
CC – Testemunha
Nome do ficheiro áudio: Diligencia_1136-22.2T8PVZ_2023-10-04_15-05-01.mp3
Tempo áudio: 00:18:22
Data: 04/10/2023
Observações: CC designado(a) como CC:
[00:01:11] Mandatário da Ré (Dr. EE): O que é que nos pode dizer sobre se isto terá efetivamente acontecido ou não, das suas averiguações o que é que nos pode dizer?
[00:01:18] CC:Posso-lhe dizer aquilo que fiz.
[00:01:20] Mandatário da Ré (Dr. EE): Sim.
[00:01:20] CC: Pronto. Após a receção do processo do pedido de averiguação por parte da A..., o que é que eu faço sempre? Pesquisa a nível da Segurnet, pesquisa a nível das autoridades, deslocação às autoridades, saber se existe a participação do furto, confirmar, tentar obter a participação do furto, confirmação a nível da assistência em viagem, ver se há algum pedido registado, contacto com a marca, contacto, neste caso, com o usufrutuário do carro, com o condutor, leitura das chaves, contacto com as autoridades várias vezes, neste caso fui à GNR de Vila do Conde, depois o carro foi de um primeiro furto apareceu em Vila Nova de Gaia, contactei a PSP de Vila Nova de Gaia, contactei a Polícia Técnica da PSP, depois no segundo furto a PSP de Vila do Conde, Póvoa de Varzim, a marca.
[00:02:14] Mandatário da Ré (Dr. EE): Olhe, este veículo, qual é a marca?
[00:02:18] CC: BMW, ... [impercetível].
[00:02:19] Mandatário da Ré (Dr. EE): [impercetível] é um veículo, digamos, com um dispositivo de segurança?
[00:02:23] CC:Sim, 2.500.
[00:02:23] Mandatário da Ré (Dr. EE):É possível fazer andar este veículo sem as chaves?
[00:02:26] CC: Segundo informações da marca não.
[00:02:28] Mandatário da Ré (Dr. EE): Não. Só com as chaves [impercetível]?
[00:02:29] CC:Só com a chave.
[00:02:35] Mandatário da Ré (Dr. EE): O veículo terá sido então furtado duas vezes?
[00:02:38] CC: O veículo foi furtado em...
[00:02:41] Mandatário da Ré (Dr. EE): Pelo menos foi participado como tal.
[00:02:42] CC: Sim. Participado foi como... participado em novembro, foi furtado, apareceu num parque na zona de Vila Nova de Gaia, devidamente fechado e sem vestígios de estroncamento, o carro foi trazido...
[00:02:53] Mandatário da Ré (Dr. EE): Não tinha vestígios de estroncamento?
[00:02:55] CC: Não. Nem de arrombamento.
[00:02:57] Mandatário da Ré (Dr. EE): E outros vestígios?
[00:02:58] CC: Segundo informações das autoridades, da Polícia Técnica da PSP não tinha, o carro veio aqui para o concessionário...
[00:03:05] Mandatário da Ré (Dr. EE): Ele não tinha vestígios nenhuns de...
[00:03:08] CC: Não.
[00:03:09] Mandatário da Ré (Dr. EE): Nem danos nenhuns aparentes?
[00:03:10] CC: Não. Entretanto não foi solicitada qualquer peritagem relativamente a isso, o carro esteve aqui no concessionário BMW na ..., não foi feita qualquer reparação a qualquer dano, foram feitas apenas campanhas de manutenção que o carro tinha para fazer, o carro foi entregue novamente ao condutor e passado alguns dias o carro foi novamente furtado.
Segundo o que foi participado, atenção!
[00:03:37] Mandatário da Ré (Dr. EE): Sim. Falou com alguém relativamente a esse segundo alegado furto?
[00:03:44] CC: Falei... falei com alguém, como assim?
[00:03:45] Mandatário da Ré (Dr. EE): Sim. Se falou com o segurado, se falou com mais alguém [sobreposição de vozes]?
[00:03:48] CC:Sim, sim, falei, falei, isso foi tudo, falei com o condutor seguro e falei com a namorada na altura.
[00:03:54] Mandatário da Ré (Dr. EE): Sim senhor. A namorada concretamente o que é que lhe disse?
[00:03:57] CC:Sobre o segundo furto?
[00:03:58] Mandatário da Ré (Dr. EE): Sim.
[00:03:59] CC:Falou sobre os dois furtos, sobre o segundo furto o que é que ela me disse? Diz que no dia 14 de dezembro, digamos assim, eles andaram todo o dia com o carro, foram jantar em família ao ... à Póvoa... à Póvoa, desculpe, à ...,...
[00:04:12] Mandatário da Ré (Dr. EE): [impercetível].
[00:04:14] CC: ...na véspera, no dia, no dia, exatamente, no dia 14, foram jantar ao ... à ..., entretanto vieram para cá, a namorada deixou ficar o Sr. AA em casa dele, em ..., ..., veio para casa, veio para casa e estacionou o carro...
[00:04:28] Mandatário da Ré (Dr. EE): E trouxe o veículo?
[00:04:29] CC: E trouxe o veículo. Uma chave estava com a D. BB, não é? E a outra chave estava com o Sr. AA. Entretanto, por volta... estacionou por volta das 10h15, mais ou menos, por volta das 11h00 foi buscar a irmã, penso que trabalha no ..., foi buscá-la à Póvoa, veio, estacionou novamente o carro. No outro dia, no dia 15 de manhã saiu por volta das 08h00, foi levar a mãe ao ..., regressou, depois ainda foi levar mais tarde a irmã novamente ao centro da Póvoa...
[00:05:01] Mandatário da Ré (Dr. EE): Isso já no dia do desaparecimento?
[00:05:02] CC: Já no dia 5, exatamente, estacionou o carro. Entretanto, por volta das duas e meia foi ao dentista – isto está tudo escrito por eles, foi por volta das duas e meia foi ao dentista e o carro ainda estava no local estacionado, por volta das 16h30, quando regressou, já não estava o carro no local estacionado.
[00:05:19] Mandatário da Ré (Dr. EE): Quando veio do dentista, portanto?
[00:05:21] CC:Quando veio do dentista.
[00:05:23] Mandatário da Ré (Dr. EE): Isso foi o que ela lhe disse?
[00:05:25] CC:Foi o que eles me disseram os dois.
[00:05:26] Mandatário da Ré (Dr. EE): Sim senhor. O senhor fez alguma diligência relativamente às chaves do veículo?
[00:05:31] CC:Foi feita e entretanto, depois dessa reunião...
[00:05:33] Mandatário da Ré (Dr. EE): A si?
[00:05:34] CC: Sim. Foram entregues as chaves, foram levadas à BMcar.
[00:05:36] Mandatário da Ré (Dr. EE): As duas chaves?
[00:05:37] CC: As duas chaves, não aqui à Póvoa, mas sim à BMcar ..., foi feita a leitura e a leitura deu que a última vez que o carro circulou foi no dia 14/12, por volta das 22h00 da noite.
[00:05:52] Mandatário da Ré (Dr. EE): Portanto, foram lidas as chaves na BM, no ....
[00:05:54] CC: Foram feitas... lidas, foram recolhidos os [impercetível].
[00:05:56] Mandatário da Ré (Dr. EE): A último vez que o carro [impercetível] com alguma daquelas chaves.
[00:05:59] CC: Com alguma daquelas chaves foi no dia 14, por volta das 22h00 da noite.
[00:06:05] Mandatário da Ré (Dr. EE): Não obstante, ela disse-lhe a si que no dia 15 ainda foi levar [impercetível]?
[00:06:08] CC: Ela disse que no dia 14 ainda foi sair por volta das 11, regressou no dia 15, andou mais duas vezes no carro e pronto. Ah! E outra particularidade...
[00:06:17] Mandatário da Ré (Dr. EE): [impercetível] na vizinhança do local onde supostamente terá desaparecido, se alguém sabia alguma coisa, se havia vestígios?
[00:06:25] CC: Não, vestígios não havia, não havia absolutamente nada.
E tem outra particularidade, é que alegadamente uma das chaves estava em ... e outra estava aqui na Póvoa, com a BB, e as duas possuíam exatamente a mesma leitura. Ou seja, os dados de uma chave e os dados da outra chave eram exatamente os mesmos.
[00:06:45] Mandatário da Ré (Dr. EE): Exatamente os mesmos. Sim senhor, portanto, é isto que nos pode dizer?! [impercetível].
[00:06:53] CC: Sim, o que é que eu lhe posso dizer mais? Falei com o...porque quando o carro foi adquirido inicialmente foi apenas entregue uma chave, depois a outra chave foi entregue cerca de um mês depois, também foi declarado pelo condutor seguro, disse que as duas chaves... que eram as duas chaves que lhe tinham sido entregues, o carro foi vendido pelo Elói, que é um vendedor da BMW, tentei falar com o Elói, o Elói não quis prestar declarações, entretanto soube que este carro era um carro importado, fui à Alfandega saber quem é que importou o carro, foi um senhor que trabalha com a BMW e que pediu para o carro ser colocado naquelas feiras que se fazem e foi aí que o carro foi adquirido. Tentei falar com esse Sr. FF, mas ele disse que não estava disponível para falar nem para esclarecer o motivo pela qual inicialmente só foi entregue uma chave e depois outra.
[00:07:43] Mandatário da Ré (Dr. EE): Sim senhor. Da minha parte é tudo, senhor doutor Juiz.
[00:07:46] Meritíssimo Juiz:Uma coisa, disse-me há bocado que as leituras das duas chaves eram exatamente iguais?
[00:07:51] CC: Sim. Os dados de chave de uma chave e de outra eram exatamente iguais.
[00:07:55] Meritíssimo Juiz:Exatamente iguais como? Quanto à última vez que o carro circulou?
[00:07:58] CC:Sim, a última atualização, quilometragem, tudo, exatamente iguais.
[00:08:04] Meritíssimo Juiz: E isso será natural ou...?
[00:08:06] CC: Não pode ser porque se uma chave estava em ..., a outra estava aqui na Póvoa de Varzim...
[00:08:13] Meritíssimo Juiz: Sim, eu não sou perito, mas pus-me a pensar se tem como última utilização 14/12 as duas chaves, isso quer dizer que as duas chaves foram utilizadas pela última vez as duas?
[00:08:23] CC:Podem, sim, as duas chaves foram utilizadas da última vez, e estavam ao menos junto ao carro da última vez que foi utilizada, que isto são chaves confort, chaves, digamos, de bolso, e estavam as duas juntas. Só podem estar, é essa a única explicação que existe, segundo a marca.
[00:08:51] Meritíssimo Juiz: E disse-me que as chaves que foram entregues ao comprador com dilação uma da outra, não foram entregues as duas na altura da compra?
[00:08:59] CC: Segundo o que me disse o Sr. AA, quando comprou o carro foi entregue uma...
[00:09:02] Meritíssimo Juiz: [impercetível], mas isso é informação do Sr. AA.
[00:09:04] CC: Do Sr. AA, foi entregue uma e passado um mês foi-lhe entregue a segunda chave, uma outra chave, não sabe se era uma cópia – foi o que ele declarou, não sabe se era uma cópia, se era original, mas foi entregue, as duas que tinha, pronto, é as que tinha, que me entregou a mim.
[00:09:36] Mandatária do Autor (Dra. DD): Começando pelo final, quando fala nas duas chaves juntas, fala nas duas chaves no mesmo local, no bolso?
[00:09:45] CC:Sim, têm que estar as duas chaves a um raio de distância de cerca de 1 m, 1,5 m, que é o que ativa o carro, aquando da última utilização, do carro foi utilizado.
[00:10:12] Mandatária do Autor (Dra. DD):As duas.
Portanto, o que senhor está a dizer é que na altura em que ocorreu o furto, as duas chaves estavam no mesmo sítio?
[00:10:21] CC: Não, a última vez que aquele carro foi utilizado, as duas chaves tinham que estar juntas.
[00:13:24] CC: A viatura devido ao sistema anti arranque que tem, isso podem confirmar junto da BMW Portugal, devido ao sistema anti arranque que tem, sem uma chave original o carro não entra em funcionamento, ou seja, o carro não pode circular. Agora, essa informação tem que ser obtida junto da marca, da BMW Portugal.
[00:13:43] Mandatária do Autor (Dra. DD): Junto da BMW,...
[00:13:44] CC: Sim.
[00:16:07] CC: Não foram informalmente, eu fiz diligências no sentido de perceber até se estava a ser feita alguma investigação, devido à peculiaridade do caso, se estava a ser feita alguma investigação relativamente a isso, que na minha opinião devia ser feito e... por tudo, não é, por o carro ter aparecido fechado, sem estroncamento, devido à forma – que eu acho que isso é importante dizer, a forma como o carro estava estacionado desde o primeiro furto, estava entre dois carros, e conforme o Sr. AA confirmou o carro saiu dali a circular porque apresentava vestígios no chão de terem rodado as rodas, isso para mim era importante, por isso é que eu contactei também, conforme disse no início, a PSP, a área técnica, porquê? Para perceber se efetivamente isso que me tinha sido relatado era verdade ou não e se o carro tinha vestígios de estroncamento ou de arrombamento. Porque é assim, não é possível colocar um carro... entrar dentro do carro e andar com o carro sem este ter vestígios de estroncamento ou de arrombamento.
10 - A testemunha BB, cujo depoimento o Tribunal valorou, entrou em manifesta contradição com o que o Senhor Perito CC transmitiu ao Tribunal, e cujo depoimento, aparentemente, não foi minimamente considerado e tido em linha de conta.
11 - Com efeito, a testemunha BB afirmou que tinha utilizado o veículo pela última vez no dia 15, data do alegado furto.
12 - Contudo, o Senhor Perito CC confirmou que a leitura de ambas as chaves indicam que o veículo foi utilizado pela última vez no dia 14, e não no dia 15.
13 - E mais afirmou o Senhor Perito CC que, aquando da última utilização do veículo do demandante, as duas chaves estavam juntas, pois a leitura de ambas era absolutamente idêntica.
14 - POR OUTRO LADO, A LINHA DO DEPOIMENTO DA TESTEMUNHA BB NÃO É MINIMAMENTE VEROSÍMIL.
15 - NÃO FAZ SENTIDO À LUZ DA TEORIA DO HOMEM MÉDIO.
16 - Pelo contrário, O DEPOIMENTO DO SENHOR PERITO CC, COM CONHECIMENTOS TÉCNICOS ESPECÍFICOS NESTA MATÉRIA, CONFIRMA QUE O VEÍCULO EM CAUSA, DE MARCA BMW, SÓ PODERIA CIRCULAR OU SER POSTO EM ANDAMENTO ATRAVÉS DE UMA CHAVE.
17 - Por outro lado, há que atender que não pode, ou não poderia, merecer credibilidade ao Tribunal a tese do furto, APENAS E SÓ COM BASE NAS PRÓPRIAS DECLARAÇÕES DE PARTE DO DEMANDANTE, ASSIM COMO NO DEPOIMENTO DA TESTEMUNHA BB, NA ALTURA DOS FACTOS NAMORADA DO DEMANDANTE.
18 - Assim sendo, deverá a matéria de facto ser alterada nos moldes supra expostos
19 - Por consequência, DEVE CONSIDERAR-SE QUE NÃO FOI PRODUZIDA QUALQUER PROVA QUANTO À EXISTÊNCIA DO ALEGADO FURTO.
20 - A Douta Sentença sob censura violou as normas dos artigos 615º, nº 1, alínea b), c), d) e e) e o nº 1, 4 e 5 do art. 609º, artigos 640.º do CPC.
*
O Autor respondeu e concluiu que:
A)Deve manter-se como provada a factualidade constante da alínea d) dos factos provados,
B)Como, consequentemente, inalterada deve ficar a condenação da ré a pagar ao autor montante a liquidar em decisão ulterior, correspondente ao valor do veículo automóvel com a matrícula ..-XA-.., marca BMW, referido na alínea a) dos factos provados, determinado à data de 15 de dezembro de 2020, acrescido de juros de mora.
*
II—
Delimitação do Objecto do Recurso
As questões principais
decidendas
, delimitadas pelas conclusões dos recursos, principal e subordinado, consistem em saber se:
-
deve ser alterada a resposta que deu como provada a subtracção do veículo do Autor por desconhecidos;
-
mantendo-se inalterada a decisão sobre a referida factualidade, se o Autor tem direito a ser indemnizado pela
privação do uso
do veículo.
*
Da Modificabilidade da Decisão sobre a matéria de facto
Nos termos do artº. 662º. do Código de Processo Civil, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a
prova produzida
ou um documento superveniente
impuserem
decisão diversa.
A possibilidade que o legislador conferiu ao Tribunal da Relação de alterar a matéria de facto não é absoluta, apesar de poder formar a sua própria convicção, pois tal só é admissível quando os meios de prova revisitados apontam em sentido contrário ao decidido pelo tribunal
a quo
.
À luz da mencionada norma e da disciplina, de natureza adjectiva e material, sobre a temática da
prova
, cumpre reanalisar a decisão proferida sobre os factos em causa.
A Recorrente manifestou a sua discordância por ter sido declarado como
provado
que
“
No dia 15 de Dezembro de 2020, quando o veículo referido em a) se encontrava estacionado na rua da Cidade ..., na União de Freguesias ..., ... e ..., foi apoderado por desconhecidos, que o levaram para local não determinado, não tendo o autor voltado a recuperá-lo.”-alínea D).
A factualidade impugnada constitui o cerne do objecto da acção que consistiu justamente em apurar se, efectivamente, se verificou o risco de
furto
previsto no contrato de seguro celebrado com a Ré.
Portanto, a
questão de facto
fundamental que se suscita no presente recurso consiste em saber se os
elementos típicos
que integram o risco do crime de furto (
subtracção com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa
-v. art. 203.º, n.º 1 do C.Penal) devem ser provados pelo tomador de seguro/segurado para poder exigir da contraparte, a seguradora, a indemnização estipulada no contrato, ou se, para esse efeito, é suficiente a
participação
do evento às autoridades criminais.
Tem sido bastante debatida esta questão na jurisprudência reconhecendo-se, por um lado, a dificuldade manifesta do tomador do seguro ou do segurado em conseguir provar a ocorrência do crime de furto, por não dispor de meios humanos e técnicos bem como da autoridade que assiste aos órgãos de polícia criminal para investigar a notícia do crime, e, por outro, a realidade que advém dos casos de
simulações de furto
com a finalidade de obtenção, fraudulenta, do capital correspondente ao valor do veículo, acionando o contrato de seguro.
A dificuldade ou mesmo impossibilidade de índole probatória resulta desde logo de ser um tipo legal de crime praticado, em regra, de forma oculta, por forma a evitar que o seu autor ou autores sejam responsabilizados criminalmente.
[1]
Por ser manifesta a dificuldade ou mesmo impossibilidade do segurado provar, numa acção cível destinada a obter uma indemnização emergente do contrato de seguro, todos os elementos típicos do crime de furto, o que carece de investigação criminal, como já salientámos, por vezes demorada, a jurisprudência tem considerado suficiente, para esse efeito, a
participação
do desaparecimento do veículo à autoridade policial mas com os esclarecimentos que infra serão consignados.
Recentemente, em resultado da reflexão sobre o tema da prova, considerou-se, e bem, que essa dificuldade não pode alterar as regras do ónus da prova e que, por esse motivo, a mera participação do desaparecimento do veículo não é suficiente para reconhecer o direito do autor á reclamada indemnização com fundamento no contrato de seguro.
[2]
Assim, delinearam-se, em resumo, duas correntes: a que considera
suficiente
a apresentação da participação criminal desde que as circunstâncias relatadas sejam dotadas de
verosimilhança
de acordo com os ditames práticos da experiência de vida (designada de
prova de primeira aparência
) e uma outra, mais exigente em termos probatórios, no sentido de que a prova da ocorrência do evento não se basta com esse procedimento do segurado.
Segundo a primeira orientação da jurisprudência acima referida (destacando-se o Acórdão do
Tribunal da Relação de Lisboa
, de 22/11/2018
[3]
-que alude à jurisprudência nacional e francesa) apesar de se reconhecer que incumbe ao segurado o ónus da prova do furto do veículo, como
constitutivo do seu direito
, considera-se suficiente, para esse efeito, a
participação
do evento, desde que a seguradora não consiga afastar essa prova designada de
primeira aparência
.
Por outras palavras, a apresentação de uma denúncia às autoridades policiais através da qual o segurado comunica o inesperado
desaparecimento
de um veículo, em determinadas circunstâncias de tempo e lugar, permitirá concluir, em princípio, que esse evento ocorreu em resultado de uma acção ilícita de terceiro(s).
Neste sentido, o Acórdão do
Tribunal da Relação de Guimarães
, de 11/07/2013
[4]
, também concluiu que “a prova do furto há-de ser sempre indirecta e resultar de circunstancialismos dos quais se possa concluir a existência daquele furto, uma vez que este não foi presenciado. A conclusão resulta evidente quando se estaciona o veículo numa determinada via e, ao pretender recuperá-lo, se constata que o mesmo já lá não se encontra, sem que seja fornecida qualquer explicação para esse facto e sem que o seu proprietário volte a estar na sua posse, acrescendo a correspondente queixa por furto na PSP e a participação do desaparecimento à ré.”
O
Supremo Tribunal de Justiça
, no acórdão de 27/10/2022,
[5]
seguindo a orientação dominante declarou que “Quando um contrato de seguro inclui entre os riscos por ele cobertos a prática de um determinado crime (v.g. o crime de furto), se é ao segurado que cumpre demonstrar a ocorrência do sinistro correspondente, não é exigível que este faça uma
prova segura
dos factos integrantes do ilícito criminal, equivalente àquela que é necessária para se aplicar uma pena, sendo suficiente que se apurem factos indiciários que revelem uma possibilidade razoável do crime ter ocorrido, sem que estejam demonstrados quaisquer outros factos que suscitem a dúvida sobre a sua verificação.” (itálico nosso)
Nesta conformidade, se as circunstâncias nomeadamente de tempo e lugar conjugadas com outras tidas por relevantes, alegadas pelo autor, forem impugnadas, motivadamente, pela contraparte de forma a suscitar
sérias dúvidas
ao julgador sobre essa realidade, ou na hipótese de se provarem factos que afastem aquela conclusão, não pode ser atendível a prova de
primeira aparência
assente apenas na
participação criminal
do alegado furto às autoridades policiais conjugada com as declarações do autor.
Os arestos que analisaram casos similares são unânimes no sentido de que compete ao autor a alegação e prova da ocorrência do sinistro, ou seja, o desaparecimento ilícito do veículo (art. 342.º, n.º 1 CC) e à ré os factos impeditivos, modificativos ou extintivos da sua responsabilidade (art. 342.º, n.º 2 CC); e, que em caso de
dúvida
, os factos devem ser julgados de forma desfavorável para o autor (art. 414.º do CPC).
Importa ainda notar que a participação criminal constitui uma exigência prevista nos contratos de seguro para o tomador poder ser indemnizado.
Salvo o devido respeito, a questão não nos parece que esteja a ser solucionada de forma
significativamente
divergente na jurisprudência, ao contrário do que parece resultar das mencionadas duas correntes.
A
participação criminal
, necessária para acionar a responsabilidade da seguradora, e apresentada pelo denunciante, contém, resumidamente, o relato dos factos, os quais serão sujeitos a
investigação
.
Como sabemos, a lei (cfr. art. 349.º do C.Civil) confere ao julgador mecanismos que lhe permitem inferir factos desconhecidos (furto) a partir das circunstâncias conhecidas.
A prova por
presunção judicial
assenta em máximas de experiência, juízos correntes de probabilidade, princípios de lógica e na própria intuição humana e que consiste, exactamente, no raciocínio lógico que permite chegar a um facto desconhecido por força do juízo crítico incidente sobre factos conhecidos.
[6]
A presunção, para Luís Filipe Pires de Sousa
[7]
, parte de factos adquiridos por admissão, notoriedade e/ou prova, opera como um método específico de valoração da prova tendo em vista alcançar a certeza de um facto para os fins do processo, permitindo obter novas afirmações a partir das já adquiridas processualmente.
É justamente este método, baseado na conjugação das regras da experiência com o raciocínio lógico, aplicado aos factos conhecidos (desaparecimento inesperado do veículo em determinadas circunstâncias participado criminalmente-prova de
primeira aparência
) que nos permite dar como demonstrados os factos típicos do
crime de furto
e declarar verificado o
sinistro
.
Da experiência de vida sabemos que o furto e roubo de veículos não são acontecimentos raros. Bem pelo contrário. Também é do conhecimento geral e dos tribunais que as
simulações
de furto também são uma realidade.
Portanto, se o dono do veículo é confrontado com uma situação de
desaparecimento
, em relação à qual não teve qualquer intervenção, desconhecendo o(s) autor(es) do facto, naturalmente que tomará as devidas providências nas quais se inclui a denúncia aos órgãos de polícia criminal para poder reaver o veículo e a comunicação do sinistro, como é seu dever, à seguradora.
Na hipótese de ser declinada a responsabilidade, como sucedeu no presente caso, o autor terá de
convencer
o tribunal, com os meios de prova ao seu dispor (designadamente com as suas próprias declarações, prova testemunhal, pericial ou documental) que o veículo desapareceu em circunstâncias que
indiciam, com segurança, ter sido alvo de apropriação ilícita por terceiros
.
Ou seja, a apresentação da
participação criminal
pelo tomador do seguro/segurado configura a primeira medida
indispensável
para tentar que o veículo seja encontrado e devolvido, ao mesmo tempo que alerta a seguradora, fazendo prova junto desta, sobre o desaparecimento do veículo, ou seja, comunicando
eficazmente
a ocorrência do sinistro cujo risco se encontra coberto.
No âmbito da acção judicial, o julgador irá analisar
criticamente
todas as provas produzidas no processo, aplicando as regras probatórias e as máximas da experiência à luz da livre apreciação das provas, e formar, consequentemente, a sua
convicção
sobre a
veracidade
da versão alegada pelo autor.
Na discussão e instrução da causa, a seguradora, que normalmente investiga o sinistro que lhe foi comunicado, poderá trazer ao processo informações e elementos probatórios que tornem
duvidosa
a versão do autor (art. 346.º-
contraprova
-CC) ou que até apontem seguramente para uma
actuação fraudulenta
.
Assim sendo, na nossa perspectiva, a prova designada de
primeira aparência
(facto-base da presunção) que é conferida à
participação criminal
não altera as regras do ónus da prova
uma vez que o julgador deverá, em face do objecto do processo, e em conformidade com o princípio da livre apreciação da prova e aplicando as regras da lógica e da experiência de vida, concluir, fundamentadamente, se ocorreu o sinistro ou se a prova não foi suficiente para o convencer, dando o mesmo como não provado.
No caso concreto, a convicção do Mmo. Juiz baseou-se na seguinte análise dos meios de prova produzidos, que se transcreve:
“
Apontam para a ocorrência do furto o auto de queixa junto como documento n.º 4 com a petição inicial (fls. 18) e
a localização posterior numa oficina em ... de duas portas do veículo em questão
, como decorre da informação do DIAP ... de 11/10/023 (fls. 55).
(sublinhado nosso)
A ré salienta em concreto três detalhes. A ocorrência de um furto do mesmo veículo poucos dias antes, tendo sido encontrado em Vila Nova de Gaia sem marcas de arrombamento, informação do fabricante segundo a qual não é possível o furto do veículo sem usar uma das chaves, o facto de ambas as chaves, a principal e a suplente, terem o último registo electrónico de utilização em 14/12/2020, às 22.00 horas, momento anterior ao declarado por BB como última vez que conduziu o veículo, já no dia do furto.
O autor assumiu a ocorrência de furto do mesmo veículo, recuperado seis dias depois em Vila Nova de Gaia. Não é uma base de partida muito forte para indiciar uma simulação, e podia mesmo indicia uma particular vulnerabilidade do veículo a furtos, como a existência de uma terceira chave na posse de terceiro, por exemplo.
A informação do fabricante também não é impressiva. O tribunal desconhece até hoje que existam no mercado veículos imunes a furto, e já se confrontou, em julgamentos, com procedimentos de clonagem electrónica de chaves de veículos, realizadas no próprio momento do furto.
O último detalhe foi trazido a julgamento pelo depoimento de CC, que averiguou o sinistro. É um dado que põe em causa um detalhe da narração de BB, que afirmou ter conduzido o veículo ainda na manhã de 15/12, e poderia colocar a questão de uma simulação, com entrega voluntária do veículo na noite anterior, seguida de uma queixa de falso furto no dia seguinte. É uma possibilidade, mas a discrepância poderia ter outras explicações, mas sobretudo é uma discrepância que, colocada no contexto da prova produzida e da fluência dos depoimentos, resulta objectivamente insuficiente para sustentar consistentemente uma hipótese de simulação neste caso concreto
.”
A apreciação dos meios de prova merece total acolhimento desde logo porque aponta claramente para o desaparecimento ilícito, perpetrado por terceiros, o aparecimento de duas portas do veículo no âmbito de uma outra investigação criminal.
As declarações do Autor, na parte que se refere à questão do furto, carecem de utilidade para a decisão uma vez que quem conduzia a viatura, antes do desaparecimento, era a sua ex-namorada, a testemunha BB, que prestou depoimento de uma forma que nos pareceu genuína.
A Ré defende que a versão desta testemunha contraria o que foi relatado pelo perito que investigou o sinistro, a testemunha CC, por este ter afirmado que da leitura idêntica das duas chaves resulta que a viatura foi utilizada pela última vez no dia 14 e não no dia do alegado furto, dia 15.
A testemunha CC limitou-se a investigar o sinistro mas não é especialista/técnico da marca BMW.
Só um perito, devidamente credenciado e tecnicamente habilitado, estaria em condições de assegurar, sem qualquer dúvida, dando como pressuposto que a leitura das chaves era idêntica (o que não se provou pois não basta as declarações da testemunha nesse sentido) que é impossível fazer uma cópia das chaves pois como o Mmo. Juiz observou, já se confrontou em julgamentos com
procedimentos de clonagem electrónica de chaves de veículos, realizadas no próprio momento do furto.
O furto ocorrido cerca de um mês antes, tendo sido recuperado o veículo sem qualquer dano apenas seis dias depois, constitui uma circunstância pouco usual mas que, ao contrário da conclusão da Ré, indica que estava, muito provavelmente, na mira de terceiros com intenção ilícita de apropriação.
Aliás, não nos parece que esse furto anterior do veículo (recuperado após seis dias) seja, por si só, susceptível de indiciar a inveracidade das declarações do Autor. Pelo contrário, quem pretende simular um furto, não o faz duas vezes, mediando entre os dois furtos um curto período temporal.
O primeiro furto, como bem refere o Mmo. Juiz, indicia uma particular vulnerabilidade do veículo e a existência de uma terceira chave.
Não se impõe, face às razões aduzidas, a alteração da resposta aos factos vertidos na alínea D).
Considerando que uma das questões suscitadas na acção e no recurso do Autor se prende com o dano da privação do veículo, irá ser aditado ao elenco factual as comunicações por e-mail, documentadas nos autos, e as coberturas do seguro do veículo.
*
III—FUNDAMENTAÇÃO
FACTOS PROVADOS
(elencados na sentença)
a)O autor é titular da última inscrição de aquisição na Conservatória do Registo Automóvel de Vila Nova de Famalicão, datada de 16 de Janeiro de 2020, respeitante a um veículo automóvel com a matrícula n.º ..-XA-.., marca BMW;
b)O autor e um representante de BMW Bank GmbH, Sucursal Portuguesa apuseram as suas assinaturas no escrito junto em 15/11/2023 (fls. 74 e ss), intitulado “Contrato de crédito a Consumidor”, que aqui se dá por integralmente reproduzido, no qual declararam nomeadamente aceitar celebrar um contrato de mútuo, pelo montante de €39.772,06, a pagar pelo autor em 85 prestações aí discriminadas, que incluíam nomeadamente uma parcela descrita como “seguro auto”;
b)-1-Ficou consignado que “Em caso de perda total…deverá o mutuário entregar ao mutuante a indemnização que vier a receber da seguradora, caso esta lhe seja directamente liquidada. O mutuário receberá o excesso ou pagará a diferença entre o valor devido nos termos da presente alínea e a indemnização paga pela seguradora.”
c)A ré fez emitir o documento junto 12/10/2023 (fls.58 e ss.), cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, que numerou como apólice nº ...00, pela qual declarou nomeadamente assumir perante a tomadora BMW Bank GmbH, Sucursal Portuguesa o risco por furto ou roubo do veículo automóvel marca BMW, matrícula n.º ..-XA-.., pelo capital de €31.315,72, mediante o pagamento pela tomadora de uma contraprestação anual convencionada, no período anual desde 4/10/2019 e anos seguintes;
c)1-Na mencionada apólice a ré assumiu ainda a responsabilidade civil obrigatória e um veículo de substituição, constando da mesma como credora hipotecária a BMW Bank GmbH, Sucursal Portuguesa e “Segurado/Proprietário” a mencionada credora (mutuária) e o Autor, condutor habitual da viatura.
d)No dia 15 de Dezembro de 2020, quando o veículo referido em a) se encontrava estacionado na rua da Cidade ..., na União de Freguesias ..., ... e ..., foi apoderado por desconhecidos, que o levaram para local não determinado, não tendo o autor voltado a recuperá-lo;
e)No dia 16 de Dezembro de 2020, o autor comunicou à ré a ocorrência do furto, entregando as chaves do veículo e os documentos;
e)-1 O A. deu também imediato conhecimento do sinistro à entidade mutuante.
e)-2 Por intermédio do seu advogado, o A. dirigiu à R., em 9 de março de 2021, um e-mail solicitando-lhe, no prazo de oito dias, uma decisão relativamente ao assunto versado;
e)-3 Com data de 5 de abril de 2021, o A., por intermédio do seu advogado, dirigiu um outro e-mail à R., solicitando-lhe, uma vez mais, informação sobre o estado em que se encontrava o processo de regularização do sinistro em causa;
e)-4 A R. bem sabia que existia um contrato de financiamento associado à aquisição do veículo furtado que continuava em vigor, encontrando-se o A. adstrito à obrigação de pagar as respetivas prestações à entidade mutuante;
e)-5 Com data de 7 de abril de 2021, a R. respondeu ao advogado do A., informando-o que “…estamos a efetuar diligências de forma a podermos instruir o nosso processo. Voltaremos ao seu contato com a maior brevidade possível, assim que essas mesmas diligências estiverem concluídas. …”;
e)-6 Com data de 9 junho de 2021, enviou novo e-mail para a R., solicitando-lhe, outra vez, informação sobre o estado em que se encontrava o processo interno de regularização do sinistro;
f) A R., no dia 01 do mês de julho de 2021, comunicou ao A., que declinava toda e qualquer responsabilidade pela regularização do sinistro, uma vez que “O sinistro não terá ocorrido de forma aleatória, súbita e/ou imprevista”;
g)O autor, GG e um representante de BMW Bank GmbH, Sucursal Portuguesa apuseram as suas assinaturas no escrito junto em como documento n.º 10 com a petição inicial (fls. 22 e ss), intitulado “Transacção”, que aqui se dá por integralmente reproduzido, do qual conta nomeadamente: “1 -Os 1.º e 2.º outorgantes obrigam-se, solidariamente, para liquidação total das suas responsabilidades relativamente ao contrato de crédito acima melhor descrito, a pagar à 3.ª outorgante, a quantia de 28.360,32 euros, (…) 5 - Por sua vez, a 3.ª outorgante declara, desde já que, com o efetivo e integral recebimento da referida quantia, automaticamente nada mais tem a exigir dos 1.º e 2.º outorgantes, seja a que título for, relativamente ao contrato aqui em causa, considerando-se totalmente ressarcida. 6 - Com o efetivo e integral recebimento da referida quantia por parte da 3.ª outorgante, esta declara, desde já que, automaticamente sub- roga o 1.º outorgante em todos os direitos que detém sobre a companhia de seguros "A...", relativamente ao contrato de seguro identificado nos considerandos supra.”;
h)GG procedeu ao pagamento a BMW Bank GmbH, Sucursal Portuguesa do valor de €28.360,32, referido em g) em 22/11/2021;
i)Na sequência da privação do veículo o autor não dispôs de meios financeiros para adquirir um outro, e viu-se privado do uso que dele retirava, para realização de passeios de fim-de-semana, recorrendo para o efeito a um veículo cedido ocasionalmente pelo seu pai.
*
FACTOS NÃO PROVADOS
-Que o veículo descrito em a) tenha um valor locativo diário de €75,00.
-Que o autor sentisse tristeza, ansiedade e depressão por não ser ressarcido pela ré do valor do veículo e que por isso tenha passado a figurar como incumpridor no registo do Banco de Portugal.
*
IV-DIREITO
Com a presente acção judicial, o Autor exige o pagamento de uma quantia pecuniária correspondente à perda total do veículo por ter sido
furtado
, acrescido da indemnização pela privação do uso, alicerçando-se no contrato de seguro facultativo, por danos próprios.
No que concerne à ocorrência do risco coberto pelo contrato de seguro, o Autor logrou provar o furto do veículo, como lhe competia, mas a Ré foi absolvida do pedido de indemnização da privação do uso.
Inconformado com a parte da decisão que lhe foi desfavorável, o Autor recorreu, pedindo a reapreciação dessa questão argumentando que a indemnização peticionada fundamenta-se na recusa injustificada por parte da Ré em cumprir a obrigação decorrente do contrato de seguro, sendo o beneficiário da mesma.
A Ré celebrou com a entidade mutuante um contrato de seguro, cujo beneficiário também é o Autor, mutuário e proprietário do veículo.
José Vasques
[8]
define o contrato de seguro como sendo aquele pelo qual a seguradora, mediante retribuição pelo tomador de seguro, se obriga, a favor do segurado ou de terceiro, à indemnização de prejuízos resultantes, ou ao pagamento de valor pré-definido, no caso de se realizar um determinado evento futuro e incerto.
A obrigação do tomador do seguro consiste no pagamento do prémio convencionado e a obrigação da seguradora, verificado o risco, no pagamento de uma indemnização ou de capital.
O
risco
, como refere José Vasques
[9]
, pode ser definido como o evento futuro e incerto cuja materialização constitui o sinistro, sendo um elemento essencial do contrato de seguro.
Apesar de estar sujeito ao princípio da liberdade contratual, o contrato de seguro em apreciação, tal como é frequente, contém cláusulas pré-definidas, sem negociação, em relação às quais os destinatários se limitam a aceitar ou a subscrever.
Enquadra-se, por isso, nos designados
contratos de adesão
, e consequentemente, deve ser submetido à disciplina do Dec.-Lei n.º 446/85 de 25.10, com as alterações introduzidas pelos Dec.-Leis n.
os
220/95 de 31/08 (transpôs para a ordem jurídica interna a Directiva das Cláusulas Abusivas n.º 93/13/CEE de 05 de Abril de 1993), 249/99 de 07/07 e 323/2001 de 17/12).
A qualificação da indemnização do
dano da privação do uso
, como dano patrimonial autónomo, é, actualmente, praticamente pacífica, apesar de ter suscitado controvérsia no passado, como espelham várias decisões proferidas nas instâncias sobre essa temática.
Assim, a ideia consolidada sobre esta matéria é a de que a privação do uso de um veículo constitui um dano patrimonial, emergente
[10]
, de avaliação abstracta, não sendo, por isso, exigível a alegação e prova de concretas despesas com a utilização de meios de transporte alternativos, as quais já seriam integráveis no designado dano de cálculo (correspondente à diminuição patrimonial causada pela lesão).
No caso concreto, o risco de furto, que efectivamente ocorreu, obrigava a Ré, nos termos do contrato de seguro facultativo, a proceder à
entrega do capital aí acordado
.
Na hipótese, que se verificou neste caso, de essa obrigação não ser cumprida pela seguradora, cumpre saber se o tomador ou/e beneficiário do seguro tem direito a exigir uma indemnização pela privação do uso do veículo, apesar de ser um risco não coberto pelo contrato de seguro.
Na ausência de prazo estipulado no contrato, a primeira questão com que imediatamente nos confrontamos, é a referente ao
prazo
de realização dessa prestação, ou seja, a partir de que data era exigível ao devedor, seguradora, a entrega do capital previsto no contrato de seguro por danos próprios.
Segundo a norma civil inserta no artigo 805.º, n.º 1, o devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir.
De harmonia com o regime especial decorrente das disposições conjugadas dos artigos 102.º e 104.º da Lei do Contrato de Seguro, a obrigação do segurador vence-se
trinta dias
após a
confirmação da ocorrência do sinistro e das suas causas, circunstâncias e consequências
, que, como sabemos, poderá variar em conformidade com a maior ou menor complexidade das averiguações necessárias para esse efeito.
A contagem deste prazo está, assim, dependente da confirmação das causas, circunstâncias e consequências do sinistro, o que pode protelar o início da mora e consequentemente, o cálculo dos juros indemnizatórios.
Com efeito, como se esclarece no Acórdão do STJ de 27/11/2018
[11]
“…o RJCS é de todo omisso quanto ao processo de regularização do sinistro e, no que respeita ao prazo para a realização da prestação pelo segurador (arts. 102º e 104º, cits.), sujeita-o a um termo inicial, suspensivo e incerto, condicionado à iniciativa do próprio obrigado.
A apontada omissão procedimental quanto à regularização do sinistro e o auto-cometimento ao segurador na adequação do prazo para a realização da prestação devida devem, no que à execução do contrato ora interessa, ser preenchidos com a aplicação de critérios mais exigentes, em termos de diligência e de boa-fé, na apreciação do caso.”
O art. 130º da Lei do Contrato de Seguro [LCS] estatui o seguinte:
“1. No seguro de coisas, o dano a atender para determinar a prestação devida pelo segurador é o do valor do interesse seguro ao tempo do sinistro.
2. No seguro de coisas, o segurador apenas responde pelos lucros cessantes resultantes do sinistro se assim for convencionado.
3. O disposto no número anterior aplica-se igualmente quanto ao valor de privação de uso do bem.”
Por conseguinte, o nº 2 estabelece que o segurador apenas responde pelos lucros cessantes resultantes do sinistro se assim for convencionado, e o nº 3 estende este regime à
privação do uso do bem
.
Recentemente surgiu uma tese na jurisprudência que
equipara
a cobertura referente à disponibilização do veículo de substituição à indemnização pelo dano de privação do uso.
[12]
Neste particular, consideramos que estamos perante coberturas distintas.
Em primeiro lugar, importa não esquecer que o contrato de seguro é um negócio de natureza
forma
l, pelo que “não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso”, como determina o art. 238.º, n.º 1 do C.Civil.
No contrato de seguro a convenção de entrega de uma viatura de substituição para evitar o prejuízo que decorre, em regra, do segurado ficar sem a poder utilizar por se encontrar na oficina para reparação, não corresponde exactamente à obrigação que emerge da contratualizada indemnização pecuniária desse dano; apenas terá como efeito, por redução do período de privação do uso, a redução do valor da indemnização, a esse título, caso seja devida.
Assim sendo, por esta via contratual, não é enquadrável a indemnização peticionada pelo Autor.
Todavia, a jurisprudência, desde há, pelo menos dez anos,
[13]
que tem, de forma reiterada, defendido a admissibilidade do pedido de indemnização pela privação do uso do veículo mesmo que não tenha sido convencionada essa cobertura, desde que as circunstâncias demonstradas no caso concreto nos permitam concluir que ocorreu uma
violação dos deveres acessórios de conduta
.
Neste sentido, o Acórdão do STJ, de 15/03/2023
[14]
concluiu, no respectivo sumário que III-“…em caso de atraso injustificado na realização da prestação convencionada – caso a seguradora não tenha atuado de forma diligente, equitativa, transparente e com consideração e respeito pelos interesses do segurado/credor na prestação, caso a seguradora haja violado os deveres acessórios de conduta e não haja tomado todas as providências necessárias (e razoavelmente exigíveis) para que a obrigação a seu cargo satisfaça o interesse do credor na sua prestação – tem a seguradora que indemnizar a não satisfação do interesse do credor, tendo, a tal título e com tal enfoque jurídico, que indemnizar o chamado dano de privação de uso.IV- Terá sempre que ser perante os contornos da concreta situação que tal conclusão (a propósito da violação ou não dos deveres acessórios de conduta) pode/deve ser estabelecida.”
Com efeito, o disposto no artigo 762.º, n.º 2 do C.Civil determina que, no
cumprimento
da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé, estendendo o
princípio da boa fé objectiva
à complexidade das obrigações
[15]
.
E este princípio da boa fé implica a consideração, na relação obrigacional, dos designados
deveres acessórios de conduta
, destinados
a permitir que a execução da prestação corresponda à plena satisfação do interesse do credor
e que essa execução não implique danos para qualquer
das partes
. (negrito nosso)
[16]
Os
deveres acessórios de conduta
distinguem-se evidentemente da prestação principal mas também dos
deveres secundários
uma vez que estes, ao contrário daqueles, estão funcionalmente ligados à prestação principal, abrangidos, por isso, pelo sinalagma e consequente acção de cumprimento.
[17]
Nesta sequência, o cumprimento dos deveres de averiguação, confirmação e resolução do sinistro, em
prazo razoável
, configuram
deveres acessórios de conduta
, não abrangidos pelo contrato de seguro, nem a título principal nem em moldes secundários.
É que averiguação interna das circunstâncias em que ocorreu o sinistro, das suas causas/consequências e posterior comunicação ao tomador do seguro sobre o reconhecimento do evento, apesar de consubstanciar um
procedimento
relacionado com o contrato de seguro, não constitui, numa análise rigorosa dos conceitos, uma prestação estritamente ligada à obrigação de entrega do capital correspondente ao dano, emergente do contrato.
Como lugar paralelo nesta área do seguro do ramo automóvel, o art. 36.º do Dec.-Lei 291/2007 de 21/08 (REGIME DO SISTEMA DE SEGURO OBRIGATÓRIO DE RESPONSABILIDADE CIVIL AUTOMÓVEL) impõe à seguradora um especial dever de prontidão e diligência, determinando que:
“1 - Sempre que lhe seja comunicada pelo tomador do seguro, pelo segurado ou pelo terceiro lesado a ocorrência de um sinistro automóvel coberto por um contrato de seguro, a empresa de seguros deve:
a) Proceder ao primeiro contacto com o tomador do seguro, com o segurado ou com o terceiro lesado no prazo de dois dias úteis, marcando as peritagens que devam ter lugar;
b) Concluir as peritagens no prazo dos oito dias úteis seguintes ao fim do prazo mencionado na alínea anterior;
e)Comunicar a assunção, ou a não assunção, da responsabilidade no prazo de 30 dias úteis, a contar do termo do prazo fixado na alínea a), informando desse facto o tomador do seguro ou o segurado e o terceiro lesado, por escrito ou por documento electrónico;
(…)”.
Feitas estas considerações prévias, recordemos o quadro factual demonstrado nos autos.
O Autor comunicou o sinistro à Ré no dia 16 de Dezembro de 2020, entregando as chaves do veículo e os documentos.
Ficou privado de utilizar o veículo, em consequência do furto, e continuou a pagar à mutuante as prestações a que se tinha vinculado para obter o crédito destinado à sua aquisição.
Volvidos cerca de três meses, sem que lhe tenha sido prestada qualquer informação, concedeu, em 9 de março de 2021, um prazo de 8 dias para a Ré resolver o assunto.
Por não ter obtido resposta, no mês seguinte, em 5 de abril de 2021, solicitou, uma vez mais, informação sobre o estado em que se encontrava o processo de regularização do sinistro em causa.
A Ré respondeu, no dia 07, informando que “…estamos a efetuar diligências de forma a podermos instruir o nosso processo. Voltaremos ao seu contato com a maior brevidade possível, assim que essas mesmas diligências estiverem concluídas. …”;
Com data de 9 junho de 2021, enviou novo e-mail para a Ré, solicitando-lhe, outra vez, informação sobre o estado em que se encontrava o processo interno de regularização do sinistro.
No dia 01 do mês de julho de 2021, comunicou ao Autor que declinava toda e qualquer responsabilidade pela regularização do sinistro, uma vez que “
O sinistro não terá ocorrido de forma aleatória, súbita e/ou imprevist
a”.
Em resumo, após ter decorrido cerca de seis meses, a Ré, sem concretizar os motivos da sua decisão, limitou-se a informar o Autor que não assumia a responsabilidade pelo cumprimento da obrigação de pagamento do capital seguro.
A Ré, no caso concreto, tinha ainda um especial dever de celeridade por ter conhecimento que este seguro estava associado a um contrato de crédito para aquisição do veículo furtado.
Desta forma, para além de não ter recebido o capital previsto para o risco de furto do veículo, que lhe possibilitaria a aquisição de um outro veículo, caso assim decidisse, ficou sem poder utilizar o veículo nas viagens de lazer e continuou adstrito ao pagamento das prestações do contrato de crédito, as quais, a partir de Março, deixou de cumprir, o que motivou a resolução do contrato pela mutuante.
O pai do Autor emprestou-lhe o dinheiro necessário para devolver à mutuante o valor em dívida, celebrando os contraentes uma transacção, que lhe conferiu todos os direitos que pertenciam a esta última.
Aqui chegados, podemos concluir que a Ré não actuou em conformidade com os ditames da boa-fé, ao não responder atempadamente ao Autor sobre se iria ou não cumprir com a obrigação de entrega do capital correspondente ao valor do veículo sinistrado e por ter declinado a responsabilidade sem justificar cabalmente a sua decisão.
Com efeito, o comportamento normal expectável da seguradora era o de comunicar ao Autor as
razões
que a levaram a declinar tal responsabilidade, o que nunca sucedeu, antes da propositura desta acção.
Os deveres de informação e de celeridade assumem especial importância no caso de perda total do veículo uma vez que a entrega do capital permitirá, ao tomador/beneficiário do seguro, comprar um outro veículo substitutivo.
Acresce que a disponibilização de uma viatura de substituição, por ser uma cobertura contemplada no contrato de seguro, até à tomada de decisão, teria evitado o prejuízo decorrente da impossibilidade de utilização da viatura durante seis meses.
A posição mais frágil do segurado em confronto com a seguradora impõe a execução diligente de procedimentos, com vista à resolução do sinistro, num prazo razoável.
Ou seja, na hipótese de o segurado/tomador do seguro não receber, em tempo devido, o capital previsto no contrato de seguro para a perda total do veículo, sem justificação plausível, assiste-lhe o direito de receber uma indemnização pela violação dos
deveres acessórios de conduta
que impendem sobre as seguradoras e que excedem os prejuízos da simples mora da obrigação pecuniária.
A violação dos deveres acessórios,
[18]
que se impunham neste caso por aplicação do princípio da boa-fé, constituiu a Ré na obrigação de indemnizar o Autor pelos danos sofridos.
Por conseguinte, não obstante a cobertura da privação de uso não se encontrar especialmente contemplada no contrato, assiste ao Autor, neste caso concreto, o direito de ser indemnizado por ter suportado esse prejuízo, em consequência do incumprimento dos deveres acessórios de informação e de adequada prontidão, como lhe competia.
Em suma, conclui-se que,
in casu,
a indemnização pelo dano patrimonial decorrente da privação do uso do veículo tem a sua fonte na
responsabilidade contratual,
por violação dos deveres acessórios de conduta.
A solução jurídica encontrada para resolver esta problemática pretende compaginar a
linha de liberdade e de racionalidade
que se espera de um
julgador justo e equitativo
, atento aos
usos do tráfico
.
[19]
Do Quantum indemnizatório
O Autor peticionou o pagamento da indemnização pela privação do veículo que liquidou, em 01/09/2022, na quantia de 42.300,00 euros, acrescida dos juros de mora, contabilizados à taxa legalmente prevista, desde a citação e até efetivo e integral pagamento, baseando-se no valor de 75,00 euros por dia, contabilizado desde 15 de janeiro de 2021 e até ao efetivo recebimento da quantia correspondente ao valor do veículo.
Alegou, para tanto, que “deixou de poder utilizar o seu veículo automóvel, como até aí fazia, para se deslocar para o seu local de trabalho e daí para casa, para passear com os amigos, família e namorada, para ir de férias, para fazer compras, nomeadamente nos supermercados.”
Acrescentou que o valor da indemnização deverá corresponder ao valor do aluguer de um veículo automóvel com características idênticas àquele que foi subtraído ao Autor.
Na sentença perfilhou-se o entendimento de que a indemnização em causa não é devida por não ter sido contemplada no contrato de seguro, não tendo sido equacionada a violação dos deveres acessórios que impendem sobre a seguradora.
Como explica Abrantes Geraldes
[20]
os prejuízos podem assumir alguma variação de acordo com as circunstâncias que puderem ser consideradas nomeadamente com o
grau de utilização que efectivamente seria dado ao veículo no período de imobilização caso não ocorresse o evento lesivo
. (sublinhado nosso)
Acrescentando que não é despicienda, por exemplo, a quantia necessária para proceder ao aluguer de um veículo de características semelhantes às do sinistrado (mesmo na ausência de prova de aluguer efectivo) como elemento a atender, com recurso à equidade (sem contar, nesta hipótese, com o preço comercial que envolve as despesas de exploração e o lucro da actividade de aluguer).
Neste sentido Paulo Mota Pinto
[21]
aponta, como um dos critérios de quantificação do dano de privação do uso, o custo de um aluguer durante o lapso de tempo em causa, subtraído do lucro do locador e dos custos de manutenção da frota.
Esse é um
critério
meramente
orientador do julgador, que, eventualmente, poderá ser atendido em
articulação
com outras circunstâncias relevantes que tenham sido alegadas e provadas no processo.
[22]
A seguradora, à luz do contrato, estava obrigada a evitar o dano de privação do veículo, por ter ficado acordada a disponibilização de um veículo de substituição, que naturalmente não se cinge à situação (normal) de reparação do veículo em consequência de acidente.
Como estamos no âmbito da
responsabilidade contratual
em que a indemnização emerge da violação dos deveres acessórios de conduta, ou seja, na demora
injustificada
na regularização do sinistro, e por ter sido prevista a disponibilização de um veículo de substituição, o período atendível de privação das utilidades do veículo, para esse efeito, contabiliza-se desde o dia seguinte à comunicação do furto até à data em que for entregue o capital correspondente ao valor do veículo que será liquidado em decisão ulterior, como foi decidido.
Sobre esta questão do período temporal a atender para efeitos de contabilização do dano de privação do uso, a posição da jurisprudência do STJ, foi resumida, no Acórdão de 08/09/2021
[23]
nos seguintes termos: “…a indemnização pela privação do uso engloba necessariamente todo o período compreendido entre o acidente e a data da entrega de veículo de substituição ou o pagamento da indemnização ou a reparação do veículo, só nesta última circunstância se verificando a indemnização do dano sofrido (veja-se, a título meramente exemplificativo, Acs. S.T.J. 17/1/2013, pº 2395/06.3TJVNF.P1.S1 – João Trindade, S.T.J. 8/5/2013, pº 3036/04.9TBVLG.P1.S1 – Maria dos Prazeres Beleza, e Ac. R.C. 16/3/2016, pº 288/14.0T8LRA.C1 – Carlos Moreira).”
No sumário do douto aresto consignou-se que “Não reposta a situação anterior ao evento lesivo, as consequências da privação do uso serão tanto maiores quanto maior for o período em que o lesado se mostre impedido de utilizar um veículo de características idênticas ao acidentado – reposta a situação anterior, cessa o dano da privação do uso.”
Do quadro factual resulta que apenas ficou provado que o Autor utilizava a viatura em passeios, aos fins-de-semana, recorrendo, para esse efeito, após o furto, a um veículo cedido ocasionalmente pelo seu pai.
Ora, na falta de elementos fácticos seguros que nos permitam fixar o valor diário do uso de um veículo similar, que o Autor não demonstrou, devemos recorrer à
equidade
.
Com efeito, se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, como acontece no caso
sub judice
relativamente ao dano de privação do uso, o tribunal deve socorrer-se da
equidade
,
dentro dos limites que tiver por provados
—n.º 3 do citado art. 566.º do C.Civil.
O valor diário que tem sido atribuído na maioria das decisões judiciais, considerado adequado para os casos normais de utilização diária do veículo pelo agregado familiar, varia entre 10 a 30 euros por dia.
[24]
Nesta conformidade, não podemos aderir ao entendimento perfilhado pelo Recorrente face às decisões proferidas nos tribunais, na maioria das quais o veículo é utilizado diariamente pelo segurado na vida profissional e pessoal.
Em suma, tendo em consideração que o Autor utilizava o veículo para se deslocar em passeios,
aos fins-de semana
, e norteados por critérios baseados na equidade e em decisões similares, o cálculo do dano a ressarcir terá de basear-se no valor de 10€/dia, contabilizando-se apenas os fins-de-semana em que não pôde conduzir o veículo, até ao cumprimento da obrigação de entrega do capital correspondente ao valor do veículo.
Procede, embora parcialmente, o recurso do Autor.
*
V-DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o recurso da Ré e parcialmente procedente o recurso do Autor, e em consequência, condenam a Ré a pagar ao Autor uma indemnização a título de privação do uso do veículo, a liquidar em decisão ulterior, nos termos acima mencionados, acrescida dos juros moratórios contados desde a citação até integral pagamento.
Custas por ambas as partes, na proporção dos respectivos vencimentos.
Notifique.
Porto, 2025/03/11.
Anabela Miranda
Rui Moreira
Lina Castro Baptista
_________________________________________-
[1]
Neste sentido, entre outros, o Ac.RelLisboa, de 22/11/2018, Rel. Pedro Martins, disponível em www.dgsi.pt.
[2]
Parecem seguir essa orientação os Acs. desta Relação de 23/02/2023, 21/03/2024 (Rel.Aristides Almeida) e de 21/10/2024 (Rel. Ana Olívia Loureiro) disponíveis em www.dgsi.pt.
[3]
Disponível em www.dgsi.pt.
[4]
Rel. Ana Cristina Duarte, disponível em www.dgsi.pt.
[5]
Rel. João Cura Mariano, disponível em www.dgsi.pt.
[6]
Cfr. Lima, Pires de, Varela, Antunes,
Código Civil Anotado
, I, 312.
[7]
Prova por Presunção no Direito Civil
, 2.º edição, pág. 160.
[8]
Contrato de Seguro
, Coimbra Editora, pág. 94.
[9]
Ob. cit., pág. 127.
[10]
Neste sentido v. Rocha, Francisco Rodrigues,
Do Princípio Indemnizatório no Seguro de Danos
, Almedina, pág. 207, citando Menezes Cordeiro,
Direito dos Seguros
, pág. 751 e Ac. Rel Porto de 15.05.2012 disponível em www.dgsi.pt.
[11]
Rel. Cabral Tavares, disponível em www.dgsi.pt.
[12]
Acs. Rel.Lisboa de 04/11/2021 (Rel. Ana de Azeredo Coelho) e da Rel. Porto de 11/12/2024 (Rel. João Venade) disponíveis em www.dgsi.pt.
[13]
Cfr. entre outros, STJ-Acs de 09/07/2015,14/12/2016 (ambos rel. por Fernanda Isabel de Sousa Pereira), 23/11/2017 (Távora Victor), 27/11/2018 (Cabral Tavares), e 15/03/2023 (António Barateiro Martins); RelGuim.-Acs. de 09/03/2017 (por mim relatado) e de 05/12/2019 (Rosália Cunha), Rel. Porto-Acs. de 23/11/2020 (Carlos Gil), 13/09/2022 (rel. pelo ora 1.º adjunto, Rui Moreira) e 05/03/2024 (Maria da Luz Seabra); Rel. Coimbra-Ac. 25/01/2022 (Arlindo Oliveira e de 05/03/2024 (Luís Filipe Cravo) disponíveis em www.dgsi.pt.
[14]
Relator António Barateiro Martins, disponível em www.dgsi.pt.
[15]
Cfr. Menezes Cordeiro,
Tratado, I, 1
, pág. 407.
[16]
Cfr. Leitão, Luís Manuel Teles de Menezes,
Direito das Obrigações
, 2015, pág. 108.
[17]
Cfr. Leitão, Luis Manuel Teles de Menezes, ob. cit., pág. 108.
[18]
No Acórdão da Rel. Porto, de 14/03/2016 disponível em
www.dgsi.pt
a factualidade não é coincidente porquanto a seguradora manifestou ao lesado a sua discordância relativamente à assunção de responsabilidade.
[19]
Cfr. Alarcão, Rui,
Direito das Obrigações
, Lições ao 3.º ano jurídico, 1983, Coimbra, pág. 114.
[20]
Temas da Responsabilidade Civil
, 3.ª edição, Almedina, pág. 86.
[21]
Cfr.
Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo
, vol. I, 2008, pág. 592, nota 1699.
[22]
Nesse sentido, v. Acs.Rel Porto de 07/10/2024 (Rel Carlos Gil), de 25/11/2024 (Rel. Eugénia Cunha) disponíveis em www.dgsi.pt.
[23]
Rel. Vieira e Cunha, disponível em www.dgsi.pt.
[24]
Cfr. entre outros Acs.TRP de 10/01/2022, 14/12/2022, 07/11/2023, 22/04/2024, 25/11/2024; TRC de 03/06/2012 e de 02/06/2018, TRL de 30/03/2023 disponíveis em www.dgsi.pt.
|
TRP
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https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/7135f5501bd70fd380258c580037765d?OpenDocument
|
1,748,908,800,000
|
APELAÇÃO IMPROCEDENTE
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2691/23.5T8VNF.G1
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2691/23.5T8VNF.G1
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MARIA JOÃO MATOS
|
I.
Foi intenção do legislador privilegiar uma
aplicação flexível
do
critério de determinação da
«manifesta superioridade»
do passivo sobre o activo do devedor (para fundamentar um pedido de insolvência), em função das
particularidades do caso concreto
(incluindo as cada vez mais rápidas e imprevisíveis alterações da conjuntura macro-económica), em vez do seu
automático e instantâneo decalque
sobre a
singela realidade
contabilística do devedor
(para o que bastaria, no n.º 2 do art.º 3.º do CIRE, ter exigido uma
«matemática ou contabilística»
superioridade do passivo face ao activo, sem adução de quaisquer outros critérios correctores, nomeadamente os que depois consagrou no seu n.º 3).
II.
Para fundamentar um pedido de insolvência baseado na manifesta insuficiência do activo de sociedade devedora em relação ao seu passivo, bastará ao requerente evidenciá-lo por recurso aos
elementos da matemática escrituração
daquela.
Contudo,
poderá depois a devedora demonstrar a
superioridade do respectivo activo resultante da sua revalorização
, nomeadamente numa perspectiva de
continuação da empresa
e num
horizonte temporal mais ou menos longo
; e se for positivo o juízo de prognose sobre a sua capacidade de continuar a operar e a satisfazer o seu passivo dentro do período de tempo considerado, o seu estado de sobreendividamento será superado pelo valor da dita continuidade.
IIII.
Tendo presente a especial natureza do PER (com claro predomínio do que se pretende que seja a vontade dos credores e os limites da intervenção do juiz), dir-se-á que só uma situação de
evidente e comprovada insolvência
poderá obstar à homologação do plano de revitalização antes aprovado pela maioria dos credores reconhecidos (não bastando para o efeito a sua suspeita, independentemente do grau - mais ou menos reforçado - de que se revista).
IV.
Cabendo ao Tribunal, na decisão de homologação de plano de revitalização, proferir um
juízo de mérito
sobre se o mesmo
«apresenta perspectivas razoáveis de evitar a insolvência da empresa ou de garantir a viabilidade da mesma»
, este juízo não é de certeza absoluta mas de
mera razoabilidade
, no âmbito da decorrência lógica dos dados de facto que lhe são apresentados (nomeadamente, no próprio plano de revitalização, no parecer fundamentado que sobre ele tenha sido dado pelo administrador judicial provisório e nas posições que os credores sobre ele tenham assumido).
V.
Consubstancia uma
violação absolutamente negligenciável
da norma procedimental que obriga à
apresentação das contas anuais relativas aos três últimos exercícios
de sociedade devedora que se apresente a processo especial de revitalização, quando essa omissão nunca foi invocado nos autos por qualquer um dos seus intervenientes (nomeadamente, credores), foram juntos outros e múltiplos documentos contabilísticos (idóneos a demonstrarem a respectiva situação económico-financeira), e as ditas contas foram efectivamente prestadas, depositadas e tornadas públicas.
|
[
"HOMOLOGAÇÃO DE PER",
"INSOLVÊNCIA ACTUAL",
"INSUSCEPTIBILIDADE DE RECUPERAÇÃO",
"NÃO JUNÇÃO DE CONTAS"
] |
Acordam,
em conferência
(após corridos os vistos legais) os Juízes da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, sendo
Relatora -
Maria João Marques Pinto de Matos;
1.º Adjunto -
José Carlos Pereira Duarte;
2.ª Adjunta -
Rosália Cunha.
*
ACÓRDÃO
I - RELATÓRIO
1.1.
Decisão impugnada
1.1.1. EMP01..., Limitada
, com sede na Travessa ..., em ... (aqui Recorrida), propôs em 24 de Março de 2023 o presente processo especial de revitalização, pedindo que fosse admitido e aberto o procedimento respectivo.
Alegou para o efeito, em síntese, que, dedicando-se ao comércio e reparação de electrodomésticos e artigos para o lar, viu negativamente impactada a sua actividade com a crise das dívidas soberanas (que provocou uma redução drástica no consumo, diminuindo para quase metade as suas receitas, e uma subida abrupta dos juros e demais encargos financeiros, aumentando os seus custos, deixando de conseguir crédito junto da banca e dos seus fornecedores); e, por isso, apresentou em 2014 um primeiro processo especial de revitalização (que, com o nº 4163/14...., correu termos pelo Juízo Local Cível da Comarca de Braga, Juiz ...), onde se previa o reembolso em prestações de 100% dos créditos de natureza garantida e comum (em 150 prestações mensais), e o alargamento da vigência de dois contratos de leasing para 25 anos.
Mais alegou que, tendo o dito plano de revitalização sido homologado, encontrando-se em vigor e a ser cumprido, permitiu já o pagamento de um total de créditos de € 1.500.000,00; e que, esgotadas as primeiras 75 prestações mensais, com o pagamento de 30% dos créditos reconhecidos, deveria agora começar a satisfazer as remanescentes 75 prestações mensais, com o pagamento dos restantes 75% dos créditos.
Alegou ainda necessitar, porém, de um novo alargamento do prazo de pagamento dos seus créditos, para evitar entrar em incumprimento, face ao impacto que as conjunturais e excepcionais crise pandémica de Covid 19 e guerra na Ucrânia tiveram na sua actividade, estagnando a sua facturação e aumentando os seus custos financeiros (com a subida dos juros bancários) e operacionais (com a subida do preço da energia e das matérias primas); ser susceptível a sua recuperação financeira (face, nomeadamente, à sua elevada capacidade técnica e comercial, geradora das receitas necessárias a satisfazer as suas obrigações operacionais, como os últimos anos demonstraram), não tendo ainda aumentado o seu passivo (pagando pontualmente a trabalhadores, ao Estado e a fornecedores); e contando já com a anuência de credores seus a um futuro plano de revitalização, em elaboração.
Juntou diversa documentação, nomeadamente: «
DECLARAÇÃO
» de contabilista certificado, afirmando que a Requerente
«não se encontra em situação de insolvência à luz dos critérios previstos no artigo 3.º do CIRE»
; modelo 22 relativo à declaração de rendimentos fiscais em sede de IRC relativo a 2019, a 2020 e a 2021, bem como comprovativo de entrega da mesma relativo a 2022; e
«CERTIDÃO PERMANENTE»
respectiva (atestando nomeadamente a prestação de contas nos anos de 2019, 2020 e 2021).
1.1.2.
Foi proferido
despacho
, nomeando administradora judicial provisória e ordenando a citação dos credores identificados e dos demais interessados, para que reclamassem eventuais créditos.
1.1.3.
A Administradora Judicial Provisória apresentou a
lista provisória de credores
, constando nomeadamente da mesma um total de créditos provisórios de € 5.335.548,75, correspondendo,
grosso modo
, os créditos: da Autoridade Tributária e da Segurança Social, a 7% do total; da banca e demais instituições financeiras, a 6% do total; de locadoras financeiras (tendo por objecto três imóveis), a 56% do total; e dos credores comuns (nomeadamente fornecedores e subordinados) a 32% do total.
1.1.4.
Em 02 de Outubro de 2023 foi junta a versão definitiva do
plano de recuperação
(que aqui se dá por integralmente reproduzido), acompanhado de diversos documentos (nomeadamente contabilísticos, relativos às contas de 2021 e 2022), incluindo
«BALANÇOS», «DEMONSTRAÇÃO DE RESULTADOS», «SALDOS DO BALANÇO FUNCIONAL», «BALANÇOS PREVISIONAIS» «DEMONSTRAÇÃO DOS RESULTADOS PREVISIONAIS», «ANÁLISE DE VIABILIDADE FINANCEIRA»
e
«QUADRO DE REESTRUTURAÇÃO DAS DÍVIDAS»
.
1.1.5.
Apresentadas diversas impugnações à mesma, foram as mesmas decididas por
despacho
de 03 de Outubro de 2023.
1.1.6.
A Administradora Judicial Provisória juntou
nova lista provisória de créditos
, reflectindo o resultado daquela decisão, constando da mesma um total de créditos reconhecidos de € 5.512.348,71; e dele fazendo parte o crédito de EMP02... STC, S.A., de € 30.495,72, sem garantias, correspondendo a 0,55% daquele total.
1.1.7.
O plano de recuperação foi objecto de votação verificada em 19 de Outubro de 2023, tendo um
quórum deliberativo
de 94,59% do total dos créditos reconhecidos (quando o mínimo exigível para o efeito seria 33,33%); e
foi aprovado
por 97,68% dos votos emitidos pelos credores previstos na al. b) do n.º 5 do art.º 17.º-F do CIRE (quando o mínimo exigível para o efeito seria 66,66%) e por € 92,40% dos votos emitidos pelos credores previstos na al. c) do n.º 5 do art.º 17.-F do CIRE (quando o mínimo exigível para o efeito seria 50,00%), tendo, porém, votado contra a credora EMP02..., STC, S.A..
1.1.8.
A credora
EMP02..., STC, S.A.
veio requerer, em 20 de Outubro de 2023, que a Administradora Judicial Provisória juntasse aos autos parecer fundamentado sobre se o plano apresentaria perspectivas razoáveis de evitar a insolvência da empesa ou de garantir a viabilidade da mesma.
1.1.9.
Em 24 de Outubro de 2023 foi proferido
despacho
deferindo a pretensão de EMP02..., STC, S.A., lendo-se nomeadamente no mesmo:
«(…)
Ora, decorre do disposto do atual artigo 17º-F, n.º 6, do CIRE que “A votação efetua-se por escrito, aplicando-se-lhe o disposto no artigo 211.º, com as necessárias adaptações, e sendo os votos remetidos ao administrador judicial provisório, que os abre em conjunto com a empresa e elabora um documento com o resultado da votação, que remete de imediato ao tribunal,
acompanhado do seu parecer fundamentado sobre se o plano apresenta perspetivas razoáveis de evitar a insolvência da empresa ou de garantir a viabilidade da mesma
” (sublinhado nosso).
Compulsados os autos constata-se que efetivamente não foi junto pela Sra. Administradora Judicial Provisória o referido parecer.
Assim, antes de mais, notifique-se a Sra. Administradora Judicial Provisória para, no prazo de 5 dias, proceder à junção do parecer fundamentado sobre se o plano apresenta perspetivas razoáveis de evitar a insolvência da empresa ou de garantir a viabilidade da mesma.
Após, abra-se conclusão para proferir decisão quanto à homologação ou não do plano de recuperação.
(…)»
1.1.10.
Em 30 de Outubro de 2023 a
Administradora Judicial Provisória
juntou o seu
parecer
sobre se o plano de revitalização apresentaria perspectivas razoáveis de evitar a insolvência da empesa ou de garantir a sua viabilidade (que aqui se dá por integralmente reproduzido), lendo-se nomeadamente no mesmo:
«(…)
§
Percentagem de Credores Votantes – 94,59 %;
§
Percentagem de Votos a favor sobre os Votantes – 97,68 %;
§
Percentagem de Votos a favor sobre os Créditos Relacionados – 92,40 %.
Ora, a devedora juntou aos autos o Plano de Revitalização, que apresenta um plano de pagamentos que pressupõe ajustes ao plano de pagamentos em execução do seu anterior PER, como se disse, ajustando o mesmo às atuais condições de mercado e ao impacto dessas condições na situação económica e financeira da devedora.
Nesse plano, a devedora expressou as suas expetativas de receitas, provenientes da exploração dos seus estabelecimentos de venda e reparação de eletrodomésticos e artigos para o lar, o que consiste nas suas principais fontes de receita e de valorização dos seus ativos na perspetiva da sua recuperação, visto que, de outro modo, o seu valor poderia ser diminuto.
E alcançou que, em face dos seus custos correntes, consegue libertar disponibilidades que, conjugadas com o ajustamento do prazo de pagamento dos créditos abrangidos pelo plano, devem permitir dispor de cash-flow para cumprir com o novo plano de pagamentos apresentado aos credores, o que se encontra expresso nas demonstrações de resultados previsionais que fazem parte do plano de Plano de Revitalização, que de acordo com a devedora tem como pressupostos a evolução histórica e as suas expetativas acerca das suas receitas e dos seus custos, ajustadas às atuais condições de mercado.
Em face da especificidade da atividade da devedora, afigura-se que a perspetiva da sua recuperação, com o consequente cumprimento do plano aprovado, seja a via mais vantajosa para a generalidade dos credores, uma vez que, numa situação de insolvência, parte expressiva dos ativos da devedora poderiam apresentar um valor diminuto, mas que, numa perspetiva de prosseguimento da sua atividade, apresentam uma valorização expressiva, devido à manutenção dos seus estabelecimentos abertos ao público.
Ora, o processo especial de revitalização “destina-se a permitir à empresa que, comprovadamente, se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja suscetível de recuperação, estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes, acordo conducente à sua revitalização”.
Como se fez constar supra, concretamente, no resultado da votação dos credores, a representatividade da votação ao plano de recuperação da devedora foi expressiva, sendo também expressiva a representatividade dos votos a favor, o que se entende como um índice atendível de confiança demonstrado pelos credores na viabilidade e recuperação da devedora, e da o capacidade negocial da devedora junto dos seus credores, e que os seus credores consideram que a devedora é suscetível de recuperação e/ou que será esse o cenário mais benéfico para a generalidade dos seus credores.
Como tal, em face do exposto acerca da confiança dos credores da devedora, que expressaram a sua vontade na recuperação da devedora, bem como dos pressupostos do plano de revitalização da devedora e das perspetivas de revitalização expressas no mesmo, a AJP considera plausível que a devedora apresenta as condições necessárias para garantir a viabilidade da empresa.
III -
CONCLUSÃO
Assim, e face ao exposto, será de se considerar que a devedora
EMP01..., Lda.
apresenta as condições necessárias para garantir a viabilidade da empresa.
(…)»
1.1.11.
Em 13 de Novembro de 2023 foi proferida
sentença
, homologando o plano de revitalização, lendo-se nomeadamente na mesma:
«(…)
Quanto ao crédito reclamado pela EMP02... STC esta alega que existem vícios que não foram corrigidos.
(…)
Ao contrário do que alega o credor, o plano prevê e esclarece que o indexante que compõe a taxa de juro nunca poderá ser inferior a 0%. Não há perdão de juros e a taxa é a legalmente contratada. Pensamos que inexiste qualquer impossibilidade na implementação do plano.
Em suma, inexistindo vícios de procedimento ou de conteúdo passíveis de inquinar o plano de recuperação,
impõe-se a sua homologação
.
*
Assim sendo, e em conformidade com o disposto no art. 17.º-F, n.ºs 5 e 7, do CIRE,
homologo por sentença o plano de recuperação da sociedade EMP01..., Lda
.
*
A presente decisão vincula todos os credores, mesmo que não hajam participado nas negociações, conforme determinado pelo art. 17.º-F, n.º 11 do CIRE.
Custas
pela Requerente, conforme art. 17.º-F, n.º 12 do CIRE.
Fixo o valor da ação
para efeitos de custas em € 30.000,01- arts. 17.º-F, n.º 12, e 301.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Registe, notifique e publicite nos termos dos artigos 37.º e 38.º, ex vi n.º 10, do art. 17º-F, todos do CIRE.
(…)»
*
1.2. Recurso
1.2.1. Fundamentos
Inconformada com a sentença que homologou a plano de revitalização, a credora
EMP02... STC, S.A.
interpôs recurso de apelação, pedindo
que se revogasse a sentença recorrida, recusando-se a homologação do plano de revitalização.
Concluiu as suas alegações
da seguinte forma (com excepção da concreta grafia utilizada e de manifestos e involuntários erros e/ou gralhas de redacção):
A.
Vem o presente recurso, da sentença proferida nos autos à margem referenciados, no passado dia 13.11.2023, que homologou o plano de revitalização aprovado nos presentes autos, por entender o Tribunal a quo:
• Que não existiam quaisquer fundamentos para a sua não homologação;
• Que não existe a violação, não negligenciável, das regras procedimentais; e que tal foi demonstrado pela votação de cerca de 97 % dos credores.
• Que ao contrário do alegado pela ora Recorrente, não obstante o passivo ser superior ao activo, os credores ficaram convencidos da viabilidade do plano de revitalização;
• Que não assistia qualquer razão à ora Recorrente ao requerer a não homologação do plano, com o que não pode a Recorrente concordar.
B.
A ora Recorrente requereu, em 13.10.2023 (Requerimento com Ref.ª ...16), a não homologação do plano de revitalização com fundamento na violação não negligenciável das regras procedimentais, tendo em conta que a Devedora EMP01... Lda. se encontra em situação de insolvência atual nos termos do artigo 3.º, n.º 2 do CIRE, por o seu o passivo ser manifestamente superior ao ativo.
C.
A Devedora apresentou-se ao presente processo especial de revitalização em Abril de 2023 alegando, ademais, a sua situação económica difícil e as dificuldades em implementar a segunda fase do plano de recuperação anteriormente aprovado e homologado, fruto do forte aumento dos custos da sua operação não compensados pelo aumento da sua faturação que diz estagnada.
D.
Em violação da lei, a Devedora optou por omitir a junção com o requerimento inicial das suas contas referentes aos últimos três exercícios, junção que lhe era imposta nos termos do no artigo 17.ºC, n.º 3 do CIRE e no artigo 24.º, n.º 1 do CIRE, presumivelmente por saber que a sua divulgação tornaria visível aos olhos do Tribunal e dos Credores que recorre a um PER num contexto em que se encontra atualmente insolvente, o que configura preterição de formalidade essencial.
E.
Os Credores, por sua vez, apenas tiveram acesso à informação da actual situação de insolvência da Devedora num momento processual posterior, ou seja, já com o presente Processo Especial de Revitalização em curso e aquando do depósito e votação do plano de recuperação apresentado pela Devedora.
F.
O plano de recuperação depositado e aprovado descreve a situação financeira actual da Devedora e revela que esta se encontra numa situação de insolvência actual e não meramente iminente, uma vez que o seu passivo supera significativamente o seu activo, inexistindo nos autos qualquer outro documento que afaste a conclusão de que a EMP01... se encontra em situação de insolvência actual, situação que resulta confessada pela Devedora nas contas que apresenta no plano de recuperação objeto da decisão de homologação aqui em crise.
G.
A constatação da situação de insolvência actual da Devedora e a ausência da junção da documentação legal, por configurar violação não negligenciável de regras procedimentais, é motivo de não homologação oficiosa do plano pelo Tribunal (artigo 215.º do CIRE aplicável ex vi artigo n.º 17.ºF, n.º 7), mesmo que nenhum Credor o houvesse requerido, como requereu a ora Recorrente.
H.
Também no parecer solicitado à Ilustre Sr.ª Administradora Judicial Provisória sobre se o plano apresenta perspectivas razoáveis de evitar a insolvência da empresa ou de garantir a viabilidade desta, e que se exigia fundamentado, optou a mesma por se limitar a enfatizar a sua aprovação pela maioria dos credores, bem como a alegada situação mais fragilizada que resultaria para os credores num cenário de insolvência, quando o que se pretendia era precisamente que a Ilustre Sr.ª AJP analisasse, à luz da situação actual da Devedora demonstrada pelos elementos que a própria juntou aos autos, se a aprovação do plano e o seu cumprimento pela Devedora se mostra capaz de evitar a situação de insolvência da Devedora, escudando-se de se pronunciar sobre a situação de insolvência em que se encontra a Devedora numa tentativa de evitar realçar o inevitável: a situação de insolvência atual em que se encontra a Devedora.
I.
Nos termos do artigo 17.º-A do CIRE “1- O processo especial de revitalização destina-se a permitir
à empresa que, comprovadamente, se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja suscetível de recuperação
, estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes acordo conducente à sua revitalização.2 - O processo referido no número anterior pode ser utilizado por qualquer empresa que, mediante declaração escrita e assinada, ateste que reúne as condições necessárias para a sua recuperação e apresente declaração subscrita, há não mais de 30 dias, por contabilista certificado ou por revisor oficial de contas, sempre que a revisão de contas seja legalmente exigida, atestando que não se encontra em situação de insolvência atual, à luz dos critérios previstos no artigo 3.º.” (sublinhado nosso).
J.
O requerimento de não homologação do plano de revitalização é um meio processual de que o devedor, os seus sócios ou associados, no caso de sociedade ou outra pessoa coletiva ou os credores podem lançar mão com vista a evitar a homologação de planos de revitalização: (i) que violem normas imperativas, quer procedimentais, quer substantivas; (ii) que atribuam a um determinado credor, um valor superior ao do valor nominal do seu crédito; (iii) que satisfaçam os direitos dos credores de forma mais débil daquela que resultaria mediante a declaração de insolvência.
K.
E, nos presentes autos, verifica-se uma clara violação não negligenciável das regras procedimentais que obsta à homologação do plano de recuperação aprovado nos presentes autos.
L.
Não tendo o Tribunal apreciado liminarmente a situação financeira da Devedora aquando da prolação do despacho inicial de nomeação de Administrador Judicial Provisório, cabe ao Tribunal não homologar posteriormente o plano, em face da verificação da violação não negligenciável de regras procedimentais, com a aplicação e necessárias adaptações as regras previstas no título ix, em especial o disposto nos artigos 194.º a 197.º, no n.º 1 do artigo 198.º e nos artigos 200.º a 202.º, 215.º e 216.º, e aferindo, desde logo se o plano de recuperação apresenta perspetivas razoáveis de evitar a insolvência da empresa ou de garantir a viabilidade da mesma, tudo conforme n.º 7 do artigo 17.º-F do CIRE.
M.
Devendo o Juiz recusar a homologação do plano se os elementos factuais constantes do processo revelarem inequivocamente que o Devedor se encontra numa situação de insolvência actual, como sucede.
N.
A Devedora não juntou, designadamente, as contas anuais relativas aos três últimos exercícios, como estava, por lei, obrigada, o que configura a preterição de formalidade imposta pela lei mas, ainda assim, analisados os elementos contabilísticos que incluiu a Devedora na versão do plano de recuperação que veio a ser depositado é possível verificar que a mesma se encontra numa situação de insolvência actual, do ponto de vista do balanço, e à luz do artigo 3.º, n.º 2 do CIRE, com efeito:
• resulta das páginas 33, 34, 39, 41 e 43 do plano de recuperação, que a EMP01... tem vindo a acumular resultados transitados negativos nos últimos anos, apresentando, pelo menos, desde 2021 um passivo manifestamente superior ao seu ativo em cerca de um milhão de euros. Nessa mesma linha, constata-se ainda através da análise dos elementos contabilísticos identificados apostos no plano de recuperação, que, no momento da sua apresentação ao PER, o passivo da EMP01... cifrava-se em 5.358.016,70€, montante que é significativamente superior ao activo de 4.364.589,76€, em também quase um milhão de euros.
• O que, por referência ao momento da apresentação ao presente processo especial de revitalização, revela uma autonomia financeira negativa da EMP01... de 22%, um endividamento na ordem dos 123% e uma solvabilidade negativa a rondar os 19%.
O.
Resulta, assim, demonstrado que os pré-requisitos legais para recurso ao PER não foram cumpridos na altura da apresentação da EMP01..., LDA, porquanto, conforme resulta da leitura do artigo 17.º-A, n.º 1 do CIRE, o PER não se aplica a empresas atualmente insolventes como ocorre com a EMP01..., Lda., mas apenas a empresas pré-insolventes ou em situação de insolvência iminente.
P.
Mais resultando inequívoco também, no cenário actual, que a implementação das medidas com incidência no passivo previstas no plano pela Devedora não terá a virtualidade de permitir a almejada recuperação da empresa, uma vez que não lhe permitirá, desde logo, transitar para uma situação de balanço positivo. Com efeito, com base nas demonstrações financeiras previsionais que constam da pág. 43 do plano de recuperação, a situação líquida de balanço da EMP01... permanecerá negativa pelo menos até 2027, sendo este um elemento revelador da grave situação atual em que se encontra a Devedora.
Q.
A situação de insolvência atual da EMP01... é ainda confirmada pelo próprio facto de a EMP01... precisar de, pelo menos, 4 anos até que o seu ativo passe a ser superior ao ativo, ficando também por esta via confirmada a situação de insolvência em que se encontra atualmente a Devedora nos termos e para os efeitos do artigo 3.º, n.º 2 do CIRE.
R.
De frisar, no que tange à violação não negligenciável de regras procedimentais, e mercê do disposto no n.º10 do art.º17.º-D do CIRE, o disposto na Resolução do Conselho de Ministros n.º43/2011, de 25/10, cujo décimo princípio plasma, com relevo, que “as propostas de recuperação do devedor devem basear-se num plano de negócios viável e credível, que evidencie a capacidade do devedor de gerar fluxos de caixa necessários ao plano de reestruturação, que demonstre que o mesmo não é apenas um expediente para atrasar o processo judicial de insolvência, e que contenha informação respeitante aos passos a percorrer pelo devedor de modo a ultrapassar os seus problemas financeiros”, bem como o sétimo princípio que realça que a não apresentação, por parte do devedor, das demonstrações financeiras iniciais com o pedido inicial constitui uma violação do seu dever de transparência.
S.
Ora, o Tribunal
a quo
não obstante reconhecer, na decisão de homologação em riste, que o passivo da devedora é superior ao activo, explanando apenas que
“no caso vertente, se é certo que o passivo da devedora é superior ao activo, esta demonstrou e convenceu os credores que tem capacidade para gerar riqueza, invertendo esse cenário, não possuindo o Tribunal informações suficientes para afirmar que a devedora está numa situação em que será ou não capaz de cumprir o plano aprovado. Ou seja, o que releva é a posição assumida pelos credores. E essa posição foi clara. Por fim, a documentação junta demonstrou ser suficiente para que a quase totalidade dos credores manifestasse o seu sentido de voto de forma clara“
, limitou-se a estribar a sua decisão no facto de os credores terem votado favoravelmente o plano de recuperação, limitando-se a aderir à posição do proponente do plano, ao invés de - como se lhe impunha - proceder a um controlo da legalidade do plano em face dos elementos que reconhecidamente pela Devedora atestam a sua situação de insolvência de balanço.
T.
E existindo nos autos elementos que revelam a confissão da Devedora de que esta se encontra em situação de insolvência actual, como sucede com os elementos contabilísticos e financeiros juntos pela própria Devedora com o plano de recuperação, não podia (não devia) o Tribunal a quo ter homologado o plano, ainda que aprovado pelos Credores, porquanto o facto de os credores terem aprovado o plano de recuperação não pode significar a ausência do controlo jurisdicional que a lei impõe ao Tribunal no âmbito da decisão a proferir quanto à homologação do plano, designadamente nos termos do artigo 215.º do CIRE e isto independentemente de a não homologação ter sido, ou não, requerida por um Credor com tal fundamento.
U.
No artigo 3.º, n.º 2 do CIRE o legislador decidiu consagrar, portanto, uma noção adicional e autónoma de insolvência face ao disposto no artigo 3.º, n.º 1 do CIRE, de aplicação exclusiva às pessoas jurídicas e aos patrimónios autónomos, e que fica preenchida com a manifesta superioridade do passivo em relação ao ativo, em razão dos riscos para os credores de o devedor continuar a exercer normalmente a sua atividade num contexto em que o seu passivo se vai avolumando, excedendo substancialmente o ativo.
V.
A situação económica e financeira da Devedora resultante dos elementos que ela própria fez juntar ao plano de revitalização revelam uma manifesta superioridade do passivo face ao ativo, revelando ainda a ausência de qualquer expectativa de melhoria da sua situação nos próximos anos, razão pela qual não bastava ao Tribunal
a quo
escudar-se na aprovação pelos credores de molde a aprovar um plano que não apresenta viabilidade para evitar uma situação da Devedora que é já de insolvência actual, abstendo-se do seu do seu papel de garante da legalidade, violando, dessa forma, o disposto nos artigos 215.º do CIRE, 17.º-A, nº 1 e 17.º-F, n.º 7, alínea f).
W.
E, ainda que por mera hipótese académica assim não se entenda, sempre se dirá que, em caso de dúvida sobre a situação actual da devedora, o Tribunal deveria ter solicitado um relatório pericial em conformidade com o disposto no artigo 17.º-F, n.º 8 do CIRE, o que também não sucedeu, pelo que não pode a decisão de homologação, proferida no passado dia 13.11.2023, persistir no ordenamento.
*
1.2.2. Contra-alegações
A Requerente (EMP01..., Limitada)
contra-alegou
, pedindo que se negasse provimento ao recurso, defendendo, nomeadamente, não se encontrar numa situação de insolvência actual e nunca a Recorrente (EMP02... STC, S.A.) lhe ter pedido as contas relativas aos últimos três anos, a cujo teor teve acesso.
*
1.2.3. Processamento ulterior do recurso
Tendo sido proferido despacho pelo Tribunal
a quo
a admitir o recurso do Insolvente (AA) - como
«de apelação, sobe imediatamente, nestes mesmos autos e com efeito meramente devolutivo»
-, foi o mesmo recebido por este Tribunal
ad quem
, sem qualquer alteração (nomeadamente, quanto ao momento e forma de subida e ao efeito).
*
II - QUESTÕES QUE IMPORTA DECIDIR
2.1. Objecto do recurso - EM GERAL
O objecto do recurso é delimitado pelas
conclusões da alegação do recorrente
(art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art.º 608.º, n.º 2,
in fine
, aplicável
ex vi
do art.º 663.º, n.º 2,
in fine
, ambos do CPC)
[1]
.
Não pode igualmente este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida)
[2]
, uma vez que os recursos são meros
meios de impugnação de prévias decisões judiciais
(destinando-se, por natureza, à sua reapreciação/reponderação e consequente alteração e/ou revogação, e não a um novo reexame da causa).
*
2.2. QUESTÕES CONCRETAS a apreciar
Mercê do exposto, e do recurso de apelação interpostos pela credora EMP02... STC, S.A.,
uma única questão
foi submetida à apreciação deste Tribunal
ad quem
:
·
Questão única
-
Fez o Tribunal
a quo
uma
errada
interpretação e aplicação da lei
, ao
homologar a aprovação do plano de revitalização
quando não estavam reunidos os pressupostos legais para o efeito (nomeadamente, por se verificar uma violação não negligenciável de normas procedimentais, já que não se mostram verificados os pressupostos que lhe permitiriam recorrer a um processo especial de revitalização - estando a mesma em situação de insolvência actual, e não meramente iminente e susceptível de recuperação -, e não juntou com o seu requerimento inicial as contas anuais relativas aos últimos três exercícios), devendo ser
alterada a decisão de mérito
proferida a propósito (nomeadamente, recusando-se a homologação do plano de revitalização)
?
*
III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Com interesse para a apreciação da segunda questão enunciada, encontram-se assentes (mercê do conteúdo dos próprios autos) os factos já discriminados em
«I - RELATÓRIO»
, que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
*
IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
4.1. Insolvência
Lê-se no Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 53/04, de 18 de Março (que aprovou o Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas - doravante CIRE), que, sendo «objectivo precípuo de qualquer processo de insolvência (…) a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores», urgiria «dotar estes dos meios idóneos para fazer face à insolvência dos seus devedores, enquanto impossibilidade e pontualmente cumprir as obrigações vencidas».
Lê-se ainda no mesmo Preâmbulo que foi expressa intenção do novo diploma uma simplificação da «pluralidade de pressupostos objectivos presentes no CPEREF», assentando «o actual diploma (…) num único pressuposto objectivo: a insolvência. Esta consiste na impossibilidade de cumprir obrigações vencidas, que, quando seja o devedor a apresentar-se à insolvência, pode ser apenas iminente».
*
4.1.1. Incapacidade de cumprimento das obrigações
(para solver compromissos) -
Conceito geral
Compreende-se, assim, que se tenha consagrado um
conceito geral
de insolvência, aplicável a todos os devedores (pessoas singulares ou colectivas), lendo-se no art.º 3.º, n.º 1, do CIRE, que é «considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas».
Precisa-se, porém, que o cumprimento que aqui está em causa reporta-se necessariamente à realização
pontual
das obrigações (desconsiderando-se a possibilidade do seu eventual e incerto cumprimento futuro); e que as ditas obrigações se deverão encontrar, em regra,
já vencidas
(necessariamente tendo de o estar quando a insolvência seja requerida por um dos credores do devedor).
Precisa-se, ainda, que esta impossibilidade de cumprimento caracterizadora da insolvência «não tem de abranger
todas as obrigações
assumidas pelo insolvente e vencidas», sendo o que verdadeiramente releva é a insusceptibilidade de satisfazer «obrigações que, pelo seu significado no conjunto do passivo do devedor, ou pelas próprias circunstâncias do incumprimento,
evidenciam a impotência, para o obrigado, de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos
».
Com efeito, «pode até suceder que a não satisfação de um pequeno número de obrigações ou até de uma única indicie, só por si, a penúria do devedor, característica da sua insolvência, do mesmo modo que o facto de continuar a honrar um número quantitativamente significativo pode não ser suficiente para fundar saúde financeira bastante» (Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda,
Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado
, 2.ª edição Quid Juris, Lisboa 2013, pág. 85, com bold apócrifo)
[3]
.
Dir-se-á, por isso, que, para efeitos do preenchimento deste conceito geral de insolvência, o que releva é a
solvabilidade do devedor
: estará em situação de insolvência todo aquele que não possua liquidez, ou não possua acesso ao crédito, para garantir o pagamento das respectivas obrigações; e isto independentemente do balanço activo e passivo da sua situação patrimonial (isto é, não exigindo a lei que o passivo do devedor seja superior ao seu activo)
[4]
.
*
4.1.2. Passivo manifestamente superior ao activo
(situação patrimonial líquida manifestamente negativa) -
Conceito particular
Contudo, e no caso das
pessoas colectivas
por cujas dívidas nenhuma pessoa singular responda pessoal e ilimitadamente, por forma directa ou indirecta, consagrou a lei um
conceito particular
e adicional de insolvência, no n.º 2 do art.º 3.º citado, onde se lê que serão ainda consideradas «insolventes quando o seu passivo seja manifestamente superior ao activo, avaliados segundo as normas contabilísticas aplicáveis»
[5]
.
«O legislador teve em mente, sobretudo, a situação das sociedades (por quotas e a sociedades anónimas) e de todas as outras entidades por cujas obrigações só responde, em princípio, o respectivo património. E o seu raciocínio terá sido o seguinte: não existindo, nestes casos, possibilidade de recurso ao “crédito pessoal”, a superioridade manifesta do passivo sobre o activo coincide com - ou conduz inevitavelmente - à impossibilidade de cumprir as obrigações» (Catarina Serra,
Lições de Direito da Insolvência
, 2.ª edição, Almedina, Fevereiro de 2021, pág. 57)
[6]
.
O preenchimento deste conceito especial de insolvência (baseado na relação contabilística entre activo e passivo dos devedores) pressupõe, assim, uma
prévia avaliação dos bens
de que estes últimos sejam titulares, o que nem sempre constitui tarefa fácil.
Enfatiza-se ainda que a lei exige que a superioridade do passivo face ao activo seja
«manifesta»
, o que deve ser interpretado como
«significativa ou expressiva»
, e não tanto como
«ostensiva ou patente»
; e significativa ou expressiva pressupõe que seja
«grave»
, porque tendencialmente irreversível
[7]
. Logo, a manifesta superioridade do passivo face ao passivo só constituirá «um índice seguro de insolvência quando reveste uma expressão que, de acordo com a normalidade da vida, torna insustentável, a prazo, pontual cumprimento das obrigações do devedor» (Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda,
Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado
, 2.ª edição Quid Juris, Lisboa 2013, pág. 88)
[8]
.
*
Reconhecendo, porém, a lei que os balanços têm um significado limitado para efeitos de insolvência, veio permitir uma
reavaliação
(como que uma segunda avaliação) do activo e do passivo
em função de critérios próprios
.
Lê-se, assim, no art.º 3.º, n.º 3, als. a) e b), do CIRE que cessa «o disposto no número anterior, quando o activo seja superior ao passivo, avaliados» considerando «no activo e no passivo os elementos identificáveis, mesmo que não constantes do balanço, pelo seu justo valor» (al. a); e quando «o devedor seja titular de uma empresa, a valorização baseia-se numa perspectiva de continuidade ou de liquidação, consoante o que se afigure mais provável, mas em qualquer caso com exclusão da rubrica de trespasse».
Assim, e na avaliação do activo e do passivo para efeitos de insolvência, a al. a) permite a consideração de
outros elementos identificáveis
mas que não constem do balanço; e a al. b) permite «a valorização da empresa, não apenas numa perspectiva de liquidação (
break-up basis
), com a determinação do valor do seu património em caso de alienação imediata, mas também
numa perspectiva de continuidade
, com a inclusão do valor
going-concern
, ou seja a avaliação
em termos de mercado da possibilidade de prossecução da actividade da empresa
(eventualmente após saneamento)» (Luís Manuel Teles de Menezes Leitão Menezes,
Direito da Insolvência
, 2011, 3.ª edição, Almedina, pág. 86 e seguintes, com bold apócrifo).
Compreende-se, por isso, que se afirme que, a «análise do passivo e do ativo da empresa não pode ser efetuada de forma instantânea. Pelo contrário, como bem observa Luís M. Martins, essa avaliação “deverá tomar em consideração o
horizonte temporal mais amplo possível
, de forma a contemplar o momento da última dívida já existente, devendo
considerar-se vários aspetos
, nomeadamente o tipo de actividade do devedor, se a sua produção é a curto ou a longo prazo, se é sazonal ou não, etc”» (Marco Carvalho Gonçalves,
Processo de Insolvência e Processos Pré-Insolvenciais
, Almedina, Outubro de 2023, págs. 101 e 102, com bold apócrifo)
[9]
.
Ora, se na «reavaliação da empresa» se «deverá» privilegiar «a presunção da sua continuidade», partindo «deste pressuposto, deve verificar-se se ela é suscetível de induzir mais valias sem expressão contabilística atual, nomeadamente tendo em conta a apetência da organização empresarial no seu conjunto, com a globalidade dos elementos que a integram, para a geração de ganhos que justifiquem um valor acrescentado» (Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda,
Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa Anotado
, 2015 - 3.ª Edição, Quid Juris, Lisboa, pág. 92)
[10]
.
Propõem-se, então, para determinação deste conceito de insolvência (mercê do contributo da doutrina alemã) diversos e sucessivos «passos. Primeiro, apura-se o
valor aritmético do endividamento excessivo
através da contraposição do passivo com o ativo do devedor (para efeitos do ativo deve-se ter em conta os respetivos valores liquidáveis, isto é, aqueles que seriam realizáveis através da sua venda individual na eventualidade de uma liquidação da empresa devedora). Caso o resultado seja um endividamento, dever-se-á fazer um
juízo de prognose sobre a continuidade da empresa
: se este juízo for positivo (isto é, se a empresa tiver capacidades de sobreviver e de responder economicamente ao passivo dentro do período de tempo considerado), então o
estado de sobreendividamento poderá ser superado através do valor de continuidade da empresa
; se o resultado for negativo (ou seja, se o endividamento persistir), encontrar-se-á preenchido o fundamento insolvência para efeitos de abertura do processo de insolvência» (Maria do Rosário Epifânio,
Manual de Direito da Insolvência
, 2016, 6.ª edição, Almedina, Março de 2016, pág. 25).
Reconhece-se que deste modo, se introduz algum subjectivismo numa área tão melindrosa, onde se conjugam múltiplos e não raro divergentes interesses (v.g. do devedor, dos credores, do mercado em geral, da economia como um todo). Tem-se, porém, por certo que foi intenção do legislador privilegiar uma
aplicação flexível
dos
critérios de determinação da insolvência
, em função das
particularidades do caso concreto
(incluindo as cada vez mais rápidas e imprevisíveis alterações da conjuntura macro-económica), em vez do seu
automático e instantâneo decalque
sobre a
singela realidade
contabilística do devedor
(para o que bastaria, no n.º 2 do art.º 3.º, ter exigido uma
«matemática ou contabilística»
superioridade do passivo face ao activo, sem adução de quaisquer outros critérios correctores, nomeadamente os que depois consagrou no seu n.º 3)
[11]
.
Dir-se-á, então, que, para fundamentar um pedido de insolvência baseado na manifesta insuficiência do activo do devedor em relação ao seu passivo, bastará ao requerente evidenciá-lo por recurso aos
elementos da matemática escrituração do devedor
.
Contudo, este poderá depois demonstrar a
superioridade do activo resultante da sua revalorização
para lá da singela e restrita aplicação daqueles elementos, nomeadamente numa perspectiva de
continuação da empresa
, num
horizonte temporal mais ou menos longo
; e, por isso, demonstrando ainda que não está impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas (já que, na falta de verificação do critério particular do n.º 2 se regressa à aplicação do critério geral do n.º 1, ambos do art.º 3.º do CIRE)
[12]
, não se encontrando, por conseguinte, em situação de insolvência
[13]
.
*
Compreende-se, por isso, que se afirme que os critérios legais de avaliação para aferir a situação de insolvência dos devedores são os seguintes: o
critério do fluxo de caixa
(segundo o qual um devedor estará em situação de insolvência quando revele impossibilidade de pagar as suas dívidas vencidas), e o
critério do balanço ou activo patrimonial
(segundo o qual um devedor estará em situação de insolvência quando os seus bens sejam insuficientes para garantir o cumprimento integral das obrigações vencidas).
Contudo, defende-se que o
critério principal
para definir o estado de insolvência é o do fluxo de caixa. Já o critério do balanço constitui um
critério acessório e/ou alternativo
, destinado a facilitar o pedido de insolvência formulado por credores, quando os devedores sejam pessoas colectivas e/ou patrimónios autónomos por cujas dívidas nenhuma pessoa singular responda pessoal e ilimitadamente
[14]
.
*
4.1.3. Indícios de insolvência
Admitindo, porém, as dificuldades práticas que existem para comprovar a efectiva incapacidade financeira dos devedores, explicita-se ainda no Preâmbulo do CIRE a existência de um
elenco de «indícios da situação de insolvência
, passando a incluir-se, nomeadamente, a insuficiência de bens penhoráveis para o pagamento do crédito do exequente verificada em processo executivo movido contra o devedor, e também o incumprimento de obrigações previstas em plano de insolvência ou de pagamentos, em determinadas condições; e de aperfeiçoamento, por outro, especificando-se certos tipos de obrigações (tributárias, laborais, para com a segurança social, de certo tipo de rendas) cujo incumprimento generalizado mais frequentemente denuncia a insolvência do devedor» (com bold apócrifo).
Compreende-se, assim, que se leia no art.º 20.º, n.º 1, do CIRE que a «declaração de insolvência de um devedor pode ser requerida (…) por qualquer credor, ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do seu crédito, (…) verificando-se alguns dos seguintes factos», que a seguir se discriminam nas suas diversas alíneas
[15]
.
Elencam-se, por isso, neste n.º 1 do art.º 20.º do CIRE determinados
factos-índices
ou
presuntivos
da insolvência, cuja ocorrência objectiva pode fundamentar o pedido de reconhecimento respectivo, por se presumir que, demonstrados aqueles, o devedor se encontra efectivamente numa situação de penúria.
Assim, a verificação de qualquer deles é
condição suficiente da declaração de insolvência
. Ponderou-se aqui que «a insuficiência económica de um património só pode ser verificada por um estudo completo do mesmo (devassa), o que seria impraticável; por isso, a lei serve-se antes de
índices
ou
indícios
, que servem de presunções» (Castro Mendes/ Jesus dos Santos, citados por Luís Manuel Teles de Menezes Leitão,
Direito da insolvência
, 3.ª edição, Almedina, 2011, pág. 139, nota 150).
*
Lê-se ainda expressamente no Preâmbulo do CIRE «que o devedor pode afastar a declaração de insolvência não só através da demonstração de que
não se verifica o facto indiciário
alegado pelo requerente, mas também mediante a invocação de que, apesar da verificação do mesmo, ele
não se encontra efectivamente em situação de insolvência,
obviando-se a quaisquer dúvidas que pudessem colocar-se (…) quanto ao
carácter ilidível
das presunções consubstanciadas por indícios» (com bold apócrifo).
Logo, sendo a
presunção de penúria generalizada
do devedor, estabelecida pela verificação de um qualquer dos factos-índice previstos no n.º 1 do art.º 20.º do CIRE, de
natureza ilidível
, caberá ao «devedor, se nisso estiver interessado e, naturalmente, o puder fazer, trazer ao processo factos e circunstâncias probatórias de que não está insolvente, pese embora a ocorrência do facto que corporiza a causa de pedir. Por outras palavras,
cabe-lhe ilidir a presunção emergente do facto-índice
(cfr. ac. da Rel. Év., de 25/OUT/2007,
in
CJ, 2007, IV, pág.259)»
(Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda,
Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado
, 2.ª edição Quid Juris, Lisboa 2013, pág. 205, com bold apócrifo).
Compreende-se, assim, que se leia no art.º 30.º, n.º 3, do CIRE que, requerida a respectiva insolvência, a «oposição do devedor à declaração de insolvência pretendida pode basear-se na inexistência do facto em que se fundamenta o pedido formulado ou na inexistência da situação de insolvência»; e precisa-se no n.º 4 seguinte que cabe «ao devedor provar a sua solvência».
Logo, «ao devedor é dado alegar e provar somente a inexistência do facto fundamentante [da respectiva insolvência] sem simultaneamente ter de demonstrar a sua solvabilidade», podendo, por isso, «sustentar a oposição simplesmente na ocorrência de exceções dilatórias insupríveis, ou na inexistência dos créditos que o autor se arroga para fundamentar a sua legitimidade» (Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda,
Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado
, 2.ª edição Quid Juris, Lisboa 2013, pág. 244).
Contudo, quando fique estabelecida a realidade do facto presuntivo da insolvência, para evitar o seu reconhecimento terá de ter alegado a
respectiva solvabilidade
, cujo
ónus de prova indiscutivelmente lhe compete
(isto é, terá que alegar e demonstrar que, apesar da verificação do facto-índice invocado, possui capacidade financeira e liquidez para satisfazer as suas obrigações vencidas).
*
4.2. Processo Especial de Revitalização - PER
4.2.1. Finalidade
No âmbito do
Memorando de Entendimento
, celebrado entre a República Portuguesa e o Banco Central Europeu, a Comissão Europeia e o Fundo Monetário Internacional (no quadro do programa de auxílio financeiro a Portugal), previu-se um conjunto de medidas que tinham como objectivo a promoção dos
mecanismos de reestruturação extrajudicial de devedores
, ou seja, de procedimentos que permitissem que - antes de recorrer ao processo judicial de insolvência - a
empresa que se encontrasse numa situação económica difícil
e
os respectivos credores
pudessem optar por um acordo extrajudicial que visasse a recuperação da devedora e que lhe permitisse continuar a sua actividade económica (conforme referido na
Resolução do Conselho de Ministros n.º 43/2011
, de 29 de Setembro, publicada no DR, I Série, n.º 205, de 25 de Outubro).
O enfoque dado a estes mecanismos decorre do facto de se considerar que, em comparação com o processo judicial de insolvência, e mercê das suas flexibilidade e eficiência, aqueles permitiriam alcançar diversas vantagens sobre este: a
empresa manter-se-ia sempre em actividade
(nomeadamente, mantendo as suas relações jurídicas e económicas com trabalhadores, clientes e fornecedores); e os credores teriam uma taxa de recuperação dos seus créditos mais elevada.
Viria, assim, a ser publicada a
Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril
(entrada em vigor em 20 de Maio de 2012), a qual consubstanciou a sexta alteração do CIRE, aditando um Capítulo II ao seu Título I, com a denominação de «Processo Especial de Revitalização», a que se reportam os
arts. 17.º-A a 17.º-I do CIRE
(sendo mesmo esta a maior das novidades da reforma do CIRE então operada)
[16]
.
Foi, por isso, objectivo assumido do novo processo especial de revitalização «alterar o espírito do regime colocando a
recuperação do devedor
no centro das finalidades do processo, em detrimento da
liquidação imediata do seu património
para satisfação dos credores» (Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões,
Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado
, Almedina, 2013, pág. 64, com bold apócrifo).
Com efeito, «globalmente considerado, o regime do Código é dominado pela finalidade de
liquidação da massa insolvente em benefício dos credores
», tendo implicado um «regresso a um sistema de falência - liquidação, que dominou no sistema jurídico português durante um longo período de tempo e que só começou a evoluir para um sistema de falência-saneamento com o CPC de 1961 e obteve plena consagração no CPEREF» (Carvalho Fernandes, «Sentido Geral do Novo Regime da Insolvência no Direito Português»,
Colectânea de Estudos sobre a Insolvência
, Almedina, Coimbra, 2009, pág. 85 e segs., com bold apócrifo).
Ora, o processo especial de revitalização, aliado ao Sistema de Recuperação de Empresas por Via Extra-Judicial
[17]
, pretenderam inverter a referida lógica do CIRE: em nome do
interesse público de defesa da economia
, colocaram como preocupação primordial a
recuperação da empresa devedora
.
Isso mesmo foi expressamente assumido na Exposição de Motivos da
Proposta de Lei 39/XII da Presidência do Conselho de Ministros
, de 30 de Dezembro de 2012 (
in
http://www.dgpj.mj.pt/sections/noticias/codigo-da-insolvencia-/downloadFile/file/PPL_39_XII_6Alteracao_CIRE.pdf
), onde se afirma que «cada agente que desaparece representa um custo apreciável para a economia, contribuindo para o empobrecimento do tecido económico português, uma vez que gera desemprego e extingue oportunidades comerciais que dificilmente se podem recuperar pelo surgimento de novas empresas»
[18]
.
Compreende-se, por isso, que a «primeira grande alteração introduzida no CIRE - correspondente, como já se acentuou, a uma alteração de fundo - resulta, antes de mais, da modificação do seu art 1º onde, dizendo-se que “o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores”, se deverá concluir que a
liquidação
só deve ocorrer quando
não seja possível a recuperação da empresa
».
Compreende-se ainda a consagração, no n.º 2, desse art.º 1.º, do processo especial de revitalização, «destinado a permitir ao devedor que se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente - mas que ainda seja susceptível de recuperação - estabelecer negociações com os respectivos credores de modo a concluir com estes acordo conducente à sua revitalização económica, como resulta do nº 1 do art. 17º-A para que aquele remete» (Ac. da RL, de 16.10.2014,
Maria Teresa Albuquerque
, Processo n.º 9262/12.6TBCSCL.L1-2, com bold apócrifo).
Logo, «enquanto naquele [processo de insolvência]
se constitui como uma resposta para a superação de uma
situação de insolvência já verificada
, a que a ordem jurídica pretende pôr cobro, o processo de revitalização dirige-se a
evitá-la
, assegurando a recuperação do devedor e, nessa medida, a satisfação, também, dos interesses dos credores» (Carvalho Fernandes e João Labareda,
Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado
, 3.ª edição, Quid Juris, Lisboa, 2015, pág. 137, com bold apócrifo).
Por outras palavras, «o PER é, intencionalmente, um
processo pré-insolvencial
, dirigido, portanto, exclusivamente às empresas sobre as quais ainda não impende o dever de apresentação à insolvência (…). O PER tem, de facto, como beneficiários os devedores que comprovadamente se encontrem em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente mas que ainda sejam suscetíveis de recuperação» (Catarina Serra, «Revitalização - A designação e o misterioso objeto designado. O processo homónimo (PER) e as suas ligações com a insolvência (situação e processo) e com o SIREVE»,
I Congresso de Direito da Insolvência,
Coordenação de Catarina Serra, Almedina, 2013, págs. 85/106, com bold apócrifo).
*
4.2.2. Pressupostos
Lê-se no art.º 17.º-A, n.º 1, do CIRE, que o «processo especial de revitalização destina-se a permitir à empresa que, comprovadamente, se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja suscetível de recuperação, estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes acordo conducente à sua revitalização».
Mais se lê, no art.º 17.º-B seguinte, que, para «efeitos do presente Código, encontra-se em situação económica difícil a empresa que enfrentar dificuldade séria para cumprir pontualmente as suas obrigações, designadamente por ter falta de liquidez ou por não conseguir obter crédito».
Logo, atribui a lei relevância «à pré-insolvência», no que «é, sem dúvida, bem-intencionada. Além dos benefícios gerais da intervenção atempada ou antecipada, acredita-se que isto permitirá desencadear a aplicação das providências, designadamente de recuperação, à medida das necessidades de cada empresa» (Catarina Serra,
Lições de Direito da Insolvência
, 2.ª edição, Almedina, Fevereiro de 2021, pág. 321).
*
4.2.2.1. Situação económica difícil
Precisando o primeiro pressuposto do recurso ao processo especial de revitalização, o encontrar-se o devedor em
«situação económica difícil»
, a própria lei esclareceu tratar-se do devedor que enfrenta dificuldade séria para cumprir pontualmente as suas obrigações, designadamente por ter falta de liquidez, ou por não conseguir obter crédito.
Precisa-se que a enumeração destas causas (falta de liquidez ou impossibilidade de obter crédito) de uma situação económica difícil «é meramente exemplificativa, razão pela qual podem existir outras causas que justifiquem o facto de a empresa estar a enfrentar uma dificuldade séria para cumprir pontualmente a suas obrigações» (Marco Carvalho Gonçalves,
Processo de Insolvência e Processos Pré-Insolvenciais
, Almedina, Outubro de 2023, pág. 687).
*
4.2.2.2. Insolvência iminente
Precisando agora o que seja
«situação de insolvência meramente iminente»
(que a lei não define), e numa primeira aproximação, dir-se-á ser aquela em que o devedor ainda não se encontra «impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas» (já que esta é a definição de insolvência dada pelo art.º 3.º, n.º 1, do CIRE); mas em que previsivelmente não
estará na posição de poder cumprir, no momento do seu vencimento, as obrigações de pagamento existentes
[19]
.
Logo, a «iminência da insolvência caracteriza-se pela ocorrência de circunstâncias que, não tendo ainda conduzido ao incumprimento em condições de poder considerar-se a situação de insolvência já atual,
com toda a probabilidade a vão determinar a curto
prazo
, exactamente pela insuficiência do activo líquido e disponível para satisfazer o passivo exigível». No ajuizamento do grau dessa probabilidade haverá, «pois, que levar em conta a
expectativa do homem médio
face à
evolução normal
da situação do devedor,
de acordo com os factos conhecidos
e na eventualidade de nada acontecer de incomum que altere o curso dos acontecimentos» (Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda,
Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado
, reimpressão, Quid Juris, 2009, pág. 87, com bold apócrifo).
Compreende-se, por isso, que se afirme que, como «é evidente, se estamos a falar de insolvência iminente é porque nos encontramos já perante uma ameaça»; e que se precise que «não basta um medo ou pavor por parte do devedor. É preciso que se trate de uma
probabilidade objectiva
», revelada precisamente pelo necessário «juízo de prognose, que pode ser auxiliado pela elaboração de um estudo sobre a liquidez do devedor», averiguando-se «qual a probabilidade de (…) não pagar as obrigações
vencidas e as obrigações
atuais não vencidas
no momento em que se vencerem»
; e se «for previsível que isso venha a acontecer, há falência iminente» (Alexandre de Soveral Martins,
Um Curso de Direito da Insolvência
, 2016 - 2ª edição revista e actualizada, Almedina, Janeiro de 2016, págs. 55 e 56, com bold apócrifo)
[20]
.
*
Reconhece-se que, não obstante as precisões já feitas, «a distinção da situação económica difícil da insolvência iminente pode revelar-se por vezes fluída, tanto mais que uma será, ou poderá ser, a antecâmara da outra, numa sequência: situação económica difícil/insolvência iminente/insolvência. O núcleo da distinção passa pelo seguinte: num caso, o devedor terá
dificuldade séria para cumprir, não sendo, ainda assim previsível, que venha a incumprir
, enquanto que no outro, pelo contrário,
é já previsível que se venha a verificar esse incumprimento
» (Luís Miguel Pestana de Vasconcelos,
Recuperação de Empresas: O Processo Especial de Revitalização
, Almedina, 2017, págs. 42 e 43, com bold apócrifo)
[21]
.
*
4.2.2.3. Susceptibilidade de recuperação
Ao referido pressuposto (do devedor se encontrar em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente), deverá ainda juntar-se a
susceptibilidade de recuperação
dessas situações.
*
Com efeito, lê-se no art.º 17.º-A, n.º 2, do CIRE, que o processo especial de revitalização «pode ser utilizado por qualquer empresa que, mediante declaração escrita e assinada, ateste que reúne as condições necessárias para a sua recuperação e apresente declaração subscrita, há não mais de 30 dias, por contabilista certificado ou por revisor oficial de contas, sempre que a revisão de contas seja legalmente exigida, atestando que não se encontra em situação de insolvência atual, à luz dos critérios previstos no artigo 3.º».
Logo, exige-se um
compromisso da empresa de que reúne as condições necessárias para a sua recuperação
,
maxime
, que
não se encontra em situação de insolvência actual
(tal como definida no art.º 3.º do CIRE), sendo que esta última situação terá que ser atestada ou por contabilista certificado ou por revisor oficial de contas, consoante a sua natureza.
Ponderou-se que a «palavra dada por esta entidade terceira, com ou sem relação com a empresa requerente, confere um adicional conforto aos credores, na hora de ponderarem acerca da credibilidade da avaliação da situação económica e financeira da sociedade» (Susana Amaral Ramos,
Recuperação de Empresas: Regimes Legais Anotados
, 2.ª edição, Almedina, Coimbra 2022, pág. 126)
[22]
.
Reconhece-se, assim, a preocupação do legislador de afastar do processo especial de revitalização as empresas que já se encontrem em situação de insolvência actual (Reinaldo Mâncio da Costa, «Os requisitos do plano de recuperação»,
III Congresso de Direito da Insolvência,
coordenação de Catarina Serra, Almedina, Coimbra, 2015, pág. 156).
*
Mais se lê, no art.º 17.º-C, n.º 3, als. c) e d), do CIRE, que, com o seu requerimento inicial, a empresa terá de juntar: proposta «de plano de recuperação acompanhada, pelo menos, da descrição da situação patrimonial, financeira e creditícia da empresa»
[23]
; e proposta «de classificação dos credores afetados pelo plano de recuperação em categorias distintas, de acordo com a natureza dos respetivos créditos, em credores garantidos, privilegiados, comuns e subordinados e querendo, de entre estes, refletir o universo de credores da empresa em função da existência de suficientes interesses comuns, designadamente» trabalhadores, sem distinção da modalidade do contrato, sócios, entidades bancárias que tenham financiado a empresa, fornecedores de bens e prestadores de serviços e credores públicos».
Lê-se ainda, no art.º 17.º-F, n.º 1, do CIRE, que até «ao último dia do prazo de negociações, a empresa deposita no tribunal a versão final do plano de recuperação, contendo, pelo menos», diversas e relevantes informações
[24]
, nomeadamente «uma exposição de motivos que contenha a descrição das causas e da extensão das dificuldades da empresa e que explique as razões pelas quais há uma perspetiva razoável de o plano evitar a insolvência da empresa e garantir a sua viabilidade, incluindo as condições prévias necessárias para o êxito do plano».
Esta
densificação, de forma bastante detalhada, do conteúdo do plano de recuperação
, resultou da Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro, que cumpriu as regras de transposição obrigatória para a ordem jurídica interna da Directiva (EU) 2019/1023, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de Junho de 2019. Precisa-se que se trata «de um elemento acessório e relevante no processo de decisão judicial de homologação do plano de recuperação, na medida em que o juiz deve, a final, formular um juízo de mérito quanto à aptidão daquele para permitir a recuperação da empresa» (Fernando Taínhas, «Overwiew geral da reforma»,
Atas das VII Jornadas de Reestruturações e Insolvências de Uría Menéndez - Proença de Carvalho
, coordenação David Sequeira Dinis e Nuno Salazar Casanova, UCP Editora, Setembro de 2023, pág. 78).
*
Lê-se ainda, no art.º 17.º-F, n.º 6, do CIRE, que, uma vez votado o plano de revitalização, o administrador judicial provisório «elabora um documento com o resultado da votação, que remete de imediato ao tribunal, acompanhado do seu parecer fundamentado sobre se o plano apresenta perspetivas razoáveis de evitar a insolvência da empresa ou de garantir a viabilidade da mesma».
É precisamente por a susceptibilidade de recuperação constituir um pressuposto do recurso ao processo de revitalização que, de forma inovatória (pela Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro), que se atribuiu ao
Administrador Judicial Provisório
a competência de remeter ao processo, conjuntamente com o resultado da votação, um
parecer fundamentado
sobre se o plano apresenta
perspectivas razoáveis de evitar a insolvência da empesa e de garantir a sua viabilidade
.
*
Por fim, lê-se no at.º 17.º-F (com a redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro), n.º 7, al. g), do CIRE, que, nos «10 dias seguintes à receção da documentação» remetida pelo Administrador Judicial Provisório, «o juiz decide se deve homologar o plano de recuperação ou recusar a sua homologação», aferindo, nomeadamente, se «o plano de recuperação apresenta perspetivas razoáveis de evitar a insolvência da empresa ou de garantir a viabilidade da mesma».
Dir-se-á, antes de mais, que o processo especial de revitalização (consagrado nos art.ºs. 17.º-A a 17.º-I, do CIRE), quer na sua versão inicial, quer ao longo das alterações que foi sofrendo, assenta num modelo processual de cariz marcadamente
voluntário
e
extrajudicial
(dando primazia à vontade dos intervenientes, devedora
[25]
e credores), por forma a, não só fomentar o recurso ao mesmo, como a contribuir para o aumento do número de negociações concluídas com sucesso
[26]
.
Compreende-se, por isso, que, lendo-se no art.º 17.º-C, n.º 4, do CIRE, que, uma vez recebido o requerimento (de manifestação de vontade da empresa e de credor de encetarem negociações conducentes à revitalização daquela, por meio da aprovação de plano de recuperação), «o juiz nomeia de imediato, por despacho, administrador judicial provisório», se discuta se neste despacho liminar o mesmo pode, ou não, indeferir o processo, por falta de requisitos legais (face, nomeadamente, àquele que era o modelo tradicional do seu controlo, limitado à legalidade), encontrando-se a jurisprudência
[27]
e a doutrina dividida a esse respeito
[28]
.
Pondera-se, porém, a favor da admissibilidade do despacho liminar de não admissão do plano de insolvência, por falta de requisitos materiais (v.g. inexistência de uma situação de insolvência actual, e não apenas iminente), estarem em causa razões de
economia processual
: ao permitir-se «ao juiz rejeitar liminarmente propostas manifestamente inviáveis, independentemente da razão por que foram apresentadas», evita-se «os atrasos que a discussão dessas propostas necessariamente causaria no processo» (Luís Manuel Teles de Menezes Leitão,
Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado,
2015, 8.ª edição, Almedina, Julho de 2015, pág. 234). Acresce, e nas enfáticas palavras de Catarina Serra, que «por mais que o papel do juiz no PER surja algo esbatido por comparação com outros processos, o juiz nunca é - e por isso nunca pode comportar-se - como um mero “escriba”», nomeadamente face aos expressos pressupostos e requisitos de recurso a um tal procedimento,
sob pena de ficarem esvaziados de utilidade e sentido
, pelo menos nesta fase inicial do processo (
Lições de Direito da Insolvência
, 2.ª edição, Almedina, Fevereiro de 2021, pág. 393).
Pressupõe-se, porém e naturalmente, «um juízo sobre o mérito da proposta apresentada, com carácter casuístico» (Maria do Rosário Epifânio,
Manual de Direito da Insolvência
, 2016, 6.ª edição, Almedina, Março de 2016, pág. 301)
[29]
.
Contudo, mesmo a corrente que defende um entendimento contrário admite a possibilidade de sindicância liminar quando seja
manifesta a inviabilidade do pedido
(v.g. natureza de pessoa singular do requerente), nomeadamente por aplicação analógica do disposto no art.º 207.º, n.º 1, al. c), do CIRE (onde se lê que o «juiz não admite a proposta de plano de insolvência» quando «o plano for manifestamente inexequível»). A «título meramente indicativo, poderão (…) incluir-se no âmbito da norma os casos em que medidas específicas contempladas na proposta não sejam material ou juridicamente razoáveis, seja porque não há meios para o fazer, seja porque exorbitam da competência do próprio devedor ou dos seus órgãos. Tal como as que comportam providências que envolvem a participação de terceiros que, em razão dos termos e da experiência de vida, é razoavelmente expectável não vir a acontecer».
Certo é, porém, que se exige «a ostensibilidade do vício, como requisito de rejeição» (Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda,
Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado
, reimpressão, Quid Juris, 2009, págs. 758 e 759).
O que, porém, agora é certo (isto é, desde a nova redacção que a Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro, veio conferir ao CIRE) é que «a intervenção judicial em PER (…) sofreu alterações relevantes, na medida em que densificou o conteúdo obrigatório da decisão de homologação, tornando-a mais exigente, nela incluindo um
juízo de
mérito
sobre se o plano de recuperação apresenta perspetivas razoáveis de evitar a insolvência da empresa e garantir a viabilidade da mesma» (Fernando Taínhas, «Overwiew geral da reforma»,
Atas das VII Jornadas de Reestruturações e Insolvências de Uría Menéndez - Proença de Carvalho
, coordenação David Sequeira Dinis e Nuno Salazar Casanova, UCP Editora, Setembro de 2023, pág. 78, com bold apócrifo).
Com efeito, este «juízo de mérito é direto sobre o mérito do plano
enquanto instrumento de recuperação
- se o plano tem capacidade de
evitar a insolvência
ou se
garante a viabilidade da empresa
(controlo técnico e económico)», já que «ambos os aspetos têm necessariamente que ser avaliados». Ora, no «direito português este juízo sempre foi cometido os credores, desde que há instrumentos legais de recuperação», cometendo-se ao juiz, na versão anterior do CIRE, «uma larga franja de recusa oficiosa de homologação (cfr. art.º 215º do CIRE) mas que não» passava «por um juízo técnico desse tipo, exceto quando» atingisse «a inexequibilidade pura e notória»
[30]
.
Pondera-se, por isso, que mesmo «que os juízes sejam deviamente assessorados nesta tarefa, no fim do dia será sempre uma decisão do juiz, o mesmo juiz que no direito societário está limitado pela
business judgement rule
, por não ser considerado a pessoa mais bem colocada para avaliar decisões (passadas) de gestão», sendo «que agora recebe o encargo de
avaliar, rigorosamente, o futuro
».
Assim, e sendo «claramente uma nova função - e um desafio - que põe sob outro foco a especialização e a educação dos juízes», bem como a consagração do «modelo do juiz profissional, do meio, o melhor colocado para a aferição de mérito», contudo e «claramente
não bate certo com a nossa organização judiciária
»; e nem com o prazo de 10 dias que o mesmo tem para se pronunciar, isto é, «com a eficiência necessária para garantir a celeridade do respetivo tratamento» (Fátima Reis Silva, «Aprovação e homologação de planos de recuperação»,
V Congresso de Direito da Insolvência
, Coordenação Catarina Serra, Almedina, Novembro de 2019, págs. 267 e 268 - com bold apócrifo - pronunciando-se sobre esta «nova função que me preocupa e que considero ser um desafio estruturante para os juízes e sistemas nacionais»).
Tendo, porém, que o fazer, basear-se-á necessariamente nos elementos que constam do próprio processo, mormente do teor do
próprio plano de revitalização
apresentado, no
parecer fundamentado
que sobre ele tenha sido dado pelo administrador judicial provisório e nas
posições que os credores
sobre ele tenham assumido
[31]
.
Contudo, «sempre cumprirá notar que o juízo a efetuar não é um juízo de
certeza absoluta
, mas de
mera
razoabilidade
, ou seja, exige-se ao juiz que conclua pela viabilidade, ou não, da empresa, dentro de um cenário plausível ou, dito de outro modo, num quadro de expectativas prováveis no âmbito da decorrência lógica dos dados de facto que lhe são apresentados» (Joana Silva, «Um primeiro olhar sobre as alterações introduzidas ao Processo Especial de revitalização pela Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro»,
Revista do Centro de Estudos Judiciários
, 2022-I, Coimbra Almedina, pág. 49, com bold apócrifo)
[32]
.
*
4.2.3. Recusa de Homologação
(de prévia aprovação do plano de recuperação)
4.2.3.1. Em geral
Reitera-se que se lê no n.º 7 do art.º 17.º-F, do CIRE que, recebido pelo juiz o plano de recuperação aprovado pelos credores, este «decide se deve homologar o plano de recuperação ou recusar a sua homologação, nos 10 dias seguintes à receção da documentação mencionada nos números anteriores, aplicando, com as necessárias adaptações, as regras previstas no título IX, em especial o disposto nos artigos 194.º a 197.º, no n.º 1 do artigo 198.º e nos artigos 200.º a 202.º, 215.º e 216.º»; e a decisão do juiz vincula os credores, mesmo que não hajam participado nas negociações (art. 17.º-F, n.ºs 7 e 10, do CIRE).
Logo, para «que produza os efeitos jurídicos para que se mostra ordenado, o acordo (…) deve ser objecto de homologação judicial, pois o acto decisório do tribunal constitui uma verdadeira
condição de eficácia
desse plano» (Ac. da RE, de 24.05.2018,
Tomé de Ca
rvalho, Processo n.º 2664/17.7T8STR.E1, com bold apócrifo).
Compreensivelmente, porém, «cabe à lei - a mesma lei que faz prevalecer sobre a regra do consentimento individual (típica dos contratos) a regra do consentimento colectivo (característica dos processos tradicionais de insolvência) - fixar os limites desta prevalência»; e, por isso, o «juiz fica obrigado à rejeição do plano de recuperação», por força das regras «previstas no título IX» do CIRE, quando se verifique uma «
violação grave da lei
e
sacrifício ou benefício injustificado de algum sujeito, em resultado do plano
» (Catarina Serra,
Lições de Direito da Insolvência
, 2.ª edição, Almedina, Fevereiro de 2021, pág. 438, com bold apócrifo).
Lê-se no art.º 215.º, do CIRE, que o «juiz recusa oficiosamente a homologação do plano de insolvência aprovado em assembleia de credores no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza, e ainda quando, no prazo razoável que estabeleça, não se verifiquem as condições suspensivas do plano ou não sejam praticados os actos ou executadas as medidas que devam preceder a homologação» (com bold apócrifo).
Entende-se por
regras procedimentais
as que visam regular a forma como deverá desenrolar-se o processo (vício de procedimento), enquanto que as
normas aplicáveis ao conteúdo do PER
se reportarão ao dispositivo do plano de pagamento, bem como aos princípios que lhe devem estar subjacentes (a que deve de obedecer imperativamente), e as que definem os temas que a proposta deve contemplar (vício de conteúdo)
[33]
.
*
4.2.3.2. Em particular - Recusa
de homologação
(oficiosa)
por violação de normas procedimentais
Particularizando, e quanto às
regras procedimentais que visam regular a forma como se deverá desenrolar o processo
, dir-se-á que «são todas aquelas que regem a atuação a desenvolver no processo, que incluem os passos que nele devam ser dados até que os credores decidam sobre as propostas que lhes foram apresentadas, incluindo, deste modo, as próprias regras com que se devem reger as negociações a encetar entre os credores e o devedor e as regras que regulam a aprovação e votação do plano, tal como as relativas ao modo como o plano deve ser elaborado e apresentado» (Nuno Salazar Casanova e David Sequeira Dinis,
PER - O Processo Especial de Revitalização
, Coimbra Editora, Março, 2014, pág. 144)
[34]
.
Precisa-se, a propósito, que o PER é um processo híbrido e concursal.
Com efeito, é
híbrido
porque boa parte da sua tramitação é
tendencialmente extrajudicial
,
maxime
a fase das negociações, «em que a intervenção do julgador é pontual em homenagem aos valores da celeridade, da informalidade e da eficácia» (Ac. da RP, de 05.11.2018,
Carlos Gil
, Processo n.º 805/18.6T8STS.P1); mas essa mesma
intervenção judicial
não deixa de ocorrer em
momentos cruciais
, cabendo precisamente ao juiz a nomeação do administrador judicial provisório (art.º 17.º-C, n.º 5, do CIRE), a decisão das impugnações da lista provisória de créditos apresentada pelo administrador judicial provisório (art.º 17.º-D, n.º 3, do CIRE), a decisão sobre a computação, no cálculo das maiorias necessárias à aprovação do plano, de créditos impugnados (art.º 17.º-F, n.º 5), e a decisão de homologação ou não homologação do acordo de pagamento (art.º 17.º-F, n.º 7, do CIRE).
A intervenção judicial é, assim, necessária para
garantir ao processo a sua natureza concursal
, ou seja, a
vinculatividade do acordo de pagamento
face a todos os credores do devedor, incluindo aqueles que não participaram nas negociações ou não tiveram qualquer intervenção no processo (art.º 17.º-F, n.º 11, do CIRE).
Com efeito, o plano de recuperação «é susceptível de impor aos credores uma compressão generalizada e grave das suas faculdades típicas: pode afectar a esfera jurídica dos interessados e interferir com os direitos de terceiros independentemente do seu consentimento - desde que a lei o autorize expressamente (artº 192 nº 2 do CIRE). Pode, por isso, por exemplo, sujeitar um credor a um tratamento mais desfavorável sem necessidade de consentimento expresso – dado que é suficiente o consentimento tácito (artº 194 nº 2 do CIRE).
Pode mesmo afectar créditos públicos - créditos do Estado, das Instituições de Segurança Social e de outras entidades públicas, sujeitos a regimes especiais (artº 196 nº 2,
a silentio
). O regime compreende-se: o plano é
uma convenção
, um negócio jurídico processual - mas um
negócio jurídico outro, específico do Direito de Insolvência
, a qual a lei atribui uma força jurídica especial de afectação de direitos» (Ac. da RC, de 17.03.2015,
Henrique Antunes,
Processo n.º 338/13.7TBOFR-A.C1, com bold apócrifo).
Não deixa, porém, o «papel do juiz neste processo» de ser «muito restrito, porquanto o legislador faz radicar a defesa daquele interesse público, em que se traduz a saúde da economia», precisamente «na primazia da vontade da maioria qualificada dos credores, confiando quase plenamente, nestes e no administrador judicial» (Ac. de 10.03.2015,
Alexandre Reis,
Processo n.º 36/14.4TBOLR.C1).
*
Dir-se-á ainda que a lei não define o que sejam
vícios não negligenciáveis
, tendo-se entendido que revestem tal natureza todas as violações de normas imperativas que acarretem a produção de um resultado que a lei não autoriza, diversamente se verificando quanto às infracções que afectem, tão só as regras de tutela particular, que podem ser afastadas com o consentimento do protegido, sem deixar de atender, por razoável, o critério geral utilizado pela própria lei processual no art.º 195.º, do CPC (Ac da RL, de 12.12.2013,
Ana Resende
, Processo n.º 1908/12.6TYLSB-A.L1-7)
[35]
.
Compreende-se, por isso, que se afirme que o «vício de procedimento não negligenciável ocorrerá quando no
iter
processual conducente à publicidade de um plano de insolvência houve (…) violação de regras susceptível de interferir com a boa decisão da causa, o que significa valorar se interfere ou não com a justa salvaguarda dos interesses protegidos ou a proteger - nomeadamente, no que respeita à tutela devida à posição dos credores e do devedor nos diversos domínios em que se manifesta -, tendo em conta o que é, apesar de tudo, livremente renunciável. Parecem constituir exemplos de normas procedimentais cuja violação não será negligenciável, as disposições do art. 212º que fixam os dois quóruns indispensáveis para que uma deliberação se considere aprovada» (Maria do Rosário Epifânio,
Manual de Direito da Insolvência
, 2016, 6.ª edição, Almedina, Março de 2016, pág. 308)
[36]
.
*
4.3. Caso concreto
(subsunção ao Direito aplicável)
4.3.1. Insolvência actual
Concretizando, verifica-se ter vindo a credora EMP02..., STC, S.A. defender a não homologação do plano de revitalização da Requerente (EMP01..., Limitada)
«com fundamento na violação não negligenciável das regras procedimentais, tendo em conta que a Devedora (…) se encontra em situação de insolvência atual nos termos do artigo 3.º, n.º 2 do CIRE, por o seu o passivo ser manifestamente superior ao ativo»
,
«situação que resulta confessada pela Devedora nas contas que apresenta no plano de recuperação objeto da decisão de homologação aqui em crise»
.
Precisou que
«resulta das páginas 33, 34, 39, 41 e 43 do plano de recuperação, que a EMP01... tem vindo a acumular resultados transitados negativos nos últimos anos, apresentando, pelo menos, desde 2021 um passivo manifestamente superior ao seu ativo em cerca de um milhão de euros. Nessa mesma linha, constata-se ainda através da análise dos elementos contabilísticos identificados apostos no plano de recuperação, que, no momento da sua apresentação ao PER, o passivo da EMP01... cifrava-se em 5.358.016,70€, montante que é significativamente superior ao activo de 4.364.589,76€, em também quase um milhão de euros»
.
*
Dir-se-á resultar efectivamente dos elementos de contabilidade apresentados pela Requerente (EMP01..., Limitada) a denunciada superioridade do seu passivo sobre o activo, na ordem de um milhão de euros.
Fica, assim, certificado o
valor aritmético do seu endividamento excessivo
.
Contudo, e tal como detalhadamente explicado supra, sendo a mesma titular de uma empresa, a avaliação do seu activo deverá fazer-se numa
perspectiva de continuidade
, se for essa a hipótese que se afigure mais provável (face a eventual liquidação); e não de forma instantânea, mas sim considerando um
horizonte temporal de alguma duração
, que no caso se justifica fazê-lo coincidir com a duração do plano de revitalização apresentado (isto é, até 2030).
Sendo assim, resulta do plano apresentado, que a
«situação económica difícil»
em que a Requerente (EMP01..., Limitada) se encontra
«é de natureza conjuntural e, por isso, excecional»
, radicada na
«crise pandémica desencadeada pela COVID 19 e a guerra da Ucrânia»
, que fizeram com que visse
«a progressão da sua faturação estagnada, que, por sua vez, não foi compensado pelo abrandamento dos custos da atividade, antes pelo contrário, tiveram um fortíssimo aumento provocado pelo agravamento dos preços de energia e dos encargos financeiros pela banca»
.
Mais resulta que, em termos de
continuidade da empresa
e de
valorização do seu activo
nessa perspectiva, mesmo
«com a retração do mercado, a requerente mantém-se em atividade e tem uma ampla carteira de clientes, sendo-lhe reconhecida no meio onde se encontra inserida elevada capacidade técnica e comercial»
; e, por isso, os seus reconhecidos
«créditos serão pagos à custa dos rendimentos da empresa, através de um novo modelo de negócio, adaptado à situação atual»
, advindo as suas receitas
«da venda dos produtos que a empresa produz e comercializa»
. Dir-se-á que é precisamente por não existir um problema estrutural da sua organização empresarial, mas apenas um conjuntural problema de
«tesouraria e disponibilidades de liquidez»
, que o mero prolongamento dos «
prazos de pagamento das suas obrigações»
(a 100%) embora
«essencial para evitar entrar em incumprimento»
(ainda não verificado), seja suficiente para assegurar a sua completa recuperação até 203o.
Mais se dirá ser precisamente esta reconhecida valorização do activo da Requerente (assente, nomeadamente, no seu know-how e na sua implantação no mercado onde opera) que permite afirmar
«que todos os credores saem beneficiados com a presente proposta»
(e, por isso, a tendo aprovado por uma expressiva maioria de 97,68% dos votantes): os
«créditos dos trabalhadores gozam, nos termos do art.º 333º do Código de Trabalho, de privilégio mobiliário geral e imobiliário especial, o que lhes confere prioridade no pagamento pelo produto da venda dos bens móveis e imóveis/local de trabalho da empresa, pelo que, não sendo esta classe de credores prejudicada, contudo, caso a empresa se mantenha em funcionamento, são postos de trabalho que se mantêm em vigor»
; para
«os créditos do Estado (A.T.) e (IGFSS) está previsto o pagamento de 100% para o valor em dívida no cenário de continuidade, já no cenário liquidação, dado que os trabalhadores verão o seu crédito garantido, o Estado, nesse cenário, verá diminuído o seu valor a receber»
; relativamente
«ao crédito bancário, num cenário de continuidade, os bancos verão o seu crédito ser ressarcido a 100% do capital em dívida, já no cenário de liquidação, a probabilidade de recebimento é bastante menor»
; no
«que concerne aos leasings, com a continuidade da empresa, os mesmos serão renegociados e pagos»
, vindo a mesma a ficar proprietária de três imóveis que entrarão no seu activo em benefício dos respectivos credores (o que hoje não sucede, possuindo uma mera expectativa dessa aquisição); e relativamente
«ao valor reconhecido aos fornecedores cuja natureza é comum, num cenário de liquidação, a previsão é de que não recebam qualquer valor, já no cenário de continuidade é de que venham a receber a 100% do capital em dívida»
.
Dir-se-á ainda que, não tendo a Credora recorrente (EMP02... STC, S.A.)
contestado a análise previsional apresentada
pela Requerente (nomeadamente, o
«desempenho que se espera ter durante o período de reestruturação»
, incluindo o volume e distribuição das receitas por ela antecipadas, o volume e distribuição de encargos e os resultados líquidos de exploração ao longo dos anos que medeiam da actualidade até 2030), é ela própria quem aceita que, sendo imediata
«a implementação das medidas com incidência no passivo previstas no plano pela Devedora (…) não lhe permitirá, desde logo, transitar para uma situação de balanço positivo»
,
«com base nas demonstrações financeiras previsionais que constam da pág. 43 do plano de recuperação»
, essa
situação líquida de balanço deixará de ser negativa a partir de 2027
, ou seja, ainda antes do fim do universo temporal aqui considerado.
Do mesmo modo o entendeu a Administradora Judicial Provisória, quando no seu
parecer fundamentado
se lê (com bold apócrifo) que, nesse
«plano, a devedora expressou as suas expetativas de receitas, provenientes da exploração dos seus estabelecimentos de venda e reparação de eletrodomésticos e artigos para o lar, o que consiste nas suas principais fontes de receita e de valorização dos seus ativos na perspetiva da sua recuperação, visto que, de outro modo, o seu valor poderia ser diminuto.
E alcançou que, em face dos seus custos correntes, consegue libertar disponibilidades que, conjugadas com o ajustamento do prazo de pagamento dos créditos abrangidos pelo plano, devem permitir dispor de cash-flow para cumprir com o novo plano de pagamentos apresentado aos credores, o que se encontra expresso nas demonstrações de resultados previsionais que fazem parte do plano de Plano de Revitalização, que de acordo com a devedora tem como pressupostos a evolução histórica e as suas expetativas acerca das suas receitas e dos seus custos, ajustadas às atuais condições de mercado.
Em face da especificidade da atividade da devedora, afigura-se que a perspetiva da sua recuperação, com o consequente cumprimento do plano aprovado, seja a via mais vantajosa para a generalidade dos credores, uma vez que, numa situação de insolvência,
parte expressiva dos ativos
da devedora poderiam apresentar um valor diminuto, mas que,
numa perspetiva de prosseguimento da sua atividade, apresentam uma valorização expressiva
, devido à manutenção dos seus estabelecimentos abertos ao público»
.
Fica, assim, certificado um
juízo positivo de prognose sobre a continuidade da empresa
, isto é, que a Requerente (EMP01..., Limitada) tem capacidade para continuar a operar com sucesso no seu mercado próprio e, por isso, de satisfazer economicamente ao seu passivo dentro do período de tempo considerado no plano de revitalização apresentado; e, deste modo, fica demonstrado que o seu (reconhecido)
estado
(actual)
de sobreendividamento poderá ser superado através do valor de continuidade da empresa
.
*
Afastada, então, a constatação da respectiva insolvência actual pela aplicação do critério contido no art.º 3.º, n.º 2, do CIRE, verifica-se que a Credora recorrente (EMP02... STC, S.A.) não aduziu
quaisquer factos concretos que permitissem a verificação da mesma ao abrigo do critério contido no n.º 1
do mesmo preceito (nomeadamente, a impossibilidade de solver os seus compromissos actuais vencidos), nem que preenchessem
qualquer um dos factos índices
enumerados no art.º 20.º, n.º 1, do CIRE.
Dir-se-á mesmo que ficou demonstrado nos autos precisamente o contrário, a que talvez não seja estranho o facto de, como se reconhece no plano de revitalização em apreciação, na
«sua grande maioria o crédito da requerente está avalizado pessoalmente pelo seu gerente, sendo este responsável de forma solidária, ou seja, caso a sociedade não proceda à liquidação dos créditos, responde pelo incumprimento desta»
.
Assim, a Requerente (EMP01..., Limitada)
vem cumprindo desde 2014 o plano de revitalização
que então viu aprovado, tendo
reduzido o passivo então reconhecido num milhão e meio de euros
; e vem cumprindo ainda as obrigações decorrentes do exercício da sua actividade comercial. Não tem, assim, quaisquer dívidas vencidas.
Ora, sendo o caso da Requerente (EMP01..., Limitada) já se encontrar insolvente desde, pelo menos, 2021 (como defende a Credora recorrente), estranha-se que,
nem ela, nem qualquer um dos seus outros vinte credores, a tivesse requerido
.
Apela-se, de novo, à natureza do juízo que aqui nos cabe formular: o «juiz não terá, com certeza, no PER, a possibilidade de empreender uma actividade exaustiva ou sistemática de apreciação dos respectivos pressupostos. Mas também não é isso que se pretende, sob pena de desequilíbrio na direcção oposta, ou seja, de uma absoluta desconsideração da celeridade e de outros valores formais do processo. O dever do juiz é, tão-somente, o de “honrar” a exigência de pressupostos, esforçando-se por verificá-los, especialmente quando vêm ao seu conhecimento factos que indicam que eles não se verificam, e de se escusar a por em movimento a máquina judiciária sempre que conclua, sem margens para dúvidas, pela sua falta. São factos indiciadores desta falta a empresa ter-se apresentado à insolvência imediatamente antes do PER ou confessada a sua insolvência actual ou a sua irrecuperabilidade no requerimento inicial do PER» (Catarina Serra,
Lições de Direito da Insolvência
, 2.ª edição, Almedina, Fevereiro de 2021, pág. 394). Contudo, nada disso ocorreu aqui.
*
Concluindo, tendo presente a especial natureza do processo em causa (com claro predomínio do que se pretende que seja a vontade dos credores, e os limites da intervenção do juiz), e salvo o devido respeito por opinião contrária, só uma situação de
evidente e comprovada insolvência
poderá obstar à homologação do plano de pagamentos antes aprovado pela maioria dos credores reconhecidos; e essa, embora aqui possível (como co-natural a uma situação económica difícil ou a uma insolvência iminente), não ultrapassou a suspeita (independentemente do grau - mais ou menos reforçado - de que se revista).
*
4.3.2. Insusceptibilidade de recuperação
Concretizando novamente, verifica-se também defender a credora EMP02..., STC, S.A. a não homologação do plano de revitalização da Requerente (EMP01..., Limitada) porque
«dos elementos que ela própria fez juntar ao plano de revitalização»
revela-se
«a ausência de qualquer expectativa de melhoria da sua situação nos próximos anos».
*
Dir-se-á, e começando pelo
próprio plano de revitalização
apresentado, que o seu teor desmente aquele juízo da Credora recorrente (EMP02... STC, S.A.), uma vez que, depois de explicar serem as causas da actual situação económica difícil de natureza conjuntural e excepcional, e não estrutural, demonstra contabilisticamente (embora mercê de análises previsionais) de que forma atingirá a sua efectiva recuperação, ao longo dos anos da sua vigência, e mantendo o pagamento de 100% dos créditos aqui reconhecidos.
Ora, e conforme já se referiu supra, a Credora recorrente (EMP02... STC, S.A.) nem impugnou aquelas causas, nem estas previsões de resultados, aceitando mesmo estes últimos, nomeadamente que o equilíbrio balanço entre passivo e activo seria alcançado a partir de 2027.
*
Prosseguindo, e atendendo agora ao
parecer fundamentado
da Administradora Judicial Provisória, é certo que a mesma enfatizou
«o resultado da votação dos credores, a representatividade da votação ao plano de recuperação da devedora»
, que
«foi expressiva, sendo também expressiva a representatividade dos votos a favor»
, que tomou
«como um índice atendível de confiança demonstrado pelos credores na viabilidade e recuperação da devedora, e da o capacidade negocial da devedora junto dos seus credores, e que os seus credores consideram que a devedora é suscetível de recuperação e/ou que será esse o cenário mais benéfico para a generalidade dos seus credores»
.
Contudo,
não estribou apenas nessa ponderação o seu juízo próprio
, já que, referindo-a (
«em face do exposto acerca da confiança dos credores da devedora, que expressaram a sua vontade na recuperação da devedora»
), afirmou expressamente atender também aos
«pressupostos do plano de revitalização da devedora e»
às
«perspetivas de revitalização expressas no mesmo»
, para afirmar considerar
«plausível que a devedora apresenta as condições necessárias para garantir a viabilidade da empresa»
; e por isso afirmou a existência das
«condições necessárias para garantir a viabilidade da empresa»
na conclusão do seu parecer.
Ora, estando o dito parecer
devidamente fundamentado
(ainda que por remissão para o teor do plano de revitalização que analisa), provindo de pessoa
especialmente habilitada com conhecimentos económico-financeiros necessários e adequados para o exercício da sua função
(onde, precisamente, se contém a análise do que seja «uma perspectiva razoável» de um concreto plano de recuperação evitar a insolvência da empresa apresentante e de garantir a sua viabilidade), beneficiando da
idoneidade reconhecida a um servidor da justiça e do direito
, e pressupondo-se a
absoluta independência e isenção com que actua
nos autos (art.º 12.º, n.º 1 e n.º 2, do Estatuto do Administrador Judicial, aprovado pela Lei n.º 22/2013, de 26 de Fevereiro), não se encontram razões (sem a adução de outros factos) para nos afastarmos daquele seu juízo.
*
Dir-se-á ainda que, se a aprovação do plano de revitalização por uma expressiva maioria de 97,68% dos
credores votantes
(constituindo estes 94,59%do seu universo total) não é
automático critério
de verificação dos seus pressupostos (particularmente, da recuperabilidade da empresa), certo é que também que não se pode desprezar essa expressiva manifestação de vontade como um
indício (seguro)
nesse sentido.
Com efeito, não será crível que uma tal percentagem de credores aceitasse a compressão do seu já reconhecido direito a uma mais rápida satisfação do respectivo crédito (a que lhes foi garantida pela aprovação do anterior plano de revitalização da Requente, em 2014), se não acreditasse ser possível, na hipótese inversa, a insolvência da Requerente (EMP01..., Limitada); e que, precisamente pela aprovação do plano de revitalização aqui em causa, a
mesma
poderá ser evitada e garantida a sua viabilidade
, sendo maior (ou mesmo exclusivo) o seu benefício neste cenário do que naquele outro.
*
Concluindo, sendo-nos pedido, não um juízo de certeza quanto ao afastamento da insolvência ou à garantia de viabilidade da Requerente (EMP01..., Limitada), mas apenas um
juízo de razoabilidade
, face ao teor do seu próprio plano de revitalização, ao parecer fundamentado da Administradora Judicial Provisória (não contrariado factualmente) e à posição expressivamente maioritária assumida pelos seus credores, tem-se por razoável que o plano de recuperação apresentado evite a sua insolvência e garanta a respectiva viabilidade.
*
4.3.3. Falta de junção das contas anuais relativas aos três últimos exercícios
Concretizando uma derradeira vez, a credora EMP02..., STC, S.A. defendeu igualmente a não homologação do plano de revitalização da Requerente (EMP01..., Limitada) porque a
«Devedora não juntou, designadamente, as contas anuais relativas aos três últimos exercícios, como estava, por lei, obrigada, o que configura a preterição de formalidade imposta pela lei»
.
Recorda-se que se lê no art.º 17.º-C, n.º 3, al. b), do CIRE, que a «empresa apresenta no tribunal competente para declarar a sua insolvência requerimento comunicando a manifestação de vontade referida no n.º 1, acompanhado», nomeadamente, de cópia «dos documentos elencados no n.º 1 do artigo 24.º, as quais ficam patentes na secretaria para consulta dos credores durante todo o processo»; e lê-se no art.º 24.º, n.º 1, al. f), do CIRE, que, tendo «o devedor contabilidade organizada», deverá juntar «as contas anuais relativas aos três últimos exercícios, bem como os respectivos relatórios de gestão, de fiscalização e de auditoria, pareceres do órgão de fiscalização e documentos de certificação legal, se forem obrigatórios ou existirem, e informação sobre as alterações mais significativas do património ocorridas posteriormente à data a que se reportam as últimas contas e sobre as operações que, pela sua natureza, objecto ou dimensão extravasem da actividade corrente do devedor».
Dir-se-á, comentando «a pertinência e a adequação das exigências legais», nomeadamente no momento inicial de introdução em juízo do processo de revitalização, «que a intenção do legislador foi, aparentemente, a de que o recurso ao PER seja levando (mais a sério)»: as «exigências formais têm o efeito positivo de todas as exigências formais, sendo obrigatoriamente precedido de actos de preparação, o acto material / principal é mais solene e, logo, presumivelmente, mais ponderado» (Catarina Serra,
Lições de Direito da Insolvência
, 2.ª edição, Almedina, Fevereiro de 2021, pág. 388).
Neste caso concreto da exigência de apresentação de «contas anuais relativas aos três últimos exercícios» privilegia-se ainda (ou sobretudo) a possibilidade de futura apreciação, pelos credores e pelo Tribunal, da pretensão da empresa requerente, nomeadamente se estão preenchidos os requisitos formais para a abertura do processo, ou se, num momento ulterior, o plano de revitalização apresentado é susceptível de evitar a sua insolvência e de garantir a sua recuperação.
*
Assente o regime legal a considerar neste concreto fundamento de recurso, dir-se-á que é certo e reconhecido nos autos que a Requerente (EMP01..., Limitada)
não juntou efectivamente
, com o seu requerimento inicial ou posteriormente,
«contas anuais relativas aos três últimos exercícios»
.
Contudo, isto significa que, estando-se perante o incumprimento de uma norma imperativa, «não pode ter lugar, em princípio, a (…) homologação» do plano de revitalização aprovado ? «Mas terá de ser exactamente assim ? Não será esta solução, por vezes, desproporcionada, sobretudo considerando o interesse da recuperação ?» (Catarina Serra,
Lições de Direito da Insolvência
, 2.ª edição, Almedina, Fevereiro de 2021, pág. 439).
*
Dir-se-á, então, que a Credora recorrente (EMP02... STC, S.A.)
não denunciou
, antes do recurso que apresentou,
essa omissão
, o que teria permitido que o Tribunal
a quo
tivesse convidado a Requerente (EMP01..., Limitada) a supri-la
[37]
.
Mais se dirá que a Credora requerente (EMP02... STC, S.A.) também não alegou que, tendo a Requerente (EMP01..., Limitada) junto outros e múltiplos documentos contabilísticos,
não conseguiu apurar dos mesmos a respectiva situação económico-financeira
, impedindo, por isso, que manifestasse de forma consciente e rigorosa o seu voto.
Aliás, as posições que foi assumindo nos autos (nomeadamente, no presente recurso),
demonstra precisamente o seu contrário
.
Dir-se-á ainda que, resultando da certidão permanente da Requerente (EMP01..., Limitada) que, à data da apresentação do presente processo especial, a mesma tinha
efectivamente prestadas e depositadas as ditas contas
, desse modo as tornando públicas, também não se pode ver na sua omissão qualquer tentativa (pelo menos eficaz) de encobrimento da sua respectiva situação económico-financeira.
Por fim, dir-se-á que seria de todo em todo desproporcionado, sobretudo considerando o interesse da recuperação, que um
único credor, que representa 0,57% dos créditos
da Requerente (EMP01..., Limitada), inviabilizasse a mesma, aprovada pelos restantes 97,68% dos credores votantes, invocando o
incumprimento de um requisito formal que não impactou minimamente a defesa eficaz dos seus interesses
nos autos; e que, por isso, se tem com uma violação
absolutamente negligenciável
da norma procedimental em causa.
*
Mostram-se, assim,
indemonstrados todos os fundamentos
invocados pela Credora recorrente (EMP02... STC, S.A.), para que se tenha por ilegal a homologação judicial da prévia aprovação do plano de revitalização apresentado pela Requerente (EMP01..., Limitada); e, por isso,
improcedente o recurso de apelação
que interpôs daquela decisão.
*
V - DECISÃO
Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em
julgar totalmente improcedente
o recurso de apelação interposto pela credora EMP02... STC, S.A. e, em consequência, em:
·
Confirmar integralmente a sentença recorrida
que homologou o plano de revitalização de EMP01..., Limitada
.
*
Custas da apelação pela Recorrente (art.º 527.º, n.º 1 e n.º 2, do CPC).
*
Guimarães, 06 de Março de 2025.
O presente acórdão é
assinado electronicamente
pelos respectivos
Relatora -
Maria João Marques Pinto de Matos;
1.º Adjunto -
José Carlos Pereira Duarte;
2.ª Adjunta -
Rosália Cunha.
[1]
«Trata-se, aliás, de um entendimento sedimentado no nosso direito processual civil e, mesmo na ausência de lei expressa, defendido, durante a vigência do Código de Seabra, pelo Prof. Alberto dos Reis (in Código do Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 359) e, mais tarde, perante a redação do art. 690º, do CPC de 1961, pelo Cons. Rodrigues Bastos, in Notas ao Código de Processo Civil, Vol. III, 1972, pág. 299» (Ac. do STJ, de 08.02.2018,
Maria do Rosário Morgado
, Processo n.º 765/13.0TBESP.L1.S1, nota 1 -
in
www.dgsi.pt
, como todos os demais citados sem indicação de origem).
[2]
Neste sentido, numa jurisprudência constante, Ac. da RG, de 07.10.2021,
Vera Sottomayor
, Processo n.º 886/19.5T8BRG.G1, onde se lê que questão nova, «apenas suscitada em sede de recurso, não pode ser conhecida por este Tribunal de 2ª instância, já que os recursos destinam-se à apreciação de questões já levantadas e decididas no processo e não a provocar decisões sobre questões que não foram nem submetidas ao contraditório nem decididas pelo tribunal recorrido».
[3]
No mesmo sentido, Alexandre de Soveral Martins,
Um Curso de Direito da Insolvência
, 2.ª edição, Almedina, Janeiro de 2016, pág. 48; Maria do Rosário Epifânio,
Manual de Direito da Insolvência
, 2016, 6.ª Edição, Almedina, págs. 22 e 23; e Catarina Serra,
Lições de Direito da Insolvência
, 2.ª edição, Almedina, Fevereiro de 2021, págs. 55 e 56.
Na jurisprudência, Ac. da RL, de 20.05.2015,
Farinha Alves
, Processo n.º 2509/09.1TBPDL-2; e Ac. da RL, de 13.07.2010,
Márcia Portela
, Processo n.º 863/10.1TBALM.L1-6.
[4]
No mesmo sentido,
Marco Carvalho Gonçalves,
Processo de Insolvência e Processos Pré-Insolvenciais
, Almedina, Outubro de 2023, pág. 83, onde se lê que «pode bem suceder que o passivo do devedor seja superior ao seu ativo, mas o devedor, mesmo assim, tenha total capacidade para solver os seus débitos. É o que sucede, por exemplo, se o devedor goza de liquidez ou se tem facilidade de recorrer ao crédito».
Paralelamente, pode ocorrer que, apesar de ter um ativo superior ao passivo, o devedor se encontrar, ainda assim, impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas, pelo facto de não beneficiar da liquidez necessária para o efeito».
Na jurisprudência, Ac. da RC, de 18.10.2011,
Fonte Ramos
, Processo n.º 4261/10.9TJCBR-A.C1, onde se lê que, «será de concluir pela situação de insolvência se, não obstante a existência de um ativo superior ao passivo, a pessoa coletiva não consegue movimentar esse ativo para fazer face às suas obrigações vencidas - a existência de um ativo contabilisticamente superior ao passivo, enquanto elemento de exclusão da situação de insolvência, só releva se ilustrar uma situação de viabilidade económica, passando esta pela capacidade de gerar excedentes aptos a assegurar o cumprimento da generalidade das obrigações no momento do seu vencimento».
[5]
Estará aqui em causa, nomeadamente, o sistema de normalização contabilística aprovado pelo Decreto-Lei n.º 158/2009, de 13 de Julho.
[6]
Contudo, a mesma autora e no mesmo local faz notar que nem sempre assim sucederá, nomeadamente quando «existam outros patrimónios responsáveis (…) por vias alternativas (responsabilidade directa dos sócios quotistas, fianças ou avales de sócios ou de terceiros)», já que então «estas entidades não terão dificuldade em obter crédito»; e conseguirão, por isso, «evitar a impossibilidade de cumprimento, não obstante a sua situação deficitária».
Reconhece, porém, que «a verdade é que o texto do art. 3.º, n.º 2, não deixa margem para distinções ou ressalvas».
[7]
Neste sentido:
.
Catarina Serra,
Lições de Direito da Insolvência
, 2.ª edição, Almedina, Fevereiro de 2021, pág. 58 - onde se lê que, advirta-se, «porém, que não é qualquer discrepância (ou seja, uma discrepância ligeira) entre o activo e o passivo que releva para estes efeitos, devendo o advérbio “manifestamente” ser interpretado como sinónimo de “significativamente” e não de “ostensivamente”. Com efeito, não é qualquer situação de superioridade (porventura passageira) do passivo face ao activo mas apenas as situações graves (e tendencialmente irreversíveis) que justificam a tutela do Direito da Insolvência».
.
Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda,
Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa Anotado
, 2015 - 3.ª Edição, Quid Juris, Lisboa, págs. 88 e 89 - onde se lê que, como «facilmente se prova pelo que consta do n.º 3, o advérbio usado no texto legal -
manifestamente -
vale aqui como sinónimo de
expressivamente
e não, como também poderia pensar-se, no sentido de algo que é patente».
[8]
No mesmo sentido:
.
Ac. da RE, de 07.03.2013,
Maria Alexandra M. Santos,
Processo n.º 785/12.1T2STC.E1 - onde se lê que a «relação entre o activo e o passivo não se basta com qualquer défice do activo. Exige-se uma desconformidade significativa, traduzida na superioridade manifesta, expressiva, do passivo sobre o activo».
.
Ac. da RC, de 28.04.2015,
Carlos Moreira,
Processo n.º 6275/14.0TBCBR-A.C1 - onde se lê que a «superioridade do passivo sobre o ativo - al h) do nº1 do artº 20º do CIRE -, não pode ser qualquer uma, tendo de ser
manifesta
, ou seja: evidente, substancial, crassa, ie., com uma dimensão tal que clame um juízo de certeza, quase certeza, ou de inequívoca plausibilidade, quanto à inelutabilidade da insolvência».
[9]
Compreende-se, por isso, que, no ordenamento jurídico alemão - que igualmente consagra como critério de insolvência de pessoas colectivas o sobreendividamento (Überschuldung), que ocorre nas situações em que os ativos do devedor deixam de ser suficientes para cobrir o seu passivo -, se excepcionem as situações em que, de acordo com as circunstâncias, for altamente provável que a empresa continue a sua atividade durante os próximos doze meses».
[10]
Afirma-se, por isso, que,
«em termos económicos, uma empresa considera-se (economicamente) falida quando o seu valor de mercado, na óptica da continuidade da exploração da sua actividade económica for menor do que o valor agregado de venda dos seus activos individualmente no mercado. Nestas circunstâncias, a decisão economicamente eficiente é a liquidação da empresa e a consequente afectação dos seus activos a outro fim» (Mário João Coutinho dos Santos, «Algumas notas sobre os aspectos económicos da insolvência da empresa»,
DJ
, 19 (2025), 2, págs. 181-189).
[11]
Neste sentido:
.
Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda,
Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa Anotado
, 2015 - 3.ª Edição, Quid Juris, Lisboa, pág. 92 - onde se lê que, em «todo o caso, não deixa de ser grande a margem de subjetivismo remanescente, o que não parece bom conselho numa área de tanto melindre e onde se congregam e jogam interesses tão relevantes»; mas ficam, «como salvaguarda, por um lado, o prudente arbítrio do julgador, a quem cabe, em definitivo, o poder de decidir e, por outro, num diferente patamar, a possibilidade de ser requerida a insolvência com fundamento na efetiva insusceptibilidade de cumprimento das obrigações, presumida pela ocorrência de algum dos fatores índices enunciados no n.º 1 do art.º 20.º»..
.
Marco Carvalho Gonçalves,
Processo de Insolvência e Processos Pré-Insolvenciais
, Almedina, Outubro de 2023, pág. 102 - onde se lê que «a lei exige que o passivo exceda o ativo de forma “manifesta”, o que confere, portanto, ao julgador a flexibilidade necessária para ajuizar, em função das particularidades do caso concreto, se o devedor está ou não em situação de insolvência».
[12]
Com efeito, e conforme referido supra, a superioridade do activo face ao passivo não exclui necessariamente uma situação de insolvência, já que «será de concluir pela» mesma (…) se, não obstante a existência de um ativo superior ao passivo, a pessoa coletiva não consegue movimentar esse ativo para fazer face às suas obrigações vencidas - a existência de um ativo contabilisticamente superior ao passivo, enquanto elemento de exclusão da situação de insolvência, só releva se ilustrar uma situação de viabilidade económica, passando esta pela capacidade de gerar excedentes aptos a assegurar o cumprimento da generalidade das obrigações no momento do seu vencimento» Na jurisprudência, Ac. da RC, de 18.10.2011,
Fonte Ramos
, Processo n.º 4261/10.9TJCBR-A.C1, onde se lê que,.
[13]
Neste sentido, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda,
Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa Anotado
, 2015 - 3.ª Edição, Quid Juris, Lisboa, pág. 90; Maria do Rosário Epifânio,
Manual de Direito da Insolvência
, 2016, 6.ª edição, Almedina, Março de 2016, pág. 25; ou Marco Carvalho Gonçalves,
Processo de Insolvência e Processos Pré-Insolvenciais
, Almedina, Outubro de 2023, págs. 101 e 102.
[14]
Neste sentido, Luís Manuel Teles de Menezes Leitão Menezes,
Direito da Insolvência
, 2011, 3.ª edição, Almedina, págs. 83 e seguintes.
[15]
São as mesmas:
«a) Suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas;
b) Falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações;
c) Fuga do titular da empresa ou dos administradores do devedor ou abandono do local em que a empresa tem a sede ou exerce a sua principal actividade, relacionados com a falta de solvabilidade do devedor e sem designação de substituto idóneo;
d) Dissipação, abandono, liquidação apressada ou ruinosa de bens e constituição fictícia de créditos;
e) Insuficiência de bens penhoráveis para pagamento do crédito do exequente verificada em processo executivo movido contra o devedor;
f) Incumprimento de obrigações previstas em plano de insolvência ou em plano de pagamentos, nas condições previstas na alínea a) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo 218.º;
g) Incumprimento generalizado, nos últimos seis meses, de dívidas de algum dos seguintes tipos:
i) Tributárias;
ii) De contribuições e quotizações para a segurança social;
iii) Dívidas emergentes de contrato de trabalho, ou da violação ou cessação deste contrato;
iv) Rendas de qualquer tipo de locação, incluindo financeira, prestações do preço da compra ou de empréstimo garantido pela respectiva hipoteca, relativamente a local em que o devedor realize a sua actividade ou tenha a sua sede ou residência;
h) Sendo o devedor uma das entidades referidas no n.º 2 do artigo 3.º, manifesta superioridade do passivo sobre o activo segundo o último balanço aprovado, ou atraso superior a nove meses na aprovação e depósito das contas, se a tanto estiver legalmente obrigado».
[16]
Esta disciplina viria depois a ser pontualmente alterada pelo
Decreto-Lei n.º 79/2017, de 30 de Junho
, que introduziu outras relevantes alterações ao CIRE (nomeadamente, aditando-lhe os arts. 222.º-A a 222.º-J, pertinentes ao processo especial para acordo de pagamento, destinado exclusivamente a pessoas singulares não titulares de empresa ou comerciantes).
De acordo com o seu Preâmbulo, apostou-se «na credibilização do processo especial de revitalização (PER) enquanto instrumento de recuperação», reforçando-se igualmente «a transparência e a credibilização do regime», desenhado definitivamente enquanto «dirigido às empresas», deixando então de haver qualquer dúvida quanto a ser o mesmo exclusivo destas.
[17]
O
Sistema de Recuperação de Empresas por Via Extra-Judicial
- doravante SIREVE - foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º 178/2012.
[18]
No mesmo sentido, Luís Menezes Leitão,
Direito da Insolvência
, 2013 - 5.ª Edição, Almedina, onde a pág. 72 refere que a introdução deste novo processo especial «não vem só por si destruir a filosofia geral do Código, assente, como se referiu, no sistema de falência-liquidação, mas não há dúvida que a atenua em parte».
[19]
Neste sentido, Catarina Serra,
Lições de Direito da Insolvência
, 2.ª edição, Almedina, Fevereiro de 2021, pág. 60, e onde (citando doutrina conforme) se lê que a «insolvência iminente não está definida na lei portuguesa. Isto agrava as dificuldades em que se encontra o intérprete do Direito, que já tem de se confrontar com a natureza, por si só, indefinida da situação e com o encargo do seu reconhecimento na prática. Apesar de tudo, foi-se generalizando, na doutrina e na jurisprudência, a noção de que a insolvência iminente é a situação em que é possível prever/antever que o devedor estará impossibilitado de cumprir as suas obrigações num futuro próximo, designadamente quando se vencerem estas obrigações».
Refere ainda, a pág. 61, que a «intenção do legislador português com a introdução deste pressuposto é, seguramente, a de promover o uso de meios antecipados de evitar o “dano da insolvência”.
[20]
No mesmo sentido:
.
Luís M. Martins,
Recuperação de Pessoas Singulares
, Volume I, 2.ª edição, Almedina, Maio de 2022, págs. 20 a 21 - onde se lê que o «conceito de insolvência iminente é aberto e indefinido, implicando uma análise concreta da situação do devedor (tipo de obrigações que se vão vencer, incapacidade de recurso a crédito …). Esta situação passa sempre por uma previsão futura sobre a insuficiência económica e sua incapacidade de, a curto prazo, vir a realizar e honrar as obrigações assumidas e ainda não vencidas.
A situação de insolvência iminente é conjecturada quando o devedor, de acordo com os critérios do homem comum ou um gestor criterioso e empenhado, sabe e não pode desconhecer que não conseguirá ir a honrar as obrigações assumidas a curto prazo».
.
Maria do Rosário Epifânio,
Manual de Direito da Insolvência
, 2016, 6.ª edição, Almedina, Março de 2016, pág. 26 - onde se lê que, sendo o art.º 17.ºA, n.º 1, do CIRE «um preceito muito pouco esclarecedor», não contendo «qualquer critério auxiliar de interpretação do sentido e alcance da “insolvência iminente”», «parece lícito afirmar que a iminência da insolvência consiste na probabilidade de o devedor não cumprir as suas obrigações atuais, no momento em que se vençam»; e ser «decisiva para esta aferição (…) a projeção da sua capacidade de pagamento num determinado espaço temporal, devendo concluir-se que a probabilidade de incumprimento é mais forte do que a sua não verificação.
Há, portanto, um juízo de prognose sobre a incapacidade de pagamento futura do devedor que deve ser feito num plano financeiro de liquidez que evidencie quer os meios líquidos existentes, quer as entradas e saídas previstas. Deve-se, relativamente a um determinado período, aferira diferença entre os meios disponíveis e esperados de pagamentos (por entrada, computando-se aqui as possibilidades futuras de crédito) e as saídas previstas (nas saídas deve-se considerar as dívidas ou responsabilidades futuras mas ainda não constituídas). Muito embora ainda não tenha sido possível determinar com rigor o período temporal relevante para a realização deste juízo de prognose (o qual, aliás, deve ser fixado caso a caso), tem-se apontado para, como mínimo, o período de um ano»,
[21]
No mesmo sentido, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda,
Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa Anotado
, 2015 - 3.ª Edição, Quid Juris, Lisboa, pág. 143 e 144, onde se lê que não «custa aceitar que a situação económica difícil, observada em sentido amplo, como, afinal de contas, sucede neste art.º 17.º-B, consome a situação de insolvência iminente. Por outras palavras, a situação de insolvência iminente consubstancia uma situação de dificuldade económica especialmente agravada, a tal ponto que cria, a quem a sofre, uma contingência de rutura, que não só está prestas a acontecer como, mais do que isso, sucederá com toda a probabilidade se não interferir nenhuma ocorrência atípica, seja ela extraordinária e inesperada ou resultante de uma intervenção voluntária dirigida a paralisá-la.
Doutra maneira, a situação económica difícil e a insolvência iminente, se bem que não inexoravelmente sucessivas, constituem-se como etapas de um mesmo percurso, de degradação da via económica de uma entidade, projetando a segunda já um estádio de comum irreversibilidade, salvo a interferência de um fenómeno de superação que não se contém no exclusivo poder do afetado».
[22]
Contudo, e a propósito, Catarina Serra pergunta «a quem cabe a certificação da recuperabilidade da empresa», fazendo notar que sendo ela «(também) um pressuposto do processo», «todavia não é objeto de certificação pelo contabilista certificado ou pelo ROC» (
in
Lições de Direito da Insolvência
, 2.ª edição, Almedina, Fevereiro de 2021, pág. 388).
[23]
Enfatiza-se que a «existência de uma proposta é um sinal da seriedade das intenções da empresa e dos credores», mas a exigência da lei limita-se aqui a «uma mera proposta, que terá de ser, a prazo, substituída pela /convertida na versão final do plano, nos termos e para os efeitos do art.º 17.º-E, nºs 1, 2 e 3».
Já a «exigência de elementos que descrevam a situação patrimonial, financeira e reditícia da empresa (…) pode ser vista como um reflexo antecipado da aplicabilidade do disposto no art. 195.º, n.º 2. al.
a)
(conteúdo do plano de insolvência), ao plano de recuperação do PER (cfr. art. 17.º-F, n.º 1)» (Catarina Serra,
Lições de Direito da Insolvência
, 2.ª edição, Almedina, Fevereiro de 2021, pág. 389).
[24]
Discriminam-se assim as obrigatórias informações a constar do plano:
«a) A identificação da empresa, indicando o seu nome ou firma, sede, número de identificação fiscal ou número de identificação de pessoa coletiva, e do administrador judicial provisório nomeado;
b) A descrição da situação patrimonial, financeira e reditícia da empresa no momento da apresentação da proposta do plano de recuperação, indicando, nomeadamente, o valor dos ativos, e fazendo uma descrição da situação económica da empresa;
c) No caso previsto no n.º 4 do artigo 17.º-C, as partes afetadas pelo conteúdo do plano, designadas a título individual e repartidas por classes de créditos nos termos do artigo 47.º, e os respetivos créditos ou interesses abrangidos pelo plano de recuperação;
d) As partes afetadas pelo conteúdo do plano, designadas a título individual e, se aplicável, repartidas pelas categorias em que tenham sido agrupadas para efeitos de aprovação do plano de recuperação nos termos da alínea d) do n.º 3 do artigo 17.º-C, e os valores respetivos dos créditos e interesses de cada categoria abrangidos pelo plano de recuperação;
e) As partes, designadas a título individual, repartidas, consoante o caso, por classes nos termos gerais ou por categorias nos termos da alínea d) do n.º 3 do artigo 17.º-C, que não são afetadas pelo plano de recuperação, juntamente com uma descrição das razões pelas quais o plano proposto não as afeta;
f) As condições do plano de reestruturação, incluindo, em especial, as medidas de reestruturação propostas e sua duração;
g) As formas de informação e consulta dos representantes dos trabalhadores, a posição dos trabalhadores na empresa e, se for caso disso, as consequências gerais relativamente ao emprego, designadamente despedimentos, redução temporária dos períodos normais de trabalho ou suspensão dos contratos de trabalho;
h) Os fluxos financeiros da empresa previstos, incluindo designadamente plano de investimentos, conta de exploração previsional e demonstração previsional de fluxos de caixa pelo período de ocorrência daqueles pagamentos, especificando, fundamentadamente, os principais pressupostos subjacentes a essas previsões e o balanço pró-forma, em que os elementos do ativo e do passivo, tal como resultantes da homologação do plano de recuperação, são inscritos pelos respetivos valores;
i) Qualquer novo financiamento previsto no âmbito do plano de recuperação e as razões pelas quais esse novo financiamento é necessário para executar o plano;
j) Uma exposição de motivos que contenha a descrição das causas e da extensão das dificuldades da empresa e que explique as razões pelas quais há uma perspetiva razoável de o plano de recuperação evitar a insolvência da empresa e garantir a sua viabilidade, incluindo as condições prévias necessárias para o êxito do plano».
[25]
Enfatiza-se que, no «plano de insolvência regista-se do ponto de vista funcional uma grande diferença relativamente ao PER», já que, enquanto que naquele «a empresa pode passar para o domínio e direção de terceiros, no PER a empresa continua necessariamente sob o controlo do devedor» (Paulo Olavo Cunha, «A Recuperação de Sociedades no Contexto do PER e da Insolvência»,
Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Carlos Pamplona Corte Real
, Almedina, 2016, pág. 841.
[26]
Contudo, e apesar de no PER os poderes do juiz serem limitados (mercê da atribuição, aos credores e ao administrador judicial provisório, de poderes de controlo do processo negocial e da actuação do devedor), certo é que não deixa de consubstanciar um
processo judicial
: a opção do legislador de não o desjudicializar por completo, atribuindo ao juiz o papel de garante da legalidade, compreende-se pelas implicações para os direitos dos credores da sua instauração do processo, e bem assim por ser a única forma de atribuir eficácia reforçada ao plano de recuperação.
[27]
Pronunciando-se sobre o controlo judicial dos pressupostos de recurso ao processo especial de revitalização e respectiva extensão (em fase liminar e na sentença de homologação do plano): Ac. da RP, de 15.11.2012,
Cardoso Amaral
, Processo n.º 1457/12.2TJPRT-A.P1; Ac. da RG, de 16.05.2013,
Conceição Bucho
, Processo n.º 284/13.4TBEPS-A.G1; Ac. da RC, de 07.10.2013,
Carlos Moreira
, Processo n.º 754/13.4TBLRA.C1; Ac. da RE, de 13.09.2013,
Paulo Amaral
, Processo n.º 326/13.3TBSTR.E1; Ac. da RG, de 20.02.2014,
Moisés Silva
, Processo n.º 8/14.9TBGMR.G1; Ac. da RC, de 19.01.2015,
Fernando Monteiro
, Processo n.º 9425/15.6T8CBR.C1; Ac. da RC, de 05.05.2015,
Alexandre Reis
, Processo n.º 996/15.8T8CRA-A.C1; Ac. da RL, de 16.06.2015,
Graça Amaral
, Processo n.º 811/15.2T8FNC-A.L1-7; Ac. do STJ, de 03.11.2015,
José Raínho
, Processo n.º 1690/14.2TJCBR.C1.S1; Ac. da RG, de 17.12.2015,
António Santos
, Processo n.º 3245/14.2T8GMR.G1; Ac. da RC, de 14.06.2016,
Fonte Ramos,
Processo n.º 4023/15.7T8LRA.C1; Ac. do STJ, de 27.10.2016,
José Raínho
, Processo n.º 741/16.0T8LRA-A.C1.S1; Ac. da RE, de 16.09.2019,
Manuel Bargado,
Processo n.º 370/19.7T8STB.E1; ou Ac. do STJ, de 09.06.2021,
Ana Paula Boularot
, Processo n.º 1267/19.6T8STS.P1.S1.
[28]
Pronunciando-se sobre o controlo judicial dos pressupostos de recurso ao processo especial de revitalização e respectiva extensão (em fase liminar e na sentença de homologação do plano): João Aveiro Pereira,
O Direito,
145 (2013) I-II, pág. 36; Nuno Salazar Casanova e David Sequeira Dinis,
O processo especial de revitalização - Comentário aos artigos 17.ºA a 17.º-I do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas
, Coimbra Editora, Coimbra, 2014, pág. 17; Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda,
Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa Anotado
, 2015 - 3.ª Edição, Quid Juris, Lisboa, págs.146 e 147; Luís Manuel Teles de Menezes Leitão,
Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado
, 2015 - 8.ª Edição, Almedina, Julho de 2015, pág. 72; Alexandre de Soveral Martins,
Um Curso de Direito da Insolvência,
2016 - 2.ª Edição, Almedina, Janeiro de 2016, págs. 512 e 513; Maria do Rosário Epifânio,
O Processo Especial de Revitalização
, 2015, Almedina, pág. 23; ou Catarina Serra,
Lições de Direito da Insolvência
, 2.ª edição, Almedina, Fevereiro de 2021, págs. 389, 390, e 392 a 394.
[29]
No mesmo sentido, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda,
Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado
, reimpressão, Quid Juris, 2009, pág. 759, onde se lê que, verdadeiramente, «só na ponderação de cada espécie concreta, nas suas vicissitudes próprias, será possível formar um juízo apropriado, sendo facilmente imaginável que propostas de conteúdo idêntico, plausíveis de admissão em certas circunstâncias, não o sejam, porém, noutras diferentes».
[30]
Com efeito, antes da reforma operada pela Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro, defendia-se, expressa e claramente, que o controlo realizado pelo juiz era de legalidade, e não de mérito, nomeadamente:
.
no despacho liminar - sem «cuidar de saber se a solução da lei, acolhida neste art.º 207.º [o «juiz não admite a proposta de plano de insolvência» quando «o plano for manifestamente inexequível»], é ou não a melhor, julgamos poder dizer que ela traduz um desvio na linha estratégia da anunciada desjucialização, exactamente porque (…) comete necessariamente ao juiz uma tarefa de sindicação do mérito que vai muito para além do que consubstancia o normal exercício dos poderes jurisdicionais de dirimência e de controlo da legalidade da actividade desenvolvida no processo» (Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda,
Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado
, reimpressão, Quid Juris, 2009, págs. 758 e 759).
.
na sentença de homologação de plano de revitalização aprovado -
«
que a recusa oficiosa de homologação não pode ser fundada em discordância do juiz quanto ao mérito do que foi aprovado. O juiz não pode recusar a homologação, por exemplo, por achar que no caso concreto seria mais adequado liquidar em vez de recuperar ou porque certa medida de recuperação teria, na sua opinião, mais sucesso do que a adotada» (Alexandre de Soveral Martins,
Um Curso de Direito da
Insolvência
, 2016 - 2ª edição revista e actualizada, Almedina, Janeiro de 2016, pág. 495).
[31]
No mesmo sentido, Fátima Reis Silva, «As Alterações ao Processo especial de Revitalização: um novo processo»,
in
https://justica.gov.pt/Portals/0/Ficheiros/Organismos/JUSTICA/E-bookCONF-PRR-VF2.pdf
.
[32]
No mesmo sentido, Fátima Reis Silva, «As Alterações ao Processo especial de Revitalização: um novo processo»,
in
https://justica.gov.pt/Portals/0/Ficheiros/Organismos/JUSTICA/E-bookCONF-PRR-VF2.pdf
, pág. 40.
[33]
Neste sentido, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda,
Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado
, Quid Juris, 2017, pág. 713.
[34]
No mesmo sentido, Ac. da RC, de 27.06.2017,
Isaías Pádua,
Processo n.º 8389/16.3T8CBR.C1, onde se lê que normas procedimentais «são todas aquelas que regem a actuação a desenvolver no processo, que incluem os passos procedimentais que nele devem ser dados até que os credores decidam sobre as propostas que lhes foram apresentadas - incluindo, assim, as regras que disciplinam as negociações a encetar entre os credores e o devedor e as regras que regulam a aprovação e votação do plano - e, bem assim, as relativas ao modo como o plano deve ser elaborado e apresentado».
[35]
No mesmo sentido, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda,
Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado
, Quid Juris, 2017, págs. 781 e 782, onde afirmam que «não negligenciáveis todas as violações de normas imperativas que acarretem a produção de um resultado que a lei não autoriza» e são «desconsideráveis as infrações que atinjam simplesmente regras de tutela particular que podem, todavia, ser afastadas com o consentimento do protegido». Logo, tratando-se verdadeiramente «de avaliar a relevância, ou não, da violação constatada», é «razoável atender ao critério geral que a própria lei processual utiliza no art.º 195.º do C.P.Civ.».
[36]
No mesmo sentido, Alexandre de Soveral Martins,
Um Curso de Direito da Insolvência
, 2016 - 2ª edição revista e actualizada, Almedina, Janeiro de 2016, pág. 495, onde se lê «que será não negligenciável a violação que põe em causa as finalidades da norma violada».
[37]
Neste sentido, Catarina Serra,
Lições de Direito da Insolvência
, 2.ª edição, Almedina, Fevereiro de 2021, pág. 390, onde se lê que, quando «os vícios sejam sanáveis, como, em princípio, sucede nos casos descritos, é razoável que a empresa seja convidada ao respectivo aperfeiçoamento, ao abrigo do art. 27.º, n.º 1, al. b), aplicável ao PER. Mas se, não obstante o convite, o incumprimento permanecer, não resta ao juiz senão recusar o despacho de abertura».
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TRG
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https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/9e0cc0b3affaba3e80258c4d0033df44?OpenDocument
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1,754,352,000,000
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REVOGADA PARCIALMENTE A DECISÃO
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392/04.2TBLGS-F.E1
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392/04.2TBLGS-F.E1
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MARIA ADELAIDE DOMINGOS
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Sumário:
I. Se a parte demandada (embargada) não tiver sido identificada na petição inicial de embargos de terceiro, mas o tiver sido no formulário previsto na Portaria n.º 280/2013, de 26-08, na redação dada pela Portaria n.º 267/2018, de 20-09, atento o disposto no seu artigo 7.º, n.º 2 e 3, prevalece o conteúdo do formulário sobre o conteúdo dos seus anexos, sem prejuízo da parte requerer ou o juiz oficiosamente determinar a correção da informação.
II. Donde, a petição inicial, não tendo sido rejeitada pela secretaria, deve se objeto de convite ao aperfeiçoamento e não de indeferimento liminar.
III. O despacho liminar proferido em sede de embargos de terceiro, não impõe a enunciação de factos provados e não provados, nem constitui uma decisão-surpresa a justificar a precedência do prévio cumprimento do princípio do contraditório.
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[
"EMBARGOS DE TERCEIRO",
"INDEFERIMENTO LIMINAR",
"CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO",
"CONTRADITÓRIO"
] |
Processo n.º 392/04.2TBLGS-F.E1 (Apelação)
Tribunal recorrido: TJ Comarca de Faro, Juízo de Execução de Silves – J2
Apelante: AA
Apelados: Arrow Global Limited, S.A. e outros
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Évora
I – RELATÓRIO
Por Apenso ao processo de execução sumária que corre termos no Juízo de Execução de Silves, sob o n.º 392/04.2TBLGS, em que são Exequentes ARROW GLOBAL LIMITED, S.A. e Executados BB e BESSETERRE LIMITED, veio
AA
, ao abrigo dos artigos 342.º e 350.º do Código de Processo Civil (CPC) deduzir embargos de terceiro com função preventiva pedindo, a final, que a execução seja sustada ao abrigo do artigo 347.º do CPC.
Para o efeito alegou, em suma, que
«é possuidor e é titular do direito potestativo de aquisição, por acessão industrial imobiliária, da propriedade dos prédios»
urbanos que identifica no artigo 5.º, alíneas a) a d) da p.i. de embargos, por ter construído o 1.º andar das edificações existentes e arranjado o r/ch, tendo ali realizado investimentos de €450,000,00 e de €550.000,00, sendo que antes os imóveis tinham o valor de €49.790,21.
Mais alega que intentou ação declarativa contra a BESSETERRE LIMITED a invocar a usucapião e que há cerca de 30 anos que foi paga a hipoteca existente sobre a casa.
Ademais, tomou conhecimento da penhora e venda agendada dos prédios ao abrigo dos presentes autos e como terceiro de boa-fé, ao abrigo do artigo 291.º do Código Civil (CC), também reivindica o direito de retenção sobre os imóveis, atento o investimento realizado.
Por decisão proferida em 02-09-2024, ao abrigo dos artigos 5.º, 186.º, n.º 1 e 2, alínea a) e 345.º e 552.º, n.º 1, alínea a), do CPC, foram os embargos de terceiro rejeitados liminarmente.
Inconformado, apelou o Embargante defendendo a revogação da decisão recorrida, apresentando para o efeito as seguintes CONCLUSÕES:
«1. O Embargante, ora Recorrente deduziu os presentes embargos de terceiro.
2. Por sentença datada de 02-09-2024 o tribunal “a quo” indeferiu liminarmente os presentes embargos.
3. O embargante, ora recorrente não se conforma com a sentença recorrida que indeferiu liminarmente, por ineptidão da petição inicial.
4. A sentença recorrida viola assim o disposto no artigo 552.º, n.º 1, alínea a) do CPC.
5. Não se verificando nenhuma das causas da ineptidão da sentença.
6. A sentença recorrida ao declarar ineptidão a petição inicial violou o disposto no artigo 186.º e 552.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Civil.
7. A sentença recorrida viola ainda o princípio da cooperação disposto no artigo 7.º e o artigo 590.º, n.º 4 ambos do Código de Processo Civil, uma vez que o tribunal “a quo” ao abrigo daquilo que é o princípio da cooperação não convidou a parte a suprir as deficiências e/ou imprecisões da petição inicial.
8. Devendo ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida, concedendo-se prazo para o ora Embargante aperfeiçoar a sua petição inicial, seguindo os autos os seus termos ulteriores.
9. Devendo ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida, seguindo os autos os seus termos ulteriores.
10. Sem prescindir, o tribunal “a quo” proferiu a sentença recorrida sem que tivesse sido produzida alguma prova, realizada audiência prévia ou proferido despacho saneador.
11. Em violação do vertido no artigo 345.º do Código de Processo Civil que consagra
que na fase introdutória dos embargos são realizadas todas as diligências probatórias necessárias e bem assim o disposto nos artigos 590.º e seguintes do Código de Processo Civil.
12. A decisão recorrida viola ainda o disposto no artigo 3.º n.º 3 do Código de Processo Civil e de modo geral, o princípio do contraditório, constituindo uma decisão surpresa que é atentatória do princípio do processo justo e equitativo, garantido no n.º 4 do citado art.º 20.º, da Constituição da República Portuguesa e o dever de motivação da matéria de facto, dado que a complexidade da mesma impunha que o tribunal “ a quo” ouvisse e produzisse a prova testemunhal indicada.
13. A sentença recorrida é nula, nos termos do 615.º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Civil na medida em que o tribunal “ a quo” não deveria ter proferido a sentença sem realizar audiência de discussão e julgamento e sem produzir a prova testemunhal indicada.
14. Veja-se a este propósito o vertido no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, processo n.º 1386/13.2TBALQ.L1-7, datado de 05-05-2015, disponível em www.dgsi.pt.
15. Motivos pelos quais deverá a sentença recorrida ser revogada por violação do disposto nos artigos 3.º, 345.º, 590.º e seguintes todos do Código de Processo Civil, da nossa jurisprudência dominante dos princípios do processo justo e equitativo, garantidos no n.º 4 do citado artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.
16. O embargante, ora recorrente não se conforma com a sentença recorrida porquanto o tribunal “a quo” cometeu erro de julgamento sobre a matéria de facto, pois os elementos de prova apresentados com os embargos impunham decisão diversa.
17. Sendo a sentença totalmente omissa quanto aos factos dados como provados e como não provados.
18. Desconhecendo-se em absoluto e sendo a sentença recorrida totalmente omissa quanto ao critério da selecção da matéria de facto dada como provada e como não provada.
19. O tribunal “a quo” não atendeu correctamente aos elementos de prova juntos aos autos.
20. Termos em que e por violação do disposto nos artigos 342º, 343º, 345º, 347º e 348º, nº 1 do Código de Processo Civil deverá a sentença recorrida ser revogada e consequentemente deverá ser proferida outra que julgue os presentes embargos totalmente procedentes por provados.
21. E bem assim por a sentença recorrida se encontrar ferida de nulidade nos termos do disposto no artigo 615.º do Código de Processo Civil.»
Na resposta ao recurso, a Embargada ARROW GLOBAL LIMITED defendeu a confirmação do decidido.
II- FUNDAMENTAÇÃO
A.
Objeto do Recurso
Considerando as conclusões das alegações, as quais delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC), não estando o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC), no caso, impõe-se apreciar:
1.ª Questão: Se a decisão recorrida ao decretar a ineptidão da p.i. violou os artigos 186.º e 522.º, n.º 1, alínea a), do CPC.
2.ª Questão: Se a decisão recorrida é nula por violação do artigo 615.º, n.º 1, alíneas b), c) e d), do CPC.
B- De Facto
Os factos e ocorrências processuais relevantes para o conhecimento do recurso constam do antecedente Relatório.
C.
Do Conhecimento das questões suscitadas no recurso
1.ª Questão: Se a decisão recorrida ao decretar a ineptidão da p.i. violou os artigos 186.º e 522.º, n.º 1, alínea a), do CPC
1. Lê-se na decisão recorrida:
«No presente caso, os embargos de terceiro foram deduzidos sem que fosse indicado quem são os requeridos.
Ora, a petição é inepta, pois não indica quais são as partes – artigo 552.º, n.º1, al. a), do Código de Processo Civil.»
O Apelante insurge-se contra este segmento da decisão recorrida alegando que o tribunal
a quo
violou as normas que cita, aduzindo no corpo da motivação que no
«formulário do sistema citius foram identificadas todas as partes, o que deveria ter sido valorado pelo tribunal “a quo” e não o foi».
No mais, invoca que a falta de indicação das partes não constitui nulidade da p.i. por tal circunstância não se encontrar mencionada no artigo 186.º, n.º 2, do CPC e que, quanto muito, deveria ter sido proferido convite ao seu aperfeiçoamento, atento o princípio da cooperação previsto nos artigos 7.º e 590.º, n.º 4, do CPC.
2. Vejamos, então, se assiste razão ao Recorrente.
Analisada a p.i., verifica-se que o Embargante não identifica contra quem deduz os embargos de terceiro.
O que viola o disposto nos artigos 3.º, n.º 1 e 2, 342.º, n.º 1, 350.º, n.º 1, e 552.º, n.º 1, alínea a), do CPC.
Efetivamente, toda a pretensão formulada em juízo tem de ser deduzida contra alguém que assume no processo o estatuto jurídico de parte passiva, sem que tal seja excluído em relação à tutela que o Embargante pretende com a dedução dos presentes embargos de terceiros, os quais devem ser deduzidos, em termos de litisconsórcio necessário passivo, contra
«as partes primitivas»
da ação (autor/exequente e réu/executado), como resulta do artigo 348.º, n.º 1, do CPC, ao ordenar que no despacho que receba os embargos é determinado que as partes primitivas são notificadas para contestar.
Por outro lado, e como decorre do artigo 558.º, n.º 1, alínea b), se a p.i. omitir a identificação das partes, deve ser rejeitada pela secretaria, ato este sujeito à reclamação para o juiz do processo (artigo 559.º do CPC), e caso seja mantido o não recebimento, assiste à parte do direito de interpor recurso dessa decisão para o Tribunal da Relação (artigos 559.º, n.º 2, 629.º, n.º 3, alínea c), do CPC), ou, caso se verifiquem os pressupostos do artigo 560.º do CPC, apresentar nova petição.
Importa, ainda, ter em conta o disposto no artigo 144.º do CPC, n.º 10, alíneas a) e b), do CPC, que remetem para o disposto na Portaria n.º 280/2013, de 26-08, e alterações subsequentes
1
, que regula a tramitação eletrónica dos processos judiciais, mormente o seu artigo 7.º, n.ºs 1, 2 e 3 e 5, que estipulam:
«1 - Quando existam campos no formulário para a inserção de informação específica, essa informação deve ser indicada no campo respetivo,
não podendo ser apresentada unicamente nos ficheiros anexos.
2 - Em caso de desconformidade entre o conteúdo dos formulários e o conteúdo dos ficheiros anexos, prevalece a informação constante dos formulários, ainda que estes não se encontrem preenchidos.
3 - O disposto no número anterior não prejudica a possibilidade de a mesma ser corrigida, a requerimento da parte, sem prejuízo de a questão poder ser suscitada oficiosamente.
(…)
5 - Existindo um formulário específico para a finalidade ou peça processual que se pretende apresentar, deve o mesmo ser usado obrigatoriamente pelo mandatário.»
Tendo em conta este enquadramento jurídico, constata-se que a p.i. não identifica os demandados (embargados), mas os mesmos encontram-se identificado no formulário como sendo Arrow Global Limited, BB e Besseterre Limted, ou seja, a Exequente e os Executados.
Verifica-se, igualmente, que a secretaria não rejeitou a p.i. pelo que não foi seguida a tramitação prevista no artigos 558.º e 559.º do CPC.
Apresentada a p.i. ao escrutínio do juiz, deve este analisar e decidir em sede liminar se a p.i. está em condições formais de ser recebida, uma vez que a lei prevê a prolação deste tipo de despacho em relação aos embargos de terceiro, como decorre do artigo 345.º do CPC.
Se a p.i. não identificar os demandados, padecendo o formulário de igual omissão, não existindo uma parte passiva, a p.i. deve ser rejeitada liminarmente, por violação dos artigos 3.º, n.º 1 e 2, 342.º, n.º 1, 350.º, n.º 1, e 552.º, n.º 1, alínea a), do CPC. Não se afigura ser uma situação de mero convite ao aperfeiçoamento da p.i., reservado para as situações previstas no artigo 590.º, n.º 2, alíneas a) a c), do CPC. Basta pensar nas consequências do não acatamento do convite ao aperfeiçoamento para se perceber a desadequação do aperfeiçoamento a essa situação.
Todavia, no caso em análise, não existe omissão de identificação dos demandados no formulário previsto na Portaria n.º 280/2013, de 26-08.
Na atual redação do artigo 7.º, n.º 2 e 3, deste diploma, extrai-se a consagração de uma regra de prevalência do conteúdo do formulário sobre o conteúdo dos seus anexos, ao mencionar que prevalece a informação contida no formulário, ainda que os campos não se encontrem preenchidos, sem prejuízo da parte requerer a correção da informação, conferindo a lei também ao juiz o poder de oficiosamente suscitar a necessidade de correção.
Na análise de várias situações tratadas na jurisprudência em relação a desconformidades entre o formulário e os anexos, e no âmbito do artigo 7.º da referida Portaria n.º 280/2013, de 26-08, com a alteração introduzida pela Portaria n.º 267/2018, de 20-09, verifica-se que o referido princípio da prevalência do que consta do formulário, sem prejuízo da sua correção, tem prevalecido sobre erros, omissões ou discrepância do anexo.
2
Na situação que nos ocupa, o formulário não contém qualquer erro ou omissão na identificação dos demandados e, portanto, deve prevalecer sobre a omissão da identificação dos mesmos na p.i..
E sendo assim, o que se impunha, em face da não rejeição da p.i. pela secretaria, era o convite à correção da p.i. e não o indeferimento liminar pela razão acolhida pelo tribunal
a quo
.
Nestes termos, a decisão recorrida em relação ao indeferimento liminar com base na ineptidão da p.i. não pode ser sufragada nesta sede, impondo-se a sua revogação, procedendo este segmento do recurso.
Desse modo, a apreciação das arguidas nulidades da decisão recorrida resultava prejudicada, por aplicação do regime do artigo 608.º, n.º 2, do CPC.
Sucede, todavia, que o indeferimento liminar não se baseou apenas na ineptidão da p.i.,
mas também na extemporaneidade da dedução dos presentes embargos de terceiro, questão que o Apelante não impugna no recurso
.
Assim sendo, existindo outro fundamento para o indeferimento liminar que se não foi impugnado e, por isso, não pode ser apreciado por o objeto do recurso não o abranger, cabe apreciar as arguidas nulidades do despacho recorrido.
2.ª Questão: Se a decisão recorrida é nula por violação do artigo 615.º, n.º 1, alíneas b), c) e d), do CPC.
1. O Apelante arguiu a nulidade da decisão recorrida, reconduzindo a violação ao preceito
supra
citado, com vários argumentos que passamos a analisar.
Começa por alegar que a decisão recorrida é nula por violação do artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do CPC, por ter sido proferida sem que tivesse sido realizada alguma prova; sem ter sido realização de audiência prévia ou proferido despacho saneador, o que constituí uma decisão surpresa violadora do princípio do contraditório, reconduzindo juridicamente a situação à violação dos artigos 345.º, 590.º, 3.º, n.º 3, do CPC, e artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Também alega o Apelante que a decisão recorrida é nula por violação do artigo 615.º, n.º1, alíneas c) e d), do CPC, por falta de enunciação dos factos provados e não provados e respetiva fundamentação, o que viola os artigos 607.º, n.º 4, e 195.º, n.º 1, do CPC.
2. Vejamos, então, se lhe assiste razão.
As causas de nulidade da sentença encontram-se taxativamente elencadas nas várias alíneas do no n.º 1 do artigo 615.º do CPC. No que ora releva, a sentença é nula quando:
«b) não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;».
As nulidades da sentença, aplicam-se aos despachos com as devidas adaptações (artigo 613.º, n.º 2, do CPC).
Os fundamentos das alíneas b) e c) respeitam à estrutura da sentença e o fundamento da alínea d) aos seus limites.
3
Sem prejuízo da necessidade de adaptação, como previsto no aludido artigo 613.º, n.º 3, do CPC, dado estarmos perante um despacho de indeferimento liminar e não perante uma sentença, a falta de fundamentação a que alude o
n.º 1, alínea b) do artigo 615.º, do CPC
, está em consonância com o dever de fundamentação as decisões, consagrado na CRP e na lei ordinária (artigo 205.º, n.º 1, da CPR, artigos 154.º, n.º 1 e 607.º, n.º 4, do CPC).
Porém, como tem sido entendido de forma consensual, a arguida nulidade só ocorre quando a falta de fundamentação for absoluta, o que não se verifica quando haja insuficiente ou errada fundamentação de facto e/ou de direito.
Em relação à
alínea c), do n.º 1, do artigo 615.º do CPC
, primeira parte, que a decisão é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão.
Já a segunda parte prescreve que a sentença é nula quando for ambígua ou obscura de tal modo que a torne ininteligível.
Conforme é comumente aceite, a nulidade prevista na primeira parte da alínea c), verifica-se quando haja uma contradição lógica no processo de decisão, ou seja, quando os fundamentos invocados devam conduzir logicamente ao resultado oposto ao que veio a ser expresso na decisão, ou, pelo menos, de sentido diferente.
Este vício formal não se reporta a situações em que se parte de pressupostos errados (por exemplo, apreciação e interpretação dos factos ou do direito), caso em que existe um vício de conteúdo (error in judicando), mas não nulidade da decisão.
4
Já a ambiguidade ou obscuridade da sentença reporta-se à sua parte decisória e apenas ocorre quando gera ininteligibilidade, ou seja, quando um declaratário normal, nos termos do artigo 236.º, n.º 1 e 238.º, n.º 1 do CC, não possa retirar da decisão um sentido unívoco, mesmo depois de recorrer à fundamentação para a interpretar.
5
Por sua vez, a nulidade prevista na
alínea d), do n.º 1, do artigo 615.º do CPC
, na vertente da
omissão de pronúncia (aquela que é invocada)
, está diretamente relacionada com o comando do artigo 608.º, n.º 2, do mesmo Código, reportando-se ao não conhecimento das
questões
(que não meros argumentos ou razões
6
) alegadas relativas à consubstanciação da causa de pedir e do pedido formulado pelo autor e da reconvenção e/ou das exceções invocadas na defesa
7
.
3. Sendo estes os pressupostos e requisitos das arguidas nulidades, no caso em apreço, nenhum deles se verifica.
Desde logo, não se verificam os pressupostos da nulidade por falta de fundamentação (alínea b)
supra
transcrita) porque foram exarados na decisão recorrido os fundamentos fáctico-jurídicos em que assenta considerando o alegado na p.i. e o processado praticado na execução.
Ademais, estamos perante um despacho de indeferimento liminar que, pela sua natureza, impossibilita o prosseguimento dos deduzidos embargos.
Efetivamente, como decorre do artigo 345.º do CPC, reportando-se à fase introdutória dos embargos, o juiz procede às diligências probatórias necessárias, se não tiver havido
«imediato indeferimento da petição de embargos»
.
Logo, havendo indeferimento liminar da p.i. de embargos, não existe ulterior tramitação processual relacionada com a preparação e prolação da decisão que aprecie os embargos de terceiro.
Donde a invocação da violação dos artigos 590.º, n.º 3, do CPC não se aplica ao caso.
Refere também o Apelante que ocorreu violação do artigo 20.º, n.º 4, do CRP, embora não explique ou fundamente em que termos tal violação se pode ter como cometida.
Nem se percebe como tal preceito possa ser genericamente invocado numa situação como a dos autos, porquanto o Embargante teve acesso ao direito e à correspondente tutela jurisdicional. O que se verifica é que o mesmo não a fez atuar de acordo com os pressupostos legais. Ora, o artigo 20.º, n.º 4, da CRP não impede ou obstaculiza a emissão de despachos de indeferimento liminar, pois estes já pressupõem o desencadear dos mecanismos processuais previstos na lei ordinária que enformam, em concreto, o referido princípio constitucional.
Como sublinham Jorge Miranda e Rui Medeiros
8
,
«o direito de acesso aos tribunais para defesa de um direito ou de um interesse legítimo, o direito ao processo, “não impede naturalmente, a existência de requisitos ou de pressupostos processuais” nem pressupõe “a efectiva titularidade de um direito ou interesse legalmente protegido lesado ou ameaçado.
Aliás, bem vistas as coisas, no âmbito do artigo 20.º, e uma vez que é legítima a imposição por lei de ónus processuais às partes (…), o tribunal nem sequer está vinculado “a que seja qual for a conduta processual da parte, se profira sempre uma decisão sobre o mérito da causa (e ainda que no meio processual utilizado se vise a tutela de hipotéticos direitos fundamentais) e se faculte, enquanto ela não for proferida, o recurso até à mais alta instância dos tribunais judiciais”.»
Em relação à violação do artigo 3.º, n.º 3, do CPC, também o mesmo não se verifica, porquanto o princípio do contraditório não exige que o tribunal ouça previamente o demandante antes da emissão do despacho de indeferimento liminar. Na verdade, se assim fosse, o despacho liminar deixaria de ter essa natureza.
Como se refere no Acórdão desta Relação de Évora proferido em 12-09-2024
9
:
«Sustentar que estava vedado, ao tribunal a quo, indeferir aquela petição sem, antes, conceder o contraditório às partes, realizar uma audiência prévia, proferir despacho saneador e realizar a audiência final, com a produção da prova testemunhal indicada, equivale a considerar que a lei não permite o indeferimento liminar da mesma petição. Por definição, para poder ser considerado liminar, um despacho tem de ser proferido antes de qualquer dos actos referidos pelo recorrente.
Nomeadamente, não faria sentido a prolação de um despacho prévio com vista a conceder, ao recorrente, a possibilidade de se pronunciar acerca de um possível fundamento de indeferimento liminar, a indicar nesse despacho, como ele pretende. Pela sua natureza e tal como a sua designação inculca, o despacho de indeferimento liminar não é precedido por qualquer outro, nomeadamente com a função acima referida, sob pena de deixar de merecer o qualificativo de liminar. Não faria sentido e constituiria uma verdadeira contradição nos termos a prolação de despacho liminar depois de outro despacho. Já não estaríamos, obviamente, perante um despacho liminar.»
Concorda-se absolutamente.
Em face do exposto, improcede a arguida nulidade.
Em relação à
alínea c), do n.º 1, do artigo 615.º do CPC
, o Apelante não especifica qual dos dois segmentos do normativo teve em mente.
Seja como for, nenhum deles se verifica, porquanto da leitura do despacho recorrido não se descortina que haja qualquer vício lógico entre os fundamentos e a decisão, nem que a decisão de indeferimento liminar seja ambígua, obscura ou ininteligível.
Assim, também não se verifica esta nulidade.
Em relação
alínea c), do n.º 1, do artigo 615.º do CPC
, também a mesma não se verifica, porquanto a natureza e a estrutura do despacho de indeferimento liminar não exigem a enunciação da decisão de facto positiva e negativa e a sua fundamentação.
Ademais, e na verdade, o despacho em causa até se socorreu de elementos processuais que decorrem da tramitação da execução para fundamentar a questão da intempestividade da dedução dos presentes embargos de terceiro, pelo que, até nessa perspetiva, a alegada omissão de pronúncia não colhe.
Em face de todo o exposto, a apelação improcede em relação às arguidas nulidades.
4. Chegados a esta fase da análise do objeto do recurso, importa deixar clarificado que, apesar da procedência do recurso quanto à questão da ineptidão da p.i.,
o despacho recorrido não pode ser alvo de revogação porque subsiste a decisão de indeferimento liminar com base noutro fundamento – a extemporaneidade da dedução dos presentes embargos de terceiro – por não ter sido impugnado neste recurso.
III- DECISÃO
Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar parcialmente procedente a Apelação em relação ao indeferimento liminar por ineptidão da p.i., sem prejuízo da manutenção do indeferimento liminar por extemporaneidade da dedução dos embargos de executado, fundamento este não impugnado no presente recurso.
Custas pelo Apelante (artigo 527.º do CPC).
Évora, 08-05-2025
Maria Adelaide Domingos (
Relatora
)
Maria João Sousa e Faro (
1.ª Adjunta
)
Elisabete Valente (
2.ª Adjunta
)
__________________________________
1. Cfr. Portaria n.º 266/2024, de 15/10; Portaria n.º 360-A/2023, de 14/11; Portaria n.º 86/2023, de 27/03; Portaria n.º 267/2018, de 20/09; Retificação n.º 16/2017, de 06/06; Portaria n.º 170/2017, de 25/05 e Retificação n.º 44/2013, de 25/10.
↩︎
2. Exemplificativamente, vejam-se os seguintes arestos: Ac. RE, de 05-12-2024, proc. n.º 2027/22.2T8PTM-A.E1; Ac. RC, de 28-03-3023, proc. n.º164/22.2T8OHP.C1; Ac. RG, de 24-09-2020, proc. n.º 1167/19.0T8VRL-A.G1, todos em
www.dgsi.pt
.
↩︎
3. LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE,
Código de Processo Civil Anotado
, Vol. 2.º , 3.ª ed., Almedina, 2017, p. 735 (3).
↩︎
4. LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE,
ob. cit,
pp. 736-737.
↩︎
5. LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE,
ob. cit.
p. 735.
↩︎
6. Cfr., entre outros, AC. STJ, de 06/05/2004, proc. n.º 04B1409 e AC. STJ, de 27/10/2009, proc. n.º 93/1999.C1.S2, em
www.dgsi.pt
↩︎
7. Cfr, entre outros, Ac. STJ, de 16/09/2008, proc. n.º 08S321, em
www.dgsi.pt
↩︎
8.
Constituição Portuguesa Anotada
, Tomo I, 2ª Edição, Coimbra, 2010, págs. 190-191,
apud
Ac. RE, de 13-02-2025, proc. n.º 204/24.0T8LGA.E1, em
www.dgsi.pt
↩︎
9. Proferido no proc. n.º 1291/21.9T8LLE-F.E1, seguindo, aliás, jurisprudência acolhidas no Ac. RE, de 28-06-2018, proc. n.º 2621/17.3T8ENT.E1 e no Ac. RE, de 11-04-2019, proc. n.º 1501/17.7T8SLV.E1, em
www.dgsi.pt
↩︎
|
TRE
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https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/61d23daf7c88d5b280258c8f002cffb6?OpenDocument
|
1,759,363,200,000
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CONFIRMAÇÃO
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669/23.8T8MCN.P1
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669/23.8T8MCN.P1
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ANA PAULA AMORIM
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I - É através dos fundamentos constantes da decisão quanto à matéria de facto que este Tribunal vai controlar, através das regras da lógica e da experiência, a razoabilidade da convicção do juiz do Tribunal de 1ª instância e formar a sua própria convicção, perante a prova produzida.
II - Num contrato de seguro facultativo, por danos próprios, que contém a seguinte cláusula de exclusão da responsabilidade da seguradora: “voluntariamente e por sua iniciativa, abandone o local do acidente de viação antes da chegada da autoridade policial, quando esta tenha sido chamada por si ou por outra entidade”, fica excluía a responsabilidade da seguradora se o condutor do veículo, sem motivo que o justifique, abandonar o local do acidente, depois de saber que as autoridades policiais foram chamadas para tomar conta da ocorrência.
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[
"CONTRATO DE SEGURO DE DANOS PRÓPRIOS",
"EXCLUSÃO DA RESPONSABILIDADE DA SEGURADORA"
] |
Seguro-Abandono Veículo-RMF-669-23.8T8MCN.P1
*
*
SUMÁRIO
[1]
(art.º 663º/7 CPC):
…………………………………
…………………………………
…………………………………
---
Acordam neste Tribunal da Relação do Porto (5ª secção judicial – 3ª Secção Cível)
I. Relatório
Na presente ação declarativa, que segue a forma de processo comum, em que figuram como:
- AUTORA:
A... S.A.
, sociedade anónima, com sede na rua ..., ..., ..., ... e ..., concelho ..., NIPC ...79; e
- RÉ:
B... S.A
, com sede na rua ..., ... Lisboa,
pede a autora a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia global de €5.730,01, valor acrescido de juros, a calcular à taxa legal, desde a constituição em mora e até efetivo pagamento e integral pagamento e, ainda, em custas, procuradoria e demais encargos legais.
Alega, para o efeito, ser proprietária e legítima possuidora do automóvel marca Volvo, modelo ..., matrícula ..-RE-.., que no dia 29 de dezembro de 2022, cerca das 03 horas e 30 minutos, quando conduzido pelo Sr. AA, teve um sinistro vindo o veículo, por motivo que o seu condutor desconhece, a descontrolar-se e embater no muro da habitação com o nº de polícia ...23.
Alega que a A. celebrou com a Ré um contrato de seguro com cobertura de danos próprios e que imediatamente após o sinistro, requereu a assistência em viagem (oportunamente prestada) e, em 30 de dezembro de 2022, participou o sinistro à Ré pelo que pede o ressarcimento dos danos consequentes do sinistro, o que foi declinado pela Ré pelo facto do condutor se haver ausentado do local antes da chegada das autoridades policiais.
-
Citada a ré, contestou, defendendo-se por exceção.
Confirmou a celebração do contrato de seguro celebrado entre as partes bem como o sinistro.
Nega a sua responsabilidade e pede a sua absolvição por se verificar a exclusão contratual resultante do facto do condutor se ter ausentado do local, depois de ser solicitada a intervenção da autoridade policial pelo dono do muro onde o veículo embateu.
Alegou, em síntese, que após o sinistro descrito na petição o dono do muro aonde foi embater o veículo seguro saiu de casa e disse ao autor, para além do mais, que ia chamar a autoridade, como, por escrito, informou a ré ter feito e de facto, logo chamou.
Perante isto o condutor do veículo seguro, AA, ausentou-se de imediato do local, sem nada que o obrigasse e sem esperar pela chegada daquela autoridade, como reconheceu, por escrito, perante a ré.
Esta autoridade, no caso a GNR ..., quando chegou ao local do acidente já lá não encontrou aquele condutor, o que fez constar do auto de ocorrência nº ...5/2002 ...41 que lavrou sobre o sinistro, ali declarando “Começasse por referir, que quando o Participante (GNR) chegou ao local onde se deu o acidente, o condutor já não se encontrava junto ao mesmo (ausentou-se), sendo este elaborado com base inicialmente nos vestígios encontrados no local e posteriormente pelas declarações prestadas pelo condutor aquando da sua identificação.” (sic, cf. doc. 5, que aqui se dá por reproduzido).
O condutor do veículo seguro só se foi identificar à GNR no dia seguinte.
-
A autora respondeu à contestação apresentada pela ré, esclarecendo que a saída do condutor da viatura ..-RE-.. do local, algum tempo após a ocorrência do evento, ficou a dever-se ao facto de ele, logo após o despiste, ter começado a sentir dores fortes; situação que o levou a encaminhar-se para casa com vista a obter ajuda de seus pais e, se fosse o caso, recorrer ao hospital; o que fez, todavia, por indicação e, inclusive, com o acordo do proprietário do muro, pessoa das suas relações e a quem, desde o primeiro momento, declarou assumir toda a responsabilidade.
-
Proferiu-se despacho saneador fixando-se o objeto do litígio e os temas da prova.
-
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento com observância de todas as formalidades legais.
-
Proferiu-se sentença com a decisão que se transcreve:
“Pelo exposto, julgo a presente ação totalmente improcedente e, em consequência, absolvo a Ré “B... S.A” do pedido
.
Custas pela autora”.
-
A Autora veio interpor recurso da sentença.
-
Nas alegações que apresentou a apelante formulou as seguintes conclusões:
1ª O presente recurso reporta-se apenas à matéria de facto matéria de facto e de direito e visa alterar a resposta à questão dos motivos da saída do local do evento por parte do condutor do ..-RE-.., propriedade da A.
2ª Sobre a matéria em apreço, o Tribunal deu como não provado “que a saída do condutor da viatura ..-RE-.. do local, algum tempo após a ocorrência do evento, ficou a dever-se ao facto de ele, logo após o despiste, ter começado a sentir dores fortes”.
3ª O Tribunal deu como não provado tal matéria por entender que a A. não fez prova de que ocorreu circunstância capaz de justificar a saída do condutor do ..-RE-.. local do evento em termos de afastar “a aplicação das clausulas de exclusão vertidas no contrato celebrado entre as partes”.
4ª A fls. da sentença o Tribunal fez constar o seguinte: “E conforme resulta da matéria supra exposta o tribunal decidiu dar tal matéria como não provada, mormente o nexo causal
entre a saída do local e as dores que eventualmente sofria.
E, bem assim, que “Antes de mais importa consignar que não é o facto de um maior número de testemunhas atestar uma determinada factualidade que determina que a matéria inerente tenha que ser dada como provada.
Isto porque no caso concreto todas as testemunhas inquiridas (o condutor do veículo, o dono do café que chegou ao local, bem como o próprio dono da habitação onde o veículo embateu) referiram que o jovem se ausentou do local por ter sido aconselhado a fazê-lo por estar com dores numa mão.
Ora, sem se pôr em causa que o jovem pudesse estar com dores na mão e que a noite
chuvosa levasse a aconselhar que todos se abrigassem antes das autoridades chegarem ao local…
Na verdade, é do conhecimento geral e comum, que em caso de acidente, e tendo sido chamadas as autoridades, os seus intervenientes não se devem ausentar do local.
Por fim há que atentar ao facto de que, quando o perito averiguador fez a instrução do processo, e instou o dono do muro sobre a saída do local do condutor este não retratou, nessa fase inicial do processo, a versão que trouxe a julgamento, como seja, a de que fora o próprio a aconselhar o rapaz a ir para casa”.
5ª A argumentação acima vertida não nos parece idónea para afastar a aplicação da
cláusula de exclusão sub judice pelas seguintes razões:
5ª.1 - é o Tribunal a admitir como possíveis as dores;
5ª.2 - é o Tribunal a admitir que “todas as testemunhas inquiridas (o condutor do veículo, o dono do café que chegou ao local, bem como o próprio dono da habitação onde o veículo embateu) referiram que o jovem se ausentou do local por ter sido aconselhado a fazê-lo por estar com dores numa mão”;
5ª.3 – Inferindo-se, por outro lado, das duas conclusões supra que a iniciativa de abandono foi induzida por terceiros – logo não foi do condutor da viatura da A.
6ª Quanto à matéria de facto incorretamente julgada – indicamos apenas o seguinte
facto indicado como não provado:
-“A) que a saída do condutor da viatura ..-RE-.. do local, algum tempo após a ocorrência do evento, ficou a dever-se ao facto de ele, logo após o despiste, ter começado a sentir dores fortes”.
7ª Quanto aos concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre o ponto da matéria de facto impugnado diversa da recorrida, indicamos as concretas passagens dos depoimentos das testemunhas abaixo indicadas.
8ª AA – condutor - a instâncias do Adv. da A. Minuto: 01:00 a 01:35 e minuto: 01:00 a 01:35 – no essencial declara que assumiu a responsabilidade pelos danos causados no muro e que, quando o seu dono o reconheceu e constatou que ele se estava a queixar da mão, sugeriu-lhe que fosse para casa que ele se entendia com a GNR.
9ª A instâncias da Adv. da Ré – do minuto: 02:59 a 04:24 e do minuto: 04:24 a 04:50– Explicou que se estava a queixar muito, que sabia que tinha que lá ficar se houvesse outro carro envolvido.
Disse que não havendo outro carro, não precisava de ficar e que ia ficar lá mas que foi aconselhado a ir embora e, por fim, declarou que quando conduzia não bebia.
10ª Quanto à testemunha – BB – proprietário do muro danificado –
pessoa que chamou a GNR.
Do minuto 02:09 ao 02:44 – disse que o condutor estava a queixar-se do pulso, que tinha chamado a GNR, mas que quando eles chegassem tratava o assunto com eles. Ele estava todo molhado. Disse-lhe para trocar de roupa, para ele se ir embora.
Do minuto 03:20 a 03:59 e do minuto 05:00 a 05:20 e 06:16 – Durante este tempo confirma 2 (duas) vezes que foi ele que lhe recomendou para ir ao hospital e trocar de roupa – situação que veio depois a confirmar à Exma. Advogada da Ré, entre o minuto: 05:00, o 05:20 e o 06:16 e que de seguida confirmou à Meritíssima Juíza – isto é, que foi ele que lhe disse para ele ir para casa.
11ª Quanto à testemunha – CC - perito averiguador.
A instâncias do Adv. da A., do minuto 03:25 ao 03:56 – Diz que esteve com o condutor do veículo 15 dias mais tarde, que ele lhe confirmou o hematoma, mas que não verificou nele quaisquer sinais; todavia, de seguida, declara ao adv. da A. que pode haver lesão sem deixar marca, sem ser visível a olho nu.
12ª Concordamos com a ideia subjacente à afirmação “de que não é o facto de um maior número de testemunhas atestar uma determinada factualidade que determina que a matéria inerente tenha que ser dada como provada.”, todavia, havia que justificar, de forma mais esclarecida e criteriosa essa conclusão.
13ª O Tribunal teve à sua disposição a testemunha BB (dono do muro) e a testemunha CC (perito).
A fls. da sentença o Tribunal faz constar o seguinte: “que o perito disse que o condutor do veículo “não lhe fez alusão ao facto de ter sido o dono da casa a aconselhá-lo a se ir embora para casa.”.
14ª Atenta a dúvida e a consideração vertida na pág. 7 da douta sentença – “Ora, sem se pôr em causa que o jovem pudesse estar com dores na mão e que a noite chuvosa levasse a aconselhar que todos se abrigassem antes das autoridades chegarem ao local”, no sentido de as tentar dissipar e/ou esclarecer, teria feito todo o sentido que o Tribunal as confrontasse.
15ª No domínio da razoável probabilidade, pelos depoimentos das testemunhas é de concluir que o abandono do local nem teve o sentido de fuga às autoridades, obviamente, previsto na ratio da norma, nem, muito menos, o de deliberado abandono por sua iniciativa – a este propósito, veja-se Ac. STJ de 24-05-2022, proc. 52/20.7T8TND.C1.S1, relator Luís Espírito Santo e jurisprudência aí citada, designadamente os excertos acima vertidos.
16ª Ao contrário do defendido pelo Tribunal, pensamos ser facto notório que em cada 1.000 portugueses não deverá haver um a saber que numa situação como a dos autos não pode abandonar o local na hipótese de haver conhecimento de que alguém chamou a autoridade policial.
17ª Assim, atento o exposto, deve alterar-se a resposta à indicada matéria de facto – dando-se como provado que o condutor se encontrava com dores e que foi por esse motivo e por ter
sido aconselhado pelo dono do muro – testemunha BB – que se ausentou do local do evento.
18ª Quanto ao direito – dando-se como provada a matéria supra indicada e levando-se em conta a douta jurisprudência acima citada, deve concluir-se que a saída do local por parte do
condutor do ..-RE-.. não consubstancia motivo idóneo para excluir a responsabilidade da Ré, devendo, por isso, alterar-se a decisão no sentido da sua condenação no valor peticionado.
Termina por considerar que o Tribunal violou, nomeadamente, o disposto no artigo 607º, nº 4 (2ª parte), do C.P.C., e, bem assim e também, o disposto nos art.º 762º e seg. do C.C., devendo, por isso alterar-se a decisão nos termos supra peticionados.
-
A ré veio apresentar resposta ao recurso, concluindo que a decisão de facto não merece censura, peticionando a improcedência da apelação.
-
O recurso foi admitido como recurso de apelação.
-
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
-
II. Fundamentação
1.
Delimitação do objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso – art.º 639º do CPC.
As questões a decidir:
- reapreciação da decisão de facto;
- da verificação da cláusula de exclusão da responsabilidade da ré.
-
2.
Os factos
Com relevância para a apreciação das conclusões de recurso cumpre ter presente os seguintes factos provados no tribunal da primeira instância:
1. A A. é proprietária e legítima possuidora do automóvel marca Volvo, modelo ..., matrícula ..-RE-.., doravante indicado apenas por RE – cf. docs. 01 e 02 juntos com a petição inicial e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
2. No dia 29/12/2022, cerca das 03 horas e 30 minutos, o RE, conduzido pelo Sr. AA, circulou na rua de ..., com o sentido de marcha ..., ambas do concelho ....
3. Ao efetuar uma curva à direita, sita na referida via, o RE, por motivo que o seu condutor desconhece, descontrolou-se e foi embater no muro da habitação com o nº de polícia ...23.
4. Em tempo, a A. celebrou com a Ré um contrato de seguro com cobertura de danos próprios, designadamente por choque, colisão, capotamento e quebra isolada de vidros, relativo ao RE, em vigor à data do sinistro, titulado pela apólice ...97 – cf. doc. 01 e 02 juntos com a petição inicial e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
5. Após o sinistro, a A. requereu a assistência em viagem (oportunamente prestada) e, em 30 dezembro de 2022, participou o sinistro à Ré.
6. A A. enviou a participação da ocorrência à Ré e reclamou dela o pagamento da indemnização – cf. doc. 01 junto com a petição inicial e cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
7. Em 01 de fevereiro 2023 a A. recebeu, da mediadora de seguros da Ré, indicação no sentido de que ela lhe iria pagar a quantia de €5.730,01 – valor que a A. comunicou que aceitava.
8. Posteriormente, declinou, informando que nada pagaria pelo facto de o condutor da viatura da A. ter abandonado o local do evento.
-
-
Da contestação
9. Após o sinistro referido em 3) o dono do muro aonde foi embater o veículo seguro saiu de casa e disse ao condutor do veículo, para além do mais, que ia chamar a autoridade, como, por escrito, informou a ré ter feito (cf. doc. 3, que aqui se dá por reproduzido).
10. E como, de facto, logo chamou.
11. O condutor do veículo seguro, AA, ausentou-se de imediato do local, sabendo que tinha sido chamada a autoridade policial, sem nada que
o obrigasse e sem esperar pela chegada daquela autoridade.
12. O condutor do veículo seguro só se foi identificar à GNR no dia seguinte.
*
- Factos não provados
:
A) que a saída do condutor da viatura ..-RE-.. do local, algum tempo após a ocorrência do evento, ficou a dever-se ao facto de ele, logo após o despiste, ter começado a sentir dores fortes.
-
3
. O direito
- Reapreciação da decisão de facto -
Nas conclusões de recurso, sob os pontos 1 a 17, veio a apelante requerer a reapreciação da decisão de facto, em relação à alínea A) dos factos julgados não provados.
Cumpre proceder à verificação dos pressupostos de ordem formal para proceder à reapreciação da decisão de facto.
O art.º 640º CPC estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugna a decisão da matéria de facto, nos seguintes termos:
“1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3. […]”
Recai, assim, sobre o recorrente, face ao regime concebido, um ónus, sob pena de rejeição do recurso, de determinar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar –
delimitar o objeto do recurso
- e motivar o seu recurso –
fundamentação
- com indicação dos meios de prova que, no seu entendimento, impunham decisão diversa sobre a matéria de facto e ainda, indicar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação.
Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
No caso concreto, realizou-se o julgamento com gravação dos depoimentos prestados em audiência e a apelante veio impugnar a decisão da matéria de facto, com indicação dos pontos de facto impugnados, prova a reapreciar – prova testemunhal e documental - e decisão que sugere.
Quanto à prova a reapreciar, para além da indicação que consta das conclusões de recurso, na motivação do recurso a apelante transcreve excertos dos respetivos depoimentos para sustentar a alteração da decisão e tece considerações sobre os depoimentos prestados, motivo pelo qual se considera que fundamenta a impugnação nos depoimentos consignados na gravação, pelo que, se mostra preenchido o pressuposto de ordem formal quanto à indicação da prova gravada.
Por fim, refira-se que a apelante deixou expressa a decisão que sugere, pretendendo que os factos impugnados se julguem provados.
Nos termos do art.º 640º/1/2 do CPC consideram-se reunidos os pressupostos de ordem formal para proceder à reapreciação da decisão de facto.
-
Nos termos do art.º 662º/1 CPC a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto:
“ […]se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
A respeito da gravação da prova e sua reapreciação cumpre considerar, como refere ABRANTES GERALDES, que funcionando o Tribunal da Relação como órgão jurisdicional com competência própria em matéria de facto, “tem autonomia decisória”. Isto significa que deve fazer uma apreciação crítica das provas que motivaram a nova decisão, especificando, tal como o tribunal de 1ª instância, os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador
[2]
.
Nessa apreciação, cumpre ainda, ao Tribunal da Relação reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações de recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados
.
Decorre deste regime que o Tribunal da Relação tem acesso direto à gravação oportunamente efetuada, mesmo para além dos concretos meios probatórios que tenham sido indicados pelo recorrente e por este transcritos nas alegações, o que constitui uma forma de atenuar a quebra dos princípios da imediação e da oralidade suscetíveis de exercer influência sobre a convicção do julgador, ao mesmo tempo que corresponderá a uma solução justificada por razões de economia e celeridade processuais
[3]
.
Cumpre ainda considerar a respeito da reapreciação da prova, em particular quando se trata de reapreciar a força probatória dos depoimentos das testemunhas, que neste âmbito vigora o princípio da livre apreciação, conforme decorre do disposto no art.º 396º CC e art.º 607º/5, 1ª parte CPC.
Como bem ensinou ALBERTO DOS REIS: “ […] prova […] livre, quer dizer prova apreciada pelo julgador segundo a sua experiência e a sua prudência, sem subordinação a regras ou critérios formais preestabelecidos, isto é, ditados pela lei”
[4]
.
Daí impor-se ao julgador o dever de fundamentação das respostas à matéria de facto – factos provados e factos não provados (art.º 607º/4 CPC).
Esta exigência de especificar os fundamentos decisivos para a convicção quanto a toda a matéria de facto é essencial para o Tribunal da Relação, nos casos em que há recurso sobre a decisão da matéria de facto, poder alterar ou confirmar essa decisão.
É através dos fundamentos constantes da decisão quanto à matéria de facto que este Tribunal vai controlar, através das regras da lógica e da experiência, a razoabilidade da convicção do juiz do Tribunal de 1ª instância
[5]
e formar a sua própria convicção, perante a prova produzida.
Como observa ABRANTES GERALDES:”[s]em embargo da ponderação das circunstâncias que rodearam o julgamento na 1ª instância, em comparação com as que se verificam na Relação, esta deve assumir-se como verdadeiro tribunal de instância e, portanto, deve introduzir na decisão da matéria de facto impugnada as modificações que se justificarem, desde que, dentro dos seus poderes de livre apreciação dos meios de prova, encontre motivo para tal”
[6]
.
Ponderando estes aspetos, face aos argumentos apresentados pela apelante, tendo presente o segmento da sentença que se pronunciou sobre a fundamentação da matéria de facto, não se justifica alterar a decisão de facto, pelos motivos que se passam a expor.
O apelante impugna a decisão dos seguintes factos julgados “não provados”:
“A) que a saída do condutor da viatura ..-RE-.. do local, algum tempo após a ocorrência do evento, ficou a dever-se ao facto de ele, logo após o despiste, ter começado a sentir dores fortes”.
Na fundamentação da decisão de facto considerou-se, como se passa a transcrever:
“De harmonia com o princípio plasmado no art.º 574º, n.º 2 do CPC, atenta a posição das partes vertida nos respetivos articulados, tiveram-se como assentes os factos elencados nos pontos 1) a 12).
Na verdade, os factos enunciados tratam-se de matéria aceite por ambas as partes (cf. art.º 1.º da contestação da Ré), sendo ainda que, parte desses factos, decorre da prova documental junta aos autos e que aqui se destaca, a saber: a apólice de seguro junta aos auto e a correspondência entre as partes.
A prova (ou falta de prova) dos demais factos logrou-se alcançar (ou não) com base na avaliação crítica dos depoimentos prestados em audiência tendo por base os princípios que regem a apreciação da prova em processo civil.
Na verdade, e sendo a questão dos autos de foro eminentemente jurídica – mormente determinar se verifica uma cláusula de exclusão - impunha-se nos presentes autos fazer prova de que a ausência do condutor do veículo sinistrado do local onde este ocorreu se deveu a algum motivo justificado e ponderoso que logre afastar a aplicação das cláusulas de exclusão vertidas no contrato celebrado entre as partes.
A prova desse facto impunha-se, a nosso ver, à autora que entendemos que não ter logrado fazê-la.
Vejamos a prova produzida em audiência:
Começou por ser inquirido AA, o condutor do veículo sinistrado.
Explicou que o veículo é da empresa do seu pai e descreveu o sinistro de que foi vítima. Disse que, após o dono do muro chegar ao local, de imediato assumiu a culpa e o dano que provocara. Confirma ter-se ausentado do local justificando que estava com uma dor na mão e nervoso com o sucedido e, como tal, e apesar de saber que tinham chamado as autoridades se deslocou para casa por ter sido aconselhado por toda a gente para ir embora inclusive pelo próprio dono da casa. Referiu que não se deslocou ao hospital porque com a colocação de gelo a dor passou.
Foi inquirido DD que, à data dos factos, era dono de um café onde o jovem condutor tinha estado algumas horas antes do acidente (e onde afiança não ter ingerido bebidas alcoólicas) e que passara no local pouco depois do sinistro referindo que estava a chover bastante e, como o condutor se queixava da mão esquerda, quer a testemunha quer o dono do muro disseram ao jovem para ir para casa que tratariam do sinistro com a gnr.
Disse ainda que o rapaz é filho do presidente da junta, pessoa conhecida por todos.
Passou-se à inquirição de BB que é o proprietário da habitação onde o veículo segurado embateu.
Descreveu como vivenciou aquele episódio referindo que acordou com o estrondo do acidente e quando espreitou pela janela visualizou o carro embatido e o condutor já a meio do muro. Referiu ter chamado as autoridades mesmo antes de falar com o condutor porque o local é uma zona de acidentes mas que, quando soube a quem pertencia o carro e quem era o jovem condutor - o filho do Senhor EE – e como o rapaz se estava a queixar do pulso, lhe disse para ir ao hospital que ele trataria do assunto com as autoridades, tanto que estava uma noite chuvosa e o rapaz estava todo molhado. Disse que o rapaz não aparentava estar alcoolizado.
Depois foi inquirido FF que é o agente da GNR que esteve no local narrando o local onde se encontrava o veículo sinistrado, confirmou que estava um dia de chuva, que estavam presentes no local o dono da casa e alguns rapazes, que não identificou, e que lhe deram a indicação que o condutor do veículo teria ido para casa, tendo entretanto aparecido o pai que se responsabilizou pela viatura.
Prestou declarações CC, perito de seguros que trabalha para a Ré e foi o averiguador do sinistro. Descreveu o local do acidente, disse ter sido um despiste isolado sem intervenção de outra viatura, que teve oportunidade de falar com o proprietário da habitação que confirmou o embate no muro da sua casa, que chamou as autoridades, e lhe contara que após ouvir um estrondo falou com o jovem que conduzia, que lhe pediu desculpa pela ocorrência e ainda que lhe disse que o condutor se ausentou sabendo que as autoridades tinham sido chamadas. Quando falou com o condutor – o que sucedeu cerca de 15 dias após o acidente – este mencionou-lhe que ficou com um hematoma na mão, mas que não era visível nessa data. Referiu que o condutor lhe comunicara que tinha estado num café a confraternizar com amigos e que não lhe fez alusão ao facto de ter sido o dono da casa a aconselha-lo a se ir embora para casa.
Foi ainda ouvido GG que se limitou a fazer o levantamento do auto na GNR.
Apreciação da prova.
Existem, como se sabe, regras no processo civil que guiam o julgador na apreciação da prova as quais são aplicadas a par da livre convicção do julgador.
E como começou por se dizer a apreciação da factualidade que se impunha é se o condutor do veículo se ausentou do local após o sinistro e sabendo que as autoridades tinham sido chamadas (matéria assente) por dores fortes que justificassem o seu ato.
E conforme resulta da matéria supra exposta o tribunal decidiu dar tal matéria como não provada, mormente o nexo causal entre a saída do local e as dores que eventualmente sofria.
Vejamos.
Antes de mais importa consignar que não é o facto de um maior número de testemunhas atestar uma determinada factualidade que determina que a matéria inerente tenha que ser dada como provada.
Isto porque no caso concreto todas as testemunhas inquiridas (o condutor do veículo, o dono do café que chegou ao local, bem como o próprio dono da habitação onde o veículo embateu) referiram que o jovem se ausentou do local por ter sido aconselhado a fazê-lo por estar com dores numa mão.
Ora, sem se pôr em causa que o jovem pudesse estar com dores na mão e que a noite chuvosa levasse a aconselhar que todos se abrigassem antes das autoridades chegarem ao local, não é crível, à luz das regras da experiência, que este episódio de vida haja ocorrido com a versão que as testemunhas quiseram fazer crer ao Tribunal.
Na verdade, é do conhecimento geral e comum, que em caso de acidente, e tendo sido chamadas as autoridades, os seus intervenientes não se devem ausentar do local.
Ademais não é verossímil a versão trazida pelo condutor do veículo quando o mesmo nem sequer se deslocou ao hospital por força das dores que sentia.
Por fim há que atentar ao facto de que, quando o perito averiguador fez a instrução do processo, e instou o dono do muro sobre a saída do local do condutor este não retratou, nessa fase inicial do processo, a versão que trouxe a julgamento, como seja, a de que fora o próprio a aconselhar o rapaz a ir para casa.
É certo que o juiz não está munido de qualquer aparelho detetor da veracidade dos factos relatado pelas testemunhas. Contudo, não pode o Tribunal deixar de se ater às regras da experiência.
Ora, o uso, pelo tribunal e em processo civil, de regras de experiência comum é um critério de julgamento, aplicável na resolução de questões de facto.
Essas regras da experiência são raciocínios, juízo, assentes na experiência comum, independentes dos casos individuais em que se alicerçam, com validade, muitas vezes, para além do caso a que respeitem, adquiridas, em parte, mediante observação do mundo exterior e da conduta humana.
Ora, perante o relato feito pelas testemunhas e o contexto em que ocorreram os factos (despiste às 3h30m e após o jovem ter estado a confraternizar no café com os amigos) não se nos afigura normal - considerando o homem médio, ou seja, um homem normal, médio, perante o circunstancialismo próprio do caso concreto – que se ausentasse do local apenas porque estava com dores numa mão – dores essas que não demandaram sequer apoio médico – nem é normal que as testemunhas inquiridas houvessem “aconselhado” o rapaz a ir embora por força das dores numa mão quando sabiam que já tinham sido chamadas as autoridades policiais e quando o pai do jovem se deslocou ao local.
Entendemos que não se logrou fazer prova de que o condutor ficou ferido como justificação plausível para ter abandonado o local do acidente depois da sua ocorrência sendo que o que era esperado ao condutor e ao proprietário do veículo (sabendo como AA afirmou que as autoridades já tinham sido chamadas) e considerando a boa fé contratual, era que esperasse pelo pai que se deslocou ao local (como vem descrito nas inquirições feitas em sede de averiguações) ou chamasse um ambulância.
Assim, a autora não justificou minimamente, com a concretude exigível, a ausência do condutor do veículo.
Reitera-se que atentas as regras da lógica, da experiência e senso comuns, e do normal devir, a final conclusão a retirar é que a ausência do condutor do local do embate teve em vista evitar qualquer fiscalização e exame pessoais (tanto que sabia que as autoridades tinham sido chamadas ao local) porque alguma coisa de menos legal, lícito ou regular tinha a esconder – cf. art.º 349º e segs do CC.
Foi assim por estas razões que se entendeu dar como não provada a matéria referida em A) e como provado o facto descrito em 11).
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Sugere a apelante que se julguem provados os factos impugnados e sustenta a alteração no depoimento das testemunhas AA, BB e CC.
Está em causa apurar se o condutor do veículo se ausentou do local onde ocorreu o sinistro, por sentir fortes dores.
Cumpre ter presente uma súmula dos depoimentos das testemunhas.
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AA
, ajudante de topógrafo, reside em ..., filho do sócio gerente da autora e condutor do veículo segurado. Tem 25 anos (data do julgamento-29 de fevereiro de 2024).
Referiu que após o embate no muro estava em choque. Foi ver os danos no muro. Voltou ao carro chegaram os donos do muro e repararam que estava a queixar-se da mão e aconselharam-no a ir para casa. Mais referiu que, entretanto, chegaram os amigos e levaram-no para casa. Tinha dores na mão. A mãe viu que não era muito grave e colocou gelo e ficou assim, em casa.
Esclareceu que quando chegaram os donos do muro, disseram-lhe para ir para casa. Referiu, ainda, que o dono do muro lhe disse que chamou a GNR e disse que depois falava com a GNR.
Disse, que logo no local assumiu a culpa toda e quando o dono do muro o reconheceu, porque conhece o seu pai, disse que não havia problema nenhum e que tratava com o pai. Disse que falava com a GNR.
Em esclarecimentos prestados a solicitação da Senhora Juiz, referiu que o despiste e a colisão ocorreram pelas 3.30 horas. Seguia sozinho, despistou-se e foi bater no muro. O dono da casa saiu e veio ter com a testemunha. Não o conheceu na altura. Referiu que o dono do muro é amigo do pai e o próprio conhece o sobrinho. O dono do muro chama-se “sr. BB”.
Mais disse que foi o senhor BB que chamou a polícia, porque não sabia quem tinha batido no muro. O dono do muro disse para ir para casa e ir ao hospital. Os amigos chegaram e levaram-no a casa. Não foi ao hospital. Pôs um bocado de gelo.
Esclareceu que o proprietário do muro chamou a polícia porque não sabia quem tinha batido. Foi para casa e a mãe não é médica.
Soube que chamaram a polícia e que estava a chegar. Deslocou-se para casa e só se apresentou na GNR no dia seguinte de manhã.
Referiu, ainda, que “vinha de um jantar com amigos. Não consome álcool quando vai conduzir. “É raro beber água … álcool”. Foi para casa, estava em choque, todo molhado. O pai foi tratar de tudo”.
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DD
, trabalha em limpezas florestais, trabalha por conta própria. Na altura em que ocorreu o sinistro trabalhava num café na rua próximo do local do acidente e o AA era cliente.
Explicou que estava no café e viu um carro com os 4 piscas. O jovem queixava-se de uma mão. Disse para ir para casa. Viu vidros e plásticos no chão. O dono do muro estava à minha beira. Falaram os três “aconselharam o rapaz a ir para casa”.
Disse, ainda, referindo-se ao condutor do veículo automóvel que “nessa noite esteve comigo no café. Só bebeu café. Saiu cerca da meia noite ou 1 da manhã. Não teve o acidente logo a seguir”.
Referiu que o condutor do automóvel se queixava da mão esquerda. O dono do muro informou que tinha chamado a GNR. Ele era filho do Presidente da Junta. O dono do muro disse “vai-te embora que depois eu trato disso com o teu pai”.
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BB
, encarregado de construção.
Referiu que “o embate foi no muro da sua casa. Soube depois a quem pertencia a pessoa que bateu no muro”. Estava na cama e o quarto fica do lado do acidente. Ouviu o estrondo e viu o carro lá ao fundo e viu o senhor a ver o muro. Chamou a GNR. Esclareceu que é um local de muitos acidentes e tem vários pilares partidos, por esse motivo. Foi ver em direção ao carro e viu que conhecia o jovem, queixava-se do pulso. Estava todo molhado.
Mais referiu que o condutor lhe disse que era culpado, “pago tudo”.
A testemunha referiu que esteve no local até a GNR ir embora. Esteve perto do rapaz, e ele disse que assumia e foi assim que soube a quem pertencia. Estava muito calmo muito pacato. A aparência era de normalidade.
Chamou a polícia porque “já tenho muitos estragos”. Disse ao condutor do automóvel que tinha chamado a polícia. Disse que o aconselhou a deslocar-se ao hospital e que fosse trocar de roupa. A GNR demorou mais de meia hora a chegar. Disse que quando chegasse a GNR tratava de tudo.
Referiu, ainda, que quando viu que o carro bateu no muro chamou a GNR. Não sabia quem tinha batido. Quando a GNR chegou, já sabia quem era o rapaz e disse quem era o condutor do veículo. Era filho do EE.
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HH
, guarda da GNR, a prestar serviço em ... há cerca de 20 anos.
A testemunha disse que falou com o pai do interveniente no acidente, que é o senhor EE, Presidente da Junta. O veículo estava a 150 m do local do embate. Disseram-lhe que levaram para casa o condutor. Apareceu o pai. Referiu que “não teve legitimidade de fazer o teste de álcool, porque não estava lá. Disseram que tinham ido para casa”.
Disse que falou com uma senhora, talvez a esposa, do dono do muro. Falou com amigos do condutor. Reconheceu hoje uma das testemunhas, como estando no local. Dia de chuva. No momento que lá chegou não estava a chover.
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CC
, perito de seguros.
A testemunha referiu que após averiguações apurou que ocorreu um despiste numa reta antecedido de uma curva à direita. Despiste durante a noite, cerca das 3 horas da manhã. Esteve no local e falou com o proprietário da casa, que lhe disse que ouviu um ruído e veio cá fora e que o jovem se aproximou dele e ele teria dito, já chamei as autoridades e o condutor ausentou-se.
Esclareceu que no local existe uma curva ligeira à direita. A curva não é excecionalmente perigosa. Não tem conhecimento de intervenção de outro veículo. “Ausentou-se do local”, foi a única referência que lhe foi feita sobre a conduta do condutor.
Mais referiu que no Porto falou com o condutor, cerca de 15 dias depois e ele disse que se ausentou porque ficou com um hematoma na mão.
Disse que se as autoridades são chamadas para o local têm de aguardar. O condutor disse que esteve num café perto a confraternizar com uns amigos.
Por fim, referiu que o dono do muro não fez qualquer alusão que tenha aconselhado o condutor a ausentar-se; não fez qualquer menção.
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GG
, perito averiguador.
Só levantou o auto da GNR e não fez mais nada.
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Entendemos que face à prova produzida e concretas circunstâncias do caso, a sua análise à luz das regras da experiência comum, tal como consta da fundamentação da decisão de facto, não merece censura.
Fazendo a apreciação crítica da prova apenas se pode concluir, com o grau de certeza necessário a apreciar e decidir os factos, que o condutor do veículo se ausentou do local onde ocorreu a colisão no muro, depois de ter conhecimento que o dono do muro tinha chamado a autoridade policial, no caso, a GNR.
Como bem se refere na sentença, se o dono do muro o aconselhou a ausentar-se e por esse motivo o fez, tal comportamento apenas ao próprio é imputável, porque tinha conhecimento que a autoridade policial viria a comparecer e teria de prestar informação sobre o sucedido e efetuar o teste de alcoolemia (art.º 156º /1 do Código da Estrada).
Apenas em sede de julgamento se faz referência a queixas de dores na mão. Nenhuma testemunha depôs no sentido do que foi alegado pela autora, ou seja, que o condutor do veículo começou “a sentir fortes dores”.
Acresce que a alegada lesão na mão, não se mostra confirmada por relatório médico e também, os depoimentos das testemunhas não são neste aspeto muito esclarecedores, para não afirmar que são até contraditórios.
A testemunha AA, condutor do veículo, referiu que estava em choque. Mas a testemunha BB já refere que estava muito calmo. Por outro lado, a testemunha BB refere que o condutor se queixava de dores na mão, mas a testemunha CC, que fez a averiguação e recolha de elementos junto do proprietário do muro, refere que este não lhe comunicou que o condutor se ausentou porque tinha dores na mão.
A testemunha HH, agente da GNR, que se deslocou ao local, não faz qualquer referência à causa pela qual o condutor do veículo se ausentou, nem refere que lhe deram qualquer justificação. A testemunha, agente da GNR referiu que apenas falou com a mulher do proprietário do muro, referindo não se recordar se falou com o proprietário.
Na participação de acidente inserida a páginas 244 do processo eletrónico, sistema Citius, não se faz qualquer alusão a declarações prestadas pelo proprietário do muro. Apenas se indica a identificação deste proprietário e faz-se menção que o condutor do veículo se ausentou.
Acresce que se estranha que o proprietário do prédio tenha chamado a GNR e não tenha chamado uma ambulância para assistir o condutor do veículo, por ser esse o procedimento que se espera e é normal quando existe alguém ferido na sequência de uma colisão com um veículo automóvel.
As contradições apontadas aos depoimentos das testemunhas, desvalorizam o seu valor probatório. Tal circunstância aliada à insuficiência da prova quanto às apontadas lesões na mão e o seu grau de gravidade, impedem que se altere a decisão, devendo por isso, manter-se o facto não provado.
Pelo exposto, improcedem as conclusões de recurso.
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- Da exclusão da responsabilidade da seguradora -
No ponto 18 das conclusões de recurso, a apelante insurge-se contra o segmento da decisão que julgou improcedente a ação, no pressuposto de ser alterada a decisão de facto e tendo presente o Ac. STJ 24 de maio de 2022, Proc. 52/20.7 T8TND.C1.S1 (acessível em
www.dgsi.pt
).
Mantendo-se inalterada a decisão de facto, não se justificaria reapreciar o direito, não fora o facto de se fazer menção ao citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, o que justifica uma análise dos fundamentos da cláusula de exclusão da responsabilidade. Com efeito, a apelante não questiona que ocorreu o sinistro no circunstancialismo provado – de noite às 3.30 horas despiste do veículo segurado e embate no muro, com danos, comunicação à autoridade policial competente pelo proprietário do imóvel, com conhecimento do condutor do veículo e abandono do veículo.
Sustenta que pelo facto do condutor se ausentar do local onde ficou o veículo segurado, após a colisão no muro, não constitui motivo idóneo para excluir a responsabilidade da seguradora.
Em tese geral, o contrato de seguro é o contrato pelo qual a seguradora mediante retribuição pelo tomador do seguro, se obriga, a favor do segurado ou de terceiro, à indemnização de prejuízos resultantes, ou ao pagamento de valor pré-definido em função da realização de um determinado evento futuro e incerto, o que equivale dizer, “o risco”.
O risco constitui um elemento essencial do contrato e pode ser definido como o evento futuro e incerto cuja materialização constitui o sinistro
[7]
.
O regime do contrato de seguro rege-se pelas estipulações da respetiva apólice não proibidas pela lei e pelas disposições do Código Comercial – art.º 427º Código Comercial e art.º 11º e 37º do DL 72/2008 de 16/04.
Na apólice, conforme resultava do art.º 426º do Código Comercial e se prevê no art.º 37º do DL 72/2008 de 16/04, deve constar a identificação das partes, o objeto do seguro, a sua natureza e valor, os riscos contra que se faz o seguro, a quantia segurada, o prémio seguro, o tempo em que começam e acabam os riscos, bem como, todas as condições estipuladas pelas partes.
Provou-se que a A. celebrou com a Ré um contrato de seguro com cobertura de danos próprios, designadamente por choque, colisão, capotamento e quebra isolada de vidros, relativo ao veículo com matrícula ..-RE-.., em vigor à data do sinistro, titulado pela apólice ...97.
Na respetiva apólice ficou convencionado no art.º 40º, alínea c), das condições gerais a seguinte exclusão contratual:
“Sinistros resultantes de demência do condutor do veículo ou quando este conduza em contravenção à legislação aplicável à condução sob o efeito de álcool, ou sob a influência de estupefacientes, outras drogas, produtos tóxicos ou fármacos cujo os efeitos, diretos ou secundários, resultem na diminuição da capacidade de condução, ou ainda quando aquele se recuse a submeter-se aos testes de alcoolemia ou de deteção de estupefacientes, bem como quando, voluntariamente e por sua iniciativa, abandone o local do acidente de viação antes da chegada da autoridade policial, quando esta tenha sido chamada por si ou por outra entidade”.
Na sentença considerou-se preenchida esta cláusula de exclusão, porque o condutor do veículo que deu causa ao sinistro voluntariamente abandonou o local do acidente de viação antes da chegada da autoridade policial, que tinha sido chamada pelo proprietário do prédio e sem que se tivesse feito prova de qualquer circunstância que justificasse tal abandono.
Como refere a Ré na contestação esta previsão contratual é, desde logo, um corolário do princípio da mitigação do sinistro, previsto no art.º 126º/1 e 2 da LCS, emanado do princípio da boa fé contratual consagrado no art.º 762º do CC, e é ainda a concretização do dever geral de apresentação às autoridades, previsto, além do mais, para os condutores de veículos automóveis, nos art.º 152º/1, alínea a) e 153º/1 do C.E., e, máxime em caso de acidente, no art.º 156º/1 do mesmo diploma legal, justificando-se, como neles previsto, para prevenir a condução sob o efeito do álcool e, concretamente, em sede do seguro em apreço, ao controlo dessa condução, nomeadamente para efeitos do exercício, pela seguradora, do direito de regresso previsto no art.º 27º/1, alínea c) do DL. 291/07, de 21 de agosto.
Perante este quadro legal e na interpretação da cláusula de exclusão da responsabilidade inserida no contrato de seguro, discute-se se a mesma abrange genericamente toda e qualquer situação de abandono do local do sinistro pelo segurado, desde que a entidade policial venha a ser chamada para tomar conta da ocorrência e aí se desloque para o efeito, independentemente da efetiva consciência e tomada de conhecimento por parte do condutor relativamente a essa concreta solicitação.
É exemplificativo da controvérsia o voto de vencido expresso no Ac. Rel. Lisboa 06 de julho de 2023, Proc. 2685/21.5T8SXL.L1-2, acessível em
www.dgsi.pt
, onde se afirma e passa a citar-se:
"Concederia provimento à apelação, em suma, pelas seguintes razões:
1) A alínea c) da cláusula 40.ª das condições gerais da apólice contratada entre as partes determina que não se encontram cobertos pelas coberturas facultativas, a situação em que o segurado “(…) voluntariamente e por sua iniciativa, abandone o local do acidente de viação antes da chegada da autoridade policial, quando esta tenha sido chamada por si ou por outra entidade; (…)”;
2) Em meu entender a previsão desta exclusão - e a razão da sua existência - não ocorre apenas na situação em que o condutor do veículo conheça o chamamento e se ausente;
3) Na realidade, para que a mesma não tenha atuação, deverá determinar - designadamente, na situação dos autos, em que está em causa o embate num veículo sem condutor - pelo menos, a demonstração da impossibilidade de o chamamento das autoridades se efetivar pelo condutor do veículo ou, pelo menos, a verificação da impossibilidade do condutor poder prever que a autoridade seria chamada por terceiros no momento em que tal chamamento teve lugar (por exemplo quando o chamamento ocorra vários dias depois do embate, sem conexão adequada entre o momento do embate e aquele em que as autoridades vêm a tomar conta da ocorrência, etc.);
4) O condutor do veículo de matrícula ..-SN-.. embateu e embora tenho tomado nota da matrícula, não desenvolveu qualquer conduta para dar conta do acidente, antes de as autoridades serem chamadas por terceiro, o que, sendo previsível, não foi acautelado, de qualquer modo pelo referido condutor;
5) Encontra-se provado tal chamamento por terceiros (esposa do proprietário do veículo ..-HS-.., pouco minutos após o embate (factos provados 9 e 15);
6) Não se encontra demonstrada qualquer impossibilidade do condutor do veículo de matrícula ..-SN-.. ter aguardado pela chegada das autoridades ou por ele mesmo as chamar;
7) A previsão constante da referida alínea c) da cláusula 40.ª é, segundo creio, atuante, o que determinaria a exclusão da cobertura das garantias accionadas".
A esta questão, o Ac. STJ 24 de maio de 2022, Proc. 52/20.7T8TND.C1.S1 (acessível em
www.dgsi.pt
), citado pela apelante, defende, com argumentos que fazemos nossos e que passamos a citar:
“A questão jurídica a decidir na presente revista tem a ver com a interpretação do âmbito e alcance da cláusula contratual geral ínsita no contrato de seguro facultativo (danos próprios) em que se prevê a exclusão da cobertura quando em acidente de viação “o Condutor do veículo seguro recusar submeter-se a testes de alcoolémia ou de deteção de substâncias estupefacientes ou psicotrópicas, bem como quando voluntariamente abandonar o local do acidente de viação antes da chegada da autoridade policial, quando esta tenha sido chamada por si ou por outra entidade”.
Conforme é referido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31 de Março de 2022 (relatora Maria Prazeres Beleza), proferido no processo nº 898/19.9T8PTL.G1.S1, publicado in
www.dgsi.pt
:
“À interpretação de uma cláusula de exclusão que figura nas condições gerais, sem haver prova de que tenha resultado de negociação individualizada, aplicam-se as normas definidas no Código Civil para a interpretação dos negócios jurídicos em geral (artigo 236º e seguintes) e as normas sobre interpretação de cláusulas contratuais gerais, constantes do Decreto-lei nº 446/85, de 15 de Outubro”.
A interpretação do negócio jurídico tem por objectivo evidenciar o concreto conteúdo normativo que irá reger a conduta das partes intervenientes, fixando-se o sentido do encontro de vontades vinculativo celebrado entre elas.
O artigo 236º do Código Civil fixa precisamente os princípios e critérios interpretativos, ao determinar, no seu nº 1, que:
“A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele”.
Consagra, pois, a lei, em termos hermenêuticos, uma concepção objectivista da interpretação da declaração negocial, o que significa que importa apurar o sentido exteriorizado ou cognoscível, atestado pelos respectivos elementos objectivos, na vertente da interpretação normativa e não meramente psicológica.
No âmbito dos denominados contratos de adesão em que vigora o regime estabelecido pelo Decreto-lei nº 446/85, de 25 de Outubro, os princípios a adoptar são exactamente os mesmos, mas será de ponderar, complementarmente, o princípio privativo deste tipo de negócios segundo o qual na dúvida quanto ao sentido da declaração negocial, deve a mesma ser interpretada “contra stipulatorem”, desfavorecendo o autor das condições gerais pré-ordenadas e dirigidas a uma multiplicidade de contratos individuais, e beneficiando correspectivamente o aderente – parte mais débil nesta relação - que não teve intervenção participativa na sua concepção, em bloco e em massa.
É o que expressamente resulta do artigo 11º, nºs 1 e 2, do Decreto-lei nº 446/85, de 25 de Outubro, encimado pela epígrafe “Cláusulas Ambíguas”, segundo o qual:
“As cláusulas contratuais gerais ambíguas têm o sentido que lhes daria o contratante indeterminado normal que se limitasse a subscrevê-las ou a aceitá-las, quando colocado na posição do aderente real” (nº 1);
“Na dúvida, prevalece o sentido mais favorável ao aderente” (nº 2).
(vide, sobre esta matéria, Mota Pinto, in obra citada, a páginas 447 a 448).
Conforme salienta Ana Prata in “Contrato de Adesão e Cláusulas Contratuais Gerais”, Almedina, 2010, a página 304:
“Esta solução faz recair o risco da ambiguidade da cláusula sobre o respectivo predisponente, nos casos em que aquele não seja susceptível de fixação de um sentido unívoco por um aderente de comum diligência, o mesmo é dizer que faz impender sobre aquele um ónus de clareza”.
(Sobre esta temática das denominadas “cláusulas ambíguas”, vide também o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de Abril de 2021 (relator Henrique Araújo), proferido no processo nº 1479/17.7T8BJA.E1.S1, publicado in
www.dgsi.pt
, onde pode se refere, citando Galvão Telles, in “Cláusulas Contratuais Gerais”, página 32: “(...) não se formula neste nº 1 (do artigo 11º do Decreto-lei nº 446/5, de 25 de Outubro) um critério específico para as cláusulas ambíguas ou duvidosas, antes se faz apelo ao critério geral do artigo 236º, nº 1, do Código Civil. Se mesmo assim, a dúvida persistir, prevalecerá o sentido mais favorável ao aderente”; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Março de 2008 (relator Nuno Cameira), proferido no processo nº08A053, publicado in
www.dgsi.pt
, onde se enfatiza que: “Tendo-se revelado possível fixar-lhe um sentido negocial unívoco, de harmonia com a impressão do destinatário e sem recorrer a elementos estranhos ao texto do contrato, fica vedado ao intérprete recorrer a este texto legal (o artigo 11º do Decreto-lei nº 446/5, de 25 de Outubro)”).
Na situação sub judice, sustenta a seguradora que a referida cláusula de exclusão abrange genericamente toda e qualquer situação de abandono do local do sinistro pelo segurado, desde que a entidade policial venha a ser chamada para tomar conta da ocorrência e aí se desloque para o efeito (independentemente da efectiva consciência e tomada de conhecimento por parte do condutor relativamente a essa concreta solicitação).
Acrescenta que, por imposição do artigo 156º, nº 1, do Código da Estrada, o A., condutor interveniente em sinistro rodoviário, estava obrigado a submeter-se a teste de alcoolemia, pelo que deveria ter permanecido no local para esse efeito, depois de solicitada a presença das autoridades policiais competentes que realizariam, na sua pessoa, esse exame.
Diversamente, defende o A. que a correcta interpretação da mesma cláusula contratual geral é a de que a exclusão apenas terá lugar, restritivamente, se o sinistrado tiver tido conhecimento do chamamento das autoridades policiais ao local do sinistro (por sua iniciativa ou de terceiro) e, nessas circunstâncias, decida então abandonar o local (evitando assim o contacto com as ditas autoridades que sabe estarem na iminência de o vir a abordar).
Tal como decidido no acórdão recorrido, entendemos que a interpretação do normativo, seguindo as regras definidas através da teoria da impressão do destinatário, expressa nos artigos 236º a 239º do Código Civil, corresponde seguramente à segunda das leituras da cláusula contratual de exclusão de cobertura em apreço. […] não se compreende a solução de exonerar a seguradora da responsabilidade assumida por via contratual quando o condutor se desloque para fora do local do acidente sem que se prove que o mesmo o fez tendo a perfeita noção da iminente chegada das entidades policiais, convocadas por si ou por terceiro, e que o iriam seguramente submeter ao teste de alcoolemia, tal como legalmente previsto.
Apenas nestas exactas circunstâncias passará a existir verdadeiramente fundamento para a exclusão da cobertura do seguro, uma vez que só então se poderá admitir ou pressupor o seu propósito de procurar inviabilizar, pela sua ausência premeditada, a submissão à realização do dito teste de alcoolemia.
Por outro lado, o artigo 156º, nº 1, do Código da Estrada, ao contrário do que sucede no artigo 89º, nº 2, do mesmo diploma, não estabelece a obrigatoriedade de permanência do condutor no local do sinistro em toda e qualquer circunstância (em especial, não tendo resultado do acidente mortos ou feridos).
Ora, encontrando-se a viatura imobilizada fora da faixa de rodagem, sem o envolvimento de qualquer outro veículo no acidente, peão atingido ou ferido a carecer de assistência médica; estando a via livre e desimpedida de qualquer obstáculo; ocorrendo o evento de madrugada, em espaço ermo e isolado; tendo ficado o condutor ensanguentado, por virtude dos ferimentos ligeiros resultantes do despiste, nunca se compreenderia que a simples deslocação do condutor para qualquer outro local (incluindo a sua residência em momento de compreensível nervosismo e perturbação) importasse só por si, de forma excessiva e desnecessariamente gravosa, a exclusão de cobertura do seguro, caso, por qualquer circunstância acidental, um terceiro viesse a solicitar a comparência das entidades policiais para tomarem conta da ocorrência e tal viesse efectivamente a acontecer (o que sucedeu na situação sub judice por iniciativa do funcionário do call center, solicitado através do mecanismo automático instalado na viatura ..., que motu proprio, e no normal cumprimento das suas funções, deu notícia da ocorrência).
De resto, reconhecendo alguma incontornável ambiguidade no teor da cláusula de exclusão em referência (onde se refere, como elemento essencial para a sua verificação, o chamamento ao local das entidades policiais, sem que se esclareça devidamente e com rigor a necessidade, ou não, do conhecimento deste facto pelo condutor envolvido), sempre esta natural dúvida interpretativa – aqui perfeitamente legítima – levaria à aplicação da regra prevista no artigo 11º, nº 2, do Decreto-lei nº 446/85, de 25 de Outubro, optando-se pela leitura que se mostre mais favorável aos interesses do aderente/segurado”.
Neste sentido se pronunciaram, entre outros, o Ac. STJ 18 de março de 2021, Proc. 1542/19.0T8LRA.C1.S1, Ac. Rel. Lisboa 06 de julho de 2023, Proc. 2685/21.5T8SXL.L1-2 (todos acessíveis em
www.dgsi.pt
).
No caso concreto, perante o quadro factual apurado, a questão nem se chega a colocar, porque o condutor do veículo tomou conhecimento que o dono do prédio chamou a autoridade policial e, mesmo assim, ausentou-se do local, sem qualquer motivo que o justificasse, apenas comparecendo no posto da autoridade policial, para prestar declarações, no dia imediatamente seguinte ao dia em que ocorreu o sinistro.
Ao agir deste modo, impediu que autoridade policial realizasse o teste de alcoolemia, tal como legalmente previsto (art.º 156º/1 CE).
Contrariamente ao afirmado pela apelante a concreta situação de facto objeto de análise nestes autos não corresponde àquela que foi apreciada no citado Ac. STJ 24 de maio de 2022, Proc. 52/20.7 T8 TND.C1.S1 e onde não estava em causa apurar se havia uma justificação para o condutor se ausentar do local do sinistro, mas tão só saber se o facto de não ter conhecimento que foi solicitada a intervenção da autoridade policial era suscetível de enquadrar a cláusula de exclusão da responsabilidade da seguradora.
Em conclusão, não merece censura a sentença quando concluiu que recaía sobre a autora o ónus de provar a causa justificativa para o abandono do veículo após o sinistro e que se verificava a cláusula de exclusão prevista no contrato de seguro e por esse motivo, a seguradora não responde pelos danos causados no veículo.
Pelo exposto improcedem as conclusões de recurso sob o ponto 18.
-
Nos termos do art.º 527º CPC as custas são suportadas pela apelante.
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III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso e confirmar a sentença.
-
Custas a cargo da apelante.
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Porto, 10 de fevereiro de 2025
(processei, revi e inseri no processo eletrónico – art.º 131º, 132º/2 CPC)
Assinado de forma digital por
Ana Paula Amorim
Juiz Desembargador-Relator
Miguel Baldaia de Morais
1º Adjunto Juiz Desembargador
Jorge Martins Ribeiro
2º Adjunto Juiz Desembargador
__________________________
[1]
Texto escrito conforme o Novo Acordo Ortográfico de 1990, com exceção dos excertos dos acórdãos citados e transcritos.
[2]
ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES
Recursos em Processo Civil
, 7ª edição atualizada, Coimbra, Almedina, 2022, pág. 333-335.
[3]
ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES
Temas da Reforma de Processo Civil
, vol. II, Coimbra, Almedina, janeiro 2000, 3ª ed. revista e ampliada, pág. 272.
[4]
JOSÉ ALBERTO DOS REIS
Código de Processo Civil Anotado
, vol. IV, Coimbra Editora, Coimbra, pág. 569.
[5]
Ac. Rel. Guimarães 20.04.2005, Proc. Proc. 577/05-1 -
www.dgsi.pt
.
[6]
ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES
Recursos em Processo Civil
, 7ª edição atualizada, Coimbra, Almedina, 2022, pág. 333-334.
[7]
JOSÉ VASQUES
Contrato de Seguro - Notas para uma Teoria Geral
, Coimbra, Coimbra Editora, 1999, pág. 127.
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TRP
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https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/21d0c603242ca00880258c38004184b3?OpenDocument
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1,759,795,200,000
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CONFIRMADA
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1192/22.3T8FLG.P1
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1192/22.3T8FLG.P1
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MIGUEL BALDAIA DE MORAIS
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I - O objetivo do 2º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto não é (nem pode ser) pura e simples repetição das audiências perante a Relação, mas a deteção e correção de concretos, pontuais e claramente apontados e fundamentados erros de julgamento, sem prejuízo de aquando da apreciação dos meios probatórios colocados à sua disposição formar uma convicção autónoma sobre a materialidade impugnada.
II - Como assim, os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem apenas um remédio a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos imponham inequivocamente (em termos de convicção autónoma) uma decisão diversa da que foi dada pela 1ª instância.
III - Se os efeitos que o facto confessado é idóneo a produzir forem contrários ao interesse duma pluralidade de sujeitos e subjetivamente incindíveis, a legitimidade para confessar radicará, em consequência, nessa pluralidade, não podendo um desses sujeitos isoladamente produzir uma confissão que se traduziria no reconhecimento da realidade dum facto que a todos é desfavorável.
IV - Por essa razão, uma “declaração de dívida” subscrita por um dos cônjuges reconhecendo a existência de um débito que a ambos responsabiliza, é ineficaz em relação ao outro cônjuge que não a haja assinado.
V -
Dependendo a apreciação do recurso pertinente à interpretação e aplicação do Direito ao caso concreto do prévio sucesso do simultâneo recurso interposto sobre a matéria de facto fixada, sendo este último julgado improcedente, fica necessariamente prejudicado o conhecimento daquele primeiro.
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[
"CONFISSÃO",
"PLURALIDADE DE SUJEITOS"
] |
Processo nº 1192/22.3T8FLG.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, Felgueiras – Juízo Local Cível, Juiz 1
Relator: Miguel Baldaia Morais
1ª Adjunta Desª. Maria de Fátima Andrade
2º Adjunto Des. José Eusébio Almeida
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SUMÁRIO
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I- RELATÓRIO
AA e esposa BB intentaram a presente ação declarativa sob a forma comum contra CC e DD, peticionando a condenação solidária dos réus no pagamento da quantia de 16.000,00€ (dezasseis mil euros).
Para substanciar tal pretensão alegam, em síntese, terem emprestado aos réus a quantia de 16.000,00€ (dezasseis mil euros) que estes utilizaram no pagamento de obras de construção da sua residência, tendo a ré assinado uma declaração de reconhecimento dessa dívida.
Acrescentam que apesar de terem sucessivamente interpelado os réus para efetuarem o reembolso da mencionada importância, os mesmos ainda não o fizeram.
Regularmente citados, apenas o réu CC contestou, alegando nunca ter pedido ou recebido dos autores a aludida quantia, sendo que a mencionada declaração de dívida foi subscrita pela ré, de forma concertada com a autora (sua irmã), para, desse modo, conseguir obter, na partilha dos bens comuns do ex casal formado pelos demandados, um valor que não lhe é devido.
Realizou-se audiência final, vindo a ser proferida sentença na qual se decidiu julgar a ação improcedente.
Não se conformando com o assim decidido, os autores interpuseram o presente recurso, que foi admitido como apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Com o requerimento de interposição do recurso apresentaram alegações, formulando, a final, as seguintes
CONCLUSÕES:
1. A decisão recorrida foi tomada contra as provas, funda-se na íntima convicção do julgador (que sustenta toda a decisão com razões de “estranheza”), encerra contradições, contraria as regras da normalidade e da experiência comum, não respeitando um itinerário lógico, em violação do art. 607º, nº 4 e 5 do CPC.
2. O Tribunal não atribuiu qualquer credibilidade às declarações de parte, em violação do art. 466° n.º 3 do CPC.
3. O Tribunal não valorou a prova documental junta, nomeadamente, os extratos bancários, os documentos juntos em 04/11/2024 e fez uma errada valoração da confissão de dívida.
4. A prova produzida [por confissão, testemunhal (nos concretos trechos transcritos, cuja audição se requer) e documental] impõe que os factos A e C sejam dados por provados e o facto B) seja dado por provado com a seguinte redação: quantia que os Réus receberam em várias prestações, desde 2015 a 15/01/2017.
5. Toda a prova – à exceção do depoimento de parte do R. - foi unânime no sentido de ter havido um empréstimo pelos AA., entre 2015 e 2017, que serviu ao pagamento das obras pelos RR.
6. Pelo que, não há dúvidas que o empréstimo foi contraído no interesse do casal, para proveito comum dos RR., casados que eram no regime de comunhão de adquiridos.
7. A confissão de dívida vincula ambos os cônjuges.
8. Em matéria de administração (ordinária) de bens dos cônjuges importa ter presente o disposto no art. 1678°, nº 3 do CC., segundo o qual ambos os cônjuges são administradores do património comum.
9. In casu, não se provaram (nem foram alegados) factos que permitam concluir pela exclusão da administração pela Ré, pelo que a sua atuação se configura como integrada nos limites dos seus poderes.
10. Decorre, assim necessariamente preenchida.
*
O réu apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.
*
Após os vistos legais, cumpre decidir.
***
II- DO MÉRITO DO RECURSO
1. Definição do objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil
[1]
.
Porque assim, atendendo às conclusões das alegações apresentadas pelos apelantes, são as seguintes as questões solvendas:
. determinar se o tribunal
a quo
incorreu num
error in iudicando
, por deficiente avaliação ou apreciação das provas e assim na decisão da matéria de facto;
. decidir em conformidade face à alteração, ou não, da materialidade objeto de impugnação, mormente dilucidar se os autores/apelantes assiste (e em que termos) o direito de exigir dos réus o pagamento do montante de €16.000,00 que alegadamente lhes mutuaram.
***
2. Recurso da matéria de facto
2.1. Factualidade considerada provada na sentença
O tribunal de 1ª instância considerou provada a seguinte matéria de facto:
1. Os RR. contraíram matrimónio, entre si, em 14/09/1986, sob o regime de comunhão de adquiridos.
2. Por sentença judicial de 28/01/2019 foi decretado o divórcio, assim se dissolvendo o casamento.
3. Na pendência do matrimónio, os RR. construíram um imóvel, concretamente uma habitação com anexo, no prédio urbano sito no Lugar ..., Lote n.º ..., na atual União de freguesias ..., ..., ..., ..., ... (extinta freguesia ...), concelho de Felgueiras.
4. Prédio esse que se encontra atualmente inscrito na matriz sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Felgueiras sob o n.º ....
5. Onde estabeleceram a casa de morada de família.
6. Os RR. encontram-se atualmente em processo de partilha de bens por divórcio, que corre termos pelo Cartório Notarial da Dra. EE, sito em Felgueiras, com o nº de pº 1892/19.
7. Os AA. AA e BB são, respetivamente, cunhados e irmã da ré DD.
8. A obra do prédio identificado supra iniciou-se por volta do ano de 2013 e apenas ficou concluída em finalizada em meados de 2017, os RR. foram para lá residir, conjuntamente com os seus filhos.
9. Em 15/01/2017, por documento denominado “confissão de divida” -a R. DD reconheceu dever o casal R. à A. BB aquela suprarreferida quantia de 16.000€ (dezasseis mil euros).
10. Os AA. instaram quer telefónica, quer pessoalmente, a R. DD e o R. CC para o pagamento dos valores em dívida, nomeadamente na ocasião do divórcio, em 28/01/2019.
11. Em 30/03/2021, os aqui AA. (em coligação com outros credores dos RR.) intentaram ação contra os aqui RR., a fim de ser reembolsados de tal valor.
12. O R. foi citado em 18/06/2021 e a R. em 05/04/2021.
13. Tal ação correu termos sob o nº 342/21.1T8FLG e corre termos pelo J2 do Juízo Local Cível de Felgueiras.
14. Os RR. foram absolvidos da instância, quanto ao pedido formulado pelos aqui AA.
15. Os RR., pese embora interpelados por diversas vezes, pelos AA., para que procedessem ao pagamento dos montantes em dívida, não lograram, até ao presente, pagar o que quer que fosse.
16. A construção da casa foi suportada por 2 empréstimos contraídos e a saber:
a. Empréstimo de Eur.70.000,00 junto da Banco 1... para crédito à habitação, e
b. Empréstimo de Eur.30.000,00 para acabamento da obra junto da Banco 1...;
*
2.2. Factualidade considerada não provada na sentença
O Tribunal de 1ª instância considerou não provados os seguintes factos:
A) Para a construção daquela, os AA. AA e BB, a pedido dos RR., emprestaram-lhes a quantia de 16.000,00€.
B) Quantia que os RR. receberam em várias prestações, desde 2013 até 15/01/2017.
C) E que se destinou a pagamentos relacionados com a prestação de serviços e fornecimento de bens daquela referida construção da habitação e anexo.
***
2.3. Apreciação da impugnação da matéria de facto
Como emerge das respetivas conclusões recursivas, os apelantes vieram requerer a reapreciação da decisão sobre a matéria de facto vertida nas alíneas A), B) e C) dos factos não provados.
Nas referidas alíneas deu-se como não provado que:
. “Para a construção [da casa dos réus], os AA. AA e BB, a pedido dos RR., emprestaram-lhes a quantia de 16.000,00€” (alínea A));
. “Quantia que os RR. receberam em várias prestações, desde 2013 até 15/01/2017” (alínea B));
. “E que se destinou a pagamentos relacionados com a prestação de serviços e fornecimento de bens daquela referida construção da habitação e anexo” (alínea C)).
Sustentam os apelantes que a materialidade plasmada nas alíneas A) e C) deve transitar para o elenco dos factos provados, devendo de igual modo transitar para esse elenco a factualidade vertida na alínea B), que aí deverá passar a constar com a seguinte redação: “Quantia que os réus receberam em várias prestações, desde 2015 a 15 de janeiro de 2017”.
As transcritas proposições consubstanciam a essencial questão de facto que se discute no âmbito do presente processo e que se prende em apurar se os autores emprestaram aos réus determinada importância pecuniária para ser utilizada no pagamento de despesas de construção da habitação que estes levaram a cabo.
Vejamos, antes do mais, em que termos o juiz
a quo
fundamentou o sentido decisório referente à descrita materialidade, sendo que na respetiva motivação escreveu que «
[a] convicção do Tribunal baseou-se na análise crítica e conjugada do depoimento de parte dos réus, declarações de parte da autora, com a prova testemunhal produzida de audiência de julgamento, tomando em consideração os documentos juntos aos autos, tudo coadjuvado pelas regras da normalidade do acontecer e tendo sempre em vista as regras de distribuição dos respetivos ónus da prova.
A questão essencial dos autos é saber se os autores emprestaram aos réus a quantia de €16.000,00 para pagamento de dívidas / trabalhos respeitantes à construção de um imóvel, onde os réus instalaram a casa de morada de família.
Atenta a especificidade da presente situação, consubstanciada no facto dos réus serem ex-cônjuges e de um deles não ter contestado a ação e ter confessado o pedido da quantia peticionada, assinando mesmo uma declaração de dívida, o facto da autora mulher ser irmã da ré mulher, de ambas manterem uma boa relação entre si, como as próprias assumiram e foi percetível ao Tribunal, mas nenhuma delas se relacionar com o réu CC (como a ré DD assumiu), cumpre iniciar a fundamentação pela caraterização da prova pessoal, para melhor se perceber a sua contribuição para a sorte dos factos.
Quanto aos depoimentos de parte cumpre desde logo referir que a postura dos dois réus foi totalmente distinta: o réu CC prestou depoimento de forma calma, serena, escorreita, sem ter evidenciado querer faltar à verdade ou alterar a mesma em seu benefício, apresentou uma postura física consentânea com quem apenas pretende relatar a verdade, nomeadamente sem baixar o olhar, sem procurar qualquer apoio de terceiros antes de responder e respondendo de imediato e de forma objetiva ao que lhe era perguntado; de modo diverso, a ré DD apresentou uma postura nervosa, titubeante, hesitante, com lapsos seletivos de memória, sem concretizar datas, nem quantias que supostamente teria recebido, baixando frequentemente o olhar ou dirigindo o mesmo (pasme-se!) à Il. Mandatária dos Autores, tecendo ainda comentários sobre a pessoa do réu, sendo que, por outro lado, confessou, sem quaisquer hesitações, ser devedora da quantia peticionada, no exato montante peticionado, mesmo não conseguindo precisar os montantes parcelares emprestados, nem ter qualquer documento ou manuscrito que os comprovasse, facto que muito se estranha e duvida face às regras da normalidade.
Quanto à prova testemunhal, cumpre referir que FF, filha dos autores e sobrinha da ré, com quem se relaciona bem, além do natural interesse na causa, prestou declarações inicialmente limitadas a respostas de sim e não, com uma postura rígida e defensiva, o que se alcançou em face da imediação. O seu discurso foi vago, genérico e mesmo conclusivo, sobretudo quanto ao destino dos empréstimos para a construção da casa dos tios. Acresce que a tese que veio apresentar em Tribunal – de que fazia vários levantamentos, sobretudo em numerário da conta dos pais para dar à tia, não mereceu acolhimento do Tribunal, além do que antes se referiu, por ser contrariada pelas regras da normalidade, não sendo crível que não anotasse as quantias que teria entregue à tia, desde logo, para sua salvaguarda relativamente aos pais, pois que poderia acontecer a tia vir a negar alguma das entregas ou os montantes, sem que a mesma tivesse qualquer elemento para se defender e contrariar essa eventual postura. Igualmente se estranha que não soubesse o número de vezes em que ocorreram as entregas de dinheiro, sendo vaga nesta matéria.
Por outro lado, em face das regras da normalidade, não se percebe a necessidade efetuar entregas em numerário, quando facilmente poderiam ser feitas através de transferências bancárias, diretamente para a conta dos réus, sobretudo por a progenitora da testemunha se encontrar normalmente no estrangeiro, além de que, se usasse essa forma, ficaria com comprovativos das mesmas. Assim este depoimento não foi considerado.
E a testemunha GG, ex unido de facto da testemunha FF, também não se mostrou de qualquer forma crível, desde logo por referir que ele próprio fez entregas em dinheiro à Sr. DD, a pedido da FF, cujos montantes parcelares, desconhecia, o que justificou no facto de não contar o dinheiro, afirmando que tudo era feito com base na confiança, expressão exatamente igual à que a testemunha FF referiu várias vezes, o que denota uma versão concertada.
A testemunha HH, construtor da casa dos Réus, além do discurso contraditório, acabou por assumir que nunca viu qualquer empréstimo da autora à ré, sendo que o seu conhecimento era de ouvir dizer.
E a testemunha II, filho dos Réus, também não tinha qualquer conhecimento direto dos supostos empréstimos, assumindo que foi a mãe quem lhe disse que pedia dinheiro à tia para a construção da casa, nada sabendo de quantias envolvidas. Ainda assim, o seu testemunho foi relevante, na parte em que garantiu ao Tribunal que nunca viu a prima FF, nem o companheiro GG a entregarem dinheiro à mãe, quando o próprio vivia junto da progenitora, só tendo saído de casa em outubro de 2018, pelo que do seu depoimento resulta infirmado os depoimentos daquelas duas testemunhas, pois se fosse verdade que fizeram várias entregas, seria perfeitamente normal que, pelos menos uma ou duas vezes, essas entregas fossem presenciadas por uma pessoa que residia nos locais onde as mesmas, supostamente, ocorriam.
O depoimento da testemunha JJ não foi acolhido por se mostrar interessado na causa, uma vez que que se trata de pessoa que alega que os réus também lhe ficaram a dever dinheiro de trabalhos de canalização que efetuou na obra, pelo que também demandou os réus em tribunal, numa outra ação. Acresce que não se mostra credível que a ré DD lhe tivesse confidenciado que era a irmã que lhe emprestava dinheiro e que tivesse mesmo especificado exatamente a quantia de €16.000,00, seja por não existir relação de proximidade entre ambos que justificasse esse tipo de confidências, seja porque o mesmo nunca presenciou quaisquer empréstimos de dinheiro.
Quanto à testemunha KK, filha dos réus, cumpre referir que, apesar da mesma ter referido que foi o pai quem pediu dinheiro à tia e que assistiu a conversas em que o pai assumiu o pagamento da dívida de €16.000,00, o certo é que nunca assistiu a qualquer entrega de dinheiro, por parte da prima à progenitora, o que se estranha, uma vez que afirmou que na altura vivia na casa dos pais, pelo que o normal seria que tivesse assistido a alguma entrega. Por outro lado, a própria progenitora e mesmo a tia nunca afirmaram que foi o pai quem pedia o dinheiro à tia, mas que era o pai quem sugeria à mãe que pedisse dinheiro à irmã (tia da testemunha).
De outra banda, também não se mostrou crível que tivesse ouvido conversas telefónicas da mãe com a tia, por o telefone supostamente estar em alta voz, em que aquela pedia dinheiro a esta, por não ser normal, neste tipo de situações, que as pessoas anunciem, mesmo perante os filhos, esse facto e coloquem o telefone em alta voz, para que toda a gente saiba de dificuldades económicas.
Acresce que foi evidente a existência de conflito da testemunha com o progenitor e, ao invés, uma boa relação com a progenitora, o que conjugado com o facto da testemunha ter admitido que existiram conversas com vista a que a propriedade do imóvel dos progenitores fosse para si, aquando do divórcio dos progenitores, evidencia um natural interesse na causa e inexistência de distância suficiente que lhe permita ser objetiva e isenta.
Quanto à testemunha LL, irmã do réu, cumpre referir que o seu depoimento se mostrou irrelevante por não ter conhecimento direto dos factos, nem sequer ter acompanhado a construção da casa.
Quanto às declarações de parte da autora cumpre referir que apenas foram requeridas após a produção da restante prova o que, desde logo, limita em larga medida a valoração das mesmas porque, como é consabido, as partes possuem um claro interesse na causa e é normal que tenham conhecimento do que se vai passando na sala de audiências no decurso do julgamento. Acresce que muito se estranha a versão da autora, quando referiu em audiência que anotou os supostos empréstimos, nomeadamente as datas e os montantes, numa agenda, que supostamente teria consigo no momento em que estava a ser ouvido, quando nos articulados, não só não refere esse meio de prova, como também não o juntou.
Aliás, como decorre das regras da normalidade, em situações como a dos autos – empréstimos familiares – é perfeitamente normal que as pessoas anotem as quantias e datas dos empréstimos, que guardem comprovativos de quaisquer entregas ou que as façam na presença de testemunhas e, quando recorrem a Tribunal, é normal que juntem tais documentos, pelo que a versão dos autores, neste particular, não faz qualquer sentido.
Também não faz sentido a explicação de que faziam transferências para a sua conta em Portugal para que a filha FF procedesse ao levantamento do dinheiro, em numerário e o fosse entregar à tia, por uma questão de celeridade, pois que, essa celeridade seria melhor acautelada se fizessem as transferências diretamente para a ré. Além de que ficariam com um comprovativo.
De igual forma não faz qualquer sentido a tese de que o réu marido sempre lhes disse que ia pagar a dívida e não lhe tivessem exigido que assinasse a declaração de dívida, quando aceitaram uma declaração de dívida apenas assinada pela ré, não se considerando razoável a explicação de que o réu estava no estrangeiro, seja porque o mesmo se deslocava a Portugal pelo menos 3 vezes por ano, como decorreu da prova testemunhal, seja por ser fácil, atualmente, assinar documentos à distância.
De outra banda, importa também referir que, em face das regras da normalidade, não faz qualquer sentido a tese de empréstimos de pequenos montantes, pois que é consabido que os pagamentos a fornecedores ou trabalhadores, na construção de uma moradia, envolvem, normalmente elevadas quantias, em fases predeterminadas, não se destinando ao pagamento de pequenos trabalhos, pelo que não é crível a tese da existência de múltiplos empréstimos de quantias na ordem dos 1000 ou 2000 euros.
No que se refere à declaração de dívida assinada pela ré, muito se estranha, desde logo, que a mesma se encontre apenas assinada pela ré e não pelo réu, pelos motivos que suprarreferimos. Também se estranha que a indicada declaração refira expressamente que as quantias se destinaram a pagamentos respeitantes ao casal e não diga quantos empréstimos foram feitos, em que datas ou em que montantes.
Por outro lado, face à prova documental junta pelo réu e tal como resulta do facto provado 16), não é crível que para a realização de uma construção no valor de cerca de €181.000,00 (valor pelo qual terá sido adjudicada à ré mulher em inventário como a filha KK garantiu, tendo esta testemunha especial conhecimento por ser a pessoa quem supostamente iria ficar com a mesma casa por valor inferior) e tendo os réus realizado dois mútuos nos valores de €70.000,00 (realizada em 06.08.2013) e €30.000,00 (realizado em 10.03.2015), necessitassem ainda de pedir dinheiro emprestado aos cunhados, no referido montante para a obra.
De igual modo se estranha que a indicada confissão de dívida tenha sido assinada em janeiro de 2017, quando as dívidas aos fornecedores, cujos empréstimos supostamente visavam saldar, respeitem a 05.02.2018 (A...), 10.03.2017 (B...), sendo que mesmo que não destinassem a estes fornecedores, mas outros, nenhuma prova foi feita dessa afetação das supostas quantias. E da mesma forma não se entende porque a referida declaração foi assinada já depois do casal se encontrar separado de facto, conforme a própria ré admitiu, e não antes, logo após o fim dos empréstimos.
Assim, tudo conjugado, ficou o Tribunal convencido que os autores nunca emprestaram a alegada quantia de 16.000,00 aos réus para estes destinarem ao pagamento de quaisquer dívidas da construção da casa de morada de família ou para realização de obras na mesma, motivo pelo qual os factos A) a C) foram considerados não provados.
Aliás estes factos constituíam o cerne da causa de pedir dos autores.
É certo que a ré confessou, em audiência, o alegado empréstimo dos autores e afirmou que o mesmo se destinava ao pagamento das dívidas relacionadas com a construção da casa de morada de família, pelo que, à partida teria que ser o mesmo considerado provado, pelo menos quanto a si. Sucede que, pelos motivos que suprarreferimos, tal facto confessado é para nós notoriamente inexistente, pelo que essa mesma confissão não faz prova mesmo contra o confitente, sendo que, relativamente ao réu, sendo o facto confessado contrário aos seus interesses, não se podem extrair quaisquer efeitos negativos contra si da suposta confissão da ré.
Como também não o pode da declaração da dívida assinada pela ré.
Donde, os factos essenciais da causa de pedir foram considerados não provados
»
.
Colocados perante a transcrita motivação da decisão de facto e com o desiderato de justificar a, por si preconizada, alteração do juízo probatório que foi emitido pelo juiz
a quo
relativamente ao referido conjunto de proposições factuais, os apelantes convocam o documento nº 4 junto com a petição inicial e os documentos que apresentaram com o requerimento de 12 de fevereiro de 2024, as declarações de parte que prestaram na audiência final e bem assim os depoimentos nesse ato produzidos pelas testemunhas FF, GG, II, KK, JJ e HH, advogando que a concatenação de tais meios probatórios permite, na leitura que deles fazem, considerar demonstrado que efetivamente emprestaram aos réus a quantia de €16.000,00 que estes utilizaram no pagamento de trabalhos de construção da sua (deles, réus) habitação.
Iniciando pela apreciação da indicada prova documental, verifica-se que o primeiro dos documentos a que os apelantes fazem alusão é uma denominada “declaração de dívida”, datada de 15 de janeiro de 2017 e assinada pela ora ré, onde se “confessa devedora da quantia de dezasseis mil euros a BB [a ora autora], quantia que se destinou a pagamento respeitantes ao casal da devedora”.
O referido documento foi alvo de expressa impugnação por parte do réu, alegando que esse suporte documental foi subscrito pela ré, de forma concertada com a autora (sua irmã), para, desse modo, obter na partilha dos bens comuns do ex casal formado pelos demandados um valor que não lhe é devido.
Questão que, neste ponto, se coloca é a de saber qual o valor probatório dessa “declaração”, mormente se a mesma pode vincular o réu contestante.
À luz do disposto no art. 355º, nº 4 do Cód. Civil, a referida declaração constitui,
primo conspectu,
uma confissão extrajudicial escrita em documento particular. No entanto, por mor do respetivo regime substantivo (cfr. arts. 1691º e 1692º, do Cód. Civil), a assunção de uma dívida que responsabilize conjuntamente os cônjuges pressupõe, por via de regra, que a mesma seja contraída por ambos, ou por um deles com o consentimento do outro, sendo esse um dos fundamentos que justificam que a lei adjetiva (art. 34º) imponha uma situação de litisconsórcio necessário passivo nas ações que visem responsabilizar ambos os cônjuges por certa dívida. E é essa uma das razões fundamentais que está na base da regra plasmada no art. 353º, nº 2, 2ª parte, do Cód. Civil, que retira eficácia à confissão realizada por apenas um dos litisconsortes.
Isso mesmo é sublinhado por LEBRE DE FREITAS
[2]
, anotando que “se os efeitos que o facto confessado é idóneo a produzir forem contrários ao interesse duma pluralidade de sujeitos e subjetivamente incindíveis, a legitimidade para confessar radicará, em consequência, nessa pluralidade, não podendo um desses sujeitos isoladamente produzir uma confissão que se traduziria no reconhecimento da realidade dum facto que a todos é desfavorável”.
Como assim, o efeito confessório que poderia resultar da mencionada “declaração de dívida” é, no caso, ineficaz.
Relativamente aos documentos que os apelantes apresentaram com o requerimento de 12.02.2024, da respetiva exegese apenas se extrai que de uma conta que os autores são titulares no Banco 2..., foram efetuados, no período compreendido entre 1 de maio de 2016 e 30 de dezembro desse mesmo ano, levantamentos em numerário no montante global de €5.000,00.
Já no concernente à prova pessoal que indicaram com o assinalado desiderato, verifica-se que, nas alegações recursivas, os apelantes se limitam, praticamente, a transcrever excertos dos depoimentos produzidos pelas indicadas pessoas.
Certo é que, para o aludido efeito impugnatório, não basta a mera indicação, sem mais, de um determinado meio de prova, e também se revela insuficiente, no que respeita à prova pessoal, o extrato de uma simples declaração de testemunha ou de parte, sem correspondência com o sentido global do depoimento produzido, de tal modo que não permita consolidar uma determinada convicção acerca de matéria controvertida.
Ao invés, tal como se impõe que o tribunal faça a análise crítica das provas (de todas as provas que se tenham revelado decisivas), nos termos do art. 607º, nº 4, também os recorrentes, ao enunciar os concretos meios de prova que, na sua visão, conduziriam a uma decisão diversa, deveriam fundar tal pretensão numa análise (crítica) dos meios de prova adrede produzidos sobre a materialidade impugnada, não bastando reproduzir um ou outro segmento descontextualizado de depoimentos prestados em julgamento.
Como quer que seja, depois de se proceder à audição da totalidade da prova pessoal produzida na audiência final, vejamos, então, o que, de útil, foi declarado pelas pessoas aí inquiridas a respeito da facticidade alvo de impugnação.
Assim, o réu CC declarou que em momento algum os autores lhe emprestaram dinheiro para pagamento de obras da sua habitação, tendo procedido ao pagamento das mesmas com empréstimos que contraiu junto da Banco 1... que foi regularmente liquidando, pagando ainda essas despesas com dinheiro que auferia como trabalhador na construção civil no Luxemburgo, onde ganhava mensalmente mais de três euros, realizando ele próprio vários trabalhos na construção da sua casa.
Acrescentou que os seus cunhados [os ora autores] nunca o abordaram no sentido de “pagar o que quer que fosse” ligado à construção da sua casa.
A ré DD declarou que enquanto foi casada com o réu (não se recordando, no entanto, da data em que contraiu matrimónio) decidiram construir uma casa por volta do ano de 2013, tendo a respetiva construção terminado em 2016, sendo que, para tanto, contraíram dois empréstimos bancários nos valores de €60.000,00 e €30.000,00.
Por essa ocasião o marido trabalhava no Luxemburgo auferindo um salário mensal na ordem dos três mil euros, enquanto ela permanecia em Portugal trabalhando “no calçado e nas limpezas”, ganhando mensalmente o salário mínimo nacional.
Referiu que o marido lhe “mandava” dinheiro mensalmente para pagar as obras e era ela quem depois procedia a esses pagamentos, em regra mensalmente, utilizando para o efeito cheques ou dinheiro que saia da conta que detinham na Banco 1....
Adiantou que “mais para o fim da obra” (não sabendo concretizar quando), como o dinheiro não chegava o marido, em duas ou três ocasiões, disse-lhe para pedir dinheiro emprestado à sua (dela, ré) irmã e cunhado [os ora autores]. Questionada sobre o número de vezes que terá pedido dinheiro à irmã declarou “eu não posso dizer as vezes ao certo, mas sei que devemos 16 mil euros” e que quem lhe entregava o dinheiro era a sobrinha FF [filha dos autores] que, segundo adianta, procedia ao levantamento desse dinheiro da conta dos pais em Portugal, que provisionavam essa conta com transferências realizadas de França, onde estavam emigrados. Instada para esclarecer se guardava recibo desses empréstimos, declarou “nós tínhamos apontamentos, não é, só que não tínhamos recibos (…), nunca imaginamos que ia dar isto”.
Acrescentou que, aquando do seu divórcio, o marido, na sua presença e dos filhos do casal, reconheceu que tinham uma dívida para com os autores e que a dívida total com a casa rondava então cerca de 136 mil euros. Depois “do divórcio sair” a sua irmã e o seu cunhado foram-lhe pedir para “pagarem o que deviam” e foi por essa ocasião (“acha que em 2016”) que assinou a declaração de dívida [que foi junta com a petição inicial como documento nº 4], tendo o marido dito que a iria assinar, recusando posteriormente proceder à assinatura da mesma.
FF (filha dos autores) referiu recordar-se que no ano de 2017, a pedido de sua mãe, entregou à sua tia [a ora ré], em casa desta e por diversas vezes (não se recorda quantas), dinheiro para esta pagar despesas com a construção da sua (dela, ré) casa. Para o efeito levantava dinheiro de uma conta que os seus pais (então emigrados em França) detinham em Portugal, entregando posteriormente as quantias levantadas à tia, sendo que, em algumas dessas ocasiões, o seu companheiro de então [a testemunha GG] a acompanhou quer nos levantamentos, quer nas entregas de dinheiro. Questionada sobre os montantes que terá entregado à sua tia referiu “não saber, pois limitava-se a entregar o dinheiro à tia conforme a mãe lhe pedira”.
Adiantou ter assistido a uma conversa em que estavam presentes os seus pais e os ora réus onde a questão da “dívida do dinheiro emprestado” foi falada, tendo ouvido a sua tia dizer “que queria resolver as coisas pelo melhor”.
Questionada sobre a necessidade de proceder ao “levantamento no Multibanco” das quantias para entregar à tia quando esta possuía conta bancária para onde os autores podiam transferir diretamente “o dinheiro dos empréstimos”, declarou: “isso eu não sei responder; era o acordo”.
Adiantou ainda que “acha que as entregas de dinheiro foram no ano de 2016” e que nessa ocasião “a casa da tia já estava habitada”.
GG referiu que foi companheiro da testemunha FF (filha dos autores) durante vários anos e que, por isso, frequentava regularmente a casa dos réus, casa esta que foi sendo feita “aos poucos”.
Recorda-se que para a construção da casa, a pedido dos pais da FF, a acompanhou na entrega de dinheiro aos réus, tendo ele próprio, por uma ou duas vezes, procedido à entrega de dinheiro levantado pela sua companheira ao réu.
Segundo ouviu em conversas havidas entre autores e réus essas entregas de dinheiro destinavam-se a pagar obras da casa destes pois não tinham dinheiro para o efeito. Questionado se quando faziam essas entregas de dinheiro havia algum registo das mesmas, referiu desconhecer, acrescentando “eu apenas fazia um favor quando as pessoas me pediam” e, ao que julga, “não havia assinatura de recibos, porque tudo era feito com base na confiança”.
II [filho dos réus] declarou saber que para a construção da casa os seus pais contraíram dois empréstimos na Banco 1....
Adiantou ter ouvido dizer que os tios [os ora autores] emprestaram dinheiro aos pais ainda antes de estes se terem divorciado, não sabendo, no entanto, qual o valor e de que forma foram feitos esses empréstimos, não tendo visto a sua tia ou a sua prima FF entregar dinheiro aos pais.
Acrescentou ter presenciado conversas telefónicas entre os pais em que a mãe ligava ao pai “a pedir dinheiro para pagar aos empreiteiros”, “não fazendo ideia” se os mesmos foram, ou não, pagos.
Referiu, por último, que por ocasião do divórcio dos pais houve uma reunião entre estes e os filhos onde foi abordada a possibilidade de a casa que haviam construído ficar para a filha [a testemunha KK] que assumiria também as dívidas, sendo que nessa conversa “se falou de uma dívida para com os tios” resultante de empréstimos.
KK [filha dos réus] declarou que há cerca de três anos se encontra “de relações cortadas” com o pai.
Referiu que viveu com os pais, na residência destes, até 2019, tendo acompanhado a construção dessa habitação.
Sabe que para essa construção os pais recorreram a um empréstimo bancário, “julga que no valor de cem mil euros”, sendo que, nessa ocasião, o pai estava emigrado no Luxemburgo, vindo a Portugal “em agosto, em dezembro e às vezes quando apanhava assim uma semana mais prolongada” e que era a mãe quem realizava os pagamentos com a construção da casa.
Questionada sobre o conhecimento que tem sobre empréstimos feitos pelos seus tios [os ora autores] aos seus pais, referiu ter presenciado, em 2016, uma conversa entre eles em que estes abordaram aqueles no sentido de lhes “emprestar algum dinheiro, porque na altura a situação estava um bocado complicada porque eu ia casar”.
Adiantou que não presenciou qualquer entrega de dinheiro aos pais por parte dos tios ou da sua prima FF, mas ouviu conversas telefónicas entre eles no sentido de que iriam proceder ao empréstimo de dinheiro para pagar obras de construção da casa dos seus progenitores, tendo visto a sua mãe realizar pagamento a “empreiteiros que lá iam receber”.
Acrescentou ser do seu conhecimento que a sua mãe e os seus tios assinaram um documento em que reconhecia a existência de uma dívida resultante dos empréstimos que estes lhes faziam e que a existência dessa dívida “era falada na casa pelos seus pais, quer antes do divórcio, quer depois do divórcio de ambos”, tendo inclusive sido equacionada a possibilidade de o depoente ficar com a casa pelo valor de 135 mil euros, comprometendo-se a pagar as dívidas, incluindo aos tios, que segundo foi referido rondaria os 16 mil euros.
Referiu também que os empréstimos terão ocorrido já no final da construção da casa [que situa em 2016], tendo ouvido do seu pai que iria pagar tais empréstimos.
JJ adiantou ter sido um dos empreiteiros “que andou” na construção da casa dos réus e que estes, no final da obra (julga que “nos inícios de 2017”) deixaram de pagar a ele e a outros empreiteiros alguns trabalhos.
Questionado se sabia se os autores haviam emprestado aos réus dinheiro para pagar as obras, referiu que “a Dona DD [a ora ré] me confessou que um dos pagamentos que me fez a mim foi com dinheiro financiado pela irmã [a ora autora] e que já lhe devia à volta de 16 mil euros”.
HH declarou ter feito trabalhos na casa dos réus, designadamente muros de vedação e uns anexos, e que estes lhe deixaram de pagar “já no final da obra”.
Referiu ter ouvido “comentários” que os autores haviam emprestado dinheiro aos réus.
O autor AA referiu ser do seu conhecimento que os cunhados [os ora réus] decidiram construir uma casa, tendo, para o efeito, contraído empréstimo bancário. Já no final da construção os réus falaram telefonicamente com a sua esposa “para ver se nós os podíamos ajudar a pagar o resto da construção da casa” porque não tinham dinheiro.
Depois disso, nos anos de 2015 e 2016, emprestaram vários montantes, sendo que em várias ocasiões em que estiveram reunidos em família, estando também presente o réu, a questão da dívida resultante desses empréstimos era “falada”, e que os réus se comprometeram a entregar o dinheiro no final da obra. Declarou ainda que o dinheiro era levantado pela sua filha FF de uma conta que tinha em Portugal com a sua esposa, e depois ela ou o seu companheiro [a testemunha GG] fazia a entrega do mesmo à ré.
Questionado sobre o montante total dos empréstimos, adiantou que os mesmos rondariam cerca de 16 mil euros, sabendo disso porque a sua esposa “anotava numa agenda os valores do dinheiro emprestado”.
No final da obra, como os réus não precisavam de mais dinheiro, decidiram fazer uma declaração em que estes reconheciam a dívida, mas que não foi assinada pelo réu “porque não estaria cá, certamente”.
A autora BB declarou que a sua irmã e o seu cunhado [os ora réus] decidiram construir uma casa no ano de 2013, e que no ano de 2016, como a casa ainda não estava pronta e tinha urgência em acabá-la porque a filha ia casar e viver com eles, foi-lhes pedido [a si e ao autor, seu marido] que emprestassem dinheiro para esse efeito, pois já tinha “acabado o dinheiro dos empréstimos bancários que tinham contraído”. A partir desse momento fizeram vários empréstimos aos réus, anotando numa agenda os valores emprestados e datas dos mesmos. Quando questionada da razão porque, afinal, não juntou aos autos essa agenda declarou que “achei que não era relevante”.
Procurando esclarecer o modo como se processaram tais empréstimos referiu que era o réu “que pedia à sua irmã [a ora ré] para lhe emprestar o dinheiro”, tendo emprestado dinheiro em sete ocasiões, em tranches de mil euros, dois mil euros e uma vez quatro mil euros.
Os levantamentos do dinheiro eram realizados pela filha FF através de “Multibanco”, saindo de uma conta que a declarante e o marido (emigrantes em França) detêm em Portugal, sendo depois entregue à ré. Instada para esclarecer a razão desse procedimento quando poderia proceder diretamente à transferência do dinheiro para a conta da irmã, respondeu “porque ela devia dinheiro; era pela urgência dela”.
Aqui chegados, a questão que naturalmente se coloca é a de saber se na presença dos mencionados subsídios probatórios se justifica a impetrada alteração do juízo probatório referente à aludida materialidade objeto de impugnação.
Como é consabido, com o controlo efetuado pelo Tribunal da Relação sobre o julgamento da matéria de facto realizado pelo tribunal de 1ª instância não se visa o julgamento
ex novo
dessa matéria, mas antes reponderar ou reapreciar o julgamento que dela foi feito na 1ª instância e, portanto, aferir se aquela instância não cometeu, nessa decisão, um
error in judicando
. O recurso ordinário de apelação em caso algum perde a sua feição de recurso de reponderação para passar a ser um recurso de reexame. Daí que o objetivo do 2º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto não é (nem pode ser) pura e simples repetição das audiências perante a Relação, mas a deteção e correção de concretos, pontuais e claramente apontados e fundamentados erros de julgamento, sem prejuízo de aquando da apreciação dos meios probatórios colocados à sua disposição formar uma convicção autónoma sobre a materialidade impugnada.
Como assim, os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem apenas um remédio a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos imponham inequivocamente (em termos de convicção autónoma) uma decisão diversa da que foi dada pela 1ª instância.
Ora, não obstante se garantir no atual sistema processual civil um duplo grau de jurisdição, nomeadamente quanto à reapreciação da matéria de facto, não podemos ignorar que continua a vigorar entre nós o princípio da livre apreciação da prova, conforme decorre do art.º 607º, nº 5, ao estatuir que «
o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto
(…)».
No caso vertente, como se referiu, o decisor de 1ª instância, na análise crítica que levou a cabo,
enuncia um conjunto de inconsistências na prova pessoal adrede produzida, dúvidas essas que igualmente se colocam a este tribunal
ad quem,
e que resultam, desde logo, da própria inconsistência e indefinição dos demandantes quanto ao momento em que, alegadamente, terão efetuado os empréstimos de dinheiro aos demandados, posto que, enquanto na petição inicial alegam que os mesmos ocorreram entre 2013 e 2017, sustentam agora, em sede recursiva, que, afinal, esses empréstimos terão apenas ocorrido em 2016. De igual modo resulta incompreensível (até pelos valores em causa) a inexistência de qualquer elemento comprovativo da entrega dos montantes alegadamente emprestados aos réus.
Assim, apesar da distância entre esta Relação e as provas e o modo como conheceu de algumas delas – no tocante à prova pessoal, através da audição do registo fonético – não há motivo para concluir que o tribunal de que provém o recurso, ao decidir os mencionados pontos factuais da forma como o fez, tenha incorrido – por violação das regras da ciência, da lógica ou da experiência – em qualquer
error in iudicando
, por erro na avaliação das provas. Dito doutro modo: apesar dos condicionalismos em que se conheceu das provas – marcados pela ausência de imediação – a convicção que esta Relação delas extrai coincide com a convicção da 1ª instância, inexistindo, por isso, razão bastante que
imponha
(como é suposto pelo nº 1 do art. 662º) a alteração do juízo probatório referente à materialidade plasmada nas alíneas A), B) e C) dos factos não provados.
***
3. FUNDAMENTOS DE DIREITO
Na economia do recurso interposto pelos autores/apelantes a alteração do sentido decisório plasmado no dispositivo da sentença recorrida pressupunha a modificação do juízo probatório emitido pelo tribunal de 1ª instância quanto aos factos dados como não provados nas alíneas A), B) e C), isto é, o pedido de alteração desse ato decisório no que respeita à interpretação e aplicação do Direito dependia do prévio sucesso da impugnação da decisão sobre a matéria de facto atinente a essas concretas afirmações de facto, não se revestindo de autonomia, já que os apelantes não sindicaram ter existido erro
«na determinação da norma aplicável»
, ou na forma como deveria
«ter sido interpretada e aplicada»
.
Consequentemente não tendo tido êxito na pretensão de alteração da matéria de facto considerada para o efeito na sentença, ficou necessariamente prejudicado o conhecimento do recurso sobre a matéria de direito que dele dependesse, nos termos do art. 608.º, n.º 2, aplicável
ex vi
do art.º 663.º, n.º 2,
in fine
, não sendo, de qualquer modo, despiciendo sublinhar que essa decisão, perante o substrato factual apurado, não é merecedora de censura, já que, como nela se evidencia – em moldes que merecem a nossa concordância –, os demandantes não lograram demonstrar, como lhes era imposto em sede de ónus de prova (cfr. art. 342º, nº 1 do Cód. Civil), materialidade bastante que permitisse considerar que,
in casu
, mutuaram aos réus a quantia global de €16.000,00.
Como assim, carecem os apelantes de título (entendida a expressão no seu sentido civilístico, isto é, enquanto fundamento ou causa da titularidade de determinado direito) que legitime o pedido que formulam de condenação dos réus/apelados no pagamento da reclamada quantia.
Impõe-se, pois, a improcedência do presente recurso.
***
III. DISPOSITIVO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando a decisão recorrida.
Custas, em ambas as instâncias, a cargo dos apelantes (art. 527º, nºs 1 e 2)
Porto, 10.07.2025
Miguel Baldaia de Morais
Fátima Andrade
José Eusébio Almeida
______________
[1]
Diploma a atender sempre que se citar disposição legal sem menção de origem.
[2]
In A Confissão no Direito Probatório
, Coimbra Editora, pág. 109, advogando, mais adiante (pág. 112), que,
summo rigore
, uma situação como a dos autos cairá diretamente no âmbito de previsão do nº 1 desse art. 353º.
|
TRP
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https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/5be03616044ee3f480258cdc00503e28?OpenDocument
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1,740,009,600,000
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IMPROCEDENTE
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8055/22.0T8SNT-B.L1-6
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8055/22.0T8SNT-B.L1-6
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GABRIELA DE FÁTIMA MARQUES
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I. Verificando-se a legibilidade do credor e do crédito para efeitos de aplicação do PERSI, pode o Tribunal aferir do seu cumprimento perante a credora, conhecendo oficiosamente de tal excepção dilatória inominada verificando-se tal ausência.
II. Dada a natureza de excepção dilatória de conhecimento oficioso haverá que aplicar o previsto no nº 2 do art.º 573º do CPC, ou seja, não ocorre quanto a tal excepção o efeito preclusivo, pelo que a circunstância de ter sido suscitada em requerimento autónomo, já após os articulados, em nada releva, uma vez que está subtraída ao prazo concedido para apresentação da defesa.
III. As limitações decorrentes do PERSI impõem-se ao cessionário do crédito, pelo que não pode o exequente escudar-se no facto de não revestir a natureza de entidade financeira.
IV. Verificando-se o incumprimento do plano de recuperação nos moldes previstos no art.º 218.º do CIRE, os créditos recuperam a sua situação originária, pois só o cumprimento do plano exonera o devedor da totalidade das dívidas remanescentes.
V. Tal como resulta do requerimento executivo, também entendemos que é de aderir à tese que nega à sentença homologatória do plano de recuperação a natureza de título executivo, pelo que, mantendo-se o crédito originário é igualmente de cumprir previamente o PERSI.
(Sumário elaborado pela relatora)
|
[
"PERSI",
"EXCEPÇÃO DILATÓRIA INOMINADA",
"CONHECIMENTO OFICIOSO",
"PER",
"TÍTULO EXECUTIVO"
] |
Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. Relatório:
F… e J… vieram, por apenso à execução (a 29/03/2023, inicialmente separados, mas em que foi nestes autos ordenada a junção) que lhe foi movida por Parvalorem, S.A., deduzir oposição à execução mediante embargos de executado invocando diversas nulidades, relacionadas, no essencial, com o pedido de apoio judiciário e regras tributárias.
Admitida liminarmente a oposição deduzida, foi ordenado o cumprimento do disposto no artigo 732.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
A exequente apresentou contestação, argumentado, em síntese, que não estamos perante uma execução fiscal, nem o código de processo civil tem um regime idêntico ao do direito fiscal, que permita suspender a venda de imóveis que constituam a habitação própria e permanente, afirmando ainda que desconhece se actualmente as frações em causa são ou não habitação própria permanente. Conclui pela improcedência dos embargos.
Com data de 21/10/2023, foi proferido o seguinte despacho: ”
Considerando que os autos reúnem os elementos necessários à prolação de uma decisão de mérito, notifique as partes para, em 10 dias, se pronunciarem no sentido de saber se têm algo a opor a que seja proferido despacho de saneamento dos autos com dispensa de audiência prévia, com a advertência de que, nada sendo dito no referido prazo, interpretará o Tribunal o silêncio das partes como aceitação
.”.
Após vicissitudes relacionadas com a substituição de patrono nomeado aos embargantes, por Requerimento, de 19/03/2024, invocaram os Executados a falta de integração no PERSI, requerendo a sua absolvição da instância.
Notificada do despacho do Tribunal
a quo
, de 10/04/2024, pelo qual foi determinada a notificação da Exequente para, em 10 dias, esclarecer se deu cumprimento ao PERSI e, na afirmativa, para o comprovar documentalmente - carta, comprovativo da entrega/recebimento- a Embargada não procedeu à junção do comprovativo da integração dos Executados, enquanto clientes bancários (consumidores) no PERSI, argumentado que não é aplicável tal regime.
No saneador, por verificação da excepção dilatória de ausência de integração obrigatória dos executados no PERSI, absolveram-se os mesmos da instância executiva e declarou-se extinta a execução.
Inconformada veio a embargada recorrer formulando as seguintes conclusões:
«A) A Parvalorem, SA, exequente, não é uma instituição financeira.
2. A Parvalorem, SA, não é uma instituição financeira nem uma instituição de crédito. Assim, não está sujeita ao Regime Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI), um regime criado exclusivamente para instituições de crédito.
3. O PERSI é aplicável apenas a entidades financeiras reguladas pelo Banco de Portugal, obrigadas a seguir normas de proteção ao consumidor e de transparência no tratamento de crédito.
4. O Decreto-Lei n.º 227/2012 define que o PERSI se aplica apenas a instituições de crédito, excluindo entidades cessionárias de créditos (como a Parvalorem) que adquirem créditos, mas não exercem operações de crédito directamente.
5. Exigir o cumprimento do PERSI a entidades não financeiras seria uma interpretação extensiva da lei, contrariando o princípio da interpretação restritiva para obrigações não explicitamente previstas.
6. As instituições financeiras, sob supervisão do Banco de Portugal, operam com obrigações específicas de proteção ao consumidor. Entidades como cessionárias de créditos, não supervisionadas, não têm o mesmo enquadramento jurídico.
7. As Cessionárias como a Parvalorem adquirem créditos por cessão e não têm vínculo directo com os devedores, diferindo das instituições financeiras, que possuem um relacionamento continuado com os clientes.
8. O PERSI foi criado para promover a estabilidade do sistema financeiro, visa proteger
consumidores no âmbito de contratos com entidades reguladas, algo que não se aplica a
cessionárias.
9. Obrigar entidades não financeiras a implementar o PERSI geraria uma carga administrativa incompatível com a sua estrutura e finalidade, que é essencialmente comercial.
10. O Acórdão do Tribunal da Relação de Évora (13/01/2022) confirma que entidades como a Parvalorem não estão obrigadas ao PERSI por não serem instituições de crédito.
B) O incumprimento e vencimento das obrigações do contrato executado, é muito anterior à entrada em vigor do DL nº 227/2012 de 25/10 referente ao regime do PERSI
11. O incumprimento do contrato ocorreu em 29/12/2010, antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 227/2012, que estabeleceu o PERSI.
12. O PERSI foi instituído em janeiro de 2013 e não possui cláusulas de aplicação retroactiva.
13. A retroactividade das leis é excepcional e deve ser expressamente prevista na lei, sendo contrária à Constituição Portuguesa a aplicação de normas retroactivamente, salvo previsão explícita.
14. A aplicação retroactiva do PERSI iria contra a proteção da confiança e a segurança jurídica, pois as partes contratantes devem poder contar com a legislação vigente na data do incumprimento.
15. O PERSI foi concebido para facilitar a regularização extrajudicial de contratos em incumprimento após a sua entrada em vigor, não para ajustar situações de incumprimento
anteriores.
16. Em Direito Contratual, a legislação aplicável ao incumprimento de um contrato é a que estava em vigor na data da celebração do contrato. Assim, o incumprimento de 2010 deve ser analisado com base na legislação de então, não no PERSI.
17. Aplicar o PERSI retroactivamente alteraria indevidamente as condições originais do contrato, impondo novas obrigações sem o consentimento das partes.
18. Contratos com incumprimento anterior a 2013 não devem estar sujeitos ao PERSI, a Decisão do Tribunal da Relação de Évora de 24/02/2022 confirma que não há obrigação de integrar o devedor no PERSI nesses casos.
C) Natureza e Finalidade do PER em Relação ao PERSI
19. A execução iniciou-se devido ao incumprimento de um Plano Especial de Revitalização (PER) homologado judicialmente, no qual os devedores se comprometeram a pagar a dívida em prestações específicas.
20. O PER é um processo judicial regulado pelo Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) e destina-se a reestruturar as obrigações de empresas ou devedores em dificuldades, sendo mais formal que o PERSI, que é extrajudicial e destinado a consumidores.
21. Após homologação judicial, o PER é vinculativo para todas as partes, e o incumprimento do plano deve ser tratado conforme o CIRE, não se aplicando o PERSI, que é um regime específico para negociações extrajudiciais.
22. Este artigo permite que, em caso de incumprimento de um PER, o credor execute a dívida total judicialmente, dispensando a utilização do PERSI, que não regula planos de recuperação formalmente homologados.
23. O PER, ao ser judicialmente homologado, torna-se um título executivo e tem precedência sobre o PERSI, que é apenas aplicável em situações de incumprimento sem processo judicial de reestruturação.
24. Dado que o incumprimento ocorre no âmbito de um PER homologado, o regime aplicável é o do CIRE.
25. Não há necessidade de recorrer ao PERSI, pois o título executivo do PER e o regime do CIRE já proporcionam os mecanismos legais para a execução da dívida.
26. Este regime específico, uma vez homologado judicialmente, prevalece sobre a necessidade de qualquer tentativa extrajudicial de regularização da situação de incumprimento, como o previsto no PERSI, sendo desnecessária e inaplicável a submissão do devedor ao regime do PERSI para efeitos de execução.” Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 29 de maio de 2017 (Proc. n.º4460/15.2T8PRT.P1):
D) A excepção dilatória inominada decorrente da não integração de cliente bancário no regime do PERSI não é de conhecimento oficioso
27. As excepções dilatórias, incluindo a referente ao PERSI, dependem de alegação detalhada das partes. No caso em questão, os embargantes não apresentaram factos (suficientes) para fundamentar a excepção dilatória referente ao PERSI.
28. O Tribunal não deve analisar a excepção dilatória inominada do PERSI de forma oficiosa, pois não se trata de matéria de ordem pública ou de interesse colectivo. O PERSI é um regime extrajudicial, aplicável apenas se alegado e provado pelas partes.
29. Cabe ao embargante demonstrar concretamente a ausência de integração no PERSI. Sem essa alegação, o Tribunal não tem o dever de investigar essa questão.
30. Em Portugal, o princípio do dispositivo estipula que são as partes que devem apresentar os factos e provas. O Tribunal limita-se a apreciar o que é trazido ao processo, sem investigação independente em matérias que não sejam de ordem pública.
31. O PERSI é uma questão contratual, e o incumprimento não é de ordem pública. Assim, o Tribunal não tem obrigação, nem deve averiguar autonomamente a aplicação do PERSI.
32. A jurisprudência confirma que a excepção dilatória de integração no PERSI não é de
conhecimento oficioso. O Tribunal só intervém se houver uma alegação detalhada e factos
específicos para justificar a análise da excepção.
33. A legislação e os tribunais indicam que, sem factos específicos e uma alegação concreta sobre a não integração no PERSI, o Tribunal não está obrigado a avaliar essa excepção.».
Os embargantes, ora recorridos, apresentaram contra alegações, com as seguintes conclusões:
«A. Interpôs a Embargada recurso da douta sentença que absolveu os Executados da instância executiva, e, em consequência, declarou extinta a execução, condenando a Embargada/Exequente no pagamento de custas.
B. Considerando a Recorrente que a sentença a quo carece de razão, por vários motivos, que elenca, inexistindo razões que levem à extinção da instância executiva, o que carece de fundamento.
C. Entendendo a Recorrente que a Embargada por não ser uma instituição financeira, não está abrangida pelos procedimentos decorrentes do PERSI, que o incumprimento e vencimento das obrigações do contrato executado nos autos é muito anterior à entrega em vigor do regime jurídico do PERSI, que o incumprimento se reporta a um PER e que por isso não há lugar ao PERSI e, por fim, que a excepção dilatória inominada não é de conhecimento oficioso.
D. A presente acção executiva tem por objecto dois créditos bancários, resultantes do alegado incumprimento dos contratos de mútuo com hipoteca celebrados entre a instituição de crédito denominada "BPN - Banco Português de Negócios, S.A." e os Executados, ora Recorridos, através dos quais esta instituição bancária mutuou aos Executados, determinadas quantias de capital sobre certas condições exaradas nas escrituras e documentos complementares, as quais constituem o título executivo.
E. Os Recorridos deduziram Oposição à Execução, tendo invocado diversas nulidades, e, por Requerimento, de 19/03/2024, com a Ref.ª Citius 25281048, junto a este apenso, invocaram os Executados a falta de integração no PERSI, requerendo a sua absolvição da instância
F. Notificada do douto despacho do Tribunal a quo, de 10/04/2024, pelo qual foi determinada a notificação da Exequente para, em 10 dias, esclarecer se deu cumprimento ao PERSI e, na afirmativa, para o comprovar documentalmente-carta, comprovativo da entrega/recebimento, a Embargada não procedeu à junção do comprovativo da integração dos Executados, enquanto clientes bancários (consumidores) no PERSI.
G. Tendo o Tribunal a quo considerado verificada a excepção dilatória inominada que impede ab initio a instauração de acção executiva para a efectiva satisfação do crédito do exequente, o que determina a absolvição da instância executiva dos executados, invocando que a exequente não logrou provar as devidas comunicações, pelo contrário, alegou não ter obrigação de o fazer, uma vez que não é uma instituição de crédito.
H. Consideram os Recorridos que a sentença proferida pelo Tribunal a quo não merece qualquer reparo, tendo a Mm.ª Juiz a quo feito uma correcta e livre apreciação das provas levadas a juízo, como lhe compete, fazendo uma correcta interpretação e aplicação do Direito.
I. Carece de fundamento o entendimento da Recorrente de que a Embargada, não é uma instituição financeira, não estando abrangida pelos procedimentos do PERSI.
J. Sendo inadmissível o entendimento da Recorrente, de que, uma vez cedidos os créditos pelas instituições bancárias, a outras entidades que não se encontrem habilitadas para efetuar operações de crédito em Portugal, nos termos do RGICSF, deixam de se verificar as obrigações resultantes do Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de outubro.
K. Entendimento que é contrário à lei, aliás, nos termos da alínea c) do art.º 18.º do Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de outubro, atenta a falta de integração dos Executados no PERSI, encontrava-se o "BPN - Banco Português de Negócios, S.A." também impedido de ceder os créditos a terceiros, o que se veio a verificar, pelo que a cessão de créditos realizada pela Exequente nem podia ter sido concretizada.
L. Estando prevista no art.º 18.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 227/2012, a possibilidade de a instituição de crédito ceder o crédito a outra instituição bancária, a qual fica obrigada a prosseguir com o PERSI, retomando este procedimento na fase em que o mesmo se encontrava à data da cessão do crédito ou da transmissão da posição contratual.
M. Quando a Recorrente celebrou o contrato de cessão de créditos com o BPN – Banco Português de Negócios, S.A., o Decreto-Lei n.º 227/2012 já se encontrava em vigor, bem sabendo ambas as instituições das obrigações decorrentes dos mesmos e que têm de ser cumpridas, sob pena dos créditos serem “judicialmente incobráveis”, cabendo à Recorrente certificar-se de que haviam sido cumpridas as exigências legais decorrentes do PERSI, relativamente aos créditos que pretendia adquirir.
N. Conforme alegou no Requerimento Executivo, a Recorrente sabe que os contratos foram resolvidos por carta enviada pelo BPN – Banco Português de Negócios, S.A. aos Executados, a 9 de Julho de 2013, e que, nessa data, a instituição bancária encontrava-se obrigada a integrar os Executados no PERSI.
O. A entidade cessionária de créditos bancários não é a parte mais frágil da relação tripartida, entre banco, cliente bancário (consumidor) e entidade cessionária.
P. Não tendo sequer o cliente bancário feito parte das negociações do contrato de cessão de crédito, desconhecendo os termos e condições do mesmo, pelo que é à Recorrente que cabe certificar-se do que estava a adquirir, de que haviam sido cumpridas as exigências legais decorrentes do PERSI, que podem determinar ou não a possibilidade de cobrança coerciva do crédito.
Q. Estando os Recorridos em crer que não são as entidades cessionárias quem carece de protecção e complacência, pois têm prefeito conhecimento da lei e detêm os meios necessários para verificar o que estão a comprar, tal como verificam outros documentos referentes aos créditos que adquirem, têm o dever de verificar se foi cumprido o previsto no Decreto-Lei n.º 227/2012.
R. Não podendo ser admissível que venha a entidade cessionária do crédito invocar que não se encontra sujeita às obrigações idênticas às instituições bancárias, e que não tem qualquer ligação contratual directa com o devedor original, quando aquela sabia o que estava a adquirir e quis fazê-lo, sob pena de abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium.
S. Carece, igualmente, de fundamento a alegação de que o incumprimento dos Executados é muito anterior à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de Outubro, tal como foi alegado pela Recorrente no Requerimento Executivo, os contratos de mútuo bancário foram resolvidos pelo BPN – Banco Português de Negócios, S.A. por carta registada datada de 9 de Julho de 2013.
T. Ora, o referido Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de Outubro, entrou em vigor no dia 1 de janeiro de 2013, conforme disposto no artigo 40.º do referido diploma, pelo que quando a instituição bancária resolveu os contratos, já estava obrigada a cumprir com o disposto no referido diploma legal.
U. Não se verificando qualquer aplicação retroactiva de normas legais, o que carece em absoluto de fundamento.
V. A Recorrente alega ainda que o incumprimento teve origem no âmbito do incumprimento de um PER aprovado e homologado judicialmente, pelo que não exige o cumprimento do PERSI, o que carece de fundamento, sendo os títulos executivos que servem de base à presente ação executiva as escrituras outorgadas entre os Executados e o BPN - Banco Português de Negócios, S.A., conforme alegou no Requerimento Executivo.
W. A Recorrente alega também que a exceção dilatória inominada decorrente da não integração de cliente bancário no regime do PERSI depende de circunstâncias factuais, que não foram alegadas, nem circunstanciadas pelos Embargantes, pelo que não tem o Tribunal que fazer a indagação oficiosa relativamente às mesmas, não sendo de conhecimento oficioso.
X. Não se compreendendo a alegação da Recorrente, pois, conforme referido, foram os Executados, ora Recorridos, quem invocou a falta da integração no PERSI e requereu ao Tribunal que fosse a Exequente notificada para juntar aos autos prova do cumprimento do ónus de integração no PERSI, em data anterior à resolução dos contratos objecto dos autos, conforme Requerimento apresentado pelos Executados no presente apenso de Oposição à Execução, a 19/03/2024, com a Ref.ª Citius 25281048.
Y. Não tendo o Tribunal feito qualquer indagação oficiosa, o que carece de fundamento.
Z. Não obstante, ainda que o tivesse feito, entendem os Recorrentes que, atendendo a que está em causa uma condição de procedibilidade da acção, decorrente de obrigação legal imposta à instituição bancária, pode o Tribunal verificar do cumprimento de tal pressuposto, nos termos do disposto nos artigos 578.º e n.º 2 do art.º 608.º do Código de Processo Civil, tratando-se de uma excepção dilatória inominada, de conhecimento oficioso.
AA. Atento o exposto, não merece qualquer censura a douta sentença proferida, devendo por isso ser confirmada.».
Admitido o recurso neste tribunal e colhidos os vistos, cumpre decidir.
*
Questões a decidir
:
O objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 5.º, 635.º n.º3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do CPC), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.
Importa assim, no caso concreto apreciar o seguinte:
- Não sendo a embargada uma Instituição Financeira aferir se está ou não abrangida pelos procedimentos decorrentes do regime do PERSI.
- Se verificado o incumprimento e vencimento das obrigações do contrato executado nos autos em data anterior à entrada em vigor do DL nº 227/2012 de 25/10 referente ao regime do PERSI, tal determinaria a sua inaplicabilidade.
- Caso a obrigação e incumprimento alegado na execução se reporte ao PER homologado, não há que dar cumprimento ao disposto no PERSI, mas, antes ao previsto no CIRE, tendo sido cumprido o disposto no art.º 218º do mesmo diploma.
- Estava o Tribunal impedido de indagar oficiosamente pela verificação das circunstâncias que determinariam a verificação da excepção dilatória inominada decorrente da não integração de cliente bancário no regime do PERSI.
*
II. Fundamentação:
No Tribunal recorrido não foram elencados os factos que presidiram à decisão da excepção que determinou a procedência dos embargos, pelo que com relevo para a decisão haverá que considerar que:
- Com data de 7/5/2022, a exequente apresentou requerimento executivo em que alegou o seguinte:
“A exequente adquiriu por escritura de cessão de créditos, que se protesta juntar, diversos créditos, incluindo as respectivas garantias e demais acessórios, sem quaisquer reservas ou excepções, onde se inclui o crédito abaixo referido e que agora se executa. A mencionada cessão de créditos respeitou todos os requisitos e procedimentos legais, sendo que os devedores, após notificação, não apresentaram qualquer oposição.
I - Da escritura pública de mútuo com hipoteca celebrada no dia 29 de Outubro de 2009 destinada à aquisição de habitação própria e permanente
Ora, no dia 29 de Outubro de 2009, foi celebrado, entre o cedente da aqui exequente (anteriormente denominado "BPN - Banco Português de Negócios, S.A.") e os Executados, um contrato de mútuo com hipoteca através do qual o primeiro concedeu aos segundos um empréstimo no montante de € 70.000,00 (setenta mil euros), nos termos e condições previstas no contrato cuja cópia se junta como documento n.º 1 e se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
O mencionado empréstimo foi concedido pelo prazo de 324 (trezentos e vinte e quatro) meses.
Para garantia do cumprimento de todas e quaisquer obrigações ou responsabilidades decorrentes do contrato celebrado, os Executados constituíram duas hipotecas voluntárias sobre:
a) a fracção autónoma, destinada a habitação, designada pela letra “H”, (…) e
b) a fracção autónoma, destinada a habitação, designada pela letra “A”, (…)
Acontece que os Executados não procederam ao pagamento das prestações vencidas a partir de Dezembro de 2010.
Por esse motivo, por carta datada de 9 de Julho de 2013, o Exequente procedeu à resolução do contrato, declarando antecipadamente vencido o crédito (cfr. cópia das cartas que se juntam como documento n.º 2 e se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais).
Na mencionada comunicação, o cedente informou os Executados de que deveriam proceder ao pagamento de todos os valores em dívida (capital, juros, impostos e despesas), cujo montante global ascendia, naquela data, a € 77.446,75 (setenta e sete mil, quatrocentos e quarenta e seis euros e setenta e cinco cêntimos).
Mais informou de que deveriam proceder ao pagamento, até ao dia 26 de Julho de 2013, sob pena da instauração do respectivo processo de execução.
Porém, os Executados não procederam ao pagamento do montante em dívida na sua data de vencimento, nem o fizeram posteriormente, apesar das diversas interpelações nesse sentido, o que levou a que fossem executados no âmbito da execução 22392/13.1t2snt, que correu termos no Juízo de Execução de Sintra - Juiz 3.
No entanto, tal execução foi extinta a atendendo a que os executados se apresentaram a PER que correu termos 3902/15.6T8SNT.
A ora exequente reclamou créditos e foi-lhe reconhecido um crédito no montante de 124.762,02€.
No âmbito de tal PER foi aprovado e homologado judicialmente um plano de pagamentos, sendo que os executados se comprometiam a pagar o crédito da ora exequente, em 314 prestações mensais, com carência de capital durante os primeiros 12 meses desde a data de transito em julgado da sentença homologatória.
Assim, atento o incumprimento, a ora exequente enviou carta aos executados, nos termos do disposto no art.º 218º do CIRE, interpelando-os para regularizar, no prazo de 15 dias, a situação de mora, sendo certo que os devedores não o fez continuando em incumprimento.
Nos termos legais, tendo sido incumprido o plano, nos termos do art.º 218º do CIRE, as moratórias e perdões concedidos através da aprovação do plano, ficam sem efeito, assim, à data de 15/10/2021 é devida a quantia de 106.213,60€, sendo 76.505,75€ referente a capital e 29.707,85€ referente a juros moratórias à taxa de 4,706%
A hipoteca acima referida sobre as frações devidamente identificadas na escritura pública, nos termos contratuais e registrais, garante a operação de crédito acima identificada e todos os valores em dívida.
II - Da escritura pública de mútuo com hipoteca celebrada no dia 29 de Outubro de 2009 destinada a multifinalidades
Igualmente no dia 29 de Outubro de 2009, foi celebrado, entre o cedente da exequente e os Executados, um contrato de mútuo com hipoteca através do qual o primeiro concedeu aos segundos um empréstimo no montante de € 30.000,00 (trinta mil euros), nos termos e condições previstas no contrato cuja cópia se junta como documento n.º 3 e se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
O mencionado empréstimo foi concedido pelo prazo de 324 (trezentos e vinte e quatro) meses.
Para garantia do cumprimento de quaisquer obrigações ou responsabilidades decorrentes do contrato celebrado, os Executados constituíram duas hipotecas voluntárias sobre:
a) a fracção autónoma, destinada a habitação, designada pela letra “H”, (…); e
b) a fracção autónoma, destinada a habitação, designada pela letra “A”, (…).
Acontece que os Executados não procederam ao pagamento das prestações vencidas a partir de Dezembro de 2010.
Por esse motivo, por carta datada de 9 de Julho de 2013, o Exequente procedeu à resolução do contrato, declarando antecipadamente vencido o crédito (cfr. cópia das cartas que se juntam como documento n.º 4 e se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais).
Na mencionada comunicação, o Exequente informou os Executados de que deveriam proceder ao pagamento de todos os valores em dívida (capital, juros, impostos e despesas), cujo montante global ascendia, naquela data, a € 32.811,50 (trinta e dois mil, oitocentos e onze euros e cinquenta cêntimos).
Mais informou de que deveriam proceder ao pagamento, junto do Exequente, até ao dia 26 de Julho de 2013, sob pena da instauração do respectivo processo de execução.
Porém, os Executados não procederam ao pagamento do montante em dívida na sua data de vencimento, nem o fizeram posteriormente, apesar das diversas interpelações nesse sentido.
Porém, os Executados não procederam ao pagamento do montante em dívida na sua data de vencimento, nem o fizeram posteriormente, apesar das diversas interpelações nesse sentido, o que levou a que fossem executados no âmbito da execução 22392/13.1t2snt, que correu termos no Juízo de Execução de Sintra - Juiz 3.
No entanto, tal execução foi extinta a atendendo a que os executados se apresentaram a PER que correu termos 3902/15.6t8snt.
A ora exequente reclamou créditos e foi-lhe reconhecido um crédito no montante de 124.762,02€
No âmbito de tal PER foi aprovado e homologado judicialmente um plano de pagamentos, sendo que os executados se comprometiam a pagar o crédito da ora exequente, em 314 prestações mensais, com carência de capital durante os primeiros 12 meses desde a data de transito em julgado da sentença homologatória.
Assim, atento o incumprimento, a ora exequente enviou carta aos executados, nos termos do disposto no art.º 218º do CIRE, interpelando-os para regularizar, no prazo de 15 dias, a situação de mora, sendo certo que os devedores não o fez continuando em incumprimento.
Nos termos legais, tendo sido incumprido o plano, nos termos do art.º 218º do CIRE, as moratórias e perdões concedidos através da aprovação do plano, ficam sem efeito, assim, à data de 15/10/2021 é devida a quantia de 45.620,27 €, sendo 32.860,32€ referente a capital e 12.759,95 €€ referente a juros moratórias à taxa de 4,706%
A hipoteca acima referida sobre as frações devidamente identificadas na escritura pública, nos termos contratuais e registrais, garante a operação de crédito acima identificada e todos os valores em dívida.
Pelo exposto, a dívida global dos Executados ao Exequente ascende, a data de 15/10/2021, a 151.833,87€
Montante ao qual acresce os juros de mora, vencidos e vincendos, bem como as custas da execução, incluindo a taxa de justiça e os honorários e despesas do agente de execução.
O crédito do Exequente é certo, líquido, exigível e encontra-se devidamente titulado.”.
- No âmbito da liquidação no requerimento executivo alega a exequente que: “I. Nos termos legais, tendo sido incumprido o plano, nos termos do art.º 218º do CIRE, as moratórias e perdões concedidos através da aprovação do plano, ficam sem efeito, assim, à data de 15/10/2021 é devida a quantia de 106.213,60€, sendo 76.505,75€ referente a capital e 29.707,85€ referente a juros moratórias à taxa de 4,706%
A hipoteca acima referida sobre as frações devidamente identificadas na escritura pública, nos termos contratuais e registrais, garante a operação de crédito acima identificada e todos os valores em dívida.
II. Nos termos legais, tendo sido incumprido o plano, nos termos do art.º 218º do CIRE, as moratórias e perdões concedidos através da aprovação do plano, ficam sem efeito, assim, à data de 15/10/2021 é devida a quantia de 45 620,27 €, sendo 32 860,32€ referente a capital e 12 759,95 €€ referente a juros moratórias à taxa de 4,706%
A hipoteca acima referida sobre as frações devidamente identificadas na escritura pública, nos termos contratuais e registrais, garante a operação de crédito acima identificada e todos os valores em dívida.
Pelo exposto, a dívida global dos Executados ao Exequente ascende, a data de 15/10/2021, a 151.833,87€”.
- Do teor dos documentos juntos com o requerimento executivo resulta que foi ainda o Banco BIC a notificar os executados do incumprimento do plano ao abrigo do processo de revitalização, interpelando os mesmos, com data de 28/01/2016 para, no prazo de 15 dias, procederem ao pagamento dos valores em dívida nos termos do art.º 218º nº 1 alínea a) do CIRE.
- Nos embargos deduzidos (inicialmente separados por cada um dos executados, mas unidos neste único apenso) mas com iguais fundamentos, invocaram os embargantes o incumprimento dos contratos desde 2010, na sequência do desemprego e problemas de saúde, convocando a circunstância de o bem penhorado constituir a casa de morada de família e arguindo nulidades que adviriam de tal situação, por força da aplicação de normas de procedimento tributário.
- Após a incorporação de ambos os embargos deduzidos foram os mesmos admitidos liminarmente e notificada a exequente para contestar.
- Na defesa da improcedência dos embargos a exequente arguiu, no essencial, que não estamos perante uma execução fiscal, pelo que a norma convocada pelos embargante não tem aplicação no processo civil, nem o código de processo civil tem um regime idêntico ao do direito fiscal, suspendendo a venda de imóveis que constituam a habitação própria e permanente, impugnando ainda, por desconhecimento, se actualmente as frações em causa são ou não habitação própria permanente.
- Após vicissitudes relacionadas com o patrocínio oficioso dos embargantes, veio a patrona dos mesmos com data de 19/03/2024, requerer, além do mais, que “(…) a falta de integração dos Executados no PERSI, por constituir condição de procedibilidade da acção, decorrente de obrigação legal imposta à instituição bancária, e impedimento legal da cessão dos créditos, tratando-se de uma excepção dilatória inominada, obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa, dando lugar à absolvição da instância, conforme art.º 30.º, n.º 1 e 2 do art.º 576.º e alínea e) do art.º 577.º do Código de Processo Civil, com as legais consequências. - Pelo que, desde já se requer a V. Ex.ª seja a Exequente notificada para informar se, com referência aos contratos objecto dos autos, foram os Executados F… e J… integrados no referido procedimento extrajudicial de regularização, em data anterior à resolução dos mesmos, remetendo aos autos o respectivo comprovativo dessa integração.”
- Com data de 10/04/2024, foi proferido o seguinte despacho: “
Compulsados os autos, atento o alegado, cumpre referir o procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI) – que está em vigor desde 01-01-2013 e é aplicável a clientes bancários (consumidores) que estejam em mora ou em incumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito – constitui uma fase pré-judicial que visa a composição do litígio, por mútuo acordo, entre credor e devedor, através de um procedimento que comporta três fases: (i) a fase inicial; (ii) a fase de avaliação e proposta; e (iii) a fase de negociação (arts. 14.º a 17.º do referido diploma legal).
Durante o período que decorre entre a integração do cliente no PERSI e a extinção deste procedimento, está vedada à instituição de crédito a instauração de acções judiciais com a finalidade de obter a satisfação do seu crédito (art.º 18.º, n.º 1, al. b)” – cf. ac. STJ, de 09/02/2017, Proc. 194/13.5TBCMN-A.G1.S1; no mesmo sentido, Ac. RE, de 08.03.2018, relatado por Conceição Ferreira; ambos disponíveis in
www.dgsi.pt
.
A grande maioria da jurisprudência dos tribunais superiores tem entendido que a preterição de sujeição do devedor ao Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI), por parte da instituição de crédito credora, traduz-se no incumprimento de norma imperativa e que, em termos adjectivos, consiste numa condição objectiva de procedibilidade da pretensão, que deve regulada, com as adaptações que se revelem necessárias pelo regime jurídico das excepções dilatórias.
As excepções dilatórias, nominadas ou inominadas, salvo as excepções contempladas no artigo 578º do Código de Processo Civil, são de conhecimento oficioso.
A preterição de sujeição do devedor ao PERSI é de conhecimento oficioso; como tal a sua invocação pela parte, ou a sua apreciação oficiosa, não está sujeita ao prazo concedido para apresentação da defesa, pelo que, atento o estatuído no artigo 573º, n.º 2, in fine do Código de Processo Civil, não está abrangida pelo princípio da preclusão. – cf. Ac. RL, de 29.09.2020, relatado por Micaela da Silva Sousa (in www.dgsi.pt).
Em idêntico sentido pronunciaram-se os acórdãos do Tribunal da Relação de Évora de 8-03-2018, relatora Conceição Ferreira, processo n.º 2267/15.0T8ENT-A.E1, de 16-05-2019, relator José Manuel Barata, processo n.º 4474/16.9T8ENT-A.E1, de 31-01-2019 e de 21-05-2010, relator Tomé de Carvalho, processos n.º 832/17.0T8MMN-A.E1 e n.º 715/16.1T8ENT-B.E1; acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 9-05-2019, relatora Judite Pires, processo n.º 21609/18.0T8PRT-A.P1; e acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14-01-2020, relatora Ana Lucinda, processo n.º 4097/14.8TBMTS.P1, referindo-se, neste último: “E o certo é que a execução não poderia ter sido instaurada sem ter ocorrido previamente o dito Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI). Do prisma do demandante este era uma condição de acção. Mais precisamente uma específica condição de acção cuja inexistência conduz à carência da acção, causa de extinção do processo sem julgamento de mérito. Do ponto de vista da defesa do demandado é uma excepção dilatória, isto é, uma circunstância que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa, dando lugar à absolvição da instância. Uma excepção de cunho eminentemente processual visto o moderno entendimento da autonomia entre o processo e o direito material. Ela opera no plano da eficácia: não intenta extinguir a pretensão exercida mas apenas neutralizá-la ou retardá-la.”
Verifica-se, pois, que ao contrário do entendimento plasmado na decisão recorrida, podia e devia o tribunal de 1ª instância ter apreciado a verificação da excepção dilatória inominada em referência, mesmo que então já se mostrasse ultrapassado o prazo para a dedução de embargos de executado, podendo fazê-lo no âmbito da própria execução (…)”.
Em face de tudo o que se deixa dito e tendo sido alegado, pelo exequente, determino a notificação do mesmo para, em 10 dias, esclarecer se deu cumprimento ao aí determinado/previsto e, na afirmativa, para o comprovar documentalmente-carta, comprovativo da entrega/recebimento
.”.
- Em resposta veio a exequente dizer o seguinte:
“1. A ora exequente não se trata de uma Instituição de Crédito e não está sujeita às regras do PERSI, não sendo uma entidade habilitada a efectuar operações de crédito em Portugal, nos termos do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de dezembro, na sua redação actual (RGICSF);
2. Pelo que, não está abrangida pelas obrigações decorrentes do regime do PERSI.
3. Acresce que a presente execução, como referido no requerimento executivo, teve origem no âmbito do incumprimento de um PER aprovado e homologado judicialmente.
4. Sendo que nesse plano de pagamentos, os executados se comprometiam a pagar o crédito da ora exequente, em 314 prestações mensais, com carência de capital durante os primeiros 12 meses desde a data de transito em julgado da sentença homologatória.
5. Assim, atento o incumprimento, a ora exequente enviou carta aos executados, nos termos do disposto no art.º 218º do CIRE, interpelando-os para regularizar, no prazo de 15 dias, a situação de mora, sendo certo que os devedores não o fizeram continuando em incumprimento.
6. Ora, tendo o incumprimento sido reportado ao PER homologado, não há que dar cumprimento ao disposto no PERSI, mas, antes ao previsto no CIRE, tendo sido cumprido o disposto no art.º 218º do CIRE.
7. Acresce que, como referido no requerimento executivo, o incumprimento inicial dos executados remonta a dezembro de 2010, em ambos os créditos hipotecários, data a partir da qual não mais liquidaram prestações.
8. Sendo certo que o cedente da aqui requerente operou a resolução contratual em julho de 2013.
9. Sendo que, a realidade é que o consumidor bancário é obrigatoriamente integrado em PERSI entre o 31º dia e o 60º dia subsequente à data de vencimento da obrigação, pelo que, no caso em apreço, à data de vencimento da obrigação (29/12/2010) o DL nº 227/2012 não estava em vigor.
10. Pelo que, nos que se refere ao cedente da aqui requerente o regime do PERSI não é aplicável, permitindo ao cedente resolver os contratos sem integração dos clientes no referido regime.”.
*
III. O Direito:
Assenta a recorrente o seu recurso em quatro questões essenciais, a saber:
A inaplicabilidade à embargada, por não revestir a natureza de entidade financeira, dos procedimentos decorrentes do regime do PERSI.
A verificação de incumprimento e vencimento das obrigações do contrato em data anterior à entrada em vigor do DL nº 227/2012 de 25/10 referente ao regime do PERSI, não sendo assim de aplicar tal regime.
Não ser de aplicar o PERSI dado o incumprimento alegado na execução se reportar ao PER homologado, tendo sido cumprido o disposto no art.º 218º do mesmo diploma.
A ausência de possibilidade de indagar oficiosamente pela verificação das circunstâncias que determinariam a verificação da excepção dilatória inominada decorrente da não integração de cliente bancário no regime do PERSI.
As questões serão abordadas de per si, todavia, comum a todas as questões, importa ter presente o que presidiu a tal Diploma.
Com efeito, o Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de outubro, reconhecendo a degradação das condições económicas e financeiras sentidas na maioria dos países europeus e o aumento do incumprimento de contratos de crédito, estabeleceu um conjunto de princípios e de regras a observar pelas instituições de crédito destinadas a promover a prevenção do incumprimento, designado por Plano de Ação para o Risco de Incumprimento (PARI) e a regularização das situações já em incumprimento de contratos celebrados com consumidores que se revelem incapazes de cumprir os compromissos financeiros assumidos, chamado de Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI).
Quanto ao seu ambito de aplicação, previu-se que o mesmo é aplicável aos contratos de crédito identificados no n.º 1 do seu art.2.º, onde se incluem os contratos de crédito ao consumo, celebrados com clientes bancários, enquanto consumidores, na aceção dada pelo n.º 1 do art.º 2.º da Lei de Defesa do Consumidor, aprovada pela Lei n.º 24/96, de 31 de julho, alterada pelo Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de abril, onde intervenham como mutuários.
O PERSI consiste num procedimento tipificado de composição extrajudicial, e por mútuo acordo, de situações de mora e/ou incumprimento, que se desenrola em três fases sucessivas:
i). uma fase inicial, na qual as instituições de crédito mutuantes informam o cliente da ocorrência de uma situação de mora e dos montantes vencidos em dívida, procurando obter informações acerca das razões subjacentes ao incumprimento; e, caso esse incumprimento se mantenha, integram, obrigatoriamente, o cliente no PERSI entre o 31.º dia e 60.º dia subsequentes à entrada em mora;
ii). uma fase de avaliação e proposta, na qual as instituições de crédito mutuantes procuram apurar se o incumprimento é pontual e temporário ou, ao invés, se denota uma incapacidade do cliente em cumprir de forma continuada com as suas obrigações contratuais, comunicando-lhe posteriormente o resultado dessa indagação, e apresentando ou não uma proposta de regularização adequada à sua situação financeira, objetivos e necessidades (consoante concluam que a renegociação das condições do contrato, ou a consolidação do crédito com outros, são soluções exequíveis);
iii) uma fase de negociação, no âmbito da qual o cliente poderá recusar ou propor alterações à proposta apresentada e, por sua vez, a instituição de crédito mutuante poderá rejeitar as alterações sugeridas ou, quando considere que não existem alternativas viáveis e adequadas ao cliente, abster-se de apresentar uma contraproposta ou uma nova proposta.
O diploma em análise entrou em vigor em 01/01/2013, em conformidade com o disposto no seu artº. 40.º.
A partir desta data, passou a ser obrigatório para as instituições de crédito mutuantes incluírem no PERSI os seus clientes bancários que se encontrem em mora no cumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito. E essa obrigação verifica-se mesmo relativamente aos clientes que já estivessem em mora aquando da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 227/2012, pois que conforme dispõe o n.º 1 do seu art.º 39.º, “São automaticamente integrados no PERSI e sujeitos às disposições do presente diploma os clientes bancários que, à data da entrada em vigor do presente diploma, se encontrem em mora relativamente ao cumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito que permaneçam em vigor, desde que o vencimento das obrigações em causa tenha ocorrido há mais de 30 dias.”.
Estatui o art.º 18.º, n.º 1, al. b), do mesmo diploma a que “No período compreendido entre a data de integração do cliente bancário no PERSI e a extinção deste procedimento, a instituição de crédito está impedida de (…) intentar ações judiciais tendo em vista a satisfação do seu crédito”.
Refere Francisco Almeida Garrett, in «PARI, PERSI & AFINS - Breve Nota Sobre o Novo Regime», JusJornal, n.º 1676, 23.04.2013, que “o Decreto-Lei n.º 227/2012, impõe assim às instituições de crédito mutuante uma "renegociação forçada" e confere ainda ao cliente diversas garantias não displicentes tais como a impossibilidade de a instituição de crédito mutuante (a) resolver o contrato com fundamento no incumprimento, (b) intentar acções judiciais com vista à satisfação do seu crédito, (c) ceder a terceiros, total ou parcialmente, o crédito em questão, ou (d) transmitir a sua posição contratual – tudo isto, enquanto durar o PERSI”.
Aqui chegados, importa primeiramente apreciar a possibilidade de conhecimento oficioso.
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O alegado conhecimento oficioso das circunstâncias que determinariam a verificação da excepção dilatória inominada decorrente da não integração de cliente bancário no regime do PERSI.
Sustenta a recorrente que a invocação da ausência de integração no PERSI enquanto excepção dilatória requer a demonstração concreta dos factos relevantes, algo que não foi feito pelos embargantes. Defendendo que sem essa alegação detalhada, o Tribunal
a quo
não deveria ter analisado a excepção, entendendo que esta não é de conhecimento oficioso, dado não envolver questões de ordem pública ou de interesse colectivo, nem se encontra expressamente qualificada como tal pela lei. Donde, conclui que o Tribunal não tem a obrigação de investigar ou averiguar a aplicação do PERSI na ausência de uma alegação detalhada e fundamentada pelos embargantes.
Socorre-se de jurisprudência nesse sentido que transcreve, nomeadamente, Ac do STJ de 15/09/2022 disponível em
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, no qual se sumaria que: Tendo sido alegado como fundamento dos embargos a violação por parte da exequente de um convénio estabelecido entre as partes, por altura da celebração do contrato de mútuo isso impede que o tribunal decida os embargos com diverso fundamento, não alegado pelas partes, nomeadamente a integração da situação em análise no regime do PERSI. Bem como o Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 20/02/2024 (no mesmo endereço), no qual se decidiu que: I – O conhecimento da excepção dilatória inominada de conhecimento oficioso decorrente da não integração de cliente bancário no regime do PERSI depende de circunstâncias factuais. II – Não tendo tais circunstâncias de facto sido alegadas e tão pouco tendo advindo ao processo por outros meios, o tribunal não tem que fazer indagação oficiosa relativamente às mesmas, devendo decidir, na dúvida, contra a parte a quem interessava o conhecimento do pressuposto processual em causa. Ou ainda indicando o alegado Ac. desta Relação, de 28 de maio de 2019 (Proc. n.º 2253/18.3T8LSB.L1-7, este não foi encontrado nos sites de publicação das decisões superiores): “I - O PERSI (Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento) não é um mecanismo de conhecimento oficioso pelo tribunal. A sua aplicação depende da verificação de condições específicas de facto que devem ser invocadas e demonstradas pela parte interessada, geralmente o cliente bancário. II - Cabe ao devedor alegar e provar que o banco incumpriu as obrigações estabelecidas no âmbito do PERSI, caso pretenda opor-se à execução com base nessa excepção dilatória. III - O tribunal não está obrigado a investigar autonomamente a aplicação ou o incumprimento do regime do PERSI, uma vez que não se trata de uma matéria de ordem pública, mas sim de uma questão de carácter contratual e extrajudicial entre o cliente e a instituição financeira.” Invocando ainda no mesmo sentido o alegado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11 de novembro de 2020 (Proc. n.º 432/19.8T8STB.E1.S1), mas igualmente não publicado, ou encontrado nas pesquisas quer com a data, quer com o número do processo.
A par dos indicados e cuja comprovação pode ser feita, não sendo de atentar os demais, haverá ainda que considerar o recente Acórdão do STJ, de 17/10/2023, proc. nº 2419/21.4T8VNF-A.G1.S1 (este publicado em
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), com o seguinte sumário, na parte relevante: I – A verificação da excepção dilatória, atípica e inominada, consistente no incumprimento pela instituição financeira, ora exequente/embargada, dos deveres impostos pelo procedimento extra-judicial previsto no Decreto-lei nº 227/2012, de 25 de Outubro, depende da alegação pela parte interessada (o ora embargante/executado) da factualidade que permita concluir estarmos perante qualquer das situações tipo, expressamente consignadas no mesmo diploma legal (artigo 2º), em que o dito procedimento deve obrigatoriamente ser seguido antes de instaurada a respectiva acção judicial (artigo 18º), desde que os autos não forneçam, por si só, elementos inequívocos quanto à aplicação ao caso desse mesmo regime.
Não subscrevemos o entendimento dos recorrentes, nem aliás todas as decisões aludidas se reportam apenas à eventual impossibilidade de se conhecer oficiosamente de tal excepção, mas sim igualmente a eventual integração do crédito no diploma que prevê tal procedimento, ou seja, relativamente à exigência de determinada qualidade de devedor, mas também do tipo de crédito exigido, sendo que ou estas circunstâncias resultam dos autos, ou têm de ser invocadas por quem pretende fazer-se valer do PERSI. Pelo que, verificando-se a legibilidade do credor e do crédito para efeitos de aplicação do diploma, entendemos que o Tribunal pode aferir do seu cumprimento perante a credora, única que estará apta a juntar tal prova dita positiva.
Acresce que não obstante a jurisprudência supra citada, tem sido entendimento maioritário que verificando-se os pressupostos do Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI), é obrigatória a integração do cliente bancário nesse regime, caso em que a acção/execução judicial destinada a satisfazer o crédito só poderá ser intentada pela instituição de crédito contra o cliente bancário, devedor mutuário, após a extinção desse procedimento.
Assumindo-se tal posição no Acórdão do STJ de 14/11/2024 (proc. nº 451/14.3TBMTA-C.L2.S1, in Juris.stj.pt), no qual, na parte relevante se sumaria que: ”A omissão da informação ou a falta de integração do devedor no PERSI, pela instituição de crédito, constitui violação de normas de carácter imperativo, que configura, também, excepção dilatória atípica ou inominada, conducente à absolvição do executado da instância executiva.
Trata-se de uma excepção de conhecimento oficioso, e, como tal, a sua invocação não está sujeita à preclusão decorrente do decurso integral do prazo para deduzir embargos de executado (tal como resulta da ressalva prevista no art.º 573º, n.º 2, in fine do CPC), para além do que o conhecimento de excepções dilatórias pode sempre ter lugar até ao primeiro acto de transmissão dos bens penhorados – cf. art.ºs 726º, n.º 2, b) e 734º do CPC.”.
Em sentido idêntico se decidiu no Acórdão desta Relação, datado de 15/12/2022, proc. nº 23116/16.7T8SNT-C.L1-8 I (in
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), com o seguinte sumário: I. O cumprimento prévio dos deveres impostos pelo regime do PERSI constitui um pressuposto específico da acção executiva cuja ausência se traduz numa excepção dilatória inominada de conhecimento oficioso que conduz à absolvição da instância.
II. E como tal a sua invocação pela parte, ou a sua apreciação oficiosa, está subtraída ao prazo concedido para apresentação da defesa, regendo, por isso, a última parte do nº 2 do art.º 573º, do NCPC que descarta a aplicação do princípio da preclusão.
Na fundamentação de tal decisão resulta que “a falta de integração no PERSI, verificados que estivessem os pressupostos para tanto, impede também que a instituição de crédito intente acção judicial com vista à satisfação do seu crédito, porque antes de o poder fazer tem de cumprir aquela obrigação que lhe é imposta de tentativa extrajudicial de regularização do incumprimento, ou seja, aquela integração surge como uma condição prévia ao accionamento judicial.
Assim tem concluído a doutrina e a jurisprudência dos tribunais superiores, que é exemplo o Ac. da RE de 6.10.2016, relator Tomé de Carvalho, processo nº 4956/14.8T8ENT-A.E1, disponível in
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.
Havendo a obrigação legal de abertura do PERSI após o incumprimento do devedor e previamente à instauração da execução para cobrança do crédito, coloca-se a questão de saber que vício constitui a instauração da execução sem o cumprimento daquele requisito legal prévio, o qual nem sequer é sanável no âmbito da acção judicial (execução), conforme emerge com clareza e contundência da própria letra da lei (vg. art.º 18º do Decreto-Lei 227/2012).
A resposta tem sido dada de forma unânime: o cumprimento prévio dos deveres impostos pelo regime do PERSI constitui um pressuposto específico da acção executiva cuja ausência se traduz numa excepção dilatória inominada de conhecimento oficioso que conduz à absolvição da instância.
Nesse sentido, podemos ver os acs. da RP de 9.05.2019, processo nº 21609/18.0T8PRT-A.P1, Judite Pires, de 09.01.2019, processo nº 8207/14.7T8PRT-B.P1, Filipe Caroço, de 14.1.2020, processo nº 4097/14.8TBMTS.P1, Ana Lucinda Cabral, de 07.03.2022, processo nº 121/20.3T8VLG-A.P1, Miguel Baldaia Morais, de 07.02.2022, processo nº 1091/20.3T8OVR-A.P1, Ana Paula Amorim e de 15.06.2022, relator Aristides Rodrigues de Almeida; os acs. da RE de 6.10.2016, processo nº 4956/14.8T8ENT-A.E1, Tomé de Carvalho e de 28.06.2018, processo nº 2791/17.0T8STB-C.E1, Mata Ribeiro; da RL de 13.10.2020, processo nº 15367/17.3T8SNT-A.L1-7, Maria da Conceição Saavedra e de 7.05.2020, processo nº 2282/15.4T8ALM-A.L1-6, Adeodato Brotas; e do STJ de 13.04.2021, processo nº 1311/19.7T8ENT-B.E1.S1, Graça Amaral, de 09.12.2021, processo nº 4734/18.5T8MAI-A.P1.S1, Ferreira Lopes e de 16.11.2021, processo nº 21827/17.9T8SNT-A.L1.L1.S, Clara Sottomayor, todos in www.dgsi.pt).
Entendida a falta de integração do cliente bancário no PERSI como uma excepção dilatória inominada de conhecimento oficioso, é aplicável o regime decorrente dos art.ºs 576º, nºs 1 e 2 e 578º do NCPC.
Com efeito, nos termos do art.º 578º do NCPC o tribunal deve conhecer oficiosamente das excepções dilatórias, salvo da incompetência absoluta decorrente da violação de pacto privativo de jurisdição ou da preterição de tribunal arbitral voluntário e da incompetência relativa nos casos não abrangidos pelo disposto no art.º 104º. E esta regra é válida também para o processo executivo, por força do comando previsto no art.º 551º, nº 1, do NCPC.
E, assim sendo, a sua invocação não está sujeita à preclusão decorrente do decurso integral do prazo para deduzir embargos de executado, tal como resulta da ressalva prevista no art.º 573º, nº 2, in fine do NCPC, para além do que o conhecimento de excepções dilatórias pode sempre ter lugar até ao primeiro acto de transmissão dos bens penhorados – cfr. art.ºs 726º, nº 2, b) e 734º do NCPC.”.
Daqui resulta que dada a natureza de excepção dilatória de conhecimento oficioso haverá que aplicar o previsto no nº 2 do art.º 573º do CPC, ou seja, não ocorre quanto a tal excepção o efeito preclusivo, pelo que podem os embargantes depois da oposição, como ocorreu nos autos, invocar tal excepção. Pelo que a circunstância de ter sido suscitada em requerimento autónomo, já após os articulados, em nada releva, uma vez que está subtraída ao prazo concedido para apresentação da defesa.
Deste modo, além de ser de conhecimento oficioso, não carecendo da iniciativa das partes para poder ser conhecido, por maioria de razão, nada impedia que os embargantes, ora recorridos tomassem essa iniciativa impulsionando o tribunal a exercer o seu dever de conhecer, o que foi feito nos autos, tendo permitido à embargada exercer o contraditório.
Soçobra, assim, tal argumento recursório.
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A inaplicabilidade à embargada, por não revestir a natureza de entidade financeira, dos procedimentos decorrentes do regime do PERSI.
Defende a recorrente que não se trata de uma Instituição de Crédito, pelo que não está sujeita às regras do PERSI, não sendo uma entidade habilitada a efectuar operações de crédito em Portugal, nos termos do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de dezembro, na sua redação actual (RGICSF). Concluindo que não está abrangida pelas obrigações decorrentes do regime do PERSI, pois este foi concebido exclusivamente para regular a actuação de instituições de crédito supervisionadas pelo Banco de Portugal, e, como tal, entidades que não são supervisionadas não estão obrigadas a seguir o procedimento.
Entendemos subscrever o entendimento do Tribunal
a quo
nesta matéria quando expõe que: “(…)
o art.º 18.º do Dec. Lei n.º 227/2012 contém um elenco taxativo de actos que as instituições de crédito ficam impedidas de praticar enquanto decorre o aludido procedimento, o que se traduz em garantias do cliente bancário.
Uma das garantias que é atribuída aos clientes bancários na situação contemplada pelo Dec. Lei n.º 227/2012 é a proibição de sobre eles serem intentadas ações judiciais, proibição esta que impende sobre o credor, para a satisfação do seu crédito, entre a data da integração do devedor no procedimento e a sua extinção – cfr. art.º 18.º, n.º 1, al. b)– que no caso ocorre porque nem sequer se teve o procedimento por iniciado, muito menos por extinto.
Não fazendo o legislador distinção entre ação declarativa e executiva, atendendo aos princípios e razões que subjazem à implementação do PERSI, deve ter-se por mais adequada a interpretação que inclui no âmbito daquela previsão os dois tipos de ações.
Proíbe-se, portanto, que sejam intentadas ações (declarativas e executivas) para satisfazer o crédito no âmbito do decurso do PERSI.
Por outro lado, no período compreendido entre a data de integração do cliente bancário no PERSI e a extinção deste procedimento, a instituição de crédito está impedida de ceder a terceiro uma parte ou a totalidade do crédito [al. c)] ou transmitir a terceiro a sua posição contratual [al. d)].
Porém, nos termos do n.º 2 do citado normativo, a instituição de crédito pode ceder créditos para efeitos de titularização [al. b)] ou ceder créditos ou transmitir a sua posição contratual a outra instituição de crédito [al. c)]; neste último caso, sendo exigível que a cessionária seja outra instituição de crédito, “fica esta obrigada a prosseguir com o PERSI, retomando este procedimento na fase em que o mesmo se encontrava à data da cessão do crédito ou da transmissão da posição contratual” (n.º 3).
A razão de ser desta última excepção – permitir a cedência ou a transmissão do crédito de cliente bancário integrado em PERSI –, justifica-se desde que seja possível dar continuidade à aplicação do referido procedimento – o que poderá ser vantajoso em situações em que o cliente bancário consiga melhores condições com outra instituição de crédito –, pois caso contrário a cedência ou a transmissão poderia importar uma desvirtuação do regime, na medida em que se o cessionário não for uma instituição de crédito abrangida pelo âmbito de aplicação do Regime Geral não estaria obrigado a dar cumprimento ao PERSI Cfr. Andreia Sofia Lúcio Engenheiro, O crédito bancário: a prevenção do risco e gestão de situações de incumprimento, Dissertação com vista à obtenção do grau de Mestre em Direito na área de Ciências Jurídicas Empresariais - Universidade Nova de Lisboa, Julho, 2015, p. 57,
https://run.unl.pt/bitstream/10362/16176/1/Engenheiro_2015.pdf
.
Assim, a entidade bancária não podia ter cedido o crédito dos autos à exequente sem ter previamente cumprido as exigências legais, não podendo a ora exequente escudar-se na circunstância de não ser uma entidade de crédito para, desde modo, evitar que sejam cumpridas as exigências legais, como alega.
O facto de ter havido uma cessão de créditos para a aqui exequente não tem influência no que antecede, pois que as limitações decorrentes do PERSI impõem-se ao cessionário do crédito.
Com efeito, de outro modo estaria encontrada uma via expedita para as instituições de crédito se subtraírem à obrigatória sujeição ao regime decorrente do Dec. Lei n.º 227/2012, bastando para o efeito que, em violação do estatuído no citado diploma legal, se abstivessem de integrar obrigatoriamente o cliente bancário no PERSI e cedessem o seu crédito a um terceiro que não é uma instituição de crédito, o que permitiria que este (cessionário) não ficasse sujeito às proibições ou impedimentos elencados no art.º 18º e pudesse obter de imediato a satisfação do crédito cedido, sendo-lhe, por isso, lícito, sem quaisquer restrições, resolver de imediato o contrato de crédito com fundamento em incumprimento (art.º 18.º, n.º 1, al. a)), intentar ações judiciais contra o mutuário, tendo em vista a satisfação dos respectivos créditos (al. b)), ceder a terceiros uma parte ou a totalidade do crédito em causa (al. c)) ou transmitir a terceiro a sua posição contratual (al. d)).
Tal representaria, fácil é de ver, uma autêntica fraude à lei, na medida em que frustraria por completo os objectivos que presidiriam à consagração daquele especial regime que visa tutelar as situações dos clientes bancários que se encontrem em mora relativamente ao cumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito, solução essa que deve ser rejeitada
.”
Com efeito, a exequente intentou a presente execução a 7/5/2022, e no requerimento executivo alegou que adquiriu “por escritura de cessão de créditos, que se protesta juntar, diversos créditos, incluindo as respectivas garantias e demais acessórios, sem quaisquer reservas ou excepções, onde se inclui o crédito abaixo referido e que agora se executa.”. Tal escritura não resulta ter sido junta aos autos.
Acresce que também resulta alegado pela exequente no seu requerimento executivo que “os Executados não procederam ao pagamento das prestações vencidas a partir de Dezembro de 2010. Por esse motivo, por carta datada de 9 de Julho de 2013, o Exequente procedeu à resolução do contrato, declarando antecipadamente vencido o crédito (cfr. cópia das cartas que se juntam como documento n.º 4 e se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais).”. Do teor dos documentos juntos não resulta tal interpelação, mas com o requerimento executivo foi junto um documento de onde se extrai que foi ainda o Banco BIC a notificar os executados do incumprimento do plano ao abrigo do processo de revitalização, interpelando os mesmos, com data de 28/01/2016, para, no prazo de 15 dias, procederem ao pagamento dos valores em dívida nos termos do art.º 218º nº 1 alínea a) do CIRE.
Logo, a cessão invocada pela embargada, ora recorrente, terá ocorrido em momento posterior a 28/01/2016, pelo que quer na data da mesma, quer na data da alegada resolução dos contratos, já estaria em vigor o PERSI, pelo que não pode a recorrente fazer-se valer da ausência da qualidade exigida para cumprimento de tal procedimento. Como bem se alude na bem fundamentada decisão e em abundante jurisprudência “considerando que o legislador do Dec.º-Lei nº 227/12, de 25.10 teve o cuidado de plasmar todo um conjunto de garantias de defesa aos clientes em situações de mora ou incumprimento, maxime no art.º 18º (Garantias do Cliente bancário), estando o mutuário/devedor em situação de lhe ser aplicado o PERSI, a entidade bancária não pode ceder o crédito a terceiro (instituição não bancária) sem ter previamente cumprido as exigências decorrentes do regime ínsito no regime decorrente do Dec. Lei n.º 227/2012, de 25.10.”. Pois “de outro modo, estaria encontrada uma via expedita para as instituições de crédito se subtraírem à obrigatória sujeição ao regime decorrente do Dec. Lei n.º 227/2012 (bastando que, em violação desse diploma legal, se abstivessem de integrar obrigatoriamente o cliente bancário no PERSI e cedessem o seu crédito a um terceiro que não é uma instituição de crédito, o que permitiria que este (cessionário) não ficasse sujeito às proibições ou impedimentos elencados no art.º 18º e pudesse obter de imediato a satisfação do crédito cedido), o que representaria uma autêntica fraude à lei, pois era uma forma de deixar entrar pela janela o que o legislador proibiu que entrasse pela porta, frustrando-se completamente o objectivo prosseguido com a criação do PERSI.” (cf. entre outros Acórdão do STJ de 2/02/2023, proc. nº 1141/21.6T8LLE-B.E1.S1, in
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).
Por outro lado, não há que olvidar que a cessão de créditos é livre, “independentemente do consentimento do devedor” (art.º 577º do CCivil), mas o art.º 585º do CC consagra o direito do devedor de “opor ao cessionário, ainda que este os ignorasse, todos os meios de defesa que lhe seria lícito invocar contra o cedente, com ressalva dos que provenham de facto posterior ao conhecimento da cessão.”.
Destarte improcede igualmente o recurso com este fundamento.
·
A verificação de incumprimento e vencimento das obrigações do contrato em data anterior à entrada em vigor do DL nº 227/2012 de 25/10 referente ao regime do PERSI, não sendo assim de aplicar tal regime.
Sustenta a recorrente/embargada que não será de aplicar o regime do PERSI, dizendo que o incumprimento dos executados ocorre a partir de 2010, pelo que antes da entrada em vigor do diploma que instituiu tal procedimento, convocando para o efeito a seguinte decisão da Relação de Évora, de 24/02/2022, disponível em
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: “Assim, verificando-se que o contrato de crédito já havia sido resolvido antes da entrada em vigor do referido diploma, não tinha a instituição bancária que integrar o consumidor cliente bancário em PERSI, nem informar o fiador dessa possibilidade, antes de instaurar a execução.”.
Na decisão recorrida discorre-se sobre tal temática da seguinte forma: “
Ora, como se salienta no Ac. da RE de 06/10/2016 (relator José Tomé de Carvalho), in www.dgsi.pt., estamos perante “incumprimento de norma imperativa, a qual constitui, do ponto de vista adjetivo - com repercussões igualmente no domínio substantivo -, uma condição objetiva de procedibilidade” da própria pretensão, que deve ser enquadrada “com as necessárias adaptações, no regime jurídico das exceções dilatórias. E isto porque, em termos finalísticos, atendendo ao respetivo resultado, a referida falta de condição objetiva de procedibilidade conduz à absolvição da instância e não se reporta ao mérito da causa”, não sendo o vício decorrente de tal omissão sanável no âmbito da ação judicial (execução), conforme emerge com clareza e contundência da própria letra da lei (vg. art.º 18º do Dec. Lei 227/2012)” Cfr., no mesmo sentido, Acs. da RE 31/01/2019 (relator José Tomé de Carvalho), de 28/06/2018 (relator Mata Ribeiro) e de 08/03/2018 (relatora Maria da Conceição Ferreira), in www.dgsi.pt.
A falta de integração obrigatória do cliente bancário no PERSI, quando reunidos os pressupostos para o efeito, constitui impedimento legal a que a instituição de crédito, credora mutuante, intente ações judiciais tendo em vista a satisfação do seu crédito. Pelo que, sendo a integração de cliente bancário no PERSI, obrigatória, quando verificados os seus pressupostos, a ação judicial destinada a satisfazer o crédito, só poderá ser intentada pela instituição de crédito contra o cliente bancário, devedor mutuário, após a extinção do PERSI (cfr. Acórdãos do STJ, de 09.02.2017, Proc. 194/13.5TBCMN.A.G1.S1, e da RE, de 27.04.2017, Proc. 37/15.5T8ODM.A.E1, ambos disponíveis in
https://jurisprudencia.csm.org.pt
).
A omissão dessa obrigação constitui uma verdadeira falta de condição objectiva de procedibilidade que, na busca do lugar paralelo, é enquadrada, com as necessárias adaptações, no regime jurídico das exceções dilatórias. E isto porque, em termos finalísticos, atendendo ao respetivo resultado, a referida falta de condição objetiva de procedibilidade conduz à absolvição da instância e não se reporta ao mérito da causa (cfr. Acórdão da RE, de 06.10.2016, Proc. 4956/14.8T8ENT.A.E1; Acórdão da RL, de 07.06.2018, relatado por Pedro Martins (in www.dsgi.pt).
De qualquer das formas, a não verificação dessa condição é insanável pois que o regime excecional previsto no Decreto-Lei n.º 227/2012 afasta liminarmente a possibilidade de ser intentada a ação e, por maioria de razão, existe uma circunstância impeditiva que obsta a que, no decurso de uma ação executiva se desenvolva um PERSI.
Nos termos do art.º 4.º do aludido diploma, devem as instituições de crédito “proceder com diligência e lealdade, adotando as medidas adequadas à prevenção do incumprimento de contratos de crédito e, nos casos em que se registe o incumprimento das obrigações decorrentes desses contratos, envidando os esforços necessários para a regularização das situações de incumprimento em causa
.”
A par de tal apreciação importa ter presente que é o recorrente que em sede de requerimento executivo alega que “por carta datada de 9 de Julho de 2013, o Exequente procedeu à resolução do contrato, declarando antecipadamente vencido o crédito”. Donde, mesmo que se tenha por confessado que o incumprimento pelos executados do pagamento devido decorria desde Dezembro de 2010, claramente, aquando da entrada em vigor do diploma, a 1/01/2013, ou seja, em momento anterior à resolução, já a credora estaria obrigada ao seu cumprimento.
Haverá aliás que trazer à colação o decidido no Acórdão do STJ de 2/02/2023, supra aludido, ao sumariar que “O procedimento PERSI deve ser repetido sempre que ocorra futuro e sucessivo incumprimento: quer a letra da lei, quer o espírito que preside ao DL nº 272/2012, não dão sustento à interpretação que limita a um único PERSI o incumprimento pelo mutuário num contrato de mútuo em que se convencionou o reembolso do capital e juros em prestações mensais, em contratos em que o mutuário fica vinculado a reembolsar o empréstimo por períodos largos de tempo, que podem atingir as dezenas de anos, como sucede nos casos de empréstimos para a habitação. A diversidade de situações justifica o desencadear de diferentes procedimentos.”.
Logo, à data da entrada em vigor do D.L. nº 272/2012, ainda que os executados estivessem em mora em data anterior, o incumprimento decorria, sem que tivesse ocorrido a resolução, o que veio a acontecer já na vigência do diploma. É abundante a jurisprudência no sentido de considerar que o regime do PERSI, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 227/2012, é obrigatório mesmo no caso em que o início do incumprimento do contrato dado à execução tenha ocorrido em data anterior à vigência do referido diploma desde que o contrato se mantenha em vigor depois da sua entrada em vigor.
Como bem se decidiu e sumariou no Acórdão desta Relação e secção, a 18/10/2020, proc. nº 14235/15.8T8LRS-A.L1-6: “II. O PERSI é aplicável aos contratos em vigor à data da sua entrada em vigor, mesmo sendo o incumprimento anterior. III) A omissão de PERSI prévio à instauração da execução constitui obstáculo a que o tribunal possa conhecer do mérito da causa instaurada, assumindo a natureza processual de excepção dilatória, determinante de absolvição da instância e de conhecimento oficioso.”
Também nesta Relação, foi proferido a 09/04/2024 (proc. nº 8328/23.5T8LRS.L1-7, in
www.dgsi.pt
) a decisão com o seguinte sumário: I. A aplicação do regime legal introduzido pelo Decreto-Lei nº 227/2012, de 25 de Outubro, aos casos de mora iniciados antes do início da vigência deste diploma tem como pressuposto, além da manutenção da mora no incumprimento das obrigações contratuais, que o contrato permaneça em vigor nessa data. II – Não tendo sido demonstrado que o credor havia procedido à resolução do contrato de crédito em momento anterior à entrada em vigor do Decreto-Lei nº 227/2012, de 25 de Outubro, é forçoso concluir pela aplicabilidade deste diploma a tal contrato. III – Consequentemente, não tendo a executada sido integrada em PERSI antes da instauração da execução destinada à cobrança coerciva do crédito, verifica-se a excepção dilatória atípica e inominada de falta da condição objectiva de procedibilidade, prevista no artigo 18º, nº 1, al. b) do citado Decreto-Lei nº 227/2012, de 25 de Outubro, o que determina o indeferimento liminar do requerimento executivo.” (no mesmo sentido ainda Ac. da RE de 10/03/2022, proc. nº 1340/21.0T8ENT.E1; Ac. da RG de 18/01/2024, proc. nº 657/13.2TBVVD-E.G.).
De tudo o exposto, determina-se a improcedência do recurso também relativamente a este fundamento.
·
Não ser de aplicar o PERSI dado o incumprimento alegado na execução se reportar ao PER homologado, tendo sido cumprido o disposto no art.º 218º do mesmo diploma
Por fim, sustenta o recorrente que o PER é um processo judicial especial previsto no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), destinado especificamente à reestruturação das obrigações de uma empresa ou devedor em situação de dificuldade financeira, mas com viabilidade económica.
A sua natureza é distinta e mais formal em comparação com o regime do PERSI, que é um mecanismo de negociação extrajudicial, aplicável principalmente a consumidores. Como o PER foi aprovado e homologado judicialmente, o plano reestruturado tornou-se obrigatório para todas as partes envolvidas, incluindo os credores.
Neste caso, o incumprimento refere-se a obrigações que foram reestruturadas judicialmente e não a novas obrigações contraídas após o PER. Logo, o PERSI não é aplicável, dado que o CIRE é o regime específico para tratar situações decorrentes do incumprimento do PER homologado. O CIRE, especificamente o artigo 218º, estabelece o regime para lidar com o incumprimento de obrigações decorrentes de um plano de recuperação aprovado (neste caso, o PER). Esse artigo prevê que, em caso de incumprimento das obrigações constantes de um plano de recuperação homologado, o credor poderá requerer a execução da totalidade das dívidas, sem a necessidade de recorrer ao PERSI.
A homologação judicial do PER torna-o parte integrante do contrato entre devedor e credores, e o incumprimento de tais obrigações deve seguir o regime previsto no CIRE, e não no PERSI, que se aplica apenas a situações de incumprimento onde não há um processo judicial de reestruturação formal. Mais defende que o PERSI não tem competência para interferir num plano homologado por um tribunal, uma vez que o plano possui autoridade judicial, tornando o recurso ao PERSI irrelevante e inaplicável.
O PER, por ser um processo judicial, prevalece sobre o PERSI, que é um procedimento extrajudicial e é subsidiário em relação ao PER quando existe um plano homologado para a regularização das dívidas.
O Tribunal recorrido relativamente a tal questão apenas expõe o seguinte:
“(…) o ónus de alegar e provar o cumprimento do PERSI junto dos clientes bancários em incumprimento, designadamente o encargo de comprovar o envio aos mesmos da comunicação da sua integração no PERSI e da comunicação da extinção do mesmo, cabe à exequente, o que não fez. Assim, atento o incumprimento do crédito, conforme alega a exequente no decurso do contrato, independentemente, de o mesmo ocorrer no âmbito de um PER, ou de retoma do mesmo crédito, por anterior incumprimento, não é fundamento para não estar abrangido pelas obrigações decorrentes do regime do PERSI.”.
O (PER) foi introduzido no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), aprovado pelo Dec.-Lei n.º 53/2004 de 18/03, pela Lei nº 16/2012 de 20/04 dando cumprimento ao memorando de entendimento celebrado pelo Estado Português com a “Troika” que previa a adopção de um conjunto de medidas com o objectivo de promover mecanismos de reestruturação extrajudicial de devedores que se encontrassem em situação financeira muito difícil, mas ainda susceptíveis de recuperação.
Assim, no âmbito do CIRE, ao lado do objectivo da satisfação dos direitos dos credores através da liquidação do património do devedor, passou a haver um outro fim, a revitalização do devedor. Trata-se de um procedimento de natureza voluntária, de tendência extrajudicial e negocial sob a coordenação e direcção do administrador judicial.
A recorrente indica, em abono da posição assumida quanto a este item, Acórdãos, quer da Relação do Porto, quer do STJ, que o recorrente indica como sendo Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 29 de maio de 2017 (Proc. n.º4460/15.2T8PRT.P1) e ainda o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de julho de 2019 (Proc. n.º 490/13.9TBTMR-E.P1.S1) dizendo que este contém o seguinte sumário: "I - A homologação judicial de um plano de recuperação no âmbito de um Processo Especial de Revitalização (PER) tem força vinculativa para todas as partes e constitui título executivo, conferindo ao credor o direito de exigir judicialmente a totalidade das prestações vencidas em caso de incumprimento das obrigações previstas. II - O regime específico do CIRE, especialmente o artigo 218º, é suficiente para permitir a execução da dívida e substitui a necessidade de quaisquer mecanismos extrajudiciais de regularização, como o PERSI. III - Assim, o incumprimento de um plano de pagamento homologado em PER não exige a intervenção ou aplicação do regime do PERSI, sendo suficiente o recurso ao título executivo consubstanciado no plano homologado.". Quanto ao primeiro Acórdão indicado refere que o mesmo tem a seguinte posição contida no sumário: “I - A homologação judicial de um plano de recuperação no âmbito de um Processo Especial de Revitalização (PER) confere a esse plano força executiva, vinculando o devedor e os credores às obrigações estabelecidas. II - Em caso de incumprimento do PER homologado, o credor pode exigir a execução da totalidade do crédito nos termos do artigo 218º do CIRE, sem necessidade de recurso ao regime do PERSI, que não se aplica a planos aprovados judicialmente. III - O regime do PERSI é inaplicável quando existe um título executivo derivado de um plano homologado, dado que o CIRE fornece um mecanismo judicial específico e suficiente para a execução.”.
Tal como já tínhamos referenciado quanto a Acórdãos indicados pela apelante, relativamente ao primeiro item supra apreciado, de todos os elementos que nos permitem aceder à jurisprudência dos Tribunais superiores, nomeadamente no que concerne aos proferidos pelo STJ, os quais se encontram todos sumariados no seguinte endereço -
https://www.stj.pt/sumario-dos-acordaos/-
não foram proferidos Acórdãos cíveis com data de 10/07/2019, mas apenas a 11 de Julho, por outro lado, da consulta de tais sumários não figura o número do processo indicado. O mesmo ocorre com o Acórdão da Relação do Porto, sendo que, com data de 29/05/2017, apenas foram proferidos Acórdãos na secção social desse Tribunal e nem nesta data ou outra existe a indicação de algum Acórdão com a numeração indicada, ou com o sumário também reproduzido. Desconhecesse assim, a fonte (que o recorrente também não indica) ou a existência de tais decisões.
O regime do processo especial de revitalização introduzido no Código da insolvência e da Recuperação de Empresas pela Lei n.º 16/2012, de 20.04, e previsto nos artigos 17.º-A a 17.º-H é omisso quanto às consequências do incumprimento do plano de recuperação.
Tal questão não tem tido uma resposta unanime na jurisprudência, numa corrente jurisprudencial entende-se que a sentença homologatória do plano de recuperação proferida no âmbito do processo especial de revitalização previsto nos artigos 17.º-A a 17.º-H do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas introduzidos pela Lei n.º 16/2012, de 20.04, constitui título executivo, em caso de incumprimento daquele plano. Nesta posição, haverá, nomeadamente, que considerar o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 21/01/2016 (Processo n.º 1963/14.4TbCL.1.G1, consultável em
www.dgsi.pt
), no qual se defende a aplicação, por analogia, do disposto no artigo 233.º, n.º 1, parte final, da al. c), do CIRE ao plano de revitalização; ali se escreveu que «não há razões para não conferir à sentença que homologa o plano de revitalização natureza diferente da que atribui à que homologa o plano de insolvência, desde que nela conste identificado o valor dos créditos ou remeta para o acordo ou para peça processual onde conste como admitidos os montantes em dívida a cada credor», em sentido idêntico a decisão proferida no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19.03.2018 (Processo n.º 121/14.2TBAMT.P1), bem como o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13.01.2020 (Processo n.º 7725/15.4T8MAI.P1, endereço da net aludido).
Recentemente porém, tem sido defendido que: - o incumprimento do plano de recuperação homologado por sentença afere-se pela análise da conduta do devedor em face do concreto teor do referido plano; - os efeitos do incumprimento enunciados no n.º 1 al. a) do art.º 218.º n.º 1 do CIRE, aplicável no âmbito do PER, produzem-se desde que o credor interpele por escrito o devedor que se tenha constituído em mora e a prestação, acrescida dos juros moratórios, não for cumprida no prazo de 15 dias a contar dessa interpelação; - a homologação, por sentença, do plano de recuperação, não retira a qualidade de título executivo a documento atinente a crédito considerado nesse plano; - verificando-se o incumprimento do plano de recuperação nos moldes previstos no art.º 218.º do CIRE, os créditos recuperam a sua situação originária, pois só o cumprimento do plano exonera o devedor da totalidade das dívidas remanescentes; - não obstante seja homologado plano de recuperação, o credor mantém incólumes os direitos de que dispunha contra condevedores e terceiros garantes.( Acórdão da RE de 11/04/2019, proc. nº 425/18.5T8BJA-A.E1, in
www.dgsi.pt
, no mesmo sentido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09/04/2019, Processo n.º 154/17.7T8ALD.C1.S2 e ainda o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 13/02/2020 Processo n.º 7081/18.9T8VNF-B.G1, todos em www.dgsi.pt.).
Tal como se alude no Acórdão do TRG de 23/05/2024 ( Proc. nº472/23.5T8CHV-A.G1) “os efeitos do incumprimento do plano de recuperação enunciados no art.º 218.º, n.º 1, al. a) “ex vi” do art.º 17º-F, n.º 13, ambos do CIRE – como seja a cessação dos efeitos da moratória ou do perdão de créditos –, produzem-se desde que o credor interpele por escrito o devedor que se tenha constituído em mora e a prestação, acrescida dos juros moratórios, não for cumprida no prazo de 15 dias a contar dessa interpelação.”.
Logo, é apenas no âmbito da insolvência que após o seu encerramento, o título executivo a ser utilizado pelo credor que pretenda exercer os seus direitos contra o insolvente incumpridor não é o título originário, passando antes a ser a sentença homologatória do plano de pagamento, bem como a sentença de verificação de créditos, nos termos do artigo 233.º, n.º 1, c) do CIRE.
No caso dos autos é desde logo contraditória a posição que a apelante assume neste recurso e a que assumiu no requerimento executivo, pois não há que olvidar que no requerimento executivo o mesmo indica o seguinte: “I. Nos termos legais, tendo sido incumprido o plano, nos termos do art.º 218º do CIRE, as moratórias e perdões concedidos através da aprovação do plano, ficam sem efeito, assim, à data de 15/10/2021 é devida a quantia de 106.213,60€, sendo 76.505,75€ referente a capital e 29.707,85€ referente a juros moratórias à taxa de 4,706%
A hipoteca acima referida sobre as frações devidamente identificadas na escritura pública, nos termos contratuais e registrais, garante a operação de crédito acima identificada e todos os valores em dívida.
II. Nos termos legais, tendo sido incumprido o plano, nos termos do art.º 218º do CIRE, as moratórias e perdões concedidos através da aprovação do plano, ficam sem efeito, assim, à data de 15/10/2021 é devida a quantia de 45 620,27 €, sendo 32 860,32€ referente a capital e 12 759,95 €€ referente a juros moratórias à taxa de 4,706%
A hipoteca acima referida sobre as frações devidamente identificadas na escritura pública, nos termos contratuais e registrais, garante a operação de crédito acima identificada e todos os valores em dívida.
Pelo exposto, a dívida global dos Executados ao Exequente ascende, a data de 15/10/2021, a 151.833,87€”.
Tal como resulta do requerimento executivo, também entendemos que é de aderir à tese que nega à sentença homologatória do plano de recuperação a natureza de título executivo, nem aliás, este foi apresentado como tal.
Seguindo de perto o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 29/04/2021, (Processo nº3909/18.1T8ENT.E1): “De acordo com o preceituado no artigo 17.º-F, nº 12, do CIRE, ao plano de recuperação aplica-se o disposto no n.º 1 do artigo 218.º do mesmo diploma normativo, preceito que regula os efeitos do incumprimento do plano de insolvência. Em face do disposto no artigo 18.º, n.º 1, alínea a), do CIRE «salvo disposição expressa do plano de insolvência em sentido diverso, a moratória ou o perdão, previstos no plano ficam sem efeito quanto a crédito relativamente ao qual o devedor se constitua em mora, se a prestação acrescida dos juros moratórios não for cumprida no prazo de 15 dias após interpelação escrita pelo credor». Por força deste normativo legal, os créditos originais (isto é, sem o perdão/moratória) são repristinados. Destarte, relativamente a estes (créditos originais) a sentença homologatória não pode constituir título executivo porque ela apenas contempla os créditos modificados por força do plano (cf. Ac. STJ de 09.04.2019).
Ademais, relativamente aos créditos originais não existe uma decisão de reconhecimento dos mesmos no âmbito do PER com força de caso julgado material na medida em que as reclamações no âmbito do processo especial de revitalização têm como objectivo primordial legitimar a intervenção dos credores no processo de negociação e permitir o cálculo do
quorum
deliberativo e a maioria prevista no artigo 17.º-F, n.º 3.”.
Sobre tal questão salienta Catarina Serra (in “Lições de Direito da Insolvência´”, 2018, Almedina, p. 408) que a segunda função da lista definitiva de créditos – que pode resultar da conversão da lista provisória de créditos, quando não há impugnações, ou de decisão judicial sobre as impugnações – consiste em evitar que em eventual processo de insolvência subsequente ao PER os credores reclamem de novo os seus créditos (cfr. artigo 17.º-G, n.º 7, do CIRE). Tal como se decidiu no Ac. RG de 19/03/2015 ( processo n.º 6245/13.6TBBRG.G1, in www.dgsi.pt): «1. O processo especial de revitalização (PER) não se destina a resolver litígios sobre a existência e amplitude de créditos e a decisão sobre a reclamação de créditos é meramente incidental, logo não constitui caso julgado fora do processo (artigo 91.º CPC), destinando-se à formação e apreciação do quórum deliberativo. 2. Os credores cujos créditos tenham sido reconhecidos no âmbito do PER ficam dispensados do ónus de reclamar no processo de insolvência. 3. Não fazendo caso julgado o reconhecimento do crédito fora do PER, a dispensa do ónus de reclamação não afasta o direito de impugnação por parte dos demais credores no subsequente processo de insolvência».
O PER é um processo que visa a renegociação do passivo do devedor e a recuperação económico-financeira daquela, não se destinando a resolver litígios sobre a existência e amplitude dos créditos; com efeito, a lista provisória dos créditos, uma vez convertida em definitiva, vai servir de base às negociações entre o devedor e os seus credores, e a estes basta que os respectivos créditos sejam admitidos e integrem aquela lista, com o valor por eles indicado, independentemente de ali constarem como créditos comuns ou com garantia real, pois para poderem participar nas negociações e votar o plano basta que os créditos respectivos sejam admitidos.
Por último, dir-se-á que nos termos do artigo 233.º, n.º 1, alínea a), do CIRE, o título executivo ali previsto é constituído, em primeira linha, pela sentença de verificação e graduação de créditos, tendo a sentença homologatória do plano de insolvência uma função meramente complementar qual seja a de demonstrar e certificar as modificações introduzidas no plano aos créditos reconhecidos. Logo, tal não pode ser considerado transposto para o processo especial de revitalização, dado o diferente escopo do mesmo.
Outrossim, não pode o recorrente pretender que afinal não estaria obrigada ao cumprimento do PERSI, pois aquando da interpelação pela exequente nos termos do art.º 218º nº 1 alínea a) do CIRE a execução passou a ter por base o crédito originário, expurgado de perdões e moratórias. E foi com base no título executivo originário que a ora exequente intentou a execução de que estes embargos correm por apenso e não com a homologação do plano, como agora pretende que se considere.
Assim, não colhem os argumentos expostos pela recorrente, o Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI), regulado pelo DL 227/2012, de 25-10, visa promover a tutela dos consumidores em incumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito, impondo às instituições financeiras um conjunto de deveres prévios à instauração de ação judicial (declarativa ou executiva), tendentes a proporcionar uma solução extrajudicial para o litígio. Logo, recai sobre a instituição de crédito o ónus da prova do cumprimento de tais obrigações que para si decorrem do artigo 12º, e ss do DL 227/2012, de 25-10, demonstrando, designadamente, as comunicações de integração e de extinção de PERSI, que constituem condições objectiva de procedibilidade da execução, consubstanciando, a sua ausência, excepção dilatória inominada geradora da extinção da instância.
É, assim, de manter a decisão recorrida, improcedendo a apelação.
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IV. Decisão:
Por todo o exposto, Acorda-se em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pela embargada e, consequentemente, mantém-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Custas pela apelante.
Registe e notifique.
Lisboa, 20 de Fevereiro de 2025
Gabriela de Fátima Marques
Nuno Lopes Ribeiro
Anabela Calafate
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TRL
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https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/0331641d9322330f80258c3f004db526?OpenDocument
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1,743,897,600,000
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CONFIRMAÇÃO
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3558/20.4T8GDM-D.P1
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3558/20.4T8GDM-D.P1
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MANUEL DOMINGOS FERNANDES
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I - Atento o carácter instrumental da reapreciação da decisão da matéria de facto, no sentido de que a reapreciação pretendida visa sustentar uma certa solução para uma dada questão de direito, a inocuidade da aludida matéria de facto justifica que este tribunal indefira essa pretensão, em homenagem à proibição da prática no processo de atos inúteis (artigo 130.º do CPCivil).
II - No âmbito do novo regime jurídico do inventário judicial (decorrente da Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro), o acervo patrimonial a partilhar (ativo e passivo) deve, por regra, ser indicado na fase dos articulados e só em situações excecionais se admite que seja acusada a falta de bens ou dívidas que o integrem, em momento ulterior.
III - Entre essas situações, contam-se os casos de superveniência objetiva ou subjetiva de bens ou dívidas atinentes ao referido acervo.
IV - Tendo o cabeça de casal, na resposta à reclamação de bens, requerido o aditamento de dívida, mas não tendo alegado qualquer fundamento para o eventual desconhecimento da sua existência aquando da apresentação da relação de bens, o pedido assim impetrado só pode ser considerado intempestivo.
V - Na vigência do Código de Processo Civil anterior, mas igualmente após 01/09/2013, ocasião em que passou a vigorar a Lei 41/2003, de 26 de junho (NCPC) a matéria de facto à qual há que aplicar o direito tem de cingir-se a verdadeiros factos e não a questões de direito ou a meros juízos conclusivos, razão pela qual a revogação do artigo 646, n.º 4 do anterior CPC, não significa que o princípio nele estabelecido haja sido alterado devendo, assim, eliminar-se da fundamentação factual os pontos que neles se contenham meras conclusões.
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[
"INVENTÁRIO",
"ACUSAÇÃO DE FALTA DE BENS OU DÍVIDAS"
] |
Processo nº 3558/20.4T8GDM-D.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto-Juízo de Família e Menores ...
Relator:
Des. Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Jorge Martins Ribeiro
2º Adjunto Des. José Eusébio Almeida
5ª Secção
Sumário:
………………………………………..
………………………………………..
………………………………………..
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I - RELATÓRIO
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
AA,
divorciada, residente na Rua ..., ..., ... ..., ..., veio requerer, na sequência de divórcio, que se procedesse a inventário para partilha de bens comuns contra,
BB,
divorciado, residente em ..., Reino Unido.
*
Apresentada que foi a relação de bens pelo requerido veio a interessada requerente apresentar reclamação da mesma alegando que foram omitidas na relação de bens as contas bancárias e respetivo saldo no que toca às contas da Banco 1..., sabendo-se que se tratava de contas onde estavam as poupanças do casal.
Por outro lado, relativamente à conta no Banco 2..., apenas está indicado o valor que consta da relação de bens inicial sendo que, o saldo existente nessa conta dizia respeito a valores do casal, única conta que movimentavam.
Mais requereu a referida interessada que seja o cabeça de casal instado para juntar aos autos a documentação referente às quotas da sociedade comercial A... LTD (Reino Unido), nomeadamente, certidão permanente da empresa, por forma a ser possível aferir quais as quotas e qual o seu valor.
*
Notificado o cabeça de casal, veio contrapor que a Banco 1... já veio certificar que as contas identificadas pertencem exclusivamente ao Cabeça de Casal e a Requerente apenas era autorizada.
Relativamente à conta no Banco 2..., sediado em Inglaterra, já se encontra junto aos autos o respetivo extrato, existindo saldo a favor apenas do Cabeça de Casal, visto que esta conta já existia antes de o mesmo se casar, e comparando o saldo que existia antes do casamento e o saldo na data da separação, o saldo é negativo.
No que se reporta à sociedade em questão, a mesma encontra-se em liquidação, sendo que, apenas existem as verbas nº1, 2 e 3 a partilhar.
*
Tendo os autos seguido os seus regulares termo foi proferida decisão, na parte que aqui interessa, com a seguinte parte dispositiva:
“Ora, não tendo sido feita qualquer prova por parte do cabeça de casal de que tais montantes são bens próprios e tendo a interessada logrado provar que em tal conta bancária eram depositados os rendimentos do casal, sendo dessa conta que retiravam, quantias para prover às despesas domésticas, tais depósitos terão de ser relacionados tal como foram apresentados na relação inicial de bens
”.
*
Não se conformando com o assim decidido veio o cabeça de casal interpor o presente recurso rematando com as seguintes com as seguintes conclusões:
A) O despacho recorrido é nulo e de nenhum efeito, porque o Juiz a quo errou claramente na apreciação dos factos e na aplicação do direito, errou na apreciação dos documentos, designadamente extratos bancários, violou as regras do ónus da prova, violou o decidido por si mesmo em despacho já transitado em julgado, no que toca à remessa das partes para os meios comuns quanto à titularidade dos saldos bancários existentes na Banco 1..., SA, tituladas exclusivamente em nome do Recorrente;
B) O Recorrente antes de casar, era o único titular da conta aberta junto do Banco 2..., onde depositava o seu salário;
C) Recorrente e Recorrida casaram no dia 08/12/2007 no regime da comunhão de adquiridos e quanto à conta nº ...52, aberta junto do Banco 2..., no dia 06/12/2007, o Recorrente tinha naquela conta bancária–a quantia de 6.873,96 £ (libras), e no dia da instauração da ação de divórcio, aquela conta (a qual passou a ser conjunta depois do casamento), apresentava um saldo de 4.945,64 £ (libras), o que significa que existe um saldo negativo de 1.928,32 £ (cf. doc. nº 3 junto com o requerimento de 14/06/2023), ou seja, trata-se de uma dívida da Recorrida;
D) Este facto mostra-se provado por extratos bancários juntos aos autos, com data anterior ao casamento e do da apresentação em juízo da ação de divórcio. A Recorrida foi regulamente notificada desta alegação e dos extratos bancários e tomou posição quanto à relação de bens e documentos apresentada pelo Recorrente no dia 14/06/2023 e também através de requerimento de 27/06/2023, não tento impugnado a factualidade alegada pelo Recorrente nem alegado a falsidade de nenhum dos documentos juntos por este, designadamente os extratos bancários, pelo que, aceitou a factualidade alegada pelo Recorrente e respetivos documentos;
E) Se se entendesse que a Recorrida tivesse deduzido oposição a tal facto (o que não fez), cabia-lhe demonstrar o facto que “alegou”, ou seja, que o Recorrente não era credor da aludida quantia de 1.928,32 £.
F) Trata-se de facto constitutivo do seu direito e por isso sobre ela recaía o ónus da respetiva prova (art.º 342.º, 1 do CC)-Ver. Ac. RE de 27/4/2021, 1367/10.8TBVNO.E1 e Ac. RP de 21/3/2023, proc. 3628/21.1T8VNG.P1, bem como, ver Acórdão proferido pela 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, no dia 10/10/2024, no proc. nº 3709/20.9T8OER.L1, disponível em
www.dgsi.pt
;
G) A falta de tal prova levará a que se decida em desfavor da reclamante, devendo improceder a reclamação, sendo de manter o valor relacionado pelo Recorrente a título de saldo negativo-Recorrida não produziu qualquer tipo de prova;
H) O Tribunal a quo ao dar como não provado este facto, demonstrou falta de parcialidade na análise deste facto porque entendeu dar como provado que, à data de 24/05/2021, data posterior à entrada em juízo da p.i. de divórcio, na mesma conta bancária do Banco 2..., constava um saldo bancário de: 19.151,12£ (22.716,458€) na conta nº ...05,71£ (125,39€) na conta n.º ...00 apenas e tão somente porque a Recorrida juntou aos autos um print obtido através da internet e o juntou a juízo em 06/09/2024;
I) Ou seja, desvalorizou pelo menos 2 extratos bancários e contentou-se com um mero print obtido através da internet (em inglês–não traduzido para a língua portuguesa) para dar como assente o ponto 6, o qual deverá ser eliminado da factualidade dada como assente, porque é absolutamente irrelevante para os autos;
J) Deverá também ser eliminada o ponto 7 dos factos dados como assentes porque é a repetição em parte, do facto 2 dado como assente;
K) O Tribunal a quo incorreu num grosseiro e manifesto erro na apreciação da prova, porquanto se dá como não provado um facto que contraria toda a evidência a lógica mais elementar bem como as regras da experiência comum;
L) Por despacho proferido a 14/06/2024 e transitado em julgado, foram as partes remetidas para os meios comuns quanto aos saldos bancários existentes na Banco 1..., SA, razão pela qual o despacho recorrido é nulo e nenhum efeito, porque veio em contramão dar o dito pelo não dito e veio pronunciar-se sobre a titularidade dos saldos bancários existentes nas referidas contas bancárias, quando a única testemunha ouvida em tribunal declarou nada saber sobre o assunto;
M) O Tribunal a quo ao afirmar que, os saldos contantes nas contas abertas na Banco 1..., SA, eram valores de Recorrente e Recorrido, onde alegadamente eram depositadas as poupanças do casal, errou claramente na apreciação do depoimento da testemunha ouvida e aquele despacho padece de nulidade cf. previsto no art.º 195.º do CPC, e de forma tempestiva (cf. n.º 1, parte final do art.º 199.º do CPC) porque decido contra o despacho proferido pela mesma Juíza em 14/06/2024;
N) Na reclamação à relação de bens apresentada em juízo pela Recorrida em 11/05/2023, esta apenas alega a falta de relacionamento dos saldos bancários da Banco 1..., SA., e em momento algum alegou que os saldos existentes nas 2 contas bancárias abertas junto da Banco 1..., SA, eram comuns e que naquelas contas eram depositados os valores provenientes do trabalho e que a Recorrida usava um cartão associado a essas contas;
O) Recorrida apenas no dia 05/03/2024, em audiência prévia, alegou que quanto às contas da Banco 1..., SA, “era autorizada mas os valores que constam das referidas contas, tratavam-se de valores de ambos, eram contas onde estavam as poupanças do casal”, o que reiterou no requerimento de 14/03/2024 (alegação extemporânea–produzida mais de 7 meses após a reclamação apresentada à relação de bens, dado que o momento processual indicado para o efeito era a reclamação apresentada à relação de bens, - requerimento de 11/05/2023 e 27/06/2023, e não em articulado posterior);
P) Pelo exposto, não podem ser admitidos estes 2 requerimentos, um apresentado em ata de audiência prévia em 05/03/2024 e outro em requerimento de 14/03/2024;
Q) O processo de inventário tem três articulados essenciais e que são admitidos por lei: a petição inicial, a relação de bens e a reclamação de bens. Os demais articulados são anómalos, devendo ser desentranhados dos autos, o que requer;
R) A Recorrida, regularmente notificada da relação de bens apresentada pelo Recorrente em 14/06/2023, não impugnou os extratos bancários juntos à mesma, apenas juntou aos autos o requerimento de 27/06/2023, onde nada alegou quanto propriedade dos saldos bancários existentes na Banco 1..., SA (vide requerimentos de 11/05/2023 e 27/06/2023). Pelo que, esta vedada a possibilidade dela, 7 meses após a apresentação de reclamação à relação de bens, vir alegar factos novos aos alegados na dita peça;
S) Resulta da relação de bens do Recorrente de 14/06/2024 que os saldos bancários existentes na Banco 1..., SA, eram pertença apenas dele, pois tais contas e saldos bancários já existiam e lhe pertenciam enquanto aquele era solteiro–pelo que, os saldos das ditas contas apenas lhe pertenciam e nenhuma quantia havia a partilhar, tendo junto aos autos extratos bancários com datas anteriores ao seu casamento, vide doc. nº 1 junto em 14/06/2024, titularidade essa que atestada pela informação da Banco 1..., SA em 26/02/2026;
T) Na informação prestada pela Banco 1..., SA, data de 26/02/2024, aquela informou que as contas nº ...00 e nº ...20 são tituladas pelo cabeça de casal e a Recorrida apenas figurava como autorizada de movimentação;
U) A Recorrida confessa que não trabalhava e apenas realizava as tarefas domésticas e que o Recorrente era o único que auferia rendimentos do trabalho e que sustentava o agregado familiar;
V) O facto de a Recorrida ter sido autorizada a movimentar as contas da Banco 1..., SA, não implica nem pressupõe nem lhe dá a propriedade do saldo das mesmas;
W) Em sede de audiência de julgamento não foi feita qualquer tipo de prova pela Recorrida quanto à propriedade dos saldos de tais contas bancárias, porque a testemunha ouvida, a sua mãe-CC, depoimento gravado no sistema áudio Citius 04-02-2025, das 14:37 às 14:53, minuto 00:03:34 a 00:06:11, declarou nada saber sobre as contas abertas junto da Banco 1..., SA, negou saber se o casal trazia dinheiro para essas contas, sabia que tais contas eram apenas do Recorrente e que nunca viu o cartão bancário nem o nome que dele constava;
X) Deste depoimento resulta não resulta provado que: os saldos bancários existentes nas contas da Banco 1..., SA, eram pertença de ambos: o salário do Recorrente ou as economias do casal eram trazidas para Portugal e depositadas na Banco 1..., SA, e que os saldos pertencessem aos dois;
Y) Reitere-se que esta testemunha nada saber e ou não ter a certeza de tais factos, nem se quer viu o tal cartão bancário;
Z) O Tribunal a quo errou ao dar como assente o facto 5 do despacho recorrido o qual tem de ser eliminado dos autos, e ou alterada a sua redação no sentido de fazer constar apenas a informação de que a Recorrida era autorizada a movimentar as contas indicadas pela Banco 1..., SA, em 26/02/2024;
AA) O depósito de dinheiro próprio de um dos cônjuges numa conta de que apenas ele é titular–desde tenra idade (vide requerimento de 14/06/2023)-não o transformam em bem comum, pese embora o regime de casamento;
BB) A titularidade de uma conta bancária afere-se pelo contrato de abertura de conta, que, nestes termos, foi efetuada pelo pai do Recorrente, porquanto, este era menor de idade, tal como resulta dos extratos juntos com o requerimento de 14/06/2023 e com o requerimento de 01/03/2024, confirmados pela informação da Banco 1..., SA, em documento de em 26/02/2024;
CC) Resulta dos extratos bancários juntos com o requerimento de 14/06/2023 e com o requerimento de 01/03/2024, confirmados pela informação da Banco 1..., SA, por documento datado de 26/02/2024, que as quantias depositadas nas contas bancárias ali identificadas já era pertença do Recorrente, ainda este era solteiro, facto que não foi abalado por qualquer meio de prova que tivesse sido produzido pela Recorrida;
DD) Caso se aceite válida a alegação da propriedade dos saldos bancários era comum efetuada em 05/03/2024 e depois em requerimento de 14/03/2024, importa dizer que a alegação de que que a Recorrida “era autorizada mas os valores que constam das referidas contas, tratavam-se de valores de ambos, eram contas onde estavam as poupanças do casal”, tinha de ser provada por ela;
EE) Trata-se de facto constitutivo do seu direito e por isso sobre ela recaía o ónus da respetiva prova (art.º 342.º, 1 do CC) - Ver. Ac. RE de 27/4/2021, 1367/10.8TBVNO.E1 e Ac. RP de 21/3/2023, proc. 3628/21.1T8VNG.P1, bem como, ver Acórdão proferido pela 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, no dia 10/10/2024, no proc. nº 3709/20.9T8OER.L1, disponível em
www.dgsi.pt
;
FF) A falta de tal prova levará a que se decida em desvafor da Reclamante, devendo improceder a reclamação;
GG) O despacho recorrido padece de: nulidade, cf. previsto no art.º 195.º do CPC, e de forma tempestiva (cf. nº 1, parte final do art.º 199.º do CPC); erro na apreciação da prova (erro na análise da documentação): art.º 607º nº 4, nº 5, 608º, 674 nº 3, todos do CPC; art.º 389º, 39º1 e 396º CC; erro na interpretação dos factos e do direito: 615 nº 1 b), c), d), e e); 609 nº 1 in fine do CPC, bem assim como erro na apreciação da confissão da Recorrida, cfr. art. 465º, 674 nº 3 e 604 nº 4 do CPC;
HH) O despacho Recorrido, violou ainda as regras referentes ao ónus da prova previstas no art.º 342º, 1 do CC, pelo que, tem de ser revogado e substituído por acórdão que julgue totalmente procedente por provado o presente recurso, elimine dos factos dados como provados o ponto nº 5, 6 e 7 (este é a repetição do ponto 2) e que dê como assente o facto 1 dos factos não provados, com as legais consequências.
*
Notificada a apelada contra-alegou dizendo que deverá manter a obrigação de apresentação de nova relação de bens.
*
Corridos os vistos legais cumpre decidir.
*
II - FUNDAMENTOS
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cf. artigos 635.º, nº 3, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do C.P.Civil.
*
No seguimento desta orientação são as seguintes as questões que importa apreciar e decidir:
a)- saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto;
b)- decidir em conformidade a reclamação à relação de bens apresentada.
*
A) - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
É a seguinte a matéria de facto que vem dada como provada pelo tribunal recorrido:
1. Autor e Ré casaram em 08 de dezembro de 2007, sem convenção antenupcial.
2. Em 10 de Dezembro de 2020, a Autora instaurou ação de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge que deu origem ao processo n.º ..., ... do Juízo do Tribunal de Família e Menores ....
3. Autora e Réu requereram no âmbito do processo referido em 2., a conversão do divórcio litigioso em divórcio por mútuo consentimento.
4. No âmbito dos acordos apresentados para a conversão do divórcio litigioso em divórcio por mútuo consentimento, Autora e Réu apresentaram a seguinte relação especificada de bens comuns: "Ativo: (Bens imóveis: o casal não possui qualquer bem imóvel em comum; Bens Móveis: verba n.º 1: veículo automóvel da marca ..., modelo ..., matrícula ..-..-WRC a que atribuem o valor de €498,00 (quatrocentos e noventa e oito euros); Verba n.º 2: totalidade das quotas da sociedade comercial sob a firma A..., LTD, a que atribuem o valor de € 115,49 (cento e quinze euros e quarenta e nove cêntimos); Verba n.º 3: conta bancária sediada no Banco 2..., com o número ...52 cujo saldo nesta data é de £13.057,00 (treze mil e cinquenta e sete euros); Passivo: O casal não tem dívidas a relacionar”.
5. Na constância do casamento, cabeça de casal e interessada sempre movimentaram as contas bancárias em causa, onde eram depositados os valores provenientes do trabalho, usando a interessada o cartão associado a essas contas, embora o cabeça de casal gostasse de controlar o dinheiro que se gastava.
6. À data de 24 de maio de 2021, data posterior à entrada da petição inicial de divórcio, na conta bancária do Banco 2..., consta um saldo bancário de: -19.151,12£ (22.716,48€) na conta nº ...05,71£ (125,39€) na conta n.º ...00.
7. A ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge foi intentada a 10/12/2020.
8. A sentença de divórcio entre a interessada e o cabeça de casal foi proferida em 14 de junho de 2021.
*
Factos não provados
Não se provou:
1. Que a interessada tem uma dívida de € 1.928,32 £ porque no dia 10/12/2020 a conta bancária aberta no Banco 2..., com o nº ...52, apresentava um saldo de €4.945,64 £ e no dia 06/12/2007 (antes do casamento) aquela conta bancária apresentava um saldo de 6.873,96 £]-Credor-o Cabeça de Casal.
*
III. O DIREITO
Como acima se referiu a primeira questão que importa apreciar e decidir prende-se com:
a)- saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto.
Como se evidencia das alegações recursivas o apelante impugna a decisão da matéria de facto, requerendo que se elimine dos factos dados como provados os pontos 6. e 7. e que dê como assente o facto 1 dos factos não provados e ainda que, ou se elimine o ponto 5. dos factos provados ou que se altere a sua redação no sentido de fazer constar apenas a informação de que a Recorrida era autorizada a movimentar as contas indicadas pela Banco 1..., SA, em 26/02/2024.
Mas, qual a relevância dos pontos factuais, 6. e 7. para a decisão de mérito da reclamação segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito?
A resposta é simples: nenhuma
Analisando.
O ponto 7. é repetição, em parte, do ponto 1.
No que concerne ao ponto 6. também ele não tem qualquer relevo para a decisão da reclamação.
Com efeito, para a sua a decisão o que sobressai é o saldo existente à data da entrada da petição inicial da ação de divórcio como decorre, aliás, do preceituado no artigo 1789.º, nº 1 segunda parte do CCivil.
Com o divórcio cessam as relações patrimoniais entre os cônjuges (artigo 1688.º do Cód. Civil) e, cessando tais relações, pode-se proceder à partilha dos bens comuns, por acordo, ou em processo de inventário.
Ora, a lei faz retroagir os efeitos do divórcio, no tocante às relações patrimoniais entre os cônjuges, à data da propositura da ação de divórcio ou à data da cessação da coabitação entre ambos, embora neste último caso, a requerimento e desde que alegada e provada a data da cessação da coabitação (artigo 1789.º, n.º 1 e 2 do Cód. Civil), ou seja, a composição da comunhão deve considerar-se fixada no dia da propositura da ação e não no dia do trânsito em julgado da decisão, sendo feita a partilha subsequente como se a comunhão tivesse sido dissolvida no dia da entrada em juízo da ação ou na data em que cessou a coabitação.
*
Isto dito e atento o carácter instrumental da reapreciação da decisão da matéria de facto, no sentido de que a reapreciação pretendida visa sustentar uma certa solução para uma dada questão de direito, a inocuidade da aludida matéria de facto justifica que este tribunal indefira essa pretensão, em homenagem à proibição da prática no processo de atos inúteis (artigo 130.º do CPCivil).
Como refere Abrantes Geraldes,
[1]
“
De acordo com as diversas circunstâncias, isto é, de acordo com o objeto do recurso (alegações e, eventualmente, contra-alegações) e com a concreta decisão recorrida, são múltiplos os resultados que pela Relação podem ser declarados quando incide especificamente sobre a matéria de facto. Sintetizando as mais correntes: (…) n) Abster-se de conhecer da impugnação da decisão da matéria de facto quando os factos impugnados não interfiram de modo algum com a solução do caso, designadamente por não se visionar qualquer solução plausível da questão de direito que esteja dependente da modificação que o recorrente pretende operar no leque de factos provados ou não provados
”.
Bem pode dizer-se, pois, que a impugnação da decisão sobre matéria de facto, neste conspecto, é mera manifestação de “
inconsequente inconformismo
”
[2]
, razão pela qual nos
abstemos de reapreciar relativamente ao ponto em questão.
[3]
*
Analisemos agora a impugnação do ponto 5. dos factos provados.
Como se extrai das alegações recursivas e respetivas conclusões, a sua impugnação parte do pressuposto de que o
despacho recorrido se pronunciou sobre os saldos das contas bancárias existentes na Banco 1...
.
Acontece que,
o despacho recorrido não se pronunciou sobre as contas em causa, mas apenas em relação à conta bancária aberta no Banco 2...
, isto mesmo se retira da leitura atenta do despacho recorrido e, concretamente, das seguintes passagens:
“No que se refere às contas mencionadas e abertas na Banco 1..., nas quais a interessada era autorizada, tal questão já fora remetida, em devido tempo, para os meios comuns conforme despacho com a referência n.º 460096938”;
“No que se reporta à conta relativamente à conta do Banco 2..., vejamos a questão em causa”;
“Vejamos a questão a decidir.
A interessada veio apresentar reclamação de bens considerando omitidas da relação de bens as contas bancárias e respetivo saldo no que toca às contas da Banco 1..., sabendo-se, é certo que sabe-se que a Requerente era autorizada, mas os valores que constam das referidas contas, tratavam-se de valores de ambos, eram as contas onde estavam as poupanças do casal,
tendo sobre esta questão e, em devido tempo, os interessados sido remetidos para os meios comuns–cf., despacho com a referência n.º 460096938
” (negrito e sublinhados nossos).
*
Aliás, isso mesmo extrai da parte final do despacho recorrido atrás transcrito quando refere:
“(…) tais depósitos terão de ser relacionados tal como foram apresentados na relação inicial de bens
”.
Ora, na relação inicial de bens apresentada pelo cabeça de casal em 11/04/2023 não foram relacionados quaisquer depósitos de Banco 1..., mas apenas do Banco 2...
.
E, diga-se, nem de outra forma poderia ser.
Efetivamente, sobre a referida questão já existia
caso julgado
, sendo que, se o despacho recorrido também se tivesse debruçado sobre a questão das contas da Banco 1... o que, como se referiu, não foi o caso, sempre haveria que cumprir a primeira das decisões proferidas no processo, ou seja a proferida em 14/06/2024 (cf. artigo 625.º do CPCivil).
*
Portanto o referido ponto refere-se à conta existente no Banco 2... o que está, aliás, em consonância com o alegado pela apelada em sede audiência prévia que teve lugar no dia 05/03/2024.
Voltemos agora a nossa atenção para o ponto 1. da resenha dos factos não provados, sendo que, nesta análise entraremos também na apreciação do mérito da reclamação à relação de bens.
*
O referido ponto tem a seguinte redação:
“A interessada tem uma dívida de € 1.928,32 £ porque no dia 10/12/2020 a conta bancária aberta no Banco 2..., com o nº ...52, apresentava um saldo de €4.945,64 £ e no dia 06/12/2007 (antes do casamento) aquela conta bancária apresentava um saldo de 6.873,96 £]-Credor-o Cabeça de Casal”.
Ora, o referido ponto corresponde ao que foi vertido na relação de bens apresentada pelo apelante em 14/06/2023 e, como tal, a questão que importa decidir é se deve ou não constar da relação de bens a referida verba.
Analisando.
Em 11/04/2023 o cabeça de casal apresentou a seguinte relação de bens:
A essa relação de bens a apelada apresentou a seguinte reclamação:
“1. Esquadrinhada a relação de bens apresentada pelo cabeça de casal, constata-se que a mesma se encontra incompleta, quer por falta de bens que não foram por este relacionados, quer por falta dos respetivos elementos probatórios que lhe deveriam acompanhar.
Destarte,
2. Por omissão, acusa a requerente a falta de bens que não foram relacionados como ativo:
- O dinheiro existente na conta bancária, da Banco 1..., nº de conta ...17, cf. Doc. 1 (Documento bancário com o número de conta, documento que se junta e dá como reproduzido para os devidos efeitos legais).
- Bem como o dinheiro existente na conta bancária, da Banco 1..., nº de conta ...20, cf. Doc. 2 (Documento bancário com o número de conta, documento que se junta e dá como reproduzido para os devidos efeitos legais), ambas usadas por ambos na pendencia do matrimonio.
3. Cujos saldos aqui não se discriminam pelo facto de a requerente não ter acesso aos saldos das aludidas contas bancárias desde a data do divórcio, pelo que se requer que seja o cabeça de casal notificado para vir juntar aos autos os extratos bancários da aludida conta à data da propositura da ação de divórcio.
4. Sem prejuízo, quanto aos demais bens relacionados pelo cabeça de casal, 5. Nomeadamente, no que se refere à conta Bancária–Banco 2... nº ...52, constata-se que, igualmente, o cabeça de casal não juntou aos extratos bancários da aludida conta à data da propositura da ação de divórcio, não sendo possível à requerente conferir os valores a relacionar como ativo, pelo que, deve ser o cabeça de casal notificado para apresentar os aludidos extratos, o que desde já se requer.
6. Bem como se requer que seja o cabeça de casal instado para juntar aos autos a documentação referente às quotas da sociedade comercial A... LTD (Reino Unido), nomeadamente, certidão permanente da empresa, por forma a ser possível aferir quais as quotas e qual o seu valor
”.
*
O apelante em 14/06/2023 na reposta à reclamação (justificando esse procedimento “
para melhor tramitação dos autos
”) veio apresentar uma nova relação de bens em formato word do seguinte teor:
Bens móveis
Verba nº 1
Viatura automóvel de marca ..., modelo ..., matrícula ..-..-WRC, no valor de 498 € (quatrocentos e noventa e oito euros).
Verba nº 2
100 Ações, no valor unitário de 1 libra esterlina, na sociedade designada A..., LTD, no valor 115,49 € (cento e quinze euros e quarenta e nove cêntimos), vide doc. nº 4.
Dividas da Requerente:
1- 1.928,32 £ isto porque no dia 10/12/2020 a bancária aberta no Banco 2..., com o nº ...52, apresentava um saldo de 4.945,64 £ e no dia 06/12/2007 (antes do casamento) aquela conta bancária apresentava um saldo de 6.873,96 £]-Credor–o Cabeça de Casal.
*
Como se evidencia da comparação entre as duas relações de bens apresentadas, o apelante, nesta segunda, introduziu
uma nova verba (dívida da apelada) alterando, assim, a relação de bens inicialmente apresentada
.
Efetivamente e no que toca à conta bancária aberta no Banco 2... veio o apelante alegar que o seu saldo se encontra incorreto, pois que, tendo ambos contraído casamento no dia 08/12/2007, no dia 06/12/2007 existia, na referida conta, a quantia de 6.873,96 £ (libras), montante este proveniente do seu trabalho e, por, assim pede a retificação do valor da referida verba para um saldo negativo de 1.928,32 £, isto porque no dia 10/12/2020 a mesma apresentava um saldo de 4.945,64 £ (libras).
Mas será que o apelante podia apresentar uma nova relação de bens nos termos em que o fez?
Importa, desde logo, enfatizar que os presentes autos deram entrada no dia 03/02/2023 e, como tal,
a sua disciplina processual rege-se pela Lei 117/2019 de 13/09
(que vigora desde 01/01/2020–art.º 15.º).
Acontece que, um dos traços mais característicos do atual regime do processo de inventário judicial é que nele se instituiu um novo modelo, com o objetivo de assegurar uma maior eficácia e celeridade processuais.
Este novo modelo procedimental–como salienta Carlos Lopes do Rego
[4]
“parte de uma definição de fases processuais relativamente estanques, envolvendo apelo decisivo a um princípio de concentração, propiciador de que determinado tipo de questões deva ser necessariamente suscitado em certa fase procedimental (e não nas posteriores), sob pena de funcionar uma regra de preclusão para a parte
”.
[5]
E, assim-continua o mesmo Autor-, o modelo procedimental instituído para o inventário na Lei n.º 117/19, comporta, no essencial,
“[u]ma fase de articulados (em que as partes, para além de requererem a instauração do processo, têm obrigatoriamente de suscitar e discutir todas as questões que condicionam a partilha, alegando e sustentando quem são os interessados e respetivas quotas ideais e qual o acervo patrimonial, ativo e passivo, que constitui objeto da sucessão)–abrangendo a fase inicial e a fase das oposições e verificação do passivo” (artigos 1097.º a 1108.º, do CPC), a fase do saneamento, na qual o juiz, depois de realizar as diligências instrutórias necessárias e, eventualmente, uma audiência prévia, deve decidir, por regra, “todas as questões ou matérias litigiosas que condicionam a partilha e a definição do património a partilhar, proferindo também, nesse momento processual–e após contraditório das partes–despacho contendo a forma à partilha” (artigos 1109.º e 110.º, do CPC) e, finalmente, a fase da partilha (artigos 1111.º a 1122.º do CPC).
Mais à frente refere ainda: “
a circunstância de o exercício de determinadas faculdades estar inserido no perímetro de certa fase ou momento processual implica (…) que, salvo superveniência (nos apertados limites em que esta é considerada relevante, na parte geral do CPC e na regulamentação do processo comum de declaração), qualquer requerimento, pretensão ou oposição tem obrigatoriamente de ser deduzido no momento processual tido por adequado pela lei de processo, sob pena de preclusão
”.
Portanto, a questão que agora importa dilucidar é se esta alteração à relação de bens inicialmente apresentada e depois de contra ela ter sido deduzida reclamação,
o foi na altura oportuna e tida por adequada pela lei de processo
.
No passado, sempre foi entendimento dominante que havendo a possibilidade
“de incluir na primeira partilha bens cujo conhecimento surge no decurso do próprio inventário, muito embora esse conhecimento aí advenha depois da fase da descrição–v.g. licitações-, devem procurar partilhar-se nesse inventário os aludidos bens, suspendendo-se, inclusive, as licitações ou os ulteriores termos do inventário para aí serem contemplados, estimados, licitados e partilhados conjuntamente com os restantes
”.
[6]
Todavia, isso hoje não se afigura com essa linearidade.
O acervo patrimonial a partilhar (ativo e passivo) deve, por regra, ser indicado na fase dos articulados (artigos 1097.º, 1102.º, 1104.º a 1107.º, do CPCivil) e só em situações excecionais se admite que seja acusada a falta de bens ou passivo que o integrem, em momento ulterior,
casos, por exemplo, de superveniência objetiva ou subjetiva
.
[7]
Portanto, não há lugar, por regra, a relação adicional de bens ou dívidas noutras circunstâncias, a menos que, no limite, haja acordo de todos os interessados.
Porém, não sendo esse o caso, acusada a existência de novos bens ou dívidas fora do regime prescrito para os articulados supervenientes, os mesmos só podem ser levados em consideração em partilha adicional, nos termos prescritos no artigo 1129.º, n.º 1, do CPCivil, sob pena de, se assim não se entender, acabar por ficar completamente subvertida a reforma legislativa empreendida e já acima caracterizada nos seus traços essenciais.
Ora, um dos requisitos essenciais para ser admitido um articulado superveniente, quando seja alegado o conhecimento ulterior de dívida é que seja alegada e provada essa superveniência (artigo 588.º, n.º 2, do CPCivil).
Se assim não for e o juiz concluir que a arguição da falta de relacionamento de dívida da herança foi feita fora de prazo, por culpa do arguente, deve rejeitar liminarmente essa arguição, é o que decorre do disposto no artigo 588.º, n.º 4, 1ª parte, do CPCiivl.
Vertendo ao caso concreto verifica-se, como já acima se referiu, que o apelante não relacionou qualquer dívida da apelada quando juntou aos autos a relação de bens nem esta a ela não se referiu na sua reclamação,
nem aquele alegou qualquer fundamento para o eventual desconhecimento da sua existência
.
*
E, assim sendo, como o é,
o relacionamento da dívida em causa foi feito de forma manifestamente intempestiva e, como tal não pode constar, da relação de bens
.
É que, a resposta à reclamação serve apenas para exercer o contraditório e apresentar meios de prova, sendo que, nem sequer existe outro articulado que permita aos interessados apresentarem eventual reclamação sobre verbas que o cabeça de casal vá aditando, por todos bens terem de ser relacionados com a relação apresentada, sem prejuízo de eventual articulado superveniente.
*
Daqui se conclui que o facto em causa nunca podia constar dos factos provados, já que, se assim fosse, e por lógica implicância, teria de se admitir a tempestividade da relação de bens apresentada pelo apelante em 14/06/2023 em substituição da inicialmente apresentada.
*
Mas, mesmo que assim não se entenda, nunca o referido facto podia constar da resenha dos factos provados.
Na verdade, o ponto em causa encerra parcialmente uma conclusão e não um facto.
“
A interessada tem uma dívida de €1.928,32 £ porque
(...)” trata-se de trecho manifestamente conclusivo, pois que extrai uma conclusão jurídica ou valorativa a partir de um conjunto de factos (saldos bancários em dois momentos distintos), ou seja, de uma inferência legal (qualificação): está-se a afirmar que a diferença entre saldos corresponde a uma dívida da interessada para com o cabeça de casal, o que é uma conclusão jurídica, e não um facto material.
A qualificação como “dívida” depende de uma apreciação jurídica e, como tal, não é automaticamente extraída da simples diferença entre saldos.
Na verdade, como extrair da simples diferença entre saldos que isso corresponde a uma dívida da apelada perante o apelante? Donde se retira que essa diferença de saldo foi gasta pela apelante para pagar dívidas próprias ou utilizada para outros fins que não em proveito comum? E porque não concluir que essa diferença de saldo foi gasta pelo próprio apelado?
Portanto, para se concluir pela existência da alegada dívida, o apelante teria de ter alegado e provado factualidade da qual se pudesse extrair que a diferença de saldo existente na referida conta
foi utilizada pela apelada e em proveito próprio
.
Aliás, sob este conspecto, era ainda necessário que tivesse sido alegado e provado que, durante 13 anos, o saldo em questão esteve sempre imobilizado, pois que, de outra forma, não existe como se concluir que foi essa a quantia que terá sido utilizada pela apelada, tanto mais que vem provado que a referida conta foi sempre movimentada por apelante e apelada onde eram depositados os valores provenientes do trabalho.
É que neste caso o ónus de prova impendia sobre o apelante (cf. artigo 342.º, nº 1 do CCivil).
*
Isto dito, e conforme é entendimento pacífico da jurisprudência dos tribunais superiores, mormente do Supremo Tribunal de Justiça, as conclusões apenas podem extrair-se de factos materiais, concretos e precisos que tenham sido alegados, sobre os quais tenha recaído prova que suporte o sentido dessas alegações, sendo esse juízo conclusivo formulado a jusante, na sentença, onde cabe fazer a apreciação crítica da matéria de facto provada.
Dito de outro modo, só os factos materiais são suscetíveis de prova e, como tal, podem considerar-se provados. As conclusões, envolvam elas juízos valorativos ou um juízo jurídico, devem decorrer dos factos provados, não podendo elas mesmas serem objeto de prova.
[8]
Segundo elucida Anselmo de Castro
[9]
“
são factos não só os acontecimentos externos, como os internos ou psíquicos, e tanto os factos reais, como os simplesmente hipotéticos”, depois acrescentando que “só, (…), acontecimentos ou factos concretos no sentido indicado podem constituir objeto da especificação e questionário (isto é, matéria de facto assente e factos controvertidos), o que importa não poderem aí figurar nos termos gerais e abstratos com que os descreve a norma legal, porque tanto envolveria já conterem a valoração jurídica própria do juízo de direito ou da aplicação deste
”.
Ora, no caso em apreço como já acima se referiu o citado ponto envolve, expressões conclusivas que teriam de ser retiradas de outra materialidade alegado no sentido exposto.
O artigo 607.º, nº 4 do CPCivil
[10]
dispõe que na fundamentação da sentença, o juiz tomará em consideração os factos admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.
No âmbito do anterior regime do Código de Processo Civil, o artigo 646.º, nº 4 do CPCivil, previa, ainda, que:
têm-se por não escritas as respostas do tribunal coletivo sobre questões de direito e bem assim as dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documento, quer por acordo ou confissão das partes”.
Esta norma não transitou para o atual diploma, o que não significa que na elaboração da sentença o juiz deva atender às conclusões ou meras afirmações de direito.
Ao juiz apenas é atribuída competência para a livre apreciação da prova dos factos da causa e para se pronunciar sobre factos que só possam ser provados por documento ou estejam plenamente provados por documento, admissão ou confissão.
Compete ao juiz singular determinar, interpretar e aplicar a norma jurídica (artigo 607.º, nº 3 do CPCivil) e pronunciar-se sobre a prova dos factos admitidos, confessados ou documentalmente provados (artigo 607.º, nº 4).
Às conclusões de direito são assimiladas, por analogia, as conclusões de facto, ou seja, “
os juízos de valor, em si não jurídicos, emitidos a partir dos factos provados e exprimindo, designadamente, as relações de compatibilidade que entre eles se estabelecem, de acordo com as regras da experiência
“
[11]
.
Antunes Varela considerava que deve ser dado o mesmo tratamento “
às respostas do coletivo, que, incidindo embora sobre questões de facto, constituam em si mesmas verdadeiras proposições de direito
“
[12]
.
Em qualquer das circunstâncias apontadas, confirmando-se que, em concreto, determinada expressão tem natureza conclusiva ou é de qualificar como pura matéria de direito, deve continuar a considerar-se não escrita porque o julgamento incide sobre factos concretos.
*
Portanto, o referido ponto nunca poderia constar da resenha dos factos provados.
*
Improcedem, assim, todas as conclusões formuladas pelo apelante e, com elas, o respetivo recurso.
*
Diante do exposto deverá o apelante, tal como decidido, apresentar nova relação de bens em conformidade com o decidido, sendo que o depósito existente no Banco 2... deverá ser relacionado por valor idêntico ao que foi relacionado na relação apresentada pelo apelante em 11/04/2023.
*
IV-DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, por provada e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.
*
Custas da apelação pelo apelante (artigo 527.º, nº 1 do CPCivil).
*
Aveiro, 04 de junho de 2025.
Des. Manuel Fernandes
Des. Jorge Martins Ribeiro
Des. José Eusébio Almeida
____________________________________
[1]
In Recursos em Processo Civil Novo Regime, 2.ª edição revista e atualizada pág. 297.
[2]
A.S. Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”; Almedina, 5.ª edição, 169.
[3]
Importa lembrar que no preâmbulo do Dec. Lei n.º 39/95, de 15 de fevereiro (pelo qual foi introduzido o segundo grau de jurisdição em matéria de facto) o legislador fez constar que um dos objetivos propostos era
“facultar às partes na causa uma maior e mais real possibilidade de reação contra eventuais (…) erros do julgador na livre apreciação das provas e na fixação da matéria
de facto relevante para a solução jurídica do pleito
(…)
” (negrito e sublinhados nossos).
[4]
In A Recapitulação do Processo de Inventário, Revista Julgar Online, dezembro de 2019, pág. 9.
[5]
No mesmo sentido, Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres, O Novo Regime do Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, Almedina, págs. 59 e 60.
[6]
Cfr. João António Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, Vol. II, Livraria Almedina, pág. 583.
[7]
Neste sentido parecem inclinar-se também Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres, ob. cit., pág.79, quando referem que a subfase da oposição pode ser deslocada para um outro momento da tramitação do processo de inventário quando “é alegado um facto superveniente por algum interessado (cf. art.º 588.º, n.º 2), o que implica a possibilidade de exercício do contraditório por qualquer outro interessado (art.º 588.º, n.º 4)”.
[8]
Cf. Acórdãos de 23.9.2009, Proc. n.º 238/06.7TTBGR.S1, Bravo Serra; e, mais recentemente, reiterando igual entendimento jurisprudencial: de 19.4.2012, Proc.º 30/08.4TTLSB.L1.S1, Pinto Hespanhol; de 23/05/2012, proc.º 240/10.4TTLMG.P1.S1, Sampaio Gomes; de 29/04/2015, Proc.º 306/12.6TTCVL.C1.S1, Fernandes da Silva; de 14/01/2015, Proc.º 488/11.4TTVFR.P1.S1, Fernandes da Silva; 14/01/2015, Proc.º 497/12.6TTVRL.P1.S1, Pinto Hespanhol; todos disponíveis em
http://www.dgsi.pt/jstj
.
[9]
In Direito Processual Civil Declaratório, Almedina, Coimbra, vol. III, 1982, p. 268/269.
[10]
No que diz respeito aos factos conclusivos cumpre observar que na elaboração do acórdão deve observar-se, na parte aplicável, o preceituado nos artigos 607.º a 612.º CPCivil aplicáveis
ex vi
artigo 663.º, nº 2 do mesmo diploma legal.
[11]
José Lebre de Freitas e A. Montalvão Machado, Rui Pinto
Código de Processo Civil–Anotado,
Vol. II, Coimbra Editora, pág. 606.
[12]
Antunes Varela, J. M. Bezerra, Sampaio Nora
, Manual de Processo Civil,
2ª edição Revista e Atualizada de acordo com o DL 242/85, S/L, Coimbra Editora, Lda. 1985, pág. 648.
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TRP
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https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/2536bfc2d4bd9a4180258cab003db68c?OpenDocument
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1,750,118,400,000
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NÃO PROVIDO
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31/21.7IDLSB.L2-5
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31/21.7IDLSB.L2-5
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JOÃO GRILO AMARAL
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I. Um dos requisitos do crime continuado é a verificação de uma conexão temporal entre os diversos actos, uma vez que, de contrário, dificilmente se poderá afirmar, no caso concreto, a referida diminuição considerável da culpa.
II. E quanto maior for o hiato temporal entre os diversos atos, maiores serão as razões para se questionar a verificação e /ou manutenção de uma situação factual subsumível na figura do crime continuado,
III. A mediação de um período de tempo dilatado, superior a um ano, entre os factos criminosos permite ao agente mobilizar os factores críticos da sua personalidade para avaliar a sua anterior conduta de acordo com o Direito e distanciar-se da mesma. Não o fazendo já não se depara com uma culpa sensivelmente diminuída, mas com “um dolo empedernido no crime”.
IV. A atenuação especial da pena só em casos extraordinários ou excepcionais pode ter lugar, uma vez que, para a generalidade dos casos normais, existem as molduras penais normais, com os seus limites máximos e mínimos próprios.
|
[
"CRIME CONTINUADO",
"ATENUAÇÃO ESPECIAL DA PENA"
] |
Acordaram, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
I-RELATÓRIO
I.1
No âmbito do processo comum singular n.º 31/21.7IDLSB, que corre termos pelo Juízo Local Criminal de Lisboa - Juiz 5, em que são arguidos
AA e outros
, melhor identificados nos autos, foi proferido sentença, no qual se decidiu [transcrição]:
“(…)
B) Absolvo o arguido AA da prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, previstos e punidos pelos artigos 6.º, 7.º, n.º 1 e 105.º, n.ºs 1, 2 e 4, alíneas a) e b) da Lei n.º 15/2001 de 15 de Junho (Regime Geral das Infracções Tributárias) e artigos 10.º, n.º 1, 14.º, n.º 1, 26.º e 30.º, n.º 2 do Código Penal.
(…)
D) Condeno o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, previstos e punidos pelos artigos 6.º, 7.º, n.º 1 e 105.º, n.ºs 1, 2 e 4, alíneas a) e b) da Lei n.º 15/2001 de 15 de Junho (Regime Geral das Infracções Tributárias) e artigos 10.º, n.º 1, 14.º, n.º 1, 26.º e 30.º, n.º 2 do Código Penal, num pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, a cumprir em regime de permanência na habitação com vigilância electrónica.
E) Condeno (…) AA no pagamento das custas processuais, fixando a taxa de justiça em uma unidade e meia de conta.
(…)”
»
I.2 Recurso da decisão final
Inconformado com tal decisão, dela interpôs recurso o arguido AA para este Tribunal da Relação, com os fundamentos expressos na respectiva motivação, da qual extraiu as seguintes
conclusões
[transcrição]:
(…)
A) Nos presentes autos, foi o Recorrente, na qualidade de administrador da sociedade arguida “BB”, condenado “pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, previstos e punidos pelos artigos 6.º, 7.º n.º 1 e 105.º, n.ºs 1, n.º 2 e n.º 4, alíneas a) e b) da Lei n.º 15/2001 de 15 de Junho (Regime Geral das Infrações Tributárias) e artigos 10.º, n.º 1, 14.º, n.º 1, 26.º e 30.º, n.º 2 do Código Penal, num pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, a cumprir em regime de permanência na habitação com vigilância eletrónica.”
B) O Recorrente discorda da douta decisão preferida, em primeiro lugar, atenta o vício da sentença que a mesma ostenta por erro de julgamento quanto ao crime continuado, devendo o Tribunal, salvo melhor opinião, ter julgado, no seguimento do Proc. n.º 303/17.5IDLSB, em 21-06-2018, e, posteriormente, com a sua continuação reconhecida e declara no Proc. n.º 590/17.9IDLSB, em 14-01-2021, e no Proc. n.º 521/17.9IDLSB, em 15-11-2023, já transitados, que os factos praticados pelo Recorrente integravam a continuação do crime de abuso de confiança fiscal, mantendo, assim, a pena já aplicada aos arguidos.
C) Depois, a sentença recorrida padece, ainda, no que respeita à escolha e medida da pena, de vícios por falta de aplicação de pena de substituição e omissão de atenuação especial da pena.
D) Estando nos presentes autos em causa a prática de um crime de abuso de confiança fiscal em sede de IVA, decorrente de não ter sido entregue ao Estado, pela sociedade arguida, a quantia daquele imposto correspondente às declarações periódicas respeitantes aos meses de ... e ..., ..., ..., ... e ...e ... tendo sido apurado que o valor do imposto a ser entregue ao Estado seria no TOTAL de €84.511,52 (cf. alíneas H) e I) dos factos provados da douta Sentença recorrida), é necessário trazer, antes de mais, à discussão a figura do crime continuado, por já ter o Recorrente e a BB sido condenados, em 21-06-2018, no âmbito do Proc. n.º 303/17.5IDLSB, do Juízo Local Criminal de Lisboa – Juiz 6, em relação ao IVA dos períodos de ...1.../03, ...1.../06, ...1.../09, ...1.../12, ...1.../01, ...1.../02, ...1.../03, ...1.../04, ...1.../05, ...1.../06, ...1.../07, ...1.../09, numa pena de três anos e dois meses de prisão (suspensa) e na multa de quinhentos dias à taxa diária de €5,00.
E) Foi devido a esta condenação (no processo n.º 303/17.TIDLSB), que, no âmbito do Proc. n.º 590/17.9IDLSB, do Juízo Local Criminal de Lisboa – Juiz 7, devido à não entrega de IVA dos períodos de ... até ...1.../10, o Tribunal, em 15-01-2021, considerou que “a conduta dos arguidos, no período compreendido entre ... a ..., teve por base diversas resoluções criminosas (...) e concretizou-se na realização reiterada de um crime de abuso de confiança fiscal”, considerando, deste modo, que os factos praticados “integravam a continuação do crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelos artigos 7.º e 105.º n.º 1, 4, 5 e 7 do RGIT, pelo qual o arguido foi condenado no âmbito do processo n.º 303/17.TIDLSB, do Juízo Local Criminal de Lisboa, Juiz 6”, mantendo, assim, as penas aplicadas aos arguidos.
F) Assim como, por sua vez, no âmbito do Proc. n.º 521/17.9IDLSB, do Juízo Local Criminal de Lisboa – Juiz 3, referente a IVA dos meses de ... e ..., o Recorrente e a BB, após a prolação do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28-06-2023, e proferida nova sentença, já transitada em julgado, onde foi decidido: “Assim, e ponderando os factos provados, a quantia que está em dívida e a atitude do arguido em audiência de julgamento e considerando o supra referido de que os factos praticados integram a continuação do crime de abuso de confiança fiscal pelos qual os arguidos foram condenados no âmbito do processo n.º 303/17.5IDLSB mostrando-se adequadas e suficientes as penas em que aí foram condenados e atento o disposto no artigo 79.º do Código Penal, mantém-se as penas aplicadas aos arguidos neste último processo de pena de multa de 500 (quinhentos) dias à taxa diária de €5,00 (cinco euros) para a sociedade arguida e o arguido na pena de 3 (três) anos e 2 (dois) meses de prisão suspensa na sua execução por igual período subordinada ao pagamento das quantias no prazo da suspensão da pena em que é condenado.”
G) Contudo, com o devido respeito, erradamente, este Tribunal optou por não seguir o mesmo entendimento.
H) Ora, por se tratar do mesmo crime e submetidos o Recorrente e a BB a novo julgamento, salvo melhor opinião, também aqui deveriam considerar-se os factos praticados integrados na continuação e ter sido mantidas as penas aplicadas no âmbito do proc. n.º 303/17.5IDLSB, por estarmos perante uma infração continuada.
I) Uma vez que se tratava do mesmo crime, das mesmas (ou idênticas e homogéneas) condutas também a actuação/condenação do Recorrente, deveria ter sido considerada como continuação criminosa (crime continuado), circunstância que levaria à manutenção da pena aplicada no proc. n.º 303/17.5IDLSB, o que, erradamente, não sucedeu.
J) Como tal foi o ora Recorrente submetido a um novo julgamento, uma vez que as condutas levadas a cabo foram as mesmas ou idênticas, o “acontecimento histórico” foi o mesmo, tendo-se verificado, inclusivamente, uma grande proximidade temporal entre todas as ditas condutas.
K) Estavam assim preenchidos os requisitos do crime continuado: (i) a realização plúrima do mesmo tipo ou de vários tipos de crime; (ii) os tipos legais de crime protegerem fundamentalmente o mesmo bem jurídico; (iii) a homogeneidade essencial na sua execução; (iv) uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa.
L) A verdade é que a prática do primeiro ato (e já julgado no Proc. n.º 303/17.5IDLSB) favoreceu a decisão sucessiva em relação à continuação, por ter havido aqui um certo circunstancialismo externo (a crise financeira da sociedade) que facilitou essa sucessiva reiteração de uma conduta idêntica, devendo ser menos censurável ao Recorrente ter sucumbido repetidamente.
M) Para além disso, também se encontra verificada a conexão temporal exigida pela jurisprudência, uma vez que os arguidos foram julgados nestes autos pela não entrega ao Estado de IVA, nos períodos já aqui indicados, tendo atuado no quadro da mesma situação descrita no Proc. n.º 303/17.5IDLSB, impondo-se, assim, no entender do Recorrente considerar que também os factos dos presentes autos se integram na mesma continuação criminosa por se tratar de um mesmo acontecimento histórico.
N) No entender do Recorrente, salvo melhor opinião, errou a douta sentença recorrida ao julgar relevante o hiato temporal para ter de ser desconsiderada a continuação criminosa, o hiato que emergiu de o recorrente AA ter alienado do seu próprio património pessoal um imóvel cujo produto da venda lhe serviu para pagamentos intercalares que coincidiram exatamente com esse hiato: esta circunstância (documentada, por assim dizer, numa leve referencia do texto sentencial e nas declarações finais do arguido) evidencia, à saciedade, pelo contrário, que a pressão exterior motivadora dos abusos de confiança fiscal permanecia em perfeita continuidade: não houve, nem deve ter sido em conta racional, hiato algum.
O) Ora, tendo sempre presente que processo não existe para condenar, o processo existe para aplicar o Direito aos factos e realizar a justiça e procurando o Recorrente evidenciar a lucidez pelo paradoxo, perfilhando esta linha de raciocínio, que não se entende, teríamos de concordar que um coxo que fratura uma perna não pode participar numa competição de corrida de atletismo porque fraturou uma perna em data distante (e não porque é coxo)!
P) Pelo que, s.m.o., impõe-se considerar o presente crime continuado com início na sucumbência do arguido quanto ao crime porque foi condenado com trânsito anterior, sem aplicação de nova pena, uma vez não consubstanciar o segmento do comportamento do arguido, quanto ao presente caso, uma conduta mais grave dessa continuação.
Q) Com efeito, nos termos do artigo 79.º n.º 2 do Código Penal, a lei não permite aplicar uma nova pena ao Recorrente, pelo que, s.m.o., a douta sentença proferida nos autos ora em crise ser revogada por força do princípio constitucional ne bis in idem (artigo 29.º n.º 4 da Constituição da República Portuguesa).
R) Pelo exposto, não tendo o douto Tribunal a quo neste sentido se pronunciado, e por estarmos perante um crime continuado, questão que trouxe o Recorrente na contestação escrita e em alegações orais à discussão a aplicabilidade do disposto no artigo 79.º n.º 2 do Código Penal, é notório que estamos perante um erro de julgamento.
S) Por outro lado, sem prescindir do que anteriormente se afirmou e concluiu, atenta a curta pena efetivamente aplicada (pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, a cumprir em regime de permanência na habitação com vigilância eletrónica), é acessível concluir que a mesma é excessiva e desproporcionada, devendo ser substituída por outra.
T) Neste sentido foi a promoção do Ministério Público em alegações orais finais produzidas na primeira audiência de discussão e julgamento (anulada) defendendo a aplicação da pena de substituição de prestação de trabalho a favor da comunidade.
U) É também opinião do Recorrente que deveria o julgador ter aplicado essa substituição, atenta a verificação dos respectivos pressupostos da aplicação.
V) E são pressupostos da aplicação desta pena os definidos no artigo 58.º do Código Penal, pressupostos esses que sempre que se verifiquem, como não pode deixar de se notar que se verificam in casu, deve o tribunal aplicar esta pena em substituição da pena de prisão.
W) Não se pode, assim, afirmar que a aplicação desta pena de substituição não permitiria observar critérios de prevenção geral e especial, pois que, conforme se expôs ao longo do presente Recurso, os mesmos encontram-se plenamente assegurados in casu.
X) Feita assim a ponderação e juízo de prognose sobre a futura conduta do Recorrente no que respeita ao cumprimento das normas jurídico-penais violadas, sem prescindir de tudo quanto se foi afirmando, deve a pena de prisão ser substituída pela prestação de trabalho a favor da comunidade, por estarem preenchidos os pressupostos da sua aplicação e por não existirem razões de prevenção geral e especial que obstem à sua aplicação, dando-se cabal cumprimento ao disposto no artigo 58.º do Código Penal.
Y) No que respeita à medida da pena, não concorda o Recorrente com os termos em que a mesma foi fixada, considerando que, quer a pena em concreto aplicada quer os fins das penas em geral, se afigura desproporcional e excessiva em face da factualidade dada como provada em juízo, sendo violadora do disposto nos artigos 40.º, 71.º 72.º e 73.º do Código Penal.
Z) Ora, tendo o Recorrente demonstrado que agiu com o propósito de envidar esforços no sentido de saldar os valores em dívida em cada um dos períodos dos autos (cf. factos provados nas alíneas V) e W), a fls. 6 da douta sentença recorrida) – trata-se de circunstâncias posteriores ao crime que diminuem de forma acentuada a culpa do agente, para além de as mesmas terem de se associadas ao facto de ter o agente confessado integralmente os factos imputados na acusação e demonstrado arrependimento sincero, revelam-se motivos suficientes para a aplicação da atenuação especial da pena, a que o tribunal recorrido erradamente não atendeu.
AA) Com efeito, a confissão do Recorrente teve um papel essencial no processo, uma vez que foi nela que se suportou a douta sentença para a condenação, haveria assim, por conseguinte, que proceder-se à atenuação especial da pena a aplicar, nos termos dos artigos 72.º e 73.º do Código Penal.
BB) Deste modo, e não sendo sido o objetivo do Recorrente apropriar-se dos montantes dos autos (apenas pretendia assegurar o pagamento dos salários) deveria ter sido atenuada especialmente a pena.
Nestes termos, e nos mais de direito que Vossas Excelências doutamente suprirão, deve ao presente recurso ser concedido provimento e, em consequência, ser totalmente revogada a douta sentença recorrida atentos os vícios que a mesma ostenta, designadamente:
a) por erro de julgamento, sobre a aplicabilidade do crime continuado no seguimento dos processos n.º 303/17.5IDLSB, n.º 590/17.9IDLSB e n.º 521/20.9IDLSB (artigo 379.º n.º 1 alínea c) do Código de Processo Penal); ou, caso assim não se entenda, sem conceder, b) ponderada e substituída a pena de prisão pela prestação de trabalho a favor da comunidade, designadamente ao abrigo do disposto no artigo 58.º do Código Penal; c) por erro na não atenuação especial da pena, em violação do artigo 72.º do Código Penal.
Desta forma Vossas Excelências, como sempre, doutamente decidirão assim fazendo Justiça.
(…)
*
O recurso foi admitido, nos termos do despacho proferido em 19/02/2025, com os efeitos de subir nos próprios autos, imediatamente e com efeito suspensivo.
*
I.3 Resposta ao recurso
Efectuada a legal notificação, o Ministério Público junto da 1ª Instância respondeu ao recurso interposto pelo arguido, pugnando pela sua
improcedência,
não apresentando conclusões, mas aduzindo:
(…)
(I) - Do alegado “erro de julgamento”
O arguido e, bem assim, a sociedade arguida foram acusados pela prática de crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, relativamente ao período respeitante às obrigações fiscais de IVA devidas entre o mês de ... e o mês de ....
Nos processos a que o arguido faz alusão na motivação de recurso interposto, a factualidade em causa reporta-se a períodos temporais diversos aos objecto dos presentes autos, mormente, “(…) a períodos de imposto devido em ...1.../03, ...1.../06, ...1.../09, ...1.../12, ...1.../01, ...1.../02, ...1.../03, ...1.../04, ...1.../05, ...1.../06, ...1.../07, ...1.../09.”
Destarte, conforme bem salientado na primeira resposta apresentada pelo Ministério Público, não se alcança como é que o recorrente pretende ver todos os períodos temporais em causa integrados numa mesma actuação criminosa.
De facto, “o arguido, já depois de ser acusado e condenado, reitera a sua conduta posteriormente, assumindo que decidiu pagar salários e utilizar os valores para outros fins que não sejam o pagamento de imposto do IVA devido, sendo certo que este imposto se caracteriza pela mera acessoriedade da posse no sujeito económico, cabendo o valor que é recebido a título de IVA ser, como quase um fiel depositário, retido apenas até ao momento em que deve ser entregue ao seu real proprietário, o Estado.
O arguido actuou, em novos períodos de imposto, com total desconsideração pelas obrigações fiscais que se lhe impunham, bem sabendo, além do mais, que recebeu IVA dos clientes e que tal IVA era devido ao Estado.
Sem prejuízo de eventual apreciação na medida da pena, consideramos que não ocorre qualquer erro de julgamento ao considerar que é praticado um novo crime, entre o período temporal de ... e ..., cujos períodos de imposto não se “cruzam” ou confundem com períodos anteriormente já julgados, pelo que deverá ser mantida a decisão condenatória nos seus precisos termos.”
Do que se deixa dito se conclui que, o Tribunal a quo não incorreu em erro de julgamento, tampouco violou qualquer normativo, considerando-se, assim, que a matéria dada como provada e respectiva subsunção jurídica não merecem qualquer reparo.
Afigura-se-nos, pois, que não assiste razão ao recorrente, naufragando, em consequência, a sua pretensão de absolvição da prática do crime de abuso de confiança fiscal na forma continuada, não subsistindo qualquer dúvida de que a factualidade dada como provada integra a prática do ilícito criminal em causa.
*
(II) Da pena aplicada
Conforme supra aduzido, o arguido foi condenado na pena de 1 ano e 6 meses de prisão a cumprir em regime de permanência na habitação, com vigilância electrónica.
Ora, a moldura penal correspondente ao crime de abuso de confiança fiscal que se reputa corretamente imputado ao arguido é: pena de prisão até 3 anos ou pena de multa com o limite mínimo de 10 dias e com o limite máximo de 360 dias – cfr. art.º 47.º/1 e 105.º/1 do RGIT.
Salvo melhor opinião, afigura-se-nos que, em face da prova carreada para os autos e da prova produzida em audiência de discussão em julgamento, a pena de prisão concreta aplicada ao arguido pelo Tribunal a quo se revela adequada e doutamente doseada, não merecendo, pois, qualquer crítica.
Senão vejamos.
Com efeito, a determinação da pena concreta depende de um juízo de ponderação norteado pelos critérios previstos nos artigos 40.º/1 e n.º 2 e 71.º/1 e n.º 2 do Código Penal.
Concretizando, de harmonia com o disposto no art.º 40.º/1 do Código Penal, “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.”
Acresce que, a necessidade de protecção de bens jurídicos, enquanto exigência de prevenção geral positiva, traduz a necessidade de reafirmação da validade das normas violadas, defendendo-se, desta forma, o ordenamento jurídico e devolvendo-se a segurança à comunidade, por forma a que se restabeleça a confiança e protecção pela norma violada.
Por sua vez, a necessidade de reintegração do arguido na sociedade, enquanto exigência de prevenção especial, tem como propósito a socialização do agente com vista a respeitar os valores comunitários fundamentais tutelados pelos bens jurídico-criminais.
Note-se, também, que art.º 71.º/1 do Código Penal apela, novamente, às finalidades da punição plasmadas no artigo 40.º do Código Penal, conforme supra aduzido.
Destarte, a escolha entre a aplicação de uma pena não privativa da liberdade ou privativa da liberdade, e no caso desta, a fixação do número de anos/meses da pena de prisão e modo de execução da mesma dependerá da prévia ponderação de factores reveladores de uma maior ou menor necessidade de protecção dos bens jurídicos violando, assim como de uma maior ou menor necessidade de reintegração social do arguido.
Porém, “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.” - cfr. art.º 40.º/2 do Código Penal.
De facto, não se poderá obnubilar que “a verdadeira função da culpa no sistema punitivo reside efectivamente numa incondicional proibição de excesso; a culpa não é fundamento de pena, mas constitui o seu limite inultrapassável: o limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações ou exigências preventivas (…).”
Consequentemente, “a função da culpa, deste modo inscrita na vertente liberal do Estado de Direito, é, por outras palavras, a de estabelecer o máximo de pena ainda compatível com as exigências de preservação da dignidade da pessoa e de garantia do livre desenvolvimento da sua personalidade nos quadros próprios de um Estado de Direito democrático. (…)” - assim sufraga Figueiredo Dias, in Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, pág. 109 e ss.
Atento o exposto, tendo como referência o binómio culpa/prevenção na determinação concreta da pena, o Tribunal atenderá “a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele (…)”, devendo sopesar todos os elementos relevantes atinentes quer à ilicitude e gravidade do facto, quer à culpa do arguido, quer, ainda, às condições pessoais do agente e à conduta por este adoptada ante e post crimen - cfr. art.º 71.º/2 do Código Penal.
Assim sendo, regressando ao caso concreto, atente-se no seguinte: “O arguido tem já averbadas 7 (sete) condenações pela prática de crimes tributários, mantendo-se a exercer funções como gestor de empresas.”
Não se poderá, pois, obnubilar que, “as penas anteriormente aplicadas não surtiram o efeito de integração e ressocialização pretendidos, além de não terem invertido a conduta do arguido perante a administração fiscal, qual seja a de absoluto desprezo pelo cumprimento das obrigações fiscais.”
Reitera-se que, “o arguido já foi advertido, pelo menos 7 vezes, de que a sua conduta integra a prática de crime.”
Contudo, “as penas não privativas da liberdade aplicadas apenas permitiram ao arguido continuar a sua actuação perante o Estado como “vítima” das circunstâncias”.
Ademais, o arguido actuou com dolo directo, na sua forma mais intensa, sendo elevado o grau de culpa do mesmo, evidenciado no significativo valor indevidamente retido e não entregue ao Estado (73.811,65 €) e, bem assim, no extenso período temporal no qual perdurou o cometimento do crime.
Acresce que, a confissão não implica, por si só, a ponderação de qualquer atenuação especial da pena.
Tal facto não “apaga” os demais factores que pesam a desfavor do arguido, mormente, as elevadas necessidades de prevenção geral e especial que, in casu, se verificam.
E, saliente-se, que o imposto devido não se encontra integralmente pago – sendo esse o meio de reposição da legalidade e verdade tributária - pelo que, pese a confissão dos factos consubstancie um factor positivo a sopesar, não poderá ter, no caso sub judice, uma valorização tal que implicasse uma atenuação especial da pena.
Talvez assim não se fosse se o arguido não possuísse condenações averbadas no respectivo certificado de registo criminal. “(…) Não obstante, após ter sofrido sete condenações, tão-só, se traduz num facto quase notório de que a sua gestão de empresas se realiza à custa do não pagamento de impostos.”
Acresce, ainda, que a pena de 1 ano e 6 meses de prisão aplicada se revela, ainda, manifestamente distante do seu limite máximo (ou seja, de 3 anos de prisão), encerrando uma pena proporcional e adequada, face à elevada necessidade de prevenção geral e à culpa elevada manifestada pelo arguido na conduta adoptada.
Consequentemente, dúvidas não restam de que a aplicação ao arguido de uma pena não privativa da liberdade não seria susceptível de satisfazer cabalmente as finalidades da punição. Ao invés, seria passível de incutir no arguido um sentimento de impunidade face ao direito e à justiça. Pelo que, só a pena de prisão doutamente determinada pelo Tribunal a quo se nos afigura adequada à prossecução dos fins subjacentes à aplicação das penas.
Não obstante, não se ignore que foi, ainda, realizado pelo Tribunal a quo um juízo de prognose favorável ao cumprimento pelo arguido da pena de prisão aplicada em regime de permanência na habitação, com vigilância electrónica, afastando, por ora, o condenado de cumprir uma pena privativa da liberdade em contexto prisional.
Do que se deixa dito, e acompanhando o doutamente decidido pelo Tribunal a quo, sopesadas as circunstâncias acima elencadas, atendendo à moldura penal abstractamente aplicável e à luz dos critérios supra enunciados, afigura-se-nos, assim, razoável, adequada e proporcional a condenação do arguido na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, a cumprir em regime de permanência na habitação, com vigilância electrónica.
Desta feita, cremos que não assiste qualquer razão ao recorrente, não tendo, assim, o Tribunal a quo violado qualquer preceito normativo, mormente, o disposto no art.º 70.º e 71.º/1 e n.º 2 do Código Penal, devendo, portanto, manter-se a pena de 1 ano e 6 meses de prisão, a cumprir em regime de permanência na habitação, com vigilância electrónica, aplicada ao arguido, afigurando-se a mesma, à luz dos critérios supra anunciados, adequada, razoável e proporcional ao caso sub judice.
Face a todo o supra exposto, consideramos que deverá ser negado provimento aos recursos apresentados pelos arguidos, devendo, em consequência, manter-se na íntegra a douta Sentença recorrida.
Assim se requer por ser de inteira JUSTIÇA!
(…)
*
I.4 Parecer do Ministério Público
Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, nesta instância o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, nos termos do qual, aderindo à posição da Digna Magistrada do Ministério Público na primeira instância, pronunciou-se no sentido da
improcedência
do recurso.
Mais aduziu:
(…)
Analisados a sentença, os fundamentos do recurso e a resposta que o Ministério Público ofereceu na 1.ª instância, não cremos que assista razão ao arguido/recorrente, pelos fundamentos da resposta ao recurso, que nos eximimos de repetir.
No entanto, quanto à atenuação especial da pena, o arguido/recorrente faz apelo à confissão e à sua essencialidade para a prova dos factos, o que não corresponde à verdade, pois que a prova dos factos assentou em prova documental, como bem resulta da motivação da decisão de facto, pelo que a prova sempre se faria sem confissão. Esta, mais não fez do que confirmar aquilo que era evidente. Finalmente, a confissão foi útil ao arguido recorrente por que lhe permitiu explicar ao Tribunal a quo a razão de ser da não entrega do IVA, o que foi tido em consideração, mas sem o efeito especialmente atenuativo da pena que pretende fazer valer.
Não se verifica qualquer circunstância que permita a atenuação especial da pena, destinada a situações excecionais, donde resulte a acentuada diminuição da ilicitude do facto ou da culpa do agente e a diminuição da necessidade da pena e, consequentemente, das exigências de prevenção.
Pelo exposto, somos de parecer que o recurso não merece provimento.
(…)
*
I.5.
Resposta
Tendo sido dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, foi apresentada resposta ao dito parecer, reiterando as considerações vertidas no recurso.
*
I.6 Concluído o exame preliminar
, prosseguiram os autos, após os vistos, para julgamento do recurso em conferência, nos termos do artigo 419.º do Código de Processo Penal.
Cumpre, agora, apreciar e decidir.
*
II- FUNDAMENTAÇÃO
II.1-
Poderes de cognição do tribunal
ad quem
e delimitação do objeto do recurso:
Conforme decorre do disposto no n.º 1 do art.º 412.º do Código de Processo Penal, bem como da jurisprudência pacífica e constante [designadamente, do STJ
1
], e da doutrina
2
, são as
conclusões
apresentadas pelo recorrente que definem e delimitam o âmbito do recurso e, consequentemente, os poderes de cognição do Tribunal
ad quem
, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal
3
.
*
II.2- Apreciação do recurso
Assim, face às conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação do recurso interposto nestes autos, as questões decidendas a apreciar são as seguintes:
a) Da existência de crime continuado, relativamente às anteriores condenações de que o arguido foi alvo.
b) Se a pena aplicada ao recorrente deveria ser atenuada especialmente.
c) Se a pena de prisão aplicada deveria ter substituída por trabalho a favor da comunidade, ao invés do seu cumprimento através do regime de permanência na habitação, com fiscalização de meios técnicos à distância.
Apreciemos então as questões suscitadas, pela ordem de prevalência processual sucessiva que revestem – isto é, de forma a que, por via da sucessiva apreciação de cada uma, se vá alcançando, na medida do necessário, um progressivo saneamento processual que permita a clarificação do objecto das seguintes.
Vejamos.
II.3 - Da decisão recorrida [transcrição dos segmentos relevantes para apreciar as questões objecto de recurso]:
a. É a seguinte a matéria de facto considerada como provada pelo tribunal colectivo em 1ª Instância :
(…)
“1. FACTOS PROVADOS
Da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento resultou assente a seguinte factualidade, com interesse para a decisão da causa:
A) A sociedade arguida BB. trata-se de uma sociedade anónima, constituída em ... de ... de 2006 e que tem por objeto a atividade de ..., ..., bem como a prestação de serviços conexos com tais atividades, particularmente nas áreas de ..., ... e ..., a que corresponde o CAE ....
B) A sociedade arguida está matriculada na ..., sob o n.º ... e tem sede na ....
C) A sociedade arguida obriga-se com a assinatura de um administrador único, dois administradores, um administrador e um procurador munido de poderes para o efeito ou de um procurador em conformidade com os precisos termos da procuração.
D) Desde deliberação datada de ... de ... de 2015, registada a ... de ... de 2015 o arguido AA exerce o cargo de administrador único da sociedade arguida, exercendo a administração de facto e de direito daquela sociedade, cargo que mantém na presente data.
E) Ao arguido AA, na qualidade de administrador único da sociedade BB incumbiu a prática de actos genéricos de gestão, que executou ou mandou executar, designadamente, o preenchimento e a entrega de declarações fiscais, ordenar pagamentos a fornecedores, ao Estado e aos empregados e seus administradores, bem como a prática das demais funções inerentes àquele cargo.
F) Em termos fiscais e no que concerne ao Imposto Sobre o Valor Acrescentado (I.V.A.), a sociedade BB encontra-se enquadrada no regime normal de periodicidade mensal desde ... de ... de 2018.
G) Entre ... e ..., no exercício da sua atividade, a sociedade BB, representada pelo arguido AA, praticou operações comerciais tributáveis e procedeu à cobrança de IVA aos seus clientes, estando obrigada a entregar tais quantias nos cofres do Estado a quem pertenciam os montantes liquidados a esse título.
H) Efectivamente, a sociedade BB, representada pelo arguido AA, procedeu ao envio das declarações periódicas respeitantes aos meses de ... e ..., ..., ..., ... e ..., o que fizeram nas seguintes datas e apurando os seguintes montantes a título de IVA:
Período
Imposto apurado a título de IVA
Termo do
prazo de pagamento e entrega da
Data de
...
15.164,00€
...-...-2020
...-...-2020
...
16.414,97€
...-...-2020
...-...-2020
...
14.454,13€
...-...-2020
...-...-2020
...
23.294,59€
...-...-2021
...-...-2021
...
42.858,11€
...-...-2021
...-...-2021
...
26.312,03€
...-...-2021
...-...-2021
TOTAL
161.315,70€
I) Naqueles períodos a sociedade arguida BB e o arguido AA receberam efetivamente, a título de IVA entregue pelos seus clientes e até à data limite de entrega das declarações periódicas respeitantes a cada um dos referidos períodos os seguintes montantes:
Período
Termo do prazo de
pagamento e entrega da
Valor recebido a título de IVA até
à data limite de entrega da declaração
2020/05
25-07-2020
10.206,13€
2020/06
25-08-2020
20.847,42€
2020/10
28-12-2020
11.130,62€
2020/11
25-01-2021
7.575,83€
2020/12
01-03-2021
27.063,59€
2021/03
25-05-2021
7.687,93€
TOTAL
84.511,52€
J) A sociedade arguida BB, representada pelo arguido AA entregou à Autoridade Tributária e Aduaneira as declarações periódicas relativas às operações que efetuou no exercício da sua atividade e cobrou IVA nos montantes supra aludidos, tendo recebido as quantias discriminadas até ao termo do prazo legal para a entrega daquele montante à Autoridade Tributária.
K) Contudo, o arguido AA, no exercício das suas funções de administrador único, atuando em nome e em representação da sociedade arguida, não procedeu à entrega dos montantes supra descriminados em H), devidos a título de IVA, à Autoridade Tributária e Aduaneira, quer na data de vencimento, quer nos 90 dias sobre o termo do prazo legal para a sua entrega.
L) Apesar de o arguido AA saber que a sociedade arguida BB se encontrava legalmente obrigada a entregar mensalmente, até ao dia 15 do segundo mês seguinte ao período respetivo, à Administração Fiscal, as quantias recebidas a título de I.V.A., decidiu, em representação e no interesse daquela, deixar de cumprir tal obrigação, passando a utilizar em proveito da sociedade as respetivas quantias.
M) Não obstante terem elaborado e entregue as declarações periódicas do I.V.A. aos serviços tributários, relativas aos período acimas mencionados e nas datas legalmente assinaladas para o efeito, a sociedade arguida BB e o arguido AA, em nome e no interesse da daquela, não entregaram à Autoridade Tributária a importância de €161.315,70 devida a título de I.V.A., respeitante aos períodos melhor infra discriminados, nem no termo final do prazo para a entrega, nem nos noventa dias seguintes.
N) Do mesmo modo, receberam dos seus clientes, até às respetivas datas de pagamento, o valor global de 84.511,52€ (oitenta e quatro mil quinhentos e onze euros e cinquenta e dois cêntimos), porém não procederam à entrega desta quantia à Autoridade Tributária nem no termo final do prazo para a entrega, nem nos noventa dias seguintes, apropriando-se daquela quantia que receberam e de disporem dos meios financeiros para o fazer e saberem que a isso estavam obrigados.
O) A sociedade arguida e o arguido foram ainda notificados em ... de ... de 2022 para procederem ao pagamento das quantias em dívida, respetivos juros de mora e coima no prazo de 30 dias a contar da notificação, não tendo pago integralmente a quantia de €73.811,65 (atentos os pagamentos a que se alude em V)) no referido prazo.
P) A sociedade arguida BB e o arguido AA, por si e em representação daquela, decidiram não entregar ao Estado a totalidade dos valores supra mencionados e por si efetivamente recebidos no valor global de €73.811,65 e apropriar-se dos mesmos, obtendo, por essa via, uma vantagem patrimonial que sabiam não lhes ser devida, o que quiseram e conseguiram.
Q) Os arguidos bem sabiam que tal dinheiro, cobrado aos clientes a título de IVA e efetivamente recebido, não lhes pertencia e que deveria ter sido declarado, devidamente liquidado e entregue nos cofres do Estado nos prazos legais.
R) A sociedade arguida BB e o arguido AA, por si e em proveito daquela sociedade, utilizaram o valor de €73.811,65 dando-lhe, assim, destino diverso daquele a que estava legalmente vinculada (a liquidação do imposto a que dizia respeito), alcançando para a sociedade o respetivo benefício económico que sabia indevido.
S) Ao não entregarem aos cofres do Estado os montantes mencionados, integrando-os na esfera patrimonial da sociedade arguida, agiram os arguidos de forma livre e com o propósito concretizado, único e reiterado, de prejudicar Estado e de assim obter vantagem patrimonial a que sabiam não ter direito, resultado que representaram e quiseram.
T) Os arguidos após não terem entregue no mês de ... os montantes destinados à Autoridade Tributária que haviam recebido, a título de IVA, dos seus clientes, praticaram o mesmo tipo de conduta no mês de ..., em virtude de não terem sido sujeitos a inspeção regular por parte dos competentes serviços de fiscalização, convencendo-se que a actuação que vinham levando a cabo estava a ser bem sucedida, o que motivou a instalação de um ambiente favorável à sua reiteração ao longo do período de tempo referido, tendo o arguido AA, por si e em representação da sociedade BB, agido igualmente motivado por dificuldades financeiras da sociedade relacionadas com as restrições instituídas durante o período pandémico Covid 19, tendo afecto o montante não entregue à Autoridade Tributária pelo menos ao pagamento de salários a trabalhadores.
U) De igual forma e com igual propósito, não tendo procedido à entrega dos montantes destinados à Autoridade Tributária que haviam recebido, a título de IVA respeitante ao mês de ..., dos seus clientes, praticaram o mesmo tipo de conduta nos meses de ... e em ..., em virtude de não terem sido sujeitos a inspeção regular por parte dos competentes serviços de fiscalização, convencendo-se que a atuação que vinham levando a cabo estava a ser bem sucedida, o que motivou a instalação de um ambiente favorável à sua reiteração ao longo do período de tempo referido.
V) Em ... e ... de ... de 2020 os arguidos procederam à entrega à Autoridade Tributária do valor global de 10.699,87€ (dez mil seiscentos e noventa e nove euros e oitenta e sete cêntimos), respeitando 699,87€ (seiscentos e noventa e nove euros e oitenta e sete cêntimos) ao IVA do mês de ... e 10.000,00€ (dez mil euros) respeitante ao IVA do mês de ....
W) A sociedade arguida BB e AA celebraram em ... de ... de 2020 um plano de pagamentos com a Autoridade Tributária, tendo sido autorizado o pagamento da dívida em 65 prestações mensais, o qual foi interrompido em ... de ... de 2022 por terem sido pagas apenas três das prestações acordadas.
X) Agiu o arguido AA em nome e no interesse da sociedade arguida bem como no seu próprio interesse.
Y) Actuaram os arguidos BB e AA livre, deliberada e conscientemente, não se abstendo de prosseguir com a sua conduta, apesar de saberem ser proibida e punida por lei.
Z) O arguido AA confessou integralmente e sem reservas a prática dos factos.
AA) O arguido AA é …, auferindo mensalmente a quantia de €2.500, sendo que por força de penhoras incidentes sobre o respectivo vencimento, está a receber, efectivamente, o rendimento mínimo garantido.
BB) O arguido AA é divorciado e não tem companheira.
CC) O arguido AA tem três filhos, com 21, 17 e 5 anos de idades, encontrando-se o mais velho a frequentar o ensino universitário, o do meio a estudar e o mais novo em infantário, sendo o pai do arguido quem suporta as despesas referentes ao infantário, não estando fixada qualquer pensão de alimentos.
DD) O arguido AA reside em habitação arrendada, suportando, mensalmente, a quantia de pelo menos €2.000 a título de renda.
EE) O arguido AA é licenciado em ….
FF) A sociedade arguida encontra-se activa, tendo apresentado prejuízo.
GG) O arguido AA foi condenado, em .../.../2009, pela prática, em ..., de um crime de abuso de confiança na forma continuada, previsto e punido pelo artigo 205º, Nº 1 e 4, alínea b) com referência ao artigo 202º, alínea b), 30º, nº 2 e 79º, TODOS DO Código Penal, de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 217.º, n.º1, 218.º, n.º2, alínea a), com referência ao artigo 202.º, alínea b), e 79.º, todos do Código Penal, e de dois crimes de falsificação ou contrafacção de documentos, previstos e punidos pelo artigo 256.º, n.º1, alínea a) e n.º3, com referência ao artigo 255.º, alínea a), ambos do Código Penal, numa pena única de 5 anos de prisão suspensa na sua execução por igual período, subordinada a deveres.
HH) O arguido AA foi condenado, em .../.../2015, pela prática, em ..., de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105.º, n.os 1 e 4, do Regime Geral das Infracções Tributárias, numa pena de 30 dias de multa.
II) O arguido AA foi condenado, em .../.../2015, pela prática, em .../.../2013, de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelos artigos 105.º, n.os 1, 2 e 4 e 7.º, ambos do Regime Geral das Infracções Tributárias, numa pena de 180 dias de multa.
JJ) O arguido AA foi condenado, em 21/06/2018, pela prática, nos terceiro e quarto trimestres de ..., de um crime de abuso de confiança agravado, previsto e punido pelo artigo 105.º, n.os 1, 2, 4 e 5 e 7.º, todos do Regime Geral das Infracções Tributárias, numa pena de 3 anos e 2 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período com sujeição a deveres. A decisão proferida neste processo 303/17.5IDLSB, a correr termos no Juízo Local Criminal de Lisboa, Juiz 6, transitou em julgado em .../.../2019.
KK) O arguido AA foi condenado, em 15/11/2023, pela prática, em ... e ..., de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105.º, n.os 1, 2 e 4 do Regime Geral das Infracções Tributárias, numa pena de 3 anos e 2 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, subordinada a deveres. A decisão proferida neste processo 521/20.9IDLSB, a correr termos no Juízo Local Criminal de Lisboa, Juiz 3, transitou em julgado em .../.../2023.
LL) A sociedade arguida foi condenada em 21/06/2018, pela prática, nos terceiro e quarto trimestres de ..., de um crime de abuso de confiança agravado, previsto e punido pelo artigo 105.º, n.os 1, 2, 4, 5 e 7, do Regime Geral das Infracções Tributárias, numa pena de 500 dias de multa. A decisão proferida neste processo 303/17.5IDLSB, a correr termos no Juízo Local Criminal de Lisboa, Juiz 6, transitou em julgado em .../.../2019.
MM) A sociedade arguida foi condenada, em 15/11/2023, pela prática, em ... e ..., de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105.º, n.os 1, 2 e 4 do Regime Geral das Infracções Tributárias, numa pena de 500 dias de multa. A decisão proferida neste processo 521/20.9IDLSB, a correr termos no Juízo Local Criminal de Lisboa, Juiz 3, transitou em julgado em .../.../2023.”
(…)
*
b. São os seguintes os factos dados como não provados pelo tribunal de 1ª Instância :
Não resultaram provados outros factos, sendo certo que não foi considerada matéria conclusiva, de direito e sem relevância para a boa decisão da causa.
c. É a seguinte a motivação da decisão de facto apresentada pelo tribunal de 1.ª Instância :
“A convicção do tribunal estribou-se, no que respeita aos factos pelos quais os arguidos vinham acusados, em toda a prova documental constante dos autos e bem assim nas declarações produzidas pelo arguido AA e pelas testemunhas CC (inspectora tributária) e DD (foi administrativa na BB entre ... e ...) em sede de audiência de discussão e julgamento.
A prova da factualidade elencada em A) a Z) resultou do cotejo do teor do auto de notícia de fls. 25, 50, 57, 64, 71, 80, 87, 94 e 101, das certidões permanentes do registo comercial de fls. 2 e 406, dos prints de fls. 29 a 31, 34 a 37, 53 a 56, 60 a 63, 67 a 70, 75 a 79, 83 a 86, 90 a 93, 97 a 100, 104 a 107, 321 a 339, das declarações fiscais de fls. 32, 51, 58, 65, 72, 81, 88, 95 e 102, dos mapas de fls. 346 a 355, das notificações de fls. 118 e 158 e da documentação constante do apenso I com as declarações produzidas pelo arguido AA que, de modo espontâneo e firme admitiu a prática dos factos, confessando-os integralmente e sem reservas.
O arguido esclareceu que no período em causa nos autos não procedeu à entrega ao Estado do IVA cobrado a clientes pela sociedade arguida porquanto, por força do período covid, houve uma redução significativa das receitas devido à quebra na venda de jornais por parte de pontos de venda de imprensa escrita que fecharam no referido período.
Optou, pois, por pagar salários a colaboradores com o valor de IVA cobrado a clientes, evitando despedimentos.
Questionado, referiu que a sociedade já anteriormente aos períodos em causa nos autos tinha passado por dificuldades financeiras, sendo que no período sub judice foram as circunstâncias associadas às restrições decorrentes do período pandémico COVID as determinantes, declarações que permitiram ao tribunal ficar convencido que as anteriores condenações averbadas nos certificados do registo criminal dos arguidos são condutas autónomas face à que está em causa nos presentes autos.
DD, prestando um depoimento espontâneo e firme, confirmou ao tribunal as dificuldades da sociedade BB no período pandémico, referindo que era a própria quem, enviava facturas para clientes e emitia a facturas de fornecedores, tendo-se verificado, no período entre ... e o ano de ..., uma quebra na facturação.
Mais confirmou que nesse período o IVA cobrado a clientes foi destinado ao pagamento de salários a trabalhadores por tal ter sido estabelecido como prioridade.
A inspectora tributária CC confirmou ao tribunal os montantes constantes de H), explicitando que os mesmos se baseiam nas declarações fiscais remetidas pela sociedade arguida como sendo IVA a entregar ao Estado.
Mais esclareceu que realizou a circularização de clientes da sociedade, no âmbito da qual recolheu a documentação constante do Apenso I dos autos, tendo sido com base naquela diligência que apurou os valores de IVA efectivamente cobrados a clientes e recebidos pela sociedade, confirmando os valores indicados no quadro constante de fls. 343 verso.
Confrontada com os valores elencados em I), esclareceu que o quadro de fls. 343 verso considerou o IVA efectivamente cobrado e recebido de clientes para cada mês e até 90 dias após cada mês considerado no quadro de fls. 343 verso.
Por sua vez, os valores indicados em I) correspondem ao IVA efectivamente cobrado e recebido de clientes da sociedade até à data limite para entrega da declaração periódica para cada mês conforme consta de fls. 348 verso (...), 349 verso (...), 352 verso (...), 353 verso (...), 354 verso (...) e 355 verso (...).
CC confirmou ainda os pagamentos referidos em V), o que se mostra consonante com o teor de fls. 327 e 334, pelo que, em face dos pagamentos efectuados, não deve ser considerado o período de ... porquanto inferior a €7.500.
Do cotejo da prova produzida ficou, pois, o tribunal convencido da demonstração da factualidade elencada.
No que respeita às condições sociais e económicas dos arguidos, o tribunal tomou em consideração as declarações produzidas pelo arguido AA, as quais se revelaram verosímeis atendendo à forma espontânea e clara com que foram prestadas.
Relativamente aos antecedentes criminais, o tribunal valorou os certificados do registo criminal juntos aos autos e bem assim as certidões juntas referentes aos processos n.os 303/17.5IDLSB, a correr termos no Juízo Local Criminal de Lisboa, Juiz 6 e 521/20.9IDLSB a correr termos no Juízo Local Criminal de Lisboa, Juiz 3.”
(…)
d. É como segue o enquadramento jurídico–penal dos factos que vem efectuado pelo tribunal colectivo em 1.ª Instância :
(…)
“A sociedade
BB
vem acusada da prática, em co-autoria material e na forma consumada, de dois crimes de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, previstos e punidos pelos artigos 6.º, 7.º, n.º 1 e 105.º, n.os 1, 2 e 4, alíneas a) e b) da Lei n.º 15/2001 de 15 de Junho (Regime Geral das Infracções Tributárias) e artigos 10.º, n.º 1, 14.º, n.º 1, 26.º e 30.º, n.º 2 do Código Penal.
O arguido
AA
vem acusado da prática, em co-autoria material e na forma consumada, de dois crimes de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, previstos e punidos pelos artigos 6.º, 7.º, n.º 1 e 105.º, n.ºs 1, 2 e 4, alíneas a) e b) da Lei n.º 15/2001 de 15 de Junho (Regime Geral das Infracções Tributárias) e artigos 10.º, n.º 1, 14.º, n.º 1, 26.º e 30.º, n.º 2 do Código Penal.
DA NÃO INCONSTITUCIONALIDADE DA INCRIMINAÇÃO DO ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
Uma referência muito sucinta ao acórdão do Tribunal Constitucional n.º 312/2000, de 20 de Junho, no qual aquele órgão jurisdicional se pronunciou sobre a compatibilidade da incriminação do abuso de confiança fiscal com o artigo 27.º, n.º1, da Constituição da República Portuguesa, atento o princípio de que ninguém pode ser privado da sua liberdade pela única razão de não poder cumprir uma obrigação contratual.
No citado aresto, o Tribunal Constitucional entendeu que a “norma constante do artigo 24º do RJIFNA não viola o princípio de que ninguém pode ser privado da sua liberdade pela única razão de não poder cumprir uma obrigação contratual, implicado pelo direito à liberdade e segurança consagrado no artigo 27º, nº 1, da Constituição, em consonância com o previsto no artigo 1º do Protocolo nº 4 adicional à Convenção Europeia dos Direitos do Homem.”.
Os argumentos expendidos prendem-se, essencialmente, com a natureza legal (e não contratual) da obrigação dos responsáveis tributários.
DO ILÍCITO CRIMINAL
Estatui o artigo 105.º, n.os 1 e 4, do Regime Geral das Infracções Tributárias, que “1 - Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de 1 - Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a (euro) 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias. 2 - Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja. 4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se: a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação; b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.”.
O bem jurídico tutelado pelo crime sub judice prende-se com a protecção do património estatal (relativo às receitas fiscais provenientes de prestações tributárias, deduzidas por conta da administração tributária ou recebidas em nome dela) mediante a criminalização da conduta daquele que perante a administração fiscal, agindo esta no interesse público, omite um dever fundamental na sua relação com o Estado: a não entrega das quantias que lhe foram confiadas para que as entregasse à Administração Tributária.
Constituem elementos típicos do crime de abuso de confiança fiscal os seguintes:
A) TIPO OBJECTIVO:
1) Não entrega à administração tributária, total ou parcialmente, de prestação tributária que o agente tenha efectivamente, recebido
(de valor superior a € 7.500, deduzida nos termos da lei)
O IVA (Imposto sobre o Valor Acrescentado) tem como sujeitos passivos as pessoas singulares ou colectivas que, com carácter de habitualidade, exerçam as actividades previstas no artigo 2.º, do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado, estando sujeitas a tributação as operações elencadas no artigo 1.º do citado compêndio normativo.
O apuramento do montante de imposto a entregar ao Estado, que o próprio sujeito passivo liquida e que deve remeter à Administração Tributária juntamente com a declaração relativa às operações efectuadas no exercício da sua actividade no mês correspondente ao imposto, é fixado de acordo com o disposto nos artigos 16.º e seguintes, do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado.
Constam dos artigos 27.º, n.º1, 29.º e 41.º, todos do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado, as obrigações fiscais do sujeito passivo.
O Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão n.º 8/2015, publicado no Diário da República n.º 106 SÉRIE I de 2015/06/02 fixou jurisprudência nos seguintes termos “A omissão de entrega total ou parcial, à administração tributária de prestação tributária de valor superior a € 7.500 relativa a quantias derivadas do Imposto sobre o Valor Acrescentado em relação às quais haja obrigação de liquidação, e que tenham sido liquidadas, só integra o tipo legal do crime de abuso de confiança fiscal, previsto no artigo 105 nº1 e 2 do RGIT, se o agente as tiver, efectivamente, recebido.”
Nos presentes autos resultou demonstrado que a
BB
é uma sociedade comercial que é sujeito passivo de Imposto sobre o Valor Acrescentado encontrando-se inscrita no regime normal com periodicidade mensal.
Nessa qualidade a sociedade arguida, através do respectivo legal representante (o arguido
AA
), remeteu a declaração periódica de Imposto sobre o Valor Acrescentado referente aos meses indicados em I), não tendo, porém, acompanhado tal declaração que remeteu aos serviços de cobrança do IVA do montante relativo a este imposto, o qual recebeu.
O valor que a sociedade arguida, através do seu legal representante, estava obrigada a entregar ao Estado a título de IVA ascende a um total de €73.811,65 (correspondente a €84.511,52-€10.699,87, sendo este último o valor total pago conforme consta de V) da factualidade assente).
Refira-se que, relativamente à prestação de IVA reportada ao mês de ..., atento o pagamento efectuado, em ... de ... de 2020, de €10.000 (não se olvidando que a notificação nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105.º, n.º4, alínea b), do Regime Geral das Infracções Tributárias data de ... de ... de 2022), a quantia em dívida a título de IVA é inferior a €7.500 pelo que o referido período não pode ser considerado para efeitos de cometimento do delito.
As demais prestações são superiores a €7.500- cfr. artigo 105.º, n.º1, do Regime Geral das Infracções Tributárias.
2) Que o agente estivesse legalmente obrigado a entregar a prestação tributária
Ao abrigo do disposto no artigo 27.º, do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado, os sujeitos passivos deste imposto estão obrigados a entregar aos respectivos serviços de cobrança o montante que liquidaram aos clientes a título daquele imposto, no prazo previsto no artigo 41.º, n.º1, do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado, devendo fazê-lo juntamente com a declaração periódica que remetem para a administração tributária.
Atenta a natureza de crime omissivo puro do ilícito em apreço, a respectiva consumação basta-se com o recebimento e não entrega do montante correspondente ao imposto, assim incumprindo os arguidos o dever legal que lhes está acometido pelo Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado.
Concluímos, pois, pelo preenchimento dos elementos objectivos do crime em apreço.
B) TIPO SUBJECTIVO
O crime de abuso de confiança fiscal é doloso (artigo 13.º, do Código Penal).
Nos termos do disposto no artigo 14.º, do Código Penal, o dolo abrange os elementos intelectual (conhecimento dos elementos objectivos do tipo) e volitivo (vontade de praticar um acto ou de atingir um resultado).
A sociedade arguida BB e o arguido AA, por si e em representação daquela, decidiram não entregar ao Estado a totalidade dos valores supra mencionados e por si efetivamente recebidos no valor global de €73.811,65 e apropriar-se dos mesmos, obtendo, por essa via, uma vantagem patrimonial que sabiam não lhes ser devida, o que quiseram e conseguiram.
Os arguidos bem sabiam que tal dinheiro, cobrado aos clientes a título de IVA e efetivamente recebido, não lhes pertencia e que deveria ter sido declarado, devidamente liquidado e entregue nos cofres do Estado nos prazos legais.
A sociedade arguida BB e o arguido AA, por si e em proveito daquela sociedade, utilizaram o valor de €73.811,65 dando-lhe, assim, destino diverso daquele a que estava legalmente vinculada (a liquidação do imposto a que dizia respeito), alcançando para a sociedade o respetivo benefício económico que sabia indevido.
Ao não entregarem aos cofres do Estado os montantes mencionados, integrando-os na esfera patrimonial da sociedade arguida, agiram os arguidos de forma livre e com o propósito concretizado, único e reiterado, de prejudicar Estado e de assim obter vantagem patrimonial a que sabiam não ter direito, resultado que representaram e quiseram.
Os arguidos após não terem entregue no mês de ... os montantes destinados à Autoridade Tributária que haviam recebido, a título de IVA, dos seus clientes, praticaram o mesmo tipo de conduta no mês de ..., em virtude de não terem sido sujeitos a inspeção regular por parte dos competentes serviços de fiscalização, convencendo-se que a actuação que vinham levando a cabo estava a ser bem sucedida, o que motivou a instalação de um ambiente favorável à sua reiteração ao longo do período de tempo referido, tendo o arguido AA, por si e em representação da sociedade BB, agido igualmente motivado por dificuldades financeiras da sociedade relacionadas com as restrições instituídas durante o período pandémico Covid 19.
De igual forma e com igual propósito, não tendo procedido à entrega dos montantes destinados à Autoridade Tributária que haviam recebido, a título de IVA respeitante ao mês de ..., dos seus clientes, praticaram o mesmo tipo de conduta nos meses de ... e em ..., em virtude de não terem sido sujeitos a inspeção regular por parte dos competentes serviços de fiscalização, convencendo-se que a atuação que vinham levando a cabo estava a ser bem sucedida, o que motivou a instalação de um ambiente favorável à sua reiteração ao longo do período de tempo referido.
Em ... e ... de ... de 2020 os arguidos procederam à entrega à Autoridade Tributária do valor global de 10.699,87€ (dez mil seiscentos e noventa e nove euros e oitenta e sete cêntimos), respeitando 699,87€ (seiscentos e noventa e nove euros e oitenta e sete cêntimos) ao IVA do mês de ... e 10.000,00€ (dez mil euros) respeitante ao IVA do mês de ....
A sociedade arguida BB e AA celebraram em ... de ... de 2020 um plano de pagamentos com a Autoridade Tributária, tendo sido autorizado o pagamento da dívida em 65 prestações mensais, o qual foi interrompido em ... de ... de 2022 por terem sido pagas apenas três das prestações acordadas.
Agiu o arguido AA em nome e no interesse da sociedade arguida bem como no seu próprio interesse.
Actuaram os arguidos BB e AA livre, deliberada e conscientemente, não se abstendo de prosseguir com a sua conduta, apesar de saberem ser proibida e punida por lei.
Ambos os elementos do dolo estão, por isso, verificados.
O tipo de dolo da arguida e, por essa via, também da sociedade, é directo (artigo 14.º, n.º1, do Código Penal) uma vez que representou que os seus actos constituíam uma conduta proibida por lei, não se tendo deixado determinar por essa consciência, antes agindo com intenção de praticar um comportamento ilícito.
Os elementos subjectivos do tipo estão, assim, verificados.
C) CONDIÇÕES OBJECTIVAS DE PUNIBILIDADE
As condições objectivas de punibilidade constituem pressupostos materiais de punibilidade, isto é, são elementos da norma extrínsecos ao tipo de ilícito e ao tipo da culpa (pelo que não se requer que sejam abrangidas nem pelo dolo nem pela negligência).
Da respectiva verificação depende, porém, a existência de consequências penais para a acção antijurídica.
Determina o artigo 105.º, n.º4, do Regime Geral das Infracções Tributárias, que “Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se: a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação; b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.”
No que respeita ao disposto no artigo 105.º, n.º4, alínea a), do Regime Geral das Infracções Tributárias, decorre da previsão dos artigos 27.º, n.º1, e 41.º, n.º1, alínea a), ambos do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado, que os arguidos deveriam ter procedido à entrega das quantias supra mencionadas aquando do envio das declarações periódicas.
A operação corresponde aos períodos de ..., ..., ..., ... e ....
Resulta, pois, da factualidade provada que decorreram mais de 90 dias sobre o termo do prazo previsto para a entrega do montante correspondente ao IVA.
Relativamente à alínea b), do artigo 105.º, n.º4, do Regime Geral das Infracções Tributárias, verificamos que in casu as arguidas foram notificadas nos termos e para os efeitos do disposto neste normativo, sem que tenham procedido ao pagamento de qualquer quantia nesse prazo.
Pelo exposto, ambas as condições objectivas de punibilidade se mostram verificadas.
D) DO CRIME CONTINUADO
Estatui o artigo 30.º, n.º2, do Código Penal, que “constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.”.
O crime continuado consiste na unificação, em termos jurídico-normativos, de situações que conformam um concurso efectivo de crimes que protegem o mesmo bem jurídico, sendo tal unificação fundada numa culpa diminuída do agente.
Importa, então, verificar se estão preenchidos, in casu, os respectivos pressupostos, que são os seguintes:
a)
A realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que protejam fundamentalmente o mesmo bem jurídico
: Ao não entregar à Administração Fiscal, nos meses indicados na factualidade assente, as quantias correspondentes a Imposto sobre o Valor Acrescentado cobradas a clientes, a sociedade arguida e o arguido AA, seu legal representante, violaram o bem jurídico tutelado pelo ilícito em apreço, qual seja o da protecção do património estatal. Também praticaram sempre o mesmo tipo de crime: abuso de confiança fiscal.
b)
Que os crimes sejam executados de forma essencialmente homogénea (similitude do modus operandi e, designadamente, dos meios utilizados na prática do crime)
: O arguido por si e em representação da sociedade arguida, não entregou, nos períodos referidos na factualidade assente, os montantes relativos a Imposto sobre o Valor Acrescentado, os quais recebeu.
c)
Que o (s) arguido (s) actue (m) sob a solicitação de uma mesma situação exterior (supõe a proximidade espácio- temporal das violações plúrimas):
No caso dos autos, nos períodos referidos na factualidade assente, o arguido, por si e em representação da sociedade arguida, não entregou as quantias correspondentes ao IVA cobradas a clientes aproveitando a circunstância de não ter sido imediatamente detectada a não entrega da quantia referente ao primeiro período não entregue, repetindo tal actuação nos períodos seguintes, sendo motivado por dificuldades financeiras da sociedade relacionadas com o período pandémico, o que tornou sucessivamente mais difícil não recorrer a tal expediente, diminuindo sensivelmente a sua culpa na prática dos factos.
A resolução criminosa associada a cada período é distinta uma vez que, quando a ocasião se propiciou, o arguido teve que decidir-se a não entregar as declarações e quantias cobradas a título de IVA, assim renovando o dolo inerente à prática do crime.
Apesar de existir um lapso temporal entre o período de ... e o de ..., considerando o reduzido número de meses que medeia entre os referidos períodos e face à motivação subjacente à conduta de não entrega do IVA (dificuldades financeiras da sociedade arguida durante o período pandémico e afectação da quantia não entregue ao Estado ao pagamento de salários a trabalhadores), considera-se estarmos perante uma continuidade entre os períodos indicados na factualidade assente.
Estamos, pois, diante de um único delito (cometido por cada um dos arguidos) e não de dois crimes de abuso de confiança fiscal.
Mostram-se, pois, verificados, in casu, os pressupostos do crime continuado.
No processo n.º 303/17.5IDLSB, a correr termos no Juízo Local Criminal de Lisboa, Juiz 6, verificamos que os arguidos foram condenados por factos datados dos terceiro e quarto trimestres do ano de ....
A decisão condenatória proferida no referido processo em ... de ... de 2018 transitou em julgado em ... de ... de 2019, sendo pois anterior aos factos em causa nos presentes autos que datam de ..., ... e ....
Não se verifica, pois, que os factos em causa nos presentes autos integrem, como aliás adianta já o acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, a continuidade criminosa dos que são objecto do processo n.º 303/17.5IDLSB.
Considerando que os factos em causa no processo n.º 521/20.9IDLSB a correr termos no Juízo Local Criminal de Lisboa, Juiz 3, datam de ... e ..., quando os factos em causa nos presentes autos datam de ..., ... e ..., interpondo-se, pois, um lapso temporal de um ano e quatro meses entre aqueles e estes, não se verificando, pois, uma homogeneidade em termos de conduta criminosa que tenha continuidade temporal em termos de preencher os requisitos da continuidade criminosa, entende-se que os factos em causa nos presentes autos não integram a continuação da conduta criminosa dos factos em causa no processo 521/20.9IDLSB.”
(…)
E) DA AUTORIA
Estatui o artigo 7.º, n.º1, do Regime Geral das Infracções Tributárias, que “1 - As pessoas colectivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas são responsáveis pelas infracções previstas na presente lei quando cometidas pelos seus órgãos ou representantes, em seu nome e no interesse colectivo.”.
O n.º3, do mesmo normativo determina que “A responsabilidade criminal das entidades referidas no n.º 1 não exclui a responsabilidade individual dos respectivos agentes.”.
Determina o artigo 6.º, n.º1, do Regime Geral das Infracções Tributárias, que “1 - Quem agir voluntariamente como titular de um órgão, membro ou representante de uma pessoa colectiva, sociedade, ainda que irregularmente constituída, ou de mera associação de facto, ou ainda em representação legal ou voluntária de outrem, será punido mesmo quando o tipo legal de crime exija: a) Determinados elementos pessoais e estes só se verifiquem na pessoa do representado; b) Que o agente pratique o facto no seu próprio interesse e o representante actue no interesse do representado.”.
Considerando estas disposições legais, a autoria do ilícito é atribuída à pessoa colectiva que é contribuinte da título de IVA, a qual é, no caso dos autos, a arguida
BB
Todavia, porque o arguido
AA
, na qualidade de administrador é, nessa medida, seu legal representante, a responsabilidade penal da pessoa colectiva estende-se também àquele, não estando em causa o cometimento do delito em co-autoria mas antes em autoria material.
Inexistem causas de justificação e de exclusão da culpa.
Pelo exposto, a sociedade arguida
BB
praticou, em autoria material (devendo ser absolvida da prática em co-autoria) e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, previsto e punido pelos artigos 6.º, 7.º, n.º 1 e 105.º, n.os 1, 2 e 4, alíneas a) e b) da Lei n.º 15/2001 de 15 de Junho (Regime Geral das Infracções Tributárias) e artigos 10.º, n.º 1, 14.º, n.º 1, 26.º e 30.º, n.º 2 do Código Penal, devendo ser absolvida da prática do outro crime de abuso de confiança fiscal pelo qual vinha acusada.
O arguido
AA
cometeu, em autoria material (e não em co-autoria) e na forma consumada, um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, previsto e punido pelos artigos 6.º, 7.º, n.º 1 e 105.º, n.ºs 1, 2 e 4, alíneas a) e b) da Lei n.º 15/2001 de 15 de Junho (Regime Geral das Infracções Tributárias) e artigos 10.º, n.º 1, 14.º, n.º 1, 26.º e 30.º, n.º 2 do Código Penal, devendo ser absolvido da prática do outro crime de abuso de confiança fiscal pelo qual vinha acusado..”
(…)
e. É a seguinte a fundamentação relativa à determinação das consequências penais no caso :
(…)
“2. DOSIMETRIA DA PENA
O crime de abuso confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105.º, n.º1, do Regime Geral das Infracções Tributárias, é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.
Para a pessoa colectiva a pena é de multa de 20 até 1920 dias (cfr. artigo 12.º, do Regime Geral das Infracções Tributárias).
Importa, agora, determinar a medida da pena de acordo com os critérios definidos no artigo 71.º, n.º 1, do Código Penal.
Estatui aquela norma legal que a “determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”. A culpa é o limite, inultrapassável, da medida da pena (artigo 40.º n.º 2, do Código Penal).
Nos termos do disposto no artigo 13.º, do Regime Geral das Infracções Tributárias, “Na determinação da medida da pena atende-se, sempre que possível, ao prejuízo causado pelo crime.”
No caso dos autos as exigências de prevenção geral revelam-se elevadas porquanto a prática deste tipo de ilícito é recorrente acarretando nefastas consequências para o erário público. Justifica-se, pois, a necessidade de afirmação da norma jurídica infringida.
As exigências de prevenção especial (positiva e negativa) são moderadas quanto à sociedade arguida porquanto esta apresenta dois antecedentes criminais, ambos por delito da mesma natureza do sub judice, datando a decisão condenatória mais recente de ..., logo de data posterior à dos factos em caus anos autos.
As exigências de prevenção especial relativamente ao arguido AA são elevadas porquanto o mesmo apresenta inúmeros antecedentes criminais, na sua maioria por delitos contra o património, incluindo diversas condenações por delitos tributários.
O arguido iniciou o seu percurso criminoso no ano de ..., perdurando o mesmo até à actualidade, sem que a condenação em sanções crescentemente gravosas, que incluiu penas de prisão suspensas na sua execução, uma das quais por decisão datada de ... (temporalmente próxima dos factos em causa nos autos), tenha constituída contra motivação apta a obviar ao cometimento do delito em apreço.
Acresce que o arguido continua a exercer funções de administração de empresas, pelo que não é possível realizar-se um juízo de prognose face ao não cometimento de futuro de ilícitos desta natureza.
Pelo exposto, os fins das penas não ficam suficientemente realizados com a aplicação, in casu, de uma pena de multa para o arguido, optando-se, quanto a este, por pena privativa da liberdade. Relativamente à sociedade arguida apenas a pena de multa está em causa.
Relativamente à sociedade arguida a moldura da pena de multa tem por limite mínimo 20 dias e por limite máximo 1.920 dias (cfr. artigo 12.º, n.º2, do Regime Geral das Infracções Tributárias).
Quanto ao arguido pessoas singular a moldura da pena de prisão tem por limite mínimo um mês (cfr. artigo 41.º, n.º1, do Código Penal) e máximo 3 anos.
Importa agora determinar a medida da pena de acordo com os critérios definidos no artigo 71.º, n.º 1, do Código Penal, ponderando, igualmente, o prejuízo causado pelo delito (cfr. artigo 13.º, do Regime Geral das Infracções Tributárias).
Estatui o artigo 71.º, n.º1, do Código Penal, que a “determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”. A culpa é o limite, inultrapassável, da medida da pena (artigo 40.º n.º 2 do Código Penal).
As exigências de prevenção geral e especial são as supra mencionadas pelo que damos por reproduzidos os argumentos aí expendidos.
O grau de culpa dos arguidos é elevado considerando que o montante retido e não entregue é elevado (€73.811,65), mantendo-se em dívida.
Também o período durante o qual os factos foram cometidos é significativo.
Considerando todos os factores mencionados, entende o tribunal que se mostra adequada e suficiente a aplicação de uma pena de 200 (duzentos) dias de multa para a sociedade arguida e de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão para o arguido AA.
Nos termos do artigo 47.º, n.º 2 do Código Penal, a situação económica e financeira dos arguidos e os seus encargos são os factores a ponderar na determinação do quantum diário da multa.
O quantitativo diário da multa deve, porém, importar um sacrifício patrimonial, sob pena de perder a característica de uma pena. Não pode, no entanto, implicar uma total privação do sustento dos arguidos e, no caso da pessoa singular, também o do respectivo agregado familiar.
Ponderados estes factores e o disposto no artigo 15.º, do Regime Geral das Infracções Tributárias, fixa-se o quantum diário da multa em €6 (seis euros).
DA NÃO SUBSTITUIÇÃO DA PENA DE PRISÃO POR PRESTAÇÃO DE TRABALHO A FAVOR DA COMUNIDADE
Estatui o artigo 58.º, do Código Penal, que “1 - Se ao agente dever ser aplicada pena de prisão não superior a dois anos, o tribunal substitui-a por prestação de trabalho a favor da comunidade sempre que concluir, nomeadamente em razão da idade do condenado, que se realizam, por este meio, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição.”.
Impõe este normativo a substituição da pena de prisão aplicada em medida não superior a dois anos, como é o caso dos autos, por prestação de trabalho a favor da comunidade, excepto quando exigências de prevenção a isso obstem.
No caso em apreço, atentas as exigências de prevenção geral e especial de grau supra mencionado, sendo de relevar a circunstância de o arguido apresentar inúmeros antecedentes criminais, na sua maioria por crimes contra o património e inúmeros por crimes tributários, tendo sido já condenada em pena privativa da liberdade sem que tal circunstância tenha obviado ao cometimento do delito em apreço, somente o sancionamento com pena de prisão realiza, de modo cabal, as finalidades de prevenção que a situação concreta requer.
DA NÃO SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
Determina o artigo 50.º, n.º1, do Código Penal que “O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
No caso dos autos foi decidida a aplicação, em concreto, de uma pena de prisão pelo período de 1 (um) ano e 6 (seis) meses.
A suspensão da execução da pena de prisão tem subjacente um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento do agente, considerando a sua personalidade e as circunstâncias do facto.
No presente caso, importa atender a que o arguido apresenta inúmeros antecedentes criminais, na sua maioria por crimes de abuso de confiança fiscal, tendo iniciado o seu percurso criminoso no ano de ... e perdurando o mesmo até à actualidade, sem que a condenação em sanções crescentemente gravosas, incluindo de pena de prisão suspensa na sua execução datada de ..., tenha obviado ao cometimento do delito sub judice.
Acresce que o arguido continua a exercer funções de administração de empresas, pelo que não é possível realizar-se um juízo de prognose face ao não cometimento de futuro de ilícitos desta natureza.
Pelo exposto, entende o Tribunal que, in casu, a ameaça da pena de prisão efectiva e a censura do facto já não se mostra suficiente para prevenir o futuro cometimento de ilícitos criminais, pelo que não se suspende a execução da pena de prisão.
DO REGIME DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO
Estatui o artigo 43.º, n.º1, do Código Penal, que “ 1- Sempre que o tribunal concluir que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da execução da pena de prisão e o condenado nisso consentir, são executadas em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância: a) A pena de prisão efetiva não superior a dois anos; b) A pena de prisão efetiva não superior a dois anos resultante do desconto previsto nos artigos 80.º a 82.º; c) A pena de prisão não superior a dois anos, em caso de revogação de pena não privativa da liberdade ou de não pagamento da multa previsto no n.º 2 do artigo 45.º 2 - O regime de permanência na habitação consiste na obrigação de o condenado permanecer na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, pelo tempo de duração da pena de prisão, sem prejuízo das ausências autorizadas. 3 - O tribunal pode autorizar as ausências necessárias para a frequência de programas de ressocialização ou para atividade profissional, formação profissional ou estudos do condenado. 4 - O tribunal pode subordinar o regime de permanência na habitação ao cumprimento de regras de conduta, suscetíveis de fiscalização pelos serviços de reinserção social e destinadas a promover a reintegração do condenado na sociedade, desde que representem obrigações cujo cumprimento seja razoavelmente de exigir, nomeadamente: a) Frequentar certos programas ou atividades; b) Cumprir determinadas obrigações; c) Sujeitar-se a tratamento médico ou a cura em instituição adequada, obtido o consentimento prévio do condenado; d) Não exercer determinadas profissões; e) Não contactar, receber ou alojar determinadas pessoas; f) Não ter em seu poder objetos especialmente aptos à prática de crimes. 5 - Não se aplica a liberdade condicional quando a pena de prisão seja executada em regime de permanência na habitação.”.
Constituem requisitos formais para a aplicação do regime de cumprimento na habitação i) a verificação de qualquer uma das situações previstas nas alíneas do n.º1 do artigo 43.º, do Código Penal e ii) o consentimento do arguido.
São requisitos materiais a adequação da pena às finalidades da punição, isto é, só exigências de prevenção geral e especial podem justificar a opção pelo regime de permanência na habitação.
Nos presentes autos o tribunal optou pela aplicação de uma pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão e o arguido consentiu em cumprir tal pena na habitação com vigilância electrónica.
In casu considerando as exigências de prevenção geral e especial supra mencionadas e cujos fundamentos damos por integralmente reproduzidos, e ponderando que o arguido confessou integralmente e sem reservas a prática dos factos e nunca cumpriu pena privativa da liberdade, mostrando-se inserido em termos sociais e familiares, entende o tribunal que o cumprimento da pena de prisão em regime de permanência na habitação realiza de forma adequada as finalidades da punição que a situação concreta reclama, devendo ser fiscalizada por meios técnicos de controlo à distância.
Pelo exposto, mostrando-se preenchidos os requisitos legais, deve o arguido cumprir a pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão em regime de permanência na habitação, com recurso a fiscalização por meios técnicos de controlo à distância.
Refira-se que in casu, considerando quer as circunstâncias relacionadas com o período pandémico que estiveram na génese dos factos sub judice, e que são autónomas face a factos datados de período anterior, quer a decisão condenatória datada de ... que é anterior ao início do cometimento da conduta criminosa em causa nos presentes autos (...), verificamos que não estamos em face da aplicação do disposto no artigo 79.º, do Código Penal.”
(…)
»
II.4- Apreciemos, então, as questões a decidir.
a) Da existência de crime continuado, relativamente às anteriores condenações de que o arguido foi alvo.
Sustenta o recorrente que o Tribunal
a quo
errou ao não ter considerado a figura do crime continuado por relação aos factos em discussão no presente processo e aqueles outros do proc.n.º 303/17.TIDLSB, em 21-06-2018, e, posteriormente, com a sua continuação reconhecida e declarada no Proc. n.º 590/17.9IDLSB, em 14-01-2021, e no Proc. n.º 521/17.9IDLSB, em 15-11-2023, já transitados, pelo que deveria ter sido mantida a pena aplicada naqueles.
Vejamos:
Nos termos do n.º 1 do artigo 30 do Código Penal, o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crimes efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
Conforme o n.º 2 do citado artigo 30, constitui um só crime a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada de forma essencialmente homogénea e no quadro de solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.
Para se verificar o crime continuado, o agente tem de repetir um procedimento que se reveste de uma certa uniformidade e aproveita um condicionalismo exterior que propicia a repetição, fazendo assim diminuir consideravelmente a culpa do agente.
Tem entendido a doutrina e jurisprudência que são pressupostos essenciais do crime continuado os seguintes – cfr. Leal-Henriques e Simas Santos, Código Penal Anotado, 1º vol., 3ª .ed. pág. 397:
- realização plúrima do mesmo tipo de crime (ou de vários tipos que protejam fundamentalmente o mesmo bem jurídico);
- homogeneidade da forma de execução (unidade do injusto objectivo da acção);
- lesão do mesmo bem jurídico (unidade do injusto de resultado);
- unidade de dolo (unidade do injusto pessoal da acção). As diversas resoluções devem conservar-se dentro de uma "linha psicológica continuada";
- persistência de uma situação exterior que facilita a execução e que diminui consideravelmente a culpa do agente.
Nem todos estes pressupostos têm suscitado o mesmo nível de dúvidas, já que as mais frequentes e sensíveis se vêm situando no âmbito de dois deles:
- o mesmo bem jurídico;
- as condições exógenas que geram diminuição considerável da culpa.
Quanto ao bem jurídico diz a lei que para haver continuação criminosa tem esse bem que ser o mesmo nas plúrimas acções do agente.
Mas temos ainda a questão do requisito que exige um condicionalismo exterior ao agente que lhe facilite a prática do acto, diminuindo assim a sua culpa.
Refere o Prof. Eduardo Correia, in Lições de Direito Criminal, II, pág. 209, "
pelo que, pressuposto da continuação criminosa será, verdadeiramente, a existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporta de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito
".
O fundamento desta diminuição da culpa encontra-se assim na disposição exterior (ao agente) das coisas para o facto, isto é, no circunstancialismo exógeno que precipita e facilita as sucessivas condutas do agente.
Na existência de uma relação que, de fora, e de modo considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito.
Ora, como referimos já no anterior acórdão proferido por este Tribunal,
a possibilidade de se considerar que determinadas condutas podem ser entendidas num quadro de continuação criminosa
, na figura de crime continuado, e que caso se entenda que a pena aplicável possa ser de igual ou menor gravidade, não deverá a mesma ser aplicada, caso haja uma anterior condenação, prevalecendo esta,
tem sido defendida doutrinal e jurisprudencialmente
– atente-se nos Ac.RC de 27/09/..., proc. 1432/16.8T9PBL.C1, Ac.RL de 19/02/2019, proc. d, Ac.RC de 10/03/2021, proc. 377/19.4T9CVL.C1 e Ac.RC de 15-11-2017, proc. 160/15.6IDLRA.C1, bem como Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, pag.249, que sustentam tal posição.
Vejamos como o tribunal recorrido abordou agora esta questão:
No processo n.º 303/17.5IDLSB, a correr termos no Juízo Local Criminal de Lisboa, Juiz 6, verificamos que os arguidos foram condenados por factos datados dos terceiro e quarto trimestres do ano de ....
A decisão condenatória proferida no referido processo em ... de ... de 2018 transitou em julgado em ... de ... de 2019, sendo pois anterior aos factos em causa nos presentes autos que datam de ..., ... e ....
Não se verifica, pois, que os factos em causa nos presentes autos integrem, como aliás adianta já o acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, a continuidade criminosa dos que são objecto do processo n.º 303/17.5IDLSB.
Considerando que os factos em causa no processo n.º 521/20.9IDLSB a correr termos no Juízo Local Criminal de Lisboa, Juiz 3, datam de ... e ..., quando os factos em causa nos presentes autos datam de ..., ... e ..., interpondo-se, pois, um lapso temporal de um ano e quatro meses entre aqueles e estes, não se verificando, pois, uma homogeneidade em termos de conduta criminosa que tenha continuidade temporal em termos de preencher os requisitos da continuidade criminosa, entende-se que os factos em causa nos presentes autos não integram a continuação da conduta criminosa dos factos em causa no processo 521/20.9IDLSB.”
Antes de mais, cumpre salientar que o recorrente sistematicamente alude a uma pretensa condenação ocorrida no proc. n.º590/17.9IDLSB, do Juízo Local Criminal de Lisboa – Juiz 7, relativamente à qual tínhamos já referido, em anterior acórdão, que a mesma não constava do certificado de registo criminal.
Tendo os autos descido à 1ª instância para conhecimento da questão invocada pelo recorrente na sua contestação, esta primeira, e correctamente, apreciou tão só a questão tendo em consideração as condenações que resultavam patentes do CRC.
O arguido foi regularmente notificado do despacho que solicitou as certidões relativas aos processos 303/17.5IDLSB e 521/20.9IDLSB
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, nada tendo invocado quanto ao mesmo, ou, em alternativa, juntando aos autos certidão do processo que invoca.
Assim, não existe qualquer omissão de pronuncia por parte do despacho agora em análise, não podendo ser alvo de apreciação existência da referida condenação, por parte deste Tribunal.
Devemos assim cingir-nos apenas aos dois processos referidos, e da sua análise resulta evidente o acerto da decisão da 1ª instância.
Naqueles outros processos apreciaram-se condutas relativas ao arguido, praticadas no terceiro e quarto trimestres do ano de 2016
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, transitado em .../.../2019 (processo 303/17.5IDLSB) e ... e ...0...96
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, transitado em .../.../2023 (processo 521/20.9IDLSB).
No presente processo as condutas em apreço situaram-se entre ..., ... e ....
No que à primeira condenação diz respeito, e face à data do trânsito em julgado da mesma, é evidente que a sentença ali proferida, constitui uma interrupção necessária, provocando a quebra do primitivo desígnio criminoso, assistindo-se a partir da mesma à formulação de uma nova vontade, originária, portanto, incompatível com a afirmação de um nexo de coesão entre todos os crimes, pelo que os factos do presente processo tendo sido praticados muito depois daqueles outros, nunca poderiam ser considerados na perspectiva da continuação da actividade criminosa.
Também é certo que a segunda condenação, entendendo existir tal figura entre os factos ali apreciados e os factos do processo 303/17.5IDLSB, condenou o arguido nos seguintes termos:
“Assim, e ponderando os factos provados, a quantia que está em dívida e a atitude do arguido em audiência de julgamento e considerando o supra referido de que os
factos praticados integram a continuação do crime de abuso de confiança fiscal pelos qual os arguidos foram condenados no âmbito do processo nº 303/17.1 IDLSB
mostrando-se adequadas e suficientes as penas em que aí foram condenados e atento o disposto no artigo 79º do Código Penal, mantém-se as penas aplicadas aos arguidos neste último processo de pena de multa de 500 (quinhentos) dias à taxa diária de €5,00 (cinco euros) para a sociedade arguida e o arguido na pena de 3 (três) anos e 2 (dois) meses de prisão suspensa na sua execução por igual período subordinada ao pagamento das quantias no prazo da suspensão da pena em que é condenado.”
Mas isso foi o juízo efectuado em tal processo, que em nada condiciona a apreciação a efectuar neste.
E não pode deixar de entender-se que tendo em conta a última conduta apreciada no processo 521/20.9IDLSB, que remonta a ..., e a primeira conduta apreciada no presente processo – ...,
a mesma traduz um hiato temporal tão dilatado que torna impossível afirmar uma diminuição da culpa do agente
.
A doutrina
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e a jurisprudência
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têm vindo exigir como requisito do crime continuado a verificação de uma conexão temporal entre os diversos atos, uma vez que, de contrário, dificilmente se poderá afirmar, no caso concreto, a referida diminuição considerável da culpa.
É certo que os hiatos que possam existir entre os diversos factos podem ser maiores nuns casos do que noutros. Mas quando na atuação do agente existam intervalos de duração de alguns meses ou anos, como é o caso, poderá questionar-se, no caso concreto, a verificação do crime continuado.
Efetivamente, quanto maior for o hiato temporal entre os diversos actos, naturalmente haverá mais fortes e fundadas razões para se questionar a verificação e /ou manutenção de uma situação factual subsumível na figura do crime continuado.
Como refere Paulo Pinto de Albuquerque, In Comentário do Código Penal, anotação ao art.30º, nota 25 “
A mediação de um período de tempo tão dilatado entre os factos criminosos permite ao agente mobilizar os factores críticos da sua personalidade para avaliar a sua anterior conduta de acordo com o Direito e distanciar-se da mesma. Não o fazendo já não se depara com uma culpa sensivelmente diminuída, mas com um dolo empedernido no crime
.”.
Deste modo, apenas se pode concluir que o distanciamento no tempo dos factos se deveu à verificação de uma nova avaliação da situação por parte do agente, o mesmo é dizer da existência de uma distinta resolução criminosa.
Esta nova resolução é reveladora de uma culpa acrescida, e, não de culpa consideravelmente diminuída, como seria suposto se estivéssemos no âmbito de uma renovação de uma anterior resolução criminosa inicialmente formada.
Pretende o recorre esgrimir o argumento que o hiato temporal é irrelevante porquanto o mesmo emergiu “
de o recorrente AA ter alienado do seu próprio património pessoal um imóvel cujo produto da venda lhe serviu para pagamentos intercalares que coincidiram exatamente com esse hiato
”.
Ora, nem esse facto foi dado como provado, e logo não é passível de utilização (tanto mais que o recorrente não impugnou a matéria de direito), mas o mesmo é a antítese do que o recorrente pretende demonstrar. Se este vendeu um imóvel para poder pagar os anteriores valores devidos fiscalmente, então a omissão de pagamento em análise no presente processo tem por base uma resolução criminosa totalmente distinta das anteriores, dado que assente em pressupostos fácticos distintos.
Improcede assim a pretensão do recorrente.
b) Se a pena aplicada ao recorrente deveria ser atenuada especialmente
Entende o recorrente que a pena que lhe foi aplicada deveria ter sido especialmente atenuada.
Sustenta-se no facto de ter envidado esforços no sentido de saldar os valores em dívida, nunca se ter pretendido apropriar dos valores em dívida, para além de ter confessado integralmente os factos imputados na acusação e demonstrado arrependimento sincero.
Antes de voltarmos a tal tema, um breve parêntesis, porquanto o arguido,
sem nunca o motivar
, invoca que a pena seria desproporcional e excessiva, pese embora após conexionar essa temática à questão da não atenuação.
Ainda assim, para que não restem dúvidas, cumpre salientar que no que respeita à apreciação das penas fixadas pela 1.ª instância, cumpre, antes do mais, atentar, seguindo o paralelismo da jurisprudência quanto à intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, no seguinte:
“
A intervenção do Supremo Tribunal de Justiça em sede de concretização da medida da pena, ou melhor, do controle da proporcionalidade no respeitante à fixação concreta da pena, tem de ser necessariamente parcimoniosa, porque não ilimitada, sendo entendido de forma uniforme e reiterada que “no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efectuada”.
A censura que o tribunal de recurso pode opinar sobre a decisão respeitante à determinação da sanção, incide sobre todos os elementos fornecidos pelo tribunal que, não tendo sido considerados para a questão da culpabilidade, são relevantes para a determinação da sanção, bem como sobre todos os elementos que considerou “adquiridos” (e porque considerou adquiridos uns e outros não) e ainda sobre a forma, fundamentada, porque valorou esses factores na decisão final.
É função do recurso (…), antes de tudo, analisar criticamente, os “parâmetros” da determinação de sanções.” (Acórdãos do STJ de 09-05-2002, in CJ do STJ, 2002, Tomo 2, pág. 193 e de 27-05-2009, Processo n.º 09P0484, )
“Os poderes cognitivos do STJ, como se sabe, abrangem no tocante a esta matéria, entre outras, a avaliação dos factores que devam considerar-se relevantes para a determinação da pena: a questão do limite ou de moldura da culpa, a actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, e também o quantum da pena, ao menos quando se encontrarem violadas regras de experiência ou quando a quantificação operada se revelar de todo desproporcionada”
.
9
Conforme refere o Ac.STJ de 18/05/2022, proc. 1537/20.0GLSNT.L1.S1, “
A sindicabilidade da medida concreta da pena em recurso abrange a determinação da pena que desrespeite os princípios gerais respectivos, as operações de determinação impostas por lei, a indicação e consideração dos factores de medida da pena, mas “não abrangerá a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, excepto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada
”.
Perante tais considerandos,
forçoso será concluir que o Tribunal de 2ª Instância apenas deverá intervir alterando o
quantum
da pena concreta quanto ocorrer manifesta desproporcionalidade na sua fixação ou os critérios de determinação da pena concreta imponham a sua correção, atentos os parâmetros da culpa e as circunstâncias do caso
.
Ou seja, mostrando-se respeitados os princípios basilares e as normas legais aplicáveis no que respeita à fixação do
quantum
da pena e respeitando esta o limite da culpa, não deverá o Tribunal de 2ª Instância intervir, alterando a pena fixada na decisão recorrida, pela simples razão de que, nesse caso, aquela decisão não padece de qualquer vício que cumpra reparar.
Ora, face a todos os elementos de facto apurados nos autos temos para nós que a referida pena se mostra fixada com respeito pelos parâmetros legais a que fizemos referência, situando-se acertadamente no meio da moldura penal, inexistindo motivo para que deva ser alterada por este Tribunal de recurso, no que concerne a uma pretensa violação do disposto no art.40º e 71º do Código Penal.
Retomando agora a questão central do recorrente:
In casu, apenas poderá ponderar–se da atenuação especial da pena (a operar nos termos consignados no art. 73º do Cód. Penal) no caso de, como estipula o nº1 do art. 72º do Cód. Penal, «
existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena
».
O instituto da atenuação especial da pena pressupõe, pois, uma diminuição acentuada da ilicitude do facto, da culpa do agente ou da necessidade de pena, o que apenas sucede quando a imagem global do facto e do comportamento do arguido, resultantes da actuação da(s) circunstância(s) atenuante(s), se apresentem com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando instituiu os limites normais da moldura cabida no tipo de facto respectivo – sendo que, para a generalidade dos casos normais, «
lá estão as molduras penais normais, com os seus limites máximo e mínimo próprios
», cfr. Prof. Figueiredo Dias, e, “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, ed. 1993, §454.
Nomeadamente percorrendo aquelas circunstâncias exemplificadas no nº2 do mesmo artigo, e que podem ser consideradas como denotando tal efeito atenuativo, afigura-se que o recorrente apela àquela elencada na alínea c) do nº2 do art. 72º do Cód. Penal, onde se prevê a ocorrência de «
actos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados
».
Em primeiro lugar, cabe referir que a sentença recorrida apenas dá conta que o arguido recorrente “
confessou integralmente e sem reservas a prática dos factos
”, mas não figura qualquer menção relativamente a um arrependimento demonstrado.
Por outro lado, cumpre realçar que, como refere o Ac.RC de 15/02/2012, proc. 363/10.0PBCBR.C1 «
I – Não é toda e qualquer confissão que releva positivamente para a determinação da medida da pena. II - A confissão, enquanto atitude colaborante do arguido, pode traduzir-se ou não numa circunstância atenuante de carácter geral, influindo directamente na determinação da medida concreta da pena, ou relevando indirectamente, ao nível da valoração das exigências de prevenção especial, se no contexto em que for feita transmitir indicações positivas relativamente à atitude/personalidade do agente. III - O seu valor processual, em termos práticos, acaba por variar na razão directa da sua relevância, podendo assumir um vasto leque de graduações que vão da confissão extremamente relevante (a que permite ultrapassar acentuadas dúvidas ou ter como assentes factos para os quais não existe outra prova) à confissão absolutamente irrelevante (a título de exemplo, a confissão feita após concluída a produção da prova, quando todos os factos confessados se oferecem já como manifestamente provados; a confissão do óbvio, quando tiver havido prisão em flagrante delito), podendo ainda ser subjectivamente valorada na determinação da atitude interna do agente relativamente aos factos praticados e à interiorização da gravidade da sua conduta
».
É consabido que a atenuação especial da pena só em casos extraordinários ou excepcionais pode ter lugar, uma vez que, para a generalidade dos casos normais, existem as molduras penais normais, com os seus limites máximos e mínimos próprios
.
Ora, não se afigura que a confissão dos factos na presente situação revista uma qualquer relevância especial, face ao tipo de ilícito em questão, relacionado com a não entrega das prestações tributárias, previamente declaradas.
É reconhecido que neste tipo de criminalidade a quase totalidade da prova é documental, sendo de reduzido valor, em termos práticos, a confissão, para além de que resulta da motivação da matéria de facto que as declarações do arguido serviram para formar a convicção do Tribunal em materialidade fáctica que reduz a culpa e a ilicitude do comportamento do arguido, sendo-lhe, portanto, favorável.
Por outro lado, resulta dos factos provados que tendo os arguidos se apropriado da quantia de €73.811,65, procederam apenas à entrega à Autoridade Tributária do valor global de €10.699,87.
Por outro lado, os arguidos celebraram em ... de ... de 2020 um plano de pagamentos com a Autoridade Tributária, tendo sido autorizado o pagamento da dívida em 65 prestações mensais, o qual foi interrompido em ... de ... de 2022 por terem sido pagas
apenas três
das prestações acordadas.
Face às importâncias entregues, e ao valor ainda em dívida, é evidente, mais uma vez, que tal não assume qualquer relevo extraordinário, que permita a convocação da figura da atenuação especial da pena.
Aliás, o art.22º nº2 do RGIT apenas permite a convocação da atenuação especial da pena quando ocorrer o pagamento integral das quantias em dívida, o que não foi o caso.
Remata o recorrente que a pena deveria ter sido especialmente atenuada porquanto não foi seu objectivo apropriar-se dos montantes, mas sim assegurar o pagamento dos salários.
Tal problemática tem sido alvo de tratamento constante por parte da jurisprudência, que não vê em tal circunstancialismo os requisitos que levem à atenuação especial da penal.
Conforme refere (por todos) o Ac.RG de 11/04/2005, proc.365/05-1, “VII – Assim é que a atenuação especial só em casos extraordinários ou excepcionais, em que as atenuantes assumam especial relevo poderá ter lugar, o que não é, manifestamente, o caso em apreço. VIII – Por um lado, o contexto em que o crime ocorreu não assume relevância de maior, tratando-se, como de resto é habitual neste tipo de crimes, de uma situação em que a empresa passa por dificuldades económicas e as quantias de IVA são retidas e integradas no seu património (seja qual for o destino – para pagamento de salários aos trabalhadores, de fornecedores, aquisição de máquinas, etc.).”
Improcede assim o recurso nesta parte.
c) Se a pena de prisão aplicada deveria ter substituída por trabalho a favor da comunidade, ao invés do seu cumprimento através do regime de permanência na habitação, com fiscalização de meios técnicos à distância
Como de início se relatou, vem o arguido condenado, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, previstos e punidos pelos artigos 6.º, 7.º, n.º 1 e 105.º, n.ºs 1, 2 e 4, alíneas a) e b) da Lei n.º 15/2001 de 15 de Junho (Regime Geral das Infracções Tributárias) e artigos 10.º, n.º 1, 14.º, n.º 1, 26.º e 30.º, n.º 2 do Código Penal, num pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, a cumprir em regime de permanência na habitação com vigilância electrónica.
Recorda–se que no âmbito do presente recurso não está em causa quer a prática pelo arguido dos factos pelos quais vem condenado, quer o enquadramento jurídico-penal dos mesmos, sendo a única questão apreciar e decidir se a pena de prisão em que o arguido foi condenado deverá ou não ser substituída por trabalho a favor da comunidade.
Vejamos se assiste razão ao arguido:
Uma vez determinada a concreta medida da pena de prisão a aplicar ao agente, impõe-se ao Juiz verificar se ela pode ser objeto de substituição.
A mais usual é a categorização em penas de substituição em sentido próprio (não detentivas) e em sentido impróprio (detentivas)
10
.
As primeiras agregam as penas de multa substitutiva da pena de prisão (art.45º do Cód. Penal), de suspensão da execução da pena de prisão nas diversas modalidades (arts. 50º a 57º do Cód.Penal), de trabalho a favor da comunidade (art. 58º do Cód.Penal) e de proibição do exercício de profissão, função e atividade, pública ou privada (art. 46º do Cód.Penal).
. Quanto às segundas, abarcam o regime de permanência na habitação (art.43º nº 1, al. a) do Cód.Penal).
Os pressupostos da prestação de trabalho a favor da comunidade encontram-se enunciados no artigo 58.º, n.º 1, do Código Penal, nos seguintes termos:
“
1 - Se ao agente dever ser aplicada pena de prisão não superior a dois anos, o tribunal substitui-a por prestação de trabalho a favor da comunidade sempre que concluir, nomeadamente em razão da idade do condenado, que se realizam, por este meio, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição.
”.
Como escreveu o Prof. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português – As Consequências jurídicas do crime, pág. 378, pressuposto material de aplicação da pena de prestação de trabalho a favor da comunidade é, sobretudo, que ela se revele adequada e suficiente à realização das finalidades da punição; que ela se revele, já o sabemos, susceptível de, no caso, facilitar - e, no limite, alcançar - a socialização do condenado, sem se mostrar incompatível com as exigências mínimas de prevenção de integração, sob a forma de tutela do ordenamento jurídico.
A sua aplicação privilegia um adequado recurso às medidas não privativas de liberdade e permite o equilíbrio necessário e desejável entre a protecção da ordem pública e a reparação dos prejuízos causados à comunidade pela prática da infracção, tendo em consideração as necessidades de reinserção social do delinquente.
A pena de prestação de trabalho a favor da comunidade só deve ser aplicada, por um lado quando estiverem criadas as necessárias condições externas de apoio social ao infractor, e por outro, quando este não revele ter, pelo seu comportamento anterior recidivo e pelas manifestações anti-sociais da sua conduta actual, uma nítida falta de preparação da sua personalidade para se comportar licitamente (vd.Ac.RP de 02/11/2022, proc. 1324/13.2TAVLG.P2)
Uma das finalidades da punição é justamente a prevenção especial – a pena tem que ser adequada a afastar o agente da prática de novos delitos. Como vem referido no Ac.RL de 29/03/2006, proc.811/2006-3, “A pena de substituição de trabalho a favor da comunidade destina-se predominantemente a pessoas em relação às quais o contacto com o trabalho possa assumir – em certos casos até pela novidade da situação… - um efeito socializador”.
Invoca o recorrente, muito em síntese, que os crimes foram todos cometidos no âmbito da administração da sociedade arguida, e que os crimes que cometeu tiveram por base um contexto de crise económica-financeira, do destino que foi dado aos impostos não pagos, das dificuldades económicas da sociedade arguida, e da sua inserção social.
Revertendo ao caso dos autos, vejamos como o Tribunal recorrido fundamentou a não suspensão da execução da pena de prisão:
(…)
DA NÃO SUBSTITUIÇÃO DA PENA DE PRISÃO POR PRESTAÇÃO DE TRABALHO A FAVOR DA COMUNIDADE
Estatui o artigo 58.º, do Código Penal, que “1 - Se ao agente dever ser aplicada pena de prisão não superior a dois anos, o tribunal substitui-a por prestação de trabalho a favor da comunidade sempre que concluir, nomeadamente em razão da idade do condenado, que se realizam, por este meio, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição.”.
Impõe este normativo a substituição da pena de prisão aplicada em medida não superior a dois anos, como é o caso dos autos, por prestação de trabalho a favor da comunidade, excepto quando exigências de prevenção a isso obstem.
No caso em apreço, atentas as exigências de prevenção geral e especial de grau supra mencionado, sendo de relevar a circunstância de o arguido apresentar inúmeros antecedentes criminais, na sua maioria por crimes contra o património e inúmeros por crimes tributários, tendo sido já condenada em pena privativa da liberdade sem que tal circunstância tenha obviado ao cometimento do delito em apreço, somente o sancionamento com pena de prisão realiza, de modo cabal, as finalidades de prevenção que a situação concreta requer.
(…)
Em face da matéria de facto dada como provada – cuja exatidão não vem posta em causa no recurso – constata-se que, além da prática dos factos vertidos na acusação pública, resultou também demonstrado o extenso rol de antecedentes criminais do recorrente, que vem sendo condenado por crimes em tudo idênticos desde ..., em sucessivas penas de multa, e penas de prisão suspensas na sua execução, sendo evidente que todas as penas alternativas ao cumprimento efetivo de pena de prisão foram já, por diversas vezes, proporcionadas ao recorrente, sem que este tivesse aproveitado qualquer uma das oportunidades que lhe foram concedidas para adequar normativamente os seus comportamentos, persistindo na prática dos mesmos ilícitos.
Reiteremos aqui as condenações de que o mesmo foi alvo:
GG) O arguido AA foi condenado, em .../.../2009, pela prática, em ..., de um crime de abuso de confiança na forma continuada, previsto e punido pelo artigo 205º, Nº 1 e 4, alínea b) com referência ao artigo 202º, alínea b), 30º, nº 2 e 79º, TODOS DO Código Penal, de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 217.º, n.º1, 218.º, n.º2, alínea a), com referência ao artigo 202.º, alínea b), e 79.º, todos do Código Penal, e de dois crimes de falsificação ou contrafacção de documentos, previstos e punidos pelo artigo 256.º, n.º1, alínea a) e n.º3, com referência ao artigo 255.º, alínea a), ambos do Código Penal, numa pena única de 5 anos de prisão suspensa na sua execução por igual período, subordinada a deveres.
HH) O arguido AA foi condenado, em .../.../2015, pela prática, em ..., de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105.º, n.os 1 e 4, do Regime Geral das Infracções Tributárias, numa pena de 30 dias de multa.
II) O arguido AA foi condenado, em .../.../2015, pela prática, em .../.../2013, de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelos artigos 105.º, n.os 1, 2 e 4 e 7.º, ambos do Regime Geral das Infracções Tributárias, numa pena de 180 dias de multa.
JJ) O arguido AA foi condenado, em 21/06/2018, pela prática, nos terceiro e quarto trimestres de ..., de um crime de abuso de confiança agravado, previsto e punido pelo artigo 105.º, n.os 1, 2, 4 e 5 e 7.º, todos do Regime Geral das Infracções Tributárias, numa pena de 3 anos e 2 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período com sujeição a deveres. A decisão proferida neste processo 303/17.5IDLSB, a correr termos no Juízo Local Criminal de Lisboa, Juiz 6, transitou em julgado em .../.../2019.
KK) O arguido AA foi condenado, em 15/11/2023, pela prática, em ... e ..., de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105.º, n.os 1, 2 e 4 do Regime Geral das Infracções Tributárias, numa pena de 3 anos e 2 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, subordinada a deveres. A decisão proferida neste processo 521/20.9IDLSB, a correr termos no Juízo Local Criminal de Lisboa, Juiz 3, transitou em julgado em .../.../2023.
Deste modo, a avaliação efectuada pelo tribunal recorrido apresenta-se como totalmente correcta, e merece a nossa inteira adesão.
É evidente que tal enquadramento demonstra que o arguido está longe de haver interiorizado o desvalor da sua conduta e o juízo de censura incidente sobre a mesma.
E isso – é o que nesta sede cumpre realçar –
coloca desde logo a
fasquia
da demanda de tutela da ordem jurídica e das exigências de prevenção num patamar extremamente elevado
.
É que quanto fica já dito, releva desde logo também no que tange à
avaliação da personalidade do arguido
, factor também preponderante na decisão aqui a adoptar.
Manifestamente as anteriores condenações do arguido em medidas punitivas não detentivas, não serviram de suficiente dissuasor da reiteração criminosa do arguido, e nomeadamente por reporte a ilícitos que colocam em causa precisamente os mesmos valores jurídico–penais de ordem pessoal e comunitário.
Decisivo, o facto de o arguido ter cometido o crime pelo qual foi agora condenado ainda no decurso do período de suspensão do processo 303/17.5IDLSB, impedindo assim qualquer juízo de prognose favorável.
Mesmo recaindo sobre si a possibilidade de a pena de prisão que lhe foi aplicada ser revogada, o arguido, através do seu comportamento, demonstrou que se tornou imune às advertências de que é alvo, adoptando uma recorrente perspectiva nacional, que o não pagamento de impostos são uma forma de viabilizar empresas.
O que, tudo, não pode deixar de acentuar numa perspectiva muitíssimo desfavorável, a avaliação que se faz sobre a personalidade do arguido, que revela assim, mais que uma deficiente preparação para assumir o respeito pelos valores jurídicos básicos que reiteradamente vem colocando em causa, um manifesto desprezo pelos mesmos.
Todas estas considerações
inquinam à partida o juízo de prognose sobre o seu comportamento futuro
, tornando o ‘risco’ que, nesta perspectiva, sempre envolve a ponderação pelo tribunal da substituição da pena de prisão por prestação de trabalho a favor da comunidade num risco que é tudo menos ‘prudente’.
Como se refere no Ac.RC de 03/10/2018, proc. 19/18.5PEFIG.C1, “VIII - Sendo o trabalho a favor da comunidade uma pena de substituição em sentido próprio, entendemos que, em princípio, será de aplicar a crimes de pouca gravidade, especialmente quando estamos perante jovens e pessoas idosas, mas não quando o agente vem reiteradamente praticando crimes, designadamente da mesma natureza, e o crime em apreciação é praticado com grande frequência.”
Em face de um tal quadro, não assumem as circunstâncias invocadas pelo recorrente, e atinentes à dificuldade na gestão das empresas, o relevo pretendido, porquanto vindo o arguido a praticar factos semelhantes há mais de 20 anos logo permite a conclusão que deparando-se o mesmo com qualquer dificuldade económica no desenvolvimento da sua actividade, logo recorre ao não pagamento dos devidos tributos fiscais como forma de financiamento.
Em suma,
mesmo sopesando as circunstâncias invocadas pelo recorrente, a verdade é que as finalidades da punição, ao nível da prevenção especial, resultariam absolutamente goradas com a aplicação ao arguido recorrente de sanção penal não privativa da sua liberdade
– além, naturalmente, do que tal traduziria no defraudar das expectativas comunitárias de reposição da ordem jurídica e da confiança nas normas violadas e no cumprimento do direito.
Donde entender–se que
não se mostram reunidos aqui os necessários requisitos que possibilitam a substituição da pena de prisão por prestação de trabalho a favor da comunidade, e que se mostram previstos no art. 58º do Cód. Penal
.
»
III- DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam os juízes da 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em
negar provimento
ao recurso interposto pelo arguido
AA
, mantendo-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Custas pelo arguido recorrente, fixando a taxa de justiça em 4 UCS [artigo 515º, nº 1, al. b) do Código de Processo Penal e artigo 8º, nº 9, do RCP, com referência à Tabela III].
Notifique nos termos legais.
»
Lisboa, 17 de Junho de 2025
(O presente acórdão foi processado em computador pelo relator, seu primeiro signatário, e integralmente revisto por si e pelos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos – art. 94.º, n.º 2 do Código de Processo Penal - encontrando-se escrito de acordo com a antiga ortografia)
Os Juízes Desembargadores,
João Grilo Amaral
Ana Cristina Cardoso
Paulo Barreto
____________________________________________
1. Indicam-se, a título de exemplo, os Acórdãos do STJ, de 15/04/2010 e 19/05/2010, in
http://www.dgsi.pt
.
2. GG, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág.335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113.
3. Conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada pelo Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR/I 28/12/1995.
4. Ref. 439880179 de 07/11/2024
5. Ref.41028125 de 13/11/2024
6. Ref.41035537 de 13/11/2024
7. Cfr. Eduardo Correia, A Teoria do Concurso em Direito Criminal - Da Unidade à Pluralidade de Infracções, 2ª R., Coimbra, 1996, p. 252-253; Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I
8. Cfr.Ac.RP de 06/01/2010, proc. 314/08.1GCAMT.S1.P1, Ac.RL de 13/04/2011, proc. 250/06.6PCLRS.L1-3, Ac.RG de 03/12/2024, proc. 186/20.8IDBRG.G1
9. Cfr. Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português - As consequências jurídicas do crime”, pág. 197
10. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As consequências Jurídicas do Crime, Aequitas Editorial Notícias, 1993, pag. 335
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TRL
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https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/337433d05e9504ba80258cb3004c1cba?OpenDocument
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1,745,884,800,000
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REVOGADA
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408/22.0T8CTB.C1
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408/22.0T8CTB.C1
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ANABELA MARQUES FERREIRA
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I – Sendo inequívoca qual a parte do prédio reivindicada pelos Autores, não pode o julgador, apesar de ter entendido o que efetivamente aconteceu, optar pela via formal, de considerar os factos como não provados, apenas porque os Autores identificaram mal o prédio reivindicado.
II – Nem tão pouco considerar como não provada a privação do uso de imóveis nele existes, apesar de considerar provado o arrombamento e troca de fechaduras.
(Sumário elaborado pela Relatora)
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[
"AÇÃO DE REIVINDICAÇÃO",
"ERRO NA IDENTIFICAÇÃO DO PRÉDIO REIVINDICADO",
"JUÍZO SOBRE OS FACTOS",
"PRIVAÇÃO DO USO"
] |
Recorrente
Herança Ilíquida e Indivisa Aberta por Óbito de AA
Recorridos
BB e Banco 1..., S.A.
Juiz Desembargador Relator:
Anabela Marques Ferreira
Juízes Desembargadores Adjuntos:
José Avelino Gonçalves
Paulo Correia
Sumário
(da responsabilidade do Relator – artº 663º, nº 7, do Código de Processo Civil)
(…).
Acordam os juízes que nestes autos integram o coletivo da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:
I – Relatório
Nos autos de
ação de processo comum
, que correram termos no Juízo Central Cível de Castelo Branco – Juiz 2, os
Autores CC, DD e EE, na qualidade de herdeiros da Herança Ilíquida e Indivisa Aberta por Óbito de AA
demandou os
Réus BB e Banco 1..., S.A.
,
pedindo
:
i) seja reconhecido o direito de propriedade das Autoras sobre o prédio identificado artigo 1.º com a área de 13.447,00 m2, bem como das construções ali existentes correspondentes à casa da Quinta ..., inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ...40º, e o arrumo agrícola e consequentemente ordenar-se o respectivo registo desta propriedade a favor das Autoras e por sua vez ordenar-se ainda o cancelamento na descrição predial n.º ...28 do averbamento de alteração da AP ...25 de 2010/05/18;
ii) o Réu seja condenado a restituir às Autoras o prédio identificado no retro artigo 1.º com a área de 13.447,00 m2, bem como das construções ali existentes correspondentes à casa da Quinta ..., inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ...40º e o arrumo agrícola;
iii) se reconheça que o Réu é proprietário apenas e só da área de 10.000,00 m2, objecto da doação, do prédio identificado no artigo 1.º, devendo tal facto ser objecto de retificação registral no prazo de 10 dias, após o trânsito em julgado, sob pena de ser condenado em sanção pecuniária compulsória, no valor de € 10,00 (dez euros) por cada dia de incumprimento;
iv) o Réu seja condenado a pagar uma indemnização às autoras em quantia não inferior a 100€ (cem euros) por cada dia que decorrer entre a citação e a restituição às autoras do prédio identificado no artigo 1º com a área de 13.447,00 m2, bem como das construções ali existentes correspondentes à casa da Quinta ..., inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ...40º, e o arrumo agrícola;
v) o Réu seja condenado a pagar às Autoras a quantia global de 10.000,00€ (dez mil euros), a título de danos morais, acrescida de juros até integral e efectivo pagamento;
vi) o 2.º Réu seja condenado a reconhecer o direito de propriedade das Autoras sobre o prédio identificado no artigo 1.º com a área de 13.447,00 m2, bem como das construções ali existentes correspondentes à casa da Quinta ..., inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ...40º e o arrumo agrícola.
Para tanto, alegaram, em síntese que:
O prédio rústico composto de 17 oliveiras, horta, cultura arvense, lameiro, 30 pessegueiros, 5 figueiras, 6 cerejeiras, 3 damasqueiros, 8 macieiras, 5 pereiras, pinhal, cultura arvense de regadio, 150 videiras em cordão e 3 instalações agrícolas, designado por Quinta ... e ou ..., freguesia ..., do Concelho ..., inscrito na antiga matriz rústica ...29 (atual ...98º), com a área total aproximada de 25.389,08 m², descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...28 pertence à herança aberta por óbito de FF e AA.
Em 13-07-1993, AA e esposa FF doaram ao filho e aqui Réu BB por conta da quota disponível 10 mil metros quadrados do aludido prédio da Quinta ..., ficando tal prédio com apenas 13.447,00 m2.
A aludida doação foi registada a favor do Réu por via da AP. ... de 1993/09/15.
O Réu registou no próprio prédio mãe e não em descrição predial autónoma.
Tal doação teve como propósito que o Réu pudesse construir no terreno uma casa de habitação para a sua família, casa essa que veio a ser erigida pelo Réu e que se encontra inscrita na matriz predial urbana do Concelho ... sob o n.º ...12.
Não obstante a doação por conta da quota disponível, há mais de 20, 30, 40 e 50 anos, as Autoras por si e pelos seus antepossuidores que se encontram na total usufruição da restante parte do prédio rústico com a área de 13.447,00 m2, de forma contínua, ininterrupta e reiterada, na convicção de exercer o direito de propriedade sobre o mesmo, ocupando-o, cortando a erva e mato, cortando arbustos e pinheiros, cultivando e colhendo frutos, adquirindo as Autora o direito real de propriedade sobre o prédio, invocando expressamente a usucapião.
As Autoras reconstruíram e ampliaram da casa em ruínas, inscrita na matriz predial urbana n.º ...40, na qual realizaram nos últimos vinte anos os trabalhos melhor identificados no artigo 12.º da petição inicial, criando duas pequenas casas geminadas de campo, estando avaliadas tais propriedades em € 117.200,00 no que respeita à habitação e € 18.500,00 para a garagem/anexo.
As aludidas benfeitorias foram realizadas pelos Autores, com o conhecimento do Réu BB, que a elas nunca se opôs.
Um ano antes da entrada da petição inicial, foi colocada uma placa da imobiliária A... junto à casa de habitação do Réu BB, os Autores receberam uma carta do Réu com o fundamento de que ocupavam abusivamente o prédio rústico, e em Dezembro de 2021, um funcionário da A... a mando do Réu trocou os canhões das chaves da casa da quinta e do anexo agrícola (no qual se encontra estacionada uma viatura do segundo Autor).
Desde Dezembro de 2021, os Autores encontram-se impedidos de aceder e usar as suas habitações e anexo e de fazer uso dos bens e mobílias que ali se encontram.
O Réu alterou a descrição do registo predial do aludido prédio rústico descrito no artigo 1.º da petição inicial.
Pela AP ...25 de 2010/05/18, o Réu BB alterou a descrição da área do prédio, incorporando nele a área restante do prédio da herança, que sabia não ser dele.
Assim, o Réu alterou a descrição da área do prédio com base em declaração falsa e num levantamento topográfico de rectificação de área que sabia não corresponder à verdade, apropriando-se de toda a área do prédio rústico identificado no artigo 1.º da petição inicial e ainda da casa da Quinta e dum anexo que pertencem à herança.
Mais alegaram ainda que a actuação do Réu visou a apropriação do prédio da herança, pois o mesmo não rectificou qualquer erro de mediação da área que lhe tinha sido doada, incorporando uma área de 13.447,00 m2, com construções e arrumo agrícola que sabia pertencer à herança ilíquida e indivisa, mas aceite, por óbito de seu pai falecido em 04-09-2001.
Como consequência necessária e directa da descrita actuação do Réu, as Autoras sentiram-se e sentem-se nervosas, incomodadas, vexadas, tristes, passando noites sem dormir, devido à revolta e à humilhação por que estão a passar, por verem o réu a invadir o seu prédio e tentar apossar-se daquilo que não é seu, mas sim das Autoras.
O prédio em causa encontra-se hipotecado ao 2.º Réu pela apresentação 2447 de 2010/07/01
.
Foi requerida e deferida a intervenção principal provocada de
GG
, no lugar de Autora, por ser herdeira da aludida herança aberta por óbito de AA.
O Réu Banco 1..., S.A.
contestou
,
referiu desconhecer todos os factos alegados pelos Autores, alegando que emprestou dinheiro ao Réu BB, tendo sido celebrado um contrato de mútuo com hipoteca, tendo a hipoteca incidido sobre o imóvel referido na petição inicial, e que na data da aprovação do crédito, o Banco estava convicto de que o imóvel tinha a configuração referida na certidão.
Ademais, quando os doadores doaram aos mutuários, o objecto da doação foi um imóvel descrito na Conservatória sobre o n.º ...28 e não determinados metros quadrados, não tendo havido qualquer destaque dos referidos 10.000,00 m2 referidos na petição inicial.
Pugnou pela improcedência da acção e, subsidiariamente, julgar improcedente o pedido formulado pelo Autor quanto ao Réu Banco, por ter agido em boa-fé, mantendo-se a hipoteca sobre o imóvel – contestação de 27-04-2022 de referência n.º 2870931
.
O Réu BB
contestou
,
invocou a excepção da caducidade do prazo para invocação de anulabilidade, uma vez que decorreu mais de um ano da falsidade de declarações e do levantamento topográfico que terão servido para alterar a descrição de registo predial do artigo 1028.º da Conservatória do Registo Predial ....
Mais referiu aceitar o alegado pelos Autores no que se refere à doação do prédio identificado no artigo 1.º da petição inicial e no referente à edificação da casa de habitação no prédio identificado no ponto 1.º da petição inicial.
Impugnou os demais factos, referindo que o prédio referido no artigo 1.º da petição inicial sempre teve a configuração que tem hoje, tendo sido precisamente esse o prédio a ser doado ao Réu.
Suscitou ainda a litigância de má-fé das Autoras, por alterarem dolosamente a verdade dos factos.
Deduziu ainda reconvenção subsidiária, para o caso de a acção ser julgada procedente, pedindo que as Autoras sejam condenadas a reconhecer o direito de propriedade do Réu/Reconvinte sobre o prédio identificado no ponto 1.º da PI com a área total de 25389,03 m2, incluindo todas as construções ali existentes e absterem-se da prática de actos que ofendam essa mesma propriedade
.
Os Autores apresentaram
réplica
, pugnando pela improcedência da exceção de caducidade do prazo para invocação da anulabilidade, improcedência do pedido de condenação como litigante de má-fé, e improcedência do pedido reconvencional.
Foi realizada audiência prévia, onde foi admitida a reconvenção e proferido
despacho saneador
, no qual foi identificado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.
Foi realizada
audiência de julgamento
e proferida
sentença
, julgando a ação
totalmente improcedente, bem como o pedido de litigância de má fé
.
A Recorrente Herança Ilíquida e Indivisa Aberta por Óbito de AA interpôs recurso da sentença, concluindo, nas suas alegações, que
:
(…).
O Recorrido Banco 1..., S.A. respondeu ao recurso, concluindo, nas suas contra-alegações, que
:
(…).
O Recorrido BB não respondeu ao recurso
II – Objeto do processo
Colhidos os vistos legais, prestados contributos e sugestões pelos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos e realizada conferência, cumpre decidir.
Da conjugação do disposto nos artºs 635º, nºs 3 e 4, 637º, nº 1 e 639º, todos do Código de Processo Civil, resulta que são as conclusões do recurso que delimitam os termos do recurso (sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso - artº 608º, nº 2
, ex vi
artº 663º, nº2, ambos do mesmo diploma legal), não vinculando, porém, o Tribunal
ad quem
às soluções jurídicas preconizadas pelas partes (artº 5º, º 3, do Código de Processo Civil). Assim:
Questões a decidir
:
1) Da alteração da decisão relativa à matéria de facto
2) Do reconhecimento da propriedade dos Autores e cancelamento do averbamento à descrição predial, do pedido reconvencional subsidiário e da subsistência da hipoteca
III – Fundamentação
A) De facto
Factos julgados provados na sentença recorrida
:
(…).
Da alteração da decisão relativa à matéria de facto
Veio a Recorrente requerer a alteração da matéria de facto no que toca às alíneas a) a e), g) e h), dos factos não provados.
Dispõe o artº 640º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, que:
1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b)
Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida
;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a)
Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes
;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal,
incumbe ao recorrido designar os meios de prova
que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes
. (sublinhado nosso)
Compulsadas as alegações de recurso, verificamos estarem preenchidos os pressupostos de que depende a admissibilidade do recurso da matéria de facto.
Vejamos.
a) Em 13 de Julho de 1993 o falecido AA e esposa doaram ao seu filho, aqui réu BB e mulher, por conta da quota disponível, a área de 10 mil metros quadrados do prédio rústico referido em 6)
.
O
Tribunal
a quo
fundamentou a sua convicção nos seguintes termos:
No que respeita ao facto não provado a), efectivamente bastaria atentar na escritura de doação para aferir que o que ali consta é a doação do prédio rústico em causa (no qual se particularizou que tem 10.000,00 m2, de acordo com os documentos prediais relevantes da altura), e não apenas dez mil metros quadrados do mesmo. Essa foi uma das teses apresentadas pelos Autores CC, DD, EE, em sede de declarações de parte (replicando o vertido nos articulados), tendo os três Autores vindo dizer que o que havia sido combinado entre os Autores, Réu e os pais FF e AA era que estes últimos apenas doariam ao Réu BB dez mil metros quadrados de um prédio.
Ora, por muita razão que pudesse assistir aos Autores, por um lado, foram só as suas declarações de parte no sentido de que o falecido casal queria doar apenas dez mil metros quadrados do prédio sob o artigo matricial ...29.
As declarações de parte não são, pela sua própria natureza, desinteressadas, uma vez que quem as emite tem um manifesto interesse na causa. (…)
No caso em apreço, as declarações de parte CC, DD e de EE tornam-se insuficientes para a prova do facto a). Por outro lado, a escritura de doação é inequívoca: o falecido casal doou um prédio e não determinada área de um prédio.
Os Autores não estiveram presentes na escritura de doação, não puderam atestar qual foi a vontade in loco e in illo tempore do falecido casal, pelo que nunca poderiam atestar qual foi a declaração negocial que o falecido casal pretendera emitir. A vontade do falecido casal até pode ter mudado na ida ao Notário para fazer a doação. Estranha-se é que apenas passados quase trinta anos da escritura de doação os Autores vieram a descobrir que o que foi doado foi um prédio e não uma área desse prédio e que nunca em momento anterior se tenham interessado pelo teor da escritura de doação.
Assim, tendo em conta o provado em 6), a impossibilidade jurídica do descrito em a), e falta de prova no sentido do aí descrito, deu-se o facto a) como não provado.
Ainda assim, tal factualidade teria interesse caso os Autores tivessem alegado ou peticionado que viesse a ser reconhecida a existência de divergência entre a vontade real dos doadores e a vontade declarada na escritura de doação, requerendo a sua anulação.
Como se pode ver, a acção não orbita em torno de tal objecto
.
Já a
Recorrente
entende que
Quanto ao concreto ponto da alínea a) dos factos não provados deve ser reapreciado com fundamento na prova pericial; documento nº 4 junto com a petição inicial e prova gravada das declarações de parte de CC (sessão de 22/04/2024) - exatas passagens dos minutos 00:01:44 - 00:03:40; 00:05:01 - 00:07:16; 00:15:14 - 00:17:01; 00:17:21 - 00:18:12; 00:19:45 - 00:22:18 -; prova gravada das declarações de parte de HH (sessão de 22/04/2024) - exatas passagens dos minutos 00:02:54 - 00:04:18; 00:08:41 - 00:09:56 -; prova gravada das declarações de parte de EE (sessão de 22/04/2024) - exatas passagens dos minutos 00:06:00 - 00:07:30; 00:10:40 - 00:12:02 -; prova gravada referente ao depoimento prestado pela testemunha II (sessão de 22/04/2024) - exata passagem minuto 00:14:24 - 00:15:07 -; e pela testemunha JJ (sessão de 22/04/2024) - exata passagem minuto 00:07:32 - 00:08:32 e com base nos argumentos expostos no corpo das presentes alegações, devendo, em consequência, ser dada como provada a alínea a) dos factos não provados
.
Contudo, a prova indicada não tem a virtualidade de afastar a análise da prova, tal como ela foi apreciada pelo Tribunal
a quo
.
Efetivamente, ainda que as testemunhas ou mesmo as partes possam ter considerado que o terreno doado correspondia a uma parte de um outro terreno de maiores dimensões, não há qualquer prova, por um lado, que a intenção dos doadores não fosse a de doar um prédio inteiro, tendo em conta, desde logo, o texto, claro, do contrato de doação.
Por outro, não há prova de que, no local, exista ou tivesse existido, um terreno com 23.477m2, quase 150% maior do que o tamanho que foi atribuído ao imóvel doado ao Recorrido.
Pelo contrário, toda a prova, de entre a qual se destaca o documento junto aos autos a 17/05/2024 (refª 3598105) e também o teor da escritura de doação, vão no sentido da doação de um prédio único, com 10.000m2.
Deste modo, cumpre manter esta facto como não provado.
b) Tal doação teve como propósito dos doadores possibilitar ao réu BB, filho dos falecidos, a construção no referido terreno de uma casa de habitação para a sua família
.
O Tribunal
a quo
fundamentou a sua convicção nos seguintes termos:
Consequentemente também se deu como não provado o facto b) visto que apenas no sentido da sua verificação incidiram as declarações de parte dos Autores, e em sentido contrário concorreram as declarações de parte do Réu BB (que até esteve na escritura de doação ao contrário dos Autores), pelo que não havendo qualquer prova inequívoca num ou noutro sentido, se deu tal facto como não provado (a prova por excelência seria a das pessoas presentes na escritura de doação, mas os doadores faleceram entretanto)
.
Já a Recorrente entende que
Quanto ao concreto ponto da alínea b) dos factos não provados deve ser reapreciado com fundamento na prova pericial constante do processo, na prova documental remetida ao processo pelo registo predial central (02/06/2023 com a referência Citius: 3260323), na prova documental que constitui a declaração do recorrido (BB) para inscrição de prédio no IMI (ofício da AT, datado de 31/05/202, com a Refª Citius: 3257282), e na prova gravada referida no ponto anterior e, ainda, na prova gravada referente ao depoimento prestado pela testemunha KK (sessão de 22/04/2024) – exata passagem minuto 00:16:58 - 00:17:24 -; e declarações de parte do recorrido BB (sessão de 13/05/2024) - exatas passagens minutos: 00:01:01 - 00:03:00; 00:14:11 - 00:15:20, e, ainda, com base nos argumentos expostos no corpo das presentes alegações, devendo, em consequência, ser dada como provada a alínea b) dos factos não provados
.
Aqui, não podemos deixar de discordar frontalmente com a convicção expressa pelo Tribunal
a quo
, uma vez que, efetivamente, toda a prova produzida vai no sentido de se considerar este ponto como provado.
Para tanto, bastariam até as próprias declarações do Recorrido quando disse:
Portanto os contornos foi, quando foi na altura que eu era para fazer… construir uma casa pronto e, entretanto, surgiu fazer a casa lá na Quinta .... Portanto na altura foi tudo falado na presença de todos, foi tudo falado
.
Assim, cumpre jugar este ponto como provado.
c) Há mais de 20, 30, 40 e 50 anos, as Autoras por si e pelos seus antepossuidores, encontram-se na total usufruição da área de cerca de 13.447,00 m2 do prédio rústico inscrito na matriz rústica ...29 (atual ...98º), descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...28, de forma contínua, ininterrupta e reiterada, com ciência e paciências gerais, em seu único e exclusivo proveito, na convicção de exercer o direito real máximo da propriedade sobre o mencionado prédio.
d) As Autoras por si, e antepossuidores, ocuparam-no, cortando a erva e mato, cortando arbustos e pinheiros, cultivando e colhendo frutos, tudo fazendo com ânimo, vontade e espírito de exercer o direito real de propriedade em seu único e exclusivo proveito e interesse
.
O Tribunal
a quo
fundamentou a sua convicção nos seguintes termos:
No que respeita aos factos c) e d), a prova produzida não consentiu que se desse o mesmo como provado desde logo em virtude de as Autoras CC e DD terem confirmado que, tanto quanto era do seu conhecimento, sempre consideraram que todo o terreno na Quinta ..., com excepção do lugar onde o irmão BB construiu a sua casa, era da herança aberta por óbito de morte dos seus pais. Logo, assumiram que nunca exerceram quaisquer actos de posse sobre a coisa como se tratasse de coisa sua, visto que assumiram que tal prédio era pertença da herança, reputando-o e tratando-o como tal
.
Já a Recorrente entende que
Quanto aos concretos pontos da alínea c) e d) dos factos não provados devem ser reapreciados pelas significativas benfeitorias realizadas pela recorrente no imóvel do prédio rústico conforme pontos 18º, 20º, 21º, 22º, 23º, 24º, 25º, 26º e 27º e 34º do probatório que inculcam que a recorrente atuou na convicção que era dona e senhora e pelo registo de prova gravada das declarações prestadas pela testemunha JJ (sessão de 22/04/2024) - exata passagem minuto 00:06:52 - 00:07:20 -; pelas declarações de parte de DD (sessão de 22/04/2024) - exata passagem minuto 00:32:54 - 00:33:43 -; pelas declarações de parte de EE (sessão de 22/04/2024) - exata passagem minuto 00:04:54 - 00:05:34 -; pelas declarações prestadas pela testemunha LL (sessão de 22/04/2024) - exata passagem minuto 00:08:57 - 00:09:30 -; e pelas declarações da testemunha KK (sessão de 22/04/2024) – exata passagem minuto 00:09:02 - 00:09:32 – e, ainda, com fundamento no argumentário exposto no corpo das presentes alegações, devendo, em consequência, ser dada como provada as alínea c) e d) dos factos não provados
.
Com tal fundamentação, parece ter o Tribunal
a quo
olvidado que os Autores não litigam por si próprios, mas sim na qualidade de herdeiros, pelo que a fundamentação supra não pode proceder.
Pelo contrário, de toda a prova produzida, bem como da posição de ambas as partes, resulta que aquela parte do imóvel era utilizada pelos antecessores de Autores e Ré, sendo que a dúvida apenas se prende em saber qual foi o terreno que foi objeto de doação.
Assim, mais se escreveu na sentença recorrida que:
Aqui chegados, e tendo-nos debruçado sobre todos os factos provados e não provados, e sobre os depoimentos prestados, há que referir que consta dos autos um outro prédio que seria possivelmente pertença de AA, a saber, o prédio inscrito na matriz sob o artigo ...32, igualmente sito em ..., omisso na Conservatória conforme se constata da certidão negativa junta a 17-05-2024 de referência n.º 3598105. Tal prédio tem as seguintes confrontações: N: Casa ...; Sul: MM; N: Estrada; Poente: Herdeiros de
Ou seja, demonstrado está que havia no lugar do ... outra propriedade cujo titular do rendimento era AA: mas não foi registado.
Seria este o prédio ao qual o Réu havia subtraído, na tese dos Autores, os metros quadrados que vem alegado que subtraiu ao prédio descrito na Conservatória do Registo predial sob o n.º ...28?
Provavelmente. E mais provável seria do que a tese apresentada pelos Autores
.
Mais se diz na sentença recorrida:
Estranha-se é que apenas passados quase trinta anos da escritura de doação os Autores vieram a descobrir que o que foi doado foi um prédio e não uma área desse prédio e que nunca em momento anterior se tenham interessado pelo teor da escritura de doação
E ainda, na parte em que apreciou o pedido de condenação das Autoras como litigantes de má fé:
No caso, não se provou que os Autores tivessem alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa ou tivessem deduzido pretensão cuja falta de fundamento não devesse ser ignorada
.
Ou seja, tal como o Tribunal
a quo
se apercebeu, o que se provou foi que o terreno doado não tinha a dimensão de 23.447 m2, sendo que a parte de terreno que o Recorrido acrescentou, aquando da correção da descrição, não correspondia realmente a uma parte do terreno que lhe foi doado, mas sim a uma parcela de um outro terreno confinante, não descrito, que pertencia a seus pais e agora pertence à herança, pelo que há que alterar a decisão de facto, também nesta parte.
Neste sentido, para além dos documentos – de entre os quais se destaca o que foi junto a 17/05/2024, com a refª 3598105 – e as declarações de parte, são relevantes também os depoimentos das testemunhas CC e EE.
Daqui resulta que Tribunal
a quo
, apesar de ter entendido o que efetivamente aconteceu, optou pela via formal de considerar os factos não provados, apenas porque os Autores identificaram mal o prédio reivindicado, como parte do prédio doado, e não como parte do prédio confinante. Contudo, tal entendimento não pode prevalecer.
Na verdade, a parte reivindicada é inequívoca, correspondendo à parte do prédio que o Recorrido acrescentou aquando da alteração da descrição, sendo certo que até foi este quem contribuiu para a confusão, justamente ao fundi-los num só com tal alteração, pelo que a constatação de diferente realidade não pode penalizar, ainda mais, os Autores.
Assim, cumpre julgar tais factos como provados, com a alteração de que, onde, na al. c), se lê:
“usufruição da área de cerca de 13.447,00 m2 do prédio rústico inscrito na matriz rústica ...29 (atual ...98º), descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...28”
Deve passar a ler-se:
“usufruição de parte do prédio rústico tal como hoje se encontra inscrito na matriz rústica ...29 (atual ...98º), descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...28, correspondendo à parte que do mesmo se situa a poente do caminho que o atravessa, o que inclui as das construções ali existentes correspondentes à casa da Quinta ..., inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ...40º, e o arrumo agrícola”
Isto porque foi o que as testemunhas disseram, que o limite se situa no caminho, e o que resulta dos documentos juntos, desde logo, da própria escritura de doação, que faz coincidir a estrema do terreno, a poente, com o caminho (se o desenho correto fosse o do documento 4 junto com a Petição Inicial, o caminho situar-se-ia apenas a sudeste). E até do relatório de perícia, que considerou o caminho como um “limite não confirmado pelos intervenientes”.
e) As obras foram realizadas ao longo dos últimos 20 anos com o conhecimento pleno do réu BB que a elas nunca se opôs
.
O Tribunal
a quo
fundamentou a sua convicção nos seguintes termos:
Quanto ao facto e), a prova produzida igualmente não consentiu que se reputasse o mesmo como provado, uma vez que nenhuma testemunha ocular presenciou que o Réu BB tivesse pleno conhecimento das obras realizadas. Efectivamente, os Autores que prestaram declarações de parte confirmaram que o mesmo se ausentou para ... durante vários anos (o que foi confirmado pelo Réu), e as testemunhas que se pronunciaram sobre o conhecimento pelo Réu de tais obras foram muito evasivas na sua concretização. As testemunhas JJ e KK, questionadas directamente sobre se o Réu BB tivera conhecimento dos trabalhos efectuados a mando dos Autores, apenas referiram que o mesmo deve ter tido conhecimento das mesmas visto que tinha uma casa perto do local das obras. Mas tal asserção foi feita de forma tão genérica e abstracta que nem nos consente lançar mão de presunções judiciais para afirmar que o Réu teve conhecimento de tais obras. Ficou patente que o Réu esteve vários anos fora de ..., entre os quais o ano de 2007, logo não era expectável que tivesse tomado especial contacto com tais obras. Também nenhum documento existe no processo que comprove que os Autores comunicaram a realização de tais obras ao Réu.
Por assim ser, deu-se como não provado tal facto
.
Por seu turno, a Recorrente entende que
Quanto ao concreto ponto da alínea e) dos factos não provados deve ser reapreciado com fundamento na prova pericial existente no processo e documento 4º da petição que inequivocamente retratam a proximidade das duas casas: casa de habitação do recorrido e casa do prédio rústico conforme ponto 18º do probatório e, ainda, pelo registo de prova gravada das declarações prestadas pela testemunha KK (sessão de 22/04/2024) - exatas passagens dos minutos 00:15:14 - 00:23:58 -; e pelas declarações de parte do recorrido (sessão de 13/05/2024) - exatas passagens minutos 00:37:01 - 00:41:30 - que evidenciam não ser minimamente credível que o recorrido não tivesse conhecimento das obras e a elas não se opôs, devendo, em consequência, deve ser dada como provada a alínea e) dos factos não provados
.
Já aqui, concordamos integralmente com a fundamentação da decisão recorrida, não sendo a prova indicada no recurso suficiente para que afastemos a convicção formada, sendo efetivamente frágil a prova no sentido proposto pelos Recorrentes.
g) Desde Dezembro de 2021, os Autores encontram-se impedidos de aceder e usar não só as suas habitações e respectivo anexo, mas igualmente de fazerem uso dos bens e mobílias que ali se encontram, tudo sua propriedade
.
O Tribunal
a quo
fundamentou a sua convicção nos seguintes termos:
Quanto ao facto g) não provaram os Autores ser proprietários de tais habitações, anexos, bens e mobílias – não havendo aqui nenhuma presunção de titularidade do direito de propriedade convocável ao caso
.
Já a Recorrente entende que
Quanto ao concreto ponto da alínea e)
[1]
dos factos não provados existe uma contradição insanável entre a resposta negativa (não provada) dada a esta alínea e a resposta dada ao ponto 36º do probatório, pelo que, deverá, em consequência, ser dada como provada a alínea e) dos factos não provados
.
Também aqui cumpre alterar a decisão recorrida, considerando esta matéria como provada, na medida em que apenas foi julgada como não provada, na sequência do mesmo raciocínio, já afastado, que levara à consideração das al.s c) e d) como não provadas também, dando-se aqui por reproduzida a explicação supra exposta.
Por outro lado, acresce que efetivamente se regista a contradição assinalada pelos Recorrentes, relativa ao facto de efetivamente se ter considerado provado que
Em Dezembro de 2021, um funcionário da imobiliária A..., de nome NN, a mando do réu BB, trocou os canhões das chaves da casa da quinta inscrita na matriz predial urbana n.º ...40 e dum anexo agrícola
.
h) O réu OO alterou a descrição da área do prédio com base em declaração falsa
.
O Tribunal
a quo
fundamentou a sua convicção nos seguintes termos:
Quanto ao facto h), cumpria aos Autores fazer prova de que a declaração do Réu aquando do pedido de rectificação da área era falso: contudo, o único argumento trazido aos autos pelos Autores é que ao Réu tinha sido apenas doado 10.000,00 m2 do prédio descrito na Conservatória sob o n.º ...28 (e consequentemente, o remanescente da área seria da herança).
Como se viu, tal facto foi considerado não provado. Logo também vai não provado que o Réu prestou declaração falsa
.
Já a Recorrente entende que
Quanto ao concreto ponto da alínea h) dos factos não provados deve ser reapreciado com fundamento na prova documental constante do processo referente à retificação da área do prédio (referência Citius: 3260323 datada de 02/06/2023) e documentação remetida pela autoridade tributária referente à inscrição da casa de habitação do recorrido para efeitos de Imposto Municipal sobre os Imóveis (IMI) e os respetivos documentos instrutórios, Cfr. referência citius 3257282, datada de 31/05/2023, devendo, em consequência, deve ser dada como provada a alínea h) dos factos não provados
.
Na verdade, esta alínea deve pura e simplesmente ser retirada da factualidade, provada ou não provada, por se tratar de matéria manifestamente conclusiva e até irrelevante, na medida que o que interessa saber é se a alteração da descrição correspondeu ou não à realidade, o que se deve retirar dos demais factos.
Da matéria de facto provada consolidada
1) Por escritura pública de habilitação notarial, outorgada no dia 21-02-2021, foi declarado que a FF, falecida ../../1999, e a AA, falecido no dia 04-09-2001, no estado de viúvo daquela sucederam, em virtude dos respectivos óbitos, como únicos herdeiros, os filhos comuns do casal, CC, viúva, HH, casada com EE, e GG, casada com PP, e BB, divorciado.
2) No dia 21-10-1992, foi outorgada escritura de justificação notarial no Cartório Notarial ..., perante o Notário QQ, por AA e FF, na qualidade de primeiros outorgantes, e RR, SS e TT, na qualidade de segundos outorgantes, por via da qual os primeiros outorgantes declararam ser donos e legítimos possuidores com exclusão de outrem dos seguintes prédios sitos na freguesia ..., Concelho ...:
a. Prédio rústico, composto de terra centeeira e pinhal, com a área de 10.000,00 m2, sito no lugar ..., a confrontar de norte com Casa ..., sul com MM, nascente com herdeiros de UU e poente com caminho, inscrito na respectiva matriz em nome do justificante marido sob o artigo ...29, com o valor patrimonial de vinte e três mil e oitenta e nove escudos, ainda não descrito na Conservatória do Registo Predial ..., a que atribuem o valor de cento e cinquenta mil escudos;
b. Prédio rústico, composto de terra centeeira, com a área de 15.000,00 m2, sito no referido lugar ..., a confrontar de norte com Casa ..., sul com MM, nascente com Estrada, e poente com Herdeiros de UU, inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...32, em nome do justificante marido, com o valor patrimonial de trinta e cinco mil novecentos e oitenta e cinco escudos, não descrito na Conservatória do Registo Predial ..., e ao qual atribuem o valor de cento e cinquenta mil escudos.
3) Na escritura de justificação atrás referida, os primeiros outorgantes declararam possuir os referidos prédios há mais de vinte anos, sem interrupção, exercendo sobre eles posse pública, pacífica, contínua e de boa fé, com exclusão dos demais à vista de todos e sem discussão nem oposição de ninguém, fruindo as utilidades possíveis, pelo que os adquiriram por usucapião, o que foi confirmado pelos segundos outorgantes.
4) Na escritura de justificação atrás referida, foram arquivadas:
a. Certidão de teor expedida em 29/06/1992 pela Repartição de Finanças do concelho ..., da qual constam os artigos e valores patrimoniais e que os prédios se encontram lá inscritos em nome do justificante marido;
b. Duas certidões comprovativas da omissão dos prédios na Conservatória do Registo Predial ....
5) Na escritura de justificação atrás referida, consta um averbamento escrito, estando a autoria atribuída ao Notário, com o seguinte teor:
«Averbamento n.º 2:
Por escritura de hoje, exarada a folhas 54 do respectivo livro ...0-E, foi esta rectificada no sentido de que a área do prédio mencionado em segundo lugar é de cento e cinquenta mil metros quadrados.
..., aos 20 de Maio de 1993,
O Notário».
6) A 13-07-1993 foi outorgada escritura pública intitulada «Doação», perante VV, Adjunta do Cartório Notarial ..., a cargo da Notária WW, que ficou a constar do livro de notas para escrituras diversas n.º ...3-B de folhas 38 a folhas 39, e na qual intervieram como primeiros outorgantes AA e FF e como segundos outorgantes BB e mulher XX, tendo os primeiros declarado doar aos segundos, seus filho e nora, por conta da quota disponível dos seus bens, o prédio rústico sito no Panasquinho, freguesia ..., Concelho ..., composto de terra centeeira e pinhal, com a área de dez mil metros quadrados, a confrontar de Norte com Casa ..., Sul, MM, Nascente com herdeiros de UU, e Poente com Caminho, com o valor patrimonial de vinte e três mil e oitenta e nove escudos, inscrito na matriz respectivo sob o artigo mil e vinte e nove, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...28 da freguesia ... referida, e inscrita a favor dos doadores pela inscrição ..., tendo os segundos outorgantes declarado aceitar essa doação.
b) Tal doação teve como propósito dos doadores possibilitar ao réu BB, filho dos falecidos, a construção no referido terreno de uma casa de habitação para a sua família.
7) Da escritura pública de doação atrás referida consta ainda:
«Arquivo: uma certidão de teor matricial.
Foi-me exibida: uma certidão de teor das descrição e inscrição predial, emitida pela Conservatória do Registo Predial ... em 8 de Junho de 1993.
(…)
Fez-se aos outorgantes em voz a leitura desta escritura e a explicação do seu conteúdo, na presença simultânea de todos, não assinando o primeiro outorgante marido, por não o saber fazer conforme me declarou».
8) No Cartório Notarial ... encontra-se arquivado documento sob o n.º 64 do maço de documentos relativo ao livro de notas para escrituras diversas número ...3-B, do extinto Cartório Notarial Público ..., que constitui uma certidão emitida por YY, Tributário do Quadro da Direcção Geral das Contribuições e Impostos, em serviço na Repartição de Finanças ..., com o seguinte teor:
«CERTIFICO, em cumprimento do despacho exarado na petição que antecede e de harmonia com o requerido, que tendo compulsado as matrizes prediais da área desta Repartição, verifiquei que o(s) prédio(s) a que se refere o aludido requerimento se encontra (m) nelas inscrito (s) sob o seguinte teor:
Artigo: 1029.º Situação: ...: ...: Terra de Centeio (…)
Área: 10.000 m2 Rendimento Colectável: 931$00 Valor Patrimonial: 23.089$00
Titular(es) AA
Artigo: 1032.º
Situação: ...
Freguesia: ...
Descrição: Terra de centeio e pastos
(…)
Área: 150.000m² Rendimento Colectável: 1449$00 Valor Patrimonial: 35.785$00
Titular(es): AA
(…)
Por ser verdade e para constar passei a presente certidão que assino e autentico com o selo branco em uso nesta Repartição de Finanças ..., em 3 de Fevereiro de 1993
(…)».
9) No dia 19-05-2010, o Réu BB requereu junto do Instituto dos Registos e do Notariado o averbamento da alteração da descrição relativamente ao prédio sito em Panasquinho, freguesia ..., Concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...03, tendo prestado as seguintes declarações escritas:
«O prédio actualmente compõe-se de oliveiras, horta, cultura arvense, lameiro, pessegueiros, figueiras, cerejeiras, damasqueiros, macieiras, pereiras, pinhal, cultura arvense de regadio, videiras com cordão e três instalações agrícolas –23994 m2; edifício de 2 pisos – área com 153,88 m2; log. 1241,20 m2.
Actualmente é um prédio misto com artigos n.ºs ...12 e rústico n.º ...98.
Mais declaro que o prédio sempre teve esta configuração, nunca sofreu alterações pelo que se pretende a sua rectificação, pois deve-se a simples erro de medição».
10) O pedido de averbamento atrás descrito foi instruído com o levantamento topográfico junto aos autos a fls. 151 e 151, verso, assinado pelo topógrafo ZZ, tendo o mesmo declarado a 19-04-2010 ter «executado o Levantamento topográfico para determinação de áreas pelos limites indicados pelo requerente, do terreno RÚSTICO artigo matricial n.º ...98 com a área de 2,3994 hectare, que confronta a Nordeste com AAA /Casa ..., a Sul com Herd. BBB e com BB, a Sudoeste com MM e a Noroeste com Herd. UU em nome de BB no lugar da Quinta ...».
c) Há mais de 20, 30, 40 e 50 anos, as Autoras por si e pelos seus antepossuidores, encontram-se na total usufruição de parte do prédio rústico tal como hoje se encontra inscrito na matriz rústica ...29 (atual ...98º), descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...28, correspondendo à parte que do mesmo se situa a poente do caminho que o atravessa, o que inclui as das construções ali existentes correspondentes à casa da Quinta ..., inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ...40º, e o arrumo agrícola, de forma contínua, ininterrupta e reiterada, com ciência e paciências gerais, em seu único e exclusivo proveito, na convicção de exercer o direito real máximo da propriedade sobre o mencionado prédio.
d) As Autoras por si, e antepossuidores, ocuparam-no, cortando a erva e mato, cortando arbustos e pinheiros, cultivando e colhendo frutos, tudo fazendo com ânimo, vontade e espírito de exercer o direito real de propriedade em seu único e exclusivo proveito e interesse.
11) O prédio misto sito em Panasquinho, freguesia ..., Concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...03, e inscrito na matriz predial rústica sob o n.º ...98 e na matriz predial urbana sob o n.º ...12, encontra-se registado a favor de BB por via da AP. ... de 1993/09/15 e da AP. ...31 de 2011/01/07.
12) Por documento particular autenticado intitulado «Contrato de mútuo com hipoteca» e respectivo anexo, ambos outorgados em 28-06-2010, o segundo outorgante Banco 1..., S.A. concedeu aos mutuários/primeiros outorgantes CCC e BB um empréstimo no montante de € 35.000,00, do qual os últimos se confessaram devedores, tendo o primeiro outorgante e XX constituído a favor do Banco, o que este aceitou, hipoteca sobre o prédio misto sito em Panasquinho, freguesia ..., Concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...03, e inscrito na matriz predial rústica sob o n.º ...98 e na matriz predial urbana sob o n.º ...12, para garantia de todas as responsabilidades assumidas no contrato de mútuo.
13) Por documento intitulado «Aditamento ao Contrato Hipotecário n.º ...10», outorgado em 10-08-2022, e em aditamento ao contrato de mútuo celebrado em 28-06-2010, o Banco 1..., S.A., e BB declararam reciprocamente aceitar a assunção da dívida pelo segundo e a correspectiva exoneração da dívida de CCC, com manutenção das garantias constituídas para garantia do empréstimo.
14) Pela AP. ...47 de 2010/07/01, encontra-se registada hipoteca voluntária a favor de Banco 1..., S.A., sobre o prédio misto sito em Panasquinho, freguesia ..., Concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...03, e inscrito na matriz predial rústica sob o n.º ...98 e na matriz predial urbana sob o n.º ...12, para garantia de um empréstimo por esta concedido a BB e a CCC no montante de € 35.000,00, cujo montante máximo assegurado é o de € 47.950,00.
15) O Banco 1..., S.A., baseou a decisão de concessão de crédito na certidão do registo predial e cadernetas prediais exibidas pelos mutuários.
16) O prédio urbano sito em Panasquinho, freguesia ..., Concelho ..., inscrito na matriz predial urbana sob o n.º ...12, encontra-se descrito com a área matricial total de 1.395,08 m2 e área de implantação do edifício de 153,88 m2, constando como titular do rendimento do mesmo o Réu BB.
17) O prédio rústico sito em Panasquinho, freguesia ..., Concelho ..., inscrito na matriz predial rústica do Serviço de Finanças ... sob o n.º ...98, encontra-se descrito com a área matricial total de 2,3994 hectares, por via do processo de reclamação administrativa 26/2010, constando como titular do rendimento do mesmo o Réu BB.
18) O prédio urbano sito em Panasquinho, freguesia ..., Concelho ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo matricial n.º ...40, omisso na Conservatória do Registo Predial, é constituído por casa de tipologia T2, arrumos, adega e garagem em pedra com portão, com a área de 48,00 m2, constando como titular do rendimento do mesmo o cabeça-de-casal da herança aberta por óbito de AA.
19) Por despacho datado de 04-08-2022, proferido pelo Chefe de Finanças DDD, deferiu-se o pedido apresentado pelo Réu BB no sentido de averbar as confrontações de Norte, Nascente, Poente com BB e de Sul com caminho público ao prédio urbano sito em Panasquinho, freguesia ..., Concelho ..., inscrito na matriz predial urbana sob o n.º ...12.
20) O prédio rústico designado por Quinta ... e/ou ..., sito na freguesia ..., do Concelho ..., inscrito na antiga matriz rústica ...29 (atual ...98º), descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...28, tem a área de 26.484,60 m2.
21) As Autoras reconstruíram e ampliaram a casa da quinta, inscrita na matriz predial urbana n.º ...40, onde realizaram em datas não concretamente apuradas, por volta do ano de 2007, os seguintes trabalhos:
- Trabalhos de alteamento de piso existente;
- Tratamento de fachadas em pedra;
- Reboco;
- Pintura;
- Cobertura em telha cerâmica;
- Caixilharia;
- Rede de electricidade; e
- Rede de água.
22) Sobre as fachadas em alvenaria de granito da casa, houve um alteamento materializado com blocos de argamassa de cimento, com um acréscimo útil de cerca de 0,60 metros, em todo o perímetro da casa, que obrigou à reconstrução da estrutura da cobertura.
23) O acréscimo nas paredes exteriores da edificação encontra-se rebocado e pintado no alçado principal e nos alçados laterais, encontrando-se os blocos á vista no alçado posterior.
24) Os trabalhos referidos em 22) e 23) têm um valor estimado de € 4.027,10.
25) Na casa da Quinta ..., foi realizado o fechamento das juntas das
paredes exteriores em alvenaria de granito com recurso a argamassa de cimento e areia;
26) O valor estimado das obras referida em 25) é de € 1.750,00.
27) O valor estimado dos trabalhos de reboco é de € 2.400,00, de pintura das paredes rebocadas de € 1.800,00, de cobertura em telha cerâmica de € 2.124,00, de caixilharia de € 1.879,80, de instalação de rede de electricidade de € 200,00, e de rede de água de cerca de € 350,00.
28) No prédio rústico designado por Quinta ... e/ou ..., sito na freguesia ..., do Concelho ..., inscrito na antiga matriz rústica ...29 (atual ...98º), descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...28, existe um arrumo agrícola com a área de 142,40 m2 , a noroeste da casa referida em 18), com o valor de mercado de cerca de € 2.130,00.
29) O Réu BB remeteu às Autoras DD e EEE cartas datadas de 05-02-2019, registadas com aviso de recepção, as quais as Autoras recusaram receber, com o seguinte teor:
«..., 05 de fevereiro de 2019
Assunto: Pedido de entrega de chaves da casa e desocupação e entrega da casa e terreno
(…)
Venho, uma vez mais, ao teu contacto para solicitar a entrega das chaves das instalações agrícolas (casas), inscrita na matriz rústica predial da freguesia ... sob o artigo nº ...98, sita à Quinta ..., bem como solicito que desocupes e me faças a entrega do terreno inscrito na matriz predial rústica da freguesia ..., inscrito na matriz sob o artigo ...98, terreno este que confina e confronta com a minha casa.
Solicito que as chaves, a desocupação das instalações agrícolas e do terreno, supra-identificados, me sejam entregues-ate-ao-dia 28/02/2019.
As chaves da casa devem ser enviadas, por esta mesma via, para a minha morada em ....
Apresento-te os meus melhores e calorosos cumprimentos».
30) A Solicitadora FFF remeteu cartas registadas datadas de 13-11-2019, a DD e a CC, as quais não foram reclamadas, e com o seguinte teor:
«Exm.ª Senhora:
Fui contactada pelo seu irmão, Sr. BB, residente na Rua ..., ..., em ..., ..., proprietário do prédio rústico sito no ..., na freguesia ..., Concelho ..., informando-me que V. Ex.ª tem possuído de forma indevida, abusiva e penalmente punível, o referido prédio e barracão ali existente. Pelo que, Venho pela presente informar V. Ex. que deverá deixar de praticar qualquer ato no prédio acima identificado, que ofenda o direito de propriedade do meu cliente, bem como proceder à entrega da chave do referido barracão no prazo máximo de 15 dias no meu escritório sito na Rua ..., em ..., ou em alternativa proceder à entrega das mesmas à Sra GGG, inquilina da casa sita na Quinta ..., ou ..., na freguesia ..., Concelho ....
Com os meus cumprimentos,
A Solicitadora».
31) A 17-11-2021, o Réu apresentou queixa-crime contra DD, CC e EE, no Posto Territorial da Guarda Nacional Republicana de ..., com a seguinte descrição:
«O denunciante é o proprietário de uma casa que serve de instalação agricola localizada na Quinta ..., .... --/
O denunciante no dia 30/10/2021 por volta das 15H30 quando chegou à referida quinta de sua propriedade verificou que duas Portas de acesso ás ditas instalações tinham sido forçadas danificado os canhões tendo sido trocado os mesmos fazendo com que o denunciante não tenha acesso ás ditas instalações. --/
O denunciante suspeita como autores dos danos DD, residente em Sitio ..., Rua ..., ..., ..., ... ... e de CC, residente no Bairro ..., Rua ..., ..., ... ... porque o denunciante os deixou ali andarem colm a sua autorização para cultivarem as terras uma vez que o denunciante atualmente está a residir em .... --/
O denunciante de momento não sabe o valor dos danos nem possui seguro. --/
O denunciante deixou as ditas pessoas acima identificadas cultivarem os seus terrenos até a uma certa altura, mas como precisava das instalações disse ás mesmas para abandonarem o local, mas não o fizeram. –
As pessoas em causa já foram notificadas pelo agente de execução para abandonarem as referidas instalações, mas ainda não fizeram. -/
O denunciante suspeita das ditas pessoas mas não as viu a causarem os danos mencionados.
O denunciante pretende que as pessoas em causa abandonem as instalações. -/
O denunciante no mês de agosto de 2021 foi ameaçado pelo HHH filho da já identificada CC, que quando o denunciante fosse á sua quinta que lhe cortavam pescoço e que ele não sai de lá vivo. --/
O denunciante no mês de setembro de 2021 foi ameaçado pelo EE, marido da já identificada DD, que quando o denunciante fosse à sua quinta que lhe cortavam o pescoço e que ele não sai de lá vivo. --/
Que o denunciante pretende o procedimento Judicial e Criminal contra ra quem vier a ser identificado como autor dos referidos danos e contra o HHH e EE pelas ameaças que foi alvo. --/»
32) No dia 24-12-2021, o Réu BB participou à Guarda Nacional Republicana do Posto Territorial ... os seguintes factos:
«--- denunciante refere que no dia 20 de dezembro do corrente ano, da parte da manha, o NN, residente na ..., com o Tel. ...75, deslocou-se à sua propriedade, em ..., a fim de ver como é que estava a sua propriedade e para fazer uma porta para a dita habitação.
---Quando o mesmo chegou ao local, verificou que a habitação estava completamente vandalizada. Foram retidas as louças de uma casa de banho, arrancaram uma escadaria e varandim em madeira, danificaram o teto em madeira, arrancaram uma claraboia, fazendo com que agora chova na habitação.
Arrancaram porta principal e janelas, partiram os moveis da cozinha. O denunciante junta fotos que lhe foram enviadas pelo NN.
---O denunciante continua a suspeitar da DD, da CC, do EE e HHH, desejando assim procedimento criminal contra os mesmos.»
33) No dia 19-02-2022, o Réu BB participou à Guarda Nacional Republicana do Posto Territorial ... os seguintes factos:
«Que no dia de hoje, entenda-se 19 de fevereiro de 2022, sensivelmente pelas 09h30 foi contactado por um inclino residente próximo da habitação em causa no âmbito do presente processo a informar que existiam pessoas no interior da habitação propriedade do denunciante.
Que no sentido de zelar pelo que é seu, o denunciante acionou a GNR de III para se deslocar ao local, entenda-se à Quinta ... e
verificar o que se passava.
Que posteriormente foi contactado por um militar da GNR de III a relatar que tinham sido identificados três indivíduos no interior da propriedade, mas que verbalizaram aos militares serem coproprietários da habitação quando não o são.
Que desconhecendo quais os danos causados para se introduzirem no interior da propriedade, o denunciante faz juntar ao processo escritura comprovativa da sua legitima propriedade.
Que por tais factos, deseja procedimento criminal.».
34) Actualmente o prédio urbano sito em Panasquinho, freguesia ..., Concelho ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo matricial n.º ...40 encontra-se avaliado na quantia de € 117.200,00 para a habitação e € 18.500,00 para a garagem/anexo.
35) Em data não concretamente apurada, mas por volta de Março de 2021, foi colocada uma placa da imobiliária A... junto ao prédio descrito em 16).
36) Em Dezembro de 2021, um funcionário da imobiliária A..., de nome NN, a mando do réu BB, trocou os canhões das chaves da casa da quinta inscrita na matriz predial urbana n.º ...40 e dum anexo agrícola.
g) Desde Dezembro de 2021, os Autores encontram-se impedidos de aceder e usar não só as suas habitações e respectivo anexo, mas igualmente de fazerem uso dos bens e mobílias que ali se encontram, tudo sua propriedade.
B) De Direito
Do reconhecimento da propriedade dos Autores e cancelamento do averbamento à descrição predial, do pedido reconvencional subsidiário e da subsistência da hipoteca
Os Autores requereram:
i) seja reconhecido o direito de propriedade das Autoras sobre o prédio identificado artigo 1.º com a área de 13.447,00 m2, bem como das construções ali existentes correspondentes à casa da Quinta ..., inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ...40º, e o arrumo agrícola e consequentemente ordenar-se o respectivo registo desta propriedade a favor das Autoras e por sua vez ordenar-se ainda o cancelamento na descrição predial n.º ...28 do averbamento de alteração da AP ...25 de 2010/05/18;
Uma vez que se não apurou a exata configuração do prédio, nomeadamente o seu tamanho, nem a sua exata composição, cumpre condenar apenas no que se apurou - parte do prédio rústico tal como hoje se encontra inscrito na matriz rústica ...29 (atual ...98º), descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...28, correspondendo à parte que do mesmo se situa a poente do caminho que o atravessa, o que inclui as das construções ali existentes correspondentes à casa da Quinta ..., inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ...40º, e o arrumo agrícola.
O demais terá de ser requerido, se necessário, em execução de sentença, nos termos do disposto no artº 609º, nº 2, do Código de Processo Civil.
Consequentemente, cumpre também ordenar o cancelamento na descrição predial n.º ...28 do averbamento de alteração da AP ...25 de 2010/05/18, por manifestamente não corresponder à realidade.
O Recorrido deduziu pedido reconvencional subsidiário, para o caso de o julgamento ser julgado procedente, se reconhecesse que o mesmo adquiriu o terreno reivindicado por usucapião.
Porém, dos factos provados não resulta que o mesmo tivesse a posse do mesmo, antes pelo contrário, o que se apurou foi o uso do prédio e suas construções pelas suas irmãs.
ii) o Réu seja condenado a restituir às Autoras o prédio identificado no retro artigo 1.º com a área de 13.447,00 m2, bem como das construções ali existentes correspondentes à casa da Quinta ..., inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ...40º e o arrumo agrícola;
Deve ser julgado procedente na estrita mediada da procedência do ponto anterior.
iii) se reconheça que o Réu é proprietário apenas e só da área de 10.000,00 m2, objecto da doação, do prédio identificado no artigo 1.º, devendo tal facto ser objecto de retificação registral no prazo de 10 dias, após o trânsito em julgado, sob pena de ser condenado em sanção pecuniária compulsória, no valor de € 10,00 (dez euros) por cada dia de incumprimento;
iv) o Réu seja condenado a pagar uma indemnização às autoras em quantia não inferior a 100€ (cem euros) por cada dia que decorrer entre a citação e a restituição às autoras do prédio identificado no artigo 1º com a área de 13.447,00 m2, bem como das construções ali existentes correspondentes à casa da Quinta ..., inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ...40º, e o arrumo agrícola;
Estes pedidos têm de ser julgados improcedentes porque não se conhece a exata dimensão do prédio do Recorrido, resultando dos autos que terá um pouco mais do que os 10.000m2 que lhe foram atribuídos, situando-se o seu limite no caminho e não na linha reta traçada no levantamento topográfico junto pelos Autores com a Petição Inicial.
v) o Réu seja condenado a pagar às Autoras a quantia global de 10.000,00€ (dez mil euros), a título de danos morais, acrescida de juros até integral e efectivo pagamento;
Esta parte não foi objeto de recurso.
vi) o 2.º Réu seja condenado a reconhecer o direito de propriedade das Autoras sobre o prédio identificado no artigo 1.º com a área de 13.447,00 m2, bem como das construções ali existentes correspondentes à casa da Quinta ..., inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ...40º e o arrumo agrícola.
O reconhecimento da propriedade dos Autores tem de ter necessariamente efeito
erga omnes
, não podendo o reconhecimento da propriedade ter efeito para umas pessoas e não para outras, pelo que também a 2ª Ré tem de ser condenada neste pedido.
Veio a 2ª Ré, nas suas alegações, pedir que a eventual procedência do pedido não afete a hipoteca registada a seu favor, por ser um terceiro de boa fé para efeitos de registo.
Porém, tal pedido não pode ser conhecido, desde logo porque os Autores nada pediram a este propósito e tão pouco a 2ª Ré formulou pedido reconvencional, não constando tal matéria dos temas da prova.
IV - Decisão
Nestes termos
, acordam os Juízes Desembargadores da 1ª Secção deste Tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente o recurso:
1) Condenando ambos os Réus no reconhecimento de que os Autores CC, DD e EE, na qualidade de herdeiros de AA, são proprietários de
parte do prédio rústico tal como hoje se encontra inscrito na matriz rústica ...29 (atual ...98º), descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...28, correspondendo à parte que do mesmo se situa a poente do caminho que o atravessa, incluindo
as construções ali existentes correspondentes à casa da Quinta ..., inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ...40º, e o arrumo agrícola, no mais a melhor concretizar em execução de sentença;
2) Determinando o cancelamento, na descrição predial n.º ...28, do averbamento de alteração da AP ...25 de 2010/05/18;
3) Condenando o Réu BB na restituição aos herdeiros de AA do prédio referido em 1);
4) E absolvendo os Autores
do pedido reconvencional subsidiário deduzido pelo Réu BB
.
Custas por Apelante e Apelados – artºs 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº 6 e 663º, nº 2, todos do Código de Processo Civil – em partes iguais.
Coimbra, 29 de Abril de 2025
Com assinatura digital:
Anabela Marques Ferreira
José Avelino Gonçalves
Paulo Correia
[1]
Afigura-se-nos que, onde se diz al. e) se queria dizer al. g).
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TRC
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https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/75cd0e99e15a521d80258c9000307302?OpenDocument
|
1,739,404,800,000
|
APELAÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE
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5919/20.0T8BRG.G1
|
5919/20.0T8BRG.G1
|
ANTÓNIO BEÇA PEREIRA
|
I - No processo de inventário subsequente ao decretamento do divórcio não são relacionados os bens próprios de cada um dos cônjuges, mesmo que se encontrem na posse daquele que não é o seu proprietário, visto que ele tem normalmente por finalidade a partilha dos bens comuns do casal.
II - A Relação não pode, através de presunção judicial, deduzir dos factos provados um outro que a 1.ª instância julgou não provado.
III - A presunção de comunicabilidade estabelecida no artigo 1725.º do Código Civil pressupõe um cenário dúvida, isto é, uma concreta situação de facto em que não se consegue alcançar um patamar mínimo de certeza quanto à natureza própria ou comum do bem móvel. Nesse caso a dúvida é resolvida em favor do casal.
IV - Para que possa ter relevância no processo de inventário subsequente ao decretamento do divórcio, não basta que o cabeça-de-casal alegue que na pendência do casamento um dos cônjuges obteve determinado rendimento, que tem a natureza de bem comum do casal. É ainda necessário que alegue, e se necessário prove, que o respetivo valor ainda existia no momento definido no n.º 1 do artigo 1789.º do Código Civil.
|
[
"PROCESSO DE INVENTÁRIO PARA PARTILHA DE BENS COMUNS DO EX-CASAL",
"RELAÇÃO DE BENS",
"COMUNICABILIDADE",
"PATRIMÓNIO COMUM",
"DÍVIDA"
] |
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
I
AA instaurou o presente inventário, subsequente ao decretamento do divórcio, para a partilha dos bens comuns, que corre termos no Juízo de Família e Menores de Braga, no qual o requerido BB é cabeça-de-casal.
Após a apresentação da relação de bens, a requerente reclamou alegando a existência de 125 verbas de bens comuns e a inexistência da sua dívida para com o património comum que foi relacionada.
O cabeça-de-casal apresentou então nova relação de bens, em que reconheceu haver alguns bens comuns. Relacionou esses bens e uma dívida da "
requerente ao património comum
" proveniente do recebimento das "
rendas da ..., do Prédio em Propriedade Horizontal, sito na Rua ..., ..., ..., entre janeiro de 2005 e abril de 2016, no valor de € 41.627,47
".
A requerente tomou posição quanto a esta nova relação de bens continuando a afirmar que há mais bens comuns e mantendo que não existe a sua alegada dívida.
Após a produção de prova, o Meritíssimo Juiz proferiu a seguinte decisão:
"
Termos em que se decide julgar improcedente a reclamação de bens e determinar:
1. A remessa das partes para os meios comuns relativamente ao veículo ... matrícula ..-..-QV.
2. O valor de € 15.487,50 como o relativo à dívida da reclamante ao património comum a título de rendas.
3. Absolver o Cabeça-de-casal do demais peticionado.
"
Inconformada com esta decisão, dela a requerente interpôs recurso, findando a respetiva motivação com as seguintes conclusões:
1- Na sentença recorrida, além das verbas 1 a 16 que foram relacionadas como ativo pelo cabeça de casal a sentença recorrida entendeu que todos os bens que a aqui recorreu reclamou e que deviam fazer parte da relação de bens, não deverão ser relacionados.
2- Sendo certo que, o cabeça de casal reconhece que as verbas 126 a 148 da reclamação da requerente existem mas que pretensamente desconhece o seu paradeiro.
3- Logo estes bens deverão ser relacionados, já que, não ficou provado que a recorrente os levou aquando da separação de facto.
4- Também deverão ser relacionadas as verbas constantes da reclamação à relação de bens sob os números 1 a 15, 19, 21, 28 a 31, 33, 34, 35, 40, 42 a 46, 48 a 52, 55 a 67, 69, 86, 87, 95, 96, 97, 104 e 105 pois o requerido não provou que os mesmos são bens próprios do mesmo, pelo que, deveria a sentença recorrida ter feito uso da presunção de comunhão quanto aos bens móveis que terão que ser considerados como adquiridos na constância do matrimónio - cfr. art.º 1724.º, al. b) do C.Civil.
5- E o mesmo se diga quanto à questão das verbas 16 a 18, 20, 36, 37, 39, 99, 100 e 123 que não ficou provado que pertencessem a terceiros, pelo que, também aqui deveria a sentença recorrida ter feito uso da presunção de comunhão quanto aos bens móveis que terão que ser considerados como adquiridos na constância do matrimónio - cfr. art.º 1724.º, al. b) do C.Civil.
6- Entende assim a aqui Recorrente que a sentença recorrida violou o disposto art.º 1724.º, al. b) do C.Civil e no art.º 342.º do Código Civil.
7- Por outro lado, não se pode aceitar que as rendas recebidas pela aqui Recorrente nos anos de 2004 a 2015 devam ser considerados como frutos civis que deverão ser partilhados, referindo a sentença recorrida de forma completamente surpreendente e fazendo uso de uma jurisprudência nunca vista que a recorrente não provou que os mesmos terão sido gastos em proveito comum do casal.
8- Ora, o cabeça de casal, não provou que o valor das rendas existia à data do divórcio e fazendo eco do exposto na sentença quanto ás contas bancárias "para além do mais importa não olvidar o disposto no art. 1789.º, n.º 1, segunda parte segundo o qual os efeitos do divórcio produzem-se a partir do trânsito em julgado da respetiva sentença, mas retrotraem-se à data da proposição da ação quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges, in casu, 6.5.2016."
9- Em 06/05/2016 não está provado que existia a quantia de € 30.975,00 de rendas do imóvel que era bem próprio da aqui Recorrente, bem pelo contrário consta de forma clara que as contas do casal não possuíam qualquer saldo ou estavam encerradas em 06/05/2016.
10- Pelo que a sentença recorrida violou o art. 1789.º do Código Civil.
O requerido contra-alegou sustentando a improcedência do recurso.
As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635.º n.º 3 e 639.º n.
os
1 e 3 do Código de Processo Civil
[1]
, delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e, considerando a natureza jurídica da matéria versada, as questões a decidir consistem em saber se:
a) "
as verbas 126 a 148 da reclamação da requerente
(…)
deverão ser relacionadas
"
[2]
;
b) "
deverão ser relacionadas as verbas constantes da reclamação à relação de bens sob os números 1 a 15, 19, 21, 28 a 31, 33, 34, 35, 40, 42 a 46, 48 a 52, 55 a 67, 69, 86, 87, 95, 96, 97, 104 e 105
", bem como as "
verbas 16 a 18, 20, 36, 37, 39, 99, 100 e 123
"
[3]
;
c) existe uma dívida da "
requerente ao património comum
" proveniente do recebimento das "
rendas da ..., do Prédio em Propriedade Horizontal, sito na Rua ..., ..., ..., entre janeiro de 2005 e abril de 2016
".
II
1.º
Foram julgados
provados
os seguintes factos:
1. BB e AA casaram entre si no dia ../../2003 sem celebração de convenção antenupcial.
2. O casamento referido em 1. foi dissolvido por divórcio por mútuo consentimento decretado por sentença de 14 de julho de 2016, transitada em julgado a 30 de setembro de 2016 proferida pelo Tribunal da Comarca de Braga, ... Central-... Sec. ... J....
3. A petição inicial da ação de divórcio deu entrada em juízo a 6 de maio de 2016.
4. A conta bancária do Banco 1..., S.A. com o IBAN ...08 encontra-se encerrada desde ../../2015.
5. A conta bancária na Banco 2... sob o n.º ...00 apresentou saldo zero a partir de 13.4.2016.
6. A 23.12.2000 o cabeça-de-casal comprou um sistema Wi-Fi da marca ....
7. A 15.12.1998 o cabeça-de-casal comprou uma cadeira de secretária ..., preta.
8. O veículo marca ..., matrícula ..-MT-.. tinha, em 18.11.2021 a inscrição da sua propriedade registada a favor do cabeça-de-casal, desde ../../2012.
9. O veículo marca ..., matrícula ..-..-QV teve a sua propriedade registada a favor da EMP01..., SA desde ../../2004, a favor do Cabeça-de-casal desde ../../2013 até ../../2015 data em que a propriedade passou a estar registada a favor de CC.
10. O veículo da marca ..., matrícula ..-DE-.. teve a sua propriedade inscrita a favor da reclamante desde ../../2009 até ../../2017 data em que passou a estar registada a favor de EMP02..., S.A.
11. A casa que foi de morada de família de cabeça-de-casal e da reclamante teve as suas obras concluídas a 14.7.2002.
12. O Cabeça-de casal celebrou, enquanto comprador, a escritura de compra e venda do imóvel que viria a ser a casa de morada de família a 13.12.2002.
13. As consolas Wii e playstation foram oferecidas ao filho do Cabeça-de-casal e à filha deste e da reclamante.
14. As 2 pranchas de bodyboard foram oferecidas ao filho do Cabeça-de-casal e à filha deste e da reclamante.
15. A reclamante, a ../../2014, deu de arrendamento a fração autónoma designada pela letra ... correspondente ao ..., tipo T2, sita na Rua ..., ..., desde ../../2014, pela renda mensal de € 375,00.
16. A reclamante auferiu, a título de rendas relativamente à fração autónoma supra:
a. Em 2003, € 4.200,00;
b. Em 2004, € 4.200,00;
c. Em 2005, € 4.200,00;
d. Em 2006, € 4.200,00;
e. Em 2011, € 1.500,00;
f. Em 2012, € 4.500,00;
g. Em 2013, € 4.500,00;
h. Em 2014, € 3.375,00;
i. Em 2015, € 4.500,00.
*
E foram julgados
não provados
os seguintes factos:
17. As rendas recebidas pela reclamante, na constância do casamento, foram gastas em despesas comuns do casal.
Que tenham sido adquiridos, ao tempo do casamento:
18. 1 sofá cama de 3 lugares c/ chaise-longue/bombazine riscas dourado/preto.
19. 1 conjunto de cortinas (4) de aprox. 6m*2,5 m/ organza bege e laterais chenil branco.
20. 1 tapete retangular, feito à mão, bordado a azul c/motivos florais (aprox. 3*2.5m).
21. 1 mesa de jantar em madeira Sucupira (aprox. 2,10*1,5m) + 6 cadeiras costas forradas/tecido bege.
22. 1 "side-board" em madeira de Sucupira c/ 8 portas e gavetões embutidos (aprox. 3m*0,80m).
23. 1 armário alto retangular de apoio, c/2 portas, madeira de sucupira e fecho em latão dourado (aprox. 2*2,5m).
24. 1 candeeiro teto c/3 lâmpadas em oval/tecido bege (arquiteto "Sesasional").
25. 4 conjuntos de tolhas de mesa e guardanapos em linho natural foram oferecidos à reclamante.
26. Papel de parede vinil, rugoso/dourado velho (2 paredes-aprox. 2,5*5/2,5*2m).
27. 2 mesas de apoio c/tampo branco e pernas em alumínio no valor de € 50,00.
28. 1 banqueta c/pernas esculpidas em talha de madeira cerejeira escura, c/ almofada bombazine riscas douradas e pretas.
29. 1 passadeira de correr, preta (ginástica).
30. 2 Peças decorativas ..., em vidro e vidro fosco, feitas á mão, formato redondo (.../...).
31. 1 candeeiro mesa-jarra ... ("...") c/ abajur tecido às riscas bege.
32. 1 peça decorativa ... (bandeja de mesa "...").
33. 1 quadro c/moldura clássica em talha dourada, c/serigrafia de "DD" (preto e branco - aprox. 1*0,60cm).
34. 1 televisor plasma.
35. Leitor de DVDs.
36. Aparelhagem de música C/Suround (4 colunas) ....
37. 1 recuperador de calor para fogão de sala.
38. Objetos de apoio ao serviço de mesa (serviço de copos de mesa Atlantis - 12 pessoas; jarras para vinho Atlantis-5; decanter; serviços de café, entre outros).
39. 2 quadros de "EE", "o batizado de S. João Baptista", em óleo/acrílico sobre sarapilheira (aprox. 0,60/0,40).
40. 1 quadro de "EE", "paisagem", gesso e pastel (aprox. 0,60/0,40).
41. 1 serviço (faqueiro) prata completo (12 pessoas), "..." da ....
42. 3 estantes parede/madeira Tola c/Sucupira (aprox. 2,5*0,40).
43. 2 mesas trabalho em formato L/madeira de Tola c/Sucupira (aprox. 2,5*1,5*0,60).
44. 2 blocos de gavetas p/secretárias/madeira de Tola c/Sucupira.
45. 1 armário em madeira de Tola c/Sucupira (aprox. 2,5*3m), c/4 portas em madeira Tola c/Sucupira e 4 portas em vidro fosco.
46. 1 cadeira escritório preta.
47. Cortinas organza bege (aprox. 3,5m*2,5m).
48. 1 carpete sisal (aprox. 2,5*2,5).
49. Diversos Livros/CDs/DVDs (sala/escritório).
50. 1 computador ....
51. 1 impressora/scanner.
52. 1 computador portátil ... e 1 monitor ....
53. 1 ....
54. 1 Armário de apoio/sapateira, madeira tola, c/4 portas (aprox. 2,5*3m).
55. 1 vaso decorativo ... - "Vaso ...".
56. 1 quadro, moldura madeira bege c/serigrafia de FF (aprox. 0,60*0,40).
57. 1 mesa apoio em madeira, talha dourada c/tampo mármore bege.
58. 1 móvel lavatório em madeira escura/pia lavatório retangular e torneira.
59. 1 espelho (aprox. 1,5*1m) e toalheiros.
60. 1 cabeceira de cama de casal revestida a pele preta, c/estrado e sommier revestido a pele preta.
61. 1 colchão ortopédico casal.
62. 2 mesas de cabeceira madeira escura/2 gavetas.
63. 2 candeeiros de mesa, pés inox/abajur quadrado em seda lilás.
64. 1 candeeiro de teto quadrado, seda/lilás.
65. Cortinas chenil beije/riscas(3,5m/2,5m).
66. 1 espelho madeira, talha dourada (aprox. 1,5/0,50cm).
67. Conjunto de cama (édredon veludo bege/almofadas bege/vermelho/capa cama cinza).
68. Móvel parede em sucupira, c/portas em espelho (aprox. 1,5*1).
69. Móvel de madeira sucupira c/lavatório em mármore, c/porta veneziana.
70. Mesa extensível inox, c/tampo vidro fosco verde.
71. 4 cadeiras costas/plástico fosco verde (arquiteto "Sesacional").
72. 3 candeeiros teto vidro fosco a branco.
73. 1 exaustor extensível ....
74. 1 placa gás ....
75. 1 forno micro-ondas ....
76. 1 forno micro-ondas ....
77. 1 máquina lavar loiça encastrada ....
78. 1 frigorifico combinado ....
79. 1 máquina lavar roupa ....
80. Armário hidrófobo branco com tanque embutido.
81. Relógio parede.
82. 2 faqueiros ..., serviço copos, 2 serviços de mesa de jantar.
83. 1 Colchão (2.00 x 0.90m) sultan favang (colchão parte de baixo).
84. 1 cabeceira de cama de casal revestida a pele bege, c/estrado e sommier revestido a pele beije.
85. 1 Candeeiro de teto no valor de € 100,00.
86. Móvel de lavatório madeira sucupira c/mármore, de 2 pias e portas venezianas (aprox. 2m*0,5).
87. 1 espelho (aprox. 2m*1,5).
88. 2 jarras gémeas altas, em vidro, feitas á mão "...".
89. 1 bicicleta laranja rua "..." no valor de € 1500,00.
90. Cavalete e material de pintura.
91. Estantes em metal branco (4).
92. 2 Suportes para bicicleta para tejadilho carro marca ....
93. Roupas de casa (conjuntos lençóis .../toalhas .../edredons casal e solteiro/cobertores/almofadas decorativas, etc.).
94. Quadro de acrílico e óleo sobre cartão em moldura régua, madeira preta (aprox. 1m x 70cm).
95. Quadro de acrílico sobre tela em moldura madeira preta (aprox. 60cm X 40cm).
96. Quadro de acrílico e tinta da china sobre papel em moldura madeira branca (aprox. 50cm x 40cm).
97. Quadro de acrílico e óleo sobre cartão em moldura madeira preta (1m x 70cm).
98. Quadro de acrílico sobre tela c/moldura régua a madeira (aprox 1m x 70 cm).
99. Quadro série "..." -aguarela verde e caneta em moldura clássica dourada.
100. Quadro de acrílico sobre tela em moldura madeira bege (aprox. 80cm x 60cm).
101. Quadro de acrílico e óleo sobre cartão em moldura madeira preta e vermelha (aprox. 1m x 70cm).
102. Quadro de acrílico e óleo sobre tela c/moldura madeira clara (aprox. 80cm x 60cm).
103. Serigrafia "DD" a preto e branco com moldura em talha dourada (1m x 70cm).
104. Óleo sobre tela (aprox. 60cm x 40cm).
105. Óleo sobre tela (aprox. 1m x 70cm).
106. Óleo sobre tela C/moldura madeira branca (aprox. 80cm x 60cm).
107. 1 bicicleta rua preta de senhora, marca ...", alumínio preta, Low Entry.
108. 1 bicicleta rua, marca ...", alumínio cinzenta.
2.º
No inventário subsequente ao divórcio "
devem ser considerados os bens que sejam comuns no momento da propositura da ação matrimonial (arts. 1688.º e 1789.º, n.º 1, CC) ou, se estiver provada a separação de facto, no momento do início desta separação (art. 1789.º, n.º 2, CC).
"
[4]
Por isso, e como aliás faz todo o sentido, nesse inventário não são relacionados os bens próprios de cada cônjuge, mesmo que se encontram na posse daquele que não é o respetivo proprietário, visto que este inventário tem "
normalmente por finalidade a partilha dos bens comuns do casal
"
[5]
.
A requerente defende que "
as verbas 126 a 148 da
[sua]
reclamação
(…)
deverão ser relacionadas
".
Os bens descritos nestas verbas, como diz a requerente nos requerimentos de 19-9-2019 e de 16-3-2021, são bens próprios seus.
Sucede que os bens próprios de cada um dos cônjuges não têm lugar neste inventário, pois, como se disse, este visa a partilha dos bens comuns do casal. "
Os bens próprios de cada um pertencem ao respetivo cônjuge e neles não vai o outro quinhoar. Isto só por si basta para afastar a relacionação deles.
"
[6]
Se porventura o requerido tem consigo bens próprios da requerente e não os entrega voluntariamente, então esta terá de se socorrer de outro meio processual para fazer valer o seu direito de propriedade, dado que o processo de inventário não é adequado para tal fim.
Por conseguinte, as verbas 126 a 148 a que se refere a requerente não têm de ser aqui relacionadas.
3.º
A requerente também advoga que "
deverão ser relacionadas as verbas constantes da reclamação à relação de bens sob os números 1 a 15, 19, 21, 28 a 31, 33, 34, 35, 40, 42 a 46, 48 a 52, 55 a 67, 69, 86, 87, 95, 96, 97, 104 e 105
", bem como as "
verbas 16 a 18, 20, 36, 37, 39, 99, 100 e 123
".
Importa começar por sublinhar que no presente recurso a requerente não impugnou a decisão da matéria de facto; isto é, conformou-se com o juízo de provado e de não provado que o tribunal
a quo
formulou quanto aos diversos factos que julgou.
Na perspetiva da requerente, as verbas 1 a 15, 19, 21, 28 a 31, 33, 34, 35, 40, 42 a 46, 48 a 52, 55 a 67, 69, 86, 87, 95, 96, 97, 104 e 105 constantes da sua reclamação devem ser relacionadas por que "
o requerido não provou que os mesmos são bens próprios do mesmo, pelo que, deveria a sentença recorrida ter feito uso da presunção de comunhão quanto aos bens móveis que terão que ser considerados como adquiridos na constância do matrimónio - cfr. art.º 1724.º, al. b) do C.Civil.
" E as verbas 16 a 18, 20, 36, 37, 39, 99, 100 e 123 deviam igualmente ser relacionas por que "
não ficou provado que pertencessem a terceiros, pelo que, também aqui deveria a sentença recorrida ter feito uso da presunção de comunhão quanto aos bens móveis que terão que ser considerados como adquiridos na constância do matrimónio - cfr. art.º 1724.º, al. b) do C.Civil.
"
Em primeiro lugar, o ónus da prova não é do requerido; ou seja, alegando a requerente que determinados bens são comuns do casal, cabe-lhe a si o ónus da prova de factos dos quais se possa depois extrair essa conclusão; conforme dispõe o n.º 1 do artigo 342.º do Código Civil, "
àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado
". Por isso, o requerido não tem de provar que os bens são só seus ou que pertencem a outra pessoa
[7]
. E a não prova de que tais bens são bens próprios do requerido ou de terceiro não implica, sem mais, que então eles têm a natureza de bens comuns do casal. Para o requerido basta que a requerente não prove factos de que resulte que o bem é comum.
Em segundo lugar, o tribunal
a quo
julgou não provado que esses bens "
tenham sido adquiridos, ao tempo do casamento
". E a requerente conformou-se com esse juízo de não provado.
Ora, a Relação não pode, através de presunção judicial, deduzir dos factos provados um outro que a 1.ª instância julgou não provado. Com efeito, "
quesitado um facto
(…)
a que a 1.ª instância deu resposta negativa, não pode esse facto vir a ser considerado assente mediante presunção judicial. Permitir que a Relação considere provado por inferência um facto que a 1.ª instância deu como não provado após o funcionamento do princípio da imediação e do contraditório da prova direta constitui clara e ostensiva violação do disposto no art. 712.º do
[anterior]
Código de Processo Civil
[a que corresponde o atual artigo 662.º]
.
"
[8]
Assim, tendo o tribunal
a quo
julgado não provado que estes bens "
tenham sido adquiridos, ao tempo do casamento
", não se pode agora querer extrair dos factos provados que foi nesse período que se deu a aquisição dos mesmos. A não ser assim estar-se-ia a contornar esta resposta de não provado, modificando-se, de uma forma não prevista no artigo 662.º, a decisão da 1.ª instância relativa a tal matéria de facto.
Em terceiro lugar, a requerente, estranhamente, nos requerimentos de 19-9-2019 e de 16-3-2021 limitou-se a dizer, de forma manifestamente conclusiva, que determinados bens que aí identifica são bens comuns. Não alegou um único facto que, uma vez provado, à luz das regras consagradas no Código Civil, como é o caso do artigo 1724.º, nos pudesse conduzir à conclusão de que se trata de bens comuns do casal. A requerente não alegou nomeadamente a data da aquisição desses bens.
Em quarto lugar, a presunção legal do artigo 1725.º do Código Civil só funciona perante uma situação de dúvida
[9]
; ou seja, é necessário que nos defrontemos com um concreto cenário em que não se consegue alcançar uma certeza. Numa situação de incerteza a dúvida é, então, resolvida em favor do casal e não de um dos cônjuges. No nosso caso, olhando para os factos provados nada se provou que nos coloque perante a dúvida que a presunção do artigo 1725.º do Código Civil resolve. Veja-se, por exemplo, que não se provou, e isso nem sequer foi alegado pela requerente, que os bens em apreço constituíam o recheio da casa onde vivia o casal e que esse recheio foi sendo comprado na pendência do casamento.
Aqui chegados, conclui-se que não há fundamento para relacionar os bens mencionados nas conclusões 4.ª e 5.ª.
4.º
A requerente sustenta que não existe a sua dívida "
ao património comum
", relacionada pelo (requerido) cabeça-de-casal, que este diz ser proveniente do recebimento das "
rendas da ..., do Prédio em Propriedade Horizontal, sito na Rua ..., ..., ..., entre janeiro de 2005 e abril de 2016
".
O n.º 1 do artigo 1789.º do Código Civil faz retroagir os efeitos do divórcio "
à data da proposição da ação quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges
", o que no nosso caso é o dia 6-5-2016. Com esta "
retroação - que significa que a composição da comunhão se deve considerar fixada no dia da proposição da ação e não no dia do trânsito em julgado da decisão e que a partilha dever ser feita como se a comunhão tivesse sido dissolvida no dia da instauração da ação ou na data em que cessou a coabitação - quer-se evitar o prejuízo de um dos cônjuges pelos atos de insensatez, prodigalidade ou de pura vingança que o outro venha a praticar desde a propositura da ação sobre valores do património comum.
"
[10]
Deste modo, para efeitos de partilha serão considerados os bens comuns existentes naquela ocasião.
O requerido, nas suas vestes de cabeça-de-casal, ao relacionar a "
dívida da Requerente ao património comum
" afirma unicamente que ela é "
proveniente da perceção de rendas - que se situavam entre € 350,00 e os € 450,00 - durante 16 anos, relativas a um imóvel bem próprio da mesma sito na Rua ..., ... ..., as quais consubstanciam um bem comum (ex vi art. 1728.º n.º 1 C. Civil)
".
Significa isso que o requerido apenas diz que durante esses anos a requerente recebeu rendas resultantes do arrendamento deste seu imóvel, facto que esta não nega. A requerente contrapõe afirmando, em primeira linha, que as "
rendas recebidas na constância do casamento foram gastas em despesas comuns do casal
", o que não se provou. E acrescenta que "
se o cabeça-de-casal entende que existe esse crédito
(…)
teria que indicar aonde está esse crédito
", ou seja, que lhe cabia alegar que o capital com essa origem ainda existia à data da propositura da ação de divórcio.
Efetivamente assim é. Não basta ao cabeça-de-casal alegar que na pendência do casamento um dos cônjuges obteve certo rendimento que tem a natureza de bem comum do casal, pois é preciso que o respetivo valor ainda exista no momento definido no n.º 1 do citado artigo 1789.º. A não ser assim, como sublinha a requerente, também tinha de se relacionar a totalidade dos salários de ambos os cônjuges obtidos ao longo do casamento, pois este rendimento é igualmente um bem comum do casal
[11]
.
Quer isso dizer, que não é suficiente a alegação de que a requerente foi recebendo ao logo do tempo aquelas rendas. O cabeça-de-casal tinha ainda de alegar e sendo essa matéria impugnada, como foi, provar que o capital assim reunido ainda existia quando foi desencadeado o processo de divórcio. E aqui o ónus da alegação e da prova é do cabeça-de-casal; não cabia à requerente o ónus de provar que tais proventos já não existiam nesse momento, ou que, como ela alegou, tinham sido gastos "
em despesas comuns do casal
".
Ora, isso não foi alegado nem provado. O facto 16 é insuficiente para dele se poder concluir, como concluiu o tribunal
a quo
, que a requerente tem uma dívida "
ao património comum
" de 15.487,50 €.
Se o requerido entende que, por alguma outra razão, lhe assiste um direito relacionado com os proventos assim obtidos pela requerente, nomeadamente fundado no artigo 1681.º do Código Civil, então terá de se socorrer de outro meio processual.
III
Com fundamento no atrás exposto julga-se parcialmente procedente o recurso e:
a) revoga-se a decisão recorrida no segmento em que determinou que fosse relacionado "
o valor de € 15.487,50 como o relativo à dívida da reclamante ao património comum a título de rendas
";
b) mantém-se no mais a decisão recorrida.
Custas pela requerente e pelo requerido, na proporção de ½ para cada um.
Notifique.
António Beça Pereira
Carla Oliveira
Alcides Rodrigues
[1]
São deste código todos os artigos mencionados adiante sem qualquer outra referência.
[2]
Cfr. conclusões 2.ª e 3.ª.
[3]
Cfr. conclusões 4.ª e 5.ª.
[4]
Teixeira de Sousa, Lopes do Rego, Abrantes Geraldes e Pinheiro Torres, O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, eBook 2020, Pág. 158.
[5]
Teixeira de Sousa, Lopes do Rego, Abrantes Geraldes e Pinheiro Torres, O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, eBook 2020, Pág. 156.
[6]
Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, Vol. III, 4.ª Edição, pág. 369.
[7]
Ao dizer que certo bem é seu ou que é de um terceiro, o requerido está a deduzir uma impugnação indireta ou motivada.
[8]
Calvão da Silva, RLJ, Ano 135.º, pág. 127, em anotação ao acórdão do STJ de 25-3-2004 no Proc. 03B4354. Neste sentido veja-se Ac. do STJ de 24-5-2007 no Proc. 07A979, Ac. STJ de 11-11-2008 no Proc. 08A3322, Ac. STJ de 1-4-2009 no Proc. 0853254, Ac. STJ de 7-1-2010 no Proc. 5175/03.4TBAVR, Ac. STJ de 14-1-2010 no Proc. 2537/03.0TBOVR, Ac. STJ de 29-4-2010 no Proc. 792/02.2YRPRT, Ac. STJ de 14-01-2010 no Proc. 2537/03.0TBOVR, Ac. STJ de 6-5-2010 no Proc. 2148/05.6TBLLE.E1.S1, Ac. STJ de 7-7-2010 no Proc. 2273/03.8TBFL.G e Ac. Rel. Porto de 24-1-2018 no Proc. 1070/16.5T8AVR.P1, www.gde.mj.pt.
[9]
Neste sentido veja-se Ac. Rel. Guimarães de 16-11-2023 no Proc. 613/20.4T8BCL.G1 e Ac. Rel. Coimbra de 15-10-2019 no Proc. 680/17.8T8GRD.C1, www.dgsi.pt.
[10]
Ac. Rel. Porto de 16-3-2010 no Proc. 3275/06.8TBPVZ.P1, www.dgsi.pt.
[11]
Cfr. artigo 1724.º a) do Código Civil.
|
TRG
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https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/dd892cd10684a69b80258c3600343f72?OpenDocument
|
1,749,081,600,000
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PROVIDO
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51/22.4SRLSB.L1-5
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51/22.4SRLSB.L1-5
|
PAULO BARRETO
|
I - Do auto de notícia da PSP e, bem assim, do resultado do exame toxicológico, de onde consta a data da recolha, a data dos factos é ........2022 e não ........2023, como se descreve no facto 1.
II - O tribunal a quo motivou a sua convicção (que os factos ocorreram em ........2023) em documentos que dizem que o crime foi cometido em ........2022. Esta motivação consta do texto da decisão recorrida. É erro notório na apreciação da prova.
III - Em ........2022, como resulta do certificado do registo criminal, o recorrente não tinha qualquer antecedente criminal.
IV - O “especialmente” da alínea e), do n.º 2, do art.º 71.º, do Código Penal, só pode ser entendido como aplicação só nestes casos. É uma regra especial. Na fixação da pena o que interessa é o momento da prática do facto, por isso é que o legislador sentiu a obrigação de utilizar o advérbio “especialmente” para a conduta posterior, a aplicar apenas quando o arguido contribuiu para a reparação das consequências do crime. Já na suspensão da execução da pena, o que releva é o momento da decisão, daí a consideração por condenações posteriores.
V - Ponderar as condenações posteriores para a determinação da medida da pena acessória seria uma flagrante violação (i) do princípio da igualdade, (ii) do direito a um processo equitativo e (iii), por conduzir a uma indeterminação na pena acessória, da segurança e certeza jurídicas.
VI - No caso concreto, sem antecedentes criminais, sem necessidade demonstrada da carta de condução para o exercício da sua profissão, com confissão integral e sem reservas e com uma taxa de 2,01, a proibição de conduzir veículos com motor deve ser de 5 meses.
|
[
"ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA",
"CERTIFICADO DO REGISTO CRIMINAL",
"CIRCUNSTÂNCIAS POSTERIORES",
"CONDUÇÃO DE VEÍCULO EM ESTADO DE EMBRIAGUEZ",
"PENA ACESSÓRIA",
"ROIBIÇÃO DE CONDUZIR VEÍCULOS COM MOTOR"
] |
Acordam na Secção Criminal (5ª) do Tribunal da Relação de Lisboa:
I – Relatório
AA foi condenado no Juiz 4, do Juízo Local Criminal de Sintra, Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, como autor material e na forma consumada, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292º, nº 1, do Código Penal, na pena de 110 (cento e dez) dias de multa, à razão diária de € 6 (seis) euros, o que perfaz a quantia total de € 660 (seiscentos e sessenta euros) ou, subsidiariamente, nos termos do disposto no artigo 49º, do C. Penal, em 73 dias de prisão. Mais foi condenado na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período que se fixa em 10 (dez) meses, nos termos do disposto no artigo 69º, do Código Penal, devendo o arguido, no prazo de 10 dias, após o trânsito da sentença, entregar a sua carta de condução neste Tribunal, de molde a cumprir a pena acessória aqui aplicada, com a cominação de, não o fazendo, lhe ser a mesma apreendida e de incorrer na prática de um crime de desobediência.
*
Inconformado, o arguido interpôs recurso da sentença, formulando as seguintes conclusões:
“ I. Versa o presente recurso sobre matéria de facto e de direito por discordar o recorrente da decisão proferida nos presentes autos, nos termos da qual foi o arguido AA condenado em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292º, nº 1, do Código Penal, na pena de 110 (cento e dez) dias de multa, à razão diária de € 6 (seis euros), o que perfaz a quantia de € 660 (seiscentos e sessenta euros) ou, subsidiariamente, nos termos do disposto no artigo 49º, do C. Penal, em 73 dias de prisão. Mais, é o arguido condenado na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período que se fixa em 10 (dez) meses, nos termos do disposto no artigo 69º, do Código Penal.
II. Entende o ora recorrente, há erro notório na apreciação da prova quando se dão factos como provados que, face às regras da experiência comum e à lógica normal da vida, não se poderiam ter verificado ou são contraditados por documentos que fazem prova plena e que não tenham sido arguidos de falsidade.
III. In Casu, deu o douto Tribunal a quo como provado no ponto 1 que “No dia .../.../2023, pelas 18:20 horas o arguido, AA, conduzia a viatura ligeiro de passageiros…”
IV. Ora, conforme consta do auto de notícia junto aos autos a fls., bem como do Relatório final do exame químico toxicológico - fls. 4; e da Participação do acidente de viação - fls. 5 a 9, pode constatar-se que a data da ocorrência terá sido no ano 2022, mais precisamente no dia .../.../2022 e não no dia .../.../2023, conforme por lapso consta da douta acusação e posteriormente, veio a ser integrada no ponto 1 dos factos provados.
V. O recorrente há data dos factos, ou seja, em .../.../2022, era primário!
VI. O Tribunal a quo, considerou ainda como razão agravante na concretização da medida da pena que: Ainda como circunstância agravante, há que ter em atenção que muito pouco tempo depois de transitar a sentença que o condenou pela prática do mesmo tipo de crime dos autos, cerca de 3 meses depois, voltou a praticá-lo.
VII. Ao contrário do referido na douta sentença, o requerido não praticou factos após trânsito em julgado desta sentença, como aliás se pode comprovar pelo Registo Criminal junto aos autos, onde existe apenas esta condenação averbada.
VIII. Considera ainda o recorrente que, na douta sentença proferida, e com relevância para a condenação de que ora se recorre, foi incorretamente julgado, e por isso indevidamente dado como provado, correspondente ao início do ponto 1 da matéria de facto provada, que expressamente se impugna: “No dia .../.../2023, …”
IX. Donde que, e em face dos elementos de prova referidos em IV), e salvo o devido respeito por opinião contrária, a matéria de facto ser alterada nesta parte, por assim o imporem os elementos de provas acima identificados, alterando-se o facto descrito no ponto 1 da matéria de facto provada nos seguintes termos: “No dia .../.../2022, pelas 18:20 horas o arguido, AA…”
X. Pelos motivos atrás invocados, considera este que a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período que se fixou em 10 (dez) meses, excessiva, e desproporcional, considerando as circunstâncias do caso concreto.
XI. Ora in casu, o recorrente era primário à data da prática dos factos uma vez que os mesmo ocorreram em .../.../2022 e não, em .../.../2023 conforme consta dos documentos juntos aos autos já identificados.
XII. Desta feita, os motivos que tiveram subjacentes ao agravamento da pena principal e acessória não ocorreram da forma como se encontram descritos conforme se provou anteriormente, nomeadamente que o mesmo era primário!
XIII. Acresce por fim ao descrito que o Recorrente confessou integralmente e sem reservas o crime pelo qual vinha acusado e encontra-se inserido social, familiar e profissionalmente.”
O Ministério Público veio responder, concluindo do seguinte modo:
“A. A sentença recorrida padece do vício de erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal, porquanto, decorre da prova documental junta aos autos que os factos em causa ocorreram em ...-...-2022e não em ...-...-2023, como consta do ponto 1 da matéria de facto provada.
B. A mencionada data decorre quer do auto de notícia e participação de acidente de viação, ambos elaborados pela P.S.P., quer do resultado do exame toxicológico onde se mencionada a data da colheita de sangue. Em todos os documentos a data presente é ...-...-2022.
C. Como tal, há data da prática dos factos o arguido não tinha averbada qualquer condenação no seu Certificado de Registo Criminal, pelo que, assiste razão ao recorrente.
D. A determinação da medida concreta da pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados deve obedecer aos critérios estabelecidos no artigo 71.º, do Código Penal;
E. A condenação na pena acessória de proibição veículos com motor pelo período de 10 (dez) meses mostra-se, assim, excessiva, desproporcional e desadequada.
F. Considerando os critérios que subjazem à determinação da medida da pena acessória, contidos nos artigos 71.º do Código Penal, e ponderando a matéria de facto provada, os bens jurídicos violados, a gravidade do ilícito e a moldura penal que lhe é abstractamente aplicável pela pena acessória, a TAS que o arguido trazia (2,01 g/l.) , a medida da culpa e as necessidades de reprovação e de prevenção de futuros crimes - cada vez mais prementes - deveria o arguido ter sido condenado na pena acessória de proibição de condução de veículos com motor por período não inferior a 5 (cinco) meses.”
*
O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo.
Uma vez remetido a este Tribunal, a Exmª Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do CPP:
Proferido despacho liminar e colhidos os “vistos”, teve lugar a conferência.
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II - A) Factos Provados
1. No dia .../.../2023, pelas 18:20 horas o arguido, AA, conduzia a viatura ligeiro de passageiros, com a matrícula ..-ZI-.., no ..., em ..., com uma taxa de álcool no sangue (TAS) de 2,01+-0,26 g/L, tendo sido interveniente em acidente de viação.
2. O arguido sabia que tinha ingerido bebidas alcoólicas, em quantidades suficientes para determinar uma taxa de álcool no sangue superior a 1,20g/l e que por essa razão não podia conduzir veículos automóveis em via pública ou equiparada, porém não obstante esse conhecimento não se coibiu de o fazer, o que representou, quis e conseguiu.
3. O arguido actuou sempre de forma livre, voluntária e consciente, querendo agir como agiu, sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal, tendo capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento.
4. O arguido confessou, de forma integral e sem reservas, os factos.
5. O arguido tem antecedentes criminais registados conforme CRC, actualizado, de fls. 57 e 58, dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, tendo sido julgado e condenado, por factos datados de 18/08/2022 e sentença transitada em julgado em 14/02/2023, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 60 dias de multa e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, fixada em 3 meses, penas declaradas extintas por cumpridas.
6. O teor do Relatório Social do arguido, de fls. 52 a 55, dos autos, elaborado pela DGRSP, que aqui se dá por integralmente reproduzido e que apresenta como conclusão que: Do exposto, parece tratar-se de um indivíduo que dispõe de enquadramento familiar estruturado, mantendo-se integrado no agregado da companheira, numa dinâmica relacional normativa e de laços afetivos coesos. As relações familiares e com a comunidade em geral, parecem expressar-se segundo padrões de comportamentos socialmente adaptados, o que consideramos como um fator positivo e de estabilidade pessoal do arguido. Apresenta hábitos de trabalho o que lhe tem permitido manter uma situação financeira estável e suficiente para fazer face aos seus encargos familiares, embora tenha por regularizar um montante pecuniário, ao estado português. Os processos judiciais anteriores e os pendentes, apresentam-se como vulnerabilidades na vivência do arguido. No entanto, a mudança de hábitos no que concerne ao consumo etílico avalia-se como um fator positivo e um sinal de mudança pessoal”
7. O arguido é divorciado; reside com a sua companheira que trabalha; não tem filhos a seu cargo.
8. O arguido é … auferindo, em média e mensalmente, o ordenado mínimo nacional.
9. O arguido tem, como habilitações literárias, o 9º ano.
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III – Objecto do recurso
De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (
in
D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso, designadamente a verificação da existência dos vícios indicados no nº 2 do art.º 410º do Cód. Proc. Penal.
Fundamentos do recurso: (i) erro notório na apreciação da prova; (ii) impugnação ampla da matéria de facto; (iii) medida da pena acessória.
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IV – Fundamentação
“Do erro notório na apreciação da prova”
O erro notório é o erro que se vê logo - Conselheiro Sérgio Poças, Revista Julgar n.º 10, de 2010, pg. 29.
Está em causa o facto provado n.º 1: “No dia .../.../2023, pelas 18:20 horas o arguido, AA, conduzia a viatura ligeiro de passageiros, com a matrícula ..-ZI-.., no ..., em ..., com uma taxa de álcool no sangue (TAS) de 2,01+-0,26 g/L, tendo sido interveniente em acidente de viação.”
Tem razão o recorrente.
Do auto de notícia da PSP e, bem assim, do resultado do exame toxicológico, de onde consta a data da recolha, a data dos factos é
........2022
e não ........2023, como se descreve no facto 1.
Da fundamentação da matéria de facto consta: "Assim, foram considerados os documentos relevantes: (...) Relatório final do exame químico toxicológico – fls. 4; e - Participação do acidente de viação – fls. 5 a 9".
Assim, o tribunal a quo motivou a sua convicção (que os factos ocorreram em ........2023) em documentos que dizem que o crime foi cometido em ........2022. Esta motivação consta do texto da decisão recorrida. É erro notório na apreciação da prova.
Terá sido lapso de escrita, mas não deixa de constituir constitui um erro notório na apreciação da prova.
Todavia, embora verificado o vício do art.º 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, é possível decidir da causa (art.º 426.º, n.º 1), corrigindo-o.
Nesta medida, face ao auto de notícia da PSP e ao exame toxicológico, altera-se o facto provado 1., passando a ter a seguinte redacção:
“No dia .../.../2022, pelas 18:20 horas o arguido, AA, conduzia a viatura ligeiro de passageiros, com a matrícula ..-ZI-.., no ..., em ..., com uma taxa de álcool no sangue (TAS) de 2,01+-0,26 g/L, tendo sido interveniente em acidente de viação.”
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(da impugnação ampla da matéria de facto)
Mostrando-se corrigida a data no facto provado 1., com fundamento em erro notório na apreciação da prova, este segmento do recurso fica prejudicado, tendo em conta que igualmente visava a data aposta no facto provado 1.
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(da medida da pena acessória)
Importa, desde logo, notar que, embora na conclusão XII haja uma breve referência ao agravamento da pena principal, certo é que do objecto do recurso consta apenas a medida da pena acessória (cfr. ponto VII da motivação do recurso).
O Tribunal a quo fundamentou, do seguinte modo, a medida da pena acessória:
“Mais, será, ainda, o arguido condenado na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, nos termos do artigo 69º, do C. Penal, em que sendo ponderadas as mesmas e exactas circunstâncias atenuantes e agravantes, supra referidas, quanto à fixação da pena principal, será fixada pelo período de 10 (dez) meses, por se mostrar pena acessória necessária, suficiente e bastante para o afastar da prática de crimes da mesma natureza.”
Ora, as circunstâncias agravantes que o tribunal a quo ponderou são:
“Ainda, como circunstâncias agravantes da sua conduta cumpre considerar que possui antecedentes criminais registados pela prática do mesmo tipo de crime, porquanto resultou provado que foi julgado e condenado, por factos datados de 18/08/2022 e sentença transitada em julgado em 14/02/2023, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 60 dias de multa e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, fixada em 3 meses, penas declaradas extintas por cumpridas.”
É evidente que, com a alteração da data, todo este raciocínio cai por terra.
Em ........2022, como resulta do certificado do registo criminal, o recorrente não tinha qualquer antecedente criminal.
A conduta posterior só deve ser especialmente ponderada quando seja destinada a reparar as consequências do crime (artigo 71.º, n.º 2, al. e), do Código Penal).
O "especialmente" da alínea e) só pode ser entendido como aplicação só nestes casos. É uma regra especial. Na fixação da pena o que interessa é o momento da prática do facto, por isso é que o legislador sentiu a obrigação de utilizar o advérbio "especialmente" para a conduta posterior, a aplicar apenas quando o arguido contribuiu para a reparação das consequências do crime. Já na suspensão da execução da pena, o que releva é o momento da decisão, daí a consideração por condenações posteriores.
Ponderar as condenações posteriores para a medida da pena seria uma flagrante violação do princípio da igualdade do 13.º da Constituição. Todas as pessoas, com álcool, são julgadas em processo sumário, dias depois do crime. Este arguido, sem culpa alguma (o MP mandou investigar o acidente), foi condenado mais de um ano depois, com a pena aumentada por crimes cometidos depois dos factos, o que nunca ocorre com a generalidade dos agentes deste crime.
Dizer ainda que julgar o arguido muito tempo depois dos factos, e, por via disso, aumentar a pena acessória por condenações posteriores aos factos, seria uma grosseira violação do processo equitativo consagrado no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição. Gomes Canotilho e Vital Moreira (CRP Anotada, 4.ª ed. Revista e actualizada, p. 415) assinalam que “o direito de acção ou o direito de agir em juízo terá de efectivar-se através de um processo equitativo; …o
due process
positivado na Constituição portuguesa deve entender-se num sentido amplo, não só como um processo justo na sua conformação legislativa, mas também como um processo materialmente informado pelos princípios materiais da justiça nos vários momentos processuais; (…) um dos princípios do processo equitativo é o direito à igualdade de armas ou direito à igualdade de posições no processo, com proibição de todas as discriminações ou diferenças de tratamento arbitrárias”.
Finalmente, uma tal ponderação conduziria a uma indeterminação na pena acessória, que afectaria a segurança e certeza jurídicas, que impõem, enquanto realização e efectivação do princípio do Estado de Direito, no quadro constitucional, “que seja assegurado um certo grau de calculabilidade e previsibilidade dos cidadãos sobre as suas situações jurídicas, ou seja, que se mostre garantida a confiança na actuação dos entes públicos (…) o princípio da protecção da confiança e segurança jurídica pressupõe um mínimo de previsibilidade em relação aos actos do poder, de molde a que a cada pessoa seja garantida e assegurada a continuidade das relações em que intervém e dos efeitos jurídicos dos actos que pratica” – Acórdão do STJ de 25.09.2013, processo n.º 286/11.5JAFAR.SL, relatado pelo Conselheiro Santos Costa.
Vejamos então a pena acessória a fixar (sem ponderar subsequentes criminais).
Sendo uma verdadeira pena, há que ter como limiar mínimo a expectativa comunitária na validade (e reforço) das normas penais violadas. É a protecção dos bens jurídicos, a prevenção geral positiva. Não obstante, a culpa, assente num juízo de censura sobre a conduta do arguido reflectida no facto criminoso praticado, tem que estar sempre presente, seja como limite máximo, seja como fundamento (para além de não haver pena sem culpa, as normas constitucionais penais, como é o caso do art.º 18.º, n.º 2, da CRP, exigem que a medida concreta não possa, em caso algum, ultrapassar a culpa). E, finalmente, o pendor da pena, mais acima ou mais abaixo, está na denominada prevenção especial positiva, na reintegração do agente (que não tem tanto a ver com as suas relações sociais, se tem família ou amigos, mas sobretudo se é expectável que seja um cidadão fiel ao direito). Se são mínimas as exigências de prevenção especial, a medida da pena baixa; sobe quando são maiores tais exigências.
Ora, consta do RASI de 2024 (último publicado): o crime de condução com taxa de álcool igual ou superior a 1,2 g/l representa 48,2% dos crimes contra a sociedade (p. 60 dos Anexos), o que eleva as exigências de prevenção geral positiva, centrada nas expectativas da comunidade na validade e reforço da norma violada.
O juízo de censura (a culpa) devido à actuação dolosa do arguido é igualmente acentuado. Há uma vontade clara e deliberada em conduzir em estado de embriaguez. E a taxa de álcool é quatro vezes superior ao máximo legal. Provoca estado de euforia, diminuição da acuidade visual e da percepção das distâncias às bermas e aos outros veículos, retarda o tempo de reacção aos obstáculos normais da circulação. Esta alteração da capacidade neuromotora do condutor afecta o seu nível de concentração e aumenta exponencialmente os riscos próprios da condução de veículos automóveis. O arguido sabe-o.
Quanto à prevenção especial, à data não tinha antecedentes criminais. E é de destacar a confissão integral e sem reservas.
Vejamos os últimos acórdãos que relatamos sobre a medida da sanção acessória de inibição de conduzir.
- no processo nº 525/21.4PKLRS.L1, acórdão de 17.05.2022, a taxa de álcool era de 1,812 g/l, com duas condenações anteriores pelo crime de condução sob o efeito do álcool, condutor da ..., a inibição foi de 6 meses;
- no processo nº 307/21.3PCAMD.L1, acórdão de 21.12.2021, com a taxa de álcool de 1,435 g/l, com oito condenações anteriores pela prática de crime de condução sob o efeito do álcool, a inibição foi de 18 meses;
- no processo nº 279/21.4PZLSB.L1, acórdão de 06.07.2021, com a taxa de álcool de 1,477 g/l, sem antecedentes criminais neste tipo de crime, a inibição foi pelo período de 4 meses;
- no processo n.º 625/19.0PATVD.L1, acórdão de 09.03.2021, com a taxa de álcool de 1,90 g/l, sem antecedentes criminais, conduzia o pai a tratamentos oncológicos, a inibição foi de 5 meses; e
- no processo n.º 61/17.3PAMTJ.L1, acórdão de 17.11.2020, com a taxa de álcool de 1,397 g/l, sem antecedentes criminais, a inibição foi de 3 meses e 15 dias.
Do exposto se conclui que a nossa jurisprudência tem sido, grosso modo, a seguinte: (i) com taxa entre 1,34 a 1,477, sem antecedentes criminais, o período de inibição situa-se entre 3 a 4 meses; (ii) com taxa de álcool de 1,90 g/l, sem antecedentes criminais, a inibição foi de 5 meses; (iii) com taxa de álcool de 1,812, com duas condenações anteriores pelo crime de condução sob o efeito do álcool, condutor da ..., a inibição foi de 6 meses; e (iv) com a taxa de 1,435, com oito condenações anteriores pela prática de crime de condução sob o efeito do álcool, a inibição foi de 18 meses.
Por conseguinte, os dois factores importantes são a taxa de álcool e os antecedentes criminais. Nos casos sem antecedentes criminais, como sucede no presente, com uma taxa até 1,4, o período de inibição anda perto dos mínimos, indo até aos 4 meses. Quanto a taxa de álcool sobe para 1,90, o período de inibição sobe para 5 meses.
Ora, no caso concreto, sem antecedentes criminais, sem necessidade demonstrada da carta de condução para o exercício da sua profissão, com confissão integral e sem reservas e com uma taxa de 2,01 (perto de 1,90), em coerência com o exposto, a inibição não pode ser inferior a 5 meses.
É justa, adequada e conforme com a apreciação deste tribunal ad quem, a sanção acessória de proibição de condução de veículos motorizados de 5 meses.
Procede o recurso do arguido.
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V – Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em conceder provimento ao recurso, e, em sequência, condenar o arguido AA na pena acessória de proibição de conduzir de veículos motorizados pelo período de 5 (cinco) meses, nos termos do artigo 69º, número 1 alínea a) do Código Penal.
Sem custas.
Lisboa, 06 de Maio de 2025
Paulo Barreto
Ana Cristina Cardoso
Manuel Advínculo Sequeira (vota vencido, nos termos da declaração que segue)
Voto vencido
“Concordando com a decisão de alteração factual (primeira questão a resolver) igualmente aceitaria sem particular objecção a descida da medida concreta da pena acessória aplicada e pelo motivo que a fundamenta.
Mas, por outro lado, a pena acessória fixada não é manifestamente desproporcional, pois a condenação posterior não pode ser ignorada, já que a conduta posterior tem, nos termos da lei penal e no que a agravantes respeita, peso semelhante à anterior.
Assim, impor-se-ia como mais ajustada ao caso uma pena acessória de duração entre 7 e 10 meses.
A posição que fez vencimento consigna que “a conduta posterior só deve ser especialmente ponderada quando seja destinada a reparar as consequências do crime (artigo 71.º, n.º 2, al. e), do Código Penal).”
Ora, naquela sede e preceito, a lei literalmente ordena que se pese quanto à questão a "conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime."
Debalde ali se procurará aquele “só deve ser ponderada”, diferença que não é fruto do acaso, impondo, ao invés, a consideração da conduta posterior em paralelo com a anterior e esta especialmente se tiver em vista a reparação.
Especial e não exclusivamente. E apenas este, ou, como se vê, outro vocábulo equivalente, suportaria a interpretação sufragada. Por isso não veda (nem se topa porque o faria) a ponderação do facto para o efeito. Não terá à partida o mesmo peso que um antecedente criminal, concorda-se, mas não é facto a ignorar, pois é clara agravante, ademais legalmente e expressamente prevista.
Repare-se ainda que a lei não só não diferencia o peso de cada uma das condutas (anterior e posterior) como as não limita ao registo criminal do agente, ali cabendo todas as circunstâncias atinentes à personalidade daquele.
No caso, com tanto mais peso quando revela a prática de idêntico crime em curto espaço de tempo (que, no limite, fundaria a manutenção do julgado, atendendo também à circunstância de na ocasião ter sido o arguido interveniente em acidente de viação e sem esquecer ainda que haverá lugar a cúmulo de penas a ter necessariamente em vista todos os factos, incluindo necessariamente a repetição e sem que tal releve de qualquer violação de princípio legal ou constitucional).
E por circunstâncias várias, nem “todas as pessoas, com álcool, são julgadas em processo sumário, dias depois do crime” nem responsabilidade alguma tem a comunidade pelo cometimento do crime ou por, pelo mesmo, ter sido condenado mais de um ano depois vendo mais agravada pena única por crimes cometidos depois, o que é até suposto ocorrer com a generalidade dos agentes deste crime e de outros, logo que haja conhecimento superveniente de crimes em concurso.
Nem sequer a unanimidade expressa pelos intervenientes nesta fase de recurso deve impressionar a este propósito, pois nem sequer é necessário sair do processo para encontrar exemplo claro de como aquela pode redundar em erro.
O recorrente começa por alegar que o equívoco na data dos factos constitui erro notório na apreciação da prova.
O MP concorda.
Pois não é, salvo o devido respeito (e ainda que a questão não mereça grande labor de tão evidente resolução e daí que se haja votado a correspondente decisão de alteração).
Como se aponta no acórdão, o erro começa por ser claramente de escrita.
Mas não pode ser simplesmente corrigido já que importaria modificação que, como se vê, é essencial, pois incide sobre facto indubitavelmente objeto do processo – art.º 380º/1/b) CPP.
Destarte, apenas pode ser impugnado com recurso sobre matéria de facto.
Ampla, pois o erro notório tem de resultar do texto da própria sentença e não é o caso, pois o recurso, resposta e acórdão tiveram de deitar mão a elementos de prova além do texto da sentença (auto de notícia da ... e exame toxicológico que não estão trasladados na sentença na parte em causa, logo, não resultando o desacerto exclusivamente daquele texto).
Assim, é claro exemplo de verdadeiro erro de julgamento, por isso a ser impugnado amplamente (e são justamente erros deste tipo os visados pelo CPP a este propósito).
Por isso, o facto a alterar seria o ano da ocorrência, as provas que impõem a modificação aqueles auto e exame e o motivo a circunstâncias dos mesmos resultar clara e insofismavelmente aquele erro de julgamento.
E em substância o recurso faz apenas essa impugnação ampla, mas iniciando-a sob outro título o que não quer dizer que este esteja certo, nem mesmo por unanimidade.
Finalmente, ainda que as penas sejam expressas em números a sua fixação não obedece a operação aritmética, nem mesmo de medianas, antes a critérios que ordenam tomar em linha de conta variáveis genéricas, impossíveis de fixar à partida e que podem originar diferenças que à primeira vista podem parecer injustificadas, mas que apenas a adequação ao caso concreto permite ter como justas ou não.”
Manuel Advínculo Sequeira
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TRL
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https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/4afbe37c6d3b137480258c84004b65ca?OpenDocument
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1,743,897,600,000
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NÃO PROVIDO
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122/23.0PMFUN.L1-3
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122/23.0PMFUN.L1-3
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MARIA DA GRAÇA DOS SANTOS SILVA
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I. A habilitação para conduzir obtém-se pela obtenção da licença de condução, que se comprova num documento único.
II. Tendo o arguido na sua posse dois documentos que, sucessivamente, validaram a sua licença para conduzir, respectivamente, um enquanto carta de condução original revalidada e outro enquanto segunda via, obtida por alegado extravio da original revalidada, o título de condução válido foi precisa e unicamente a segunda via.
III. O arguido, ao entregar a licença já caducada, não cumpriu a ordem de entrega da carta de condução contida na sentença que lhe aplicou a pena de inibição de conduzir, ou seja, cometeu um crime de desobediência.
IV. Para apreciação da modalidade do dolo o que releva é unicamente o elemento subjectivo do agente referido ao facto que constitui crime e não a factos antecedentes ou consequentes que não interfiram nessa qualificação, do que resulta que o arguido agiu com dolo directo quanto aos crimes de desobediência e de violação de proibições.
V. O crime de desobediência cometido não corresponde à previsão do nº 1-c) do artigo 69º/CP, pelo que a pena acessória de inibição de conduzir aplicada com reporte para ele não tem suporte legal
VI. Essa inibição decorre, no entanto, do disposto na alínea b) do mesmo dispositivo, com reporte para o crime de violação de proibições.
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[
"INIBIÇÃO DA FACULDADE DE CONDUZIR",
"CARTA DE CONDUÇÃO",
"SEGUNDA VIA",
"DOLO",
"CRIME DE DESOBEDIÊNCIA"
] |
Acordam os Juízes, em conferência, na 3ª Secção Criminal, deste Tribunal:
***
I – Relatório:
Em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, o arguido AA foi condenado pela prática de:
- um crime de desobediência, previsto e punido (p. e p.) pelo artigo 348.º, n.º 1 alínea b) e 69.º, n.º 3 ambos do Código Penal (CP) na pena de 3 meses de prisão e na pena acessória de proibição de conduzir por 8 meses.
- um crime de violação de imposições, proibições ou interdições, previsto e punido pelo artigo 353.º do CP, na pena de 6 meses de prisão.
Em cúmulo jurídico, foi condenado na pena única de 7 meses de prisão a executar em regime de permanência na habitação com vigilância electrónica e na pena acessória de proibição de conduzir por 8 meses.
***
II- Fundamentação de facto:
Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes os factos:
1. Por sentença proferida no âmbito do processo Comum n.º 137/20.0PTFUN, transitada em julgado em 15-12-2022, foi o arguido condenado pela prática de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo artigo 137.º, n.º 1 do Código Penal, com referência ao artigo 69.º, n.º 1, alínea a) do mesmo diploma legal, na pena de prisão de 22 meses suspensa na sua execução por 18 meses e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados por um período de 6 meses.
2. O arguido foi notificado pessoalmente no dia 15-11-2022, data da audiência de julgamento na qual foi proferida a decisão condenatória, da obrigatoriedade de proceder à entrega da carta de condução de que é titular, no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência.
3. Mais foi o arguido advertido que a condução de veículo a motor durante o período de inibição o faria incorrer na prática do crime de violação de imposições, proibições ou interdições.
4. Sucede, porém, que em 22-01-2020, o arguido havia procedido à revalidação do seu título de condução n.º M-…. 1, e em 17-01-2022, requereu a emissão de uma 2.ª via dessa mesma carta, por extravio, a qual lhe foi emitida e entregue.
5. Ambas as cartas apresentavam uma data de validade até 13-02-2025 e ficaram ambas na posse do arguido.
6. Em 22-12-2022, o arguido procedeu à entrega da carta de condução revalidada no Juízo Local Criminal do ..., no âmbito do processo referido em 1., iniciando o cumprimento da pena acessória na qual ali foi condenado, e a qual veria o seu termo em 22-06-2023, mantendo, no entanto, a 2.ª via da carta de condução na sua posse.
7. Nessa sequência, no dia 09-06-2023, pelas 18h30, o arguido conduzia o veículo pesado de mercadorias com a matrícula ..-..-UB, na via pública, concretamente, no cruzamento entre a ... e a ..., em ....
8. Aquando da fiscalização rodoviária, o arguido apresentou a 2.ª via da carta de condução que lhe foi emitida.
9. O arguido tinha conhecimento de que lhe estava vedada por sentença criminal a condução de veículos a motor no período de cumprimento da aludida pena acessória, bem como sabia, que ao conduzir veículos a motor nas circunstâncias referidas, estava a desrespeitar um mandado legítimo, regularmente comunicado e proveniente de autoridade com competência para o proferir, o que ainda assim não o inibiu de conduzir, como quis e efectivamente fez.
10. Ao não entregar todas as cartas de condução das quais era titular, no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, o arguido agiu com o propósito concretizado de desobedecer a uma ordem legal, que lhe fora regularmente comunicada e que provinha de autoridade competente.
11. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, e tinha a liberdade necessária para se determinar de acordo com essa mesma avaliação.
12. O arguido confessou os factos.
13. É condutor de pesados aufere quantia que não foi possível concretamente apurar, trabalha por conta própria, é proprietário de dois veículos pesados e um ligeiro, vive com a esposa que não trabalha fora de casa e um filho de 23 anos ainda a seu cargo, em casa própria e tem carta de condução há 30 anos.
14. Não foi interveniente em acidente de viação.
Ainda com relevo para a decisão da causa acrescenta-se, neste Tribunal da Relação, que:
15. Os factos pelos quais foi condenado por homicídio negligente foram praticados a 2020/07/23.
***
Não há factos não provados.
***
III- Fundamentação da aquisição probatória:
O Tribunal
a quo
justificou a aquisição probatória nos seguintes termos:
«O tribunal formou a sua convicção relativamente aos factos considerados como provados, tendo em consideração os seguintes meios de prova:
O arguido confessou os factos, embora tivesse tentado aligeirar as suas responsabilidades ao dizer que só entregou a carta de condução ao senhor agente porque este quando lhe pediu os documentos da viatura viu-a na sua carteira e como lha pediu, entregou-lha … mas acabou por confessar todos os factos…
Por sua vez, os factos relativos às condições pessoais do arguido, foram pelo próprio relatadas em sede de audiência, relato que quanto aos seus rendimentos não nos mereceu credibilidade, pela profissão que tem por conta própria pelas despesas com o seu agregado familiar e por ter ainda referido que já terminou de pagar prestação bancária pela sua habitação. Finalmente, o facto provado relativo aos antecedentes criminais do arguido, deu-se como provado com recurso ao Certificado de Registo Criminal daquele, mais considerou o auto de notícia, fls. 3 e 4 comunicação, fls. 9 - auto de apreensão, fls. 10 e 11 - id. civil, fls. 14 informação DRETT, fls. 30, 45 a 52 certidão de fls. 31 a 41.
Não existem quaisquer factos não provados, na medida em que não constavam da acusação e não tendo sido suscitados quaisquer outros em sede de audiência de discussão e julgamento, com relevo para a decisão da causa.».
O facto acrescentado sob o ponto 15 resulta do CRC, constante dos autos, o qual foi tomado em consideração na fundamentação da aquisição probatória, se bem que não foi levada ao provado a data do acidente que motivou a decisão referida em 1.
***
IV- Recurso:
O arguido recorreu, concluindo as alegações nos termos que se transcrevem:
« A) Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida a fls … e que concluiu que o arguido praticou, em autoria material, na forma consumada e em concurso real, um crime de desobediência, p. e p. pelo n.º 1, do art.º 348.º e n.º 3 do art.º 69.º do Cód. Penal; e de um crime de violação de imposições, p. e p. pelo art.º 353.º do Cód. Penal, de que vinha acusado e, consequentemente foi condenado, pelo primeiro crime, na pena parcelar de três meses de prisão e na pena acessória de oito meses de proibição de conduzir veículos com motor na via pública ou equiparada e, pelo segundo crime, na pena parcelar de seis meses de prisão. Sendo que, em cúmulo jurídico (ao abrigo do art.º 77.º do Cód. Penal), sentenciar na pena única de sete meses de prisão a executar em regime de permanência na habitação com vigilância eletrónica e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor durante oito meses, devendo o arguido entregar a carta de condução apenas a seguir ao termo da pena de prisão aplicada para cumprimento da pena acessória.
B) O Recorrente, nos presentes autos, pretende a revogação da douta sentença recorrida, com fundamento na violação, por incorreta interpretação, das normas jurídicas constantes nos artigos 40.º, 50.º, 53.º, 54.º, 70.º, 71.º, 77.º; n.ºs 1 e 2, 348º nº 1 al. a) e 69º nº 3 e 353.º todos do CP, quanto ao critério e determinação da medida da pena.
C) O Tribunal a quo não efetuou uma correta ponderação no enquadramento jurídico-penal para aferição do critério da culpa no crime de desobediência, porquanto se é bem verdade que o Recorrente procedeu ao pedido da emissão da 2ª via da carta de condução no dia 17-01-2022, também não é menos verdade que este fora emitido, em momento prévio (dez meses antes), ao conhecimento pelo arguido da decisão condenatória proferida em 15-11-2022 e transitada em julgado em 15-12-2022.
D) Definitivamente, a intenção do aqui Recorrente ao emitir a 2ª via da sua licença de condução, nunca poderá ter sido motivada para intencionalmente desobedecer a uma ordem legal, pois o facto que consubstancia o preenchimento do tipo de ilícito da pena aplicada, ainda não tinha sido verdadeiramente praticado.
E) Teria desobedecido e atuado com intenção de infringir uma norma legal se, hipoteticamente, procedesse à emissão da 2ª via da sua carta de condução em tempo posterior ao dia 15-11-2022, data da audiência de julgamento onde foi proferida a decisão condenatória da obrigatoriedade de proceder à entrega da carta de condução, o que, de facto, não sucedeu.
F) In casu, e nestas circunstâncias, o Recorrente não age com dolo direto, pois, aquando a emissão da 2ª via, não agiu com intenção alguma de estar a cometer um ato ilícito que se consubstancia na prática de um crime, nem atuou com intenção de desrespeitar uma ordem legal.
G) O Recorrente agiu com dolo eventual, nos termos do art.º 14.º n.º 3 do CP, na medida em que, com a sua conduta, possivelmente poderia prever que a manutenção da posse da 2ª via pudesse, eventualmente, constituir na prática de um tipo de ilícito, contudo, conformou-se e não agiu.
H) Não ficou demonstrado a premeditação e a intenção na prática do crime, mas sim uma previsão e conformação com o resultado, devendo a medida da pena ser determinada, em consonância com o dolo eventual, e ser reduzida para o mínimo legal.
I) O Tribunal a quo não efetuou uma correta ponderação de todos os factos relevantes para a escolha e determinação da pena, privilegiando, de forma excessiva e extremamente desproporcional, a aplicação desta pena principal e acessória ao invés de penas manifestamente inferiores.
J) As exigências de prevenção especial (negativa) de socialização, não são, no caso, significativas, quando considerado o percurso pessoal do arguido que não tem antecedentes criminais, relativamente à natureza dos crimes agora aqui julgados e, bem assim, os factos imputados ao arguido trataram-se, apenas, de um caso fortuito, tal como é reconhecido na sentença.
K) O arguido praticou os crimes, num momento de instabilidade da sua vida, pois tendo sido condenado por um crime de homicídio por negligência, viveu em angústia, sem dormir e atormentado com toda a situação que se viu envolto, sendo ainda hoje, um episódio marcante que condiciona a sua vida pessoal que tem vindo a superar com o exercício e a dedicação ao seu trabalho e com o enorme apoio familiar, sem o qual não teria conseguido prosseguir com a vida.
L) Ao contrário do que é sopesado pelo Tribunal a quo, poderá não ter havido uma manifestação expressa, mas houve, certamente, atendendo à confissão do arguido (que poderia ter se remetido ao silêncio ou negado a prática dos factos), uma manifestação tácita desse arrependimento.
M) Além disso, determinante na ponderação da suspensão da execução da pena de prisão e do juízo de prognose, terão que ser as condições de vida do agente e a sua conduta anterior e posterior ao facto, sendo certo que, o arguido está inserido social e profissionalmente, e é o único a promover pelo sustento do seu agregado familiar, no qual se incluem a sua esposa e a sua filha de 23 anos, que ainda está a seu cargo porquanto se encontra a estudar na Universidade.
N) O arguido tem 55 anos de idade e tem habilitação de condução desde 1991 (há cerca de 34 anos), o que significa que, em 29 anos de habilitação sempre teve uma atitude prudente e incólume na condução e não foi interveniente em acidente de viação nos presentes autos.
O) Pelo que, sopesando tudo isto, que não o foi devidamente pelo Tribunal a quo, deveria o mesmo ter concluído, ainda, pela existência de um juízo de prognose favorável, centrado na pessoa do arguido e no seu comportamento futuro (o arguido manteve durante 29 anos uma condução prudente e ilesa e, depois dos factos dos autos, não há conhecimento da pendência de qualquer outro processo crime), pelo que deveria ter suspendido a pena de prisão por um período de 1 (um) ano, mediante a sujeição de um regime de prova, contendo, além do mais, regras de conduta para o plano de readaptação e aperfeiçoamento da responsabilidade do arguido, direcionado para a prevenção e segurança rodoviária, onde se inclua a frequência em programas nesse âmbito nos termos dos artigos 53.º e 54.º, do Código Penal.
P) No caso em apreço, a aplicação de uma pena única de 7 (sete) meses de prisão a executar em regime de permanência na habitação com vigilância eletrónica e na pena de proibição de conduzir por 8 (oito) meses, é violadora dos princípios da proporcionalidade e da proibição do excesso, descurando, ainda um dos princípios norteadores do sistema penal português que é a ressocialização do agente. Satisfaz de forma suficiente, adequada e proporcional, as finalidades de prevenção especial, a frequência, pelo arguido, de programas direcionados para a prevenção e segurança rodoviária, permitindo-se, assim a reabilitação do arguido ao invés da aplicação do regime de permanência na habitação.
Q) Esta é a única solução mais adequada a afastar o arguido da criminalidade, na esperança de que este adquira conhecimentos relacionados com a prevenção e segurança rodoviária e veja tal sanção como uma forma de dissuasão que o inibirá de cometer outros crimes no futuro, sendo a emenda cívica do arguido enquanto cidadão e o efeito de prevenção geral de intimidação para que o arguido não volte a repetir factos da mesma natureza, plenamente atingido se ao Recorrente for aplicado uma pena principal, suspensa na sua execução pelo período de 1 (um) ano com sujeição a regime de prova, e uma pena acessória inferior àquela que foi sentenciada ao arguido.
Termos em que e nos demais de direito deve ser dado provimento ao presente recurso face à incorreta interpretação das normas jurídicas, quanto ao critério e determinação da medida da pena principal e acessória, patentes na decisão recorrida, ao abrigo do art.º 410.º, n.º 1, do Cód. Processo Penal e, por via dele, ser revogada a sentença recorrida, por outra que:
- determine, no que respeita ao crime de desobediência, para efeitos de valorização, no critério e determinação das penas (principal e acessória), que o arguido não atuou com dolo direto mas sim com dolo eventual, por não ter ficado demonstrado nos autos a premeditação e a intenção na prática do crime, mas sim uma previsão e conformação com o resultado, devendo a medida da pena ser reduzida para o mínimo legal; e
- substitua a pena única aplicada por uma pena principal suspensa na sua execução pelo período de 1 (um) ano com sujeição a regime de prova, contendo, além do mais, regras de conduta para o plano de readaptação e aperfeiçoamento da responsabilidade do arguido, direcionado para a prevenção e segurança rodoviária, onde se inclua a frequência em programas nesse âmbito nos termos dos artigos 53.º e 54.º, do Código Penal e uma pena acessória inferior no seu quantum;
Por ser adequado e suficiente à satisfação das exigências de prevenção especial positiva para uma apropriada realização do Direito, que deve no presente caso ser atendido.».
***
Contra-alegou o Ministério Público, concluindo as respectivas alegações nos seguintes termos:
«1. O arguido recorreu medida concreta da pena aplicada pelo Tribunal a quo, por entender que a mesma é exagerada. Entendeu também que a mesma devia ter sido suspensa na sua execução
2. Entende que o Tribunal valorou de forma errada o dolo do agente, defendendo que agiu com dolo eventual, ao contrário da sentença em crise, que entendeu que agiu com dolo directo.
3. Não explicou da motivação de ter requerido uma 2ª via da carta de condução, nem por que motivo não entregou todos os títulos de condução. Provavelmente pela necessidade continuar a exercer a profissão …
4. Independentemente disso o crime é punido por dolo em qualquer das suas formas.
5. Considerando os critérios para a determinação da medida concreta da pena considerados na sentença, a pena é adequada e proporcional ao fim que visa atingir.
6. Apesar de estar preenchido o requisito formal para a suspensão da pena, o Tribunal a quo, entendeu e bem, que não era possível fazer o juízo de prognose necessário para a aplicação deste instituto, por que o arguido durante o decurso do período de suspensão de pena anterior, cometeu 2 ilícitos, relacionados com a condução de veículos automóveis.
7. Salientar ainda que o Tribunal considerou a postura do arguido e a tentativa de aligeirar as suas responsabilidades, antes de ter confessado os factos, que enfraquece de forma decisiva a sua confissão.».
***
Nesta instância, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta aderiu à contra-motivação.
***
V- Questões a decidir:
Do artigo 412º/1, do CPP resulta que são as conclusões da motivação que delimitam o objecto do recurso e consequentemente, definem as questões a decidir em cada caso, exceptuando aquelas questões que sejam de conhecimento oficioso.
As questões colocadas pelo recorrente, arguido, são:
- o entendimento de que agiu com dolo eventual relativamente ao crime de desobediência;
- o excesso das penas aplicadas quanto ao crime de desobediência;
- a adequação da aplicação de uma pena suspensa por um ano, subordinada a regime de prova.
Oficiosamente coloca-se a questão de saber se a pena acessória de proibição de conduzir, prevista no nº 1 do artigo 69º/CP é aplicável ao crime de desobediência pelo qual o arguido foi condenado ou ao crime de violação de proibições previsto no artigo 353º/CP.
***
VI- Fundamentos de direito:
Da actuação mediante dolo eventual quanto ao crime de desobediência:
O arguido desenvolve o entendimento de que agiu com dolo eventual relativamente ao crime de desobediência, porque ao pedir a segunda via da carta de condução ainda não tinha sido condenado pelo crime de homicídio negligente pelo que não ficou demonstrada premeditação nem a intenção na prática do crime, mas sim uma previsão e conformação com o resultado.
Refere o arguido, no corpo da motivação que
«Efetivamente, o Recorrente procedeu ao pedido da emissão da 2ª via da carta de condução no dia 17-01-2022.
Título este que fora emitido, em momento prévio (dez meses antes), ao conhecimento pelo arguido da decisão condenatória proferida em 15-11-2022 e transitada em julgado em 15-12-2022.
Muito tempo antes, portanto, da decisão que impunha a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados por um período de 6 meses.
Definitivamente, desde logo, é explícito que a intenção do aqui Recorrente ao emitir a 2ª via da sua licença de condução, nunca poderá ter sido motivada por intenções de desobedecer a uma ordem legal, pois o facto que consubstancia o preenchimento do tipo de ilícito da pena aplicada, ainda não tinha sido verdadeiramente praticado.»
Vejamos:
Consta do Registo Criminal do arguido que os factos pelos quais foi condenado por homicídio negligente foram praticados a 23/7/2020, sendo que a segunda via da carta de condução, pedida mediante a declaração de extravio do original, data de 17/01/2022.
O artigo 121.º do Código da Estrada (CE) define deste modo a habilitação para conduzir (sublinhados nossos):
«
1 - Só pode conduzir um veículo a motor na via pública quem estiver legalmente habilitado para o efeito. (…)
4 - O documento que titula a habilitação legal para conduzir ciclomotores, motociclos, triciclos, quadriciclos, automóveis e veículos agrícolas, exceto motocultivadores operados a pé, designa-se carta de condução. (…)
8 -
Nenhum condutor pode, simultaneamente, ser titular de mais de um título de condução,
do modelo comunitário, emitido por qualquer dos Estados membros da União Europeia ou do espaço económico europeu.
9 - As cartas de condução são emitidas pelo IMT, I. P. aos cidadãos que provem preencher os respetivos requisitos legais, sendo válidas para as categorias de veículos e pelos prazos legalmente estabelecidos. (…)
12 -
Não são entregues os títulos de condução revalidados, trocados, substituídos, ou seus duplicados, enquanto não se encontrarem integralmente cumpridas as sanções acessórias de proibição ou inibição de conduzir a que o respetivo titular tenha sido condenado
».
A habilitação para conduzir documenta-se, portanto, pela chamada licença de condução, que
é um documento único
, atribuído mediante a aprovação nos exames teóricos e práticos definidos por lei.
Significa isto que, tendo o arguido na sua posse dois documentos que sucessivamente validaram a sua licença para conduzir, respectivamente, um enquanto carta de condução original revalidada e outro enquanto segunda via por alegado extravio da original, não só cometeu um crime de falsas declarações ao indicar esse extravio (que não existiu), como infringiu as normas legais, que lhe permitem apenas a posse de um único documento dessa natureza.
Evidentemente, o arguido ao pedir a segunda via por falso extravio da licença de condução, estava a prevenir-se para driblar uma eventual aplicação de pena de proibição de conduzir, em face do acidente que já tinha ocorrido em data anterior. Este é um facto que demonstra premeditação na prática do crime de desobediência porque por esta forma o arguido preparou-se para defraudar uma possível e eventual pena acessória de proibição de condução com ordem de entrega da carta, sob pena de desobediência, fazendo-a substituir por um segundo título (a 2ª via) apto a ludibriar as entidades fiscalizadoras.
O que releva para a consideração sobre a comissão do crime de desobediência é o facto de o arguido, se ter munido de um segundo título, válido, para cumprir, apenas aparentemente, a ordem de entrega da carta.
Ao declarar o extravio da carta revalidada, o título de condução que ficou válido foi precisamente a segunda via, aquela com que ficou na sua posse, porque a primeira via (a carta original) perdeu o valor de documento autêntico, por alegado desapossamento do seu titular.
Significa isto que o arguido não cumpriu efectivamente a ordem judicial validamente emitida e continuou a conduzir com o único título, o válido, que possuía, tendo entregue um título literalmente vigente mas efectivamente substituído por outro.
Ora, o tipo de crime de desobediência decompõe-se, nos seus elementos objectivos:
- Na existência de uma ordem ou mandado legítimos;
- Com proveniência de entidade competente para o emitir;
- Efectivamente comunicada ao agente;
- No desacatamento da ordem.
O crime consuma-se com a prática do acto determinado ou proibido pela entidade competente.
No caso, verifica-se a existência de uma sentença, devidamente notificada, que impôs ao arguido a entrega da habilitação de condução, para cumprimento de um período de inibição de conduzir, por seis meses, sendo que o arguido entregou uma carta inválida por alegadamente extraviada e continuou a conduzir durante o período da inibição, no que aliás foi encontrado em flagrante delito.
Temos aqui verificados todos os pressupostos objectivos de que depende a prática do crime.
O crime é necessariamente doloso, podendo ser cometido em qualquer das formas do dolo: directo, necessário e eventual. E o dolo reporta-se unicamente à não entrega da carta de condução válida, conforme lhe foi cominado, porque este é o cerne do crime de desobediência praticado
O cometimento do crime não se reporta ao momento em que requereu a segunda via, mas à falta de entrega dessa segunda via, de acordo com a ordem contida na sentença proferida no processo em que foi condenado por homicídio negligente.
A partir do momento em que o arguido declarou o extravio da carta de condução original e requereu a emissão de uma segunda via, apenas essa segunda via legitimava a condução de veículos.
Nos termos do artigo 14º1/CP «
age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, actuar com intenção de o realizar
» e nos termos do nº 3 do mesmo dispositivo «
Quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, há dolo se o agente actuar conformando-se com aquela realização
».
Como se retira lapidarmente do texto da norma, o que está em causa é sempre o elemento subjectivo do agente
referido ao facto que constitui crime
e não a factos antecedentes ou consequentes que não interfiram nessa qualificação, ainda que possam ser relevantes para a aplicação do Direito, como a escolha da pena ou da medida da pena.
Conforme consta do provado, e o arguido não contradiz, ao não entregar a cartas de que era titular, agiu com o propósito concretizado de desobedecer a uma ordem legal, que lhe fora regularmente comunicada e que provinha de autoridade competente, sendo que o fez forma livre, deliberada, consciente e premeditada, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
Não estando em causa, como não está, saber em que momento o arguido pediu 2ª via, que obteve por meio de falsas declarações, a questão que coloca da existência de mero dolo eventual é manifestamente improcedente.
O arguido quis e conseguiu não cumprir a ordem dada e, dessa forma, fazendo-se acompanhar da carta de condução na versão válida, continuou a praticar a actividade que lhe foram interdita. Manifestamente agiu, na prática do crime, com dolo directo, pois do provado constam factos que que integram, indubitavelmente, a materialidade da conduta descrita no tipo e que levem a concluir que actuou:
- Livremente, ou seja, que pôde determinar a sua acção – assim se afastando as causas de exclusão da culpa;
- Com o conhecimento dos elementos e circunstâncias descritos no tipo legal de crime e do resultado da sua conduta (elemento intelectual do dolo);
- Deliberadamente, ou seja, que quis o facto criminoso (elemento volitivo);
- Conscientemente, o que significa que é imputável (imputabilidade);
- Sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento emocional do dolo).
O dolo eventual ocorre apenas quando o agente,
não querendo praticar o acto ilícito
constitutivo de um tipo de crime, age prevendo e
aceitando
que da sua conduta
possa advir
, como consequência necessária, a violação do bem juridicamente tutelado. O agente move-se no domínio da aceitação consciente da pura probabilidade, o que está nos antípodas da intenção e acção dirigidas à prática do tipo, como foi efeito pelo arguido.
O dolo eventual, tal como definido no nº 3 do artigo 14º/CP consagra a doutrina da conformação, o que significa que o «
agente toma como sério o risco de possível lesão do bem jurídico, que o leva em linha de conta e que, não obstante, não omite a sua conduta podendo então concluir-se que está intimamente disposto a arcar com o seu desvalor
», sendo que «
só fará sentido afirmar que há uma atitude de conformação com a produção do resultado se a probabilidade de ocorrer a acção típica com essa consequência for elevada, se tiver expressão, mas já assim não será se a possibilidade de realização for tida como remota ou insignificante
»;
«O dolo eventual integra-se, assim, pela vontade de realização concernente á acção típica (elemento volitivo), pela consideração séria do risco de produção do resultado (factor intelectual), e, em terceiro lugar pela conformação com a produção do resultado típico como factor de culpa»; «O agente pode, (…)confiar, embora levianamente, em que o preenchimento do tipo se não verificará e age então só com negligência (consciente).»
(
1
).
Manifestamente, e face ao exposto, a pretensão do arguido quanto à alteração da modalidade do dolo não procede.
Mas também nunca procederia porque pressupunha sempre uma alteração dos factos provados, o que, fora dos casos dos vícios que se reportam
ao elemento literal da sentença
e não ocorrem (artigo 410º/2, do CPP) apenas poderia ser obtida mediante o preenchimento dos requisitos de um pedido de impugnação do provado, nos termos do disposto no artigo 412º/3 e 4, que manifestamente não se encontra no recurso apresentado.
***
Da pena acessória de proibição de conduzir:
Oficiosamente, como se referiu, coloca-se a questão de saber se a pena acessória de proibição de conduzir é aplicável ao crime de desobediência pelo qual o arguido foi condenado, ao abrigo do prevista no nº 1-c) do artigo 69º/CP ou ao crime de violação de proibições previsto no artigo 353º/CP, ao abrigo do disposto na alínea b) do referido artigo 69º/1, do CP.
Do dispositivo da sentença recorrida consta que o arguido foi condenado na pena acessória de proibição de conduzir, com reporte para o crime de desobediência, nos termos previstos no artigo 69º/3 do CP, e da fundamentação consta que
«
Já quanto à proibição de conduzir como pena acessória decorre ela do disposto no artigo 69º, nº3 do Código Penal, pelo que lhe deve ser também aplicada.»
Ora, este nº 3 do artigo 69º reporta-se unicamente à forma de execução da pena acessória aplicada, porque se limita a determinar que o título de condução tem que ser entregue pelo condenado no prazo de 10 dias contado sobre a data do trânsito em julgado da decisão condenatória respectiva. Dele não retiramos matéria substantiva relativa aos critérios de aplicabilidade da pena em causa, matéria contida exclusivamente no nº 1 do normativo.
E, na alínea c) do nº 1, determina-se a aplicação de pena acessória a crimes de desobediência unicamente quando está em causa a «
recusa de submissão às provas legalmente estabelecidas para deteção de condução de veículo (…) com ou sem motor sob efeito de álcool, estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo
», situação que, manifestamente não abrange o caso dos autos.
Significa isto que a pena acessória aqui aplicada com reporte para o crime de desobediência não tem cabimento legal.
Ela impõe-se, no entanto, por força do disposto na alínea b) do mesmo dispositivo na medida em que o arguido praticou um crime de violação de proibições, mediante a utilização de veículo. Significa isto, que a referida pena é aplicável aos autos não por força da alínea c) do nº 1 mas por força da alínea b) do mesmo dispositivo.
Esta alteração, no caso, é meramente de subsunção jurídica dos factos contidos no provado, ou seja, não implica qualquer alteração dos mesmos nem tão pouco constitui alteração da qualificação jurídica. A norma aplicável é a mesma, as consequências jurídicas são as mesmas, apenas se altera o reporte da inibição para o crime de violação de proibições, subtraindo-o ao crime de desobediência.
Não se verificando qualquer das circunstâncias previstas no artigo 358º/CPP não há lugar à comunicação a que o nº 1 e 3 do artigo se referem.
***
Das penas e das medidas das penas quanto ao crime de desobediência:
O arguido refere que discorda das penas aplicadas quanto ao crime de desobediência, principal e acessória, não só na sequência da infrutífera pretensão de alteração da modalidade do dolo, como também mediante a alegação de desadequação e desproporção das mesmas por desconsideração:
- das suas condições de vida, da sua conduta anterior e posterior aos factos e da sua personalidade;
- da ausência de antecedentes criminais (sendo que é portador de carta de condução desde há 30 anos);
- do prejuízo que a pena causa na sua vida familiar e profissional, atendendo à sua situação sócio-económica;
- das condições de instabilidade emocional em que praticou o crime, decorrente de ter sido condenado pelo crime de homicídio negligente o que ainda condiciona a sua vida pessoal:
- da existência de arrependimento inerente à confissão integral e sem reservas;
- e da inexistência de premeditação.
Entende, nas conclusões de recurso, que lhe devia ter sido aplicada uma pena principal correspondente ao mínimo legal e reduzida a pena acessória, se bem que no corpo da motivação se refira à “falta de critério na escolha da pena”.
A pena aplicável ao crime de desobediência é de prisão até 1 ano ou multa até 120 dias.
A pena aplicável ao crime de violação de imposições, proibições ou interdições é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias.
A pena acessória aplicável ao crime de desobediência tem a duração de 3 meses a 3 anos.
Nos termos do artigo 40º/CP, «
a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade
» (nº 1),
sendo que «em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa
» (nº 2). Por força do artigo 71º/ CP, «
a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos pela lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção
», devendo o Tribunal atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal de crime, influam na ilicitude do facto (artigo 71º/2, a)), na culpa do agente (alíneas b) e c) do mesmo normativo) e na necessidade de pena (alíneas d), e) e f)).
Com efeito, a partir da revisão do CP de 1995, a pena passou a servir finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial, assumindo a culpa um papel meramente limitador da pena. É este, aliás, o critério da lei fundamental – artigo 18º/2, da CRP (
2
).
A função essencial da pena, sem embargo dos aspectos decorrentes de uma prevenção especial positiva, consiste na prevenção dos comportamentos danosos, incidentes sobre bens jurídicos penalmente protegidos. Mas num sistema constitucional em que a dignidade da pessoa humana é pré-condição da legitimação da República, como forma de domínio político, e o direito à liberdade integra o núcleo dos direitos fundamentais, (
3
), o seu limite máximo fixar-se-á, necessariamente, com respeito da salvaguarda da dignidade humana do condenado, em função da medida da culpa revelada, que assim a delimitará, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que, social e normativamente, se imponham.
A sensação de Justiça, essencial para a estabilização da consciência jurídico-penal, exige que ninguém possa ser castigado mais duramente do que aquilo que merece; e “merecida” é só a pena correspondente à sua a culpabilidade.
Ao definir a pena, o julgador deve procurar entender a personalidade do arguido, para, adequadamente, determinar o seu desvalor ético-jurídico e a desconformidade com a personalidade suposta pela ordem jurídico-penal, exprimindo a medida dessa desconformidade a medida da censura pessoal do agente, ou seja, a medida correspondente à culpa manifestada. Aquilo que é “merecido” é o resultado de um processo psicológico valorativo mutável, determinado a partir da realidade empírica e dentro de uma certa margem de liberdade, tendo em vista que a pena adequada à culpa não tem sentido em si mesma, mas sim como instrumento ao serviço de um fim político-social, pelo que deve ser aquela que seja aceite pela comunidade como justa, contribuindo assim para a estabilização da consciência jurídica geral (
4
).
Limitando-se, a pena, pela medida da culpabilidade, mas visando fins de prevenção especial e geral, ela fixar-se-á abaixo do limite máximo se assim for exigido pelas necessidades especiais e, a essa diminuição, não se opuserem as exigências mínimas preventivas gerais (
5
).
O seu limite mínimo é, portanto, dado pelo
quantum
da pena que, em concreto, ainda realize eficazmente a protecção dos bens jurídicos visados.
Dentro destes dois limites, situar-se-á o espaço possível para dar resposta às necessidades da reintegração social do agente. Ou seja, a culpa estabelece o máximo inultrapassável de pena concreta que é possível aplicar.
A moldura de prevenção, por sua vez, é definida entre o limiar mínimo - abaixo do qual não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem se pôr em causa a sua função tutelar de bens jurídicos e a estabilização das expectativas comunitárias - e a medida máxima e óptima de tutela dos bens jurídicos e das mencionadas expectativas. Dentro desses limites, relevam as exigências de prevenção especial de socialização, visando atingir a desmotivação adequada para evitar a recidiva por parte do agente, bem como a sua ressocialização (
6
)
.
Dito de outro modo: a pena não pode ultrapassar a medida da culpabilidade, mas pode não alcançá-la sempre que isso seja permitido pelo fim preventivo (
7
).
Na sub-moldura da prevenção geral pesa a importância dos bens jurídicos a proteger, desempenhando uma função pedagógica através da qual se procura dissuadir as consequências nocivas da prática de futuros crimes e conseguir o reforço da crença colectiva na validade e eficácia das normas, em ordem à defesa da ordem jurídica penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva. Prevenção significa protecção de bens jurídicos pela tutela das expectativas comunitárias na manutenção (e reforço) da validade da norma violada (
8
).
Por sua vez, a prevenção especial positiva ou de socialização responde à necessidade de readaptação social do arguido.
Resumindo: porque na fixação da pena concreta se cuida da protecção de bens jurídicos, ela deva ser determinada - dentro de uma moldura de culpa, limitada por necessidades de prevenção geral positiva - em função das exigências de prevenção especial ou de socialização do agente.
Figueiredo Dias esquematiza assim a teoria penal defendida:
«
1) Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial.
2) A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa.
3) Dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico.
4) Dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa
» (
9
).
Nos termos do artigo 71º /CP «
1 - A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
2 - Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena».
Na consideração da forma de determinação da pena concreta, as circunstâncias e os critérios do artigo 71º/CP «
têm a função de fornecer ao Juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena; tais elementos e critérios devem contribuir tanto para codeterminar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente; a idade, a confissão; o arrependimento), ao mesmo tempo que também
transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente» (
10
).
Quanto aos factores a ter em conta na medida da pena, desde já temos os factores relativos à execução do facto.
Torna-se aqui a “ execução do facto” num sentido global e complexivo, capaz de abranger “o grau de ilicitude do facto, modo de execução deste e gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente, “a intensidade do dolo ou da negligência”, e ainda “os sentimentos manifestados na preparação do crime e os fins ou motivos que o determinaram” (artigo 72º/2 alíneas a), b) e c) do CP).
A multidão de factores aqui implicados desdobra-se assim por circunstâncias que pertencem tanto ao tipo de ilícito, como à culpa.
Assim, ao nível do tipo de ilícito e dos factores relativos à execução do facto relevam a totalidade de circunstâncias que caracterizam a gravidade da violação jurídica cometida pelo o agente, pertençam elas ao tipo de ilícito objectivo ou subjectivo: a gravidade do dano material e moral produzido pela conduta com todas as consequências típicas que dela advenham, a espécie e o modo de execução do facto, o grau de conhecimento e a intensidade da vontade no modo de execução do crime.
Nos factores relativos à gravidade da violação jurídica entram tanto os motivos como os fins da conduta, que devem ser investigados pelo Juiz para apurar a medida da pressão que exerceram sobre o agente e a essência do desvalor jurídico-penal, assumindo relevo decisivo determinar se o facto radica uma determinação da disposição do agente ou só numa situação momentânea.
Quanto aos factores relativos à personalidade do agente eles reportam-se não à personalidade no seu todo, mas tão só às qualidades da personalidade do agente manifestadas no facto. A personalidade em questão não é apenas de carácter, mas o carácter e sobretudo o princípio pessoal que lhe preside, nomeadamente a atitude interna donde o facto promana e que nesta acepção o fundamenta. São factores da mais elevada importância para a medida da pena e que para ela relevam via da culpa. Aqui pertencem as considerações sobre as condições pessoais do agente, a sua condição económica e sobretudo a perspectiva da sua sensibilidade à pena – isto é, a medida em que o agente será atingido pela pena que lhe for aplicada.
Por último ainda teremos que ter em consideração factores relativos à conduta do agente anterior e posterior aos factos, onde entram todas as circunstâncias que respeitam à reparação do dano pelo agente ou mesmo só aos esforços por ele desenvolvidos neste sentido ou no de uma composição com o lesado. As alíneas c) e d) do artigo 72º/2 põem em relevo, para a medida da pena a conduta anterior ao facto e a posterior a esta, ou seja, a conduta destinada a reparar as consequências do crime.
A favor do arguido deverá ter-se em conta o comportamento processual podendo este ser amplamente valorado para a medida da pena. Circunstâncias como a do agente ter confessado integralmente e sem reservas, demonstrando arrependimento, ter contribuído para a descoberta da verdade, devem sem dúvida ser levados em consideração.
A sentença recorrida fixou as penas mediante o seguinte iter cognitivo:
«Atento o exposto, e considerando os artigos 40.º e 70.º do Código Penal a lei prevê alternativa à pena de prisão, no que respeita a qualquer um dos crimes em causa.
Vejamos assim, se a pena de prisão se impõe ou não ao arguido. No caso dos autos, e no que respeita aos critérios de prevenção geral, mostram-se mesmos elevados, tendo em conta o bem-jurídico protegido e que urge assegurar, a saber, a autonomia intencional do Estado, estandarte essencial de qualquer estado de direito democrático como o nosso e que urge proteger, bem como a necessidade de fazer sentir à comunidade que o ordenamento jurídico responde de forma eficaz a estas situações, punindo o infrator e restabelecendo a paz social.
E já no que respeita aos critérios de prevenção especial, mostram-se os mesmos minimizados, considerando, em primeiro lugar, que o arguido não averba condenações para além da que consta do CRC atinente ao crime de homicídio por negligência pelo qual foi condenado em pena de 22 meses de prisão suspensa na sua execução por 18 meses e na sanção acessória de proibição de conduzir por 6 meses.
Acontece que o arguido praticou os crimes agora em causa durante o período de suspensão da execução da pena de prisão em que foi condenado, mostrando assim que aquela pena não surtiu efeito de o dissuadir de voltar a delinquir pelo que não opto pelas penas não privativas de prisão, por não se mostrarem adequadas às necessidades de prevenção geral e de ressocialização do arguido.
*
Impõe-se ora a determinação do quantum das penas de prisão, que ao arguido irão ser aplicadas.
Vejamos então os factores que relevam para a determinação das medidas concretas das penas, à luz do artigo 71.º do Código Penal – sendo que, a determinação da medida concreta deve ser feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção geral e especial.
Por outro lado, mais refere o n.º 2 do mesmo artigo que, deverão ser consideradas todas as circunstâncias gerais que, não fazendo parte do tipo, deponham a favor ou contra o agente.
Em concreto, no caso dos autos, no que respeita à ilicitude do crime entende-se ser a mesma média, tendo em conta todo o circunstancialismo que envolveu a conduta praticada pelo arguido, não se abstendo de conduzir, veículo automóvel, bem sabendo que tal se lhe encontrava vedado. E refira-se também, quanto ao critério da culpa, que há que considerar, no sentido de agravar a conduta do arguido, o dolo direto com que o mesmo praticou os crimes, pois que bem sabia que eram proibidas tal condutam, desobedecia a ordem imposta por Decisão Judicial, e conhecia a punição e previsão da sua conduta, e ainda assim não se abstendo de agir, violando normativos legais e em consequência, o bem jurídico protegido, por duas vezes. Se é verdade que o arguido não tem condenações por pelo mesmo tipo legal de crimes, não teve intervenção em acidente de viação, confessou os factos e está integrado social, familiar e profissionalmente, também não se demonstrou em audiência que tivesse uma atitude contrita, antes tentou aligeirar responsabilidades e para concretizar os crimes não se absteve de tentar ludibriar as autoridades e o tribunal usando o subterfugio das duas vias das cartas de condução. E tudo isto quando se encontrava em pleno cumprimento de uma pena de prisão suspensa na sua execução por crime de natureza estradal com supina gravidade (homicídio negligente).
Assim, face ao exposto e, considerando as circunstâncias que depõem a favor e contra o arguido, consideramos adequado e suficiente aplicar ao arguido pela prática, em autoria material, de
- 1 (um) crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348º, nº 1, al: b) do Código Penal, a pena de 3 (seis) meses de prisão.
- 1 (um) crime de crime de violação de imposições, proibições ou interdições, previsto e punido nos termos do artigo 353.º, do CPenal do Código Penal a pena de 6 (seis) meses de prisão.
Cumpre agora proceder ao cúmulo jurídico das penas aplicadas tendo em conta o que a esse propósito dispõe o artigo 77º do C.Penal e assim, considerando a personalidade avessa ao cumprimento das regras estradais, o nulo efeito que sobre o arguido teve a anterior condenação em pena de prisão suspensa na sua execução, durante a qual o arguido cometeu os dois crimes aqui em apreço, a postura do arguido de ausência de arrependimento numa moldura abstracta que se situa entre os 6 meses de prisão e o limite máximo de 9 meses, aplicar ao arguido a pena de prisão de 7 (sete) meses».
A sentença recorrida entendeu que apenas uma pena de prisão é adequada à prossecução dos fins de prevenção geral essencialmente porque o arguido praticou os crimes agora em causa durante o período de suspensão da execução da pena de prisão em que foi condenado.
Na determinação da pena, o Juiz deve procurar a pena menos grave, capaz, nas circunstâncias relevantes e concretas do caso, de se mostrar comunitariamente suportável, sob a perspectiva da necessidade de tutela dos bens jurídicos e da estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada.
«
A pena concreta deverá corresponder a uma intervenção penal enformada pelos seguintes princípios politico-criminais: i) princípio da prevenção geral positiva ou de integração; ii) princípio da culpa; iii) princípio da prevenção especial positiva ou de socialização; iiii) complexivamente, princípio da humanidade. Prevenção geral de integração significa - na formulação de Gunther Jakobs – “estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade da norma violada, na ideia de que primordialmente, a finalidade visada pela pena há-de ser a da tutela necessária dos bens jurídico-penais no caso concreto”. Tutela não num sentido retrospectivo, face a um crime já verificado, mas com um significado prospectivo, traduzido pela necessidade de tutela da confiança e das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma violada ou do restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime. É neste sentido que importa ter em particular consideração que se à justiça compete o “estatuto de primeiro garante da consolidação dos valores fundamentais reconhecidos pela comunidade, com especial destaque para a dignidade da pessoa humana”, incumbe-lhe, então, no momento da iuris dictio, preservar a função de referência que a pena em concreto assume para a mesma comunidade no pressuposto de que, perante esta, “mais do que a moldura penal abstractamente cominada na lei, é a concretização da sanção que traduz a medida da violação dos valores pressupostos na norma”. Exigências de prevenção especial (ou, como parecerá ainda legitimo dizê-lo, prevenção da reincidência): i) positiva ou de socialização, se privilegiado o propósito da reinserção social, a ressocialização e/ou a socialização de um de-socializado; ii) negativa ou de inocuização quando, por pura exigência de defesa social se privilegie e procure a neutralização da perigosidade social do delinquente através da sua separação ou segregação
» (
11
).
No caso dos autos temos dois crimes atentatórios, respectivamente, do dever de cumprimento das decisões judiciais e da segurança rodoviária - que é uma das principais causas de morte e invalidez permanente no nosso país.
Verifica-se que o arguido, ao contrário do que refere, premeditou ambos os crimes a partir do momento em que soube que tinha um processo por homicídio estradal e executou os actos necessários e adequados ao real incumprimento da penas de inibição que lhe viesse a ser aplicada, mediante falsas declarações, assim se tendo efectivamente eximido ao cumprimento da sanção acessória que lhe foi aplicada no referido processo.
Temos, portanto, uma conduta especialmente gravosa, atentatória de princípios básicos do sistema judicial, que criou condições materiais adequadas ao o incumprimento de uma sanção aplicada relativamente a um crime grave e que radicou na determinação do arguido, mantida durante anos, em incumprir qualquer condenação penal em inibição de conduzir - que lhe pudesse advir, com o grau de probabilidade próprio da existência de um processo crime, relativo ao homicídio em que tinha sido interveniente.
Tendo em consideração as finalidades da punição, acima referidas, temos que concordar que uma simples pena não detentiva se revela inábil quer para efeitos de prevenção geral quer para efeitos de prevenção especial, pelo que se concorda com o tipo de pena aplicada.
***
No que concerne à medida da pena é jurisprudência assente no STJ que «
em matéria de revista sobre a medida concreta da pena, a sindicabilidade abrange a correção do procedimento ou das operações de determinação, o desconhecimento pelo tribunal ou a errónea aplicação dos princípios gerais de determinação, a falta de indicação de fatores relevantes para aquela, ou, pelo contrário, a indicação de fatores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, mas não abrangerá a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exato de pena, para controlo do qual o recurso de revista seria inadequado
» (
12
).
Este entendimento é extensível aos Tribunais da Relação, na medida em que o Tribunal de primeira instância é precisamente aquele que, em face da imediação com a produção da prova, melhor está em condições de apreciar da medida em que se verificam os critérios referidos no artigo 71º/CP, designadamente, da gravidade dos factos, a adequação da pena à culpa e a permeabilidade da personalidade do agente à reversão da conduta através dela, ou seja, aos fins de prevenção especial e de ressocialização.
Vistos os termos da fundamentação da medida da pena e da fundamentação da discordância, não encontramos razões para a alteração da mesma.
Contudo apreciemos a matéria ponto por ponto.
Não ocorrem circunstâncias modificativas da pena abstracta, quais sejam a reincidência, caso de atenuação especial ou a dispensa de pena.
A gradação das medidas das penas, no caso, far-se-á, portanto, com reporte unicamente às necessidades de prevenção, agravantes e atenuantes gerais.
Temos que considerar como agravante, no capítulo da ilicitude, a especial gravidade inerente à forma como foram executados os crimes, preparados com vista a fornecer uma aparência de autenticidade aos documentos obtidos e usados, quer em execução da aparência de cumprimento da entrega da licença de condução quer quanto à manutenção de condições que permitiram a continuação da condução de veículos, e à duração dos actos delituosos, uma vez que o arguido nunca cumpriu a ordem dada, sendo que os factos em julgamento nestes autos ocorreram já no fim do período fixado para a inibição de conduzir.
No que concerne os elementos relativos à culpa temos que considerar a prática dos crimes mediante dolo directo, sendo que em face da proibição da reformatio in pejus não se considerará a premeditação na medida em que nela se fundamentou a escolha do tipo de pena. Mais se pondera que sendo condutor de pesados o arguido está vinculado a uma maior sensibilidade sobre os perigos da condução, característica que não demonstrou.
Quanto aos motivos determinantes da conduta do agente, há que ponderar que foram subtrair-se a uma condenação penal, pondo em causa a eficácia da Justiça e a inerente credibilidade dos cidadãos no seu funcionamento.
No que concerne à personalidade revelada pelos crimes, impõe-se a consideração da especial gravidade da atitude interior que durou anos, desde o pedido da segunda via e veio a desembocar na execução dos crimes aqui em análise.
O arguido tem o antecedente criminal a que se refere o ponto 1 do provado.
Quanto às suas condições pessoais, trabalha por conta própria, é proprietário de dois veículos pesados e um ligeiro, vive com a esposa que não trabalha fora de casa e um filho de 23 anos ainda a seu cargo, tem casa própria e tem carta de condução há 30 anos.
Como atenuantes temos a confissão, se bem que arrancada a custo, o que implica ausência de sentido crítico e arrependimento, pois que ambos os crimes estão documentados e um deles cometido em flagrante delito. Aqui se considera também a sua integração familiar, profissional e social.
Tudo ponderado, não se encontra defeito na medida das penas aplicadas.
Aliás, a argumentação do arguido relativa à discordância da pena e medida da pena é manifestamente improcedente porque o Tribunal recorrido considerou as condições de vida do agente, a sua conduta anterior e posterior aos factos, a sua personalidade, a ausência de antecedentes criminais e o facto de ser condutor encartado desde há 30 anos.
O prejuízo que as penas em causa poderão determinar na sua vida familiar e profissional, atendendo à sua situação sócio-económica, é assunto do exclusivo foro do arguido, na medida em que sabia das consequências da sua actuação e resolveu agir como descrito, tendo-se que presumir que escolheu a via que melhor o servia (sibi imputet)
Desconhece-se factualidade que indique falta de condições de estabilidade emocional na prática dos crimes- antes pelo contrário, só uma premeditação segura os permitiu – e não se indicia qualquer arrependimento.
***
Da suspensão da pena única aplicada:
Mais entende o arguido que a pena única aplicada deve ser substituída por pena suspensa na sua execução, mediante a mesma argumentação acima enumerada.
O Tribunal recorrido apreciou a questão nos seguintes termos:
«
Apesar de a pena de prisão em que o arguido acaba de ser condenado se situar aquém do limite de 5 anos previsto no art.º 50.º, n.º 1, do Código Penal, mostrando-se assim preenchido o primeiro dos pressupostos daquela suspensão, o certo é que esta depende ainda de outros factores de natureza substancial e tem como requisito essencial a formulação de um “juízo de prognose favorável” relativamente ao comportamento futuro do arguido. (…).
No caso em apreço existem necessidades de prevenção geral, atenta a necessidade de acautelar a ocorrência de factos semelhantes e de transmitir à comunidade um sentimento de segurança que previna o receio de violação da norma, pois os tipos em causa destinam-se a tutelar bens jurídicos de natureza particular com manifesta importância comunitária e tendo em consideração a frequência com que estes tipos de crimes são praticados na comunidade, o que transmite para a comunidade e inculca nesta uma ideia de impunidade.
Sendo elevadas as necessidades de prevenção especial, pois o arguido tem antecedente por crimes de natureza estradal não tendo surtido qualquer efeito a pena aplicada, já que praticou estes dois crimes agora em causa no decurso da pena de prisão suspensa na sua execução por crime de homicídio negligente (acidente de Viação) já não nos permite concluir no sentido da probabilidade suficientemente segura do seu afastamento da prática de novos crimes (prevenção da reincidência), pelo que entendo que é não é possível formar um juízo de prognose positivo ao arguido,
Em suma, não é possível, fazer um juízo de prognose favorável ao arguido e considerar que as "exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico", ficarão asseguradas no presente caso com a suspensão da execução da pena, nos termos do disposto no artigo 50°, n.°1 do Código Penal, pelo que não se suspende a pena aplicada pelo período de um ano.
No entanto atendendo ao tipo legal de crimes em apreço consideramos que nos termos do artigo 43º do C.Penal a execução da pena de prisão aplicada poderá ser levada a efeito no regime de permanência na habitação com vigilância electrónica, desde que o arguido dê o seu consentimento e estejam reunidas toda as outras condições de que a lei faz depender a aplicação daquele modo de execução da pena de prisão, o que se decide.
Quanto à pena acessória de proibição de conduzir, tendo em consideração a anterior pena acessória que lhe foi aplicada para além de todas as considerações que acima tecemos relativamente à pena principal, julgo adequada a aplicação da pena acessória de proibição de conduzir por 8 (oito) meses»
.
Nos termos do artigo 50º/CP, a pena de prisão deve ser substituída por pena suspensa na sua execução sempre que o Tribunal conclua que a simples censura do facto e ameaça da prisão realizarão de forma adequada e suficiente a finalidades de punição, a partir da consideração dos factos provados quanto à personalidade do agente, às suas condições da sua vida, à sua conduta posterior e anterior ao crime e às circunstancias da prática do crime.
A finalidade político-criminal que a lei visa através do instituto da suspensão é o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes, carecendo, a aplicação medida, de ser adequada a uma prognose de prevenção especial, já que os fins da prevenção geral aqui devem fazer-se sentir unicamente sob a forma do conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico.
As exigências de prevenção geral, na operação de escolha sobre a pena suspensa ou efectiva, funcionam apenas como cláusula de
ultima ratio
, representam o grau mínimo de subsistência do sistema jurídico perante a hipótese de suspensão: há que aferir se, suspensa a execução da pena, o ordenamento jurídico claudica, perde subsistência, enquanto garante do efeito preventivo geral, ou seja, se a sociedade tolera ou não aquela suspensão sem a considerar como prova da fraqueza do sistema penal face àquele crime; se a pena suspensa é, ou não, ainda, entendida como uma mal imposto ao agente, ainda que visando um bem futuro. A sua aplicação funda-se, necessariamente, em critérios de legalidade, os quais, no essencial, se reconduzem à ideia da existência de prognóstico favorável quanto ao comportamento futuro do agente.
São, pois, unicamente considerações de prevenção - especial e geral - e não de culpa, que devem conduzir, ou não, à aplicação do instituto da suspensão da execução da pena (
13
).
Para aplicação desta pena de substituição é condição que o julgador se convença, face ao facto e ao agente, de que a ameaça da pena, como medida de reflexos sobre o seu comportamento futuro, evitará a repetição de condutas delituosas (
14
), atingindo as finalidades da protecção dos bens jurídicos e da reintegração do agente na sociedade.
A este juízo de prognose é essencial a consideração da personalidade do agente, das suas condições de vida, da conduta anterior e posterior ao crime e das circunstâncias que rodearam o crime, tudo determinando que o juízo de prognose do julgador seja favorável à suspensão, por esta se revelar adequada e suficiente à reinserção social do agente.
É certo que o Tribunal corre um risco, porque a decisão de suspender não assenta em certezas, mas trata-se de um risco calculado, prudente, porque a perspectiva no momento da decisão é, tem que ser, positiva.
Como ensina Jescheck, citado pelo acórdão do Supremo Tribunal de 30/06/93 (
15
) «
A suspensão da pena funciona como um instituto em que se une o juízo de desvalor ético-social contido na sentença penal com o apelo, fortalecido pela ameaça de executar no futuro a pena, à vontade do condenado em se reintegrar na sociedade. O tribunal deve estar disposto a assumir um risco prudente; mas, se existem sérias dúvidas sobre a capacidade do condenado para compreender a oportunidade de ressocialização que se oferece, a prognose deve ser negativa, o que supõe, de facto, um in dubio contra reo
».
No caso é indubitável a existência do pressuposto formal, conforme refere a sentença recorrida.
A questão é saber se em face da personalidade revelada é de pressupor que a simples ameaça da pena em que o arguido foi condenado é suficiente e adequada aos fins de ressocialização que se revelam necessários, tomando em consideração os factos a que respeita este processo, estreitamente conexos com os julgados no processo anterior. E, francamente, não se consegue vislumbrar onde ir buscar tal juízo de prognose.
Os crimes aqui em causa resultam de todo um processo de premeditação sobre a forma de ludibriar o funcionamento da Justiça, que manteve durante anos e que manteria, pelo menos, até final da pena acessória aplicada no anterior processo. Acresce que o esquema magicado e posto em prática seria sempre utilizável como fuga a condenações da mesma natureza.
O arguido revelou uma personalidade contrária aos deveres de cumprimento das normas relativas à condução, eficazmente manipuladora do sistema Judicial, apta a eximi-lo dos deveres inerentes a uma condenação penal, não se vislumbrando sequer arrependimento, quanto mais sinais de reponderação da sua postura relativamente à subordinação à lei e ao Direito, que é precisamente a base do funcionamento do Estado de Direito democrático em que Portugal se visa constituir (artigo 1º/CRP).
Em face do exposto, resta declarar a improcedência do recurso interposto.
***
Sumário:
VII. A habilitação para conduzir obtém-se pela obtenção da licença de condução, que se comprova num documento único.
VIII. Tendo o arguido na sua posse dois documentos que, sucessivamente, validaram a sua licença para conduzir, respectivamente, um enquanto carta de condução original revalidada e outro enquanto segunda via, obtida por alegado extravio da original revalidada, o título de condução válido foi precisa e unicamente a segunda via.
IX. O arguido, ao entregar a licença já caducada, não cumpriu a ordem de entrega da carta de condução contida na sentença que lhe aplicou a pena de inibição de conduzir, ou seja, cometeu um crime de desobediência.
X. Para apreciação da modalidade do dolo o que releva é unicamente o elemento subjectivo do agente referido ao facto que constitui crime e não a factos antecedentes ou consequentes que não interfiram nessa qualificação, do que resulta que o arguido agiu com dolo directo quanto aos crimes de desobediência e de violação de proibições.
XI. O crime de desobediência cometido não corresponde à previsão do nº 1-c) do artigo 69º/CP, pelo que a pena acessória de inibição de conduzir aplicada com reporte para ele não tem suporte legal
XII. Essa inibição decorre, no entanto, do disposto na alínea b) do mesmo dispositivo, com reporte para o crime de violação de proibições.
***
VII- Decisão:
Acorda-se, pois, negando provimento ao recurso, em manter a decisão recorrida nos seus precisos termos, com excepção do reporte da pena acessória de proibição de conduzir para o crime de desobediência, considerando, oficiosamente, que ela se reporta ao crime de violação de proibições.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça de 5 ucs.
Lisboa, 4/6 /2025
Maria da Graça dos Santos Silva
Ana Rita Loja
Cistina Isabel Henriques
_______________________________________________________
1. Vide acórdão tirado no STJ, processo 3554/02.3TDLSB.S2, de 20-10-2010, em
https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/7a5ec29d348534ab80257885004dc331?OpenDocument
.
2. Cf. Figueiredo Dias, «Temas Básicos da Doutrina Penal» (2001), 104/111.
3. Cf. artsº 1º, 2º e 27º da CRP.
4. Cf. Claus Roxin, «Culpabilidad Y Prevencion En Derecho Penal» (tradução de Muñoz Conde - 1981), 96/98.
5. Cf. «Derecho Penal- Parte General», I, (tradução da 2ª edição Alemã e notas por Diego Manuel Luzón Pena, Miguel Díaz y Garcia Conlledo e Javier de Vicente Remesal, Civitas), 99/101 e 103.
6. Cf. Figueiredo Dias, em «As consequências jurídicas do crime», 1993, 238 e ss. 7. Aí se radica uma diferença decisiva frente à teoria da retribuição, que também limita a pena pela medida da culpabilidade, mas que reclama, em todo o caso, que a dita pena àquela corresponda, com independência de toda a necessidade preventiva.
8. Cf Figueiredo Dias, «Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime», 227 e segs.
9. Cf. «Temas Básicos da Doutrina Penal», Coimbra Editora, 2001, no tema «Fundamento, Sentido e Finalidades da Pena Criminal», págs. 65 a 111.
10. Cf. Ac STJ, CJSTJ, 2005, III, 173.
11. Cf. Ac RP, de 03/03/2010, no proc. 119/09.2PBVLG.P1.
12. Cfr processo 545/20.6GFSTB.L1.S1, acórdão de 31-10-202 4em
https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/3bf633d50412637a80258bcb004fa39e?OpenDocument
.
13. Cf. ac. do STJ, de 20.02.2008, no proc. nº.08P295, em
www.dgsi.pt
14. Cf. ac. STJ supra citado.
15. Cf. ac. STJ supra citado.
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TRL
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https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/b09a6f00a197a01b80258cb50047ada3?OpenDocument
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1,740,355,200,000
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REVOGADA PARCIAL
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29/20.2T8AND.P1
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29/20.2T8AND.P1
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ANA OLÍVIA LOUREIRO
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I - A junção de documentos supervenientes em sede de recurso não pode visar a prova de factos que são eles próprios supervenientes e que não foram oportunamente alegados até ao encerramento da discussão;
II - Facultado contraditório à luz do artigo 665.º, número 3 do Código de Processo Civil para a hipótese de se vir a conhecer do mérito de pedidos sobre os quais o Tribunal
a quo
omitiu pronúncia ou cujo conhecimento tenha ficado prejudicado por procedência de exceção dilatória que deva ser revogada, não pode a parte que não apresentou contra-alegações do recurso vir então fazê-lo, apenas lhe sendo dado ensejo de se pronunciar sobre as concretas questões que o tribunal da relação pretende conhecer e não foram conhecidas em primeira instância;
III - A alegação dos defeitos da obra em ação destinada a responsabilizar o empreiteiro pelos danos deles resultantes é essencial não podendo o tribunal dar por provados defeitos não alegados e totalmente distintos dos que constam da petição inicial, apesar de resultantes da perícia, por não se tratarem de factos instrumentais, complementares ou concretizadores que resultem da instrução da causa;
IV - O tribunal não pode proceder à liquidação de pedido genérico, expressamente formulado com a indicação de que deveria ser liquidado “em sede de liquidação de sentença” sem que tal lhe tenha sido solicitado em incidente próprio.
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[
"JUNÇÃO DE DOCUMENTO EM FASE DE RECURSO",
"CONTRADITÓRIO EM SEDE DE RECURSO",
"EMPREITADA",
"DEFEITOS DA OBRA",
"PEDIDO GENÉRICO"
] |
Processo número 29/20.2T8AND.P1, Juízo Central Cível de Aveiro, Juiz 3.
Recorrente: AA
Recorrida: A..., Ldª
Relatora: Ana Olívia Loureiro
Primeiro adjunto: Nuno Marcelo de Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo
Segundo adjunto: José Nuno Duarte
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I – Relatório:
1. Em 17-01-2020 AA intentou ação a seguir a forma de processo comum contra A..., Ldª pedindo que se declarasse resolvido o contrato de empreitada entre eles celebrado e que esta fosse condenada a pagar-lhe: quantia a liquidar em execução de sentença, mas não inferior a 35.000 €, para indemnização de danos patrimoniais; o montante de 5.000 € para o ressarcir pelos danos não patrimoniais sofridos por causa dos defeitos da obra; valor, também a liquidar posteriormente, destinado à reparação dos defeitos que ainda se venham a manifestar na obra já realizada; indemnização pelo dano de privação do imóvel, a liquidar ulteriormente; e indemnização pelo que irá despender com o pagamento de juros remuneratórios devidos pelo mútuo hipotecário que celebrou para pagamento da referida obra, também a liquidar após a sentença.
Para tanto alegou que acordou verbalmente com a ré que esta procederia à construção de uma habitação, obra essa que a ré orçou em 140.090 € mais IVA e para cujo pagamento ele celebrou mútuo hipotecário. Tendo a ré iniciado a obra em setembro de 2016, o autor pagou já a quantia total de 67.000 €. Alegou que no decurso da obra se apercebeu de defeitos graves na construção, que descreveu, e que disse ter comunicado à ré que aceitou a corrigi-los o que, contudo, não fez de forma adequada, tendo abandonado a obra em fevereiro de 2019, data a partir da qual cessou todos os contactos com o autor. Por força desses comportamentos alegou ter suportado despesas com vista a reparações urgentes, no valor de 1.000 € mais IVA e, ainda, que terá de suportar outras reparações cujo custo não será inferior a 30.000 €. Sustentou que tais defeitos importaram uma desvalorização do imóvel de, pelo menos, 5.000 € e que tem pago juros remuneratórios pelo mútuo que foram “
desaproveitados
”. Descreveu ainda os seus padecimentos morais com o atraso na conclusão e os defeitos da casa onde pretendia vir a habitar o que ainda não pôde fazer.
2. A ré foi citada e contestou em 20-02-2020, excecionando a caducidade da denúncia dos defeitos, alegando ter corrigido todos aqueles que aceitou existirem de entre os que lhe foram comunicados até agosto de 2018, data a partir da qual o autor não lhe deu conhecimento de nenhuns outros, e ainda que decorreu mais de um ano desde a denúncia dos defeitos que o autor fez e a propositura da ação. Impugnou grande parte dos factos vertidos na petição inicial e alegou que depois de ter entregue o orçamento da totalidade da obra ao autor acordaram ambos em que a ré apenas executaria parte dos trabalhos de construção (até ao alvoramento e aplicação de massas finas no interior e exterior da moradia), após o que o autor contrataria com terceiros a execução dos demais trabalhos, o que veio a fazer. Mais alegou que o orçamento que entregou ao autor pela totalidade da obra se destinou apenas a que o mesmo o apresentasse ao banco mutuante e que aquele apenas começou a desentender-se consigo quando a ré se queixou de sucessivos incumprimentos da obrigação de pagamento do preço de trabalhos descritos em faturas que lhe foi emitindo, o que a levou a suspender os trabalhos em fevereiro de 2018 quando estavam já em dívida 15.602,50 €.
Só após o autor apresentou reclamações aos trabalhos executados o que levou a que fizessem uma reunião em agosto de 2018 em que o autor se comprometeu a pagar o montante em dívida e a ré se obrigou a executar algumas reparações, o que fez até novembro do mesmo ano, mediante fiscalização pelo autor dos trabalhos em curso, apesar de este não ter efetuado qualquer pagamento até novembro de 2018, data em que lhe pagou apenas 5.000 €. Segundo a ré não foi acordado entre ela e o autor qualquer prazo para conclusão dos trabalhos contratados.
Deduziu reconvenção peticionando a condenação do autor no pagamento de 10.602,50 €, parte do preço acordado pela obra que não foi não pago e, ainda, de 14.027,50 € relativos a trabalhos extra que diz ter efetuado a seu pedido e que não lhe faturou para evitar o pagamento de IVA já que antevia não o recuperar em função do incumprimento do autor. Alegou, ainda, a execução de outros trabalhos que apelidou de “
serviços extra
”, no valor de 4.650 € cujo pagamento também reclamou, deduzindo um pedido total de 28.930 € mais juros de mora vencidos e vincendos.
3. O autor replicou a 09-06-2020, respondendo à exceção de caducidade, dando conta das datas e formas das comunicações dos defeitos à ré e impugnando os factos que serviram de causa de pedir à reconvenção, nomeadamente quanto aos trabalhos extra realizados e ao seu valor. Alegou que ele mesmo pagou 2 520 € de materiais que foram usados pela ré, valor que ambos acordaram que seria descontado no preço. Excecionou o abuso de direito da reconvinte.
4. Remetidos os autos ao juízo central cível por força da alteração do valor da ação decorrente da dedução de reconvenção (por despacho de 17-06-2020), foi proferido despacho saneador em 07-09-2020 e nele se fixou o valor da causa, afirmou a validade da instância, foi admitida a reconvenção, se identificou o objeto do litígio, enunciaram-se os temas da prova e foram admitidos os requerimentos de prova.
5. Foi ordenada a realização de perícia cujo relatório foi junto a 24-02-2021 e que foi alvo de reclamação por banda do autor, que pediu segunda perícia, e pela ré, que pediu que o mesmo fosse completado.
6. Deferido o pedido da ré por despacho de 04-05-2021, foi apresentado novo relatório pericial a 13 de maio de 2021, em que foram dadas respostas às reclamações apresentadas e de que resultou a necessidade de realização de alguns ensaios em obra. Após, o autor requereu inspeção ao local e aditou testemunhas, tendo-se a ré oposto à realização dos ensaios sugeridos por serem suscetíveis de pôr em causa a estabilidade da obra, ao que o autor respondeu insistindo pela sua realização.
7. Em 14-12-2021 foi proferido despacho que remeteu para o decurso da audiência de julgamento a apreciação da necessidade de realização da segunda perícia e se designou data para audiência de julgamento.
8. A mesma iniciou-se em 07-10-2022 e prolongou-se por quatro sessões tendo na segunda, em 21-10-2022, sido ordenado que fosse completado o relatório pericial, pelo mesmo perito, o que foi feito a 03-04-2023, data de apresentação de novo relatório. Este, uma vez mais, motivou pedidos de esclarecimento pelo autor e pela ré que foram deferidos por despacho de 11-05-2023 e prestados a 10-07-2023, tendo essa resposta do Sr. Perito merecido novo pedido de esclarecimentos por banda do autor, mais uma vez deferidos por despacho de 25-09-2023 e prestados a 02-10-2023.
9. O autor veio então, a 13-10-2023, pedir a nova audição do perito em audiência de julgamento, para o que foi designada data por despacho de 13-11-2023.
10. A 07-02-2024 foi realizada nova sessão da audiência de julgamento com prestação de esclarecimentos do perito e inquirição de testemunhas, tendo o julgamento terminado em 30-03-2024.
11. Em 30-07-2024 foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente, e procedente a reconvenção e, em consequência: julgou resolvido o contrato de empreitada celebrado entre as partes; condenou a ré a pagar ao autor a quantia de 46.845,60 €; absolveu a mesma da instância quando ao pedido de indemnização pelo dano de privação do uso do imóvel; e, no que tange à reconvenção, condenou o Autor a pagar à Ré 27.736,33 € tendo operado a compensação dos créditos entre as partes no que resultou a condenação da Ré a pagar ao Autor o valor de 19.109,27 €.
II - O recurso:
É desta sentença que recorre o autor, alegando a nulidade da sentença por omissão de pronúncia e pretendendo a alteração parcial do julgamento da matéria de facto e a sua revogação parcial com a consequente:
i) condenação da ré no pagamento de 69.833 € e em quantia a liquidar posteriormente para pagamento das reparações que se venham a revelar necessárias, dos juros remuneratórios vincendos do mútuo hipotecário e para indemnização do dano da privação do uso; e
ii) absolvição do pedido reconvencional.
Para tanto, formulou as seguintes conclusões de recurso:
(…)
*
O recorrente juntou às alegações de recurso vários documentos que identificou como documento número 1, mas que consistem num atestado médico e três faturas/recibos de consultas, para o que alegou:
“168. Na realidade (o autor) encontra-se a ser acompanhado por médicos especialistas na área da psiquiatria e neurologia, frequentando até à data várias consultas, tudo conforme documento n.º 1 que se junta (atestado médico e faturas / recibos das consultas).
169. Sabe o A/ Recorrente que, nesta fase a junção de documentos é bastante limitada.
170. Sabe o A. que, da leitura articulada dos artigos 651.º, n.º 1, 425.º do CPC decorre que as partes apenas podem juntar documentos em sede de recurso de apelação, a título excecional, numa de duas hipóteses: superveniência do documento ou necessidade do documento revelada em resultado do julgamento proferido na 1.ª instância.
171. Neste caso, salvo melhor entendimento estamos perante superveniência objectiva já que o atestado foi elaborado apenas em agosto deste ano, não tendo sido possível a sua junção no tribunal de primeira instância”.
*
Não foram apresentadas contra-alegações e o recurso foi admitido por despacho de 26-11-2024 sem que a Mª juíza se tenha pronunciado sobre as alegadas nulidade da sentença como previsto no artigo 641.º, número 1 do Código de Processo Civil.
*
Recebidos os autos neste Tribunal, foi proferido despacho a 09-01-2025, nos termos do previsto no artigo 665.º, número 3 do Código de Processo Civil, em que se facultou contraditório às partes sobre a possibilidade de se vir a conhecer do mérito dos pedidos formulados sob as alíneas a), b) e c) do ponto 4 do pedido na sequência da eventual procedência da arguição de nulidade da sentença por omissão de pronúncia quanto aos dois primeiros e da revogação da decisão de absolvição da Ré da instância quando ao terceiro.
*
A recorrida pronunciou-se a 21-01-2025, pugnando pela inexistência de qualquer omissão de pronúncia, pela improcedência da impugnação da matéria de facto - para o que indicou e até transcreveu depoimentos gravados -, defendendo a confirmação da sentença recorrida e sustentando que o objeto do recurso está limitado ao conhecimento das alegadas nulidades da sentença (que diz não ocorrerem) bem como a decidir se o autor é titular de direito a indemnização por defeitos na obra e se existiu incumprimento do contrato de empreitada pela ré, não podendo este Tribunal conhecer de questões novas que eventualmente não tenham sido anteriormente apreciadas.
*
A 23-01-2025 a autora veio pronunciar-se no sentido da procedência dos três pedidos formulados nas alíneas a) a c) do ponto 4 do pedido sem necessidade de “
reenvio”
dos autos à primeira instância caso se conclua pela nulidade da sentença por omissão de pronúncia quanto às alíneas a) e b) e pela sua revogação quanto à ineptidão do pedido formulado sob a alínea c).
III – Questões a resolver:
Em face das conclusões do Recorrente nas suas alegações – que fixam o objeto do recurso nos termos do previsto nos artigos 635º, números 4 e 5 e 639º, números 1 e 2, do Código de Processo Civil -, são as seguintes as questões a resolver:
1. a nulidade da sentença por omissão de pronúncia e por contradição entre os fundamentos e a decisão e, ocorrendo tal vício, a apreciação dos seus efeitos;
2. a ineptidão do pedido formulado sob a alínea c) do ponto 4 por falta de causa de pedir;
3. a alteração da matéria de facto impugnada;
4. a alteração dos montantes indemnizatórios fixados em sentença destinados ao pagamento das reparações de defeitos no muro exterior e nas cassetes das portas de correr da habitação, para aplicação de EPS e orlas, ao ressarcimento das anomalias não reparáveis e dos danos não patrimoniais sofridos pelo Autor;
5. a condenação da ré no pagamento de montante a liquidar ulteriormente para ressarcimento do autor pela privação do uso da sua habitação, pelo pagamento de juros de mútuo bancário e para reparação de outros defeitos de construção que se venham a revelar e sejam posteriores à instauração da ação.
6. a absolvição do recorrente do pedido reconvencional como consequência da decretada resolução do contrato de empreitada.
Previamente, haverá ainda que conhecer da admissibilidade da junção de documentos pelo recorrente em sede de recurso.
IV – Fundamentação:
Por forma a evitar a repetição da enumeração dos factos provados e não provados e porque está impugnada parte da decisão sobre a matéria de facto, apenas se fará constar o elenco dos factos relevantes para a decisão após a apreciação dessa impugnação e em face do resultado da mesma.
*
1. Questão prévia da admissibilidade da junção de documentos em sede recurso:
Os documentos juntos pela recorrente são um atestado médico datado de 22 de agosto de 2024 em que se lê que o autor “
sofre de sintomatologia depressiva com insónias e labilidade emocional marcadas, aparentemente e segundo refere, relacionadas com o processo judicial em curso”.
Seguem-se faturas/recibos de:
- consulta de neurologia de 04-12-2023;
- consulta de neurologia de 22-08-2024 (que se presume que com grande probabilidade originou o atestado médico da mesma data); e
- consulta de psiquiatria de 14-03-2024;
A primeira constatação evidente a retirar do teor dos documentos juntos é esta: o autor terá consultado um neurologista em 04-12-2023, ou seja, já muito depois de iniciada a audiência de julgamento (cuja primeira sessão teve lugar a 07-10-2022) e as duas outras consultas que comprova por fatura foram posteriores ao encerramento desta (em sessão de 22-03-2024), tendo o mesmo transmitido ao seu médico que atribui a sintomatologia depressiva ao “
processo judicial em curso
”.
Tratam-se, assim de documentos que revelam que já depois do início da audiência de julgamento o autor terá consultado médico e terá sido diagnosticado com doença do foro psiquiátrico que o próprio atribui à pendência do litígio judicial.
Os documentos em causa são, assim, cronologicamente supervenientes à propositura da ação (e até ao início da audiência de julgamento) porque só depois desses momentos o autor se deslocou a consultas médicas.
A segunda evidência que resulta do teor dos documentos, agora no seu cotejo com a petição inicial, é que nesta nada foi alegado pelo autor que pudesse ser provado por via deles.
Senão vejamos:
A causa de pedir alegada pelo autor com vista a sustentar o pedido de condenação da ré em indemnização de danos não patrimoniais foi apenas esta:
“
69. Esta situação provocou e provoca grande desgosto no autor
70. Que almejava ter a sua casa pronta.
71 Que não sabe quais os defeitos qua inda podem surgir.
72. Sofreu arrelias e preocupações.
73. (…) chegou a chover lá dentro, situação que tem provocado grande desgosto aos A”.
O mesmo não alegou padecer de qualquer doença, como a depressão, o que apenas agora faz, em sede de recurso, para suportar o pedido de junção de documentos supervenientes.
Ou seja, mais do que juntar documentos supervenientes o autor quer alegar factos novos.
Ora tal apenas lhe era permitido até ao encerramento da discussão nos termos do previsto no artigo 588.º, números 1 e 3 do Código de Processo Civil.
Prevê o artigo 651.º, número 1 do Código de Processo Civil que: “
As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância”.
O referido artigo 425.º do mesmo Diploma, por sua vez, estatui que: “
Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento”.
Da descrição que se fez dos documentos que foram juntos em alegações não se vislumbra qualquer motivo para a apresentação dos mesmos, sendo que o recorrente nem sequer alegou quais os factos alegados na ação que tais documentos visam provar, inferindo-se claramente que quer provar um facto novo que apenas em recurso alegou: que se encontra
“a ser acompanhado por médicos especialistas na área da psiquiatria e neurologia, frequentando até à data várias consulta”.
Acresce que, no que se refere à matéria de facto que alegou na petição inicial e que ficou provada relativa aos seus danos não patrimoniais, o autor não pediu qualquer alteração, não tendo sequer impugnado o teor da alínea 52 dos factos provados.
Pelo que até pela sua irrelevância tais documentos não poderiam ser juntos, já que não se destinam a alterar qualquer facto provado ou não provado.
É, assim, manifesto concluir que não está verificado nenhum dos pressupostos em que poderia sustentar-se a admissibilidade dos documentos cuja junção, por tal, não se admite.
*
2. Da invocação da nulidade da sentença (alíneas OOOO a XXXX das conclusões).
O Recorrente sustenta que a sentença é nula quer porque omitiu pronúncia sobre dois pedidos formulados na petição inicial, quer porque há uma patente contradição entre a decisão de um desses pedidos a fundamentação de facto.
Quanto à nulidade por omissão de pronúncia a mesma baseia-se na alegação de que o Autor deduziu três pedidos de condenação da Ré no pagamento de valores a liquidar em execução de sentença e que nesta apenas se conheceu de um deles.
Os pedidos a formulados pelo Autor na petição inicial foram os seguintes:
1 - Seja resolvido o contrato de empreitada celebrado entre Autor e Ré;
2 - Seja a ré condenada a pagar ao Autor quantia não inferior a 35.000.00 € a título de danos patrimoniais a apurar em sede de liquidação de sentença.
3 - Seja a Ré condenada a pagar ao Autor, a título de indemnização por danos não patrimoniais, a quantia de 5.000,00 (cinco mil euros).
4
- Seja a Ré condenada a pagar ao A. as quantias a liquidar em execução de sentença relativas:
a) à reparação dos defeitos latentes, decorrentes de erros de construção que se venham a manifestar que se venham a manifestar entre a data da instauração da ação até à sua execução;
b) aos juros remuneratórios vincendos relativos às prestações do mútuo hipotecário, desde a data de instauração da presente ação até à conclusão dos trabalhos;
c) ao dano da privação do uso do imóvel, desde a data de instauração da ação até à conclusão dos trabalhos de reforço estrutural do prédio.
5 - Ser ainda a Ré condenada a pagar os demais acréscimos legais, designadamente juros de mora contados sobre a data da citação até integral pagamento, custas e procuradoria.”.
O dispositivo da sentença é o seguinte (no que respeita aos pedidos formulados pelo Autor):
“A) Julgo a acção parcialmente procedente por provada pelo que:
- Julgo resolvido o contrato celebrado entre as partes
- Condeno a Ré A... Lda a pagar ao Autor a quantia de 46.845,60 € (quarenta e seis mil, oitocentos e quarenta e cinco euros e sessenta cêntimos) a título de danos patrimoniais (remoção dos defeitos e desvalorização do imóvel) e danos não patrimoniais
- Absolvo a Ré da instância relativamente ao pedido de indemnização por dano da privação do uso do imóvel,”.
É manifesto que em tal dispositivo o Tribunal não se pronunciou expressamente sobre os pedidos genéricos de condenação da Ré no pagamento da quantia necessária à reparação de defeitos latentes e nem ao pagamento de juros remuneratórios relativos às prestações do mútuo hipotecário.
Da fundamentação da sentença resulta que o Tribunal
a quo
não apreciou sequer tais pedidos. No décimo parágrafo de fls. 16 da sentença é afirmado o seguinte, ao pretender fazer-se uma súmula do pedido: “
O pagamento de uma indemnização não inferior a 35.000,00 €, por danos patrimoniais, a liquidar em execução de sentença, sendo que no ponto 4 do pedido decompõe o mesmo valor (em consonância com os artigos 66 e 68 da petição inicial), no valor referente aos defeitos latentes e à desvalorização do imóvel”.
Ora não é correta esta interpretação do pedido do Autor que não pretende, no ponto 4 do petitório, decompor o valor de, pelo menos, 35.000 € para indemnização de danos patrimoniais pelos defeitos já existentes (que também pede que sejam liquidados ulteriormente no ponto 2 do pedido), mas antes aditar a esse pedido três outros pedidos genéricos, todos relativos a danos futuros, sendo um de pagamento da quantia necessária à reparação de defeitos latentes (ou seja, ainda não evidenciados), um outro destinado ao recebimento dos juros vincendos que pagará pelo empréstimo hipotecário que diz ter pedido para pagamento da empreitada e o último destinado à indemnização pela privação do uso do imóvel.
Quanto às duas primeiras pretensões a sentença nada diz, sendo manifestamente omissa quanto a tais pedidos (formulados nas alíneas a) e b) do ponto 4 do pedido) que não são referidos nem na fundamentação nem no trecho decisório, não se tendo o Tribunal
a quo
pronunciado quanto aos mesmos.
Assim, é de concluir pela nulidade da sentença nos termos do artigo 615.º, º 1 d) do Código de Processo Civil.
*
A nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão:
O Apelante também argui a nulidade da sentença por entender que a absolvição da instância da Ré quanto ao pedido de condenação no pagamento de indemnização pelo dano da privação do uso é contraditória com a prova do facto constante da alínea 51 (“
Tais problemas / defeitos referidos põem em causa a qualidade de vida que o Autor almejava encontrar na nova casa que viu perturbada a sua possibilidade de, em tempo útil, gozar a esperada tranquilidade e serenidade da casa.”
).
Pela sentença recorrida decidiu-se que o pedido de condenação da Ré no pagamento de indemnização pelo dano da privação do uso da habitação objeto da empreitada não podia ser apreciado, por falta de causa de pedir determinante da sua ineptidão, o que conduziu à absolvição da instância.
Para alcançar tal conclusão é apenas esta a fundamentação da sentença: “
A Autora vem ainda deduzir um pedido relativamente à privação do uso do imóvel. No entanto, quanto a este pedido, não alega qualquer facto, pelo que este é inepto, o que conduz à absolvição da instância.”
Foi, contudo, alegado e ficou provado, sob a alínea 51 dos factos provados que o Autor viu frustrada a possibilidade de gozar a tranquilidade e serenidade da sua casa “em
tempo útil”
. Entende o Recorrente que em face deste facto não podia afirmar-se que nenhum foi alegado em sustentação do pedido em causa, sendo contraditória a decisão proferida com o facto de se ter provado o teor da referida alínea 51.
O artigo 615.º número 1 alínea c) do Código de Processo Civil comina com nulidade a sentença em que “
os fundamentos estejam em oposição com a decisão”.
Nem sempre é clara a linha delimitadora entre situações em que ocorre e oposição entre os fundamentos e a decisão e aquelas em que o recorrente manifesta mera discordância com o decidido. Muitas vezes é ténue a distinção entre as situações em que não há fundamento para que a decisão fosse num determinado sentido em face dos factos provados, e aquelas em que a decisão foi proferida em sentido contrário ao que a fundamentação impunha.
É inúmera a jurisprudência que contribui de forma positiva para a clarificação dessa distinção, convocando-se aqui apenas um acórdão, por particularmente inteligível e sucinto, do Supremo Tribunal de Justiça, de 14-04-2021, no processo 3167/17.5T8LSB.L1.S1
[1]
sendo que no sumário deste último se pode ler, com total aplicação ao caso em apreço a seguinte afirmação: “
A nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão contemplada no artigo 615.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Civil pressupõe um erro de raciocínio lógico consistente em a decisão emitida ser contrária à que seria imposta pelos fundamentos de facto ou de direito de que o juiz se serviu ao proferi-la: a contradição geradora de nulidade ocorre quando os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto ou, pelo menos, de sentido diferente.”
.
Ora não se descortina uma contradição entre a fundamentação e a decisão proferida pois o mero teor da alínea 51 dos factos provados não impõe que se conclua necessariamente pela existência de causa de pedir bastante à procedência do pedido de indemnização pela privação do uso. O Tribunal valorou tal facto como causa de pedir relevante para a procedência do pedido de indemnização por danos não patrimoniais e não viu nele matéria bastante para a procedência do pedido de indemnização pela provação do uso, o que pode ser passível de censura, mas não revela contradição entre a fundamentação e a decisão da sentença. Como acontece com frequência, o recorrente pretende sustentar a nulidade da sentença em motivações que se prendem com o seu mérito confundido invalidade da sentença com o erro de julgamento que entende ter ocorrido.
Tal questão será, nesses termos, apreciada, mas não comporta a arguida nulidade da sentença, que apenas procede, assim, quanto à alegada omissão de pronúncia quanto a dois dos pedidos formulados.
*
Estipula o artigo 665º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “substituição ao tribunal recorrido”, que “
Ainda que declare nula a decisão que põe termo ao processo, o tribunal de recurso deve conhecer do objeto da apelação”,
desde que, naturalmente, disponha dos elementos necessários à decisão
[2]
.
Nesse pressuposto, e antevendo a possibilidade de sanação da nulidade arguida, foi já facultado às partes contraditório, que as mesmas exerceram nos termos acima sumariados.
Em vez de se pronunciar sobre o mérito dos pedidos que este Tribunal anteviu poder ter de conhecer e que não foram apreciados pelo Tribunal
a quo
(dada a omissão e pronúncia quanto a dois deles e à absolvição da instância quanto a outro), a Recorrida veio contra-alegar, defendendo a improcedência das nulidades arguidas no recurso e respondendo à impugnação feita à matéria de facto, para o que chegou mesmo a indicar e transcrever prova gravada.
O direito de responder às alegações de recurso pelo recorrido tem de ser exercido no prazo previsto no artigo 638.º, número 5 do Código de Processo Civil, idêntico ao do Recorrente, ou seja, e no caso, em 40 dias, por força do previsto nos números 1 e 7 do mesmo preceito.
Tendo sido notificada das alegações de recurso em 13-10-2024, por comunicação entre mandatários, a Ré não apresentou contra-alegações, pelo que não há que apreciar o que ora vem arguir com vista à improcedência do recurso.
Quanto à sua alegação de que este Tribunal não pode conhecer de quaisquer questões para além do que é objeto do recurso e que este se limita (no que aqui releva convocar) à apreciação das arguidas nulidades e da improcedência da exceção dilatória de ineptidão, não tem razão a Recorrida.
De facto, como consta do despacho em que foi facultado contraditório, o artigo 665.º do Código de Processo Civil é bem claro em impor que o tribunal de recurso conheça do objeto da apelação, “
ainda que declare nula a decisão que põe termo ao processo”
. E o seu número 2 estatui que
“Se o tribunal recorrido tiver deixado de conhecer certas questões, designadamente pro as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio, a relação, se entender que a apelação procede e nada obsta à apreciação daquelas, delas conhece no mesmo acórdão que revogar a decisão recorrida, sempre que disponha dos elementos necessários”.
Assim, caso se conclua, nomeadamente por via da reapreciação da matéria de facto que é pedida, que este Tribunal já dispõe dos elementos necessários ao conhecimento do mérito dos pedidos sobre os quais não decidiu pelo Tribunal
a quo
, deverá substituir-se a este.
Pelo que improcede a oposição da Recorrida à aplicação da regra de substituição ao Tribunal recorrido prevista no artigo 665.º do Código de Processo Civil.
*
3. A ineptidão da petição inicial quanto ao pedido formulado na alínea c) do ponto 4 por falta de causa de pedir.
A apreciação desta questão convoca a interpretação do disposto no artigo 186.º do Código de Processo Civil, que tem o seguinte teor:
“1- É nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial.
2 - Diz-se inepta a petição:
a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;
b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;
c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.
3 - Se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a) do número anterior, a arguição não é julgada procedente quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial. (…).”
O Autor pediu que a Ré fosse condenada a pagar-lhe quantia a liquidar em execução de sentença para indemnização do “
dano do uso do imóvel, desde a data da instauração da presente ação até à conclusão dos trabalhos de reforço estrutural do prédio.”
Para tanto alegou, em suma, que ficou impedido de usar a sua casa, em virtude dos vícios que a mesma apresentava. Certo é que com base nessa alegação e noutras sustentou também um pedido de indemnização por danos não patrimoniais. Todavia, é manifesto que alegou impossibilidade de uso da moradia que a Ré se obrigara a construir, o que ocorreu por força dos graves defeitos de construção que descreveu.
Na sentença, a fundamentação para a absolvição da instância da Ré quanto ao pedido em apreço foi apenas esta:
“
A Autora vem ainda deduzir um pedido relativamente à privação do uso do imóvel. No entanto, quanto a este pedido, não alega qualquer facto, pelo que este é inepto, o que conduz à absolvição da instância
.”
Do transcrito artigo 186.º, número 2 do Código de Processo Civil resulta, no que aqui releva, que ocorre ineptidão quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir.
Na lição de Castro Mendes
[3]
a “
ideia geral
” deste preceito seria a de “
impedir o prosseguimento de uma ação viciada por falta ou contradição interna do objeto do processo, que mostre desde logo não ser possível um acto (unitário) de julgamento”
A causa de pedir é em suma, o facto jurídico concreto, ou o conjunto deles, que faz nascer o direito com base no qual o autor formula o pedido.
Para Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio Nora
[4]
a causa de pedir será o facto concreto que serve de fundamento ao efeito jurídico pretendido.
Nos termos do artigo 552.º, d) do Código de Processo Civil, na petição inicial deve indicar-se a causa de pedir expondo “
os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à ação”.
O que são esses factos essenciais é questão que sempre tem de ser resolvida no confronto entre a pretensão do autor e o direito substantivo que pode suportar essa pretensão.
Na distinção entre os factos essenciais e os complementares afirma Teixeira de Sousa
[5]
que “
os factos essenciais são aqueles que permitem individualizar a situação jurídica alegada na ação ou na exceção; - os factos complementares são aqueles que são indispensáveis à procedência dessa ação ou exceção, mas não integram o núcleo essencial da situação jurídica alegada pela parte
”. Quanto aos primeiros afirma o referido Autor que “
são necessários à identificação da situação jurídica invocada pela parte e, por isso, relevam, desde logo, na viabilidade da ação ou da exceção: se os factos alegados pela parte não forem suficientes para perceber qual a situação que ela faz valer em juízo (…), existe um vício que afeta a viabilidade da ação ou da exceção. É por isso que, quando respeitante ao autor, a falta de alegação dos factos essenciais se traduz na ineptidão da petição inicial por inexistência de causa de pedir (…).”
Ora, é manifesto que o Autor alegou que ficou impossibilitado do pleno uso da sua habitação por causas imputáveis à Ré, que descreveu, e esses eram os factos essenciais à procedência do seu pedido. Assim, sem embargo de ter de se apreciar se tal facto ficou ou não provado e, na primeira hipótese, de saber se o mesmo é suficiente para a condenação genérica da Ré no pagamento de indemnização pela privação do uso a liquidar posteriormente (questões que se relacionam já com o mérito dessa pretensão), não pode afirmar-se que falta em absoluto causa de pedir.
Admitimos que nem sempre é fácil a distinção entre a falta de causa de pedir e a inviabilidade da petição. Muitas vezes na análise de um articulado se antolham dificuldades de prova decorrentes de uma forma vaga de enunciar certas questões de facto e, noutras, desde logo se divisa a falta de factos necessários à procedência da ação.
Nas palavras de Abrantes Geraldes
[6]
um critério de distinção entre situações de
inviabilidade
e de falta de causa de pedir, “
porventura pouco científico, mas pragmático e capaz de surtir feitos na maior parte das situações, poderá assentar num juízo de prognose acera da delimitação do caso julgado (…). Projetando no futuro a decisão, se for então possível determinar concretamente qual a situação jurídica que foi objeto de apreciação jurisdicional sem correr riscos de repetição da causa não se verificará a falta de causa de pedir. Já quando, por falta de invocação de qualquer matéria de facto, por grave deficiência na sua descrição ou por falta de localização no espaço e no tempo dos factos, for previsível o risco de repetição da causa ou se tornar impossível a averiguação da relação jurídica anteriormente litigada, deverá concluir-se pela ineptidão da petição inicial.
Aplicando tal critério - que os parece da maior utilidade - ao caso em apreço, não suscita qualquer dúvida de que seja qual for a decisão de mérito da ação, por via da sua causa de pedir está suficientemente delimitado o conteúdo do caso julgado. Ou seja, a procedência ou improcedência do pedido em análise impedirá o Autor de propor nova ação em que peça ressarcimento pelo dano da privação do uso do seu imóvel pelas causas referidas na petição inicial.
Pelo que na procedência do recurso nessa parte, deve ser revogada a decisão de absolvição da instância quanto à alínea c) do ponto 4 do pedido.
Valem aqui as considerações acima feitas sobre a aplicabilidade do disposto no artigo 665.º do Código de Processo Civil pelo que, em cumprimento do dever de substituição ao Tribunal recorrido, caso se conclua que existem elementos bastantes à decisão sobre o mérito desse pedido, será o mesmo apreciado.
*
4 – A impugnação da matéria de facto.
O Recorrente indicou os concretos pontos da matéria de facto que impugna e a redação que sugere para cada um deles bem como os meios de prova/raciocínios em que assenta a pretensão de alteração, pelo que estão cumpridos os ónus previstos no artigo 640.º do Código de Processo Civil.
Na apreciação das alterações ao elenco dos factos provados e não provados que é pedida seguiremos a ordem constante das conclusões do recurso.
*
a)
Alínea 50) dos factos provados:
“O desalinhamento dos pilares e o desalinhamento das paredes interiores constituem anomalias não reparáveis”.
A esta pretensão se referem as conclusões D) a I).
Pretende o apelante que passe a constar que: “
O desalinhamento dos pilares e o desalinhamento das paredes interiores constituem anomalias reparáveis no valor de 9.000,00€ + IVA”
.
Em abono desta pretensão o recorrente salienta que da própria fundamentação da sentença resulta que “o
Autor deve ser compensado da anomalia descrita no ponto 50 desalinhamento dos pilares e desalinhamento das paredes, sendo estes os únicos defeitos que poderão levar a uma desvalorização do prédio (uma vez que todas as outras anomalias são reparáveis). Ora, este desalinhamento é ligeiro e tem consequências meramente estéticas. Assim, recorrendo à equidade, entende-se que 500,00 € é um valor adequado para compensar o Autor por essas anomalias”.
Discorda o recorrente do valor assim fixado com base na equidade, propondo que se julgue provado que as referidas anomalias são reparáveis e que o valor necessário à sua reparação é de 9.000 €.
Sustenta-se:
- nos esclarecimentos prestados pelo perito a 11-05-2021, página 4 onde se lê: “
As anomalias identificadas não valorizadas, correspondem a trabalhos que impõem a demolição de parte da construção com valor significativo cujo binómio custo / benefício, é altamente penalizador para essa opção. A valorização de compensação, corresponderá a uma desvalorização do valor de mercado do imóvel, função da depreciação deste, pela existência dessas Não Conformidades.”;
-
na página 12 do relatório pericial, junto aos autos a 24-02-2021, onde se lê:
“É possível quantificar o desalinhamento destes pilares? Resposta: Não, por não ser evidente (por estar omisso) no projecto de arquitectura, a localização do pilar do meio, que define esse alinhamento. Relativamente à verticalidade e considerando os pilares acabados, haverá um desvio de cerca de 2.5 cm da base ao capitel de um dos pilares em relação ao outro, isto é, um deles não estará na vertical. 22. Qual o motivo para os pilares estarem desalinhados? Resposta: Falta de informação robusta, no projecto de arquitectura da localização do pilar do meio, que define o alinhamento reclamado.”.
-
na página 8 desse mesmo relatório, onde se lê: “
10. As paredes no interior da habitação estão alinhadas e aprumadas? Resposta: Identificam-se ligeiros desalinhamentos de panos de parede descontínuos por interposição de vãos de portas interiores, e consequente perda de alinhamentos.”; e,
“10. A parede interior tem um perfeito acabamento, como referenciado em orçamento?
Resposta: Não, de acordo com a resposta ao quesito 6, também as paredes interiores não têm um acabamento perfeito. 11. Estas paredes estão prontas a receber pintura sem se notar quaisquer imperfeições? Resposta: Não, de acordo com a resposta a quesito 8, do mesmo modo que nos tectos, a pintura nas paredes não resolverá o problema das imperfeições”.
- na página 25 desse mesmo relatório:
“10. As paredes no interior da habitação estão alinhadas e aprumadas? Resposta: Identificam-se ligeiros desalinhamentos de panos de parede descontínuos por interposição de vãos de portas interiores, e consequente perda de alinhamentos; 11. Se não, qual o facto que provocou esta constatação? Resposta: Execução defeituosa, más práticas construtivas.
- nos esclarecimentos prestados pelo Sr. Perito em audiência de julgamento, em trechos que transcreve, em que o mesmo admite que uma das paredes da sala está desalinhada e que tal defeito pode ser corrigido picando toda a sua parte central (entre as duas portas ali existentes), refazendo-a.
É certo que nos esclarecimentos prestados em audiência de julgamento o perito referiu que o desalinhamento de uma concreta parede da sala é suscetível de reparação (picando toda a sua parte central e refazendo-a nessa área) e que a fls. 25 do relatório pericial afirmou que os desalinhamentos das paredes têm meras consequências estéticas e que são facilmente resolúveis.
Os demais defeitos relativos ao desalinhamento de pilares e parede -, a que se refere o relatório pericial e os esclarecimentos ao mesmo nos concretos pontos referidos pelo recorrente -, são descritos como irreparáveis no sentido de que a única forma de eliminação dos defeitos seria a demolição dos pilares, ou seja, da obra. Nos esclarecimentos prestados por escrito a 13-05-2021, o perito refere, a fls. 5 que o desalinhamento dos pilares não pode ser corrigido sugerindo que seja compensado monetariamente esse defeito, para o que não indica, naturalmente, qualquer valor.
O mesmo refere quanto ao desalinhamento das paredes, resposta que, contudo, não se compreende quando o perito assumiu, em audiência de julgamento, que numa delas bastaria picá-la e refazê-la (recolocando massa, presume-se), ou seja, tratar-se ia de um desalinhamento superficial e não na estrutura da própria parede.
Como tal, conclui-se que há, pelo um desalinhamento de uma das paredes que será reparável sendo, contudo o das demais e dos pilares irreparável, por importarem, segundo o perito, a demolição da obra.
Já quanto ao custo que o autor terá de suportar para reparar a parede cujo desalinhamento pode ser corrigido por via do método sugerido em audiência de julgamento – picando-a e voltando a fazê-la -, nada foi alegado pelo autor na petição inicial, não tendo o mesmo deduzido qualquer pedido líquido, pelo que nunca poderia proceder a sua pretensão de condenação da ré num montante que apenas em sede de recurso veio liquidar.
Acresce que mesmo que ainda que este Tribunal não estivesse, como está, limitado pelo pedido nos termos do artigo 609.º, número 1 do Código de Processo Civil, não tendo tal custo sido apurado na perícia nunca poderia o mesmo dar-se por provado, como pretende o recorrente. Nenhum dos meios de prova convocados por este permitem concluir pela reparabilidade dos pilares desalinhados e de todas as paredes com tal defeito e nem, portanto, que tais reparações terão os custos que sugere.
O autor, aliás, contraditoriamente, defende que os valores que indica devem ser fixados com base na equidade, pelo que nunca poderia a sua pretensão ter acolhimento em sede de apreciação da matéria de facto, já que o critério que sugere para fixação da indemnização à luz do artigo 566.º, número 3 do Código Civil apenas pode ser aplicado quando não puder ser averiguado o valor exato dos danos.
Assim, o teor da alínea 50 dos factos provados apenas em parte pode ser alterado passando a constar do mesmo que:
50 -
O desalinhamento dos pilares referido em 30 f) e 31 g) bem como os das paredes não são reparáveis, com exceção do painel central da parede da sala entre as duas portas ali existentes, que pode ser picado e refeito para eliminar o desalinhamento de que padece.
*
b)
Pretende o Apelante que a alínea l) dos factos não provados seja dada por provada no sentido que o muro referido em 46 e 47 foi um serviço “
extra
”, feito pela Ré a pedido do autor.
Esta pretensão está expressa nas alíneas J) a BB) das conclusões do recurso.
Na alínea l) sob censura deu-se por não provado que o muro referido nas alíneas 46 e 47 dos factos provados estivesse previsto no orçamento.
Ficou, contudo, provado nas alíneas 46 e 47 que esse muro foi construído pela Ré e que se destinava à contenção de terras do jardim no seguimento da parede da frente da casa estando deformado e com patologias que demonstram a sua falta de estabilidade e a eminência de colapso. Foi ainda julgado provado que para o reparar serão necessárias as suas demolição e reconstrução.
Sucede que compulsados os articulados é patente que em nenhum deles é referida a existência de qualquer defeito em muro exterior, que defeito é esse, que reparação exige e que valor terá esta.
A presente ação visa a resolução de contrato de empreitada por força de defeitos de construção e da recusa do empreiteiro a repará-los bem como da sua indevida reparação nos casos em que aceitou fazê-lo. Visa, ainda, a condenação do empreiteiro nos danos decorrentes desses defeitos, descritos na petição inicial.
Os defeitos da obra que motivam a ação eram, portanto, factos essenciais que o autor tinha que alegar, não podendo o tribunal dá-los como provados ainda que resultassem da instrução da causa, em face do previsto no artigo 5º, número 1 e número 2 (este “
a contrario”
)
do Código de Processo Civil. O Autor alegou os defeitos da obra no artigo 13 da petição inicial. No seu artigo 17 refere que os mesmos “
se foram multiplicando
” e nos artigos 30 a 35 descreve novos defeitos que constatou e comunicou à ré, sendo alguns resultantes das obras por ela feitas para reparação dos anteriores. Em nenhum desses artigos há a referência a qualquer muro.
A final, no artigo 66.º da petição inicial, afirmou o Autor desconhecer os problemas que a moradia ainda terá no futuro fruto da má construção, “
nomeadamente no telhado, isolamento do teto do rés do chão e quais serão as consequências da aplicação de areias com salitre
”. Relegou para “
liquidação de sentença
” o valor necessário à reparação dos defeitos que alegou, bem como dos que ainda se viessem a revelar depois da petição inicial. Não liquidou tal indemnização em qualquer requerimento ulterior, nomeadamente em sede de incidente de liquidação.
Não podia, assim, o Tribunal
a quo
, como fez, dar por provados os alegados defeitos no muro, porque não foram alegados e apenas resultaram da prova pericial porque foi indevidamente fixado à mesma um objeto que em larga medida ultrapassava o objeto da ação e nessa parte, portanto, deveria ter sido indeferido.
Pelo que a matéria assim indevidamente dada por provada não terá qualquer consequência na decisão, jamais podendo proceder uma pretensão de indemnização com vista à reparação de um defeito que não foi alegado pelo autor nem se insere nos “
defeitos latentes
” que o mesmo alegou que poderiam ainda revelar-se depois da propositura da ação.
Aquilo contra que se insurge o recorrente e que pretende alterado por via da impugnação da alínea l) dos factos não provados é, na verdade, a não condenação da ré no pagamento do valor destinado a uma obra de reconstrução de um muro. Condenação que, contudo, não pediu.
O Tribunal
a quo
considerou na sentença que, não tendo sido tal trabalho orçado e nem incluído nos serviços extra pedidos pelo autor, terá sido feita a título gracioso.
Sucede que não tendo o autor alegado qualquer defeito em qualquer muro nem pedido qualquer indemnização pela sua reparação (nem a liquidar posteriormente), nunca na sentença poderia condenar-se a ré a pagar qualquer quantia com esse fim por força do disposto no artigo 609.º do Código de Processo Civil.
Nessa medida, é inútil a pretendida apreciação da impugnação da alínea l) dos factos não provados – no sentido da sua eliminação e da sua passagem a provada com a nova redação sugerida -, já que seja qual for a decisão sobre tal facto nunca a Ré poderá vir a ser condenada pelo pagamento de indemnização de um defeito que não foi alegado na petição inicial.
Pelo que não se conhecerá de tal pretensão, já que não é lícito realizar nos autos atos inúteis, em face do disposto no artigo 130.º do Código de Processo Civil
[7]
.
*
c) Pede o recorrente que a alínea 48 dos factos provados passe a ter a seguinte redação: “
Relativamente às portas aplicadas nas cassetes existem diferenças nos alinhamentos com os aros, fruto de má aplicação das cassetes, uma vez que a verticalidade das portas é garantida pela gravidade função do peso e do sistema de suspensão na calha de rolamento da guia, o que causará que as portas começarão a roçar nos aros, com prisão do movimento, poderão começar a emitir ruído de atrito e a ficar com as faces danificadas nas zonas de contacto, não havendo garantia de fecho efetivo das portas.
O Tribunal
a quo
deu por provado que “
Relativamente às portas aplicadas nas cassetes existem diferenças nos alinhamentos com os aros
, fruto de má aplicação deste
, uma vez que a verticalidade das portas é garantida pela gravidade função do peso e do sistema de suspensão na calha de rolamento da guia, o que causará que as portas começarão a roçar nos aros, com prisão do movimento, poderão começar a emitir ruído de atrito e a ficar com as faces danificadas nas zonas de contacto, não havendo garantia de fecho efectivo das portas.”
(sublinhou-se o trecho alvo da discordância do recorrente).
A pretensão do recorrente sustenta-se no argumentário que está sintetizado nas conclusões CC) a KK) e que é este:
- a fls. 31 e 32 do relatório pericial junto a 24-02-2021 consta: “
Existem evidências que as cassetes para as portas de correr foram bem aplicadas? Resposta: Constata-se a existência de chapas de fundos falsos na parte inferior das cassetes, denotando a necessidade de adaptação da sua dimensão (altura) em função do nível do pavimento ou altura das portas.
Existem evidências que a base destas cassetes foi removida e foi aplicada solução alternativa para baixar o nível da base e garantir a infraestrutura para receber as portas? Resposta: Sim conforme referido na resposta ao quesito 32 34. As portas aplicadas nestas cassetes estão devidamente aprumadas? Resposta: Sim, as diferenças evidenciadas nos alinhamentos com os aros são fruto de má aplicação dos aros, uma vez que a verticalidade das portas é garantida pela gravidade função do peso e do sistema de suspensão na calha de rolamento da guia.”.
- nos esclarecimentos prestados a 13-05-2021, consta: “
Deve esclarecer se o que quis referir é que foi má aplicação das cassetes? Não estão aprumadas? Ou os aros de madeira? Os aros de madeira terão a ver com as paredes não aprumadas? Esclarecimento: Sim, é o que está implícito quando se refere que as diferenças evidenciadas nos alinhamentos com os aros, são má aplicação dos aros, logo das cassetes. Não parece lógica a relação de falta de verticalidade dos aros com o não aprumar das paredes.”.
- na sessão da audiência de julgamento de 07-10-2022 o perito afirmou que quem assentou as cassetes foi a Ré e não o carpinteiro pelo que é àquela que deve imputar-se o defeito em causa.
- na mesma sessão da audiência de julgamento o legal representante da ré admitiu que foi esta quem procedeu à colocação das cassetes.
O defeito relativo às portas de correr foi alegado no artigo 33º da petição inicial da seguinte forma: “
No dia 22-01-2019 o autor dirigiu-se a casa do legal representante da Ré reclamar das cassetes (portas de correr) que estravam acima do piso acabado, 4/5 cm
.”. O autor alegou, ainda, que a ré teve de “
partir todo o trabalho que já estava feito para remediar”.
Admitindo que, embora parcamente alegado, o defeito assim descrito na petição inicial se consubstancie, também, no desalinhamento da porta de correr com os aros e que resulte no provável comprometimento futuro das funções de abertura e fecho das portas de correr (e tal foi alegado na petição inicial), será conhecida a impugnação em apreço.
O relatório pericial descreve o alegado defeito da seguinte forma: “
Constata-se a existência de chapas de fundos falsos na parte inferior das cassetes, denotando a necessidade de adaptação da sua dimensão (altura) em função do nível do pavimento ou altura das portas”.
Ou seja, decorre que a diferença de altura das portas (de correr e suspensas em calha) em relação ao piso estava já corrigida pela existência de um fundo falso nas cassetes. Tais cassetes são estruturas metálicas assentes no pavimento, com uma calha superior, que ficam no interior da parede, sendo nelas que corre a porta. Já os aros, como esclareceu o perito em audiência de julgamento, “
são apenas os remates visuais para ficar bonito”.
Dos esclarecimentos do perito em audiência de julgamento resulta claro que o mesmo referiu que o que ficou desalinhado foi a cassete e não o aro, que disse que estava na continuidade da parede. Foi seguro em afirmar que o erro consistiu na forma de colocação das cassetes.
Do depoimento do legal representante da ré resultou, por sua vez, que foi esta quem aplicou as cassetes.
Donde, tem razão o recorrente na sua pretensão passando a redação do artigo 48.º dos factos provados a ter a seguinte redação:
48 - Relativamente às portas aplicadas nas cassetes existem diferenças nos alinhamentos com os aros, fruto de má aplicação das cassetes, uma vez que a verticalidade das portas é garantida pela gravidade função do peso e do sistema de suspensão na calha de rolamento da guia, o que causará que as portas começarão a roçar nos aros, com prisão do movimento, poderão começar a emitir ruído de atrito e a ficar com as faces danificadas nas zonas de contacto, não havendo garantia de fecho efetivo das portas.
*
d) Quanto à alínea 33) dos factos provados, o apelante quer que passe a ter a seguinte redação: a correção das anomalias referidas nos pontos 30 a 32, 47 (muro) e 49 (cassetes) tem um valor de 34.501,50 €, a que se deve somar o valor das anomalias indicadas em 30 f), 31 a) e 31 g) no valor de 9.000,00€ + IVA (11.070,00€), perfazendo assim o valor de 45.571,50 €.
A tal apenas se refere a conclusão SSS das alegações de recurso.
É o seguinte o teor da alínea 33 dos factos provados: “
A correcção das anomalias referidas nos pontos 30 a 32 (com excepção das referidas em 30 f), 31 a) e 31 g)) tem um valor de 28.511,50 €.”.
Na alínea em causa o Tribunal limita-se a somar os valores que considerou provados como sendo necessários à reparação dos defeitos que veio a imputar à ré.
Sucede que muito embora o autor pretenda agora que se julguem provados custos de algumas reparações de defeitos que imputa à ré, o mesmo formulou na petição inicial um pedido ilíquido de indemnização, num valor “
não inferior a 30.000 €”,
destinado a ressarci-lo pelos custos que terá que suportar com reparações que tenha que vir a fazer.
O pedido, genérico, de indemnização é admissível à luz dos artigos 569.º, do Código Civil e do 556.º, número 1 b) do Código de Processo Civil.
E como já acima se sublinhou, o mesmo não chegou a ser liquidado no decurso dos autos, como previsto no número 3 desse preceito.
O Tribunal
a quo
, sem que tal lhe fosse solicitado, condenou a ré no pagamento de uma quantia líquida com base, uma vez mais, num meio de prova, a perícia, a que fixou um objeto com amplitude superior ao da causa de pedir.
Depois disso e já no decurso da segunda sessão da audiência de julgamento, o Tribunal
a quo
entendeu de deferir parcialmente o requerimento do autor (que pretendia até a realização de uma segunda perícia) com vista, nomeadamente, à indicação dos custos de reparação dos defeitos da obra, tendo solicitado ao perito já nomeado essa orçamentação.
Sobre os custos das reparações, todavia, nada foi alegado pelo autor nem na petição inicial nem posteriormente em incidente de liquidação, não tendo, portanto, sido deduzido pedido (nem, portanto, exercido contraditório) sobre quaisquer valores a tanto destinados.
A Ré, contudo, não recorreu e não são de conhecimento oficioso as nulidades previstas no artigo 615.º, número 1 do Código de Processo Civil, nomeadamente a resultante da sua alínea e).
Embora a nosso ver seja inequívoco que a condenação em quantia líquida está vedada ao tribunal quando foi formulado pedido genérico a liquidar ulteriormente, para que não restem dúvidas sobre a impossibilidade de se liquidar oficiosamente pedido genérico, salienta-se que nem a previsão legal do artigo 609.º, número 2 do Código de Processo Civil não permite tal solução.
A redação desse preceito é a seguinte: “
Se não houver elementos para fixar o objeto ou a quantidade, o tribunal condena no que vier a ser liquidado, sem prejuízo de condenação imediata na parte que já seja líquida”
. Tal preceito visa permitir que o tribunal decida por uma condenação a liquidar posteriormente quando o pedido tenha sido líquido, mas não seja possível fixar o seu objeto ou quantidade.
Nas palavras de Teixeira de Sousa
[8]
, sendo formulado pedido genérico o tribunal vai proferir uma condenação genérica. Segundo tal autor, “
A correspondência entre o pedido (pelo autor) e o decidido (pelo tribunal) que se verifica neste caso dispensa a aplicação do disposto no art. 609.º, n.º 2, CPC, dado que este preceito destina-se a permitir que, tendo o autor formulado um pedido líquido, o tribunal venha a proferir uma condenação genérica. Em termos mais sintéticos: o art. 609.º, n.º 2, CPC é indispensável para evitar uma nulidade da decisão por falta de correspondência entre o pedido e o decidido (cf. art. 615.º, n.º 1, al. e), CPC), pelo que nunca é aplicável quando o autor tenha formulado inicialmente um pedido genérico.”.
Nestes casos, como afirma tal autor, a forma de proceder à liquidação de condenação genérica é a dedução de incidente de liquidação. O que nos parece, salvo o devido respeito, incontroverso.
Sobre tal questão se debruçou o Supremo Tribunal de Justiça em acórdão de 05-09-2023
[9]
, em que se afirma, com interesse para a questão que abordamos:
“Tendo este pedido genérico sido deduzido ao abrigo do artigo 556., n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil, a sua liquidação depende necessariamente da dedução do respetivo incidente previsto no artigo 358.º do mesmo Código, conforme resulta expressamente do n.º 2 do artigo 556.º. É, assim, desprovida de base legal, a alegada pretensão de liquidação do pedido genérico em sede de recurso de apelação, como parece sustentar o Tribunal da Relação.”.
Em suma, e uma vez mais, não poderia o Tribunal
a quo
ter dado por provados factos essenciais não alegados e nem ter procedido à liquidação de pedido genérico que não lhe foi solicitada. Nessa parte a decisão está transitada em julgado por não ter sido alvo de recurso e não pode ser alterada. Todavia, não pode este Tribunal acolher o mesmo entendimento que seguiu a sentença recorrida e dar agora por provados custos de reparação de outros defeitos que naquela não se verteram, como pretende o recorrente, já que os mesmos não foram alegados na ação e nem relevam, a qualquer título para o pedido, genérico, de condenação da ré a indemnizá-lo por danos decorrentes da necessidade de reparação dos defeitos da obra.
Ou seja, e uma vez mais à luz do artigo 130.º do Código Civil, também pela proibição da prática de atos inúteis fica prejudicado o conhecimento da pretensão em apreço.
*
f) Pede, ainda, o apelante que passem a provados os factos constantes das alíneas i), j) e k) dos não provados.
A essa pretensão referem-se as conclusões PP a VV das alegações.
Deu-se por não provado que:
“i) A cobertura se encontre suja de massas;
j) Os rufos tenham sido mal aplicados;
k) O Autor tenha efectuado a reparações urgentes no valor de 1000,00 €;”
Para sustentar que o teor das alíneas i) e j) seja julgado provado o recorrente pede a reapreciação dos seguintes meios de prova:
- relatório pericial junto a 24-02-2021, onde, a fls. 50 consta: “
A cobertura da obra encontra-se manchada e suja? Resposta: Conforme já referido, pese embora haja situações pontuais, não são suficientemente visíveis para provocarem impacto num observador menos atento. 2. Os remates do telhado encontram-se mal aplicados? Resposta: Conforme já referido, há utilização de argamassas em excesso, aplicação de tamancos deficientes, e desalinhamento de telhas em especial na entrega às cumeeiras.”;
- esclarecimentos prestados a 13-05-2021, de que resulta, a fls. 14, que o perito não fez a vistoria do telhado em visita ao mesmo (presumindo-se que o viu a partir do solo ou de outro ponto), para o que precisaria de meios de elevação com proteção certificada; e
- esclarecimentos prestados pelo perito na sessão da audiência de julgamento de 07-10-2022.
Ouvida a gravação desta sessão verifica-se que, de facto, o sr. Perito confirmou haver desalinhamento na cumieiras e na fixação dos tamancos tendo nos mesmos sido aplicada argamassa a mais. Foram precisamente o excesso de argamassa em vários pontos e o desalinhamento do remate das cumieiras com tamancos fixados por argamassa que foram alegados pelo autor na petição inicial.
Tais defeitos foram confirmados quer no relatório pericial, na parte acima transcrita, quer pelos esclarecimentos prestados pelo perito em audiência de julgamento.
Nos pontos b) e e) da alínea 32 dos factos provados já consta, aliás, que a quantidade de argamassa usada nos remates dos tamancos poderá causar infiltrações e que há telhas levantadas pela existência de argamassa em excesso.
Pelo que deverá ser eliminada a alínea i) dos factos não provados.
Não se vê, todavia, face ao teor dos pontos b) e e) do facto provado sob a alínea 32, qualquer necessidade de aditar tal facto aos provados, bastando a nosso ver a melhor especificação do teor da primeira para que dela resulte claramente que o problema ali apontado “
da quantidade de argamassa”
usada nos remates é o do seu excesso, tal como acontece com o posicionamento das ripas.
Da simples circunstância de o perito não ter subido ao telhado não resulta provada a versão ora sugerida pelo recorrente, de que o telhado está sujo de massas, para além do que concretamente resulta da perícia e dos esclarecimentos prestados pelo seu autor que bem descreveu os locais onde havia excesso de argamassa.
Assim, o ponto b) da alínea 32 dos factos provados, passará a ser a seguinte a sua redação:
b) há um nítido desalinhamento na entrega do telhado às cumeeiras e na fixação dos “tamancos” o que poderá causar infiltrações, especialmente pelo excesso de argamassa usada nos remates.
Já quanto ao teor da alínea j) dos factos não provados, cuja redação resulta da alínea s) do artigo 13 da petição inicial, não há fundamento para a sua alteração.
De facto, da prova reapreciada não resulta – aliás, nem o recorrente indica nenhuma nesse sentido -, que os rufos estejam mal aplicados.
No relatório pericial junto a 24-02-2021 o perito afirmou claramente:
“não se identificaram deficiências na aplicação dos rufos”.
Tal resposta não foi contrariada por qualquer outro meio de prova pelo que se deve manter a não prova de que os rufos tenham sido mal aplicados.
Relativamente à alínea k) dos factos não provados o recorrente pretende, com vista a que passe a provada, que se reapreciem os seguintes meios de prova:
- relatório pericial de 24-02-2021, a páginas 31 e 32 onde se lê: “
Existem evidências que as cassetes para as portas de correr foram bem aplicadas? Resposta: Constata-se a existência de chapas de fundos falsos na parte inferior das cassetes, denotando a necessidade de adaptação da sua dimensão (altura) em função do nível do pavimento ou altura das
portas. 33. Existem evidências que a base destas cassetes foi removida e foi aplicada solução alternativa para baixar o nível da base e garantir a infraestrutura para receber as portas? Resposta: Sim conforme referido na resposta ao quesito 32”.
- as declarações do autor na audiência de julgamento de 07-10-2022 em que o autor afirmou que o legal representante da ré se comprometeu a ir retirar as cassetes e colocar nova calha em u, mas que apenas foi lá retirar algumas tendo sido o autor a ter de concluir essa reparação.
Ora, como é manifesto, este depoimento do autor é claramente insuficiente para a prova do que pretende, não tendo o mesmo apresentado qualquer outro meio de prova que confirmasse qualquer reparação por si custeada. Acresce que na petição inicial o mesmo alegou, nos artigos 33 e 34 que se dirigiu a casa do legal representante da ré em 22-01-2019 para reclamar das cassetes por estarem acima do piso acabado em 4/5 cm e que a ré teve de partir todo o trabalho que estava feito para remediar. Nada mais alega a propósito, nomeadamente que a reparação feita não ficou completa. A forma como alegou tal matéria inculca, pelo contrário que a ré, de facto, foi reparar o defeito, embora não tenha descrito o resultado final dessa reparação, que a seu ver ficou incompleta.
Finalmente, mas não menos relevante, é manifesto que na petição inicial o autor não concretizou minimamente que obras urgentes fez. A causa de pedir que sustenta o pedido de condenação da ré no pagamento de 1 000 € para o ressarcir de obras urgentes que fez é apenas esta: “64.
Com o abandono da obra, o autor teve que fazer algumas obras urgentes para evitar que a moradia sofresse estragos irreparáveis. 65. O autor teve assim que proceder a algumas reparações urgentes relativas aos defeitos visíveis, no valor de € 1000 acrescido de IVA”
.
Pelo que não pode, só agora, em sede de recurso, pretender que fique provado que tais reparações se referiam às cassetes das portas de correr, o que nunca alegou e não foi, portanto, objeto da decisão recorrida.
Pelo que se mantém intocado o teor da alínea k) dos factos não provados.
*
g) Quanto à alínea 38) dos factos provados pretende o recorrente que se passe a fazer menção ao valor de 22 cm no ponto IV dessa alínea.
Ali se deu por provado que as paredes foram construídas com tijolo de barro vermelho com as dimensões de 30x22x15, incorporando a estrutura de betão armado com a espessura de 15 cm.
À pretensão ora em análise se referiu o recorrente nas conclusões YY) a BBB), convocando a seu favor a resposta de 10-07-2023 do perito aos esclarecimentos que lhe tinham sido pedidos de que consta:
“Ainda na página 5 do Relatório, refere o Sr. Perito que, de acordo com a prospeção efetuada, que confirma a versão verbalizada pelo Autor, as paredes exteriores foram construídas com os seguintes layers, do exterior para o interior:
iv. tijolo de barro vermelho com as dimensões 30x20x15 incorporando a estrutura de betão armado com a espessura de 15 cm.
Esclarecimento:
Naturalmente que se trata de um lapso, uma vez que na resposta ao quesito 17 no cálculo das condições de isolamento foi utilizada a espessura de 22 cm.”
Tem razão o recorrente, já que a resposta dada no relatório pericial foi alterada neste esclarecimento com a explicação e que a espessura ali referida, de 15cm, resultara de lapso, querendo antes dizer-se 22 cm.
Tal facto poderá ser relevante para o autor em sede de ulterior liquidação da sentença já que se admite que possa ser de ponderar para aferir da solução a aplicar para a reparação do defeito em causa.
Pelo que o ponto iv) da alínea 38 dos factos provados passará a ter a seguinte redação:
iv -
tijolo de barro vermelho com as dimensões 30x20x15 incorporando a estrutura de betão armado com a espessura de 22 cm.
*
h) Pretende ainda o recorrente que a alínea 40 dos factos provados passe a ter a seguinte redação: “
Essa solução poderá passar pelo reforço do isolamento pelo exterior, através da colocação de capoto (utilização adicional de material isolante, EPS com 60mm de espessura), com um acabamento superficial de proteção.”
A alínea 40 refere-se à solução complementar térmica que se provou, na alínea 39, ser necessária para reparação do defeito apurado consistente na existência de um coeficiente de transmissão térmica superior ao valor de referência.
Deu-se ali por provado que:
40 - Essa solução poderá passar pelo reforço do isolamento pelo exterior, através da colocação de capoto (utilização adicional de material isolante, EPS com 2mm de espessura), com um acabamento superficial de protecção
.
A esta pretensão se referem as alíneas CCC a PPP das conclusões.
Mais uma vez o Tribunal
a quo
deu por provado facto não alegado na ação e que não pode considerar-se instrumental ou complementar aos factos essenciais alegados.
Como já se salientou, o autor não alegou que tipo de reparação pretendia fazer e que custos teria, apenas tendo alegado defeitos concretos e pedido que a ré fosse condenada em valor a liquidar posteriormente, mas não inferior a 30 000 €, destinado à sua reparação.
A sua pretensão de alteração desta alínea, bem como da subsequente (412 dos factos provados), relativa ao custo da obra de reparação proposta pelo perito, visa sustentar a revogação da sentença por forma a que dela resulte uma condenação líquida no pagamento de um concreto valor – de 9 300 €.
Dão-se aqui por reproduzidas as considerações acima feitas a propósito da pretensão de alteração da alínea 33 dos factos provados.
Muito embora a ré se tenha conformado com a sentença na parte em que a condenou a pagar um valor líquido que não fora pedido, não pode este Tribunal dar por provados factos essenciais não alegados, além de que tal seria absolutamente inútil já que nos está vedado condenar a ré a pagar valores que não foram devidamente liquidados na ação.
Pelo exposto, também improcede a pretendida apreciação das alíneas 40 e 41 dos factos provados (a esta última referem-se as conclusões QQQ e RRR do recurso).
*
Resta afirmar que apesar de o recorrente, nas conclusões WWW a ZZZ sumariar prova testemunhal relativa aos seus padecimentos morais com vista a ver aumentada para 5 000 € a indemnização fixada para ressarcimento dos seus danos não patrimoniais o mesmo não pediu a alteração de qualquer facto com base nessa prova, pelo que tal alegação não tem qualquer relevância, devendo tal indemnização ser apreciada à luz dos factos efetivamente provados.
*
É assim a seguinte a matéria de facto que ficou provada/não provada em face da sentença e da procedência parcial da impugnação da mesma (para maior clareza sublinham-se as alíneas que resultaram das alterações acima decididas, sendo que as restantes, a itálico mantêm a redação provinda da sentença):
1 – A Ré é uma sociedade por quotas que tem como objeto social: construção, restauro e ampliação de edifícios residenciais e não residenciais, obras de engenharia civil e outras obras publicas e privadas e tem como gerentes BB e CC.
2 - O Autor adquiriu um lote de terreno para construção, no qual veio a ser (parcialmente) construída uma casa destinada à habitação, unifamiliar, sita na Rua ..., na freguesia ..., em ..., inscrita na matriz predial urbana da freguesia ..., sob o artigo urbano número ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Anadia sob o número ... a favor do Autor.
3 - A fim de construir a moradia referida em 2 o Autor apresentou projeto à Câmara Municipal ... o qual foi aprovado por despacho de 08.06.2016 tendo sido emitido o correspondente alvará de licenciamento administrativo de obras em 15.07.2016.
4 - Em Maio de 2016, Autor e Ré celebraram um acordo verbal mediante o qual o segundo se comprometeu perante o primeiro a proceder à construção do imóvel referido em 2.
5 - Tendo por objecto a empreitada referente ao alvoreamento da moradia, assim como aplicação de massas finas em toda a moradia.
6 - A. e Ré acordaram, pelo menos, na execução dos trabalhos preparatórios (cap. I do orçamento), a demolição e movimentos de terra (Cap. II do orçamento), a estrutura de betão (Cap. III do orçamento), as alvenarias (Cap. IV do orçamento), a cobertura (Cap. V do orçamento), as cantarias (Cap. VI do orçamento), os revestimentos (Cap. VII do orçamento) dos pavimentos - mas apenas o fornecimento e assentamento de betonilha de enchimento (ponto 1.1 do capitulo VII do orçamento) e revestimento de paredes – mas apenas no fornecimento e aplicação do sistema térmico (ponto 2.1 do capitulo VII do orçamento), execução de salpisco, emboço e areado fino em paredes exteriores e interiores de cave; execução de salpisco, emboço e areado fino em tectos da cave e tectos do terraço (pontos 2.2; 2.3; 2.4; 3.2 do capitulo VII do orçamento) e ainda fornecimento e aplicação de 265 m2 de isolamento térmico em cobertura do tipo “roofmate” com 5 cm de espessura (ponto 1 do capitulo VIII do orçamento), sendo o valor/preço a pagar o que constava no orçamento referente a cada capitulo em concreto.
7 - O autor adjudicou outros contratos directamente sem conhecimento ou intervenção da Ré, nomeadamente quanto a aplicação de madeiras e serviços de carpintaria, aplicação de caixilharias em alumínio, pintura, instalação elétricas, ITED, redes de abastecimento de agua, redes de drenagem de aguas residuais, redes de drenagem de aguas pluviais, redes de gás, inter comunicador, louças sanitárias, aquecimento central, serviços de serralharia.
8 - Contudo, para apresentação de orçamento e pedido de empréstimo junto de instituição bancária, o A. solicitou à Ré um orçamento global de obra, o qual foi elaborado e entregue em Maio de 2016 e que orçava pelo preço de € 140.090,00 acrescido de IVA.
9 - Deste valor o Autor contraiu empréstimo bancário para o efeito e entregou à Ré a quantia total de 67.000,00€ (sessenta e sete mil euros) da seguinte forma:
- 12.000,00€ (doze mil euros) em dinheiro;
- 55.00,00€ (cinquenta e cinco mil euros) através de cheques e transferências bancárias
10 - As obras (de construção civil) iniciaram-se a Setembro de 2016.
11 - Em Fevereiro de 2018 a Ré abandonou a obra
12 - Em 05 de Fevereiro de 2018 o A. era devedor a Ré da quantia de €15.602,50 €.
13 - Em 04 de Julho de 2018 o Autor enviou uma carta à Ré comunicando-lhe a existência de diversas anomalias de acordo com o relatório efectuado por uma engenheira civil.
14 - Em 22 de Agosto de 2018 o Autor convocou uma reunião com o diretor técnico da obra (Eng. DD) o legal representante da Ré – Sr. BB; o A., o pai do A. EE e ainda um amigo do A. – FF.
15 - Essa reunião teve por objetivo demonstrar ao diretor técnico da obra os defeitos reclamados, por forma a este comprovar perante o empreiteiro que os defeitos existiam e que tinham que ser corrigidos ou eliminados.
16 - Após a visita à obra, os defeitos foram constatados e ficou agendada nova reunião com o legal representante da Ré para o dia 24.08.2018 de forma a dar soluções para a eliminação e correção de todos os defeitos.
17 - No dia 24 de Agosto de 2018 foi realizada nova reunião em obra onde estiveram presentes, o legal representante da Ré, o Autor e o pai deste.
18 - Dessa reunião surgiu um acordo para a correção / eliminação de defeitos que a Ré, acordo este depois reduzido a escrito e que a Ré não assinou.
19 - Nesse seguimento, a Ré comprometeu-se que entre Setembro / Outubro de 2018 retomava a construção da obra com a eliminação dos defeitos
20 - No entanto, a correção dos defeitos só se iniciou após diversas insistências da Autora, por mails, como aconteceu em 07.09.2018 e em 21 de setembro de 2018, em 19.10.2018 e em 28
21 - Nos dias 19 e 20 de Novembro de 2018 foi iniciada a correção de defeitos, nomeadamente com a correção do piso da sala.
22 - Do valor referido em 13 foi pago pelo autor a 27 de Outubro de 2018 o valor de 5000,00 €.
23 - Para além do valor referido em 13 e 23 o Autor executou trabalhos no valor de €14.027,50 (valor sem IVA), ainda não facturados e que não se encontram pagos
24 - Em 05.01.2019 o Autor enviou email à Ré com o assunto piso das varandas –reclamação e com o seguinte conteúdo “Verifiquem o que aqui está bem”.
25 - Em 04.02.2019 o Autor remete novo email à Ré dando lhe conta que a chaminé da casa do forno tem cerca de 2 cm fora de esquadria em relação as outras paredes.
26 - O Autor, através de outro mandatário enviou uma carta em 06.09.2019 onde dava conta dos prejuízos causados pelo atraso na conclusão da obra, carta essa que foi recebida pelo gerente da ré – o Sr. BB em 09.09.2019.
27 - Para além dos trabalhos realizados conforme orçamento, a Ré/ Reconvinte ainda efectou, pelo menos, os seguintes serviços “extras” na obra do Autor/reconvindo, a pedido deste:
- aplicação de tela na parede exterior: € 600,00;
- Vão de abertura e pedras na janela da Cozinha do Forno: 200,00 €;
- Cassetes das portas de correr: € 400,00;
- Telhado: € 1.000,00;
- Chaminé maior – forno e fogão: 200,00 €;
28 - O Autor comprou, a expensas suas, 1000 sacos de cimento no valor de 2520,00 €, a descontar no valor devido pelo Autor.
29 - A moradia tem vários defeitos devido à forma como a Autora executou os trabalhos que lhe estavam adjudicados, anomalias descritas nos pontos 30 a 32 dos factos provados. Assim;
30 - Na cave:
a) - Existe alguma fissuração nas paredes mais predominantemente no exterior que no interior.
b) - Constata-se a existência de matéria orgânica nas massas finas, com evidente desintegração desses compostos, o que conduzirá à formação de ocos ou chochos e a desagregação prematura das superfícies.
c) - Os tectos e paredes interiores e exteriores não tem acabamento perfeito, sendo evidentes a falta de uniformidade da textura da superfície, as marcas de ferramentas utilizadas, os desvios de planaridade das superfícies, com consequências meramente estéticas.
d) - Assinala-se uma diferença de esquadria generalizada entre paredes e tectos devida ou à falta de verticalidade das paredes ou à falta de horizontalidade dos tectos.
e) - Os tectos e paredes da cave mostram sinais de humidade causadas por infiltrações, para além de manchas denotando falta de controlo e distribuição homogénea de água, ligantes e inertes na aplicação das argamassas.
f) - Os pilares encontram-se ligeiramente desaprumados, havendo um desvio de cerca de 2,5 cm da base ao capite de um dos pilares em relação ao outro.
g) - Não foi executada a ombreira na porta da “casa do forno” e a ombreira do portão da cave.
h) - O piso da cave encontra-se em adiantado estado de desagregação e aparenta falta de coesão, tendo sido aplicada betonilha de regularização com uma dimensão de 3 cm em vez dos 5 cm previstos, sendo a base de assentamento da betonilha em saibro amarelo (material sem aglutinantes) e não uma argamassa com inertes com ligantes adequados, como deveria ter sido.
h)i - O piso aplicado, que se destina à recepção de material cerâmico, não apresenta características razoáveis e suficientes de resistência para suportar cargas e para resistir moderadamente à erosão provocada pelo uso, o que provocará a fendilhação e quebra (precoce) de qualquer material de revestimento que vier a ser aplicado no pavimento.
i) Há evidências de descontinuidade da tela pitonada junto à parede norte da habitação o que poderá levar à falta de drenagem de águas superficiais para o dreno de saneamento de águas da fundação e agressão com potencialidade de danos por parte do material do solo à membrana protectora e impermeabilizante dos elementos da fundação da edificação, com consequências de darem origem a fenómenos de infiltrações por ascensão, por capilaridade.
j) Há uma generalizada falta de esquadria nos vãos abertos (projecções no plano vertical) e falta de esquadria das ombreiras e padieiras (projecções no plano horizontal) dos vãos, afirmação consolidada na falta de coincidência dos remates entre caixilharias e vãos, o que causará problemas de vedação e afectando a estética.
31 - No rés-do-chão:
a) - Identificam-se ligeiros desalinhamentos de panos de parede descontínuos por interposição de vãos de portas interiores, e consequente perda de alinhamentos, com consequências meramente estéticas.
b) - As ombreiras e vergas ou padieiras das portas e janelas não se encontram perpendiculares com os planos das paredes, nem as arestas da intersecção dos planos, lineares, com consequências meramente estéticas com possibilidade de alguma disfuncionalidade.
c) - O acabamento de paredes no interior da moradia não foi feito conforme orçamento "massas projetadas", foi sim realizado reboco tradicional, massa fina de saco e barramento de gesso.
d) - São visíveis formações de calcites e compostos derivados de sais solúveis em meio aquoso com reacções adversas de inertes cálcicos (vulgo salitre), em algumas zonas das argamassas especialmente junto a pavimento, o que causará a desagregação das argamassas a médio/longo prazo, formação de calcites ou carbonatos de cálcio, normalmente designados por “saínha” e ou formação de musgos, fungos e outros microrganismos.
e) - As paredes exteriores registam pequenas imperfeições no acabamento, com pouco impacto visual.
f) - Os tectos exteriores apresentam alguma irregularidade fruto de intervenções efectuadas no ajuste de posicionamento e dimensão das luminárias embutidas e de outras intervenções, estando os tectos estão remendados junto aos pontos de luz.
g) - O pilar sul/poente da construção apresenta-se desalinhado da construção na empena poente, variação de dimensão ao longo do seu desenvolvimento e falta de verticalidade das suas faces.
h) - A parede de protecção norte da varanda encontra-se fissurada por assentamento da varanda, que é um elemento em balanço e que cedeu com a carga da parede, resultando daí consequências meramente estéticas.
i) Não foi executada uma ombreira no rés-do-chão que estava projectada.
j) Há evidências de desnível do pavimento do quarto norte/nascente com pendente de nascente para poente.
32 - Cobertura
a) Foram identificadas 2 vigas do telhado que apresentam fissuras/rachas e outras tantas ripas, sem consequências no que se refere às vigas e podendo causar aluimento de telhas com consequente empoçamento e dar origem a infiltrações, no caso das ripas.
b) há um nítido desalinhamento na entrega do telhado às cumeeiras e na fixação dos “tamancos” o que poderá causar infiltrações, especialmente pelo excesso de argamassa usada nos remates.
c) O revestimento das chaminés esta fissurado na generalidade da sua superfície, causando mau aspecto estético.
d) A telha aplicada no beirado não é telha de beirado, mas antes telha de cobertura, com consequências apenas estéticas.
e) Há telhas que se encontram levantadas pela existência de argamassa em excesso no posicionamento das ripas com a consente interferência no posicionamento das telhas,
f) Constata-se a existência de pequenas variações no comprimento do beirado, de água para água, cerca de 2.5 cm (máx. 16.5 e min 14 cm) mas com uniformidade dentro do mesmo alinhamento do beirado, sem consequências.
g) Não foi respeitado o projecto de isolamento térmico que previa uma laje aligeirada de 20 cm de espessura revestida inferiormente com estuque projectado e superiormente com XPS (poliestireno extrudido) de 9 cm de espessura
g.1) - A cobertura exibe, actualmente, a laje de 20 cm encontrando-se revestida inferiormente com placas de gesso cartonado de 1.2 cm, encimada por manta de lã de rocha de 4 cm de espessura, caixa-de-ar com cerca de 15 cm, e superiormente por XPS de 5 cm.
g.2) - Há algumas pequenas zonas, junto aos beirados, que não apresentam material de isolamento.
g.3) – No orçamento estava previsto o uso de Pladur e a aplicação de Roofmate de 5 cm
33 - A correcção das anomalias referidas nos pontos 30 a 32 (com excepção das referidas em 30 f), 31 a) e 31 g)) tem um valor de 28.511,50 €.
34 – A Ré não respeitou o projecto de isolamento térmico nas paredes exteriores e na laje do rés-do-chão. Assim:
35 - As paredes exteriores deveriam ser constituídas por parede dupla de tijolo 30x20x15 e 30x20x11 com 6 cm de XPS (material isolante), com correcção de pontes térmicas lineares, e rebocos de 2 cm por face, totalizando 36 cm.
37 - O orçamento apresentado e aceite previa quanto a paredes exteriores em tijolo 30x20x15 + 30x20x11 e no que se refere a revestimentos ETICS com 40 mm.
38 - As paredes exteriores foram construídas com os seguintes layers, do exterior para o interior:
i - Pintura Exterior
ii - Massas finas (0,5/0,7cm
iii - Reboco de argamassa (2 cm)
iv - Tijolo de barro vermelho com as dimensões 30x22x15, incorporando a estrutura de betão armado com a espessura de 22 cm
v - Poliestireno extrudido (XPS) de 2 cm de espessura
vi- Tijolo de barro vermelho com as dimensões de 30x20x11
vii- Reboco (2 cm)
viii - Estanhado de cimento (0,5/07 cm)
ix - Pintura interior.
39 - Com esta constituição, a estrutura da parede tem um coeficiente de transmissão térmica de 0,46 W/m2, superior ao valor de referência que tem como valor máximo 0,40, pelo que carece de uma solução complementar de isolamento térmico.
40 - Essa solução poderá passar pelo reforço do isolamento pelo exterior, através da colocação de capoto (utilização adicional de material isolante, EPS com 2mm de espessura), com um acabamento superficial de protecção.
41 - Tal aplicação, considerando os remates dos vãos com respectivos acessórios de prolongamento de soleiras, parapeitos e outros terá um custo de cerca de 6920,00 € mais IVA.
42 - No pavimento do rés-do-chão sob o material de revestimento (pavimento flutuante) e a laje aligeirada, foi usado um argamasso de regularização com 9/10cm de espessura sem aditivação de qualquer material de baixa densidade, como é o caso de argila expandida (Leca) ou EPS granulado.
43 - Não existe qualquer solução de isolamento térmico deste pavimento, sobre o espaço não útil da habitação, sendo que o projecto de isolamento térmico previa a colocação de XPS com 8 cm de espessura.
44 - A correcção deste defeito orçará em 5.750,00 € mais IVA.
45 - As obras de isolamento térmico descrito têm de ser objecto de um projecto de isolamento e comportamento técnico de edifícios que terá um custo de cerca de 750,00 €.
46 - O muro de contenção de terras do jardim no seguimento da parede da frente da casa, construído pela Ré, encontra-se deformado e exibe patologias que evidenciam a sua falta de estabilidade e eminência de colapso.
47 – A reparação passa pela demolição e construção de novo muro com um custo de 4.000,00 €
48 –
Relativamente às portas aplicadas nas cassetes existem diferenças nos alinhamentos com os aros, fruto de má aplicação das cassetes, uma vez que a verticalidade das portas é garantida pela gravidade função do peso e do sistema de suspensão na calha de rolamento da guia, o que causará que as portas começarão a roçar nos aros, com prisão do movimento, poderão começar a emitir ruído de atrito e a ficar com as faces danificadas nas zonas de contacto, não havendo garantia de fecho efetivo das portas.
49 – A reparação passa pela desmontagem e montagem das cassetes com um custo de 2000,00 €.
50 - O desalinhamento dos pilares referido em 30 f) e 31 g) bem como os das paredes não são reparáveis, com exceção do painel central da parede da sala entre as duas portas ali existentes, que pode ser picado e refeito para eliminar o desalinhamento de que padece.
51 - Tais problemas / defeitos referidos põem em causa a qualidade de vida que o Autor almejava encontrar na nova casa que viu perturbada a sua possibilidade de, em tempo útil, gozar a esperada tranquilidade e serenidade da casa
52 - Esta situação provocou e provoca grande desgosto no Autor.
Não se provou que
a) Fosse acordado verbalmente que a obra ficaria terminada até Abril de 2018.
b) A primeira reclamação (verbal) ocorresse em Abril/Maio de 2017, altura em que o Autor invocasse os defeitos sobre o telhado.
c) No dia 22.01.2019 o Autor se dirigisse a casa do legal representante da Ré reclamar das cassetes (portas de correr) que estavam acima do piso acabado, 4/5 cm
d) Em fevereiro de 2019 a Ré abandonasse a obra e até à presente data nada mais dissesse, não atendendo mais os telefonemas ao Autor.
e) O autor tenha estado em obra a executar trabalhos até Julho de 2019.
f) Relativamente aos trabalhos extra tenha sido acordado:
O valor de 700,00 € pela aplicação de tela na parede exterior;
- O valor de €250,00 relativamente ao vão de abertura e pedras na janela da cozinha do Forno;
- O valor de 400,00 € pelo isolamento da cobertura;
- O valor de 500,00 € pelo enchimento do piso térreo da cave;
- O valor de 500,00 € pela colocação de um tubo de drenagem;
- O valor de 1500,00 €, relativamente ao telhado;
- O valor de € 500 € relativamente à chaminé maior;
g) Ao valor referido em 28 a Ré/reconvinte acordasse descontar a quantia de €350,00;
h) O betão aplicado não seja betão certificado como definido no projecto e orçamento;
i) Os rufos tenham sido mal aplicados
;
j) O Autor tenha efectuado a reparações urgentes no valor de 1000,00 €;
k) O muro referido em 46 e 47 estivesse previsto no orçamento.
*
5. Tendo presentes os factos provados e as considerações que acima já se fizeram sobre a impossibilidade de liquidação por este Tribunal do pedido genérico formulado e de condenação da ré na reparação de defeitos não alegados na petição inicial, apreciaremos as pretensões do recorrente quanto à alteração dos valores indemnizatórios fixados na sentença recorrida seguindo, uma vez, mais, a ordem pela qual expõe tais pretensões nas conclusões do recurso, na alínea CCCC das conclusões.
*
Não pretendendo o recorrente pôr em causa a qualificação do contrato celebrado com a ré foi feita na sentença, bem como estando definitivamente decidido que esta é responsável pelo pagamento da reparação dos defeitos da obra que lhe sejam imputáveis nos termos e pelos fundamentos de direito constantes daquela, resta apurar que defeitos são esses e qual a medida da responsabilidade da ré. Tal deverá ser feito tendo em conta a condenação líquida já transitada em julgado (ou seja, a parte que não foi alvo de recurso) e o objeto do recurso, em que o apelante deduz a pretensão de que a recorrida seja condenada a pagar-lhe um valor líquido, que indica, mas também manifesta expressamente que quer que a mesma seja condenada em quantia a liquidar posteriormente para pagamento das reparações que se venham a revelar necessárias.
Reputamos, assim, inútil, a repetição dos fundamentos legais em que se baseou a sentença recorrida para a qualificação do contrato celebrado entre as partes como de empreitada e para concluir pela responsabilidade da ré pelo pagamento da indemnização dos danos decorrentes dos defeitos da obra que realizou a pedido do autor, desde logo por estarem corretos e não terem sido postos em causa no recurso.
*
a) a pretensão do recorrente de ver a ré condenada a pagar-lhe 4.000 € para reparação de muro exterior.
Para evitar fastidiosas repetições remetemos para a fundamentação da decisão relativa à impugnação da alínea l) dos factos não provados (4, b), a partir de fls. 28 do acórdão).
Como ali se concluiu, o autor não alegou qualquer defeito na execução de um muro, estando completamente afastada a possibilidade de se considerar que tal defeito possa ser qualificado como um dos “
latentes que ainda venham a revelar-se após a instauração da ação”.
Na pendência desta, aliás, o autor nunca alegou nenhum novo defeito, entretanto revelado.
Não foi pedida a condenação da ré senão no pagamento de indemnização a liquidar posteriormente com vista à reparação dos defeitos alegados e dos latentes que se viessem a revelar após a petição inicial. Pelo que, à luz do artigo 609.º, número 1 do Código de Processo Civil, não pode a ré ser condenada a pagar a reparação de um defeito não alegado na pi e que o autor não alegou nem provou, também, que se tenha revelado no decurso da ação.
Assim, em face do artigo 609.º, número 1 do Código de Processo Civil, não pode proceder a pretensão do recorrente, já que a mesma se dirige a condenação que não peticionou.
*
b) a pretendida condenação da ré no pagamento da reparação das cassetes das portas de correr da sua habitação.
O recorrente pretende a condenação da ré no pagamento de 2.000 €+IVA para reparação dos defeitos nas cassetes das portas de correr da habitação.
Tal defeito foi alegado na petição inicial, mas o autor, como já acima sobejamente salientado, deduziu pedido genérico de condenação no valor que viesse a liquidar como necessário à reparação de todos os defeitos e nunca liquidou tal pedido no decurso da ação.
Como tal, apenas haverá que averiguar se há fundamento para a condenação da ré no pagamento do valor que se vier a liquidar futuramente como necessário à reparação desse defeito.
O que se provou a esse respeito e consta das alíneas 27, 48 e 49 dos factos provados sendo que só a alínea 48 sofreu alteração em função da impugnação da matéria de facto provada.
Assim, está assente que o autor pediu e a ré aceitou executar trabalhos extra com vista à instalação de cassetes para portas de correr, pelo preço de 400 € e que as mesmas foram mal aplicadas o que causará que as portas começarão a roçar nos aros, com prisão do movimento, poderão começar a emitir ruído de atrito e a ficar com as faces danificadas nas zonas de contacto, não havendo garantia de fecho efetivo das portas.
Na alínea 49 ficou provado que tipo de trabalhos eram necessários à reparação e qual o seu custo, mas tal matéria, como já se referiu bastas vezes, não tem qualquer interesse para a decisão já que apenas está em causa a apreciação de um pedido genérico e tais factos apenas relevariam (e relevaram) para uma condenação em quantia em quantia líquida que não foi pedida, mas que nessa parte está transitada por não ter sido alvo do recurso.
Ora o Tribunal
a quo
concluiu que era de absolver a ré do pedido de ressarcimento do autor pelos danos decorrentes das reparações que terá de fazer quanto às referidas cassetes por ter entendido que não se provou que tal obra tenha sido efetuada pela ré.
Alterado o teor da alínea 48 dos factos provados nos termos pretendidos pelo recorrente e estando agora provado que foi a ré a instalar as cassetes e que foi da sua instalação que resultou o
defeito consistente no desalinhamento das portas com prejuízo para a sua funcionalidade, é manifesto que cabe à ré o pagamento dos custos que o autor suportará com a sua reparação.
Não podendo proceder – por falta de liquidação do pedido genérico -, a pretensão de recorrente de ver a ré condenada no pagamento da quantia que sugere, deve aceitar-se, contudo, que o mesmo tem o direito de recorrer da decisão na parte em que a mesma lhe é desfavorável, isto é que tem o direito de pedir a indemnização de danos que o Tribunal
a quo
não considerou (nomeadamente por os ter julgado não provados), sem prejuízo do caso julgado que se formou quanto à condenação da ré, pois nessa parte a decisão é favorável ao recorrente e a ré dela não recorreu.
Assim, é apenas parcial a procedência da sua pretensão, procedendo na parte em que pretende que a ré o indemnize, mas não quanto à almejada fixação de um valor líquido de condenação
Deverá a ré ser assim condenada no pagamento de valor a liquidar posteriormente, com vista à reparação das cassetes das portas de recorrer.
*
c) a pretensão de condenação da ré no pagamento de 11.439 € (7.500 € + 1800 € +IVA) destinado à aplicação de EPS e orlas.
O recorrente sustentou esta pretendida condenação na alteração do ponto 4 da alínea 38 dos factos provados, que foi de facto alterado quanto à espessura da parede de betão armado executada pela ré.
O que o recorrente pretendia retirar da impugnação deste facto era um acréscimo do custo de reparação que o Tribunal
a quo
deu por provado e que serviu de base ao valor líquido da condenação.
Ao contrário do que também pediu, contudo, não foram alterados os pontos 40 e 41 da matéria de facto, que se referem aos custos dos trabalhos de reparação.
Não podendo proceder a pretensão do recorrente de alterar tal condenação para valor superior (por nenhum ter sido liquidado na ação), também não pode, contudo, o recorrente ser prejudicado pela decisão do Tribunal
a quo
de liquidar um valor que não lhe foi pedido, pois em ulterior incidente de liquidação de sentença poderá revelar-se que o custo de reparação é superior ao que foi fixado em sentença.
Tendo-se o autor conformado com a parte da decisão que o beneficiou (pela qual se liquidou o pedido genérico que fez) e pretendendo apenas que o valor assim obtido seja superior - pretensão que já vimos que tem de improceder porque nunca deduziu incidente de liquidação -, deve admitir-se que o mesmo possa, em ulterior liquidação, provar que é superior o custo da reparação a fazer.
Nesta parte, portanto, estando já considerados na sentença os danos decorrentes da necessidade de reparação dos defeitos relativos ao isolamento térmico e liquidado um valor de 6.920 €+ IVA para ressarcir o autor pelo que irá despender com essa reparação, apenas pode proceder parcialmente a pretensão do recorrente,
sendo a recorrida condenada a pagar-lhe o valor que se venha a apurar ser necessário à reparação do defeito relativo ao isolamento térmico da habitação referido na alínea 39 dos factos provados, além do valor de 6 920, 20 € já fixado.
*
d) a condenação da ré no pagamento de montante destinado a ressarcir ou autor pelas anomalias não reparáveis:
O recorrente pretende ser indemnizado no valor de 11.070 € por aquilo que chama de “
as anomalias não reparáveis constantes das alíneas 30 f), 31 a) e 31 g) dos factos provados”.
Destas resulta provado que: na cave da habitação construída pela ré
os pilares se encontram ligeiramente desaprumados havendo um desvio de cerca de 2,5 cm da base ao capite de um dos pilares em relação ao outro; no rés do chão há ligeiros desalinhamentos de panos de parede descontínuos por interposição de vãos de portas interiores, e consequente perda de alinhamentos, com consequências meramente estéticas; e que o pilar sul/poente da construção se apresenta desalinhado da construção na empena poente, variação de dimensão ao longo do seu desenvolvimento e falta de verticalidade das suas faces.
Na petição inicial o autor pediu que a ré fosse condenada a pagar-lhe indemnização pela desvalorização da sua moradia, em montante não inferior a 5.000 €, cuja liquidação também relegou para depois da sentença. É no âmbito deste pedido que pode ter cabimento a pretensão do recorrente de ser indemnizado pelos defeitos não reparáveis, isto é, aqueles que se manterão no imóvel e o desvalorizam.
Pelas razões já acima amplamente expressas que aqui nos dispensamos, é manifesto que não pode proceder o pedido de condenação no valor que o recorrente apenas agora liquidou, em sede de recurso.
Resta aferir se na sentença foram devidamente considerados estes danos para a fixação do valor líquido ali obtido.
Do cotejo da fundamentação da sentença com a alínea 33 dos factos provados resulta claro que nela apenas foram contabilizados, para efeitos de fixação da indemnização por danos patrimoniais, os custos das reparações dos defeitos enumerados nas alíneas 30 a 32 (com exclusão das alíneas 30 f), 31 a) e 31 g)), 41, 44 e 50. Dentre estes, o único valor fixado para reparação do dano decorrente da desvalorização do imóvel por força de defeitos irreparáveis (embora a sentença não seja explícita nessa afirmação), foi o de 500 € que o tribunal destinou à compensação do autor pelo desalinhamento das paredes e dos pilares descrito no ponto 50, por os ter qualificado de “
defeitos irreparáveis”.
Tal alínea sofreu alteração parcial na decorrência da impugnação da matéria de facto, dela resultando agora provado que o desalinhamento dos pilares referido em 30 f) e 31 g) bem como os das paredes (alínea 30, c) e d) e 31 a)) não são reparáveis, com exceção do painel central da parede da sala, entre as duas portas ali existentes, que pode ser picado e refeito para eliminar o desalinhamento de que padece.
Assim,
quanto ao desalinhamento do painel central da parede da sala, por reparável, procede parcialmente a pretensão do recorrente devendo a ré ser condenada no pagamento do valor, a liquidar após a sentença, necessário à sua reparação.
Já quanto aos desalinhamentos dos pilares e das demais paredes, tendo sido fixado pelo Tribunal
a quo
um valor de 500 € para reparação do dano decorrente para o autor de tais defeitos, julgados irreparáveis, e não podendo, uma vez mais, tal valor ser alterado nem para montante superior – pois não foi deduzido pedido líquido na petição inicial -, e nem inferior – porque com a condenação se conformou a ré, pelo que essa condenação transitou em julgado -, resta aferir se pode condenar-se a ré ao pagamento de quantia a liquidar posteriormente destinada ao seu ressarcimento.
Ora, provada a reparabilidade de um dos defeitos que na sentença se julgou ser irreparável e sendo a ré agora condenada a pagar ao autor o valor necessário à sua reparação, apenas lhe caberá
indemnizar o autor pelo valor de desvalorização do imóvel, que venha a ser liquidado posteriormente, por força do desalinhamento dos pilares e das demais paredes, (com exceção, portanto, do painel central da parede da sala). Esse valor, contudo, nunca poderá ser inferior ao montante de 500 € em que já foi condenada a ré já que com tal condenação se conformou.
Pelo que uma vez mais procede apenas parcialmente a pretensão do recorrente que se vem de analisar.
*
e) a indemnização a fixar pelos danos não patrimoniais sofridos pelo autor.
O Tribunal
a quo
fixou tal indemnização no montante de 500 € com base na seguinte fundamentação (antecedida de algum enquadramento legal):
“No caso concreto, a quantidade de anomalias é assinalável e perduram há muito tempo, contendendo com a qualidade de vida do Autor.
Entende-se, pois, que os danos morais são ressarciveis.
Atendendo a sua gravidade e durabilidade, entende-se fixar o seu montante em 1500,00 €.”
Embora tal não seja afirmado na sentença, este valor foi fixado com base em critérios de equidade pois não podiam ser outros a presidir à fixação deste tipo de dano como decorre da conjugação dos artigos 496.º, número 1 e 566.º, número 3 do Código Civil. Não se trata de um dano com um valor passível de ser “averiguado”, nem é possível repará-lo em espécie, nos termos do artigo 566.º, número 1 do Código Civil, estando-se perante um sofrimento do lesado que o direito visa tutelar de modo a que seja financeiramente compensado pelo mesmo.
Os danos não patrimoniais apenas não devem ser indemnizados se, pela sua gravidade, não se julgarem merecedores da tutela do direito.
A este propósito referem Pires de Lima e Antunes Varela que
“…a gravidade do dano há-de medir-se por um padrão objectivo e não há luz de factores subjectivos, de uma sensibilidade particularmente embotada ou especialmente requintada, concluindo, pois, que cabe ao tribunal, em cada caso, dizer se o dano é merecedor da tutela jurídica”
[10]
.
Ora, no caso em apreço, como os factos provados revelam à saciedade, não estamos perante um mero transtorno passageiro e diminuto ou um “
aborrecimento
”, pelo que deve ser fixada uma indemnização. O autor sofreu e sofre desgosto e transtorno por força dos defeitos de construção da sua habitação, que são inúmeros, se revelam graves, manifestam incúria na execução da obra e que determinam a necessidade de várias obras de reparação.
O recurso à equidade na fixação da indemnização por estes danos é menos capaz de assegurar uniformidade de critérios, permite uma certa margem de discricionariedade e uma maior e melhor
ponderação das circunstâncias concretas de cada caso: o dano sofrido; as caraterísticas da vítima; o reflexo dos mesmos no seu quotidiano, etc.
É absolutamente adequada e recomendável a ponderação neste tipo de decisões de outras, nomeadamente de tribunais superiores, em que se tenham fixado indemnizações por danos idênticos.
De facto, essa forma de ponderação permite evitar arbitrariedade e desigualdade de tratamento de situações idênticas.
No caso está provado que o autor sofreu e sofre “
grande desgosto
” pois os defeitos da obra levada a cabo pela ré põem em causa “
a qualidade de vida que o Autor almejava encontrar na nova casa que viu perturbada a sua possibilidade de, em tempo útil, gozar a esperada tranquilidade e serenidade da casa”.
Tratam-se, claramente de padecimentos que justificam tutela indemnizatória.
O autor deduziu pedido de indemnização não inferior a 5000 €.
Em situação muito idêntica à dos autos decidiu o Supremo Tribunal de Justiça
[11]
manter o valor de 2 500 € de indemnização por danos não patrimoniais que haviam sido fixados pelo Tribunal da Relação de Lisboa para ressarcimento do dono de apartamento cuja remodelação pela empreiteira sofreu atraso de três meses e em que se manifestaram defeitos em grande medida comparáveis aos provados nestes autos, sendo que também nesse caso o autor destinava tal imóvel a habitação própria.
Em acórdão desta secção de 04-03-2024
[12]
o Tribunal da Relação do Porto manteve em 4000 € o valor de indemnização por danos não patrimoniais sofridos por donos de imóvel que sofreu defeitos com gravidade superior aos provados nos autos (até porque já habitada e porque tais defeitos também provocaram a degradação de bens móveis e pertences pessoais dos moradores).
Também esta secção, em acórdão de 10-10-2022, manteve em 8 000 € a indemnização por danos patrimoniais devida a donos de imóvel – moradia - com defeitos provenientes de vícios de construção cuja gravidade era muito superior à que nestes autos se verifica e que também já habitavam tal moradia.
Ponderados os defeitos da habitação que o autor pediu à ré que construísse para nela vir a habitar que estão provados nas alíneas 29 a 32, 48 e 50 e a frustração que o adiamento dos seus projetos provocou ao autor, bem como os valores que vêm sendo fixados em situações idênticas bem como noutras de maior
gravidade, há que reconhecer razão ao recorrente. Conclui-se ser demasiado parca a indemnização fixada em primeira instância e deve a mesma ser alterada para o valor de 4 000 € que se reputa de mais adequado a compensar o autor pelos seus danos não patrimoniais sofridos em consequência do incumprimento culposo da ré.
*
6. O conhecimento do mérito dos pedidos formulados sob as alíneas a) a c) do ponto 4 do pedido.
Tratam-se dos pedidos sobre que o Tribunal
a quo
omitiu pronúncia (as duas primeiras alíneas) e daquele de que a ré foi absolvida da instância por procedência de exceção de ineptidão (a última).
Conhecida, pela sua procedência, a arguição da nulidade por omissão de pronúncia sobre esses dois primeiros pedidos e revogada a decisão que absolveu a ré da instância relativamente ao terceiro e reunindo os autos os elementos necessários ao conhecimento do seu mérito, serão os mesmos apreciados.
*
a) a reparação de defeitos latentes que se venham a manifestar entre a data de instauração da ação e a execução das reparações:
A reparação de danos futuros está prevista no artigo 564.º do Código Civil obrigando a lei que os mesmos sejam previsíveis. Assim não basta a mera afirmação do lesado de que espera ou teme vir a ter danos no futuro para que venha a ter direito a tal tutela. A lei não tutela danos hipotéticos, mas apenas as consequências danosas do facto ilícito que seja de prever que ainda se venham a revelar no futuro, já que estas não são sempre imediatas.
O autor pediu a condenação da ré a custear a reparação de danos que se viessem a revelar após a entrada em juízo da petição inicial alegando que desconhece que problemas terá a construção no futuro por causa da “má construção” levada a cabo pela ré nomeadamente no telhado, isolamento do teto do rés do chão e de aplicação de areias com salitre. Tratam-se de defeitos construtivos que geram uma degradação progressiva da construção que não é de imediato visível, mas que é não só previsível como muito provável (senão mesmo inelutável no que toca às infiltrações e ao indevido isolamento da cobertura e à má qualidade de massas aplicadas).
Ficou provado com relevo para o conhecimento desta pretensão que:
No telhado:
- há vigas e ripas com fissuras que podem causar aluimento de telhas, empoçamento e infiltrações.
- há um desalinhamento das cumeeiras e na fixação dos tamancos que pode causar infiltrações;
- há telhas levantadas por força de excesso de argamassa;
- junto aos beirados há zonas sem isolamento.
No rés do chão:
-
são “
visíveis formações de calcites e compostos derivados de sais solúveis em meio aquoso com reacções adversas de inertes cálcicos (vulgo salitre), em algumas zonas das argamassas especialmente junto a pavimento, o que causará a desagregação das argamassas a médio/longo prazo, formação de calcites ou carbonatos de cálcio, normalmente designados por “saínha” e ou formação de musgos, fungos e outros microrganismos”.
Na cave:
- verifica-se a
“existência de matéria orgânica nas massas finas, com evidente desintegração desses compostos,
o que conduzirá à formação de ocos ou chochos
e a desagregação prematura das superfícies;
- “os tectos e paredes da cave mostram sinais de humidade causadas por infiltrações, para além de manchas denotando falta de controlo e distribuição homogénea de água, ligantes e inertes na aplicação das argamassas”.
-
o piso da cave
“encontra-se em adiantado estado de desagregação e aparenta falta de coesão, tendo sido aplicada betonilha de regularização com uma dimensão de 3 cm em vez dos 5 cm previstos, sendo a base de assentamento da betonilha em saibro amarelo (material sem aglutinantes) e não uma argamassa com inertes com ligantes adequados, como deveria ter sido”.
- o piso “não apresenta características razoáveis e suficientes de resistência para suportar cargas e para resistir moderadamente à erosão provocada pelo uso, o que provocará a fendilhação e quebra (precoce) de qualquer material de revestimento que vier a ser aplicado no pavimento”.
- “há evidências de descontinuidade da tela pitonada junto à parede norte da habitação o que poderá levar à falta de drenagem de águas superficiais para o dreno de saneamento de águas da fundação e agressão com potencialidade de danos por parte do material do solo à membrana protectora e impermeabilizante dos elementos da fundação da edificação, com consequências de darem origem a fenómenos de infiltrações por ascensão, por capilaridade”.
O autor provou, assim, a previsibilidade de novos danos decorrentes da degradação provocada pelos defeitos já alegados na petição inicial.
Na sentença recorrida considerou-se que o autor interpelou a ré para corrigir os defeitos da obra, que a mesma anuiu a tal pretensão, mas que não a concluiu devidamente, persistindo os mesmos, tendo o autor perdido o interesse na sua reparação pela ré.
Como tal, decidiu-se que cabia à ré pagar ao autor os montantes que aquele despenderá com a reparação.
Assim os danos que venham a revelar-se consequência dos defeitos julgados provados e que tenham surgido já após a entrada da petição inicial em juízo devem ser indemnizados pela ré, à luz do disposto o artigo 564.º, número 2 do Código de Processo Civil.
Como tal, deve proceder a pretensão do recorrente de
condenação da ré no pagamento de indemnização do valor que vier a ser fixado em ulterior liquidação, nos termos do número 2 do artigo 564.º, pelos danos que se venha a apurar que sofreu após a instauração da petição inicial e que decorram dos defeitos de construção ali alegados que tenham sido julgados provados.
*
b) os juros remuneratórios do mútuo contraído pelo autor para pagamento das obras;
Esta pretensão baseia-se na alegação de que o autor contraiu mútuo para pagamento das obras de construção da sua habitação, mútuo esse remunerado, encontrando-se a pagar juros remuneratórios que diz estarem “desaproveitados”.
O contrato de mútuo que o autor celebrou com o banco mutuante visou, para o autor, o pagamento da empreitada. Tal decorre da alínea 9 dos factos provados. Nos termos do artigo 1145.º número 1 do Código Civil o mútuo presume-se oneroso, pelo que mesmo não tendo sido provado o exato teor desse contrato, se deve presumir que o autor remunera o mutuante pelo empréstimo.
Sucede que essa remuneração é devida como contraprestação devida pela transferência da propriedade do dinheiro mutuado para a titularidade do mutuário, nos termos do artigo 1144.º do Código Civil e, como tal, o autor está obrigado ao seu pagamento independentemente do uso que venha a dar aos montantes mutuados e da vantagem que para ele venha a decorrer desse uso. Ou seja, estivesse a obra bem ou mal executada, finda ou por acabar, sempre o benefício que o autor retira do mútuo – que é remunerado ao mutuante por via do pagamento de juros -, se verificaria, como verificou, por ter na sua disponibilidade as quantias necessárias ao pagamento da obra.
Não há, assim, qualquer nexo de causalidade entre o pagamento desses juros e os defeitos/atraso na execução da obra. A despesa que o autor tem com o pagamento do mútuo não é um dano que resulte da conduta da ré, como é exigido pelo número 1 do artigo 798.º do Código Civil, à luz do qual a ré foi demandada e condenada (e que é aplicável por força do previsto no artigo 1223.º do Código Civil).
Como previsto no artigo 563.º do Código Civil, “
A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria se não fosse a lesão”.
Ora o prejuízo
do autor com o pagamento dos juros não decorre da execução da obra com defeitos pelo que não se pode imputar à ré, que deve ser absolvida desse pedido
*
c) o dano da privação do uso do imóvel pelo autor.
Foi pedido que a ré fosse condenada a pagar ao autor quantia “
a liquidar em execução de sentença”
para ressarcimento do
“dano da privação do uso do imóvel, desde a data da instauração da ação até à conclusão dos trabalhos de reforço estrutural do prédio”
.
A ré, como já acima se referiu, foi absolvida da instância quanto a tal pedido, decisão que se revogou pelo que cumpre conhecer do mérito dessa pretensão.
Como já se afirmou e repete, o autor alegou factos bastantes à procedência desse pedido e os mesmos ficaram provados nos seguintes termos: “o autor viu perturbada a sua possibilidade de, em tempo útil, gozar a esperada tranquilidade e serenidade da casa”. Está assim provado que o autor está impedido do uso da habitação cuja construção pediu à ré por força dos defeitos da mesma e da necessidade da sua reparação que a mesma não fez e que terá de ser ele a custear.
É hoje entendimento pacífico que a mera privação do uso de um bem de que se é proprietário é um dano indemnizável.
O dano ressarcível é o da indisponibilidade de um bem que, se não fosse a lesão, poderia ser usado.
Como se sumaria no acórdão desta Relação de 12-09-2024
[13]
, em formulação com que concordamos inteiramente: “
A mera privação da possibilidade do uso de um bem de que se é proprietário constitui um dano indemnizável. Se alguém tem uma casa deve poder utilizá-la como bem lhe aprouver, seja habitando-a ou arrendando-a. E mesmo que não a habite de forma contínua.
II - O maior ou menor grau dessa privação é que já necessita de concretização factual (por exemplo, frequência e tipo de utilização) para se poder aquilatar de um maior ou menor montante indemnizatório.”
No caso o autor, provou que adquiriu um lote de terreno para nele vir a mandar construir uma casa destinada à sua habitação (pontos 1 e 2 dos factos provados).
Certo é que pediu e viu ser-lhe fixada uma indemnização pelos danos decorrentes dos defeitos da obra e consistentes no desgosto que sente pelo facto de nela não poder residir. Tal vertente, não patrimonial, do seu dano não se confunde com a lesão do seu direito de propriedade, que tem caráter patrimonial. O direito de propriedade é um direito pleno e exclusivo e o proprietário tem os direitos de “
uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem”
– cfr. artigo 1305.º do Código Civil. Ora o autor é proprietário da habitação que a ré construiu e não pode usá-la e frui-la pelo que vê diminuídas as faculdades que resultam do direito de propriedade, ou seja, vê limitado tal direito patrimonial.
Não se sabia, à data da instauração da ação, por quanto tempo se prolongaria tal limitação do seu direito, pelo que era admissível a formulação de um pedido genérico, à luz do artigo 556.º, número 1 b) do Código de Processo Civil que remete para o artigo 569.º do Código Civil.
Provada a responsabilidade da ré pelos defeitos da obra, que impedem o seu uso, tem o autor direito a que aquela o indemnize pelos danos da privação desse uso que venham a apurar-se em sede de liquidação da sentença.
Pelo que procede nessa parte o pedido de condenação da ré no pagamento de valor, a liquidar ulteriormente, para ressarcimento desse dano.
*
7 - A condenação do autor no pedido reconvencional.
Entende o recorrente, sumariando o que alega, que tendo sido decretada a resolução do contrato de empreitada não podia ser condenando a pagar o respetivo preço, já que à resolução se aplicam os mesmos efeitos da nulidade do negócio jurídico pelo que dela resultam efeitos retroativos – com a consequente obrigação das partes de restituírem o que já foi prestado -, e “
liberatórios das obrigações ou prestações ainda não efetuadas
”.
O mesmo sustenta este raciocínio sem levar em conta que se provou que a obra acordada com a ré foi por ela executada e que a mesma ainda levou a cabo outros trabalhos extra, que o mesmo lhe solicitou no seu decurso. Vejam-se, a propósito, os pontos 6, 7, 10, 23 30 a 32, 38, 42 e 48 dos factos provados de que resultam os trabalhos que a ré se comprometeu a fazer a pedido do autor e aqueles que fez bem como os preços de uns e outros.
A ré executou, assim os trabalhos solicitados, embora com inúmeros defeitos, tendo-se na sentença concluído que apenas incumpriu o dever de reparar tais defeitos, como lhe foi solicitado e era obrigada a fazer, tendo o autor perdido definitivamente o interesse nessa prestação.
Por via do contrato de empreitada o empreiteiro obriga-se à execução da obra em conformidade com o convencionado e o dono da obra ao pagamento do respetivo preço (cfr. artigos 1207.º e 1208.º do Código Civil).
A obrigação de eliminação dos defeitos prevista no artigo 1221.º, decorre não do incumprimento pela ré da obrigação principal – que era a de executar a obra -, mas da má execução da mesma. Os direitos que o autor exerceu nesta ação são parte dos previstos no artigo 12221º, 1222.º e 1223.º do Código Civil, a saber, o de reparação dos defeitos (aqui substituído pelo direito a ser indemnizado pelo custo dessa reparação que a ré não fez), resolução do contrato e o de ser indemnizado nos termos gerais.
O autor pediu que os defeitos – que deveria ter sido a ré a reparar -, fossem por ela custeados porque a mesma não procedeu a tal reparação, apesar de lhe ter sido solicitada, e tal pretensão procedeu. Ou seja, a ré está obrigada a pagar ao autor a reparação dos defeitos considerados reparáveis. Também procedeu o seu pedido de indemnização pelos defeitos não suscetíveis de reparação, na medida em que se manterão e desvalorizam o imóvel. Procederam também as suas pretensões de ser indemnizado pelos danos que se provou que teve e previsivelmente terá por causa do incumprimento da ré consubstanciado na má execução dos trabalhos a que estava obrigada. Ou seja, o autor será integralmente ressarcido pelos danos sofridos pelo incumprimento contratual da ré que ficou provado e uma parte da indemnização (fixada e ainda a liquidar) visa eliminar os defeitos da obra.
Pelo que não pode, como é manifesto, pretender também ser absolvido do pedido de condenação no pagamento do preço dos trabalhos executados.
O artigo 432.º do Código Civil que o recorrente convoca é claro em afirmar, no seu número 2, que a parte que não esteja em condições de restituir o que houver recebido por circunstâncias não imputáveis ao outro contraente, não tem o direito de resolver o contrato. Obviamente que o recorrente não pode “restituir” a prestação da ré consistente na execução da obra. Nos termos do artigo 289.º número 1 do Código Civil, aplicável por remissão do artigo 433.º do Código Civil, quando não seja possível a restituição em espécie deve ser devolvido o valor correspondente. Pelo que mesmo pela via convocada pelo recorrente não podia proceder a sua pretensão sempre estando o mesmo obrigado a pagar à reconvinte o preço dos trabalhos executados.
Sucede que também o enquadramento jurídico da questão que o recorrente defende não é o correto pois o mesmo sequer deduziu na ação qualquer pedido decorrente da pretendida resolução do contrato que agora defende, ou seja, não pediu a restituição de qualquer prestação feita à ré.
Antes optou pela indemnização do seu interesse contratual positivo, ou seja, pediu a condenação da ré no pagamento das quantias necessárias a que ficasse colocado na mesma situação em que estaria se o contrato tivesse sido devidamente cumprido, isto é, se a obra tivesse sido executada sem defeitos.
Há muito que a maioria da doutrina e da jurisprudência ultrapassaram o entendimento de que o direito à indemnização por incumprimento contratual apenas só o interesse contratual negativo visando apenas compensar o contraente prejudicado pelos danos decorrentes da celebração do contrato.
Afirmou o Supremo Tribunal de Justiça
[14]
em acórdão de 15-02-2018 o seguinte, com inteira aplicação na questão em apreço:
“no quadro dos desenvolvimentos mais recentes da doutrina e da jurisprudência, é de considerar, em tese, admissível a cumulação da resolução do contrato com a indemnização dos danos por violação do interesse contratual positivo, não alcançados pelo valor económico das prestações retroativamente aniquiladas por via resolutiva, sem prejuízo da ponderação casuística a fazer, à luz do princípio da boa fé, no concreto contexto dos interesses em jogo, mormente em função do tipo de contrato em causa, de modo a evitar situações de grave desequilíbrio na relação de liquidação ou de benefício injustificado por parte do credor lesado”.
Também este Tribunal, em acórdão de 09-03-2023
[15]
, em situação em muito idêntica à que se aprecia neste recurso, entendeu que “
Nos termos do artigo 433.º do Código Civil na falta de disposição especial, a resolução é equiparada, quanto aos seus efeitos, à nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico, com ressalva do disposto nos artigos seguintes.
A remissão é para o artigo 289.º, segundo o qual a declaração de nulidade e a anulação do negócio têm efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.
Por outro lado, nos termos do artigo 434.º resolução tem efeito retroactivo, salvo se a retroactividade contrariar a vontade das partes ou a finalidade da resolução.
Por aplicação destas normas, em caso de desconformidade parcial do bem, decidindo o lesado apesar da desconformidade conservar o bem ou não havendo possibilidades de o restituir, a resolução não tem eficácia retroactiva relativamente à parte do bem entregue e aceite. Por conseguinte, no caso, os autores tinham de pagar à ré o preço (contratual) das obras executadas por esta e aceites por eles, não tendo o direito de exigir da ré a restituição desse preço já pago.
Já no tocante aos trabalhos não executados, os autores, após a resolução, tinham o direito de recusar a sua execução pela ré e o direito de recusar o pagamento do respectivo preço ou, tendo-o já pago (total ou parcialmente), o direito de exigir a sua restituição, não a título de indemnização, mas como efeito da extinção do contrato por resolução e subsequente extinção das obrigações comutativas e sinalagmáticas.
Esse direito não se confunde com o direito de indemnização - que, no entendimento ora estabilizado pelo Supremo Tribunal de Justiça, deve colocar o contraente não inadimplente na posição em que estaria se o contrato fosse cumprido, como era finalidade do contrato -, decorre do direito do contraente ao cumprimento e corresponde à posição em que o próprio inadimplente estaria se honrasse a sua palavra contratual e respeitasse os seus deveres jurídicos de fonte voluntária.”.
Ora, estão provados os trabalhos efetivamente executados pela ré a pedido do autor e o seu preço, pelo que, concluindo-se na sentença que parte desse preço se encontrava por pagar, bem andou o Tribunal
a quo
em condenar o autor no seu pagamento.
A cumulação da pretensão de ser indemnizado por todos os danos decorrentes do incumprimento do contrato com a de ser absolvido do pagamento do preço da obra efetivamente feita resultaria em indevido locupletamento do autor, enquanto lesado. A procederem ambas as pretensões o mesmo ficaria numa situação patrimonial claramente superior à que para si decorreria do bom cumprimento contratual, ou seja, ficaria com a sua habitação reparada, seria indemnizado de todos os danos que resultaram da sua má execução e não teria de pagar o preço da obra feita. O que não pode ser admitido.
Nessa parte improcede, portanto, o recurso em apreço.
*
Resta afirmar que a alteração da matéria de facto constante da alínea 32 b) dos factos provados não tem qualquer efeito na condenação já que deve considerar-se que o Tribunal
a quo
teve já em conta o custo necessário à reparação desse defeito na condenação líquida a que chegou, pois o mesmo não está excluído da soma feita na alínea 33 dos factos provados.
*
Das custas do recurso:
Atenta a autonomia tributária do recurso prevista nos artigos 1.º, número 2 e 6.º, número 2 do Regulamento das Custas Processuais, há que fixar a responsabilidade de recorrente e recorrido em face do seu decaimento no mesmo.
Não sendo líquidas as condenações da ré que resultam deste acórdão, há que fixar o decaimento do autor no recurso à luz do artigo 527.º, número 2 do Código de Processo Civil. Tendo o recorrente obtido sucesso em sete das dez pretensões que deduziu e atendendo ao valor económico dos pedidos líquidos em que decaiu – o de indemnização por danos não patrimoniais (decaimento de 1.000 €) e o de ser absolvido do pedido reconvencional em que fora condenado a pagar à ré 30.256,33 € -, bem como ao facto de serem ilíquidas as condenações resultantes da procedência das demais pretensões, fixa-se o decaimento do recurso em 2/5 para o recorrente e 3/5 para a recorrida.
*
A condenação das custas da ação mantém-se de acordo com o decaimento, como previsto na sentença recorrida, mas em face da condenação genérica resultante do presente acórdão há que fixar também o decaimento de autor e ré nos termos do disposto no artigo 527.º do Código de Processo Civil apenas quando ao pedido, já que quanto à reconvenção o reconvinte decaiu totalmente.
Ora verifica-se que procedeu quase na sua totalidade a pretensão do autor traduzida nos cinco pedidos de condenação formulados na petição inicial, tendo apenas decaído num deles.
As custas da ação serão, assim, a cargo de autor e ré fixando decaimento do autor de 1/5 e da ré de 4/5.
As custas da reconvenção serão a cargo do autor.
V – Decisão:
Julga-se o recurso parcialmente procedente, revogando a sentença recorrida nos seguintes termos:
1- Condena-se a ré a pagar ao autor os valores que vierem a liquidar-se ulteriormente com vista a:
a) - indemnizar o autor pelo custo que terá suportar para a reparação do defeito relativo ao isolamento térmico da habitação referido na alínea 39 dos factos provados e que vá para além do valor de 6.920, 20 € já fixado;
b) - indemnizar o autor pelo custo que terá suportar para a reparação do defeito consistente no desalinhamento das cassetes das portas de correr.
c) - indemnizar o autor pelo custo que terá suportar para a reparação do defeito consistente no desalinhamento do painel central da parede da sala;
d) - indemnizar o autor pela desvalorização do imóvel decorrente do desalinhamento dos pilares e das demais paredes, (com exceção, portanto, do painel central da parede da sala), valor esse que não poderá ser inferior ao montante de 500 € já liquidado na sentença;
e) - indemnizar o autor pelos danos que se venha a apurar que sofreu após a instauração da petição inicial e que entretanto tenham decorrido dos defeitos de construção alegados na petição inicial que foram julgados provados;
2. Condena-se a ré a pagar ao autor o valor de 4.000 € para ressarcimento dos seus danos não patrimoniais.
3. Absolve-se a ré do pedido formulado pelo autor na alínea b) do ponto 4 do pedido (condenação da ré no pagamento de indemnização pelos juros remuneratórios do empréstimo hipotecário contraído pelo autor).
*
Mantém-se o demais decidido quanto às condenações quer da ré quer do autor no pagamento dos montantes já liquidados na sentença recorrida
*
Custas do recurso por recorrente e recorrida, fixando-se o decaimento do recurso em 2/5 para o recorrente e 3/5 para a recorrida.
Custas da ação por autor e ré sendo o decaimento do autor no pedido fixado em 1/5 e sendo total o seu decaimento quanto ao pedido reconvencional.
Porto, 24-02-2025
Ana Olívia Loureiro
Nuno Marcelo de Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo
José Nuno Duarte
_________________
[1] Disponível para consulta em: STJ3167/17.5T8LSB.L1.S1
[2] Só na eventualidade de não dispor dos elementos necessários a conhecer do mérito se justifica a devolução do processo ao tribunal a quo, como afirma Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo, Civil, Almedina, 7ª edição, página 387.
[3] Direito Processual Civil, Edição AAFDL, II, Volume, 1987, página 490.
[4] Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, II Edição, página 244
[5] Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, Páginas 71 e 72.
[6] Op. Cit. página 189.
[7] Como vem sendo decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça, nomeadamente no acórdão de 09-02-2021, proferido no processo 27069/18.3T8PRT.P1.S1 disponível em
https://jurisprudencia.pt/acordao/199600/
, “(…) nada impede a Relação de apreciar se a factualidade indicada pelos recorrentes é ou não relevante para a decisão da causa, podendo, no caso de concluir pela sua irrelevância, deixar de apreciar, nessa parte, a impugnação da matéria de facto por se tratar de ato inútil.”.. Mais recentemente, também no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28 de setembro de 2023, proferido no processo 2509/16.5T8PRT.P1.S1e disponível em
https://jurisprudencia.pt/acordao/218090/
, pode ler-se: “Por força dos princípios da utilidade, economia e celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto se entender que os concretos factos objecto da impugnação, atentas as circunstâncias do caso e as várias soluções plausíveis de direito, não têm relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual puramente gratuita ou diletante.”.
[8] No Blog do IPCC, em publicação de 20-03-2015, disponível em blogdoippc.
[9] Disponível em STJ 1485/20.4T8GMR.G1.S1.
[10] Op. cit. I volume, página 499.
[11] Acórdão de 13-12-2022, disponível em STJ497/19.5T8TVD.L1.S1
[12] Acórdão TRP 495/20.6T8PVZ.P1.
[13] TRP 9522/22.1T8VNG.P1
[14] STJ 7461/11.0TBCSC.L1.S1
[15] TRP 361/22.0T8GDAM.P1
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TRP
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https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/a43fe5402d5f833280258c46004cf5d4?OpenDocument
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1,738,022,400,000
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CONFIRMADA
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1202/17.6T8CTB.C1
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1202/17.6T8CTB.C1
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MOREIRA DO CARMO
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i) Numa acção de demarcação, fixada a linha de divisão entre os prédios, é inócuo recorrer-se com o argumento que a parte do recorrente fica sem acesso à via publica, se tal facto não se provou;
ii) Ainda que provado, face aos normativos legais aplicáveis – arts. 1353º e 1354º -, não relevaria para impedir a demarcação alcançada, tanto mais que nessa situação o recorrente tem possibilidade de lançar mão de outros expedientes judiciários para ultrapassar tal eventual situação.
(Sumário elaborado pelo Relator)
|
[
"AÇÃO DE DEMARCAÇÃO",
"ENCRAVAMENTO DO PRÉDIO"
] |
I – Relatório
1. AA
, residente em ..., intentou acção declarativa contra
BB
e mulher
CC
, residentes em ...,
DD
, residente em ...,
EE
, residente em ...,
FF
, residente em ...,
GG
, viúva,
HH
e
II
, todos residentes em ...,
JJ
, residente em ...,
KK
, residente em ...,
LL
, residente em ...,
MM
, residente em ...,
NN
, residente em ...,
OO
, residente no ..., e
PP
, residente em ..., peticionando o seguinte:
1) a demarcação dos prédios identificados em 1º e 6º da petição inicial, devendo os réus ser citados para contestarem, querendo, a linha delimitadora definida no art. 13º da petição inicial, indicando para tanto uma linha alternativa, sob pena de não o fazendo, serem condenados a reconhecer que é pela linha indicada pelo autor que se delimitam os mencionados prédios;
2) reconhecimento do direito de propriedade do autor sobre o prédio identificado no art. 1º da petição inicial até à linha delimitadora que vier a ser fixada, abstendo-se, consequentemente de praticar qualquer ato que, de qualquer modo, impeça, dificulte ou diminua o livre exercício do direito do autor sobre tal prédio até tal linha delimitadora;
3) a demolição e retirada de tudo o que, depois de definida a linha delimitadora, estiver a ocupar o prédio do autor, no prazo de 15 dias, entregando-o ao autor completamente livre e desimpedido;
4) a condenação dos réus a pagar ao autor, a título de sanção pecuniária, a quantia de 100 € por cada dia além dos 15 dias acima referidos, que demorarem a limpar e desimpedir o prédio deste.
Para tanto, alegou em síntese que: o autor é proprietário do prédio urbano sito em ..., freguesia ..., inscrito na matriz sob o art. ...49, prédio que lhe adveio por compra a QQ e mulher, tendo estes últimos adquirido em venda judicial, na qual figurava como executado II. Após tomada de posse do prédio, QQ e RR aperceberam-se que faltavam 450 m2 de área de superfície descoberta do seu prédio, tendo após acção declarativa de condenação e sentença transitada em julgado, sido restituída parcela de terreno demarcada com ferros, na qual se encontra um ponto de abastecimento de água (furo) e o tanque de rega que abastece de água o resto da propriedade, encontrando-se o contador e ramal de água do saneamento que abastece a casa de habitação. Mais alegou que o furo em causa foi aberto por SS, que era dono do prédio rústico sito no ..., inscrito na matriz rústica sob o artigo ...67, secção BF, tendo o falecido SS partilhado verbalmente o prédio pelos cinco filhos, e ocupando os réus o terreno resultante dessa divisão; parte desse prédio ficou para GG, que aí construiu a sua casa, parcela que veio a ser vendida ao aludido QQ e esposa; o prédio dos Autores possui superfície coberta de 117,20 m2, superfície descoberta de 1.150,00 m2, e confronta pelo norte com herdeiros de SS, os ora réus, e pelo sul com LL, nascente com caminho público e poente com TT. No processo que correu termos no Juízo Local Cível de Castelo Branco, sob o nº 1496/10...., não se apurou a quem pertence a aludida parcela de terreno na qual se integra o furo, tendo-se apenas determinado a quem pertencia a água do furo artesiano aberto. Em relação ao prédio do autor e do prédio situado a norte, pertencente aos herdeiros de SS, inexiste linha divisória, sendo a mesma objecto de controvérsia entre as partes; uma vez que o prédio do autor tem menos 450 m2 do que a área a que o título faz referência, sendo tal área a que está em frente à sua habitação, onde se encontra o furo, por ter sido utilizado pelo II até à data da penhora pela AT e vendido judicialmente, sendo o lugar onde aparcava camiões e outros veículos, que se encontrava vedado a estranhos.
Suscitou ainda o incidente de intervenção provocada de
UU
, residente em ..., casada com o autor, por ser comproprietária do prédio descrito no art. 1º da petição, o que foi admitido, como sua associada
Os réus
BB
e
MULHER
contestaram, invocando a excepção de ilegitimidade, porquanto doaram o quinhão hereditário, que o Réu em causa detinha na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de SS, a BB (seu sobrinho e afilhado).
Foi julgada válida a desistência da instância quanto aos réus
BB
e
MULHER
.
Ordenou-se a citação de
BB
, por o mesmo ser o actual proprietário do quinhão hereditário objecto de doação.
BB
contestou, suscitando excepção de caso julgado. No mais, impugnou a generalidade dos factos alegados na petição inicial, designadamente área de superfície descoberta. No que respeita à partilha verbal feita por SS há mais de 30 anos, por via da qual dividiu o prédio inscrito na matriz sob o artigo ...67, com a área de 3.280 m2, pelos seus cinco filhos, os quais demarcaram os prédios de forma a confinar com o caminho público, por forma a evitar onerar com servidão de passagem qualquer um dos prédios. De acordo com essa divisão, a sorte situada a poente ficou a pertencer a EE, e a confrontar com esta, a nascente, ficou a sorte pertencente a VV, marido da ré DD. A confrontar com a parcela desta ré situam-se as sortes que ficaram a pertencer a FF, BB e CC. Na parcela pertencente a FF, situa-se a casa de habitação do autor da herança, razão pela qual ficou esta com uma área mais pequena, sensivelmente de 200 m2. A sul e nascente desta, situa-se a parcela pertencente a BB, cuja área é de 760,00 m2, confrontando do Norte com FF, sul com GG, Nascente com estrada e poente com DD. Por escritura de doação de quinhão hereditário, BB e mulher, doaram ao aqui réu, o quinhão hereditário que possuíam na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de SS. Este prédio que pertence ao aqui réu tem a única entrada por um portão situado a Nascente do prédio, e encontra-se delimitado a sul pelo prédio dos autores, nomeadamente pela casa de habitação dos autores e pelo logradouro composto de terra de cultivo e árvores de fruto, que se situa num plano inferior em relação ao prédio do réu, a norte pelo prédio que pertenceu a FF e a poente pela vedação do prédio que pertence à ré DD. Mais alegou que os prédios estão perfeitamente delimitados, sendo que todos os confinantes sabem onde começa e termina os seus prédios.
Foi formulado convite aos autores para juntar nova petição inicial aperfeiçoada, ao qual os autores corresponderam.
Julgou-se improcedente a excepção de caso julgado invocada.
Julgou-se improcedente o pedido formulado sob 4) pelos autores, absolvendo-se os réus do mesmo.
*
A final foi proferida sentença que julgou parcialmente procedente a acção e, em consequência, decidiu:
1)
Delimitar o prédio urbano referido no facto provado 5) [denominado ... sito em ..., freguesia ... e concelho ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...49, composto por edifício de R/C, 1.º andar, quintal e um anexo, encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...11], do prédio rústico referido no facto provado 10) [sito no ..., Freguesia ..., inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...67 da secção VF], pelo lado Norte do primeiro e pelo lado Sul do segundo, através de três segmentos de recta:
a.
considerando o sentido nascente-poente, por uma recta que se inicie no ponto 555,84 e finde no tracejado verde paralelo ao anexo no ponto 553.64 do levantamento topográfico junto aos autos com o e-mail de 01-03-2024 de referência n.º 3522621, de fls. 492, implantando-se um marco neste último ponto;
b.
considerando o sentido sul-norte, por uma recta que se sobreponha/corresponda ao tracejado verde, e que se inicia no ponto 553,64 do levantamento topográfico junto aos autos com o e-mail de 01-03-2024 de referência n.º 3522621, de fls. 492 (inscrito no tracejado verde paralelo ao anexo) e que culmina na intersecção entre as linhas azul e verde, onde se colocará um marco;
c.
considerando o sentido nascente-poente, por uma recta que se inicia na intersecção das linhas tracejadas verde e azul do levantamento topográfico junto aos autos com o e-mail de 01-03-2024 de referência n.º 3522621, de fls. 492, e que se sobreponha com a linha tracejada azul, culminando no fim desse tracejado no ponto mais a poente, onde se colocará um marco.
2)
Reconhecer o direito de propriedade do A. sobre o prédio identificado no facto provado 5) até às linhas delimitadoras referidas no ponto 1) do decisório
;
3)
Absolver os RR DD, JJ, BB, DD, LL, MM, e OO do demais peticionado pelo A.
*
2. O R. BB recorreu, concluindo que:
I - O presente recurso tem por objeto a parte da sentença que decidiu “Delimitar o prédio urbano referido no facto provado 5) [denominado ... sito em ..., freguesia ... e concelho ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...49, composto por edifício de R/C, 1.º andar, quintal e um anexo, encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de
... sob o n.º ...11], do prédio rústico referido no facto provado 10) [sito no ..., Freguesia ..., inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...67 da secção VF], pelo lado Norte do primeiro e pelo lado Sul do segundo, através de três segmentos de recta: a. considerando o sentido nascente-poente, por uma recta que se inicie no ponto 555,84 e finde no tracejado verde paraleloao anexo no ponto 553.64 do levantamento topográfico junto aos autos com o e-mail de 01-03-2024 de referência n.º 3522621, de fls. 492, implantando-se um marco neste último ponto; b. considerando o sentido sul-norte, por uma recta que se sobreponha/corresponda ao tracejado verde, e que se inicia no ponto 553,64 do levantamento topográfico junto aos autos com o e-mail de 01-03-2024 de referência n.º 3522621, de fls. 492 (inscrito no tracejado verde paralelo ao anexo) e que culmina na intersecção entre as linhas azul e verde, onde se colocará um marco; c. considerando o sentido nascente-poente, por uma recta que se inicia na intersecção das linhas tracejadas verde e azul do levantamento topográfico junto aos autos com o e-mail de 01-03-2024 de referência n.º 3522621, de fls. 492, e que se sobreponha com a linha tracejada azul, culminando no fim desse tracejado no ponto mais a poente, onde se colocará um marco.
II - No iter lógico de aplicação do direito aos factos provados, concluiu o Exmo. Sr. Juíz a quo que, segundo os critérios a atender para proceder à demarcação dos prédios em cofinancia, não estando verificados no caso sub judice os pressupostos para aplicação dos critérios previstos nos n.º 1 e 2 do art.º 1354 do CC, o critério utilizado foi a aplicação da regra salomónica.
III - Quantos aos prédios dos AA. e dos RR. a delimitar, bem como quanto à área em litígio, o Exmo. Sr. Juíz a quo considerou provados os seguintes factos: - que o terreno em litígio tem uma área de cerca de 635,00 m2, - que o terreno em litígio tem uma configuração geométrica irregular, conforme se constata do cruzamento dos levantamentos topográficos de fls. 492, 493 e 494 (constantes do e-mail de 01-03-2024 de referência n.º 3522621).
IV - O Exmo. Sr. Juíz a quo considerou provado que, procedendo-se à delimitação dos prédios conforme alegado pelos Autores, o prédio dos Autores confronta com o prédio descrito em 10) através de uma linha imaginária paralela ao lado menor do anexo (referido em 9)), que se inicia no contador de água e se prolonga no sentido nordeste-sudoeste por cerca de 21,25 metros., o prédio dos AA. perfaz uma área de 1.190,00 m2
e o prédio dos RR. perfaz a área de 450,00 m2.
V – Considerou ainda provado que procedendo-se à delimitação dos prédios conforme alegado pelos Réus, o prédio dos Autores confronta com o prédio dos RR. através de uma linha imaginária irregular, inicialmente paralela ao lado maior do anexo (referido em 9)), distando o anexo dessa linha cerca de 0,50 metros, e que se inicia a Norte e prossegue até Sul por cerca de 19,75 metros, até distar um metro da casa de habitação, seguindo posteriormente para Este/Nascente de forma paralela à casa de habitação dos Autores por cerca de 5 metros, e após prosseguindo por 9,25 metros até à extremidade norte do portão identificado no levantamento topográfico de fls. 492.., que o prédio referido dos AA. perfaz uma área de 1.005,00 m2 e o prédio dos RR. uma área de 635,00 m2.
VI. Resulta ainda dos factos provados que a soma das áreas dos dois prédios referidos em 5) e 10) é de 1.640,00 m2.
VII - Aplicando o Direito aos factos, o Exmo. Dr. Juíz a quo procedeu pela demarcação através da distribuição do terreno em litígio por partes iguais (artigo 1354.º, n.º 2, do Código Civil), ou seja, a divisão salomónica.
VIII - Conforme resulta da prova produzida, nomeadamente, dos levantamentos topográficos de fls. e fls. 492 a 494, bem como da motivação dos factos não provados, especificamente, dos factos j), l), m) e n), que foram considerados não provados, atento o que ficou provado em 15) a 19), sendo certo que o Exmo. Juíz a quo considerou a sorte de EE (ante possuidora do prédio dos AA.) a que se encontra mais a Norte (e o levantamento topográfico e a deslocação ao local assim o confirmam – sendo certo que deverá prevalecer as coordenadas e pontos cardeais do levantamento topográfico, que se encontram melhor definidos), e a sorte de BB se encontrava inicialmente a Norte da de CC e a Sul de VV, não tendo qualquer contacto com a via pública nos primeiros tempos após a partilha verbal referida em 13.
IX - Da inspeção ao local realizada a 20/01/2022, ficou assente, entre AA. e RR, que sobravam apenas 2 (duas) parcelas que compunham o “prédio mãe”, a saber: - A parcela de GG – atualmente dos Autores e, que corresponde ao ponto 5) dos factos provados e a parcela que originalmente coube a BB e que atualmente pertence a BB, que corresponde ao ponto 10) e 16) dos factos provados, sendo sobre esses dois prédios que vieram a incidir os levantamentos topográficos constantes dos autos, e sendo estes os prédios objeto da demarcação.
X – A decisão proferida quanto à linha divisória não se harmoniza com a distribuição tendencialmente igualitária dos terrenos, pelo facto de, conforme supra demonstrado, o prédio dos RR. fica sem acesso à via pública, confrontando o mesmo em resultado da demarcação operada, a sul com o prédio dos AA., a Nordeste com a parcela atribuída a FF e a Norte com a vedação da sorte atribuída a VV e a poente com TT.
XI - Resulta à saciedade que, ficando o prédio dos RR. sem acesso à via pública, ficará o mesmo desvalorizado, implicando a demarcação, conforme decisão recorrida, um desequilíbrio económico gritante entre os prédios dos AA. e RR. com claro prejuízo para o prédio dos RR.
NESTES TERMOS e nos melhores de Direito aplicáveis, e sempre com o mui douto suprimento de V. Excias., deverá a douta sentença sob recurso ser revogada, e, em sua substituição, ser proferida decisão que fixe uma linha divisória que garanta o prédio dos RR. fique com acesso à via pública., assim se fazendo INTEIRA JUSTIÇA.
3. Inexistem contra-alegações.
II – Factos Provados
1)
No Processo n.º 1496/10...., que correu termos no Juízo Local Cível de Castelo Branco, figuraram como Autores habilitados os aqui Autores AA e UU, e como Réus BB e DD, os primeiros peticionaram:
a. que os Autores fossem declarados donos e legítimos possuidores do prédio urbano, sito em ..., Freguesia ..., concelho ..., com a superfície coberta de 117,20 m2, superfície descoberta de 1150,00 m2, e um anexo com a superfície coberta de 21,50 m2, inscrito na respectiva matriz sob o art. ...49, com tudo o que o compõe, com exclusão de qualquer outra pessoa;
b. a condenação dos Réus a reconhecer tal direito e a absterem-se de entrar no prédio dos Autores e por qualquer forma turbar a posse destes;
c. a condenação dos Réus a pagar aos Autores a quantia de € 2.800,00 a título de danos morais.
2)
Os Réus BB e DD peticionaram em sede reconvencional que:
a. Os Réus fossem declarados donos e legítimos possuidores da parcela de terreno em causa na acção;
b. Os Réus fossem declarados comproprietários na proporção de 1/5 do furo e da água dele extraída por destinação de pai de família;
c. Os Autores fossem condenados a reconhecê-los como tal e a abster-se de impedir os Réus de utilizarem tal água.
3)
Por sentença proferida a 24-10-2016, transitada em julgado a 30-11-2016, no âmbito do Processo n.º 1496/10...., que correu termos no Juízo Local Cível de Castelo Branco, decidiu-se julgar totalmente improcedente o peticionado pelos Autores e julgar parcialmente procedente a reconvenção, declarando os aí Réus BB e DD comproprietários na proporção de 1/5 do furo e da água dele extraída sito no prédio rústico sito no ..., Freguesia ..., inscrito na matriz sob o artigo ...67 da Secção BF, tendo-se condenado AA e UU a reconhecê-los como tal e a abster-se de impedir aqueles de utilizar tal água, absolvendo-se os Autores do demais peticionado.
4)
Da fundamentação da sentença a que se alude em 3) consta:
«A) Factos provados
(…)
9) SS era dono de um prédio rústico sito no ..., Freguesia ..., inscrito na matriz sob o artigo ...67 da Secção BF.
10) Por partilha verbal ainda em vida do falecido SS dividiram os seus cinco filhos o prédio identificado em 9).
(…)
Questões a resolver:
1. propriedade dos Autores sobre a parte do terreno em causa;
(…)
3. propriedade dos réus relativa à divisão que resultou do prédio originário descrito em 9) dos factos provados;
(…)
No que concerne à propriedade dos prédios (questões 1 e 3).
No que concerne aos Autores, os mesmos reclamam a propriedade do prédio com as áreas e confrontações constantes do registo predial para ver reconhecido o seu direito sobre todo o logradouro que se encontra na frente da sua casa.
Pois bem.
Relativamente a esta questão resultou apenas demonstrado que os AA. são donos e legítimos possuidores de um prédio urbano, sito em ..., Freguesia ..., concelho ... e que o mesmo se encontra inscrito na matriz sob o art. ...49. Tal resultou demonstrado devido à existência de registo a favor dos Autores, sendo que, nos termos do artigo 7º do Código de Registo Predial "o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define".
No entanto, os Autores não lograram provar nem a área do terreno nem as suas confrontações, razão pela qual não poderá ser reconhecido o direito de propriedade nos moldes peticionados, improcedendo assim este pedido.
No que respeita ao direito de propriedade dos réus, diremos o que se segue, atendendo a que estes fundaram a sua aquisição de modo originário, com base na usucapião. Vejamos.
A "posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real" (art. 1251° CC). A doutrina e a jurisprudência largamente dominantes (P. Lima e A. Varela, CC Anotado, vol. III 2ª ed. p.5, M. Pinto, Direitos Reais, pp.180 ss, H. Mesquita, Direitos Reais, pp.68 ss, O. Carvalho, RLJ 122° pp.68-69 e, entre muitos, AcRP 9Mar00, CJ 2° p.187) convergem na exigência de dois elementos:
_o "corpus": elemento objectivo (material) da posse, concebido como o exercicio efectivo de poderes materiais sobre a coisa;
_o "animus": elemento subjectivo (psicológico) da posse, concebido como a consciência de actuação como verdadeiro dominus, de tal forma que o possuidor exerce o poder de facto com a intenção de agir como beneficiário do direito (e não apenas aproveitando-se da mera tolerância do titular do direito, como sucede com o detentor ou possuidor precário).
Dispõe o art.1287° CC que "A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião" (cf. também o art.1316° CC), sendo que "Não havendo registo do título nem da mera posse, a usucapião só pode dar-se no termo de quinze anos, se a posse for de boa fé, e de vinte anos, se for de má fé" (art.1296° CC).
Em face deste quadro e da matéria que ficou provada, o Tribunal não pode concluir pela presença dos mencionados elementos da posse em relação aos prédios de cuja propriedade os réus reconvintes se arrogam, já que nenhuma prova resultou nesse sentido, motivo pela qual a sua pretensão, será, nesta parte, julgada improcedente.
»
5)
O prédio urbano denominado ... sito em ..., freguesia ... e concelho ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...49, composto por edifício de R/C, 1.º andar, quintal e um anexo, encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...11 e registado a favor do Autor AA, pela AP. ...87 de 2015/08/03, por compra a QQ e RR.
6)
O prédio descrito em 5) é composto por uma casa de habitação com rés-do-chão e primeiro andar, quintal, garagem e um anexo.
7)
A casa de habitação tem uma área de 136,20 m2.
8)
A garagem tem uma área de 65,00 m2.
9)
O anexo tem uma área de 37,80 m2.
10)
O prédio rústico sito no ..., Freguesia ..., encontra-se inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...67 da secção VF a favor de SS.
11)
O prédio misto sito em ..., Freguesia ..., composto pelos prédios urbanos inscritos na matriz predial urbana sob os n.ºs ...57 e ...52, e prédio rústico inscrito na matriz predial rústica sob o n.º ...67, composto por terra de cultura arvense, vinha, citrinos, figueiras e dois edifícios de rés-do-chão, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...25 encontra-se registado a favor de SS, GG, BB, FF, WW, por aquisição em comum e sem determinação de parte ou direito, constando como causa a sucessão hereditária e dissolução da comunhão conjugal em relação ao sujeito passivo XX, casada com JJ no regime de comunhão geral.
12)
O prédio descrito em 5) confronta de Norte com o prédio referido em 10).
13)
Em data não concretamente apurada, mas seguramente há cerca de 30 anos, JJ declarou verbalmente partilhar o prédio referido em 10), em cinco partes/sortes, por GG, BB, FF, WW e VV, o que o fez perante estes últimos, e os quais declararam aceitar tal partilha.
14)
A partir do momento referido em 13), GG, BB, FF, WW e VV começaram a demarcar as cinco parcelas entre si de acordo com as declarações de partilha proferidas por JJ.
15)
Na sorte atribuída a FF, situava-se a casa de habitação de JJ.
16)
A sul da sorte atribuída a FF situa-se a parcela/sorte atribuída a BB.
17)
A parcela referida em 16), atribuída a BB, confrontava do Nascente com a parcela atribuída FF, e de Norte com a parcela atribuída a VV.
18)
A parcela referida em 16), atribuída a BB, confronta de Sul com o prédio referido em 5), nomeadamente pela casa de habitação dos Autores e pelo logradouro composto de terra de cultivo e árvores de fruto, que se situa num plano inferior em relação à referida parcela.
19)
A parcela referida em 16), atribuída a BB, confronta do Nordeste com a parcela atribuída a FF e a Norte com a vedação da sorte atribuída a VV.
20)
O terreno em litígio tem uma área de cerca de 635,00 m2.
21)
O terreno em litígio tem uma configuração geométrica irregular, conforme se constata do cruzamento dos levantamentos topográficos de fls. 492, 493 e 494 (constantes do e-mail de 01-03-2024 de referência n.º 3522621), os quais se dão aqui por reproduzidos, e desdobra-se em dois polígonos, o primeiro com quatro lados, e o segundo com dez lados, e que as partes se encontram de acordo que pertence aos Réus o terreno que se inicia no contador de água e se prolonga até ao portão mais a Norte, perfazendo um polígono de quatro lados com uma área de cerca de 225,00 m2.
22)
A área litigiosa é delimitada pelos seguintes pontos:
a. Quanto ao polígono de quatro lados situado a Noroeste no levantamento topográfico de fls. 494, o mesmo é balizado pelas seguintes linhas:
i. Linha que se inicia na extremidade a Noroeste com o número 549,70 até alcançar o ponto com o número 551.65;
ii. Linha imaginária paralela à linha referida em i., no sentido Nordeste-Sudoeste, que vai desde a linha azul até à linha verde, e que se se prolongasse para além do tracejado verde, coincidiria com o contador de água a nordeste;
iii. Linha azul que se inicia com o número 549,70 até encontrar a extremidade sudoeste da linha referida em ii.;
iv. Linha que se inicia no ponto 551,65 e que coincide com o tracejado a verde até embater com a extremidade nordeste da linha referida em ii.
b. Quanto ao polígono de dez lados, o mesmo é balizado pelos seguintes lados visíveis no levantamento topográfico fls. 494:
i. Prolongamento da linha imaginária referida em 25) a. ii., desde o tracejado verde até ao contador de água, no sentido Sudoeste-Nordeste.
ii. Linha formada pelo contador de água até ao ponto 555.84.
iii. Linha entre os pontos 55.84 e 555.24;
iv. Linha entre os pontos 555.24 e 555.04;
v. Linha formada entre os pontos 555.04 e 558.29.
vi. Linha formada entre os pontos 558.29 e 556.69;
vii. Linha formada entre os pontos 556,69 e 555.66;
viii. Linha que se inicia no ponto 555.66 e se prolonga por 9,00 metros no sentido Sudeste-Noroeste, marcada com tracejado verde a fls. 494;
ix. Linha que se inicia na extremidade Noroeste da linha referida em viii., e se prolonga por 5,00 metros no sentido Nascente-Poente até junto do anexo (ponto 553,64).
x. Linha que se inicia na extremidade Poente referida em ix. e culmina na extremidade Sudoeste da linha referida em i.
23)
Procedendo-se à delimitação dos prédios conforme alegado pelos Autores, o prédio dos Autores confronta com o prédio descrito em 10) através de uma linha imaginária paralela ao lado menor do anexo (referido em 9)), que se inicia no contador de água e se prolonga no sentido nordeste-sudoeste por cerca de 21,25 metros.
24)
Na hipótese referida em 23), o prédio referido em 5) perfaz uma área de 1.190,00 m2 e o prédio referido em 10) perfaz a área de 450,00 m2.
25)
Procedendo-se à delimitação dos prédios conforme alegado pelos Réus, o prédio dos Autores descrito em 5) confronta com o prédio descrito em 10) através de uma linha imaginária irregular, inicialmente paralela ao lado maior do anexo (referido em 9)), distando o anexo dessa linha cerca de 0,50 metros, e que se inicia a Norte e prossegue até Sul por cerca de 19,75 metros, até distar um metro da casa de habitação, seguindo posteriormente para Este/Nascente de forma paralela à casa de habitação dos Autores por cerca de 5 metros, e após prosseguindo por 9,25 metros até à extremidade norte do portão identificado no levantamento topográfico de fls. 492.
26)
Na hipótese referida em 25), o prédio referido em 5) perfaz uma área de 1.005,00 m2 e o prédio referido em 10) perfaz a área de 635,00 m2.
27)
Na área em litígio, a Nascente da casa de habitação dos Autores, encontra-se um ponto de abastecimento de água, vulgo furo, e um tanque de rega.
28)
O furo referido em 27) foi aberto por SS.
29)
Na sorte atribuída a GG, foi construída a sua casa de residência, inscrita na matriz predial da Freguesia ... sob o artigo ...49 na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...11.
30)
No terreno em litígio encontra-se o contador e ramal de água do saneamento que abastece a casa de habitação dos Autores.
31)
A soma das áreas dos dois prédios referidos em 5) e 10) é de 1.640,00 m2.
32)
A Nascente da casa de habitação dos Autores encontra-se uma floreira por estes usada e que dista do furo cerca de 8,83 metros.
33)
Do muro que cerca a parcela que coube a FF, e que se encontra a Norte da área em litígio, ao furo distam 8,85 metros.
34)
Do furo à parede de cimento que se encontra a Nascente, junto à Estrada, distam 8,00 metros.
35)
Do furo à vedação fixa a Sul daquele distam 5,90 metros.
36)
A 3,20 metros da parede norte do anexo, no sentido Norte, encontra-se um muro com o comprimento de 7,90 metros, erguido por QQ, no sentido Nascente-Poente.
37)
Em 09-10-2000 foi instaurado no Serviço de Finanças ... o processo de liquidação de Imposto sobre as Sucessões e Doações n.º ...87, por óbito de SS, no âmbito do qual foi apresentada a relação de bens em 30-11-2000 da qual consta que o prédio rústico sito em ..., inscrito na matriz da freguesia ..., sob o artigo ...67 tem a área de 0,3280 hectares.
38)
No dia 27-12-2006, QQ adquiriu o prédio descrito em 5) pelo preço de € 25.500,02 mediante venda judicial pela modalidade de propostas em carta fechada, no âmbito do processo de execução fiscal n.º ...40 que a Fazenda Nacional moveu contra II
39)
No dia 29-03-2010, no Cartório Notarial ..., sito no ..., Lote ...27, rés-do-chão esquerdo, na freguesia e concelho ..., perante a Sr.ª Notária YY foi outorgada escritura pública intitulada «Doação de Quinhão Hereditário», por via da qual ZZ, na qualidade de primeira outorgante, em representação de BB e esposa CC, declarou que os seus representados doam a BB, segundo outorgante, o quinhão hereditário que possuem na herança ilíquida e indivisa, aberta por óbito de, respectivamente, pai e sogro dos representados, SS, o que o segundo outorgante declarou aceitar.
40)
Na escritura atrás referida, foi exibida apenas a certidão do processo de imposto sucessório n.º ...87 do ano de 2000, emitida em ../../2010 pelo Serviço de Finanças ....
41)
Por escritura pública de habilitação notarial, outorgada no dia 21-08-2017, perante o Notário AAA no Cartório na ..., ..., ..., BB declarou perante Notário o seguinte:
«[…]
que, por acordo, lhe incumbe o cargo de cabeça de casal na herança a seguir referida e nessa qualidade declara:-
Que no dia vinte e um de Setembro de dois mil, faleceu na freguesia e concelho ..., SS, natural da referida freguesia ..., no estado civil de viúvo, com última residência habitual na Rua ...., ...;
Que o falecido não fez testamento ou qualquer outra disposição de última vontade tendo-lhe sucedido como únicos e universais herdeiros:-
---a) seus filhos:-
b.1) GG, viúva, natural da referida freguesia ..., residente na Rua ...., ...,
b.2) BB, o outorgante nos precisos termos em que acima está identificado;-
b.3) FF, casado com NN sob o regime da comunhão de adquiridos, natural da referida freguesia ..., residente na Rua ...., ..., ..., ...,
b.4) WW, casada com PP sob o regime da comunhão de adquiridos, natural da referida freguesia ..., residente na Rua ..., ..., ..., ...;-
c) seus netos, (filhos de seu filho pré-falecido VV):
c.1) JJ, casado com MM sob o regime da comunhão de adquiridos, natural da referida freguesia ..., residente na Quinta ..., ..., ...;
c.2) BB, natural da referida freguesia ..., à data da abertura da sucessão, solteiro, tendo posteriormente casado com OO, sob o regime da comunhão de adquiridos, de quem se encontra presentemente divorciado, residente no ..., ..., ..., e
c.3) KK, casada com LL sob o regime da comunhão de adquiridos, natural da referida freguesia ..., residente na Rua ..., ..., ...;
Que não há outras pessoas que com os indicados herdeiros possam concorrer ou lhes prefiram nesta sucessão
.»
42)
Da escritura referida em 41) consta que foram arquivadas:
«a) Certidão do assento de óbito do autor da herança;
b) Certidões dos assentos de nascimento dos indicados filhos e netos».
*
Factos Não Provados:
-Da petição inicial
a)
Após acção declarativa de condenação e sentença transitada em julgado, foi restituída uma parcela de terreno devidamente demarcada com ferros precisamente na zona que se estende a nascente desde a casa de habitação dos Autores até à estrada delimitada a norte pela cota de terreno mais elevada.
b)
O tanque de rega referido em 27) abastece de água o resto da propriedade dos Autores.
c)
Os seus cinco filhos, os RR., adquiriram por óbito de SS o prédio referido em 11) o qual se encontra inscrito a seu favor pela ap. n.º 01 de 25/05/1998.
d)
Os Réus ocupam o terreno por serem filhos ou descendentes de SS, o qual passaram a limpar e a cultivar, designadamente lavrando-o, colhendo uvas, laranjas, maçãs, à vista de toda a gente, como se de coisa sua se tratasse, de forma duradoura e sem oposição, excepto quanto à estrema em litígio.
e)
O prédio dos Autores possui uma superfície coberta de 117,20 m2, superfície descoberta de 1150 m2 e um anexo com a superfície coberta de 21,50 m2 e confronta pelo norte com herdeiros de SS (delimitada numa linha recta, no sentido Nascente/poente, com início no socalco a nascente terminando junto ao socalco existente a poente intercepcionando a parede exterior norte do anexo que serve de divisória e marca da estrema), os ora RR., pelo sul com LL, pelo nascente com caminho público e pelo poente com TT.
f)
O prédio do Autor tem menos 450,00 m2 do que a área a que o título faz referência.
g)
O local onde se encontra o furo foi sempre utilizado pelo II, onde aparcava camiões e outros veículos, e que se encontrava vedado a estranhos, até à data em que foi penhorado pela AT e vendido judicialmente no âmbito do processo executivo n.º ...40,
h)
Os anteriores proprietários reclamaram junto da AT a resolução do litígio, porém esta nada fez.
-Da contestação (a fls. 406)
i)
A partir do momento referido em 13), GG, BB, FF, WW e VV, demarcaram de molde a que todos os prédios confinassem com o caminho público por forma a evitar onerar, com servidão de passagem, qualquer um dos prédios que resultaram daquela divisão.
j)
A sorte situada a poente ficou a pertencer a EE.
k)
A sorte atribuída a FF tem uma área de sensivelmente 200,00 m2.
l)
A nascente da sorte atribuída a FF situa-se a parcela/sorte atribuída a BB.
m)
A parcela referida em 16), atribuída a BB, confrontava de Nascente com a Estrada.
n)
A parcela referida em 16), atribuída a BB, tem a única entrada por um portão situado a Nascente do prédio.
o)
A parcela referida em 16), atribuída a BB, tem uma área de cerca de 760,00 m2.
*
III - Do Direito
1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas
conclusões
apresentadas pelos recorrentes (arts. 639º, nº 1, e 635º, nº 4, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.
Nesta conformidade, a única questão a resolver é a seguinte.
- Demarcação das estremas da parcela actualmente dos AA e a parcela actualmente do R./recorrente BB.
2. Sendo certo que o recorrente não deduziu qualquer impugnação da decisão da matéria de facto (vide as conclusões de recurso, bem como o corpo das alegações do mesmo), resta-nos apenas apreciar a fundamentação jurídica da sentença recorrida.
Na mesma exarou-se o seguinte:
“Nos termos do artigo 1353.º do Código Civil, «[o]
proprietário pode obrigar os donos dos prédios confinantes a concorrerem para a demarcação das estremas entre o seu prédio e os deles
».
(…)
A lei não define o que é demarcação, podendo entender-se esta como «a operação material de colocar marcos ou sinais exteriores permanentes e visíveis, que assinalem diversos pontos da linha divisória entre dois prédios contíguos, sendo lícito também aproveitar para o mesmo fim sinais naturais já existentes, tais como um rochedo, um combro, uma árvore, na qual podem ser gravadas as iniciais de um dos proprietários» (ANTÓNIO CARVALHO MARTINS, Demarcação, 2.ª edição, Coimbra Editora, 1999, p. 18). …..
A causa de pedir, nas acções de demarcação, é complexa e constituída pelas circunstâncias da existência de propriedades confinantes, a pertença dos mesmos a donos diferentes, e a incerteza, controvérsia, ou tão só desconhecimento sobre a localização da linha divisória entre eles, ou seja, estremas incertas ou discutidas. ….. A linha divisória entre dois prédios confinantes é duvidosa e incerta quando não existem marcos, muros, sebes nem quaisquer sinais exteriores que indiquem as estremas de cada prédio. Como se constata no Acórdão do TRP, de 15-11-1993, in BMJ, n.º 431, p. 548: «
A acção de demarcação tem como pressuposto uma incerteza relevante, como a que resulta de as versões das partes não coincidirem quanto à implantação da linha de demarcação [sublinhado nosso], a ponto de restar uma parcela de terreno a que ambos os interessados se arrogam um direito
», bastando ainda o mero desconhecimento para se lançar mão da acção (veja-se Acórdão do TRC, de 13-05-2014, Processo n.º 3779/10.8TBVIS.C1).
Ora, a demarcação tem precisamente lugar quando existem dúvidas quanto ao local de passagem da linha divisória de um prédio relativamente a outro, pertencente a dono diferente (é a denominada actio finium regundorum). Isto é, com a demarcação não se visa constituir, reconhecer, adquirir ou modificar um direito real de propriedade.
Sobre esta acção, escrevem os Professores PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, volume III, Coimbra Editora, 1972, p. 179: «
À acção de demarcação, que teve até 1966 também o nome de tombamento, correspondem em algumas legislações duas acções distintas: uma, que tem por finalidade a simples colocação de marcos nos extremos, sendo os limites certos e indiscutíveis […]; outra, a actio finium regundorum, a fixação das estremas de cada prédio, que se destina à regulamentação dos confins, ou seja, à determinação das estremas dos prédios confinantes, quando haja dúvidas acerca dos limites dos prédios. Esta última acção, ao contrário da primeira, tem natureza real. O novo Código refere-se apenas a esta
, […]».
Esta acção de demarcação é assim «
uma acção de acertamento ou de declaração da extensão da propriedade, sem que estejam em causa os títulos de aquisição. É por isso que, segundo a tradição justinianeia, esse acertamento pode ter lugar por uma repartição equitativa do terreno em causa
», PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, volume III, Coimbra Editora, 1972, p. 181.
(…)
Na
actio finium regundorum
haverá mesmo casos «
em que o proprietário não reivindica nenhuma faixa especial do prédio, mas pretende apenas, como é próprio das acções de mera apreciação ou declaração, que sejam esclarecidas as dúvidas suscitadas pelos títulos, ou por outros factos, acerca dos limites do prédio
», PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA,
Código Civil Anotado
, volume III, Coimbra Editora, 1972, p. 181.
O concurso dos donos dos prédios confinantes traduz-se numa «obrigação de contribuir para o afastamento das dúvidas, isto é, para o acto determinativo da linha divisória», ANTÓNIO CARVALHO MARTINS,
Demarcação
, 2.ª edição, Coimbra Editora, 1999, p. 24. Feita a determinação, tal fica a passar por onde se provou que sempre passou, nada se alterando em termos de propriedade, nada se tendo constituído, modificado ou extinguido. Funciona desta forma quando se conseguiu, através dos elementos probatórios fornecidos, reconstituir a estrema.
Dispõe, por sua vez, o artigo 1354.º do Código Civil, cuja epígrafe é «Modo de proceder à demarcação»: «
1. A demarcação é feita de conformidade com os títulos de cada um e, na falta de títulos suficientes, de harmonia com a posse em que estejam os confinantes ou segundo o que resultar de outros meios de prova.
2. Se os títulos não determinarem os limites dos prédios ou a área pertencente a cada proprietário, e a questão não puder ser resolvida pela posse ou por outro meio de prova, a demarcação faz-se distribuindo o terreno em litígio por partes iguais.
3. Se os títulos indicarem um espaço maior ou menor do que o abrangido pela totalidade do terreno, atribuir-se-á a falta ou o acréscimo proporcionalmente à parte de cada um.
»
Sobre esta norma, escrevem RUI PINTO e CLÁUDIA TRINDADE, in Código Civil Anotado, volume II, 2.ª edição, Almedina, 2019, p. 176 que «
a delimitação das estremas dos proprietários confinantes será feita com base: a) Nos títulos de cada um – contratos, autorizações, testamentos, sentenças; b) Na posse ou, em igualdade, segundo o que resultar de outros meios de prova (p. ex., registo, testemunhas), se os títulos se revelarem insuficientes; c) Caso nem os títulos nem os meios de prova permitam a demarcação, esta será feita de modo salomónico: distribuindo o terreno em litígio por partes iguais. Se os títulos indicarem um espaço maior ou menor do que o abrangido pela totalidade do terreno, atribui-se a falta ou o acréscimo em proporção da parte de cada um.
».
Às descrições prediais a lei não concede qualquer prioridade. Concede esta apenas às «inscrições» e nem sempre com base na antiguidade ou na ausência de conflito de interesses.
As demarcações são feitas pela linha indicada pelos próprios confinantes, estando de acordo ou pelas informações que os louvados colhem de pessoas idosas, conhecedoras dos prédios confinantes, tais como os feitores, pastores, porqueiros, trabalhadores rurais, que sabem até onde é de uso pastorear o gado ou lavrar a terra, por conta de cada proprietário confinante. Haverá que perscrutar também a planta do prédio, o retrato do terreno e fotografia aérea.
Não havendo títulos, ou sendo insuficientes os títulos existentes, a posse será «
um elemento que, tal como quaisquer outros elementos, ajuda a fixar a convicção do Tribunal
», ANTÓNIO CARVALHO MARTINS, Demarcação, 2.ª edição, Coimbra Editora, 1999, p. 53. …..
(…)
No caso, os Autores (ou o Autor e a chamada) só teriam de alegar e provar os factos constitutivos do direito à demarcação, a saber: a confinância dos prédios, a titularidade do respectivo direito de propriedade na pessoa do autor e do demandado e a inexistência, incerteza, controvérsia ou tão só desconhecimento sobre a localização da respectiva linha divisória – Acórdão do STJ, de 10-05-2022, Proc. 725/04.1TBSSB.L1.S1.
Tais factos, porque constitutivos do direito dos autores à demarcação, isto é, do direito potestativo de obrigar os proprietários dos terrenos confinantes a concorrer à marcação dos prédios, deverão ser alegados e provados por aqueles, de acordo com o disposto no artigo 342.º do Código Civil.
Vejamos se tais pressupostos se verificam no caso em apreço.
A presunção de registo (art. 7.º do Código do Registo Predial), dispensa assim os Autores da prova que remonte a um título originário de aquisição do direito real invocado, nomeadamente a prova por usucapião.
Refira-se, por fim, que tal presunção se limita ao direito inscrito, não se estendendo à descrição do prédio, designadamente quanto às suas confrontações, limites ou área, já que, tratando-se de elementos que provêm de declarações dos próprios interessados, nada e ninguém poderá garantir a sua exatidão (cfr., a título de exemplo, os Acórdãos do TRP, de 21-03-2013, proc. n.º 731/09.0TBMDL.P1 e do STJ, de 12-01-2006 Proc. n.º 05B4095).
Aqui chegados, não pode deixar de notar-se que os Autores beneficiam da presunção de propriedade sobre o prédio identificado em 5).
Resulta do supra exposto que o prédio identificado em 5) é propriedade dos Autores.
Resulta igualmente provado – e também do supra exposto - que os prédios identificados em 10) e 11) se encontram registados a favor de SS, que faleceu – vd. facto 41) -, pelo que tais prédios pertencem à herança aberta por óbito de SS.
Provou-se que os Réus sobrantes são herdeiros de SS (factos 39) e 41)). Beneficiam, pois, igualmente da mesma presunção.
Isto é, os prédios referidos em 5) e em 10) e 11) pertencem a donos diferentes.
Por outro lado, compulsada a matéria de facto, resulta igualmente provado que os prédios identificados 5) e 10) confinam um com o outro – vd. facto 12).
Ora, ressalta dos autos que as partes se mostram em desacordo quanto à localização da linha de estrema dos respectivos prédios, não tendo resultado provado que existam no terreno quaisquer marcos.
Mais resultou provada a existência de muro, não estando, todavia, as partes de acordo quanto ao significado de tal sinal no que concerne à referida delimitação – vd. facto 36).
Tudo para concluir que se verifica o terceiro dos pressupostos, pelo que nos encontramos em condições de prosseguir para a delimitação material do terreno.
Entramos assim, no segundo momento processual da acção de demarcação que se estrutura no plano da efectivação da delimitação dos prédios e opera em torno da aplicação dos critérios sequenciais de demarcação indicados no artigo 1354.º do Código Civil.
Cumprirá, todavia, referir que a cada um destes momentos correspondem regras probatórias específicas, gerando estas regras de decisão diferentes.
No primeiro momento, como referimos, em que apreciámos a causa de pedir da ação e os respetivos pressupostos, vale, em matéria de ónus da prova, o artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil e a correspondente regra de decisão decorrente do artigo 414.º do Código de Processo Civil.
Ora, no segundo momento (concretização da demarcação), valem, independentemente da forma de demarcação proposta por cada uma das partes, os critérios sucessivamente plasmados no artigo 1354.º do Código Civil (cfr. neste sentido o Acórdão do TRC, de 16-09-2008, Proc. n.º 139/05.6TBVZL.C1).
Em primeira linha, e de acordo com o disposto no n.º 1 do citado preceito, a demarcação é feita de conformidade com os títulos de cada um, no caso de estes determinarem os limites dos prédios ou a área pertencente a cada proprietário. Na falta ou insuficiência de títulos, será feita de harmonia com a posse ou com o que resultar de outros meios de prova. Por fim, a inconcludência destes critérios conduz à chamada “solução salomónica” do n.º 2, operando-se uma distribuição em partes iguais pelos dois interessados do terreno em litígio.
E que títulos são estes? Desde logo, deverá ter-se em atenção os títulos de propriedade, que, de acordo com o disposto no artigo 1316.º do Código Civil, são o contrato, a sucessão por morte, a usucapião, a ocupação, a acessão e demais modos previstos na lei.
Contudo, e como refere CUNHA GONÇALVES (citado por PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, volume III, p. 201 e por MARIANA CRUZ,
Comentário ao Código Civil: Direito das Coisas
, UCE, 2021, p. 274), o n.º 1 do artigo transcrito será, a maioria das vezes, «
ineficaz para a quase totalidade dos casos, uma vez que os títulos de aquisição… não contêm jamais, nem podem conter a linha divisória, onde os marcos possam ser cravados; porque as descrições dos prédios são feitas, sempre, pela simples indicação dos confinantes na direção dos quatro pontos cardeais – norte, sul, leste, oeste –, mencionando-se os respectivos nomes, se os têm, ou os nomes dos proprietários, que o fossem na data da descrição, e podem ser outros ao tempo da demarcação
».
Quanto às inscrições matriciais e descrições prediais, as mesmas também não são títulos para os efeitos do disposto no artigo 1354.º do Código Civil.
Estes detalhes não descritivos não são percepcionados oficiosamente pelas autoridades e resultam de declaração dos próprios interessados (vd. MARIANA CRUZ,
Comentário ao Código Civil: Direito das Coisas
, UCE, 2021, p. 274).
Como se refere no Acórdão do TRP, de 15-01-2008, Proc. n.º 0722611, «
as primeiras relevam apenas no plano fiscal. De facto, é sabido que a finalidade das inscrições matriciais é essencialmente de ordem fiscal, não lhes sendo reconhecidas virtualidades para definir o conteúdo ou a extensão do direito de propriedade sobre qualquer prédio. Baseiam-se em participações dos interessados nas respetivas Repartições de Finanças, não sujeitas, em regra, ao controlo destas entidades - v. Ac. Relação de Coimbra, de 05.06.1984, CJ, Ano IX, tomo 3, pág. 60 e Ac. Relação do Porto, de 07.11.1995, processo n.º 9520439, em
www.dgsi.pt
».
Por sua vez, continua o citado aresto: «
As descrições prediais constantes do registo, por seu lado, também não têm o condão de definir, em definitivo, as confrontações ou as áreas dos prédios a que respeitam, até porque estes elementos podem ser completados, retificados, restringidos, ampliados ou inutilizados, por meio de averbamentos. Assim, com base no registo predial não se pode afirmar que determinado prédio tem esta ou aquela constituição, só por tal constar da respetiva descrição – v. Ac. Relação de Coimbra, de 05.06.1984, CJ, Ano IX, tomo 3, pág. 60 e Ac. Relação do Porto, de 07.11.1995, processo n.º 9520439, em
www.dgsi.pt
.
»
Revertendo ao caso, e operacionalizando os critérios acima referidos, não se vislumbram títulos que possam abonar a pretensão de delimitação
ab initio
proposta por cada uma das partes.
(…)
Dos factos provados nada consta quanto a títulos invocáveis.
Passando ao segundo critério, atinente à posse, o resultado no caso vertente é similar.
Os Autores não fizeram prova de posse sua (dos seus antecessores – CC e marido e após QQ) de forma a abranger a área pretendida, em termos tão latos. A factualidade provada é inequívoca quanto à posse daqueles sobre casa de habitação, garagem e anexo – facto 29).
Mas esses elementos não integram a área em litígio.
Quanto à área em litígio, a factualidade nada oferece quanto a posse (simples ou qualificada) – vd. facto 22).
Compulsando a matéria de facto provada e não provada, inequivocamente se conclui no sentido de que nenhuma das partes logrou fazer a correspondente prova – factos d), e), g), i). Prosseguindo nesse trilho de hipóteses subsidiárias oferecidas pelo artigo 1354.º do Código Civil, inexistindo outro meio de prova de que se possa lançar mão (está plasmado nos autos prova pericial, existiu inspecção ao local, existem imagens do local), não resulta a existência de outros meios de prova para a solução da questão. A simples posse poderá efectivamente constituir um outro meio de prova (vd. PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA,
Código Civil Anotado
, Vol. III, pág. 202): «a simples posse não havendo tempo necessário para a usucapião (caso em que o problema que se suscita é outro), não deve ter o relevo bastante para se sobrepor a qualquer outra prova (...). A posse pode ser arbitrária ou abusiva. Ela será assim um elemento que, tal como quaisquer outros elementos, ajuda a fixar a convicção do tribunal».
Mas inexiste nos factos provados uma situação de posse de boa fé tanto pelos Autores (e antecessores) como pelos Réus que possibilite o estabelecimento dos limites dos prédios em causa.
Haverá que proceder, então, pela demarcação através da distribuição do terreno em litígio por partes iguais (artigo 1354.º, n.º 2, do Código Civil), ou seja, a divisão salomónica.
A esta luz, cremos que importa ponderar que a parcela de terreno em litígio tem uma área de cerca de 635,00 m2, tem uma configuração geométrica irregular conforme se constata dos factos 21) e 22), e procedendo-se da forma aí descrita, tem quase uma configuração de «papagaio de vento».
Na distribuição salomónica poderão ser ponderados outros elementos.
Designadamente, que os formatos geométricos dos terrenos distribuídos sejam idênticos. Ou que se permita um melhor aproveitamento económico dos terrenos (Acórdão do TRC, de 07-05-2024, Proc. 1193/21.9T8CVL.C2).
Diremos nós: que se faça uma justa distribuição, sem ter qualquer efeito ftártico nas potencialidades agrícolas e económicas dos terrenos.
Sucede que, no presente caso, vislumbrando-se os levantamentos topográficos levados aos factos, de fls. 492-494, não será possível proceder a uma repartição geométrica igual.
Por outro lado, nada se apurou quanto aos aproveitamentos económicos de tais terrenos. A preocupação latente dos Réus prende-se com o acesso ao furo, direito esse já reconhecido na sentença referida nos factos provados.
Mas esse acesso ao furo não pode condicionar a delimitação de terrenos. Até porque em caso de impedimento de acesso a tal furo, haverá certamente possibilidade de lançar mão de outros expedientes judiciários.
Por outras palavras, não é pelos Réus terem um reconhecido direito de acesso ao furo inscrito na área em litígio que isso deverá implicar que a delimitação se faça de forma a que o terreno com o furo fique do lado da propriedade dos Réus.
Portanto, quanto a essa questão, parece-nos que pela configuração dos prédios em apreço, o terreno imediatamente à frente da casa de habitação dos Autores deverá ficar acoplado à sua propriedade.
Haverá que salvaguardar uma distribuição equitativa de áreas até ao máximo possível, no que respeita à área em litígio.
Ora, do ponto 555,84 até à intersecção das linhas azul e verde perfaz cerca de 13 metros (calculados à escala do levantamento topográfico).
Significa que a área do triângulo idealizado formado pela linha atrás mencionada e pelas linhas azuis provenientes do contador de água estará à volta dos 48,75 m2 (base x altura/2). Significa isto que a área do quadrado idealizado (formado pelos vértices: i) intersecção linha azul e verde; ii) contador de água; iii) ponto 555,84; iv) ponto no tracejado verde precisamente paralelo ao limite sudeste do anexo) é de cerca de 97,50 m2.
Ora a soma dessa área com a do polígono de quatro lados referido em 22) a) dará à volta de 322 m2. Está encontrada cerca de metade da área em disputa.
Finalmente, não se deve olvidar que a demarcação é a operação material de colocar marcos ou sinais exteriores permanentes e visíveis, que assinalem diversos pontos da linha divisória entre dois prédios contíguos.
Por assim ser, a delimitação entre os prédios referidos em 5) e 10) deverá ser feito através de três segmentos de recta: i) considerando o sentido nascente-poente, por uma linha que se inicie no ponto 555,84 e finde no tracejado verde paralelo ao anexo no ponto 553.64; ii) um segundo segmento de recta, no sentido sul-norte, que corresponde ao tracejado verde, e que se inicia do ponto 553,64 (inscrito no tracejado verde paralelo ao anexo) e culmina na intersecção entre as linhas azul e verde; iii) um terceiro segmento de recta, no sentido nascente-poente, que se inicia na intersecção dos tracejados verde e azul e que coincide com a linha tracejada azul, culminando no fim desse tracejado no ponto mais a poente.
A concreta localização destes segmentos de recta consta definida na planta de fls. 492, 493 e 494 (dos autos em papel), elaborada no contexto da perícia que teve oportunamente lugar nos autos.
(…)
Haverá, pois, que implantar marcos nesses pontos charneira das linhas divisórias.
Assim, determinar-se-á que se implante um marco no ponto 553.64, outro na intersecção entre as linhas azul e verde de fls. 492 (visíveis as cores no processo electrónico).
E ainda se determina a implantação de um marco no final do percurso feito no tracejado azul (na linha provinda do contador de água), no seu ponto mais a sudoeste (na sua extremidade sudoeste).
Não existe aqui nenhuma violação do princípio do pedido, sendo de relevar, nesse aspecto, que «
o juiz não está vinculado ao critério ou mesmo ao traçado da linha divisória indicada pelas partes, posto que, a esse respeito, a lei é imperativa: se essa linha não puder ser fixada a partir dos títulos de cada um dos proprietários, será sucessivamente estabelecida por recurso à posse ou outros meios de prova e, no limite, não podendo ser determinada por nenhum desses meios, será equitativamente dividida pelos proprietários confinantes
» (Acórdão do TRG, 24-11-2016, Proc. n.º 2078/13.8TBVCT.G1). Tal solução tem em atenção as consequências que adviriam para a delimitação de prédios no caso de improcedência pura do pedido dos AA.: «[n]
o caso particular da acção de demarcação – e também por estar em causa o exercício de um direito potestativo – duas consequências desse ponto de vista se assinalam: não pode nunca a acção terminar com uma decisão de improcedência, por falta de prova quanto aos limites ou área dos prédios, sob pena de ficar definitivamente comprometida (por força do caso julgado) a possibilidade de as partes obterem a concretização do seu direito de demarcação
», Acórdão do TRG, de 02-05-2016, Proc. 2515/12.9TJVNF.G1. Ver também no mesmo sentido, Acórdão do TRL, de 10-05-2018, Proc. n.º 4678/14.0TCLRS.L1 e do TRG, de 18-12-2017, Proc. n.º 1955/15.6T8BR.G1, disponíveis em
www.dgsi.pt
.”.
O apelante diverge (cfr. as suas conclusões de recurso). Essencialmente por a decisão proferida quanto à linha divisória não se harmoniza com a distribuição tendencialmente igualitária dos terrenos, pelo facto de o prédio do R. ficar sem acesso à via pública, e que assim sendo ficará o mesmo desvalorizado, implicando a demarcação, conforme decisão recorrida, um desequilíbrio económico gritante entre os prédios dos AA. e R. com claro prejuízo para o prédio deste (cfr. conclusões de recurso VIII, X e XI.). Mas não tem razão, por duas ordens de motivos, de facto e de direito.
Em primeiro lugar, o recorrente, para tentar demonstrar a sua razão, apesar de não ter impugnado a decisão de facto, acolhe-se, na dita conclusão VIII, à motivação da mesma quanto aos factos não provados. Nesta o julgador fez constar que:
“O facto
i)
foi dado como não provado em face dos depoimentos de
FF
e de
BB
, que confirmaram o contrário, isto é, que uma das parcelas provenientes da partilha em vida de SS não tinha comunicação directa com a via.
(…)
Quanto aos factos
j), l), m) e n),
foram os mesmos considerados não provados, atento o que ficou provado em 15) a 19), sendo certo que se considera a sorte de EE a que se encontra mais a Norte (e o levantamento topográfico e a deslocação ao local assim o confirmam – sendo certo que deverá prevalecer as coordenadas e pontos cardeais do levantamento topográfico, que se encontram melhor definidos), e a sorte de BB se encontrava inicialmente a Norte da de CC e a Sul de VV, não tendo qualquer contacto com a via pública nos primeiros tempos após a partilha verbal referida em 13).”.
Ora, a motivação judicial de factos não provados, não pode servir para tentar demonstrar o inverso dos mesmos.
Quer isto significar que, face aos factos não provados i), m) e n), ao contrário do que o R. tinha alegado na sua contestação, o mesmo não logrou demonstrar que a sua parcela tinha acesso à via pública. Pelo que se não tinha nenhuma surpresa ou prejuízo advém para ele com a decidida demarcação. Ao invés, se tinha, não o demonstrou nos autos, pelo que igual juízo de prejuízo não podendo ser feito.
Em segundo lugar, verifica-se que o julgador na distribuição salomónica, a que procedeu, considerou a ponderação de outros elementos, como se pode ver da transcrição da fundamentação jurídica que se efectuou.
Ponderou-se, designadamente, que os formatos geométricos dos terrenos distribuídos sejam idênticos. Ou que se permita um melhor aproveitamento económico dos terrenos. Em suma, que se faça uma justa distribuição, sem ter qualquer efeito nas potencialidades agrícolas e económicas dos terrenos.
Sucede que, no caso, vislumbrando-se os levantamentos topográficos levados aos factos, de fls. 492-494, não era possível proceder a uma repartição geométrica igual.
Por outro lado, nada se apurou quanto aos aproveitamentos económicos de tais terrenos.
De sorte que por aqui inexiste censura a opor a tal fundamentação de direito, que convocou as normas de direito positivo aplicáveis e, perante a matéria apurada, as interpretou e aplicou correctamente.
Certo é que a eventual não existência do bocado de terreno, distribuído salomonicamente ao R., a acesso a via pública, não é motivo, face ao teor das mencionadas normas legais para condicionar a delimitação de terrenos. Até porque em caso de impedimento de acesso a tal via pública, há possibilidade de lançar mão de outros expedientes judiciários.
Não procede o recurso.
3. Sumariando (art. 663º, nº 7, do NCPC).
(…)
IV – Decisão
Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso, assim se confirmando a decisão recorrida.
*
Custas pelo recorrente.
*
Coimbra, 28.1.2025
Moreira do Carmo
Fonte Ramos
Fernando Monteiro
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TRC
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https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/6089530b982e46f480258c2e00551214?OpenDocument
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1,739,836,800,000
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PARCIALMENTE PROCEDENTE
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6025/21.5T8FNC.L1-7
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6025/21.5T8FNC.L1-7
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CARLOS OLIVEIRA
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(art.º 663º nº 7 do CPC) – Da responsabilidade exclusiva do relator)
1.
Para uma ação de prestação de contas, intentada contra administrador de condomínio, relativamente ao período de tempo em que o mesmo exerceu essas funções, tem legitimidade ativa o Condomínio, representado pelo atual administrador e suportado em deliberação da assembleia de condóminos a autorizar a instauração dessa ação judicial (cfr. Art.º 1437.º n.º 1 e n.º 2 e Art.º 1436.º n.º 1 al. i) do C.C.).
2.
A obrigação de prestação de contas por parte do administrador do condomínio (cfr. Art.º 1436.º n.º 1 al. l) do C.C.) está sujeita ao prazo prescricional ordinário de 20 anos previsto no Art.º 309.º do C.C, não lhe sendo aplicável o prazo previsto no Art.º 310.º al. g) do C.C..
3.
O Administrador do condomínio não fica definitivamente desonerado da obrigação de prestar contas à Assembleia de condóminos se da ata onde se menciona que apresentou contas, estas não tenham sequer sido aprovadas.
4.
Só com a aprovação pelo órgão administrativo do condomínio competente, que é a assembleia de condóminos (cfr. Art.ºs 1430.º e 1431.º n.º 1 do C.C.), é que se tem por extinta e definitivamente cumprida a obrigação de prestar contas devida pelo administrador do condomínio.
|
[
"ADMINISTRADOR DO CONDOMÍNIO",
"ACÇÃO DE PRESTAÇÃO DE CONTAS",
"LEGITIMIDADE ACTIVA",
"PRESCRIÇÃO",
"PRAZO"
] |
Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I- RELATÓRIO
O Condomínio do Edifício … da cidade do Funchal veio intentar a presente ação de prestação de contas, em processo especial regulado nos termos dos Art.ºs 941.º e ss. do C.P.C., contra J…, pedindo que o R. apresentasse contas referentes ao período compreendido entre os anos de 2006 a 2021.
Para tanto, alegou que o R. exerceu a sua atividade de administrador do referido condomínio entre os anos de 2006 a 2021 e que, pese embora interpelado para o efeito, não apresentou contas.
Citado o R. contestou, alegando a ilegitimidade do A. e a prescrição da obrigação de prestar contas, invocando que sempre prestou contas ao longo dos quinze anos que exerceu a administração do condomínio, que exerceu as funções de administrador do condomínio de modo informal e sem renumeração, tendo os condóminos sempre consentido na forma como o condomínio era administrado pelo R., tendo sempre aprovado a atividade e contas que o mesmo apresentava nas assembleias de condóminos que se realizavam ano após ano, constituindo agora esta ação um manifesto abuso de direito, por ser falso que não tenha prestado contas duma administração feita de forma pacífica e com a concordância de todos os condóminos.
Mais alegou que na assembleia de condóminos de 13 de Fevereiro de 2021, o R. apresentou as últimas contas da sua administração, que foram aprovadas, e as Sras. D.ª MA, ML e AT foram nomeadas novas administradoras do condomínio, o que mereceu a aprovação unânime da assembleia de condóminos, incluindo o próprio R..
Concluiu assim pela procedência das exceções alegadas e pela improcedência da ação.
Após o A. ter respondido às exceções alegadas, pugnando pela sua improcedência, veio a ser designada tentativa de conciliação, na sequência da qual a instância esteve suspensa na expectativa das partes chegarem a acordo.
Como não houve acordo, veio a ser proferido despacho saneador, no quadro do qual foram julgadas improcedentes as exceções de ilegitimidade e da prescrição, tendo na sequência sido fixado o objeto do litígio, enunciados os temas de prova, admitidos os requerimentos probatórios e designada audiência final.
Produzida a prova e discutida a causa, veio a ser proferida sentença que, julgando improcedente a exceção perentória de abuso do direito e, bem assim, o pedido de condenação do A. como litigante de má-fé, condenou o R. a apresentar as contas referentes ao período compreendido entre Janeiro de 2006 e Fevereiro de 2021.
É dessa sentença que o R. vem agora interpor recurso de apelação, apresentando no final das suas alegações de recurso as seguintes conclusões:
A. Da Ilegitimidade ativa.
A desconformidade da ata com a realidade é de tal modo manifesta, que a qualificação e aplicação da figura da inexistência jurídica é a mais adequada ao caso
sub judice
, em detrimento da anulabilidade ou qualquer outro tipo de invalidade.
A corroborar a inexistência de deliberação, resulta o alegado pela testemunha MOM, que se verá mais adiante em sede de alteração da matéria de facto.
O vício de que padece é assim, insanável, podendo ser declarado a todo o tempo, independentemente de decisão judicial.
B. Teríamos de considerar que se encontra prescrita a obrigação de prestação de contas relativamente aos anos anteriores a 2016, por ser de cinco anos o respetivo prazo de prescrição (cfr. art.º 310.º, al. g), do Cód. Civil). E, na nossa modesta opinião, não poderia ser de outra forma, sob pena de se estar a onerar desproporcional e desmesuradamente um cidadão que exerceu funções de administrador de condomínio com tão pesada obrigação, quando os próprios titulares desse direito se desleixaram no exercício do mesmo, conformando-se, reiteradamente, ano após ano, com a forma de administração do seu condomínio. Consequentemente, consideramos que o tribunal a quo apreciou erradamente a questão da prescrição. O que desde já se invoca novamente.
C. O presente Recurso tem igualmente por objeto a Sentença Final proferida no âmbito dos presentes autos, segundo a qual julgou a ação procedente e em consequência condenou o Recorrente a prestar contas referentes ao período compreendido entre Janeiro de 2006 a Fevereiro de 2021.
Da alteração da matéria de facto que se impõe:
D. Resulta do ponto 15 que foi dado como provado o seguinte:
“Na reunião do condomínio do passado dia 27 de Dezembro de 2021 a assembleia geral de condóminos deliberou instaurar a presente ação, destinada a exigir contas ao Réu pela sua gestão durante todos os anos da sua administração.”
E. Assim é exigido, não só pelas desconformidades apresentadas e que foram apontadas quanto aos votos, como acima se viu, mas porque essa desconformidade encontra suporte testemunhal.
Vejamos: Testemunha MOM.
Tudo visto o ponto 15 deverá ser dado como não provado.
F. Do ponto 19 dos factos dados como provados.
Ora, o Tribunal
a quo
não podia de modo algum, dar como provado este facto. Em primeiro lugar, os documentos que foram juntos pelo A. no seu articulado de resposta à contestação, são documento particulares, feitos pela própria a administração. É evidente que não correspondem a extratos bancários, emitidos pelo banco. Como tal não podem assumir tal força probatória, mesmo que o Tribunal se socorra da prova testemunhal – como o fez. Isto porque é certo e sabido, que há determinados factos que só podem ser provados por documento adequado para o efeito. Ora, o caso que nos ocupa sobre alegados pagamentos, só o podem ser efetuados por extratos bancários. A verdade é que todas as testemunhas (com exceção das que fazem parte da administração é claro) fazem referência aos pagamentos alegadamente desconformes com base nos documentos junto pelo A. na resposta à Contestação. Mas o que é certo é que quando confrontados, respondem que nunca viram os extratos bancários.
Testemunha AS; Testemunha SV; Testemunha GD; Testemunha JP; Testemunha LR.
G. Sendo certo que, as testemunhas que efetivamente viram os referidos extratos bancários, declararam que tais alegados pagamentos não constam. Por tudo o acima alegado, deverá ser dado como não provado o ponto 19.
H. Do Ponto B) a R) dos factos dados como não provados.
O Tribunal
a quo
deu como não provado os pontos de B) a R), que por razões de economia processual não se irá aqui reproduzir, mas que no que releva, considerou que o Recorrente nunca prestou contas à Assembleia. Ora, não podemos concordar. De acordo com a prova testemunhal indicada.
I. Dos pontos A) e S) dos factos dados como não provados.
No nosso entendimento o Tribunal
a quo
fez uma incorreta valoração da prova testemunhal. Vejamos a prova testemunhal. Ora, sem mais considerações, resulta da prova testemunhal acima indicada, que os factos A) e S) só podem ser dados como provados ao contrário do que entendeu o Tribunal
a quo
.
J. Com efeito, os factos A) e S) deverão ser considerados como provados e assumir a seguinte redação:
“A) O Réu exerceu as funções de administrador sempre a pedido dos restantes condóminos, seus vizinhos, que ano após ano lá lhe pediam que assegurasse a administração do condomínio, dada a sua maior disponibilidade de tempo durante o dia e conhecimento prático do Edifício, e porque ninguém quis assumir as referidas funções.
“S) O Réu solicitou, por diversas vezes, aos seus vizinhos que o substituíssem na administração do condomínio, mas todos insistiam na sua continuidade, porque ninguém quis assumir as referidas funções.”
K. Do aditamento aos factos dados como provados:
“23. A documentação do condomínio sempre esteve à disposição dos condóminos”.
“24. O Réu nunca impediu qualquer condómino de consultar a documentação do condomínio”.
Resulta da matéria factual controvertida a de se saber se o Recorrente manteve sempre à disposição, ou se alguma impediu, os condóminos de consultar a documentação do condomínio durante o exercício das suas funções. Vejamos a prova testemunhal relevante para a apreciação,
L. Do Abuso de Direito
M. Tendo em conta tudo o acima alegado, não podemos deixar de discordar com o Tribunal
a quo
na parte em que julgou improcedente a exceção perentório do abuso de direito.
N. Ao longo de mais de 15 anos, nunca algum dos condóminos do Edifício … questionou ou suscitou qualquer questão relativamente às contas apresentadas pelo Réu, nem quanto à forma, nem quanto ao conteúdo, tanto mais que pagavam pontualmente as suas contribuições para as despesas do condomínio.
O. Ao longo de mais de 15 anos, os condóminos do Edifício … sempre aprovaram as contas apresentadas pelo Réu, incluindo as últimas contas do ano de 2020, que foram apresentadas e aprovadas na assembleia de condóminos do dia 13.02.2021.
P. Pelo que, ao vir requerer a presente ação de prestação de contas, omitindo toda a factualidade acima referida e até mesmo alegando, com falsidade, que o Réu nunca prestou contas (!!), impondo-lhe agora o ónus de prestar contas de uma administração feita, pacificamente, de boa-fé e com a concordância de todos os condóminos, sem exceção, ao longo de mais de 15 anos, está o condomínio Autor a atuar,
in extremis
, em flagrante abuso de direito, que se invoca nos termos e para os efeitos do artigo 334.º, do Código Civil.
Pede assim que a sentença seja revogada e substituída por outra que declare a ação improcedente.
O A. respondeu ao recurso, sobrelevando das suas contra alegações as seguintes conclusões:
I– O recorrido Condomínio do Edifício … tem toda a legitimidade para intentar a presente ação destinada a exigir a prestação de contas ao recorrente, pois a mesma foi-lhe conferida através da respetiva assembleia geral realizada no passado dia vinte e sete do mês de Dezembro do ano de dois mil e vinte e um, comprovada através da elaboração da ata número 33;
II- Houve um pequeno lapso na elaboração da citada ata, quando refere o número total de votantes, mas a mesma é muita clara na deliberação aí tomada, pois decidiu sem margem para dúvidas instaurar uma ação contra o recorrente, destinada a obrigá-lo a prestar contas durante o período em foi administrador do condomínio recorrido;
III- Nessa mesma assembleia do dia vinte e sete de Dezembro do ano de dois mil e vinte e um, foi ainda decidido mandatar a senhora Presidente do Condomínio, para contratar um senhor Advogado que intentasse a respetiva ação judicial;
IV- Até ao dia de hoje essa assembleia de condomínio nunca foi impugnada judicialmente;
V– Todos os inquiridos em sede da audiência de discussão e julgamento, confirmaram a existência e a realização dessa assembleia geral;
VI – O próprio recorrente que nestas alegações vem por em causa a legalidade dessa assembleia geral, outorgou uma procuração ao seu mandatário forense para que este o representasse nesse ato, o que veio a acontecer, como o comprova a procuração ora junta e a assinatura do referido mandatário forense, no documento que confirmou os condóminos aí presentes, (doc. 1 acima junto);
VII- No documento comprovativo dos condóminos presentes ou representados na citada assembleia geral do dia vinte e sete de Dezembro do ano de dois mil e vinte e um e onde consta a assinatura do ilustre mandatário forense do recorrente, já se encontra descrito de forma correta e certa, o número total dos condóminos que aí estiveram presentes, discriminando-se os que votaram a favor, os que votaram contra e os que se abstiveram na votação da decisão ora em causa (doc. nº 2, acima junto);
VIII- A junção desses dois documentos em sede das presentes alegações, tornou-se útil face ao comportamento do recorrente, em sede das respetivas doutas alegações;
IX- O direito do recorrido a intentar a presente ação, não está prescrito relativamente aos anos anteriores ao ano de dois mil e dezasseis, porque o recorrente só terminou as suas funções de administrador no dia 31/12/2020 e a presente ação deu entrada em juízo no dia 30/12/2021;
X– Por outro lado, o recorrido só se teve conhecimento dos pagamentos feitos pelo recorrente a terceiros e a si próprio, após ter tido acesso ás contas bancárias do condomínio, o que só aconteceu durante o ano de dois mil e vinte e um, pelo que o direito do recorrido, também por este motivo, nunca estaria prescrito relativamente aos anos anteriores ao ano de dois mil e dezasseis;
XI- Através das diversas atas do recorrido juntas aos autos pelo recorrente, fácil é perceber que as contas do condomínio em causa nunca foram aprovadas pelos condóminos, como explica de forma muito clara e linear a douta sentença, ao descrever o conteúdo daquelas, desde o ano de dois mil e seis, até ao ano dois mil e vinte;
XII– O conteúdo das atas não foi posto em causa por ninguém e o mesmo não é passível de outras interpretações, que não seja aquilo que de forma cristalina resulta da sua leitura;
XIII– Todos os pedidos feitos pelos recorrentes para que seja alterada a matéria de facto dada como PROVADA e para que sejam agora aditados novos factos à matéria dada como provada em sede da douta sentença, não têm qualquer apoio, nem na prova documental, nem na prova testemunhal constante dos presentes autos;
XIV- Assim sendo, todos os pedidos feitos pelo recorrente para que seja alterada a matéria de facto dada como provada e não provada, em sede da douta sentença recorrida, devem ser pura e simplesmente indeferidos;
XV- Finalmente, o recorrido não atua com abuso de direito ao propor a presente ação, pois perante os extratos bancários com que foi confrontado durante o ano de dois ml e vinte e um, limitou-se a pedir ao recorrente que justifique os valores pagos, (se tem justificação para esse comportamento) e nada mais do que isso;
XVI- Aliás, perante as suspeitas graves lançadas contra o recorrente por muitos condóminos do recorrido, devia ser do próprio interesse deste explicar a razão e o motivo de diversos pagamentos que fez a terceiros, seus familiares e a si próprio, defendendo a sua honra e consideração e seguindo o princípio popular “de que quem não deve, não teme”.
Pede assim que seja negado provimento ao recurso, mantendo-se a sentença recorrida.
Resta referir que o R. juntou, com as suas contra-alegações, documentos que vieram a ser admitidos por despacho do relator de 16 de janeiro de 2025, que deferiu a admissão dessa prova documental ao abrigo do disposto no Art.º 652.º n.º 1 al. e) do C.P.C.), por decisão de que não houve reclamação.
*
II- QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos dos Art.s 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do C.P.C., as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal
ad quem
, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial (vide: Abrantes Geraldes in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 2017, pág. 105 a 106). Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. Art.º 5º n.º 3 do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas (Vide: Abrantes Geraldes, Ob. Loc. Cit., pág. 107).
Assim, em termos sucintos, as questões essenciais a decidir são as seguintes:
a) A “ilegitimidade” do A. Condomínio
b) A prescrição da obrigação de prestar contas;
c) A impugnação da matéria de facto;
d) O abuso de direito como justificação para a exclusão da obrigação de prestação de contas pelo R..
Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
*
III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A sentença sob recurso considerou como provada a seguinte factualidade:
1- O R. exerceu, entre os anos de 2006 e Fevereiro 2021, a administração do Condomínio do Edifício …, pessoa Coletiva nº …, situado à Rua …, da cidade do Funchal.
2- O R. sempre exerceu as funções de administrador do condomínio de forma não profissional e não remunerada, pois essa não era a sua profissão.
3- Os condóminos do Edifício … confiavam na forma como o condomínio era administrado pelo R..
4- No dia 20 de Fevereiro de 2007 realizou-se assembleia de condóminos, constando de ata que as contas do ano de 2006 foram apresentadas e nada constando de ata quanto à aprovação dessas contas.
5- No dia 27 de Janeiro de 2008 realizou-se assembleia de condóminos e fez-se constar de ata que as contas relativas ao ano de 2007 foram apresentadas e aprovadas.
6- No dia 04 de Abril de 2009 realizou-se assembleia de condóminos, constando de ata que as contas do ano de 2008 foram apresentadas e nada constando de ata quanto à aprovação dessas contas.
7- No dia 10 de Janeiro de 2010 realizou-se assembleia de condóminos, constando de ata que as contas do ano 2009 foram apresentadas, nada constando de ata quanto à aprovação dessas contas.
8- No dia 29 de Agosto de 2010 realizou-se assembleia de condóminos, constando de ata que as contas do ano de 2009 foram apresentadas, nada constando de ata quanto à aprovação dessas contas.
9- No dia 27 de Março de 2011 realizou-se assembleia de condóminos, constando de ata que as contas do ano de 2010 foram apresentadas e aprovadas por unanimidade.
10- No dia 20 de Junho de 2014 realizou-se assembleia de condóminos, contando de ata que foram apresentadas as contas do ano de 2013, nada constando de ata quanto à aprovação dessas contas.
11- No dia 21 de Outubro de 2017 realizou-se assembleia de condóminos, constando de ata que as contas do ano de 2016 foram apresentadas, nada constando de ata quanto à aprovação dessas contas.
12- No dia 30 de Outubro de 2019 realizou-se assembleia de condóminos, nada constando de ata quanto à apresentação e aprovação das contas de 2018.
13- No dia 29 de Dezembro de 2020 realizou-se assembleia de condóminos, tendo-se feito constado de ata que não foi possível apresentar o relatório de contas de 2020, por os condóminos terem considerado que as mesmas teriam de ser apresentadas após 31 de Dezembro de 2020.
14- No dia 13 de Fevereiro de 2021 realizou-se assembleia de condóminos constando de ata que as contas do ano de 2020 foram apresentadas e que as mesmas foram aprovadas por maioria.
15- Na reunião do condomínio do passado dia 27 de Dezembro de 2021 a assembleia geral de condóminos deliberou instaurar a presente ação, destinada a exigir contas ao R. pela sua gestão durante todos os anos da sua administração.
16- Durante os anos da sua administração o R. apresentava nas assembleias que se realizavam uma folha A4, desacompanhada de documentos comprovativos, indicando as entradas e saídas anuais de dinheiro do condomínio.
17- O Condomínio do Edifício …, a 31 de Dezembro de 2020, tinha um saldo bancário a prazo, na conta n.º …, da Caixa Geral de Depósitos, no valor de €50.000,00 (cinquenta mil euros).
18- O Condomínio do Edifício …, a 31 de Dezembro de 2020, tinha um saldo bancário à ordem, na conta n.º …, da Caixa Geral de Depósitos, no valor de €14.287,02 (catorze mil, duzentos e oitenta e sete euros e dois cêntimos).
19- A atual administração do condomínio, no ano 2020, ao tomar conta das respetivas contas bancárias, tomou conhecimento que o condomínio entre os anos de 2016 e 2020 efetuou pagamentos de despesas da EPAL, da Universidade da Madeira, de Seguros da Seguradora Unidas, de produtos de bricolage, de farmácia, produtos de sucata e de gás, Diário de Notícias, bem como da existência de levantamentos efetuados pelo R. e transferências para a conta da esposa do mesmo.
20- O R., em finais do ano de dois mil e vinte comunicou a alguns condóminos, que a documentação do condomínio tinha sito furtada no dia 24 de Dezembro de 2020.
21- O R. apresentou uma queixa crime por furto de documentos, queixa essa que foi arquivada.
22- O R., em Dezembro de 2020, encontrava-se de baixa médica.
*
Resulta ainda da sentença que foram julgados por não provados os seguintes factos:
A) O R. exerceu as funções de administrador sempre a pedido dos restantes condóminos, seus vizinhos, que ano após ano lá lhe pediam que assegurasse a administração do condomínio, dada a sua maior disponibilidade de tempo durante o dia e conhecimento prático do Edifício.
B) O R. sempre prestou contas da sua atividade à Assembleia de Condóminos do Edifício ….
C) As contas do ano de 2006 foram prestadas e aprovadas na assembleia realizada em 20 de Fevereiro de 2007.
D) As contas do ano 2007 foram prestadas e aprovadas em 27 de Janeiro 2008.
E) As contas do ano de 2008 foram prestadas e aprovadas em 04 Abril de 2009.
F) As contas do ano de 2009 foram prestadas e aprovadas em 10 de Janeiro de 2010.
G) As contas do ano de 2009 foram prestadas e aprovadas em 29 de Agosto de 2010.
H) As contas do ano de 2010 foram prestadas e aprovadas em 27 de Março de 2011.
I) Realizou-se assembleia de condóminos no ano de 2012, onde foram apresentadas as contas do ano de 2011.
J) Realizou-se assembleia de condóminos no ano de 2013, onde foram apresentadas as contas do ano de 2012.
K) As contas do ano de 2013 foram apresentadas e aprovadas em 20 de Junho de 2014.
L) Realizou-se assembleia de condóminos no ano de 2015, onde foram apresentadas as contas do ano de 2014.
M) Realizou-se assembleia de condóminos no ano de 2016, onde foram apresentadas as contas do ano de 2015.
N) As contas do ano de 2016 foram apresentadas e aprovadas em 21 de Outubro de 2017.
O) Realizou-se assembleia de condóminos no ano de 2018, onde foram apresentadas e aprovadas as contas do ano de 2017.
P) As contas do ano de 2018 foram apresentadas e aprovadas em 30 de Outubro de 2019.
Q) Realizou-se assembleia de condóminos no ano de 2020, onde foram apresentadas e aprovas as contas do ano de 2019.
R) As contas do ano de 2020 foram apresentadas e aprovadas na assembleia de 13 de Fevereiro de 2021.
S) O R. solicitou, por diversas vezes, aos seus vizinhos que o substituíssem na administração do condomínio, mas todos insistiam na sua continuidade.
T) O R. foi pressionado pelos condóminos a abdicar da administração.
*
Tudo visto, cumpre apreciar.
*
IV- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Estabelecidas as questões que fazem parte do objeto da presente apelação, cumpre delas tomar conhecimento pela ordem lógica da sua apreciação, começando inevitavelmente pelas que foram objeto de decisão no despacho saneador que aqui também é objeto de apelação.
1.
Da “ilegitimidade” do A. Condomínio.
Conforme resulta da petição inicial (cfr. “Petição” de 30-12-2021 – Ref.ª n.º 4483161 - p.e. – e fls. 1 a 3), o A. na presente ação de prestação de contas é identificado como sendo “O Condomínio do Edifício …, situado à Rua …, da cidade do Funchal, Pessoa Coletiva nº …”.
O R., na sua contestação (v.g. artigos 1.º a 18.º), veio alegar a ilegitimidade ativa do Condomínio para figurar como A. nesta ação. Por um lado, reconhecendo que a lei reconhece ao condomínio personalidade judiciária (cfr. Art.º 12.º al. e) do C.P.C.). Mas, por outro, defendendo que a legitimidade processual só pode ser conferida ao respetivo administrador (cfr. Art.º 1437.º do C.C.). Por isso, não tendo a ação sido requerida pelo administrador do condomínio, deveria a mesma improceder por ilegitimidade processual ativa, com a consequente absolvição do R. da instância.
Na verdade, o R. não se limitou a esta argumentação, porque, sem prejuízo, veio invocar ainda que se assim se não entendesse, ou se a “ilegitimidade” estivesse suprida, relevou que a prestação de contas não se inclui no âmbito das funções próprias do administrador do condomínio, carecendo de deliberação válida da assembleia de condóminos (cfr. Art.s 1436.º al. h) e 1437.º n.º 1 do C.C.) e essa deliberação não existe a conferir poderes às administradoras do condomínio para mover a presente ação.
Sustentou ainda que não existiu qualquer assembleia de condóminos no dia 27 de Dezembro de 2021, como foi alegado no artigo 4.º da petição inicial, porque o que houve foi uma mera “reunião de vizinhos”, à qual compareceram apenas treze pessoas, num universo de 30 condóminos, não tendo essa reunião sequer sido convocada nos termos do Art.º 1432.º do C.C., pois não foram remetidos avisos convocatórios por carta registada dirigida a todos os condóminos e, na data e hora marcada, não estavam sequer presentes mais de metade dos condóminos, sendo notória a falta de
quorum
para realização dessa assembleia (cfr. Art.º 1432.º n.º 3 e n.º 4 do C.C.). Por outro lado, alegou ainda que, após a realização de tal encontro de vizinhos, as pretensas “deliberações” tomadas não foram comunicadas a todos os condóminos ausentes, nos termos do Art.º 1432.º n.º 6 do C.C..
Em suma, entendeu então que a deliberação em causa seria inexistente, ou nula, e o condomínio não teria “legitimidade” para instaurar a presente ação contra o R..
No despacho saneador, veio o tribunal
a quo
a pronunciar-se sobre a exceção da ilegitimidade ativa nos seguintes termos:
«Dispõe o artigo 1437.º do Código Civil:
«“1. O condomínio é sempre representado em juízo pelo seu administrador, devendo demandar e ser demandado em nome daquele.
«2. O administrador age em juízo no exercício das funções que lhe competem, como representante da universalidade dos condóminos ou quando expressamente mandatado pela assembleia de condóminos.
«3. A apresentação pelo administrador de queixas-crime relacionadas com as partes comuns não carece de autorização da assembleia de condóminos”.
«À data da propositura da ação, consagrava o artigo 1437.º do Código Civil:
«“1. O administrador tem legitimidade para agir em juízo, quer contra qualquer dos condóminos, quer contra terceiro, na execução das funções que lhe pertencem ou quando autorizado pela assembleia.
«2. O administrador pode também ser demandado nas ações respeitantes às partes comuns do edifício.
«3. Excetuam-se as ações relativas a questões de propriedade ou posse dos bens comuns, salvo se a assembleia atribuir para o efeito poderes especiais ao administrador”.
«Independentemente da alteração legislativa, está sempre em causa a representação do condomínio em juízo; ou seja, a legitimidade pertence ao condomínio, que deve estar devidamente representado pelo seu administrador.
«No caso em apreço, o condomínio encontra-se devidamente representado pela sua administradora, uma vez que o documento junto com a petição inicial reproduz uma ata em que foi aprovado que a administradora Sra. AT fosse mandatada para contratar um advogado e propor em juízo a competente ação de prestação de contas, devendo a procuração forense para este efeito ser assinada pela atual administradora.
«Assim,
tendo a ação sido proposta nos termos deliberados pelo condomínio
, o mesmo encontra-se devidamente representado pela sua administradora, improcedendo a exceção de ilegitimidade ativa»
(sublinhado nosso)
.
Esta decisão não era efetivamente suscetível de recurso autónomo e imediato, por não preencher a previsão de qualquer das alíneas do n.º 1 ou do n.º 2 do Art.º 644.º do C.P.C., só podendo ser impugnada por via recursiva em conjunto com a sentença final que reconheceu a obrigação de prestar contas (cfr. Art.º 644.º n.º 3 do C.P.C.).
Sustenta agora o Recorrente que o Tribunal
a quo
não apreciou devidamente a questão tal como foi suscitada pelo R..
Realça, desde logo que da ata n.º 33, junta como doc. n.º 1 com a petição inicial, consta o seguinte:
«Ata número trinta e três
«Aos vinte e sete dias de mês de Dezembro, de dois mil e vinte e um, a reunião marcada para as dezanove horas, tendo iniciado pelas dezanove horas e trinta minutos, tendo em consideração à obrigatoriedade de aguardar trinta minutos conforme os termos da lei.
«Estiveram presentes vinte e oito condóminos sendo que oito representados por procuração, o que corresponde a duzentos e trinta e um votos. Reuniram-se os condóminos do Edifício …, dando cumprimento à seguinte ordem de trabalhos:
«Ponto um, aprovação de uma proposta, tendo em vista exigir contas ao anterior administrador do condomínio, senhor J…, durante todo o tempo em que exerceu funções.
«Ponto dois, mandatar a atual administração do condomínio, para contratar advogado e propor em juízo a competente ação de prestação de contas, devendo a procuração forense para este efeito, ser assinada pela atual administradora, senhora AT.
«Conforme registo e procurações que se juntam à presente ata, encontravam-se presentes ou representados os condóminos das seguintes frações:
«RC: H, J
«1.º andar: G, H, I
«2.º andar: A, B, F, H, I, J;
«3.º andar: A, B, D, E, F, G;
«4.º andar: B, G, I;
«5.º andar: B, D, F, H;
«6.º andar: A, D, G;
«7.º andar: C, E.
«Verificado que os presentes e representados no total de 29 apartamentos, a administradora deu início à reunião, realçando que a mesma decorre das deliberações tomadas na reunião anterior data de vinte e sete de Março do corrente ano, sobre as contas do Edifício …. A situação retratada nessa reunião teve a ver com a análise dos estratos bancários dos anos dois mil e dezasseis a dois mil e vinte, por ter havido saídas de dinheiro não justificadas, da conta do condomínio. Tendo em conta as dúvidas suscitadas pelos condóminos, foi deliberado por unanimidade, nessa reunião, a contratação de um advogado.
«O objetivo da presente Assembleia foi a de mandatar a administradora, AT, para contratar advogado e propor em juízo a competente ação de prestação de contas, devendo a procuração Forense para este efeito ser assinada pela atual administradora.
«Após a análise dos estratos de conta do Condomínio, no período atrás referido e tendo em conta que parte das despesas realizadas não foram devidamente fundamentadas, foi posto à votação a proposta que conta na ordem de trabalhos.
«Da votação, saíram os seguintes resultados:
«A favor, duzentos e trinta e um votos;
«Abstenções, sessenta e quatro votos;
«Contra, cento e sessenta e quatro votos.
«A reunião terminou pelas vinte horas.
«Nada mais havendo a tratar, lavrou-se a seguinte ata, devidamente assinada nos termos da lei.
«São anexados os documentos acima referenciados num total de seis páginas.
«Funchal, 27 de dezembro de 2021.»
Ou seja, realça daí o Recorrente que estiveram presentes condóminos representando um total de 231 votos, tendo votado contra o correspondente a 164 votos, abstiveram-se o correspondente a 64 votos e voaram a favor 231 votos. O que seria matematicamente impossível.
Acrescenta que dessa ata também não resulta que os pontos da ordem de trabalhos foram aprovados, não se podendo concluir com a necessária segurança que a ata expresse qualquer conformidade com a realidade, pugnando pela sua inexistência, sendo o vício tão grave que não é sanável e, por isso, pode ser invocado a todo o tempo.
Também invocou que a Testemunha MOM, aos minutos 13:41 da gravação do seu depoimento, referindo-se a essa deliberação, disse que:
«Votaram. Só que, é assim, nessa reunião, eu não consegui perceber qual tinha sido… o barulho foi tanto, e eu não consegui perceber… tanto que eu tenho um e-mail, que eu mandei à dona C, que eu fui apanhado de surpresa. Eu não consegui perceber… Eu abstive-me, e várias pessoas se abstiveram, porque não… não… a ata foi assinada sem estar concluída, e eu não consegui perceber, nessa altura, que tinham… que a votação tinha sido contra o… e não era… e não…
[inaudível]
a verdade. Mas foi uma coisa que me apanhou de surpresa»
.
O Recorrido, por seu turno, nas contra-alegações, veio pôr em evidência que até ao momento ninguém pôs em causa a existência da ata n.º 33, junta aos autos com a petição inicial como documento n.º 1, não tendo a mesma sido impugnada judicialmente.
Admitiu a desconformidade entre o número de votos a favor da decisão em causa constante da referida ata e o número total de votos aí mencionado, mas sustentou tratar-se de um mero lapso de escrita, pois ninguém pôs em causa a realização da identificada assembleia geral e o que foi aí decidido.
A este propósito juntou uma procuração que o R. outorgou a favor do seu ilustre mandatário, para representá-lo nessa assembleia, como titular das frações “3A”, “3E” e “5B” (cfr. doc. 1 de fls. 191) e a lista de presenças (cfr. doc. n.º 2 – fls. 191 verso a fls. 192), donde consta que o mandatário do R. esteve presente nessa assembleia geral e assinou essa lista na parte referente a essas 3 frações. Daí resultando também que tinham votado vinte e nove condóminos, sendo o correspondente a 231 votos a favor (correspondentes a 50,33%), 164 votos contra (correspondentes a 13,94%) e 64 votos abstenções (correspondente a 35,73%) - (cfr. cit. doc. nº 2 - fls. 192). Consequentemente, defende o Recorrido, que não pode agora o R. vir invocar quaisquer nulidades ou anulabilidades da ata em causa.
Quanto à prova produzida em audiência, realça que o que resulta do depoimento da testemunha MOM (cfr. gravação aos minutos 0:13:02.7 e 03:13:41.6) é que esta testemunha confirma que as pessoas aí presentes efetivamente votaram, portanto, a deliberação existiu.
Apreciando, em função de tudo o exposto, temos de relevar que foram invocadas duas situações completamente distintas entre si, que alegadamente suportavam a conclusão sobre “ilegitimidade” do A.. Por um lado, sustentou o R. que a ação deveria ser instaurada pela administração do condomínio e não pelo próprio condomínio. E, por outro, defendeu que o A. não estava “legitimado” a instaurar a presente ação por deliberação válida da assembleia de condóminos.
A primeira situação ainda é suscetível de ser redutível a uma apreciação típica relacionada com a exceção de ilegitimidade ativa. Mas a segunda, nada tem a ver com a legitimidade processual, pois por ela se visa pôr em causa apenas a “legitimação” do A. para poder instaurar a presente ação por si, ou mais precisamente a falta de poderes ou de autorização para, em representação do Condomínio, poder ser demando o R., o que constitui uma situação que está mais ligada ao regime processual estabelecido na lei relativamente ao pressuposto processual da capacidade judiciária, entendido em sentido lato.
Dito isto, importa ter em atenção que, nos termos do Art.º 30.º do C.P.C., define-se a legitimidade do A. pela titularidade do interesse direto em demandar, aferida pela utilidade que possa derivar da procedência da ação, o que deverá ser determinado, salvo estipulação legal em contrário, pela titularidade do interesse relevante em função da relação material contravertida tal como configurada pelo próprio A. na petição inicial.
Estando em causa uma ação de prestação de contas, nos termos do Art.º 941.º do C.P.C., ela pode ser proposta
por quem tenha direito a existir essa prestação
, tendo a mesma por objeto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e as despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que se venha a apurar.
Ora, o R. foi demando por ter exercido as funções de administrador do Condomínio aqui A., sendo que, nos termos do Art.º 1436.º n.º 1 al. l) do C.C., estava obrigado a prestar contas à assembleia, que é um dos órgãos administrativos que, nos termos da lei, compõem o Condomínio (cfr. Art.º 1430.º n.º 1 do C.C.).
Consabidamente, o Condomínio resultante de propriedade horizontal não tem personalidade jurídica e também não se pode considerar como um património autónomo. Sem prejuízo, a lei impõe a esse tipo de organização a existência de fundos (v.g. Art.º 4.º do Dec.Lei n.º 268/94 de 25/10), compostos pelas contribuições dos condóminos (cfr. Art.º 1424.º do C.C.), que estão essencialmente afetos a satisfação das necessidades de administração das partes comuns de um prédio constituído em propriedade horizontal.
Estamos assim, no mínimo, perante um património de afetação especial, que a lei trata, para alguns efeitos, como se fosse um centro de interesses autónomos.
Alguma doutrina chama a este tipo de organizações de “pessoas rudimentares”. Outros apelam ao conceito de “personalidade jurídica rudimentar”, por ser algo a que a lei não reconhece personalidade jurídica, mas é tido como um centro autónomo de imputação de certos efeitos jurídicos (Vide: Menezes Cordeiro in “Tratado de Direito Civil Português” I - Parte Geral, Tomo III, 2004, pág. 531; e Rui Pinto Duarte in “Curso de Direitos Reais”, 2002, pág. 116).
Neste pressuposto, apesar de não funcionar a regra da coincidência entre personalidade jurídica e a personalidade judiciária, tal como consagrada no Art.º 11.º n.º 2 do C.P.C., a lei veio a estender a personalidade judiciária ao condomínio resultante de propriedade horizontal, relativamente às ações que se inserem no âmbito dos poderes do administrador (cfr. Art.º 12.º al. e) do C.P.C.). Em conformidade, por força do assim disposto no Código de Processo Civil, esse tipo de Condomínios pode ser parte numa ação.
Como referido no despacho saneador, aqui Recorrido, efetivamente à data da propositura da ação, o Art.º 1437.º do C.C. tinha uma redação diferente da atualmente vigente.
Rezava então o n.º 1 desse preceito que:
«1.
O administrador tem legitimidade
para agir em juízo
, quer contra qualquer dos condóminos, quer contra terceiro,
na execução das funções que lhe pertencem ou quando autorizado pela assembleia
».
Discutia-se então saber, nas ações referidas neste preceito, sobre quem tinha legitimidade para figurar como parte no processo, se o Condomínio (representado pelo administrador) ou o Administrador (representante do condomínio). O que, diga-se de passagem, era uma discussão algo estéril, porque o administrador só poderia agir em juízo necessariamente no exercício das suas funções, como órgão representativo do Condomínio. Portanto, dizer que a parte é o Condomínio representado pelo Administrador ou que a parte é o Administrador em representação do Condomínio é na prática quase completamente indiferente.
Parece que foi com intenção de esclarecer esta questão que a Lei n.º 8/2022 de 10/1 alterou a redação desse preceito, consagrando-se agora explicitamente que:
«1.
O
condomínio
é sempre representado em juízo pelo seu administrador
, devendo demandar e ser demandado
em nome
daquele
.
«2. O administrador age em juízo no exercício das funções que lhe competem, como representante da universalidade dos condóminos ou quando expressamente mandatado pela assembleia de condóminos.
«3. (…)».
Bem ou mal, o legislador parece que quis identificar que é o Condomínio que figura como parte nestas ações. O administrador age em nome do Condomínio e só demanda, ou é demandado, em nome deste último. Em consequência, esclareceu-se que a parte é o representado e não o representante.
Fica assim claro que é o Condomínio que deve figurar como parte na ação e, por isso, no despacho saneador se julgou improcedente a alegada exceção de ilegitimidade ativa. E bem.
Pelo que, só podermos concordar com a decisão recorrida nessa parte, parecendo-nos que o Recorrente também já abandonou esta discussão nas suas alegações de recurso, porque também não tem qualquer interesse efetivo nela.
A segunda vertente da alegada “ilegitimidade”, em bom rigor, nada tem a ver com o pressuposto processual da legitimidade, como já fomos adiantando.
Conforme muito sumariamente escreve Ferreira de Almeida (in “Direito Processual Civil”, vol. I, 3.ª Ed., pág. 482): «Agrupa a lei processual, no âmbito de
“incapacidade judiciária” lato sensu
(arts. 27.º a 28.º), três espécies de vícios:
incapacidade judiciária stricto sensu, irregularidade de representação
e
falta de autorização, deliberação ou consentimento exigido por lei.
A incapacidade judiciária
stricto sensu
encontra-se,
qua tale
, contemplada nos arts. 27.º, n.º 1 e 577.º, al. c), a irregularidade de representação nos arts. 27.º n.º 1, e 278.º, n.º 1, al. c), e a falta de autorização ou deliberação nos arts. 29.º, n.º 1, 278.º, n.º 1, al. c) e 577.º, al. d), todos do CPC».
A falta de autorização ou deliberação exigida por lei, que é no fundo a questão concretamente suscitada na contestação do R. e na presente apelação, tem como consequência dever designar-se prazo dentro do qual o representante deve obter a respetiva autorização ou deliberação, suspendendo-se, entretanto, os termos da causa
op legis
(cfr. Art.º 29.º n.º 1 do C.P.C.). Esse vício ocorre quando o legal representante não tiver obtido essa autorização, ou deliberação, previamente à propositura da ação ou à prática do ato (vide: Ferreira de Almeida, in ob. Loc. Cit., pág. 482; e Teixeira de Sousa in “Estudos Sobre o Novo Processo civil”, Lex, 1997, pág. 151).
Sucede que, no caso, o A. – Condomínio, que estava devidamente representado em juízo pela administradora (cfr. procuração de fls. 5), logo com a petição inicial, juntou uma ata de assembleia de condóminos donde consta uma deliberação, que tinha por objeto apenas dois pontos, sendo um deles:
«mandatar a administradora, AT, para contratar advogado e propor em juízo a competente ação de prestação de contas»
(sic – cfr. doc. a fls. 3 verso), daí resultando que a mesma foi aprovada com 231 votos a favor, 164 votos contra e 64 votos pela abstenção (cfr. doc. a fls. 4). Portanto, na aparência formal do documentado na petição inicial, motivos não existiriam para aplicar ao caso o disposto no Art.º 29.º do C.P.C..
Diga-se que não se discute a conclusão evidente de que a obrigação de prestação de contas é devida ao Condomínio, no quadro das competências atribuídas ao seu órgão administrativo que é a Assembleia de Condóminos (cfr. Art.s 1430.º e 1436.º n.º 1 al. l) do C.C.), não possuindo o Administrador competência própria para, por sua iniciativa exclusiva, instaurar ações de prestação de contas contra um seu antigo administrador (cfr. Art.º 1436.º do C.C.).
A obrigação de prestar contas reporta-se sempre ao órgão da assembleia de condóminos (cfr. Art.º 1436.º n.º 1 al. l) do C.C.), sendo esse órgão que, em resultado da expressão da vontade dos condóminos no seu seio, poderá exigir a prestação de constas aos atuais, ou aos anteriores, administradores do condomínio, podendo assim também decidir agir judicialmente contra os mesmos.
A presente ação compreende-se, portanto, na previsão da 2.ª parte do Art.º 1437.º n.º 2 do C.P.C., quando aí se estabelece que o administrador age em juízo no exercício das funções que lhe competem,
«quando expressamente mandatado pela assembleia de condóminos».
Em causa estará assim o cumprimento da obrigação de execução duma deliberação da assembleia, no quadro da competência funcional prevista na al. i) do n.º 1 do Art.º 1436.º do C.C..
Sucede que, no caso, o R., na sua contestação, logo suscitou a questão da invalidade/inexistência da deliberação que autorizava a administradora a instaurar a presente ação contra si.
Ora, perante o princípio de prova decorrente da junção do documento n.º 1 com a petição inicial (cfr. doc. de fls. 3 verso a fls.4 verso), competiria ao R. o ónus de alegar e provar que essa deliberação enfermava de vícios que obstariam à sua eficácia ou validade (cfr. Art.º 342.º n.º 2 do C.C.).
Realce-se que o R., em bom rigor, não alegou a falsidade do documento junto com a petição inicial. Simplesmente pretendeu defender que a assembleia e os atos nela realizados, assim formalizada nessa ata junta, não passou duma “reunião de vizinhos” (artigo 9.º da contestação), que não foi objeto de qualquer convocatória (artigo 10.º da contestação), que não havia quórum para deliberar (artigos 11.º a 13.º da contestação) e não veio a ser comunicada a todos os condóminos ausentes (artigo 14.º da contestação).
A este propósito, dispõe o Art.º 1433º n.º 1 do C.C. que:
«As deliberações da assembleia contrárias à lei ou a regulamentos anteriormente aprovados são anuláveis a requerimento de qualquer condómino que as não tenha aprovado»
.
A lei reporta-se aí apenas a situações de anulabilidade de deliberações produzidas em assembleia de condóminos, sendo completamente omissa quanto à possibilidade dessas deliberações poderem ser nulas, ineficazes ou mesmo inexistentes.
É a doutrina que vem estabelecendo essa distinção como implícita a todo o regime da impugnação de deliberações sociais, por ser evidente que nem todas as deliberações podem estar sujeitas ao regime regra da mera anulabilidade, nomeadamente quanto à possibilidade de sanação do vício verificado por falta de impugnação tempestiva, principalmente quando em causa esteja a violação de normas imperativas ou interesses excluídos da disponibilidade dos condóminos, ou quando as deliberações incidam sobre matéria excluída da competência da assembleia de condóminos (Vide: Pires de Lima e Antunes Varela in “Código Civil Anotado”, 2ª Ed., pág. 447; Aragão Seia in “Propriedade Horizontal”, págs. 176 e ss.; e Sandra Passinhas in “A Assembleia de Condóminos e o Administrador na Propriedade Horizontal”, págs. 242 e ss.).
Assim, as deliberações tomadas pela assembleia de condóminos que infrinjam normas de natureza imperativa, por visarem a prossecução de interesses indisponíveis ou contrários à ordem pública, são nulas precisamente pelos mesmos fundamentos que nos Art.s 280.º e 281.º do C.C. se estabelece essa sanção para quaisquer outras declarações negociais. Quanto mais não seja, esses normativos aplicam-se a quaisquer atos jurídicos por força do disposto no Art.º 295.º do C.C..
Estão compreendidas nesta categoria, entre outras, as deliberações em assembleias para as quais não tenham sido convocados todos os condóminos (Art.º 1432º do C.C.); em que se proíba a utilização de partes comuns a determinados condóminos (Art.º 1420º n.º 1 do C.C.); em que autorize a divisão entre condóminos de partes imperativamente comuns do edifício (Art.º 1421º n.º 1 do C.C.); ou que autorize um condómino a utilizar a sua fração para fins proibidos, ofensivos dos bons costumes (Art.º 1422º n.º 2 al. b) do C.C.).
As deliberações que incidam sobre matéria da competência da assembleia de condóminos, porque se referem às partes comuns do edifício, mas que violam regulamentos em vigor ou preceitos da lei de natureza supletiva (que pode ser afastada por vontade das partes), são meramente anuláveis.
Estão compreendidas nesta categoria as deliberações que tenham sido tomadas com base em convocatória que não sejam remetidas por carta registada com aviso de receção, ou que não tenham respeitado a antecedência prevista na lei (Art.º 1432º n.º 2 do C.C.); a aprovação de contribuição dos condóminos para as despesas comuns do prédio segundo regra diferente da permilagem (Art.º 1424º n.º 1 do C.C.); ou a aprovação de inovações por maioria inferior a 2/3 do valor total do prédio (Art.º 1425º n.º 1 do C.C.).
As deliberações ineficazes são aquelas que têm por objeto assuntos que exorbitam a esfera de competência da assembleia de condóminos, nomeadamente quando digam respeito à propriedade exclusiva de cada condómino, ou representem uma ingerência no domínio ou administração exclusiva de qualquer proprietário sobre a sua fração (Vide, a propósito de todo o exposto, a sistematização feita por Abílio Neto in “Manual da Propriedade Horizontal”, 3ª Ed., págs. 343 a 344).
Neste último caso, a eficácia da deliberação estaria sempre dependente da aceitação do condómino, expresso por ratificação do ato, pois tudo se passaria como se houvesse um ato praticado em nome doutrem por quem não tivesse poderes para tanto, o que ficaria subordinado ao regime estabelecido no Art.º 268º n.º 1 do C.C. (Neste sentido: Pires de Lima e Antunes Varela in “Código Civil Anotado”, 2ª Ed., pág. 448; Aragão Seia in “Propriedade Horizontal”, pág. 178; e Sandra Passinhas in “A Assembleia de Condóminos e o Administrador na Propriedade Horizontal”, págs. 255 a 256).
A propósito da falta de convocação dos condóminos, veja-se só a título exemplificativo, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26 de janeiro de 2021 (Proc. n.º 27942/16.9T8LSB.L2-1 – Relator: Eurico Reis, disponível para consulta em
www.dgsi.pt
), que expressa o sentido geral do entendimento já exposto sobre esta matéria. Conta do seu sumário que:
«I. A revogação pelo Tribunal da Relação de Lisboa de um despacho saneador inicialmente proferido com o fundamento de que, não o tendo sido, deveria ter sido proferido despacho concedendo prazo à Autora para corrigir a petição inicial por si apresentada nestes autos, por forma a serem elencados também como réus, para além da Administração do Condomínio, todos os condóminos do prédio constituído em propriedade horizontal e não apenas os que votaram favoravelmente as deliberações tomadas na assembleia geral de condóminos, com a consequentemente determinação de que um tal despacho tinha de ser proferido, não implica necessariamente a anulação ou a declaração sem efeito do processado anterior a esse despacho revogado.
«II. E, porque essa anulação ou declaração sem efeito desse processado não foi decretada pelo Tribunal da Relação, uma vez que a Autora tinha apresentado, em tempo oportuno, uma resposta às exceções invocadas na primeira contestação introduzida em Juízo pelo Réu Condomínio, não é nula a decisão que apenas admitiu a segunda resposta da Autora na parte respeitante às novas questões suscitadas na segunda contestação apresentada pelo Réu Condomínio na sequência da nova petição inicial da Autora.
«III. A omissão de convocação de um condómino para uma assembleia de condóminos consubstancia uma conduta que é, em termos conceptuais - lógicos e ontológicos -, totalmente inconfundível e distinta de uma deliberação aprovada numa tal assembleia, pelo que o disposto no art.º 1433º do Código Civil, e em particular o que aí se estatuí acerca do prazo de caducidade para intentar uma ação de anulação de deliberações da assembleia de condóminos, não pode aplicar-se à regulação da primeira dessas situações.
«IV. E não existindo no Código Civil uma norma que expressamente regule e estabeleça os efeitos de um tal comportamento omissivo (não convocação de um condómino para a assembleia de condóminos), porque o tribunal não pode abster-se de julgar, invocando a falta ou obscuridade da lei ou alegando dúvida insanável acerca dos factos em litígio (art.º 8º n.º 1 do Código Civil), forçoso se torna encontrar uma solução jurídica para essa situação litigiosa.
«V. Para efeito da construção dessa norma reguladora, é indispensável recordar que, nos termos do disposto no art.º 294º do Código Civil, os negócios jurídicos celebrados contra disposição legal de carácter imperativo são nulos, salvo nos casos em que outra solução resulte da lei, tudo isto sendo certo que, por força do estatuído no art.º 295º do mesmo Código, aos atos jurídicos que não sejam negócios jurídicos são aplicáveis, na medida em que a analogia das situações o justifique, as disposições do capítulo precedente, e, sem lugar para qualquer dúvida, a convocação de um condómino para uma assembleia de condóminos é um ato jurídico.
«VI. E, para o mesmo efeito, importa também lembrar que, como estabelecem, respetivamente, os nºs 2 e 1 do art.º 280º ainda do Código Civil, também aplicáveis à regulação dos efeitos dos atos jurídicos, cometidos ou omitidos, são nulos os negócios jurídicos contrários à ordem pública, ou ofensivos dos bons costumes, sendo também nulos os negócios jurídicos cujo objeto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável, não se aplicando aqui a ressalva prevista no art.º 281º («Se apenas o fim do negócio jurídico for contrário à lei ou à ordem pública, ou ofensivo dos bons costumes, o negócio só é nulo quando o fim for comum a ambas as partes.»), porque, repete-se, o que está em causa nestes autos é um ato jurídico unilateral (apesar de recetício).
«VII. É eticamente indefensável e socialmente muito grave omitir um ato com essa dignidade institucional e legal, porque essa não convocação priva um condómino da possibilidade de participar na assembleia defendendo os seus interesses legítimos e os seus direitos, o que constitui uma falha inaceitável nas Sociedades que se organizam segundo o modelo do Estado de Direito (art.º 2º da Constituição da Republica), tanto mais que o direito à propriedade e à iniciativa privadas são direitos fundamentais de todas as pessoas, estando como tal reconhecidos, respetivamente, nos artºs 62º e 61º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e no art.º 17º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas através da sua Resolução 217A (III), de 10 de Dezembro de 1948.
«VIII. E é exatamente porque esses direitos têm esse mais elevado nível de proteção ética, institucional e legal (constitucional), que a sua violação constitui uma ofensa à ordem pública e aos bons costumes, logo, um abuso de direito».
Dito isto, debruçando-nos sobre o caso concreto, deve ter-se em atenção que, no caso, não resulta dos autos documentalmente demonstrado que tenham (ou não) sido convocados todos os condóminos para a assembleia a que nos reportamos.
O que está documentado é que do teor da ata n.º 33 resulta que estiveram presentes representantes de 29 frações e, cotejando tal com a lista de presenças de fls. 191 verso a 192, verificamos que, no total, o condomínio é composto por 64 frações e só assinaram a lista de presenças dessa assembleia representantes de 29.
Em todo o caso, também sabemos agora que um dos condóminos presentes foi o próprio R., que era titular das frações 3A, 3E e 5B e constituiu seu procurador, para estar por si presente nessa assembleia, precisamente o advogado que constituiu como seu mandatário forense nesta ação (cfr. doc. 1 de fls. 191).
Pelo que, poderá perguntar-se, muito legitimamente: se não houve convocatória, como é que o R. soube do que apelidou ser uma mera “reunião de vizinhos”, quando até conferiu poderes ao seu advogado para – cite-se (cfr. doc. n.º 1 de fls. 191) –
«
deliberar e votar
todas as propostas que forem apresentadas na reunião de
assembleia de condóminos
a realizar em Rua …, Edifício …., Funchal no dia 27-12-2021 às 19h00, ou alternativamente, no dia 27-12-2021 às 19h30»
?
O teor desta procuração inculca a ideia clara de que houve uma convocatória aos condóminos, embora se possa desconhecer se todos eles a terão efetivamente recebido e se foram cumpridas relativamente a todos eles as formalidades previstas no Art.º 1432.º do C.C..
Sem prejuízo, o que é evidente é que o R. reproduziu no teor da procuração o teor da convocatória que recebeu, podendo também presumir-se que todos os condóminos que estiveram presentes terão recebido uma convocatória, tal como o R., pois só assim se percebe que tenham comparecido nessa assembleia de condóminos.
Quanto aos demais condóminos, o documentado nos autos é insuficiente, só podendo aqui ser reafirmada a conclusão evidente sobre a total ausência de prova. Sendo que, era ao R. que competia o ónus de prova da factualidade em que assentaria a demonstração desse vício (v.g. que houve condóminos que não receberam qualquer convocatória para essa assembleia, porque nem sequer foi remetida qualquer convocatória), por tal constituir a invocação duma exceção perentória (cfr. Art.º 342.º n.º 2 do C.C.).
Seja como for, não pode deixar de ser relevado que a alegada falta de convocatória dos condóminos, relativamente ao R., não se verificou, como está indiciado do teor da procuração que se mostra junta aos autos e da circunstância de o R. ter estado presente na assembleia através do seu mandatário (cfr. docs. n.º 1 e 2 juntos com as contra-alegações).
Pelo que, a invocação da nulidade da deliberação com este fundamento, relativamente ao R., deverá ser entendida como correspondendo a um abuso de direito (Art.º 334.º do C.C.), com laivos de má-fé processual, porque não poderia deixar de ignorar que, pelo menos relativamente a si, a alegação desse vício era completamente infundada, tornando ilegítima para si a invocação dessa concreta invalidade.
Passando à questão do quórum.
Como referido, apenas sabemos que estiveram presentes representantes de 29 das 64 frações que compõem este condomínio, mas daí não se pode concluir, sem mais, que não estava reunido o quórum deliberativo.
O que decorre do Art.º 1432.º n.º 5 do C.C. (que corresponde, com a mesma redação, ao n.º 3 do mesmo preceito, na versão dada pelo Dec.Lei n.º 267/94 de 25/10, em vigor à data da assembleia) é que as deliberações de condóminos são tomadas por maioria dos votos representativos do capital investido.
Da ata n.º 33 não consta a que “capital investido” correspondiam as 29 frações presentes em assembleia. Dela simplesmente decorre que se aguardou 30 minutos
«conforme os termos da lei»
(vide: cit. doc. a fls. 3 verso).
Ora, atento ao teor da procuração de fls. 191, que, como vimos, certamente reproduz os termos da convocatória que o R. recebeu, a assembleia reunir-se-ia
«às 19h00 ou, alternativamente, às 19h30m»
.
Mesmo não se sabendo se existia quórum deliberativo, o que decorria
“dos termos da lei”
(cfr. Art.º 1432.º n.º 4 do C.C. na redação dada pelo Dec.Lei n.º 267/94 de 25/10, em vigor à data da assembleia) era o seguinte:
«4 - Se não comparecer o número de condóminos suficiente para se obter vencimento
e na convocatória não tiver sido desde logo fixada outra data
, considera-se convocada nova reunião para uma semana depois, na mesma hora e local, podendo neste caso a assembleia deliberar
por maioria de votos dos condóminos presentes, desde que estes representem, pelo menos, um quarto do valor total do prédio
».
Admitimos, portanto, em face do documentado nos autos, que a assembleia funcionou no mesmo dia, mas 30 minutos depois, como “nova data” constante da convocatória. O que era prática muito frequente em vários condomínios, como resulta da nossa experiência na apreciação de vários litígios semelhantes, em que a mesma questão se suscitou.
Sucede que, a violação do Art.º 1432.º n.º 4 do C.C. então vigente (correspondente ao atual n.º 6), não constitui uma nulidade, por não se tratar de norma imperativa. Assim se decidiu inequivocamente no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 21 de setembro de 2021 (Proc. n.º 6768//19.3T8LSB.L1.S1 – Relatora: Maria Clara Sottomayor), de cujo sumário se destaca: «I- A realização da assembleia de condóminos, em segunda convocatória, no mesmo dia e local, mas com a mera dilação de trinta minutos face à hora designada para a primeira convocatória, infringe o disposto no nº 4 do Artigo 1432º do Código Civil,
determinando o vício da
anulabilidade
de todas as deliberações aí tomadas
».
Quanto ao sentido objetivo da deliberação, apesar do exposto nas alegações de recurso, não existe a mínima dúvida interpretativa quanto ao que foi decidido nessa assembleia, apesar de ser evidente que existe um lapso na ata n.º 33 quando refere, no princípio, que os condóminos presentes corresponderiam a 231 votos (cfr. doc. a fls. 3), pois no final apresenta-se como resultado da votação que houveram 231 votos a favor, 164 contra e 64 abstenções (cfr. cit. doc. a fls. 4).
Sem prejuízo, da leitura objetiva desse documento (cfr. Art.º 236.º n.º 1 e 238.º n.º 1 do C.C.), resulta indiscutível que a ordem de trabalhos se referia às propostas de exigência de prestação de contas pelo R., na qualidade de anterior administrador do condomínio (v.g. ponto 1 – cfr. cit. doc. a fls. 3 verso), e de mandatar a atual administração para contratar advogado e propor ação de prestação de contas (v.g. ponto 2 – cit. doc.), e que essas propostas foram votadas favoravelmente pela maioria dos presentes (cfr. Art.º 1432.º n.º 4 do C.C. na redação então em vigor).
É certo que também não sabemos se essa maioria correspondia a mais de ¼ do capital investido, como estabelecia o Art.º 1432.º n.º 4
“in fine”
do C.C., embora isso seja muito provável, no contexto dos factos documentados nos autos.
Quanto à falta de comunicação da deliberação aos condóminos ausentes, trata-se de facto que se desconhece, por total ausência de prova. Mas, a existir semelhante falha, ela apenas determina a ineficácia a deliberação relativamente aos condóminos que dela não tiveram conhecimento. O que já não pode funcionar em benefício do R., que pelo menos foi notificado do teor dessa ata pela citação para os termos desta ação e, conforme resulta claro dos autos, não intentou qualquer ação destinada a obter a anulação dessa deliberação dos condóminos. Logo, para si, a ata é eficaz e o alegado vício cessou, perdendo interesse a sua apreciação, considerando que não impugnou judicialmente essa deliberação em ação intentada com esse específico propósito.
O que nos leva à ponderação do que é disposto no Art.º 1433.º n.º 2 a 4 do C.C., donde se pode ler:
«2 - No prazo de 10 dias contado da deliberação, para os condóminos presentes, ou contado da sua comunicação, para os condóminos ausentes, pode ser exigida ao administrador a convocação de uma assembleia extraordinária, a ter lugar no prazo de 20 dias, para revogação das deliberações inválidas ou ineficazes.
«3 - No prazo de 30 dias contado nos termos do número anterior, pode qualquer condómino sujeitar a deliberação a um centro de arbitragem.
«4 -
O direito de propor a ação de anulação caduca no prazo de 20 dias contados sobre a deliberação da assembleia extraordinária ou, caso esta não tenha sido solicitada,
no prazo de 60 dias sobre a data da deliberação
».
Consequentemente, o direito de propor ação de anulação desta deliberação de condóminos em assembleia extraordinária caducou para o R., quanto aos fundamentos de mera invalidade ou ineficácia (que são praticamente todos os alegados na contestação), devendo nessa parte a mesma ter-se por consolidada e plenamente eficaz para si.
Sobram assim os fundamentos de invalidade sustentados na nulidade ou inexistência da deliberação, que não estão sujeitos a prazo de caducidade, mas à regra geral do Art.º 286.º, aqui aplicável
“ex vi”
Art.º 295.º, todos do C.C..
A hipótese de inexistência, apesar de tudo o exposto nas alegações de recurso, em face do documentado nos autos, no caso concreto, nem sequer se coloca, por ser evidente que a deliberação existiu, até porque foi formalizada em ata que se mostra junta aos autos.
Aliás, reportando-nos agora à prova testemunhal pretendida relevar pelo Recorrente, o que resulta do depoimento dessa testemunha, tal como se mostra transcrito nas alegações de recurso, é que houve uma assembleia de condóminos e houve uma votação, sendo que essa concreta testemunha entendeu votar no sentido da abstenção por não compreender o alarido da situação relativamente ao R..
Assim, o único fundamento que sobra, suscetível de integrar uma situação de nulidade da deliberação, é o da alegada falta de convocatória dos condóminos, a qual, relativamente ao R., comprovadamente não se verificou, como está indiciado do teor da procuração que se mostra junta aos autos e da circunstância de o R. ter estado presente na assembleia através do seu mandatário (cfr. docs. n.º 1 e 2 juntos com as contra-alegações a fls. 191 a 192).
Neste contexto, repita-se, a invocação da nulidade da deliberação com este fundamento, relativamente ao R., deveria ser entendida, no mínimo, como correspondendo a um abuso de direito (Art.º 334.º do C.C.), o que torna ilegítimo o seu exercício.
Assim sendo, motivos não vemos para deixar de julgar que a administração do condomínio estava devidamente autorizada por deliberação da assembleia de condóminos para propor a presente ação de prestação de contas, a qual se mostra consolidada por não ter sido oportunamente impugnada, não se justificando, no caso, que seja ordenada a baixa dos autos à 1.ª instância para aí se fixar prazo para a administração do Condomínio obter “autorização” com base em nova deliberação (agora) válida e que ratificasse o já processado, que era a consequência legal aplicável, decorrente do Art.º 29.º do C.P.C., e não a pretendida absolvição da instância, como era sustentado pelo R..
Em suma, improcedem as conclusões que sustentam a “ilegitimidade” do A., devendo manter-se a decisão proferida pela 1.ª instância sobre essa matéria em sede de despacho saneador.
2.
Da prescrição da obrigação de prestar contas.
O R., na sua contestação também havia alegado a prescrição da obrigação de prestar contas (cfr. artigos 19.º a 27.º desse articulado).
Suportou a procedência dessa exceção perentória no facto dessa obrigação ser anual (cfr. Art.º 1431.º n.º 1 do C.C.) e, se o administrador não convocar a assembleia, ela sempre poderia ser realizada por iniciativa dos condóminos (cfr. Art.º 1431.º n.º 2 do C.C.), sendo, por isso, uma prestação periodicamente renovável. Defendeu assim que a obrigação de prestação de contas estaria prescrita relativamente aos anos anteriores a 2016, por ser de cinco anos o respetivo prazo de prescrição (cfr. Art.º 310.º al. g) do C.C.). Realçando mesmo, em nota de roda pé, que seria de 3 anos o prazo de prescrição da responsabilidade civil por atos do administrador do condomínio (cfr. Art.º 498.º do C.C.), não fazendo sentido sujeitar ao prazo ordinário de 20 anos a prescrição da obrigação de prestação de contas.
Em suma, sustentou que não poderia onerar-se desproporcionada e desmesuradamente um cidadão que exerceu funções de administrador de condomínio com tão pesada obrigação, quando os próprios titulares desse direito se desleixaram no exercício do mesmo, conformando-se, reiteradamente, ano após ano, com a forma de administração do seu condomínio.
O A. respondeu a essa exceção, sustentando que o prazo de prescrição só poderia ter início a partir do momento em que o R. cessou as suas funções e, como tal só ocorreu no dia 31 de dezembro de 2020, tendo o R. sido citado para esta ação em janeiro de 2022, ainda não teria decorrido sequer o prazo de cinco anos.
Mais invocou que diversos condóminos, durante muitos anos, sempre exigiram contas ao R. e este respondia que os documentos estavam no seu apartamento, o que impediu que todos tivessem acesso ás contas do condomínio. Sendo que, entretanto, a atual administração verificou vários movimentos bancários que não têm qualquer justificação, como sejam pagamentos à EPAL (que não existe na Região Autónoma da Madeira), à Universidade da Madeira (com a qual o Condomínio nunca teve negócios), à Seguradora Unidas (quando o seguro do A. está na Companhia de Seguros Fidelidade), para além de pagamento de produtos de bricolage, farmácia, produtos de sucata e gás (que o A. nunca teve), do Diário de Notícias (que nunca ninguém viu na sala do condomínio) e de entregas de valores avultados ao próprio R..
Também referiu que o R., quando já estava muito pressionado para sair da administração, comunicou a alguns condóminos que a documentação do condomínio tinha sito furtada, não tendo o A. recebido do R. a documentação que devia ter recebido, sob o argumento de que a mesma tinha sido furtada.
Em suma, concluiu no sentido de ser desatendida essa exceção.
No despacho saneador, veio a ser apreciada essa exceção nos seguintes termos, na parte que interessa:
«Sem necessidade de grandes considerações, improcede a referida exceção.
«A doutrina e jurisprudência dividem-se sobre se deve ser aplicável à prestação de contas o prazo ordinário de prescrição (20 anos) ou o prazo de cinco anos previsto no artigo 310, alínea g), do Código Civil, porém, dúvidas não restam que o prazo de prescrição só começa a correr a partir do momento em que o Réu deixou de exercer as funções de administração (o que apenas ocorreu em 2020).
«Nesse sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 23 de 2015, processo nº 495/08.4TBMNC.G1, relatado pelo Exmo. Desembargador Espinheira Baltar (disponível em
www.dgsi.pt
):
“A norma do artigo 1163 do C.C. aplica-se à situação prevista na alínea c) do artigo 1161 do mesmo diploma, em que incumbe ao mandatário comunicar, com prontidão, a execução do mandato ou, se o não tiver executado, a razão porque o não fez e não à situação da al. d) deste artigo, que respeita à prestação de contas, que pressupõe um ato positivo do mandatário.
“O prazo prescricional conta-se a partir da cessação do contrato de mandato e não enquanto estiver em execução”.
“A doutrina e a jurisprudência, elegeram o venire contra factum proprium como uma modalidade de abuso de direito, assente na boa-fé, tuteladora da confiança das pessoas, nas suas relações jurídicas. Baseia-se, essencialmente, nos comportamentos contraditórios das pessoas” (…).
«No mesmo sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, 20 de Maio de 2004, processo nº 807/04-2, relatado pelo Exmo. Desembargador Bernardo Domingos (disponível em
www.dgsi.pt
):
“Em regra, excetuados os direitos indisponíveis e aqueles que a lei declare isentos, todos os direitos, sejam ou não de crédito, estão sujeitos à prescrição, pelo seu não exercício durante um certo lapso de tempo (art.º 298 º n.º 1 do CC).
“O direito de exigir a prestação de contas a quem esteja, por lei ou negócio jurídico obrigado a prestá-las não é um direito indisponível nem está isento de prescrição, já que nenhuma norma legal o estabelece. Assim é evidente que pode extinguir-se pelo decurso do prazo legal de prescrição, que no caso é o prazo ordinário de 20 anos (art.º 309º do CC).
“O cabeça de casal da herança duma herança é o legal administrador da mesma pois a administração da herança é-lhe deferida por lei (art.º 2079º do CC) e é exercida até à sua liquidação e partilha.
“O prazo de prescrição da obrigação de prestação de contas pela administração feita pelo cabeça de casal não começa nem corre, «entre as pessoas cujos bens estejam sujeitos, por lei ( como é o caso do cabeça de casal) ou determinação judicial ou de terceiro, à administração de outrem e aquelas que exercem a administração, até serem aprovadas as contas finais» - al. c) do art.º 318º do CC” (…).
«Por fim, veja-se ainda o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 09 de Junho de 2009, processo nº 225-A/2000.S1, relatado pelo Exmo. Desembargador Hélder Roque (disponível em www.dgsi.pt):
“(…) A obrigação de prestação de contas pela cabeça de casal só se extingue, mesmo que apresentadas sem documentos justificativos, se tivessem sido aceites e aprovadas pelos demais interessados, ou se se demonstrasse a existência de qualquer outra causa extintiva daquela obrigação.
“No caso dos direitos ou créditos meramente eventuais, como acontece com a prestação de contas, o prazo ordinário da prescrição de vinte anos, aplicável, começa a correr desde o dia em que o credor pode promover a liquidação da dívida, ou seja, em que os obrigados cessam a gerência, mas, se o resultado for ilíquido, a partir do dia em que as contas se tornarem líquidas, quer por consenso, quer por decisão transitada em julgado.
“Entendendo o Tribunal não ser necessário proceder a qualquer espécie de produção de prova, por ter considerado que o caso a decidir se traduzia numa simples questão de direito, não foi violado o princípio do contraditório quando a decisão em causa foi proferida na sequência da contestação oferecida pela requerida” (…).
«Aqui chegados, e sem necessidade de maiores considerações, resulta claro que não decorreu o prazo de prescrição, atendendo a que o Réu exerceu as funções de administrador até 2020.
«Pelo exposto, julgo improcedente a exceção de prescrição».
Nas alegações do presente recurso volta o Recorrente a sustentar a procedência da mesma exceção perentória, precisamente com base na mesma argumentação. Ao que o Recorrido respondeu nos mesmos termos da resposta antes apresentada, realçando ainda que, do depoimento de AT, que é a nova administradora do condomínio (cfr. gravação aos minutos 06:07 a 06: 49), resulta que a mesma foi ao banco pedir extratos bancários e começou a ver que havia coisas
«que não deviam ter sido pagas por nós, pelo condomínio (…) e mesmo levantamentos também»
, referindo também que nunca antes os condóminos tiveram acesso às contas bancárias do condomínio.
Apreciando, temos de referir que a obrigação de prestação de contas objetivamente não consta de nenhuma das alíneas do Art.º 310.º do C.C. e certamente não concordamos com o argumento de que a responsabilidade do administrador por atos praticados no exercício da administração do condomínio esteja sujeita ao prazo prescricional de 3 anos previsto no Art.º 498.º n.º 1 do C.C..
A este propósito, remetemos as partes para o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19 de dezembro de 2023 (Proc. n.º 163/20.9T8CSC.L1-7 – disponível para consulta em
www.dgsi.pt
), no qual foi relator o relator do presente acórdão, tendo nele sido adjunto o aqui também adjunto, Sr. Desembargador José Capacete.
Resulta do sumário desse acórdão que:
«1.
A responsabilidade civil do administrador do condomínio pelo incumprimento dos deveres legais estabelecidos no Art.º 1436.º do C.C., no quadro do exercício das suas funções, trata-se de responsabilidade obrigacional, por a obrigação de indemnização decorrer do não cumprimento de obrigações específicas de que são credores os condóminos, no quadro da organização estabelecida por lei para a propriedade horizontal
(cfr. Art.º 798.º e ss. do C.C.).
«2.
O prazo prescricional aplicável à responsabilidade civil do administrador de condomínio por violação dos deveres estabelecidos no Art.º 1436.º do C.C. é o prazo ordinário de 20 anos (cfr. Art.º 309.º do C.C.
)».
É que o exercício das funções de administrador de condomínio rege-se, por analogia com o disposto no Art.º 987.º do C.C., pelas normas do mandato, com as devidas adaptações, na medida em que sejam compatíveis com as disposições específicas do regime jurídico da propriedade horizontal (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27 de junho de 2018 – Proc. n.º 18943/16.8T8PRT.P1 – Relator: Miguel Baldaia de Morais) ou, noutra perspetiva, por remissão do Art.º 164.º n.º 1 do C.C., pelos termos dos estatutos e supletivamente pelas regras do mandato (cfr. Sandra Passinhas in “A Assembleia de Condóminos e o Administrador na Propriedade Horizontal”, pág. 340 e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Janeiro de 2010, proferido no processo n.º 4871/05.6TBVNG.P1.S1 e acessível em
www.dgsi.pt
). O que nos permite concluir que é no quadro da responsabilidade civil obrigacional que deve ser encontrado o regime da responsabilidade civil do administrador do condomínio.
Portanto, o prazo de prescrição da responsabilidade civil por atos realizados pelo R. no exercício das suas funções como administrador é de 20 anos (cfr. Art.º 309.º do C.C.), sendo igualmente de 20 anos o prazo prescricional de todas as responsabilidades emergentes do incumprimento oportuno das obrigações emergentes do exercício funcional das competências como administrador, incluindo a de prestar contas na assembleia de condóminos (cfr. Art.º 309.º do C.C.), tal como sucede, por exemplo, relativamente à obrigação (igualmente anual) de prestar contas da administração da herança a que está vinculado o cabeça-de-casal, nos termos do Art.º 2093.º n.º 1 do C.C. (cfr. Ac. do STJ de 9/6/2009 – Proc. n.º 225-A/2000.S1 – Relator: Hélder Roques – citado no despacho recorrido e disponível em
www.dgsi.pt
).
Neste sentido vai também Luís Pires de Sousa (in Processos Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas”, 3.ª Ed., pág. 167), explicitando que a obrigação de prestação de contas está sujeita ao prazo prescricional ordinário de 20 anos previsto no Art.º 309.º do C.C, não lhe sendo aplicável o prazo previsto no Art.º 310.º al. g) do C.C..
Por nós, julgamos que não se justifica o alargamento da previsão do Art.º 310.º al. g) do C.C. à obrigação de prestar contas, porque as “obrigações periódicas renováveis” a que se reporta esse normativo referem-se essencialmente ao cumprimento de obrigações de pagamento de créditos (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela in “Código Civil Anotado”, vol. I, 4.ª Ed., pág. 280 infra a 281 supra), sendo que a obrigação de prestar contas é tipicamente uma obrigação de prestação de facto.
É certo que, como explicava Vaz Serra (cfr. “Trabalhos Preparatórios do Código Civil - Prescrição Extintiva e Caducidade” - in B.M.J, págs. 32, 33 e 106) a prescrição funda-se em interesses multifacetados, dos quais destacamos: 1) a sanção de negligência do credor; 2) a proteção do devedor contra a dificuldade de prova do pagamento; 3) a necessidade social de segurança jurídica e certeza dos direitos; e 4) a necessidade de promover o exercício oportuno dos direitos (vide; ainda: Menezes Cordeiro in “Tratado de Direito Civil”, Tomo IV, pág. 805 e Paes de Vasconcelos in “Teoria Geral de Direito Civil, pág. 381).
Também é certo que, quanto à
ratio
subjacente às prescrições de curto prazo, como escreve Ana Filipa M. Antunes (cfr. “Prescrição e Caducidade”, anotação aos artigos 296 a 333, em especial ao artigo 310 do CC), é que: «a mesma tem em vista a proteção do devedor, relativamente à acumulação da sua dívida e estimular a cobrança pontual dos montantes fracionados pelo credor, evitando o diferimento do exercício do direito de crédito, e exemplificando, com as clássicas prestações periódicas, como se verifica com os pagamento da água, luz, gás e seguros».
Simplesmente, esta
ratio,
quando aplicada à obrigação de informação, carece de sustentação, porque não é do cumprimento ou incumprimento anual da obrigação de prestação de contas na assembleia de condóminos que nasce o crédito por eventuais dívidas do administrador ao condomínio. Pois, de facto, nesse contexto, a prestação de contas servirá apenas como meio de prova indiciário de que o administrador – como foi alegado no caso –, possa ter feito despesas que não eram do condomínio, ou procedeu a levantamentos em benefício próprio, em prejuízo dos fundos comuns afetos à realização dos fins da propriedade horizontal.
É que qualquer eventual responsabilidade por atos do administrador, não tem por fonte direta a prestação de contas, mas sim cada concreto facto ilícito que o mesmo praticou no exercício das suas funções. Nessa medida, não faz sentido aplicar por analogia o disposto no Art.º 310.º al. g) do C.C. à obrigação de prestação de contas, com o propósito de julgar prescritas todas as obrigações do administrador que daí possam emergir, pela simples razão de que as potenciais dívidas decorrentes da responsabilidade do administrador por atos praticados no exercício da sua gestão nunca serão, elas próprias, emergentes de “obrigações periódicas renováveis”, mas sim de atos ou incumprimento individuais que pontualmente se foram verificando em cada concreto momento considerado.
Em suma, é a outro tipo de dívidas que a prescrição de curto prazo se pode aplicar, não se justificando a extensão da previsão do Art.º 310.º al. g) do C.C. a prestações de facto que têm a si subjacente o mero cumprimento de simples deveres de informação.
Por outro lado, a aplicação da al. g) do Art.º 310.º do C.C. por analogia, aos casos de obrigação de prestação de facto, como é a obrigação de prestação de contas, também sempre teria como óbice a consideração de que o Art.º 310.º do C.C. é uma norma excecional, por referência à regra geral do Art.º 309.º do C.C., e, nesse pressuposto, a analogia não é sequer legalmente admissível (cfr. Art.º 11.º do C.C.).
Cumpre ainda dizer que poderíamos aceitar igualmente que o prazo de prescrição apenas deveria ser contado desde a cessação das funções do R. como administrador do condomínio, desde que se provasse o que foi alegado na petição inicial, nomeadamente que havia um incumprimento efetivo da obrigação de prestação de contas pelo R., apesar deste ter sido interpelado para esse efeito (cfr. artigo 3.º da petição inicial) e o A. (entendido como todos os demais condóminos, membros integrantes da assembleia de condóminos) alegadamente nunca ter tido conhecimento dos factos que justificariam o interesse em agir nesta ação, pois a disponibilidade da informação correspondente estava nas mãos e no exclusivo domínio do R.. Nesse caso, o direito só poderia ser objetivamente exercido a partir do momento em que cessaram as funções do R. como administrador do condomínio e os demais condóminos puderam ter acesso à informação documental que os habilitava a percecionar as despesas e receitas havidas durante a gestão daquele, convocando-se assim para o caso o disposto no Art.º 306.º n.º 1, 1.ª parte, do C.C..
No entanto, esses factos, assim alegados, ainda eram controvertidos à data da prolação do despacho saneador, pois o R., na sua contestação, havia sustentado que havia cumprido sempre, e com o apoio de todos os condóminos, a prestação em causa (v.g. artigos 30.º, 37.º e 38.º da contestação). Pelo que, não estando assente a factualidade que permitiria a conclusão de que a exigência de cumprimento da obrigação de prestação de contas não poderia ser objetivamente exercida (cfr. Art.º 306.º n.º 1, 1.ª parte, do C.C.), teria de se admitir a possibilidade de o R. ter cumprido essa obrigação e, em consequência, só poderia ser relevado o prazo legal de cumprimento dessa prestação, nos termos do Art.º 1431.º n.º 1 do C.C.. Ou seja, todos os anos, até ao dia 15 de janeiro, a assembleia deveria reunir para discussão e aprovação das contas respeitantes ao ano anterior. Sendo que, no caso, como foram feitas várias assembleias de condóminos com essa ordem de trabalhos, o prazo de prescrição contar-se-ia individualmente, relativamente a cada exercício, da data de realização de cada uma dessas assembleias.
No caso, a assembleia de condóminos de data mais recuada, em que foram apresentadas contas relativas à administração do condomínio por parte do R., realizou-se a 20 de fevereiro de 2007 (v.g. facto provado 4 – cfr. doc. a fls. 90). Pelo que, relativamente a essa assembleia havia efetivamente decorrido mais de 5 anos relativamente à data em que foi proposta a presente ação de prestação de contas (30/12/2021 – cfr. fls. 1), não podendo funcionar assim a argumentação expedida no despacho saneador para concluir pela improcedência da exceção perentória, se se entendesse aplicável o prazo previsto no Art.º 310.º al. g) do C.C.).
Em todo o caso, julgamos que a obrigação de prestação de contas do administrador de condomínio está sujeita ao prazo prescricional de 20 anos (cfr. Art.º 309.º do C.C.), podendo esse prazo contar-se sobre a data de realização de cada uma das assembleias de condóminos que teve por objeto a discussão e provação das contas do ano anterior e relativamente a cada um desses específicos exercícios.
Assim, sendo a ata mais antiga datada de 20 de fevereiro de 2007, o prazo prescricional de 20 anos terminaria em 20 de fevereiro de 2027 e, portanto, quando o R. foi citado, para os termos desta ação, em 22 de janeiro de 2022 (cfr. fls. 7), interrompeu-se tempestivamente esse prazo (cfr. Art.s 309.º e 323.º n.º 1 do C.C.).
Em conformidade, confirmamos a decisão proferida no despacho saneador ao julgar improcedente a exceção de prescrição, improcedendo as conclusões apresentadas em sentido diverso do exposto.
3.
Da impugnação da matéria de facto.
O Recorrente impugna a decisão sobre a matéria de facto, pretendendo que os factos provados nos pontos 15 e 19 sejam dados por não provados; que os factos não provados nas alíneas A) a S) sejam dados por provados, sugerindo a sua redação; e ainda que sejam aditados dois factos omissos na seleção da factualidade provada, especificando a prova documental e testemunhal que no seu entender justificaria decisão diversa, pontualmente transcrevendo passagens de depoimentos gravados que entendeu relevar para esse efeito.
Estabelece o Art.º 662º n.º 1 do C.P.C. que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente, impuserem decisão diversa.
Nos termos do Art.º 640º n.º 1 do C.P.C., quando seja impugnada a matéria de facto deve o recorrente especificar, sob pena de rejeição, os concretos factos que considera incorretamente julgados; os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Nos termos do n.º 2 do mesmo preceito concretiza-se que, quanto aos meios probatórios invocados incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o recurso. Para o efeito poderá transcrever os excertos relevantes. Sendo que, ao Recorrido, por contraposição, caberá o ónus de designar os meios de prova que infirmem essas conclusões do recorrente, indicar as passagens da gravação em que se funda a sua defesa, podendo também transcrever os excertos que considere importantes, isto sem prejuízo dos poderes de investigação oficiosa do tribunal.
A lei impõe assim ao apelante específicos ónus de impugnação da decisão de facto, sendo o primeiro o ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto proferida, o qual implica a análise crítica da valoração da prova feita em primeira instância, tendo como ponto de partida a totalidade da prova produzida em primeira instância.
No caso, o Recorrente cumpriu genericamente os ónus de impugnação assim estabelecidos na lei, pelo que cumpre apreciar o bem fundado das razões que defende para alterar o julgamento da matéria de facto.
3.1.
Do facto provado no ponto 15.
O primeiro facto impugnado pelo Recorrente é o contante do ponto 15, relacionando-se o mesmo com a deliberação de 27 de dezembro de 2021 que autorizou a administração a instaurar a presente ação.
Em causa está a alegada “inexistência” ou “nulidade” dessa deliberação.
Ora, sobre este tema já no debruçámos no ponto 1 do presente acórdão, sendo que a relevância da impugnação estava restrita à alegada “ilegitimidade” do A. para propor a presente ação.
Tudo o que ali deixámos oportunamente expresso tem aqui plena aplicação e, portanto, sem necessidade de maior aprofundamento, só nos resta dizer que, para além de ficar prejudicada a sua apreciação, sempre improcederia a impugnação nesta parte.
3.2.
Dos factos provados no ponto 19.
O segundo facto provado impugnado pelo Recorrente é o ponto 19, que se refere à circunstância de a atual administração, em 2020, quando verificou as contas bancárias, tomou conhecimento que o condomínio, entre os anos de 2016 e 2020, efetuou pagamentos à EPAL, Universidade da Madeira, Seguros da Seguradora Unidas, de produtos de bricolage, de farmácia, de sucada e gás, Diário de Notícias e verificou levantamentos efetuados pelo R. e transferências para a conta da esposa deste.
Sustenta o Recorrente essa impugnação no facto de os documentos juntos aos autos não serem extratos de conta bancária, mas documentos elaborados pela administração, sendo que as testemunhas AS, SV, GD, CP e LR reconheceram, em depoimento gravado, ou que não viram os extratos bancários, ou, os que os viram, não constataram neles os mencionados pagamentos.
Contrapõe o Recorrido com a reprodução da gravação do depoimento de AT (aos minutos 1:00 a 12:21), que é a atual administradora do condomínio, a qual efetivamente refere que não tinham antes acesso à documentação integral relativa à administração do R., que veio a solicitar os extratos bancários das contas do condomínio, tendo nessa sequência elaborado o documento junto a fls. 26 a 31, junto com a “réplica”, que reproduz os movimentos verificados nesses extratos bancários, mencionando nele todos os movimentos inexplicados que foram dados por provados.
Importa ainda ter em consideração que a sentença recorrida fundamentou a sua convicção, relativamente a este ponto 19, nos seguintes termos:
«Relativamente ao facto 19, o mesmo resultou provado das declarações de parte da legal representante da Autora, bem como dos depoimentos das testemunhas AS, AD, RH, JS, MV, GD e MC, bem como da documentação junta em 10 de Março de 2022 (cfr. referência citius nº 4596621).
«A documentação junta em 10 de Março de 2022 (cfr. referência citius nº 4596621) demonstra que, efetivamente, existem movimentos que carecem de justificação (algo que não compete apreciar na presente lide), nomeadamente que o condomínio efetuou pagamentos de despesas da EPAL, da Universidade da Madeira, de Seguros da Seguradora Unidas, de produtos de bricolage, de farmácia, produtos de sucata e de gás, Diário de Notícias, demonstrando também a existência de levantamentos efetuados pelo Réu e transferências para a conta da esposa do mesmo.
«Essa documentação foi impugnada pelo Réu mas não deixa, naturalmente, de ser livremente apreciada pelo Tribunal.
«Corroborando a informação plasmada na documentação, a legal representante do condomínio confirmou que elaborou esse resumo com base nos extratos bancários, quando teve acesso aos mesmos.
«Frisou que a única coisa que o condomínio pretende é que o Réu apresente constas e justifique esses gastos e movimentos.
«Também a testemunha JS (marido da legal representante do Autor) confirmou que o resumo espelha o que foi detetado nos extratos bancários do condomínio.
«No mesmo sentido, a testemunha MC referiu que lhe foi facultado o acesso aos extratos bancários do condomínio pela nova administração, tenho verificado todos esses pagamentos e movimentos para os quais não tem explicação.
«Frisou que a única coisa que o condomínio pretende é que o Réu apresente constas e justifique esses gastos e movimentos.
«Por fim, as testemunhas, AS, AD, RH, MV, GD e MC referiram que tiveram conhecimento dos pagamentos efetuados pelo condomínio à Universidade da Madeira, Epal, Farmácia e levantamentos pessoais do Réu e transferências para a conta da esposa do mesmo através a consulta do resumo dos movimentos bancários efetuado pela atual administração.
«Por tudo o exposto, não restam quaisquer dúvidas ao Tribunal em considerar como provado o facto 19».
Apreciando, julgamos que não existem fundadas razões para alterar o provado em 19, principalmente porque as apontadas insuficiências dos depoimentos testemunhais, relevadas nas alegações de recurso, não põem em crise a conclusão evidente de que a convicção do tribunal assentou, fundamental e principalmente, nas declarações de parte da administradora do condomínio, que conhecia em maior pormenor as situações que relatou e que foram refletidas no documento de fls. 26 a 31, que, não sendo um extrato de conta emitido pelo Banco, limita-se a reproduzir os movimentos relevantes que dele constavam.
Em suma, o exposto nas alegações de recurso é claramente uma visão parcial da totalidade da prova produzida e insuficiente para permitir por em crise a factualidade impugnada e a prova que foi relevada pelo Tribunal
a quo
na sua globalidade. Pelo que, julgamos que improcede a impugnação também nesta parte.
3.3.
Dos factos não provados nas alíneas B) a R).
O Recorrente impugna de seguida, em bloco, os factos não provados constantes das alíneas B) a R), dos quais resultaria a conclusão genérica de que o R. nunca prestou contas em assembleia de condóminos, pretendendo que os mesmos passassem a figurar nos factos provados.
Para tanto realça, em primeiro lugar, que prestou as contas conforme sabia, não tendo exercido as funções de administrador como profissional e não sendo remunerado para esse efeito. Por outro lado, transcreveu passagens dos depoimentos das testemunhas AS, AD, RH, MP, JP, LR, MOM e JF, daí concluindo que as contas eram apresentadas e aprovadas, isto mesmo nas atas em que não se menciona que as contas foram aprovadas e mesmo que reconhecendo que pudessem ter existido irregularidades.
Em suma, expressou o entendimento de que não foi tido em consideração que o R. não tinha formação para administrador, que iniciou e exerceu as funções desde 2006 e de forma muito rudimentar, tendo apenas como exemplo os administradores anteriores, tendo apresentado as contas do modo que entendia que deveria ser feito, sem que ninguém se tivesse oposto e sem que ninguém se oferecesse para o substituir.
O Recorrido contrapõe que o R. não juntou aos autos nenhuma ata em que as contas apresentadas tivessem sido aprovadas, sendo que o que resulta dos depoimentos transcritos nas alegações de recurso é que o R. nunca prestou contas, realçando, por exemplo, que a testemunha JP não sabia que o R. pagou a si próprio 4 cheques do condomínio no valor de 11 mil, 10 mil, 5 mil e 3 mil euros. Ao que acresce que o Recorrente não pôs em causa o que é exposto na sentença recorrida, com base na prova junta aos autos e nos factos provados.
A sentença expressou a sua convicção sobre toda a factualidade não provada, nos seguintes termos:
«A versão do Réu nos presentes autos baseia-se na alegação de que os condóminos sempre o pressionaram a continuar a exercer o cargo de administrador e que sempre prestou contas anualmente em sede de assembleia de condóminos, tendo as contas sido sempre aprovadas pelos condóminos.
«Como se verá, e recorrendo (por se entender estritamente necessário) a matéria jurídica para fundamentação da matéria de facto não provada, essa versão não resultou provada.
«Em primeiro lugar cumpre frisar que o ónus de provar que as contas já haviam sido prestadas e aprovadas competia ao Réu (cfr. artigo 342.º do Código Civil), por se tratar de um facto extintivo do direito do Autor a exigir a prestação de contas.
«Como já foi referido supra, o Réu apenas apresentava uma folha A4 com receitas e despesas, não apresentando qualquer comprovativo que permitisse comprovar essas informações.
«Na pode, como se voltará a reforçar em sede de subsunção jurídica, considerar-se que a obrigação de prestação de contas se satisfaça desta forma.
«A esse propósito, por tratar de situação semelhante à do caso em apreço, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 08 de Setembro de 2009, processo 52/08.5TBSTS.P1, relatado pelo Exmo. Desembargador Canelas Brás (disponível em
www.dgsi.pt
):
“(…) nos termos do artigo 1436.º, alínea j) do Código Civil, é função do Administrador <<prestar contas à Assembleia>>. (…) Vejam-se, por exemplo, as exigências que vêm previstas no artigo 1016.º do Código Processo Civil: <<As contas que o Réu deva prestar são apresentadas em forma de conta-corrente e nelas se especificará a proveniência das receitas e a aplicação das despesas, bem como o respetivo saldo” (n.º 1); e <<As contas são apresentadas em duplicado e instruídas com os documentos justificativos>> (seu n.º 3).
“(…) a apresentação das contas não basta mencionar a importância total das receitas e a soma total das despesas, há que indicar separadamente como se obteve a totalidade da receita, quais as quantias que se foram recebendo e donde provieram, assim como é forçoso declarar quais as diferentes despesas que se fizeram e a que fim se aplicaram as verbas respetivas”, como aduz o Dr. Abílio Neto no seu “Código de Processo Civil Anotado”, 14.ª edição, Março/1997, nas anotações n.ºs 5 e 20 ao artigo 1014.º-A, a páginas 1043 e 1044 e na anotação n.º 6 ao artigo 1015.º, a páginas 1045, respetivamente, com a jurisprudência aí indicada.]” (…nosso).
«Assim sendo, não se poderá considerar que a obrigação de apresentação de contas relativamente aos anos 2007 a 2020 foram efetivamente prestadas.
«No mais, da análise detalhada das atas (documentação junta a 07 de Fevereiro de 2024) verifica-se o seguinte:
«- Nada consta da ata de 20 de Fevereiro de 2007 quanto à aprovação das contas relativas ao ano de 2006.
«- Nada consta da ata de 04 de Abril de 2009 quanto à aprovação das contas relativas ao ano de 2008.
«- Nada consta da ata de 10 de Janeiro de 2010 quanto à aprovação das contas relativas ao ano de 2009.
«- Nada consta da ata de 29 de Agosto de 2010 quanto à aprovação das contas relativas ao ano de 2009, fazendo-se notar que é de estranhar a existência de duas atas de 2010 referentes à aprovação das contas do ano de 2009.
«- Consta da ata de Março de 2011 que as contas do ano de 2010 foram apresentadas e aprovadas; porém, essa ata apenas está assinada pelo Réu, não constando sequer quais foram os condóminos presentes, sendo impossível aferir quem, alegadamente, aprovou as contas.
«- Não foi comprovada a realização de assembleia no ano de 2012, não existindo qualquer comprovativo de que tenham sido prestadas contas relativas ao ano de 2011.
«- Não foi comprovada a realização de assembleia no ano de 2013, na existindo qualquer comprovativo de que tenham sido prestadas contas relativas ao ano de 2012.
«- Nada consta da ata de 20 de Junho de 2014 quanto à aprovação das contas do ano de 2013.
«- Não foi comprovada a realização de assembleia no ano de 2015, não existindo qualquer comprovativo de que tenham sido prestadas contas relativas ao ano de 2014.
«- Não foi comprovada a realização de assembleia no ano de 2016, não existindo qualquer comprovativo de que tenham sido prestadas contas relativas ao ano de 2015.
«- Nada consta da ata de 21 de Outubro de 2017 quanto à aprovação das contas do ano de 2016.
«- Não foi comprovada a realização de assembleia no ano de 2018, não existindo qualquer comprovativo de que tenham sido prestadas contas relativas ao ano de 2017.
«- Nada consta da ata de 30 de Outubro de 2019 quanto à apresentação e aprovação das contas do ano de 2018.
«- Não foi comprovada a realização de assembleia no ano de 2020, não existindo qualquer comprovativo de que tenham sido prestadas contas relativas ao ano de 2019.
«Acresce a tudo o exposto que as atas estão assinadas apenas pelo Réu (administrador), não constando das mesmas a lista de presenças.
«Acresce, ainda, que se demonstrou provado que apenas era apresentada uma folha A4, sem documentação de suporte, não se podendo considerar que tenha sido satisfeita a obrigação legal de prestação de contas.
«Por fim, refira-se também que não resultou provado que o Réu tenha solicitado por diversas vezes aos seus vizinhos que o substituíssem na administração do condomínio ou tenha sido pressionado a continuar na administração do condomínio, não tendo qualquer das testemunhas referido episódios concretos que revelassem essa pressão ou que o Réu tenha sido de alguma forma coagido a tal; sendo certo que esses factos sempre seriam de relevância escassa para a decisão a proferir.
«Por tudo o exposto, dúvidas não restam ao Tribunal em considerar como não provados os factos A) a T)».
Apreciando, temos de referir, antes de mais, que as atas das assembleias de condomínio, relativas ao período relevante nesta ação, mostram-se juntas aos autos por cópia de fls. 90 a 97.
Elas retratam exatamente o que ficou provado nos pontos 4 a 14 da sentença recorrida, que, aliás, nem sequer foram impugnados pelo Recorrente.
Daí se realça que:
1- Nunca foram sequer apresentadas contas referentes aos anos de 2011, 2012, 2014, 2015, 2017 e 2019.
2- Apenas foram formalmente aprovadas as contas apresentadas relativas aos anos de 2007, 2010 e 2020.
3- Foram apresentadas contas, mas não foram sujeitas a qualquer deliberação para sua aprovação, no que se refere aos anos de 2006, 2008, 2009, 2013, 2016 e 2018.
Quanto ao modo de apresentação das contas, a prova testemunhal permitiu saber que o R., pelo menos algumas vezes, terá apresentado uma folha A4, com indicação das despesas e receitas, sendo certo que as únicas versões desse tipo de documento são as que se mostram juntas a fls. 118 e 119, identificadas como “Apresentação de Contas do Ano de 2006” e “Apresentação de Contas do Ano de 2007”. Sendo evidente que a prova testemunhal gravada não permite a conclusão inequívoca de que essa obrigação tenha sido cumprida, e nesses precisos termos, relativamente a todos os anos em que o R. exerceu as funções de administrador. Ninguém expressou semelhante conhecimento, de memória, relativamente a todos e cada um desses anos.
Também fica claro, da prova gravada, que os condóminos, ao longo dos anos, foram-se conformando com a administração do R., não pondo em causa as despesas ou as receitas, porque tudo funcionava na base da confiança. Na prática havia um misto de deficiente informação documentada e falta de interesse concreto em procurar dessa informação.
Não podemos também deixar de ponderar que isso só assim se terá passado devido à ausência de qualquer situação concreta que tivesse servido de motivo de alarme que justificasse o interesse na justificação de qualquer concreta despesa ou receita.
Em todo o caso, a prova produzida não permite concluir que o R. sempre prestou contas da sua atividade, tal como consta da alínea B) dos factos não provados. Pelo contrário, está evidenciado das atas juntas que, por exemplo, nunca foram apresentadas contas referentes aos anos de 2011, 2012, 2014, 2015, 2017 e 2019, sendo que deveria ser na assembleia de condóminos, devidamente convocada para esse efeito, que as contas deveriam ter sido apresentadas (cfr. Art.º 1431.º e Art.º 1436.º n.º 1 al. l) do C.C.). Pelo que, o facto não provado constante da alínea B) deve continuar a figurar no rol dos factos não provados.
Veja-se que a elaboração duma ata relativa a cada assembleia de condóminos é sempre obrigatória (cfr. Art.º 1.º n.º 1 do Dec.Lei n.º 268/94 de 25/10), devendo as deliberações ser devidamente consignadas nesse documento, para efeitos de serem vinculativas para todos os condóminos e para terceiros (cfr. Art.º 1.º n.º 2 do mesmo diploma legal). Nessa estrita medida, a existência duma ata, mais que uma formalidade
ad probationem
é uma verdadeira formalidade
ad substantiam
(neste sentido: Sandra Passinhas in “A Assembleia de Condóminos e o Administrador na Propriedade Horizontal”, pág. 258). Por isso, não há como concluir da prova documental junta aos autos, nem muito menos tal conclusão pode resultar da prova testemunhal gravada, mesmo da reproduzida nas alegações, que se logrou fazer a demonstração dos factos constantes das alíneas I), J), L), M) O) e Q) - (v.g. a apresentação e aprovação das contas dos anos de 2011, 2012, 2014, 2015, 2017 e 2019). Pelo que, só podem continuar no rol dos factos não provados os constantes das alíneas B), I), J), L), M), O) e Q).
Quanto ao mais, em face da falta de segurança da prova testemunhal produzida, só podermos ater-nos à prova documental junta aos autos, nomeadamente ao teor das atas de fls. 72 a 97, nas quais, em princípio, deverá ter ficado reproduzido o que efetivamente se terá passado em cada uma dessas assembleias de condóminos, resultando patente da prova que ninguém as impugnou, nem foi arguida a sua falsidade, mesmo sendo certo que nem todas estejam assinadas por todos os condóminos que nelas tenham intervindo, como o Art.º 1.º n.º 1 do Dec.Lei n.º 268/94 de 25/10 impunha que fosse observado.
Nessa medida, se ficou provado que as contas do ano de 2006 foram apresentadas na assembleia de 20 de fevereiro de 2007 (cfr. facto provado 4), o que é explicitamente referido, e de forma mais ou menos extensa, na ata n.º 20 (cfr. doc. a fls. 90), não pode ser dado por não provado que essas contas não foram apresentadas (cfr. al. C) dos factos não provados), ainda que apenas na forma que se mostra documentada a fls. 118.
Efetivamente, o documento de fls. 118 explicita todas as receitas e despesas, de forma mais ou menos circunstanciada, permitindo aos condóminos, se nisso tivessem interesse, em solicitar a documentação de suporte de alguma despesa ou receita que pudesse suscitar dúvidas.
Acresce que, a ata n.º 20 reflete claramente que houve um esforço, por parte da administração, de apresentar à assembleia os resultados do exercício de 2006 e, por isso, tal aí ficou explicitamente consignado, independentemente de terem, ou não, sido apresentados documentos de suporte, ou de os condóminos terem, ou não, solicitado a consulta de qualquer documentação.
O que é claro é que as contas de 2006 não foram objeto de aprovação pelos condóminos, porque isso não é mencionado na ata n.º 20 (cfr. cit. doc. de fls. 90 a verso). Nessa medida, não se pode presumir uma aprovação, que formalmente inexistiu, fosse lá por que motivo fosse. Sendo que, recorde-se, era na assembleia de condóminos que as contas deveriam ser apresentadas, discutidas e aprovadas (cfr. Art.s 1431.º n.º 1 e 1436.º al. j) do C.C., com a redação então em vigor, e Art.º 1.º n.º 1 e n.º 2 do Dec.Lei n.º 268/94 de 25/10).
Em face do assim exposto, a alínea C) dos factos não provados deve refletir o documentado na ata n.º 20, devendo a sua redação ser alterada de forma a que fique apenas dado por não provado que:
«C) As contas do ano de 2006 foram aprovadas na assembleia realizada em 20 de fevereiro de 2007».
Quanto à alínea D) dos factos não provados, está a mesma em contradição com o teor do ponto 5 dos factos provados, embora essa contradição seja explicada na sentença recorrida com a consideração de que a apresentação de contas, e a consequente aprovação, não se sustentaram no cumprimento devido da obrigação de informação pela apresentação coeva de suporte documental às contas.
É certo que as contas de 2007 podem ter sido apresentadas formalmente apenas nos termos que constam do documento entretanto junto a fls. 119, para efeitos da sua posterior discussão e aprovação em assembleia, mas não pode ser desconsiderado que da ata n.º 21 (cfr. doc. a fls. 90 verso a fls. 91) é dito explicitamente que se procedeu
«á verificação das contas do ano dois mil e sete
com a aprovação de todos os presentes
»
. Se isso é dito em ata, e nesses precisos termos, quando não foi impugnada essa ata ou impugnadas oportunamente as suas deliberações, como duvidar de que assim não tenha sido, passados quase 17 anos!
Se os condóminos, reunidos em assembleia, discutiram as contas e sentiram-se suficientemente esclarecidos para as poderem aprovar, não se poderá agora, decorrido todo este tempo, dizer-se que a assembleia não votou de forma esclarecida. Julgamos assim que o documento faz prova mais que bastante do que ficou provado no ponto 5 da sentença recorrida e permite excluir dos factos não provados o que ficou a constar da alínea D), que assim deve ser eliminada.
Quanto às contas de 2008 (al. E) dos factos não provados), a questão coloca-se em termos muito semelhantes ao que foi exposto quanto à alínea C).
A ata n.º 23 (cfr. doc. a fls. 92 a 92 verso) fala apenas na
«apresentação de contas do ano de 2008»
. Parte-se assim do princípio de que houve efetivamente uma apresentação de contas nessa assembleia de 4 de abril de 2009, mesmo sendo certo que relativamente a estas não exista um documento semelhante aos que constam de fls. 118 e 119, por referência aos anos de 2006 e 2007.
O que certamente não houve, porque isso não consta da ata, foi uma deliberação da assembleia a aprovar essas contas (cfr. cit. doc. e facto provado no ponto 6 da sentença recorrida).
Fosse lá por que motivo fosse, os condóminos não aprovaram as contas e não há prova mínima de que o contrário, relativamente a esse ano específico, tenha ocorrido.
Nada nos pode levar a supor que haja um mero lapso na redação da ata, que supostamente até terá sido elaborada pelo próprio R..
No mínimo, sempre haveria de ponderar a possibilidade de, se não houve aprovação dessas contas, é porque a assembleia de condóminos poderia ter motivos para as não aprovar.
Portanto, existe prova suficiente do facto provado no ponto 6 da sentença recorrida, sendo essa mesma prova suficiente para afastar dos factos não provados que as contas do ano de 2008 tenham sido apresentadas, devendo apenas subsistir na redação da alínea E), como facto não provado, que as contas de 2008 tivessem sido objeto de aprovação.
Em face do assim exposto, a alínea E) dos factos não provados deve refletir o documentado na ata n.º 23, devendo a sua redação ser alterada de forma a que fique apenas dado por não provado que:
«E) As contas do ano de 2008 foram aprovadas na assembleia realizada em 4 de abril de 2009».
Quanto às contas de 2009 (alínea F) dos factos não provados), pelas mesmas razões, há que ter em consideração o teor da ata n.º 24 de 10 de janeiro de 2010 (cfr. doc. a fls. 92 verso a 93), que fez prova do que ficou a constar do ponto 7 dos factos provados.
Também aqui, como na ata n.º 23, relativa à alínea E) dos factos não provados, consta que houve uma apresentação das contas do ano de 2009, mas não houve aprovação dessas contas. Pelo que, deverá a alínea F) dos factos não provados refletir o documentado na ata n.º 24, devendo a sua redação ser alterada de forma a que fique apenas dado por não provado que:
«F) As contas do ano de 2009 foram aprovadas na assembleia realizada em 10 de janeiro de 2010».
O mesmo se diga quanto à alínea G), que repete a questão da apresentação e aprovação das contas de 2009, mas agora por referência à ata seguinte n.º 25 (cfr. doc. de fls. 93 a verso).
Neste último caso, para além de se estranhar o facto de as contas do ano de 2009 serem apresentadas por 2 vezes no mesmo ano e em atas diferentes, uma vez mais, o que resulta desta última mencionada ata é apenas a apresentação das contas de 2009 e a ausência de aprovação das mesmas pelos condóminos. Assim, deverá a alínea G) dos factos não provados refletir o documentado na ata n.º 25, devendo a sua redação ser alterada de forma a que fique apenas dado por não provado que:
«G) As contas do ano de 2009 foram aprovadas na assembleia realizada em 29 de agosto de 2010».
Quanto à alínea H), a questão é igual à que se refere a alínea D), agora tendo por referência a ata n.º 26 de 27 de março de 2011, que permitiu dar provado o que consta do ponto 9 da sentença recorrida.
Se na ata n.º 26 (cfr. doc. a fls. 93 verso a fls. 94) consta que o relatório de contas foi explicitado, nomeadamente quanto às fontes de receitas e despesas, após distribuição de um exemplar a cada condómino presente, sendo que, depois de posto à votação, o mesmo foi aprovado por unanimidade, é isso significativo de que os condóminos entenderam que as contas estavam corretas e mereciam a sua aprovação, por não oferecerem dúvidas. Logo, não tendo sido impugnada essa deliberação assim formalizada, serve essa ata de prova bastante para o facto provado em 9 e para que seja excluído dos factos não provados a matéria da alínea H), que deve ser eliminada do rol dos factos não provados.
Saltamos agora as alíneas I) e J), relativas às contas de 2011 e 2012, sobre as quais já nos pronunciámos previamente. Sobre estas resta verificar a sequência das assembleias, constante do livro de atas junto, para se constar que não houve sequer assembleia geral de condóminos relativas aos anos de 2012 e 2013, que tivessem por objeto a apresentação ou a aprovação das contas de 2011 e 2012. Efetivamente, o livro de atas passa da ata n.º 26, do ano de 2011, para a ata n.º 27, do ano de 2014 (cfr. fls. 93 verso a fls. 94). Pelo que, os factos constantes das alíneas I) e J) só poderiam ser dados por não provados.
Quanto à alínea K), referente às contas de 2013, a questão é igual à das alíneas C), E), F) e G).
Em causa está a ata n.º 27 de 20 de junho de 2014 (cfr. doc. a fls. 94 a verso), que motivou a prova do facto constante do ponto 10 da sentença recorrida.
Também nesta ata é mencionada a apresentação das contas de 2013, aí se referindo explicitamente à discussão duma despesa extraordinária concreta com os esgotos. O que não houve foi aprovação das contas que terão sido apresentadas. Assim, deverá a alínea K) dos factos não provados refletir o documentado na ata n.º 27, devendo a sua redação ser alterada de forma a que fique apenas dado por não provado que:
«K) As contas do ano de 2013 foram aprovadas na assembleia realizada em 20 de julho de 2014».
Saltamos agora as alíneas L) e M), referentes à apresentação das contas de 2015 e 2016 em 2015 e 2016, relativamente às quais, como já referido, não há sequer atas, porque se passa da ata n.º 27, do ano de 2014, para a ata n.º 28, do ano de 2017, devendo por isso esses factos subsistir na factualidade não provada.
Quanto à alínea N), referente às contas de 2016, a questão é a mesma da das alíneas C), E), F), G) e K).
A ata n.º 28 de 21 de outubro de 2017 (cfr. doc. a fls. 94 verso a fls. 95), que motivou a prova do facto constante do ponto 11 da sentença recorrida, permite constar que foram apresentadas contas relativamente ao ano de 2016, explicitando-se em ata que foi apresento um balanço que foi entregue aos condóminos, especificando-se o resultado negativo do exercício, mas sem se fazer menção à aprovação das contas pelos condóminos.
Assim, deverá a alínea N) dos factos não provados refletir o documentado na ata n.º 28, devendo a sua redação ser alterada de forma a que fique apenas dado por não provado que:
«N) As contas do ano de 2016 foram aprovadas na assembleia realizada em 21 de outubro de 2017».
As alíneas O) e Q) devem subsistir nos factos não provados porque não há ata de assembleia de condóminos que sequer mencione a apresentação de contas dos anos de 2017 e 2019, como já evidenciámos.
Quanto à alínea P), referente às contas de 2018, há que ter em atenção a ata n.º 29 de 30 de outubro de 2019 (cfr. doc. a fls. 95 a 96 verso), que tinha como primeiro ponto de “dar a conhecer a situação financeira do edifício”, referindo-se aí, a esse propósito, apenas qual o valor do fundo de reserva e do saldo da conta.
Dessa ata não consta que tenha sido efetivamente apresentadas quaisquer contas, seja de que ano fosse. O que motivou a redação do ponto 12 dos factos provados na sentença recorrida e justifica que a alínea P) deva subsistir nos factos não provados com a mesma redação.
Finalmente, temos a alínea R), referente às contas do ano de 2020, a que se reporta a ata n.º 31 de 13 de fevereiro de 2021 (cfr. doc. a fls. 100 a 102 verso), que esteve na base do provado no ponto 14 da sentença recorrida.
Dessa ata consta como ordem de trabalho a apresentação, análise e aprovação do relatório de contas de 2020, mencionando-se que foram distribuídas cópias da documentação, a que se seguiram vários pedidos de esclarecimentos sobre despesas que se refere não estarem documentadas ou justificadas, sendo evidente a discordâncias de alguns condóminos sobre as contas apresentadas. No final dessa ordem de trabalhos consta explicitado na ata que:
«Finda esta discussão, foi colocada à votação a aprovação do relatório de contas do ano dois mil e vinte»
, resultando dessa votação que o relatório de contas do ano de 2020 foi aprovado por maioria (cfr. doc. a fls. 101).
Essa deliberação não foi impugnada e consta de ata assinada pelos condóminos presentes. Pelo que, foi feita prova mais que suficiente para se concluir que as contas de 2020 foram apresentadas pelo administrador, foram abundantemente discutidas e a maioria dos condóminos considerou estar suficientemente esclarecido para as aprovar em assembleia. Logo, o facto que consta da alínea R) dos factos não provados deve ser eliminado.
De tudo o assim exposto, relativamente a esta parte da impugnação da matéria de facto não provada, resulta que a mesma deve ser julgada parcialmente por procedente, nos seguintes termos:
1- Devem ser eliminadas dos factos não provados as alíneas D), H) e R);
2- Deve ser alterada a redação das alíneas C), E), F), G), K) e N), que passará a ser a seguinte:
«C) As contas do ano de 2006 foram aprovadas na assembleia realizada em 20 de fevereiro de 2007».
«E) As contas do ano de 2008 foram aprovadas na assembleia realizada em 4 de abril de 2009».
«F) As contas do ano de 2009 foram aprovadas na assembleia realizada em 10 de janeiro de 2010».
«G) As contas do ano de 2009 foram aprovadas na assembleia realizada em 29 de agosto de 2010».
«K) As contas do ano de 2013 foram aprovadas na assembleia realizada em 20 de julho de 2014».
«N) As contas do ano de 2016 foram aprovadas na assembleia realizada em 21 de outubro de 2017».
3- Quanto ao mais, devem permanecer nos factos não provados a matérias das alíneas B), I), J), L), M), O), P) e Q).
3.4.
Dos factos não provados nas alíneas A) e S).
O Recorrente impugna ainda os factos não provados constantes das alíneas A) e S), dos quais decorrida que o R. exerceu a administração a pedido dos condóminos, dada a sua maior disponibilidade e conhecimento prático do condomínio (al. A) e que solicitou por várias vezes para o substituírem, mas todos insistiam que continuasse como administrador (al. S).
Deve-se dizer que esta matéria de facto, apesar de ter sido alegada e constar dos factos não provados, é completamente irrelevante e, por isso, dada a sua completa inutilidade para a apreciação da questão central nos autos, que é a existência, ou não, da obrigação de prestar contas relativamente aos anos em que o R. exerceu as funções como administrador do condomínio, julgamos abstermo-nos de apreciar a impugnação nessa parte.
Conforme foi defendido no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26 de setembro de 2019 (Proc. n.º 144/15.4T8MTJ.L1-2 – Relator: Carlos Castelo Branco, disponível em
www.dgsi.pt
): «I)– Não se deverá proceder à reapreciação da matéria de facto quando os factos objeto de impugnação não forem suscetíveis, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação, de ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe ser inútil, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processuais (arts. 2º, nº 1, 137º e 138º, todos do C.P.C.)» (vide no mesmo sentido, ainda: o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 15/12/2016 – Proc. n.º 86/14.0T8AMR.G1 – Relatora: Maria João Matos, disponível no mesmo sítio).
Julgamos pelo exposto, não apreciar a impugnação nesta parte.
3.5.
Dos factos omissos na seleção da matéria de facto provada.
Finalmente, o Recorrente entende que a sentença é omissa relativamente a 2 factos que entende que deveriam constar dos factos provados e cuja redação sugere.
Assim pretende que fiquem igualmente provado que:
“23. A documentação do condomínio sempre esteve à disposição dos condóminos”.
“24. O Réu nunca impediu qualquer condómino de consultar a documentação do condomínio”.
Há que dizer que nenhum destes factos foi alegado na contestação que o R. apresentou. Pelo contrário, o R. chegou a sustentar que as despesas não eram documentadas, porque alguns prestadores de serviços não emitiam faturas, o que era do conhecimento dos condóminos e assim era feito com a sua concordância (cfr. artigo 37.º da contestação). O que é substancialmente diferente de alegar que a documentação estava disponível e que o R. nunca impediu a sua consulta.
Em todo o caso, o R. alegou que prestou sempre contas (v.g. artigo 46.º da contestação) e isso implica o cumprimento pontual e integral da obrigação de informação, disponibilizando a documentação que fosse necessária e que existisse.
Assim sendo, admitimos que os factos pretendidos aditar fossem complementares e concretizadores da defesa por si apresentada, podendo a sua inclusão e prova resultar da instrução da causa (cfr. Art.º 5.º n.º 2 al. c) do C.P.C.).
Para tanto, sustentou o Recorrente a sua impugnação desta parte da decisão sobre a matéria de facto na circunstância das testemunhas MP (cfr. gravação aos minutos 8:13 a 9:07), JP (cfr. gravação aos minutos 4:40 a 4:47), LR (cfr. gravação aos minutos 15:10 a 27:43) e JF (cfr. gravação aos minutos 9:38 a 18:31), terem referido que, a elas, nunca o R. recusou documentação, nem terem assistido a situações em que o R. tenha recusado informação a outros condóminos, e que só não a consultavam por o acharem desnecessário.
O Recorrido contrapõe com o depoimento da atual administradora do condomínio, que reconheceu que recebeu alguns documentos do R., quando este cessou as suas funções, que consistiam em alguns extratos bancários e contas pessoais do R., mas depois referiu também que antes não tinham acesso às contas bancárias, porque o R. dizia que estavam em casa dele, mas depois «nunca dava nada»; que «nunca vimos documentos nenhuns»; e que só depois de pedirem os extratos bancários é que se aperceberam dos levantamentos de dinheiro e de pagamentos de despesas que nada tinham a ver com o condomínio.
Tudo assim ponderado e apreciando, o que resulta patente é que dos depoimentos prestados em audiência, desde logo dos relevados nas alegações e contra-alegações, existem relatos de situações que, no seu conjunto, não permitem com segurança estabelecer como provada a matéria pretendida ver aditada aos factos provados.
A impressão dominante que fica de toda a prova produzida em audiência é que, a maior parte dos condóminos estava desligada das questões da administração do condomínio e não se preocupava muito com a consulta da documentação das despesas ou receitas. Sendo certo que, pelo menos a atual administradora, que também é condómina, ouvida em declarações, sinalizou situações em que o R., não recusando propriamente a consulta de documentos, protelou a mesma no tempo, acabando por não fornecer os elementos solicitados. Portanto, não é certo que a documentação estivesse sempre à disposição dos condóminos e que o R. tenha feito sempre tudo no sentido de a disponibilizar para consulta. Em face disso, improcede a impugnação nesta parte.
3.6.
Da conclusão da impugnação da matéria de facto.
Em face de todo o exposto, a impugnação da decisão sobre a matéria de facto procede apenas parcialmente, devendo proceder-se unicamente às alterações como apresentadas no ponto 3.4. do presente acórdão. Ou seja, devem ser eliminadas dos factos não provados as alíneas D), H) e R) e ser alterada a redação das alíneas C), E), F), G), K) e N) nos termos ali descritos.
4.
Do abuso de direito como causa justificativa da obrigação de prestar contas.
Fixada a factualidade provada e não provada, cumpre então apreciar o mérito da sentença que condenou o R. a apresentar contas da administração do condomínio referentes ao período compreendido entre Janeiro de 2006 e Fevereiro de 2021, julgando improcedente a exceção perentória do abuso de direito.
Em primeiro lugar, há que dizer que não se discute que o R., por ter exercido as funções de administrador do condomínio no período considerado (cfr. facto provado 1), estava efetivamente obrigado a prestar contas à assembleia de condóminos (cfr. Art.º 1436.º n.º 1 al. l) do C.C.), que é o órgão administrativo do condomínio com competência própria para discutir e aprovar as contas (cfr. Art.º 1430.º e 1431.º n.º 1 do C.C.).
Em segundo lugar, também está provado que o R. nunca chegou a apresentar contas relativas aos exercícios dos anos de 2011, 2012, 2014, 2015, 2017 e 2019. Logo, não tendo cumprido essa obrigação, relativamente a esses anos, só poderia ser condenado a cumprir agora essa prestação em falta.
É certo que invocou que, decorridos todos estes anos, constituiria um manifesto abuso de direito exigir o cumprimento dessa obrigação. Mas, com o devido respeito, não conseguimos vislumbrar em que é que o princípio da tutela da confiança poderia, no caso, justificar uma alegada convicção de que o não cumprimento da obrigação de prestar contas em determinados anos permitiria legitimar a conclusão sobre a extinção da correspondente obrigação.
De facto, nos termos do Art.º 334.º do C.C.: «
É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito»
.
Assenta este normativo a ilegitimidade do exercício de direitos no princípio da boa-fé.
A boa-fé aparece na nossa lei substantiva fundamentalmente em dois sentidos distintos. No sentido subjetivo é entendida como o comportamento psicológico de determinado sujeito por conhecer ou não determinado facto (v.g. Art.º 243º e 291º do C.C.). No sentido objetivo, fala-se então de princípio da boa-fé, que expressa a existência dum dever de conduta honesta, correta e leal imposta aos sujeitos de determinada relação jurídica (v.g. Art.º 227º e 762º do C.C.).
Citando Larenz: «O princípio da boa-fé significa que todos devem guardar “fidelidade” à palavra dada e não frustrar ou abusar daquela confiança que constitui a base imprescindível das relações humanas» (Citação da tradução do “Lerrbuch des Schudrechts”, constante das lições de “Direito das Obrigações” do Prof. Rui de Alarcão, Coimbra 1983, pág. 110).
O princípio da boa-fé obriga não só a que as partes se abstenham de ter comportamentos desonestos, incorretos e desleais (vertente negativa), como impõe a obrigação de cooperação, de proteção, de esclarecimento e de lealdade (vertente positiva). Ou seja, as partes devem-se mutuamente os comportamentos necessários para que o fim contratual ou legal se realize, devendo prestar as informações que se imponham, manter a fidelidade à palavra dada, e colaborar na medida em que tal seja normal e razoável esperar (vide: Pires de Lima e Antunes Varela – “Código Civil Anotado”, Vol. II, 4ª Ed., revista e atualizada, pág. 1 e ss., v.g. pág. 3 onde menciona igualmente a posição de Larenz in “Lerrbuch des Schudrechts”, 12ª Ed., I § 10, pág. 106).
É ao sentido objetivo de boa-fé que o Art.º 334.º do C.C. se reporta diretamente, ligado fundamentalmente aos princípios da tutela da confiança e da primazia da materialidade subjacente.
Batista Machado (in “Obra Dispersa” Vol. I, págs. 415 a 418) identificava como requisitos da tutela da confiança:
- A existência duma situação objetiva de confiança;
- O investimento nessa situação de confiança; e
- A boa-fé da contraparte que confiou.
Menezes Cordeiro, na esteira de Cannaris (Vide: “Tratado de Direito Civil Português”, I Parte Geral, Tomo I, 3ª Ed., 2011, págs. 411 a 412), abordando também o princípio da tutela da confiança, como concretização do princípio da boa-fé, realça que aquele implica, em geral, a verificação de um conjunto de pressupostos para merecer proteção legal. Assim, considera que:
1º) Tem de existir uma situação de confiança fundada na boa-fé subjetiva, ou seja, na consideração ética da própria da pessoa que ignora, sem culpa, estar a lesar os direitos doutrem;
2º) Tem de existir uma justificação para essa confiança, fundada em factos objetivos capazes de tornar a crença dessa pessoa plausível;
3º) Tem de existir um investimento de confiança assente numa atividade jurídica efetiva por parte do sujeito, a qual deve ser consistente com a sua crença;
4º) Tem de haver uma imputação da confiança criada à pessoa que vai ser atingida pela proteção dada ao confiante. Ou seja, a proteção da confiança duma parte resulta do reconhecimento de que a outra é a autora da situação de confiança e é assim causalmente responsável pela situação criada.
No entanto, ressalva o mesmo autor que, por vezes, existem disposições legais que dispensam alguns desses pressupostos, sendo estes devem ser entendidos numa articulação entre si nos termos dum sistema móvel, ou seja: sem hierarquias entre os vários pressupostos e sem que se deva considerar que a sua verificação é absoluta e indispensável, pois a falta de algum deles pode ser compensada pela especial intensidade que assuma algum outro que se verifique de facto (Ob. Loc. Cit., pág. 413).
O princípio da boa-fé não se esgota na proteção da confiança, devendo ainda ser considerado o princípio da primazia da materialidade subjacente.
Sucintamente, este princípio faz realçar que não basta que as partes adotem comportamentos que formalmente respeitem a ordem jurídica e os objetivos que esta pretende alcançar. A boa-fé exige que os atos considerados produzam materialmente as consequências jurídicas pretendidas pela ordem jurídica, não sendo aceitáveis condutas que se traduzem atos emulativos (atos gratuitamente danosos para outrem) ou atuações gravemente desequilibradas (atos destinados a obter uma vantagem mínima para o próprio, mas que geram dano máximo para outrem) – (Vide: Menezes Cordeiro, in Ob. Loc. Cit., pág. 239).
É o princípio da primazia da materialidade subjacente que permite que haja obrigação de indemnização nas negociações emulativas, dilatórias e de chicaneira, na medida em que sejam estranhas à autonomia privada e contrárias à boa-fé, pois apesar do Direito reconhecer a liberdade de negociar e de romper as negociações, esses direitos devem ser exercidos com o propósito material da livre busca do consenso e não apenas na procura duma conformidade formal com a ordem jurídica (Vide: Menezes Cordeiro, in Ob. Loc. Cit., pág. 400).
No caso vertente, em função do alegado na contestação, o R. sustentava o abuso de direito como causa de justificação ou exclusão da obrigação de prestar contas, assente essencialmente no princípio da tutela da confiança, pretendendo relevar a inação prolongada no tempo por parte dos condóminos em exigir a prestação de contas, acompanhada duma alegada aprovação genérica da sua ação enquanto administrador.
Ocorre que provou apenas que os condóminos confiavam na forma como o R. administrava o condomínio (cfr. facto provado 3), mas essa confiança é insuficiente para criar no R. a convicção de que não tinha de prestar contas da sua administração.
Aliás, se se repetiram atas de assembleias de condomínio onde sucessivamente consta que prestou contas, é porque o R. só poderia estar ciente que estava obrigado à realização dessa prestação. Não será, certamente, pelo facto de haver anos em que não prestou contas, que se possa ter formado legitimamente na sua mente a convicção de que estava dispensado de o fazer.
A inação prolongada no tempo por parte dos condóminos em exigir a prestação de contas relativas a certos anos, poderia ser justificada na confiança que tinham na administração realizada pelo R., mas também na circunstância de o R. poder informar que não estava em condições para prestar contas, dando-lhe assim o crédito suficiente para, com tempo, vir a cumprir devidamente essa prestação em momento oportuno.
Em suma, não existe comprovadamente uma situação de confiança fundada na boa-fé subjetiva do R., suportada na convicção de que ele ignorava, sem culpa, estar a lesar os direitos doutrem. Não existe justificação objetiva para a confiança do R. de que não estaria obrigado a prestar contas. Não existe investimento de confiança assente numa atividade jurídica efetiva por parte do R., que seja consistente a crença de que não estava obrigado a prestar contas, pois sucessivamente veio a cumprir essa obrigação relativamente a outros anos. E a alegada inação dos condóminos é claramente insuficiente para criar no R. a confiança de que não era necessário prestar contas relativamente aos anos em que as não prestou.
Diremos assim que a exceção do abuso de direito é inaplicável, no caso, à justificação ou exclusão da obrigação de prestar contas relativamente aos anos em que nem sequer apresentou contas à assembleia de condóminos (v.g. relativamente aos exercícios dos anos de 2011, 2012, 2014, 2015, 2017 e 2019).
Mais discutível será a situação relativa aos anos em que o R. prestou contas, mas as contas não foram aprovadas.
Como vimos na discussão da impugnação da matéria de facto, isso verificou-se relativamente aos anos de 2006, 2008, 2009, 2013, 2016 e 2018.
Como logo fizemos notar, são múltiplas razões poderão ter justificado que os condóminos não tenham aprovado essas contas. Entre elas, podem constar razões relacionadas com a falta de condições objetivas das contas assim apresentadas para serem aprovadas.
Assim, relativamente a esses anos, o R. pode ter cumprido a obrigação de prestar contas, mas de forma incompleta ou deficiente, pois a assembleia de condóminos não ratificou formalmente esse ato, fosse por que motivo fosse.
Não tendo o R., enquanto administrador, promovido a aprovação das contas em assembleia de condóminos, a correção do cumprimento dessa obrigação ficou em aberto a discussão e aprovação pelo órgão administrativo competente (cfr. Art.º 1431.º n.º 1 do C.C.), não se tendo consolidado então as contas apresentadas e o seu cumprimento definitivo pelo R.. Logo, a assembleia geral de condóminos continuou perfeitamente legitimada a poder exigir o cumprimento efetivo e perfeito dessa prestação, não se podendo falar em abuso de direito nos casos em que não houve efetiva aprovação das contas.
Finalmente, falta considerar os casos em que houve apresentação de constas e as contas foram efetivamente aprovadas em assembleia geral de condóminos. Isso ocorreu nos anos de 2007, 2010 e 2020, como já tivemos oportunidade de fazer notar.
Nesses casos, mesmo que a aprovação das contas não tenha sido por unanimidade, mas sim por simples maioria, a conclusão legal é inequívoca, a assembleia geral de condóminos, ratificou e teve por devidamente cumprida a obrigação de prestação de contas por parte do administrador do condomínio, consolidando-se assim definitivamente as contas apresentadas, pois constam de ata que é vinculativa para todos os condóminos (cfr. Art.º 1.º n.º 4 do Dec.Lei n.º 268/94 de 25/10).
Não tendo as deliberações aí constantes, e agora consideradas, sido oportuna e judicialmente impugnadas, as mesmas são válidas e vinculativas para todos os condóminos, que já não podem discutir o conteúdo das contas que aprovaram.
Conforme resulta do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de junho de 1988 (Proc. n.º 076215 - Relator: Cura Mariano, disponível em
www.dgsi.pt
): «I - O administrador, na propriedade horizontal, só tem de prestar contas perante a assembleia de condóminos, mediante convocação destes, não podendo essa prestação ser solicitada por cada condómino de per si. II - Havendo qualquer irregularidade, o condómino que não tenha aprovado as contas, pode impugná-las. III - Ora, vendo-se da ata respetiva que as contas foram prestadas perante a assembleia de condóminos e devidamente aprovadas, sem qualquer impugnação, encontram-se elas definitivamente prestadas, não tendo de o ser de novo».
O mesmo foi decidido no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 8 de setembro de 2009 (Proc. n.º 52/08.5TBSTS.P1 – Relator: Canelas Brás, disponível no mesmo sítio), quando aí se diz no respetivo sumário que: «I- O Administrador do condomínio não fica exonerado de prestar contas à Assembleia de condóminos se se limita a entregar-lhe as pastas dos documentos contabilísticos da Administração e, questionado pelos condóminos acerca dos respetivos movimentos, o mesmo refere nada poder esclarecer nesse momento. II- É que só com a aprovação de quem tem direito a exigi-las é que se tem por extinta ou cumprida a obrigação de prestá-las».
Ou seja, não basta ao administrador de condomínio apresentar contas. É necessário que as contas sejam aprovadas pelo órgão administrativo competente do condomínio. Sendo certo que, se este aprovar as contas, as mesmas ficam definitivamente consolidadas, vinculando o condomínio, ou seja, todos os condóminos, mesmo os discordantes das contas assim apresentadas.
Em face de todo o exposto, julgamos que a sentença deverá ser alterada, mantendo-se a condenação do R. a prestar contas, mas apenas relativamente aos anos de 2006, 2008, 2009, 2011 a 2019 e janeiro a fevereiro de 2021, julgando-se extinta essa obrigação, pelo cumprimento, relativamente aos anos de 2007, 2010 e 2020.
As custas do recurso serão por Recorrente e Recorrido, na proporção do respetivo decaimento, que se fixa em 4/5 para o Recorrente e 1/5 para o Recorrido (Art.º 527.º n.ºs 1 e 2 do C.P.C.).
*
V- DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação parcialmente procedente por provada, alterando-se a sentença recorrida na parte que julgou condenar o R. a prestar contas referente ao período compreendido entre janeiro de 2006 a fevereiro de 2021, a qual é substituída pela condenação do mesmo a prestar contas relativas aos anos de 2006, 2008, 2009, 2011 a 2019 e janeiro a fevereiro de 2021, julgando-se extinta essa obrigação, pelo cumprimento, relativamente aos anos de 2007, 2010 e 2020.
- As custas do recurso são pelo Apelante e pelo Apelado, na proporção do respetivo decaimento (Art.º 527º n.º 1 e n.º 2 do C.P.C.), fixado em 4/5 para o primeiro e 1/5 para o segundo.
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Lisboa, 18 de fevereiro de 2025
Carlos Oliveira
Rute Sabino Lopes
José Capacete
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TRL
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https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/427a5676549a464f80258c3e00369762?OpenDocument
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1,737,417,600,000
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PARCIALMENTE PROVIDO
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2235/20.0T9LSB.L1-5
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2235/20.0T9LSB.L1-5
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ESTER PACHECO DOS SANTOS
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I. Tendo o processo sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, impõe-se, legal e oficiosamente, que o Julgador profira despacho nos termos do art.º 311º do Cód. Proc. Penal, nomeadamente nos termos do nº 2, apreciando a acusação e rejeitando-a se a considerar manifestamente infundada.
II. A acusação só poderá considerar-se manifestamente infundada se não for apta para servir de base a uma sentença condenatória, o que desde logo afasta a possibilidade de rejeição liminar da acusação por manifestamente infundada quando os vícios de que eventualmente padeça não sejam estruturais e graves. Uma acusação que não descreva factos, atribuídos ao arguido, que preencham os elementos do tipo do crime imputado, ou de qualquer outro, é manifestamente infundada, pois a falta de imputação, ao arguido, de concretos factos susceptíveis de fundamentarem uma condenação, é uma falha grave e estrutural, com virtualidade para rejeição liminar da acusação, na medida em que esta não surge como apta para servir de base à aplicação de uma pena ao agente.
III. Da leitura do art.º 77º do CPP não resulta que a lei tenha imposto qualquer limite quanto ao início do prazo de apresentação do pedido de indemnização civil, mas tão só quanto ao seu termo, o que se traduz em poder o mesmo ser deduzido pelo lesado desde a abertura do inquérito.
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[
"ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA",
"PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL",
"INÍCIO DO PRAZO"
] |
Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa,
Relatório
No âmbito do processo comum (singular), com o nº 2235/20.0T9LSB, que corre termos no Juiz 9 do Juízo Local Criminal de Lisboa, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, na sequência de despacho proferido pela Meritíssima Juiz que
rejeitou a acusação particular
deduzida pelo
assistente AA
e os
pedidos de indemnização civil
apresentados, vem aquele interpor o presente recurso pedindo a revogação da decisão proferida e a sua substituição por outra em que se determine a admissão da acusação particular apresentada pelo assistente e dos pedidos de indemnização civil deduzidos.
Para tanto formula as conclusões que se transcrevem:
I. Salvo o devido respeito, esteve mal o Tribunal a quo ao rejeitar a acusação particular apresentada pelo Recorrente, por manifestamente infundada, e, em simultâneo, ao rejeitar liminarmente os pedidos de indemnização civil apresentados, por não serem tempestivos nem adequados ao objeto do processo.
II. O despacho recorrido vem considerar a acusação particular apresentada pelo assistente como manifestamente infundada, motivo pelo qual a mesma é rejeitada, mas aplicar aos presentes autos o disposto no artigo 311.º, n.º 2, al. a), salvo o devido respeito e douto melhor entendimento, é errado.
III. A narração dos factos que fundamentam a aplicação ao Arguido de uma pena ou medida de segurança resulta bem evidente da acusação particular deduzida.
IV. Todos os elementos referidos no n.º 3 do artigo 311.º do Código de Processo Penal, sem exceção, constam da acusação particular ora deduzida.
V. Nos termos da lei, da acusação particular tem de constar apenas e só a “narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança”, narração essa que de forma alguma se pode considerar como estando em falta na acusação particular ora deduzida pelo Assistente.
VI. Do despacho recorrido resulta, ainda, o seguinte: Na verdade, da acusação particular consta que o arguido escreveu um artigo publicado num blog e no Facebook em que anexa documentos onde estão dados pessoais do assistente que merecem proteção/privacidade. Refere-se ainda na acusação particular que o blog onde tais documentos foram publicados incita ao ódio e à intolerância, num permanente discurso de violência, e a título de exemplo cita parte de uma publicação feita no blogue com expressões que se podem entender, de facto, como injuriosas, mas não atribui tal publicação, nem qualquer outra de idêntico cariz, ao arguido.
VII. O que nem sequer tem correspondência com a verdade, sendo falso que a referida publicação - ou qualquer outra - não tenha sido atribuída ao Arguido (vejam-se, nomeadamente, os artigos 3.º e 11.º da acusação particular).
VIII. Quanto à publicação do dia .../.../2020, do documento 4 junto à acusação particular resulta a respetiva data e autoria.
IX. Dos documentos juntos aos autos resulta expressamente que o Arguido é o autor daquela publicação e de forma alguma resulta como implícita ou subentendida a descrição dos factos que preenchem os elementos dos tipos de crime aqui em juízo.
X. A acusação particular contém todos os factos que justificam a aplicação da pena ao Arguido, e que são configuradores dos elementos objetivos e subjetivos dos referidos crimes, fazendo-o de forma livre, deliberada e consciente ciente de que a sua conduta era proibida e punida por lei.
XI. A invocada nulidade da acusação particular (por referência ao disposto no artigo 283.º, n.º 3, do Código de Processo Penal), não integra qualquer nulidade “insanável” e por isso, não poderia ser oficiosamente declarada, como o foi, atento o elenco taxativo das nulidades insanáveis previsto no artigo 119.º do Código de Processo Penal e o disposto no artigo 120.º, n.º 1 do mesmo diploma legal.
XII. Ainda que se entenda que a referida publicação de .../.../2020, constante do doc. 4 junto aos autos com a acusação particular, não foi expressamente atribuída ao Arguido - o que não se concebe e se refere apenas por mero dever de patrocínio - tal não pode consubstanciar causa de “nulidade” ou de “rejeição” da acusação, até porque poderá sempre ser colmatada, com recurso ao disposto no artigo 358.º do Código de Processo Penal, com a simples reprodução em julgamento dos elementos de prova que constam da peça acusatória.
XIII. O despacho recorrido violou, portanto, o disposto nos artigos 119.º, 120.º, 283.º, n.º 3, al. b), 311.º, n.º 2, al. a), e n.º 3, al. b), todos do Código de Processo Penal.
XIV. O despacho recorrido rejeita, também, os pedidos de indemnização civil apresentados pelos assistentes por, alegadamente, por não serem tempestivos nem adequados ao objeto do processo.
XV. O sistema da adesão obrigatória, consagrado no artigo 71.º Código de Processo Penal, exige que o pedido de indemnização civil só possa ser deduzido em separado em situações excecionais, como as taxativamente previstas no artigo 72.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
XVI. O referido princípio da adesão obrigatória tem sido justificado por razões de economia processual: no único e mesmo processo resolvem-se todas as questões referentes ao facto criminoso, economizam-se meios (os interessados não necessitam de dispersar custos) e evitam-se contradições de julgados.
XVII. De forma alguma se encontra violado o princípio da adesão previsto no artigo 71.º do Código de Processo Penal quando o pedido de indemnização civil é formulado no âmbito do próprio procedimento criminal, do processo penal respetivo. Muito pelo contrário, a base do princípio da adesão reside na formulação de um pedido de indemnização civil no âmbito de um procedimento criminal.
XVIII. A legitimidade, por sua vez, pertence ao lesado, entendendo-se como tal a pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime, mesmo que se não tenha constituído ou não possa constituir-se assistente.
XIX. No caso concreto, o Recorrente recebeu, no passado dia 16/10/2020, pelas mãos do Sr. Agente BB (matrícula n.º ...) da Polícia de Segurança Pública, uma notificação da qual consta expressamente a possibilidade de, querendo, deduzir pedido de indemnização civil.
XX. Não se concebe em que medida é que o pedido de indemnização civil apresentado no passado dia 27/10/2020 viola qualquer uma das disposições do Código de Processo Penal.
XXI. A circunstância de o Assistente ter sido expressamente notificado para o efeito faz com que uma ulterior rejeição do pedido por extemporaneidade do prazo, com fundamento na sua apresentação prematura, defraudasse completamente as expectativas de regularidade do ato geradas pela notificação.
XXII. Na verdade, tal rejeição só pode ser tida como incompatível com o direito do Assistente a um processo equitativo e com o próprio princípio da confiança.
XXIII. A admissão do pedido indemnizatório em momento anterior aos previstos no artigo 77.º do Código de Processo Penal não afeta, de forma alguma, aqueles que são os direitos do Arguido. As suas possibilidades de defesa ficam, aliás, completamente intactas.
XXIV. Mas ainda que possa estar em causa a prática prematura de um ato, esta intempestividade por antecipação não pode nunca culminar na sua preclusão temporal por esgotamento do prazo: a circunstância de o pedido de indemnização civil ser apresentado antes da acusação não pode nunca constituir fundamento para o seu indeferimento ou para a sua rejeição.
XXV. Dos artigos 71.º e seguintes do Código de Processo Penal resulta tão-só que, havendo ação penal, sem renúncia de queixa ou de acusação, o pedido de indemnização civil tem, obrigatoriamente, de ser deduzido na ação penal, o que foi.
*
O Ministério Público junto da primeira instância contra-alegou, pugnando, pela procedência do recurso no que se refere ao recebimento da acusação particular, mas pela improcedência do mesmo quanto à rejeição dos pedidos de indemnização civil.
Apresenta as seguintes conclusões:
1. A Mma. Juiz a quo decidiu rejeitar a acusação particular deduzida pelos mesmos nos autos, artigo 311.º, n.º 2, alínea a) e n.º 3, alínea b), do Código de Processo Penal, por ter considerado que a Acusação Particular não continha a descrição dos factos, imputados ao arguido, que preenchessem os elementos do tipo de crime que aí lhe era imputado.
2. No entanto, o entendimento do Ministério Público é de que essa acusação, deduzida pelo Assistente AA, cumpre os requisitos legais, razão pela qual decidimos proferir despacho de acompanhamento da mesma, em 17.07.2023.
3. Com efeito, concordamos com o Recorrente quando alega que a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao Arguido de uma pena ou medida de segurança resulta bem evidente da acusação particular deduzida.
4. Portanto, cremos que tal Acusação contém os requisitos legais exigidos pelo art.º 283.º, nº 3 do Código de Processo Penal, razão pela qual deveria ter sido recebida pelo Tribunal.
5. Assim, entende-se que não tinha a Mma. Juiz a quo fundamento legal para rejeitar a Acusação Particular, pelo que o despacho proferido e ora posto em crise deverá ser substituído por outro, que receba essa Acusação.
6. Tal despacho rejeitou igualmente os pedidos de indemnização civil formulados pelos Assistentes, por entender que os mesmos não eram tempestivos, nem adequados ao objecto do processo, do que o Recorrente igualmente discorda e o que versa no seu recurso.
7. Conforme resulta do art.º 77.º do C.P.P., a Lei prevê que o pedido de indemnização civil enxertado no processo penal seja sempre deduzido após a dedução da acusação: no próprio despacho, se for formulado pelo Ministério Público ou após a notificação desse despacho, se for formulado pelo lesado.
8. A formulação de pedido de indemnização civil em processo penal tem subjacente a verificação de crime e a consequente imputação dos factos ilícitos que o consubstanciam a um determinado agente.
9. Portanto, importa que exista previamente essa imputação e a fixação do objecto do processo, através do despacho de Acusação, para que então exista fundamento legal para a dedução de pedido de indemnização civil.
10. Assim, e no que a esta questão diz respeito, cremos que bem andou a Mma. Juiz a quo ao rejeitar, nomeadamente por extemporaneidade e por não se revelarem adequados ao objecto do processo, os pedidos de indemnização civil deduzidos nos autos, termos que que tal despacho deverá ser mantido, nessa parte.
*
Nesta Relação, ao Digna Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto Parecer no sentido da total improcedência do recurso.
Efectuado o exame preliminar, foram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
* * *
Fundamentação
A
decisão sob recurso
é a seguinte:
A 21.03.2023 o assistente AA veio deduzir acusação particular contra o arguido CC imputando-lhe a prática de um crime de difamação, previsto e punido pelo artigo 180.º, do Código Penal. O Ministério Público acompanhou a acusação particular.
Nos termos do disposto na al. a), do n.º 2, do artigo 311.º, do Código de Processo Penal, “Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido: a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;” Esclarecendo as als. b) e d, do n.º 3, do mesmo artigo, que se considera a acusação manifestamente infundada quando não contenha a narração dos factos ou se os factos não constituírem crime.
No que respeita à narração dos factos, preceitua a al. b), do n.º 3, do artigo 283.º, do Código de Processo Penal, que a acusação deve conter a “narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada”.
A indicação precisa e discriminada dos elementos indicados na norma do artigo 283.º, n.º 3, do Código Penal, constitui, também, elemento fundamental para garantia do direito de defesa do arguido, que só poderá ser efetivo com o adequado conhecimento dos factos imputados, das normas que integrem e das consequências sancionatórias que determinem.
A indicação dos factos imputados com menção das provas obtidas é uma exigência em tributo aos mais elementares princípios que devem reger um direito de carácter sancionatório e que têm a ver sobretudo com garantias mínimas relacionadas desde logo com o direito de defesa, consagrado na Constituição da República Portuguesa – cfr. art.º 32.°. Entre essas garantias mínimas de defesa, avulta, a de “serem conhecidos os factos que são imputados ao arguido, pois sem que os mesmos estejam estabelecidos não é possível avaliar a justiça da condenação, fica inviabilizado o direito ao recurso e não há salvaguarda do ne bis in idem” - cf. Ac. deste STJ de 21-09-2006, Proc. n.º 3200/06 - 5.ª.
Descendo ao caso dos presentes autos, verifica-se que a acusação particular não contém a descrição de factos, atribuídos ao arguido, que preencham os elementos do tipo de crime que lhe é imputado. De facto, analisada a mesma à luz dos considerandos supra expostos, verifica-se que não indica todos os factos que se exigiria para que se possa concluir pelo preenchimento do crime em causa, ou de qualquer outro. Na verdade, da acusação particular consta que o arguido escreveu um artigo publicado num blog e no Facebook em que anexa documentos onde estão dados pessoais do assistente que merecem proteção/privacidade. Refere-se ainda na acusação particular que o blog onde tais documentos foram publicados incita ao ódio e à intolerância, num permanente discurso de violência, e a título de exemplo cita parte de uma publicação feita no blogue com expressões que se podem entender, de facto, como injuriosas, mas não atribui tal publicação, nem qualquer outra de idêntico cariz, ao arguido.
Não se pode, pois, ter como implícita ou subentendida a descrição dos factos que preencham o elemento do tipo. Não há lugar à existência de "factos implícitos", mas apenas a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena. Desta forma, não se poderá concluir pela existência de um ilícito penal.
Por fim, cumpre referir que não é admissível ao juiz ordenar qualquer convite ao aperfeiçoamento ou correção de uma acusação, formal ou substancialmente deficiente (neste sentido, Acórdão da Relação de Lisboa, de 10/10/2002, Col. de Jur., ano XXVII, tomo IV, pág. 132).
Pelo exposto, e ao abrigo do disposto no artigo 311º, nº 2, alínea a) e nº 3, alínea b), considero a acusação particular apresentada pelo assistente manifestamente infundada e, consequentemente, rejeito a mesma.
(…)
Quanto aos pedidos de indemnização civil apresentados pelos assistentes nos autos a 27.10.2020.
Nos termos do artigo 71.º do Código de Processo Penal e em conformidade com o princípio da adesão que aí se consagra, deve o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime ser deduzido no âmbito do processo penal em que se aprecia a responsabilidade criminal emergente da infracção cometida.
Pressuposto da possibilidade de apreciação do pedido cível deduzido em processo penal é que o facto constitutivo da sentença condenatória em matéria de responsabilidade civil se possa incluir no âmbito do facto criminoso que é imputado ao arguido, de tal forma que, se não existirem ou simplesmente não se provarem os pressupostos da punição penal, a condenação em indemnização civil possa ainda subsistir sustentada na verificação dos pressupostos da ilicitude civil permitida pela apreciação da realidade factual em causa. Assim, como bem explica o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13.05.2020, Rel. Maria Joana Grácio, “a dedução do pedido de indemnização civil pressupõe que no respectivo processo penal seja exercida acção penal com dedução de acusação com imputação de qualquer crime ao arguido que seja suporte do pedido cível, pois só assim este pode aderir à acção penal”.
Também resulta do artigo 77.º, do Código de Processo Penal que “1 - Quando apresentado pelo Ministério Público ou pelo assistente, o pedido é deduzido na acusação ou, em requerimento articulado, no prazo em que esta deve ser formulada. 2 - O lesado que tiver manifestado o propósito de deduzir pedido de indemnização civil, nos termos do n.º 2 do artigo 75.º, é notificado do despacho de acusação, ou, não o havendo, do despacho de pronúncia, se a ele houver lugar, para, querendo, deduzir o pedido, em requerimento articulado, no prazo de 20 dias. 3 - Se não tiver manifestado o propósito de deduzir pedido de indemnização ou se não tiver sido notificado nos termos do número anterior, o lesado pode deduzir o pedido até 20 dias depois de ao arguido ser notificado o despacho de acusação ou, se o não houver, o despacho de pronúncia.”
Ora, no caso dos autos os queixosos, agora assistentes, apresentaram queixa a 02.03.2020, e a 27.10.2020 já estavam a apresentar pedido de indemnização civil.
Acontece que a acusação do Ministério Público só foi deduzida a 14.07.2023 e a acusação particular, agora rejeitada, só foi deduzida a 21.03.2023. Assim, concluímos que os assistentes quando deduziram o pedido de indemnização civil ainda não tinham acusação com que o conformar nem se poderia falar naquela data em estar verificado o princípio da adesão previsto no artigo 71.º, do Código de Processo Penal.
Assim, por não ser tempestivo nem adequado ao objecto do processo decide o Tribunal rejeitar liminarmente os pedidos de indemnização civil apresentados pelos assistentes.
* * *
Apreciando…
De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (
in
D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso.
Assim, cumpre averiguar se existe fundamento para a rejeição da acusação particular, por manifestamente infundada, e se os pedidos de indemnização civil deduzidos devem ser rejeitados por intempestivos.
*
Da rejeição da acusação particular por manifestamente infundada
…
Segue-se, nesta parte, o projeto inicial apresentado pela relatora, por corresponder à solução que obteve vencimento.
Assim,
Alega o assistente/recorrente que a acusação particular contém todos os factos que justificam a aplicação de pena ao arguido e que são configuradores dos elementos objetivos e subjetivos dos referidos crimes. E diz que ainda que se entenda que a publicação de 3.02.2020, constante do doc. 4 junto aos autos com a acusação particular, não foi expressamente atribuída ao arguido, tal não é causa de “nulidade” ou de “rejeição” da acusação porque poderá sempre ser colmatada, com recurso ao disposto no art.º 358º do Cód. Proc. Penal, com a simples reprodução em julgamento dos elementos de prova que constam da peça acusatória.
Alega também que a invocada nulidade da acusação particular (por referência ao disposto no art.º 283º, nº 3, do Cód. Proc. Penal), não integra qualquer das nulidades “insanáveis” previstas no art.º 119º do Cód. Proc. Penal e por isso não poderia ser oficiosamente declarada, como foi.
De acordo com as disposições conjugadas dos arts. 283º, nº 3, alínea b) e 285º, nº 3, ambos do Cód. Proc. Penal, a acusação particular
“deve conter, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada”
.
E, nos termos do nº 2 do art.º 311º do Cód. Proc. Penal, “
se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido: a) de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada
”, esclarecendo o nº 3 que a acusação se considera manifestamente infundada: “
b) quando não contenha a narração dos factos
”; “
d) se os factos não constituírem crime
”.
No caso em análise, tendo
o processo sido remetido para julgamento sem ter havido instrução
, impunha-se, legal e oficiosamente, que o Julgador proferisse despacho nos termos do art.º 311º do Cód. Proc. Penal, nomeadamente nos termos do nº 2, apreciando a acusação e rejeitando-a se a considerasse
manifestamente infundada
, como foi o caso.
Não está em causa, nesta rejeição, a apreciação da nulidade da acusação, mas o facto de se ter considerado que a mesma era
manifestamente infundada
.
Assim, não pode ser chamado à colação o disposto no art.º 119º do Cód. Proc. Penal (como faz o recorrente), posto que a acusação foi rejeitada com base em imposição legal estabelecida no art.º 311º do Cód. Proc. Penal.
Vejamos, então, se a acusação particular pode ser considerada
manifestamente infundada
.
O Tribunal
a quo
rejeitou a acusação particular por
manifestamente infundada
entendendo que a mesma não continha a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena.
Cumpre antes de mais esclarecer que só uma falta grave, que seja susceptível de comprometer o êxito da acusação e que obste a uma apreciação de mérito, justifica a rejeição liminar.
Ou seja, a acusação só poderá considerar-se
manifestamente infundada
se se verificarem os “
vícios estruturais graves
” enunciados no nº 3 do citado art.º 311º (assim Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 3ª edição actualizada, 2009, p. 789), se não for apta para servir de base a uma sentença condenatória, o que desde logo afasta a possibilidade de rejeição liminar da acusação por
manifestamente infundada
quando os vícios de que eventualmente padeça não sejam
estruturais
e
graves
.
Acresce que, para a acusação se considerar manifestamente infundada nos termos da alínea d) do nº 3 do art.º 311º do Cód. Proc. Penal, é necessário que
os factos não constituam crime
, podendo, obviamente, constituir crime diverso do que é imputado na acusação – caso em que, no decurso do julgamento, se procederá como determinam os arts. 358º e 359º do Cód. Proc. Penal.
No caso concreto, a questão está em saber se os factos constantes da acusação constituem crime e se podem ser imputados ao denunciado.
A acusação – particular – imputa ao arguido, além do mais (no mais visando a imputação de crimes de natureza semi-pública por que o Ministério Público veio a deduzir acusação), a prática de crimes de difamação, p. e p. pelo art.º 180º do Cód. Penal, com a agravação constante do art.º 183º do mesmo Código.
Não estando neste momento processual em causa a existência, ou não, de indícios suficientes da prática pelo arguido dos factos imputados, a questão centra-se na análise de a acusação (o texto) conter, ou não, todos os elementos típicos do crime de difamação com referência ao agente dos factos.
O crime em causa – previsto no art.º 180º do Cód. Penal – necessita da imputação, ou da reprodução da imputação, mesmo sob a forma de suspeita, de um facto, ou da formulação de um juízo,
ofensivos da honra ou consideração de outra pessoa
.
Honra e consideração são conceitos que não se confundem. A honra tem componente individual ou subjectiva, podendo definir-se como o valor pessoal de cada indivíduo, radicado na sua inviolável dignidade, atributo inato de qualquer pessoa; a consideração envolve uma componente social, devendo entender-se como a reputação que a pessoa tem no seio da comunidade em que se insere.
Assim, a lesão do direito à honra e consideração ocorre quando alguém –
objectivamente determinado
– imputa a outrem um facto, ou formula um juízo, objectivamente adequado a depreciar ou desacreditar, quer individual quer socialmente, a vítima.
Quanto ao tipo subjectivo do ilícito, é ele necessariamente doloso, embora baste o dolo genérico (em qualquer das três modalidades legalmente previstas: directo, necessário ou eventual), sendo assim necessário, mas suficiente, que o agente tenha consciência da aptidão ofensiva das suas palavras ou gestos e ainda assim queira levar a cabo a sua actuação, ou, pelo menos, que admita como possível que essa mesma conduta ofenda a honra e reputação do visado e, não obstante, não se abstenha de agir, conformando-se com essa eventualidade.
E é também necessário que o agente actue de forma consciente, livre e deliberada.
Ora, lida a acusação, verificamos que ali se refere que:
− No passado dia ... de ... de 2020, foi, pela ... (doravante ...), publicado no blogue online denominado “...” um artigo intitulado “... para os utentes do ...”, cujo artigo e respetiva publicação é da autoria do CC, presidente do ...;
− Um dos anexos daquele artigo reproduz uma petição inicial e a cópia da procuração forense que legitima a Advogada signatária da mesma, documento esse que, entre outros, contém elementos como nome completo, naturalidade, morada, número de identificação fiscal e identificação do cartão de cidadão do Assistente;
− No mesmo blogue, a ... de ... de 2020, publicou-se um artigo intitulado “... responde a comunicações do grupo ... e ...”, ao qual foram anexadas duas comunicações trocadas entre o ... e o Assistente AA, artigo esse que, uma vez mais, é da autoria do CC; daquele anexo consta o número de telemóvel do Assistente;
− O acima descrito atenta à confidencialidade dos dados ligados exclusivamente à esfera pessoal do Assistente, isto é, daqueles dados que dizem respeito, entre outros, à respetiva identificação e residência;
− A sua difusão, no contexto que ora nos ocupa, é forçosamente suscetível de causar, concreta e efetivamente, prejuízo à proteção da vida privada e da integridade dos visados;
− Está em causa um blogue que promove o incitamento à hostilidade, ao ódio e à intolerância, com um constante e permanente discurso de violência contra alvos já há muito identificados (a título de exemplo, veja-se o excerto que consta da publicação feita no mesmo blogue a ... de ... de 2020, junto como doc. 4 e cujo conteúdo se deu por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos, intitulada “A mentira compulsiva dos incendiários”): Com este Comunicado, desafiamos os gestores/administradores AA e DD a repetirem, na praça pública, perante a comunicação social, o chorrilho de mentiras que, numa iniciativa de claro terrorismo laboral, proferiram no seu covil de lavagem cerebral de trabalhadores.”;
− As publicações supra referidas foram, igualmente, veiculadas através da rede social Facebook, na página do próprio ..., página essa que conta com mais de 10.000 (dez mil) seguidores;
− Ao agir da forma descrita, o Arguido cometeu, em autoria material e na forma consumada, o crime de difamação, previsto e punido pelo artigo 180.º do Código Penal, provocado através de meios ou em circunstâncias que notoriamente facilitam a sua divulgação, nomeadamente de meios de comunicação social, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 183.º do Código Penal;
− O bem jurídico protegido pelo crime imputado ao Arguido é a honra e preenchidos estão todos os pressupostos da infração, a saber, a imputação a outra pessoa, diante de terceiros, de um facto ofensivo da honra ou consideração do visado, a mera formulação sobre ela de um juízo também ofensivo da sua honra ou consideração, ou ainda a mera reprodução de uma tal imputação ou juízo.
− Quanto aos danos provocados na esfera jurídica do Assistente, sempre se diga que a gravidade do dano depende, por um lado, da intensidade das afirmações feitas e da divulgação que lhes foi dada, e, por outro, da personalidade e funções do visado;
− Sendo inquestionável a intensidade das afirmações proferidas - e mais ainda a gravidade do modo como as mesmas foram divulgadas -, menos dúvidas podem subsistir a respeito do relevo das funções desempenhadas pelo Assistente enquanto gerente da sociedade ...;
− Posto isto, o Assistente sentiu-se profundamente ofendido na sua credibilidade, prestígio, crédito, reputação e imagem;
− Na verdade, o Arguido proferiu, contra o Assistente, expressões manifestamente ofensivas da sua honra e consideração, divulgando-as na internet para que qualquer cidadão as lesse;
− E fê-lo não só na rede social Facebook, como também num blogue de acesso público que, reitere-se, promove o incitamento à hostilidade, ao ódio e à intolerância;
− O Arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, com o intuito, conseguido, de ofender o Assistente na sua integridade moral, bem sabendo que tal conduta era proibida e punida por lei;
− Os factos praticados pelo Arguido são manifestamente ofensivos da honra e consideração do Assistente e, não bastando, foram-no praticados através de meios ou em circunstâncias que notoriamente facilitam a sua divulgação;
− A prática destes factos por via de plataformas com milhares de utilizadores e que promovem o incitamento à hostilidade, ao ódio e à intolerância, com um constante e permanente discurso de violência, foram suficientes para prolongar no tempo a sensação de insegurança, medo e intranquilidade vividas pelo Assistente;
− Face ao exposto, o Arguido cometeu, em autoria material e na forma consumada, pelo menos, o crime de difamação (p. e p. pelos artigos 180.º, n.º 1, e 183.º, n.º 2, do Código Penal), de utilização de dados de forma incompatível com a finalidade da recolha e de desvio de dados, sendo o Assistente a sua vítima (p. e p. pelos artigos 46.º e 48.º da Lei n.º 58/2019, de 08 de agosto);
− Ao atuar da forma supra descrita, o Arguido quis e sabia que a sua conduta era idónea a provocar danos na esfera da vida privada e na integridade do visado.”
Analisando a acusação particular, no que se refere à imputada prática do crime de difamação, verificamos que a mesma descreve que:
- o blogue online denominado “ ...” promove o incitamento à hostilidade, ao ódio e à intolerância, com um constante e permanente discurso de violência contra alvos já há muito identificados (a título de exemplo, veja-se o excerto que consta da publicação feita no mesmo blogue a ... de ... de 2020, junto como doc. 4 e cujo conteúdo se deu por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos, intitulada “A mentira compulsiva dos incendiários”): Com este Comunicado, desafiamos os gestores/administradores AA e DD a repetirem, na praça pública, perante a comunicação social, o chorrilho de mentiras que, numa iniciativa de claro terrorismo laboral, proferiram no seu covil de lavagem cerebral de trabalhadores”;
− As publicações supra referidas foram, igualmente, veiculadas através da rede social Facebook, na página do próprio ..., página essa que conta com mais de 10.000 (dez mil) seguidores;
− Ao agir da forma descrita, o Arguido cometeu, em autoria material e na forma consumada, o crime de difamação, previsto e punido pelo artigo 180.º do Código Penal, provocado através de meios ou em circunstâncias que notoriamente facilitam a sua divulgação, nomeadamente de meios de comunicação social, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 183.º do Código Penal;
− Na verdade, o Arguido proferiu, contra o Assistente, expressões manifestamente ofensivas da sua honra e consideração, divulgando-as na internet para que qualquer cidadão as lesse e fê-lo não só na rede social Facebook, como também num blogue de acesso público que, reitere-se, promove o incitamento à hostilidade, ao ódio e à intolerância;
− O Arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, com o intuito, conseguido, de ofender o Assistente na sua integridade moral, bem sabendo que tal conduta era proibida e punida por lei.
Da análise da acusação não resulta que a mesma descreva factos, atribuídos ao arguido, que preencham os elementos do tipo do crime de difamação que lhe é imputado, ou de qualquer outro.
Efectivamente, a acusação particular, depois de dizer que o arguido escreveu um artigo publicado num blog e no Facebook em que anexa documentos com dados pessoais do assistente que merecem proteção/privacidade, limita-se a afirmar que o blog onde tais documentos foram publicados incita ao ódio e à intolerância, num permanente discurso de violência, e a título de exemplo reproduz um excerto do
doc. 4
, publicado em dia diverso daquele em que foi realizado o escrito que anexou documentos com dados pessoais do assistente (“
cujo conteúdo…dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos
”) onde o recorrente e DD são desafiados “
a repetirem, na praça pública, perante a comunicação social, o chorrilho de mentiras que, numa iniciativa de claro terrorismo laboral, proferiram no seu covil de lavagem cerebral de trabalhadores
”.
Ora a imputação de incitamento ao ódio e à intolerância, num permanente discurso de violência, sem que se reproduzam os factos de onde se pode concluir tal incitamento, é absolutamente anódina. Já o excerto mencionado, ainda que proferido num contexto de luta sindical, poderia ser eventualmente considerado ofensivo (não cabendo agora esse tipo de ponderação) mas ainda que o fosse, não é atribuído na acusação particular ao arguido CC, nem a ninguém.
Resta, na acusação particular, a narração genérica de que o arguido proferiu, contra o assistente, expressões manifestamente ofensivas da sua honra e consideração, divulgando-as na internet para que qualquer cidadão as lesse, agindo livre, deliberada e conscientemente, com o intuito, conseguido, de ofender o assistente na sua integridade moral, bem sabendo que tal conduta era proibida e punida por lei. Contudo, estas generalidades, não reportadas às concretas expressões que o arguido teria proferido contra o assistente, são também elas anódinas.
Lembra a Ex.ma PGA, no seu douto Parecer que,
como refere Gerhard Zuberbier, citado a fls. 1197 no Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo III, edição da Almedina, em anotação ao artigo 283º, “A narração dos factos é o ponto fulcral ou o coração da acusação: ela deve ser suficientemente clara e percetível não apenas, por um lado, para que o arguido possa saber com precisão, do que vem acusado, mas igualmente por outro lado, para que o objeto do processo fique claramente definido e fixado.” E refere-se ainda, justamente, naquela anotação: “efetuar meras remissões para documentos juntos aos autos, sem referência expressa ao seu conteúdo – e principalmente, sem referir expressamente o seu significado (…) – não pode então constituir (…) uma mera “simplificação” da acusação (…) ainda compatível com aquelas exigências de clareza e narração sintética dos factos imputados ao arguido(...)” – que o artigo 283º nº. 3 al. b) do Código de Processo Penal, aplicável por força do artigo 285º nº 3 do mesmo código, reclama
.
Tal como se lê no despacho recorrido “
Não se pode, pois, ter como implícita ou subentendida a descrição dos factos que preencham o elemento do tipo. Não há lugar à existência de "factos implícitos", mas apenas a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena. Desta forma, não se poderá concluir pela existência de um ilícito penal”.
Defende o recorrente que qualquer deficiência da acusação particular, nomeadamente a imputação, ao arguido, da expressão ofensiva, poderá sempre ser colmatada, com recurso ao disposto no art.º 358º do Cód. Proc. Penal, com a simples reprodução em julgamento dos elementos de prova que constam da peça acusatória.
Não tem razão. O disposto no art.º 358º do Cód. Proc. Penal só se aplica perante uma alteração não substancial de factos, ou seja, se a deficiência a colmatar não constituir uma falha grave, susceptível de comprometer o êxito da acusação, obstando a uma apreciação de mérito.
Contudo a falta de imputação, ao arguido, de concretos factos susceptíveis de fundamentarem uma condenação, é uma falha grave e estrutural, com virtualidade para rejeição liminar da acusação, na medida em que esta não surge como apta para servir de base à aplicação de uma pena ao agente.
E porque se trata de um vício estrutural e grave, também não há lugar a convite para correcção da acusação particular, sob pena de violação do princípio do acusatório constitucionalmente consagrado.
Pelo que bem andou a Mma. Juiz
a quo
ao não receber a acusação particular por manifestamente infundada.
Da extemporaneidade dos pedidos de indemnização civil
…
Alega o assistente/recorrente que em 16.10.2020 foi notificado, expressamente, da possibilidade de, querendo, deduzir pedido de indemnização civil, pelo que uma ulterior rejeição do pedido por extemporaneidade do prazo, com fundamento na sua apresentação prematura, defrauda as expectativas de regularidade do acto geradas pela notificação, sendo incompatível com o direito do assistente a um processo equitativo e com o próprio princípio da confiança, dado o consagrado sistema da adesão obrigatória (arts. 71º ss do Cód. Proc. Penal).
Refere que a admissão do pedido indemnizatório em momento anterior aos previstos no art.º 77º do Cód. Proc. Penal não afecta os direitos do arguido e que ainda que possa estar em causa a prática prematura de um acto, esta intempestividade por antecipação não pode culminar na sua preclusão temporal por esgotamento do prazo.
Assiste-lhe, no nosso entender, razão, tal como passaremos a demonstrar.
De facto, compulsados os autos, verifica-se que:
- a 16.10.2020 foram os eventuais lesados notificados, expressamente, da possibilidade de, querendo, deduzirem pedido de indemnização civil;
- o pedido de indemnização civil foi apresentado pelo recorrente em 27.10.2020 (à semelhança daquele outro que de igual modo foi apresentado
não pelo recorrente
, mas pelo assistente EE);
- a acusação do Ministério Público foi deduzida a 14.07.2023 e a acusação particular (rejeitada) foi deduzida a 21.03.2023.
Quanto aos prazos para dedução do pedido de indemnização civil preceitua o art.º 77º do Cód. Proc. Penal que:
“
1 - Quando apresentado pelo Ministério Público ou pelo assistente, o pedido é deduzido na acusação ou, em requerimento articulado, no prazo em que esta deve ser formulada.
2 - O lesado que tiver manifestado o propósito de deduzir pedido de indemnização civil, nos termos do n.º 2 do artigo 75.º, é notificado do despacho de acusação, ou, não o havendo, do despacho de pronúncia, se a ele houver lugar, para, querendo, deduzir o pedido, em requerimento articulado, no prazo de 20 dias.
3 - Se não tiver manifestado o propósito de deduzir pedido de indemnização ou se não tiver sido notificado nos termos do número anterior, o lesado pode deduzir o pedido até 20 dias depois de ao arguido ser notificado o despacho de acusação ou, se o não houver, o despacho de pronúncia (…)
”.
Ou seja, da leitura deste preceito legal não resulta que a lei tenha imposto qualquer limite quanto ao início do prazo de apresentação do pedido de indemnização civil, mas tão só quanto ao seu termo.
Tanto significa que o pedido de indemnização civil podia ser deduzido pelo lesado desde o início do inquérito até ao fim do prazo referido e demarcado pelo citado art.º 77.º
Não podia era ultrapassar tal prazo, como de facto não ultrapassou (veja-se, neste sentido, o Ac. da Relação de Évora de 30.10.2007, proferido no âmbito do processo 1823/07-1, disponível em www.dgsi.pt).
Em abono desta nossa posição, leia-se Paulo Pinto Albuquerque, em anotação ao art.º 77º, onde então refere:
“2. O lesado pode deduzir o pedido
desde a abertura
do inquérito (desde logo, acórdão do TRE, de 19.6.1990, in CJ, XV, 3, 290, acórdão do TRP, de 4.11.1992, in CJ, XVII, 5, 247, e acórdão do TRL, de 23.9.1998, in CJ, XXIII, 4, 142, cujo entendimento é admitido pelo acórdão do TC n.º 611/94), competindo ao juiz de julgamento decidir em que medida o pedido formulado antes da acusação ou da pronúncia ultrapassa o objecto destas (acórdão do TRG, de 17.6 .2002, in CJ, XXVII, 3, 295)”
(in Comentário do Código de Processo Penal -, Universidade Católica Editora, 3ª edição atualizada, abril 2009, 224-225)..
Em conclusão: o pedido de indemnização civil apresentado pelo recorrente nos autos no passado dia 27.10.2020 é
tempestivo
.
Coisa diversa, e de não menos importância, é se de facto o pedido de indemnização civil formulado pelo recorrente cabe ainda na matéria levada a julgamento, quando é certo que viu rejeitada a acusação particular que procurava dar-lhe suporte.
É que a formulação de pedido de indemnização civil em processo penal tem subjacente a verificação de crime, isto é, apenas o facto criminoso fundamenta o direito de pedir o ressarcimento dos danos causados por esse facto,
Ou seja, haverá efetivamente de tomar posição sobre em que medida o pedido de indemnização civil formulado nos presentes autos pelo recorrente cabe ainda na matéria levada a julgamento, quando é certo ter sido deduzida acusação pelo Ministério Público contra os arguidos/demandados pela prática de crimes de natureza semi-pública.
Ora, olhando à sua formulação afigura-se-nos que mesmo parcialmente é de considerar que o facto constitutivo de uma eventual sentença condenatória em matéria de responsabilidade civil se poderá incluir no âmbito do facto criminoso que é imputado aos arguidos em sede de acusação pública, porquanto a mesma abarca ainda a factualidade relativa aos crimes pelos quais o Ministério Público deduziu acusação - crimes de utilização de dados de forma incompatível com a finalidade da recolha, p. e p. pelo art.º 46.º, n.º 1 da Lei n.º 58/2019, de 08 de Agosto.
Pelo que mal mandou o despacho recorrido ao rejeitar os pedidos de indemnização civil.
De qualquer modo, apenas se impõe a admissão daquele que foi formulado pelo recorrente, porquanto só a ele lhe assiste legitimidade no presente recurso, mostrando-se transitada a decisão no respeitante à rejeição do pedido formulado pelo assistente EE.
* * *
Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em
julgar parcialmente procedente
o recurso,
revogando
, em consequência, o despacho recorrido na parte que rejeitou o pedido de indemnização apresentado pelo assistente
AA
e, em sua substituição, ordenar a sua admissão para julgamento, confirmando, no mais, a decisão recorrida.
Sem custas.
Notifique.
Lisboa, 21.01.2025
(processado e revisto pela 1ª Adjunta por vencimento da Relatora)
Ester Pacheco dos Santos
João Grilo Amaral
Alda Tomé Casimiro, vencida nos seguintes termos:
É intempestivo, e deve ser rejeitado como tal, o pedido de indemnização civil deduzido antes dos prazos definidos no art.º 77º do Cód. Proc. Penal.
Independentemente de afectar, ou não, os direitos do demandado, só após a dedução da acusação é que faz sentido a dedução de um pedido de indemnização civil no âmbito da adesão à acção penal. Efectivamente, a formulação de pedido de indemnização civil em processo penal tem subjacente a verificação de crime, é o facto criminoso que fundamenta o direito de pedir o ressarcimento dos danos causados por esse facto, pelo que só após a fixação e delimitação do objecto do processo, através do despacho de acusação, é que existe fundamento legal para a dedução de pedido de indemnização civil e é possível delimitar os danos que se visam ressarcir.
Uma notificação em cumprimento do disposto no nº 1 do art.º 75º do Cód. Proc. Penal, não pode ser confundida com uma notificação para deduzir pedido de indemnização civil e, assim, também não defrauda as expectativas de regularidade do acto geradas pela notificação, nem é incompatível com o direito do assistente a um processo equitativo e com o próprio princípio da confiança. As normas processuais, enquanto reguladoras da tramitação dos autos, não podem ser postergadas – nomeadamente as atinentes a prazos – sob pena de se compaginar com o caos. O direito a um processo equitativo e o princípio da confiança, também impõem a observância das regras processuais e têm que ser entendidos como compreendidos dentro dos limites processualmente definidos.
Mais, uma decisão de intempestividade (por antecipação), ao contrário do que alega o recorrente, não culmina na sua preclusão temporal, pois que um ulterior pedido, desde que efectuado nos prazos previstos no art.º 77º do Cód. Proc. Penal, sempre seria tomado em consideração nos autos.
Alda Tomé Casimiro
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TRL
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https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/24d5872dc1b92aff80258c2200338c33?OpenDocument
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1,738,800,000,000
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RESOLVIDO
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10049/19.4T9LSB-C.L1-9
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10049/19.4T9LSB-C.L1-9
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SIMONE ABRANTES DE ALMEIDA PEREIRA
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1. O princípio geral de que a cada crime corresponde um processo [para o qual é competente o tribunal definido em função das regras de competência material, funcional e territorial] pode sofrer desvio para permitir a organização de um só processo para uma pluralidade de crimes [seja
ab initio
ou por via da apensação – artigo 29º do CPP], desde que entre eles exista uma ligação que torne conveniente a sua apreciação conjunta.
2. A ligação que releva para efeitos da referida apreciação conjunta é a definida nos vários critérios elencados nos artigos 24º e 25º do CPP, que preveem as regras da competência por conexão.
3. Verificados os pressupostos da conexão processual, correspondendo aos crimes imputados a mesma moldura penal e não estando o arguido preso à ordem de qualquer processo, é competente para o julgamento dos processos em conexão, o tribunal titular do processo onde primeiramente houve notícia do crime.
4. A
“notícia do crime”
ocorre no momento em que a denúncia é formalizada e não, necessariamente, quando os processos são autuados.
5. Tendo o processo nº
10049/19.4T9LSB
sido instaurado com base numa certidão extraída do processo nº 7242/18.0T9LSB, o qual foi autuado a 11 de setembro de 2018, na sequência de uma certidão extraída do processo 2073/16.5BELSB, do Tribunal Central Administrativo Sul, dando notícia de factos suscetíveis de integrar o crime de difamação, recebida nos serviços do DIAP de Lisboa a 7 de setembro de 2018, é esse o processo em que primeiramente ocorreu a notícia do crime.
|
[
"CONFLITO DE COMPETÊNCIA",
"COMPETÊNCIA POR CONEXÃO",
"NOTÍCIA DO CRIME"
] |
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa
I.
Relatório
:
Na sequência de despacho judicial de 7 de Fevereiro de 2025 [complementado por despacho de 17.02.2025], proferido no âmbito do processo nº 9636/19.5 T9LSB do Juízo Local Criminal de Lisboa [Juiz 10], que declarou a nulidade do despacho judicial de 7 de Dezembro de 2022, no âmbito do qual havia sido determinada a apensação aos autos nº 10049/19.4 T9LSB do processo nº 9636/19.5 T9LSB [com fundamento na verificação de uma situação de conexão processual], foi proferido despacho judicial 14.02.2025, no âmbito do processo 10049/19.4 T9LSB-B, que corre termos no Juízo Local Criminal de Lisboa [Juiz 13], que, após declaração de incompetência, suscitou o presente conflito negativo de competência, que opõe este Tribunal e o Tribunal correspondente ao Juízo Local Criminal de Lisboa [Juiz 10], com fundamento em ambos os Tribunais se declararem incompetentes para julgar os arguidos pela pática dos crimes imputados no âmbito das acusações deduzidas nos processos nºs 10049/19.4 T9LSB e 9636/19.5 T9LSB.
*
Os despachos de declaração de nulidade de 7 de Fevereiro de 2025, complementado pelo despacho de 17.02.2025, proferidos pelo Juízo Local Criminal de Lisboa [Juiz 10] e declaração de incompetência proferida pelo Juiz 13, do Juízo Local Criminal de Lisboa, transitaram em julgado, daí decorrendo um conflito negativo de competência (artigo 34º, nº 1 do CPP).
*
Neste Tribunal foi cumprido o disposto no artigo 36º, nº 1 do CPP, tendo os titulares dos Juízos 10 e 13 do Tribunal Local Criminal de Lisboa, mantido as posições anteriormente assumidas e o Ministério Público pugnado, no seu parecer, pela atribuição da competência ao Juízo Local Criminal de Lisboa [juiz 13], com a seguinte argumentação
[transcrição integral]
:
«Suscita-se nos presentes autos a resolução do conflito negativo de competência que opõe as Mmas. Juízas do Juízo Local Criminal de Lisboa – Juiz 13 e do Juízo Local Criminal de Lisboa – Juiz 10, porquanto ambas se declaram incompetentes para julgar os arguidos pela prática dos crimes descritos nas acusações deduzidas no âmbito dos processos nºs. 10049/19.4T9LSB e 9636/19.5T9LSB.
De acordo com os elementos disponíveis, no processo nº 9636/19.5T9LSB, do Juízo Local Criminal de Lisboa – Juiz 10, por despacho de 7 de dezembro de 2022, foi determinada a apensação àqueles autos do processo nº 10049/19.4T9LSB atenta a verificação de uma situação de conexão processual.
Em execução de tal despacho, a 15 de dezembro de 2022 o processo nº 10049/19.4T9LSB foi apenso ao processo nº 9636/19.5T9LSB.
No entanto, a 7 de fevereiro de 2025 a Mma. Juiz do Juízo Local Criminal de Lisboa – Juiz 10, titular do processo nº 9636/19.5T9LSB, na sequência de um requerimento do arguido AA, veio a declarar a nulidade do despacho de 7 de dezembro de 2022, ao abrigo do disposto no art. 119.º, alínea e), do Código de Processo Penal, por entender que aqueles autos “deveriam ter sido apensados ao processo nº 10049/19.4T9LSB, sendo competente para julgar ambos os processos – o que decorre das regras da competência por conexão – o Juiz 13 deste Juízo Local Criminal de Lisboa”.
Por seu turno, a Mma. Juiz do Juízo Local Criminal de Lisboa – Juiz 13, titular do processo nº 10049/19.4T9LSB, por despacho de declarou-se incompetente para o julgamento dos processos apensados por considerar que “no processo 9636/19.5T9LSB a notícia do crime, a autuação do processo, se deu a 04.12.2019, e no processo 10049/19.4T9LSB a autuação foi a 16.12.2019, facilmente se conclui que é competente aquele processo (9636/19.5T9LSB) e é nesse que devem ser apensados os autos, tal como determinado no despacho de 07.12.2022”.
Para efeito de determinação por conexão a “notícia do crime” a que alude o art. 28.º, alínea c), do Código de Processo Penal, ocorre no momento em que a denúncia é formalizada e não quando ocorre a autuação e registo do processo nos serviços do Ministério Público.
No caso em apreço, conforme se esclarece no despacho de 17 de fevereiro de 2025, “as ofendidas BB (processo 10049/19.4T9LSB) e CC (processo 9636/19.5T9LSB), ambas Magistradas Judiciais (…) tiveram conhecimento (notícia) de cada um dos crimes na data da sua prática, sendo que onde houve primeiramente a notícia foi relativamente aos factos do processo 10049/19.4T9LSB (factos mais antigos), que, como dissemos, até deram primeiramente origem ao processo 7242/18.0T9LSB”.
Com efeito, o processo nº 10049/19.4T9LSB foi instaurado com base em certidão extraída do processo nº 7242/18.0T9LSB, o qual foi autuado a 11 de setembro de 2018, na sequência de uma certidão extraída do processo 2073/16.5BELSB, do Tribunal Central Administrativo Sul, dando notícia de factos suscetíveis de integrar o crime de difamação, recebida nos serviços do DIAP de Lisboa a 7 de setembro de 2018.
Assim sendo, entendemos que o presente conflito será de dirimir deferindo a competência ao Juízo Local Criminal de Lisboa – Juiz 13.».
II.
Com relevância para a apreciação do conflito sujeito à nossa apreciação, decorre dos autos que
:
• O processo nº 10049/19.4T9LSB, autuado em 16.12.2029, foi instaurado com base em certidão extraída do processo nº 7242/18.0T9LSB, o qual foi autuado a 11 de setembro de 2018, na sequência de uma certidão extraída do processo 2073/16.5BELSB, do Tribunal Central Administrativo Sul, dando notícia de factos suscetíveis de integrar o crime de difamação, recebida nos serviços do DIAP de Lisboa a 7 de setembro de 2018;
• O processo 9636/19.5 T9LSB foi autuado em 04.12.2019;
• Na sequência de promoção do Ministério Público de 24.11.2024 no âmbito do processo 9636/19.5 T9LSB, veio a ser proferido despacho judicial datado de 07.12.2022, transitado em julgado, com o seguinte teor:
«Correndo, no Juiz 13 deste Juízo Local Criminal, o processo n.º 10049/19.4T9LSB, em que o arguido é idêntico ao dos presentes autos, sendo uma das ofendidas também a mesma e estando ambos os processos na mesma fase processual, por despacho de 03-11-2022, foi solicitado para consulta o referido processo e aberta vista ao Ministério Público para se pronunciar.
Neste seguimento, por despacho datado de 24-11-2022, veio o Ministério Público promover a apensação do presente processo com o proc. n.º 10049/19.4T9LSB, ao abrigo do disposto nos artigos 25.º, 24.º, n.º 1, al. a) e 2, 26.º, 28.º, alínea c) e 29.º, todos do Código de Processo Penal.
Cumpre apreciar e decidir.
Dispõe o artigo 25.º do Código de Processo Penal que “para além dos casos previstos no artigo anterior, há ainda conexão de processos quando o mesmo agente tiver cometido vários crimes cujo conhecimento seja da competência de tribunais com sede na mesma comarca, nos termos dos artigos 19.º e seguintes”.
Desta forma, para que haja conexão de processos necessário é que exista: (i) unidade de acusado e (ii) pluralidade de crimes cometidos pelo mesmo (iii) para cuja apreciação sejam competentes tribunais com sede na mesma comarca.
Ora, tanto no processo n.º 10049/19.4T9LSB, como no processo n.º 7394/20.0T9LSB já apensado ao primeiro, como nos presentes autos, trata-se do mesmo Arguido, estando o mesmo acusado por vários crimes (dois crimes de difamação agravada, um crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva agravado e um crime de injúria agravada com publicidade).
Ademais, nos três processos, o Tribunal competente tem sede na mesma comarca, isto é, na Comarca de Lisboa, nos termos do artigo 19.º do Código Penal.
Desta forma, entende-se estarem verificados os pressupostos de conexão do artigo 25.º do Código de Processo Penal que, tal como afirmado no Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo I, Almedina, 2019, p. 366, “possibilita uma melhor avaliação da personalidade do agente, potencia a economia e a celeridade processual e no caso de condenação, uma pronta definição do seu estatuto jurídico nos casos em que lhe é aplicada uma pena única (artigo 77.º CP).”
Por último, também o pressuposto do artigo 24.º, n.º 2 do Código de Processo Penal se encontra verificado, estando todos os processos na mesma fase: a fase de julgamento.
Assim, verificados os pressupostos da conexão processual entre estes autos e o processo n.º 10049/19.4T9LSB (Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Local Criminal de Lisboa – Juiz 13), importa apurar qual é o processo competente para o julgamento.
Resulta do preceituado no artigo 28.º, alínea c), do Código de Processo Penal, uma vez que os crimes aqui em causa são todos puníveis com a mesma moldura penal, e dado que o arguido não se encontra preso à ordem de qualquer destes processos, que o tribunal competente para o julgamento dos processos em conexão é aquele que houve primeiro notícia do crime.
Foi nestes autos que o arguido se encontra acusado por crime de que houve primeiro notícia, cfr. se constata logo da data de autuação de cada um dos processos, pelo que é nestes autos que a conexão deve operar.
Nestes termos, por existir conexão entre os processos referidos, determina- se a apensação dos autos ora apresentados a estes autos, nos quais a conexão opera.
Após trânsito da presente decisão, solicite aqueles autos a título definitivo e proceda-se à apensação.».
• Em execução de tal despacho, em 15 de Dezembro de 2022, o processo n.º 10049/19.4T9LSB foi apenso ao 9636/19.5 T9LSB;
• Por despacho judicial de 7 de Fevereiro de 2025 [complementado por despacho de 17.02.2025], proferido no âmbito do processo nº 9636/19.5 T9LSB do Juízo Local Criminal de Lisboa [Juiz 10], foi declada a nulidade do despacho judicial de 7 de Dezembro de 2022, no âmbito do qual havia sido determinada a apensação aos autos nº 10049/19.4 T9LSB do processo nº 9636/19.5 T9LSB;
• Na sequência de tal declaração de nulidade, a titular do processo n.º 10049/19.4T9LSB declarou-se incompetente para o julgamento dos processos apensados, com fundamento no facto de
“no processo 9636/19.5T9LSB a notícia do crime, a autuação do processo, se deu a 04.12.2019, e no processo 10049/19.4T9LSB a autuação foi a 16.12.2019, facilmente se conclui que é competente aquele processo (9636/19.5T9LSB) e é nesse que devem ser apensados os autos, tal como determinado no despacho de 07.12.2022”.
III.
Apreciação
:
Nos termos da regra geral constante do art.º 19.º, n.º 1, do Código de Processo Penal "
É competente para conhecer de um crime o tribunal em cuja área se tiver verificado a consumação
", sendo com base nos factos descritos na acusação – que fixa em primeira linha o objecto do processo – que deve ser decidida a questão da competência [Ac. do STJ, de 4 de Julho de 2007, proc. 1502/07 – 3ª Secção].
O princípio geral de que a cada crime corresponde um processo [para o qual é competente o tribunal definido em função das regras de competência material, funcional e territorial] pode sofrer desvio para permitir a organização de um só processo para uma pluralidade de crimes [seja
ab initio
ou por via da apensação – artigo 29º do CPP], desde que entre eles exista uma ligação que torne conveniente a sua apreciação conjunta.
A ligação que releva para efeitos da referida apreciação conjunta é a definida nos vários critérios elencados nos artigos 24º e 25º do CPP, que preveem as regras da competência por conexão.
No caso em apreciação, dos Tribunais conflituantes estão de acordo quanto à verificação dos pressupostos da conexão, que determinam o julgamento conjunto dos processos nºs
9636/19.5T9LSB e 10049/19.4T9LSB.
O dissenso reconduz-se apenas à questão de saber qual dos processos deve passar a ser o principal, isto é, qual deverá ser apensado e qual deverá receber a apensação.
Tal questão é resolvida por via do disposto na al. c) do artigo 28º do CPP, porquanto os crimes em causa são puníveis com a mesma moldura penal e o arguido não se encontra preso à ordem de qualquer processo.
É assim competente para o julgamento dos processos em conexão, o tribunal titular do processo onde primeiramente houve notícia do crime.
Como bem refere o Ministério Público, no seu parecer, a “notícia do crime” ocorre no momento em que a denúncia é formalizada e não, necessariamente, quando os processos são autuados.
No caso em análise, o processo nº
10049/19.4T9LSB
foi instaurado com base numa certidão extraída do processo nº 7242/18.0T9LSB, o qual foi autuado a 11 de setembro de 2018, na sequência de uma certidão extraída do processo 2073/16.5BELSB, do Tribunal Central Administrativo Sul, dando notícia de factos suscetíveis de integrar o crime de difamação, recebida nos serviços do DIAP de Lisboa a 7 de setembro de 2018.
Foi assim no processo nº
10049/19.4T9LSB
que primeiramente ocorreu a notícia do crime.
Em consequência o conflito será de dirimir deferindo a competência ao Juízo Local Criminal de Lisboa – Juiz 13.
IV.
Decisão
:
Pelo exposto, decide-se dirimir o conflito negativo de competência, atribuindo a competência para julgamento das causas ao Juízo Local Criminal de Lisboa [Juiz 13]
Sem tributação.
Cumpra o artigo 36º, nº 3 CPP.
Lisboa, 2 de Junho de 2025
Simone Almeida Pereira
Consigna-se que a presente decisão foi elaborada e revista pela signatária.
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TRL
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https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/bf06ae9ff8559bcb80258cb5004ba4dc?OpenDocument
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1,743,897,600,000
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REVOGAÇÃO PARCIAL
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2051/21.2T8AVR-A.P1
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2051/21.2T8AVR-A.P1
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TERESA FONSECA
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I - O depoimento de parte deve incidir sobre factos relevantes para a discussão da causa que sejam factos pessoais ou de que o depoente deva ter conhecimento e que não constituam factos criminosos ou torpes, de que a parte seja arguida.
II - Enquanto corolário do direito constitucional à não autoincriminação, ainda que a parte não haja sido constituída arguida, é legítima a respetiva recusa a depor sobre factos suscetíveis de a incriminar ou que possam ser classificados como torpes.
III - O depoimento prestado na ação cível não deve ser entendido como estanque e insuscetível de extravasar para o âmbito penal.
(Sumário da responsabilidade da Relatora)
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[
"DEPOIMENTO DE PARTE",
"RECUSA A DEPOR"
] |
Proc. n.º 2051/21.2T8AVR-A.P1
Relatora: Teresa Maria Fonseca
1.ª adjunta: Maria Fernanda Almeida
2.ª adjunta: Maria de Fátima Andrade
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I - Relatório
AA, BB, CC, DD e EE intentaram a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra FF, GG e “Banco 1..., S.A.”.
Pedem que:
a - o R. FF e o R. BB sejam solidariamente condenados a pagar aos dois primeiros AA. € 104 931,71 a título de enriquecimento sem causa, acrescidos de juros de mora até pagamento, relativos a cheque;
b - o R. FF seja condenado a pagar aos dois primeiros AA. €15.499,85 a título de enriquecimento sem causa, acrescidos de juros de mora até pagamento, relativos a levantamento em numerário;
c - o 3.o R. seja condenada a pagar, solidariamente ou não com os dois primeiros RR., nos termos do pedido referido em a), €95.540,00, acrescidos de juros de mora desde a citação até pagamento, a título de indemnização por responsabilidade civil;
d - o 1.º R. FF seja condenado a pagar aos AA. € 15.000,00 a título de danos morais, na proporção de €3.000,00 para cada um dos AA..
Alegam que o R. FF manteve com eles uma relação de prestação de serviços de consultoria e gestão financeira. No âmbito dessa relação, o R. ter-se-á apropriado de quantias pertencentes aos AA., inclusive de um cheque no montante de €95.540,00. Tê-los-á ludibriado com recurso a meios ardilosos, nomeadamente comprovativos de pagamento adulterados. Um funcionário do R. “Banco 1...”, em comunhão de esforços com os demais RR., teria permitido que o depósito do cheque fosse indevidamente feito na conta bancária destes últimos.
O R., ora recorrente, e o R. GG contestaram, pugnando pela total improcedência da ação. Deduziram pedido reconvencional com vista ao reconhecimento de um crédito sobre os AA..
Em sede de audiência prévia foi requerido o depoimento de parte do R. à matéria vertida nos artigos. 10.º a 19.º, 25.º a 39.º, 42.º a 50.º e 52.º a 54.º da petição inicial e nos artigos 5.º, 8.º, 9.º, 11.º a 24.º, 32.º a 41.º e 47.º a 51.º da réplica
Corridos os demais termos processuais, em 6-2-2025 iniciou-se a audiência de julgamento.
O mandatário do recorrente apresentou, então, o seguinte requerimento:
“1.º
Conforme despacho proferido em sede de audiência prévia, foi admitida a prestação de depoimento de parte dos Réus à matéria vertida nos artigos 10.º a 19.º, 25.º a 39.º, 42.º a 50.º e 52.º a 54.º da PI, bem como à matéria vertida nos artigos 5.º, 8.º, 9.º, 11.º a 24.º, 32.º a 41.º e 47.º a 51.º da réplica.
2.º
Dispõe o art.º 454.º, n.º 2, do C.P.C. que não é admissível o depoimento sobre factos criminosos ou torpes, de que a parte seja arguida.
3.º
A
ratio
desta norma, além de evitar que o direito à não autoincriminação seja ludibriado mediante uma obrigatoriedade de prestação de depoimento em sede civil, é o de impedir o depoimento sobre matéria em que o depoente seria tentado a mentir.
4.º
Os Autores apresentarem uma queixa-crime contra os Réus, dando origem a um processo criminal atualmente a correr termos, em fase de inquérito, no DIAP ..., sob o n.º ....
5.º
Os factos que sustentam tal processo criminal são os mesmos que consubstanciam a causa de pedir dos Autores nos presentes autos: sumariamente, a alegada apropriação ilegítima de quantias pertencentes aos Autores, comportamento esse passível de consubstanciar, em abstrato, crime de abuso de confiança, de burla e de falsificação de documentos.
6.º
No âmbito do processo criminal supra identificado, pelo menos o Réu FF terá sido constituído arguido, sendo que este pediu a emissão da competente certidão ao DIAP ... por requerimento de 4 de fevereiro de 2025, não tendo a mesma sido ainda emitida.
7.º
Dúvidas não poderão subsistir que existe uma coincidência factual entre o objeto do depoimento que fora requerido pelos Autores, conforme delimitado em sede de audiência prévia, e o objeto do processo criminal atualmente em curso.
8.º
Em todo o caso, uma vez que a recusa de depoimento não se afere na globalidade mas perante matéria concretamente identificada, a fim de se aquilatar da legitimidade da recusa dos Réus em depor nestes autos, requer-se que o presente Tribunal oficie o DIAP ... para juntar aos presentes autos certidão narrativa do objeto do processo-criminal a correr sob o n.º ....
9.º
Mais se requerendo o reagendamento de nova data para o eventual depoimento dos Réus após a junção aos autos da referida certidão.
10.º
Em todo e qualquer caso, o art.º 454.º, n.º 2, do CPC, sendo uma declinação do direito constitucional ao silêncio, sempre terá de ser interpretado sistematicamente, em conformidade com a Constituição da República Portuguesa e o Código de Processo Penal.
11.º
E, nesse sentido, não se poderá ignorar que o direito ao silêncio não é apenas uma prerrogativa do sujeito formalmente constituído como arguido, mas também do mero suspeito.
12.º
Esse mesmo entendimento encontra-se chancelado no art.º 7.º da Diretiva 2016/343 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de março de 2016, que dispõe que “Os Estados-Membros asseguram que o suspeito ou o arguido têm o direito de não se autoincriminar”.
13.º
Aliás, dificilmente se entenderia que, incidindo o objeto do depoimento sobre factos com iminente relevância criminal cuja prática é imputada ao depoente, o direito deste a recusar depoimento estivesse dependente da sua situação processual noutro procedimento.
14.º
Nesse sentido, sem prejuízo do acima requerido, sempre deverá ser julgada legítima a recusa de depoimento dos Réus à matéria dotada de relevância criminal, o que se requer para todos os devidos efeitos legais”.
*
Pelo Mandatário dos Autores foi dito:
Os Autores opõem-se ao requerido pelos Réus, por duas ordens de razão: a primeira, nenhum dos factos constantes da petição inicial tem que ver, sequer de modo reflexo, com os factos de que o Réu FF está a ser investigado no processo crime. Nesse processo crime, apenas lhe é imputado o crime de abuso de confiança ou outros relativamente ao desvio de dinheiro de HH. Ora, este senhor não é sequer parte nesta ação, não é Autor ou Réu. Os factos de que foi requerido o depoimento de parte e admitido reportam a um outro assunto completamente diferente, com outros intervenientes, pelo que não era legítima a recusa do depoimento de parte dos aqui Réus. Mesmo em relação aos factos vertidos em 15 a 18. Já em fase anterior, o Réu admitiu que agilizou que os créditos mencionados em 17 fossem contraídos, esses sim, por pessoas que são os Autores nestes autos, confissão essa que foi aceite pelos Autores, para não mais ser retirada, e reportam a matéria que não é objeto daquele processo crime, porquanto estes créditos foram contraídos, no que a esta ação reporta, com o conhecimento, sabendo os Autores o que é que estavam a fazer, não havendo aqui, nesta parte da contratação dos créditos, qualquer responsabilidade criminal imputada aos Réus, no entanto ela é imputada aos Réus. Coisa diferente é o que o Réu terá feito, alegadamente, com os dinheiros que entraram na conta do referido HH, que, repete-se, não é parte nesta ação e cujos factos também não são objeto desta ação, pelo que carece de fundamento fáctico e jurídico, o peticionado pelos Réus. Mais, não querem ser confrontados com os factos que lhes são imputados nesta ação.
A este propósito foi proferido o seguinte despacho:
Os ora Réus alegam que os ora Autores apresentaram contra os mesmos uma queixa crime, dando origem a um procedimento criminal, atualmente a correr termos em fase de inquérito no DIAP ..., sob o número .... Não apresentaram qualquer prova do alegado, apesar de o referido inquérito ter o número do ano de 2022 e de esta audiência de julgamento estar marcada desde 14/05/2024. Os ora Autores referem que a referida queixa crime respeita a um desvio de dinheiro de uma conta de HH, que não é parte na presente ação.
Sendo assim, uma vez que, efetivamente, nesta ação, nenhuma referência é feita à conta do referido HH e nenhuma outra prova ter sido apresentada, entendemos que não há qualquer justificação para os Réus não prestarem depoimento de parte neste Tribunal.
Relativamente aos factos que são objeto da presente ação, os ora Autores optaram por pedir uma ação cível em vez de apresentar uma queixa crime e nada, se bem vemos, os impedia de o fazer.
Indefere-se, pelo exposto, o ora requerido.
*
Inconformado, o R. FF interpôs o presente recurso. Rematou com as conclusões que em seguida se transcrevem.
I. O Recorrente não se conforma com o teor do Despacho proferido pelo Tribunal
a quo
, que julgou ilegítima a sua recusa de depoimento com fundamento na potencial relevância criminal da matéria sobre a qual iria versar o depoimento.
II. O art.º 454.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, refere não ser admissível o depoimento sobre factos criminosos ou torpes, de que a parte seja arguida.
III. Trata-se de uma norma destinada à proteção da parte obrigada à prestação do depoimento, evitando que seja exposta, dado o dever de verdade que sobre si incide, a confessar factos criminosos por que está a ser investigada.
IV. A norma tem de ser interpretada de forma a legitimar a recusa do depoimento sempre que a matéria sobre a qual recaia o depoimento tenha relevância criminal, independentemente da instauração de um concreto procedimento - criminal no qual o depoente tenha sido formalmente constituído como arguido.
V. Existe um princípio hermenêutico geral de interpretação das normas infraconstitucionais em conformidade com a Constituição, dado o lugar de vértice superior que ela ocupa em qualquer sistema jurídico democrático e a necessidade de assegurar a sua unidade e coerência.
VI. A norma
sub judice
está intimamente comprometida com a tutela do direito ao silêncio que assiste ao arguido (e ao suspeito) em processo penal - art.º 61.º, n.º 1, al. d), do Código de Processo Penal.
VII. A proteção do direito ao silêncio do arguido em processo penal é um princípio constitucional não escrito, conforme o admite tanto a generalidade da doutrina como a jurisprudência do Tribunal Constitucional.
VIII. A fim de se salvaguardar a sua conformidade constitucional, o art.º 454.º, n.º 2, do Código de Processo Civil carece de ser interpretado no sentido de que a recusa de depoimento é legítima sempre que o objeto do mesmo incidir sobre matéria da qual possa resultar a responsabilidade criminal do depoente, independentemente da qualidade processual que o depoente assuma num eventual procedimento criminal.
IX. O direito ao silêncio não é uma prerrogativa que assiste apenas ao sujeito formalmente constituído como arguido, mas também ao suspeito, o que resulta, aliás, do art.º 7.º da Diretiva 2016/343 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de março de 2016.
X. A matéria sobre a qual iria incidir o depoimento do Recorrente tem uma inequívoca relevância criminal, uma vez que os Autores lhe imputam a prática de atos passíveis de consubstanciar, em abstrato, abuso de confiança qualificada, burla qualificada e falsificação de documentos.
XI. Todos esses crimes são públicos, pelo que o simples facto de os Autores não terem pretendido uma ação penal contra o Recorrente não impede o Ministério Público de promover oficiosamente a ação penal.
XII. Caso, porventura, o art.º 454.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, não seja passível de ser interpretado num sentido que o resgate de um juízo de inconstitucionalidade material, teremos, então, de concluir que a norma resultante do art.º 454.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, na interpretação segundo a qual a recusa de depoimento apenas é legítima caso o depoente tenha sido formalmente constituído como arguido, é materialmente inconstitucional por violação
inter alia
dos artigos 20.º, n.º 4, 32.º, n.ºs 1, 2, 5 e 8, da Constituição da República Portuguesa, o que aqui se alega expressamente para os devidos efeitos legais.
XIII. Sem prejuízo, a verdade é que corre contra o Recorrente um inquérito criminal no DIAP ..., sob o n.º de processo ..., ao abrigo do qual foi formalmente constituído como arguido.
XIV. Pelo que o Tribunal
a quo
sempre deveria ter suspendido a prestação de depoimento até emissão da certidão e, se necessário, ter pedido a emissão de certidão narrativa do objeto do processo.
Tudo compulsado,
XV. através da decisão recorrenda, o Tribunal
a quo
violou, entre outros, o art.º 454.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, e os artigos 20.º, n.º 4, 32.º, n.ºs 1, 2, 5 e 8, da Constituição da República Portuguesa.
XVI. Por isso, corrigidos que estejam os erros que aqui se enunciam, estará o Tribunal em condições de, por imperativo legal e de justiça, se pronunciar pela legitimidade da recusa de depoimento por parte do Recorrente, se necessário declarando inconstitucional a norma resultante do art.º 454.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, na interpretação segundo a qual a recusa de depoimento apenas é legítima caso o depoente tenha sido formalmente constituído como arguido, assim revogando o douto despacho em crise, o que se requer para todos os devidos efeitos legais.
XVII. Revogando-se o despacho proferido, e substituindo-o por decisão que julgue procedente a recusa de depoimento, assim se fará, como é apanágio deste Tribunal, a sã e costumeira justiça.
*
Os AA. contra-alegaram, finalizando nos moldes que se seguem.
1. Basta verificar a contestação do Réu para verificarmos que este sustenta a sua defesa num suposto empréstimo, no valor de €85.000,00 (oitenta e cinco mil euros) que refere ter prestado em mão, em dinheiro, aos AA. DD e BB.
2. Empréstimo que foi expressamente impugnado pelos AA., que alegaram na réplica não ter existido.
3. Em sede de requerimento probatório os AA requereram que o Ré FF prestasse depoimento, a este respeito, ao vertido nos artigos 28. a 30. da réplica.
4. É, pois, aqui que falta a coragem ao Réu para prestar depoimento de parte.
5. Que não teve bravura para manter a sua alegação perante a Meritíssima Juiz em sede de audiência de julgamento, ciente também da possibilidade de vir a ser confrontado em sede de acareação.
6. Este facto – alegado empréstimo - em nada está relacionado com o processo-crime pendente, cuja queixa foi apresentada por pessoa que não é parte nesta ação e por factos distintos dos julgados nesta ação.
7. Os factos da petição inicial (10º a 19º, 25º a 39º, 42º a 50º e 52º a 54º) e da réplica (5º, 8º, 9º, 11º a 24º, 32º a 41º e 47º a 51º) sobre os quais o Ré iria prestar depoimento nada têm que esteja relacionado, sequer de modo reflexo, com os factos de que está a ser investigado no processo-crime.
8. Pois que, nesse processo-crime é-lhe imputado um crime de abuso de confiança ou outros relativamente ao desvio de dinheiro de HH que não é parte nesta ação.
9. Factos há até - 15 a 18 da réplica – que o Réu FF já confessou nos articulados, mormente que agilizou a celebração dos créditos mencionados em 17. da réplica, contraídos em nome de pessoas que são os Autores nestes autos e que reportam a matéria que não é objeto daquele processo-crime, porquanto estes créditos foram contraídos, no que a esta ação reporta, com o conhecimento dos Autores, não havendo aqui qualquer responsabilidade criminal que tenha sido imputada ao Réu.
10. O que o Réu terá feito, alegadamente, com os dinheiros que entraram na conta do referido HH, que, repete-se, não é parte nesta ação e cujos factos também não são objeto desta ação, é que estão a ser investigados no processo-crime.
11. Nem no requerimento de recusa de prestação de depoimento de parte, nem agora nas alegações de recurso o Réu indica que facto ou que factos cujo depoimento foi requerido estão ou podem estar relacionados com os presentes autos.
12. Esta falta de alegação impede a análise da bondade dos fundamentos invocados, pois que não basta que exista um processo-crime, é necessária uma conexão com os factos cuja recusa é feita!
13. A prestação de declaração de parte foi requerida e admitida na audiência prévia realizada em 19 de abril de 2023, os AA desconhecem em que data o Réu foi constituído arguido no processo-crime e este também não o indica, sendo que a audiência de julgamento teve início apenas em 6/20/2025.
14. Pelo que não demonstrou o Ré que o seu requerimento era tempestivo.
15. Por tudo o exposto, bem andou a Meritíssima Juiz
a quo
ao indeferir o requerimento em crise, cuja fundamentação do douto despacho é irrepreensível.
Termos em que, nos melhores de direito e sempre com mui douto suprimento de Vossas Excelências, por não ter violado qualquer norma jurídica, deverá o douto despacho recorrido ser confirmada em toda a sua extensão, negando-se provimento ao presente recurso e assim se fazendo inteira e objetiva Justiça.
*
II - A questão a dirimir consiste em aferir se o 1.º R. deve prestar depoimento de parte quanto à matéria indicada pelos AA..
*
III - Fundamentação de facto
A matéria relevante para a decisão é a que consta do relatório que antecede, passando-se a transcrever, para melhor esclarecimento, os artigos da petição inicial e da réplica a propósito dos quais foi admitido o depoimento de parte do R. FF (da petição inicial: 10º a 19º, 25º a 39º, 42º a 50º e 52º a 54º e da réplica: 5º, 8º, 9º, 11º a 24º, 32º a 41º e 47º a 51º).
Da petição inicial
10.
Para obter mais fundos, com a alegação de que tinham que ser pagas dívidas da 3ª, 4ª e 5º AA à segurança social e que os fornecedores da insolvente A... Lda. iriam executar o seu património, convenceu todos os AA na realização do seguinte negócio:
- Como a 1ª e o 2º AA eram proprietários de uma habitação livre de quaisquer ónus, estes vendê-la-iam ao 5º A EE, que, por sua vez, solicitaria um empréstimo de cerca de Eur. 95.000,00 (noventa e cinco mil euros) ao banco aqui 3ºR.
11.
Desta forma, conseguiam um crédito de cerca de Eur 95.000,00 (noventa e cinco mil euros) que logo que recebido pelos 1ª e 2º AA, seria afeto ao pagamento de diversas responsabilidades dos 3ª, 4ª e 5º AA, bem assim, da herança de que são interessados.
12.
Sendo que, na verdade, a 1ªA AA se manteria a residir naquela habitação que desde sempre foi a sua casa morada de família e, bem assim, a continuar a ser a proprietária - meramente de facto - da mesma.
13.
Pois que, estando o 5ºA (suposto comprador) a viver e a trabalhar no Reino Unido, nenhuma intenção tinha de adquirir ou residir naquela moradia.
14.
Não passando tal esquema engendrado pelo 1º R de uma forma de conseguir mais crédito.
15.
Nessa sequência, os AA. aceitaram a proposta apresentada pelo 1º R, convencidos que seria a melhor forma de resolver os problemas da família.
16.
Face, inclusive, a um cenário dantesco criado pelo 1º R que, na verdade, nunca existiu;
17.
Mais concretamente a afirmação de terem que pagar vários milhares de euros a fornecedores da empresa insolvente da família “A..., Lda.”, que sabem agora os AA. que não são, nem nunca foram, da sua responsabilidade (pessoal).
18.
Bem como avultadas dívidas à segurança social, que na verdade, sabem agora os AA., que nunca existiram.
19.
Com efeito, o 1º R foi pressionando os AA. no sentido de fazerem o mais rapidamente tal operação, afirmando insistentemente que estava por dias a execução pelos fornecedores de todo o património que ainda restava à família.
25.
O primeiro cheque, no valor de Eur 19.460,00, sabem os AA. que nunca foi depositado em qualquer conta, porquanto serviu apenas para constar da escritura, bem assim, presumem os AA., que o banco apenas para constar da escritura emprestaria uma percentagem do valor da compra e venda e não a sua totalidade.
26.
Ou seja, um cheque que apenas serviu para “dar a aparência” de um pagamento que nunca aconteceu
27.
Mera presunção, porquanto todos os procedimentos relativos ao negócio, mormente quanto ao empréstimo bancário, foram promovidos e realizados pelo 1º R FF, encontrando-se o 5ºA (mutuário) a viver em Inglaterra.
28.
Após ter terminado a escritura, o 1º R FF pressionou de imediato a 1º A. no sentido de lhe entregar o cheque para que o fosse depositar na sua conta (da 1ª A) e para após serem feitos os supostos pagamentos urgentes aos credores, nos termos dos acordos vantajosos afirmava já ter apalavrados.
29.
Assim, a 1º A entregou o cheque ao 1º R logo após a escritura, bem assim, à porta do Cartório onde se realizou a escritura e onde se encontrava o ansioso 1º R a aguardar que a mesma terminasse.
30.
Ao contrário do combinado e do que esperavam os AA., tal cheque nunca veio a ser depositado na conta da 1º A.
31.
Sendo que tal cheque apenas poderia, em tese, ser depositado na conta da 1ª A. por se tratar de um cheque bancário e emitido à sua ordem, conforme cópia do cheque que adiante se junta e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido (Doc n.º 3).
32.
Questionado o 1.º R. pelos AA sobre o destino dado ao cheque, nunca deu qualquer informação, foi dizendo que tinha pago dívidas, enviando inclusive comprovativo ao 5º A EE, de uma transferência no valor de Eur 32.635,56, que referiu ter servido para pagamento como outros, se veio a descobrir que nunca existiu, conforme documento que adiante se junta e se dá por integralmente reproduzido (doc. nº 4).
33.
Com efeito, como o 1º R sempre que se falava do cheque usava de ameaças e subterfúgios e nada informada de concreto, os AA. começaram a desconfiar e, após, descobriram que nenhuma dívida tinha sido paga pelo 1º R.
34.
Razão que os levou cessar as relações com o 1ºR, operando a competente revogação das procurações que lhe tinham outorgado.
35.
Nessa sequência, quebrada a relação de confiança, tentaram os AA. saber onde teria sido depositado o cheque e descobriram, através do banco 3ªR, que o mesmo tinha sido depositado pelo 1ºR., na conta de que o pai deste, o aqui 2ºR., é titular na 3ªR Banco 1..., com o n.º ...01.
36.
Ora, não percebem os AA, em especial a 1ª A, como se mostrou possível um cheque bancário, à sua ordem, ter sido depositado em conta de terceiro.
37.
A verdade é que, a expensas desse ato ilícito tolerado ou consentido pelo banco 3º R, os 1º e 2º RR enriqueceram, sem causa justificativa, à custa do empobrecimento dos 1ª A e 2º A.
38.
A verdade é que o 1º R e o 2º R em comunhão de esforços pretenderam, como conseguiram, enganando os AA., apropriar-se de Eur 95.540,00 que pertencem aos 1ºA e 2ºA.
39.
Para tanto, necessitaram da ajuda ou incompetência de algum funcionário da 3º R Banco, porquanto em caso algum podia ter sido aceite um depósito de um cheque bancário à ordem da 1º A na conta do 2º R.
42.
Negócio este que que apenas serviu para enriquecer ilícita e indevidamente os 1º e 2º RR, causando o empobrecimento injusto e indevido dos AA.
43.
Em especial da 1ªA, pessoa de idade avançada que apenas quis ajudar o filho, nora e mãe e irmão desta e vê-se agora com a sua casa onerada ao banco por uma dívida que os demais AA não podem, a expensas das condutas dos 1º e 2º R, honrar.
44.
Ou seja, arrisca-se a ficar sem a sua única habitação por uma dívida que não é sua, de cujo valor os 1º R. e 2º R se apropriaram e que a oneram.
45.
O 1º R FF, ainda antes da escritura supra, no dia 14 de maio de 2018, com pretexto de que tinha que ser paga uma dívida ao Banco 2..., usou a procuração que o 2º A BB lhe havia outorgado e levantou em numerário da conta de que a 1º A e 2º A são titulares no Banco 3..., com o n.º ...01, o valor de Eur. 13.800,00 (treze mil e oitocentos euros), conforme documento que adiante se junta e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido (Doc. n.º 5).
46.
Sucede que, tal montante não foi utilizado pelo 1ºR FF para pagar tal dívida do 2º A.
47.
Na verdade, o 1º R, mais uma vez, fez seu o dinheiro, dele se apropriando contra a vontade dos 1º A e 2º A, proprietários do dinheiro.
48.
Não lhe dando o destino para qual foi mandatado pelos 1ª e 2º AA.
49.
Pois que, como se provará, tal dívida, ao contrário do que o 1º R havia garantido ao 2º A. nunca chegou a ser paga.
50.
O 1º R locupletou-se, assim, mais uma vez, à custa do empobrecimento dos 1ª A e 2º A.
52.
Os 1º R e o 2º R locupletaram-se à custa dos AA, em especial no que aqui releva, dos 1º A e 2º A.
53.
Sendo que o cheque de avultado valor Eur. 95.450,00 foi depositado pelo 1º R na conta do seu pai 2º R, pessoa que nenhum dos AA sequer conhece.
54.
Aliás, nenhuma relação tinham com o 2º R que fizesse justificar atribuir-lhe um qualquer valor, muito menos 95.540,00 Eur. !!
*
Da réplica
5.
Contrariamente ao alegado pelos RR. em 28º, nenhum pagamento existiu para “evitar o agravamento da solvabilidade da “A..., Lda.”
6.
Pois que, esta empresa há muito se encontrava insolvente, cuja sentença foi pulicada em 23/12/2011.
7.
Após foi para liquidação, tendo o respetivo processo encerrado em 28/4/2014, conforme documento que adiante se junta (Doc n.º 1).
8.
Ou seja, dão-se os RR., mais concretamente o R. FF, ao desplante de vir tentar convencer o Tribunal que a sua atuação visava “evitar o agravamento da solvabilidade da A..., Lda.”, há vários anos extinta!!
9.
Essa era, de facto, a conversa do Réu FF para com os AA. para os convencer a contrariem inúmeros créditos ao consumo e, por final, para os convencer a vender simuladamente a casa morada de família da A. AA, pessoa já de avançada idade.
11.
É certo que com a insolvência de “A..., Lda.” existiram alguns processos intentados por credores a quem tinham sido prestadas garantias pessoais pelo AA.
12.
Apenas estes - só esses - tinham que ser resolvidos.
13.
Sendo manifestamente falso que os AA. tivessem qualquer dívida com o Banco 2..., mormente no que respeita ao processo n.º ..., do juízo de Execução ..., indicado no artigo 20º da contestação/reconvenção.
14.
Tal processo efetivamente existiu, tendo a dívida sido paga pelos AA no longínquo ano de 2012, bem assim, muito antes de sequer conhecerem o R. FF, conforme documentos que adiante se juntam (doc n.º 2 e n.º 3).
15.
Ademais, encontravam-se pendentes, na altura em que conheceram os R. FF, o processo n.º 2158/11.4T2AGD, do juízo de Execução ..., em que era exequente do Banco 4..., SA. e o processo n.º 4280/12.0T2AGD, do mesmo juízo, em que era exequente contra a A. DD, o credor B..., S.A., também indicados no artigo 20º da contestação.
16.
Todavia, para a resolução dos problemas existentes, o Réu FF aconselhou os AA. CC, DD, BB e EE na realização de um procedimento, com os seguintes passos:
1 - Os AA. CC e BB contraírem vários créditos ao consumo rápidos, via net, de aprovação automática;
2 - Procederam à abertura de uma conta bancária, no Banco 3..., em nome de HH, filho dos AA DD e BB;
3 - Após recebidos os dinheiros dos créditos contraídos por CC e BB, os dinheiros eram imediatamente transferidos para a nova conta do HH.
4 - A conta do HH, devidamente provisionada, era exclusivamente movimentada pelo Ré FF para resolver toda e qualquer pendência, sendo apenas este que tinha os acessos online da conta, bem assim as respetivas passwords.
17.
Assim, no período compreendido entre 26/09/2018 e 23/10/2018, em menos de um mês, o Ré FF agilizou a celebração, em nome dos AA. CC e BB, os seguintes créditos:
A) Em nome do A. BB:
- em 26/09/2018, no Banco 3..., 22158,44 Eur
- em 28/09/2018, no Banco 5..., 32437,66 Eur
- em 02/10/2018, na C..., 28036,27 Eur
(conforme documento que adiante se junta (Doc n.º 4)
B) E nome da A. CC:
- em 08/10/2018, na C..., 24102,32 Eur;
- em 17/10/2018, no Banco 5..., 25.021,65 Eur;
- em 23/10/2018, na D..., 10985,63 Eur
(conforme documento que adiante se junta (Doc n.º 5)
18.
Ou seja, o Réu FF, agilizou, como refere, com consentimento dos AA., créditos ao consumo, às taxas que se conhecem, cujo valor ascendeu, pasme-se, a 142.741.97 Eur.
19.
“Agilização” esta que o RR. confessam em 41º da contestação, que se aceita para não mais ser retirada.
20.
Ato contínuo, como se referiu, tais montantes foram transferidos para a conta n.º ...20, do Banco 3..., titulada pelo filho dos AA. DD e BB e apenas movimentada pelo Réu FF, conforme documentos que se protestam juntar (Doc. nº 6 a n.º 10).
21.
Assim, com a conta devidamente provisionada, terá sido paga, no dia 25/10/2018, a quantia exequenda daquele processo intentado pelo Banco 4..., mais concretamente o valor de €22.000,00 (vinte e dois mil euros), conforme documento que adiante se junta (Doc n.º 11).
22.
O que presume pelo descritivo que o R. FF deu à transferência, a saber: 2158/11.4T2AGD
23.
Todavia o R FF, no mesmo dia 25/10/2028, enviou um SMS à A. DD, com a legenda “Adeus Banco 4...”, com um suposto comprovativo de transferência daquela conta, de um valor substancialmente superior - €63.436,82 - conforme documento que adiante se junta (docs. n.º 12 e 13).
24.
Suposto comprovativo porquanto certamente terá sido propositadamente adulterado pelo Ré FF para enganar a A. DD, já que, sabem agora, pela consulta dos respetivos extratos, que nenhuma transferência daquele valor foi efetuada naquela conta.
Ademais,
32.
Nunca, em momento algum, os AA receberam, qualquer quantia do R. FF, mormente os alegados €85.000,00, pasme-se, em numerário!
33.
Ademais, na data a que reporta a fabricada “declaração” – 4 de janeiro de 2018 - o Ré FF confessou aos AA., em especial à A. DD e ao A. EE que os negócios lhe tinham corrido mal em Inglaterra, pedindo-lhe sucessivamente empréstimos de 100,00 Eur, de 200,00 Eur., vários deles transferidos pelo A. EE.
34.
Pelo que, ao que sabem os AA., nessa altura e, bem assim, antes de se apropriar dos vários milhares de euros dos AA., o R FF passava francas dificuldades económicas, vivendo de ajudas!
35.
Ou seja, o R FF não só não emprestou o que não tinha, como, pelo contrário, vários foram os empréstimos de pequenas quantias que solicitou aos AA.
36.
A verdade é que crédito invocado pelos RR., como causa de pedir da reconvenção, com os quais pretendem operar a compensação, não existe, tendo o respetivo pedido de improceder.
37.
O mesmo sucedendo com os supostos “honorários”.
38.
Pois que, o R. FF exigiu aos AA que os seus “serviços” fossem antecipadamente pagos.
39.
Tendo a A. CC pago ao R. FF a quantia total de €13.000,00 (treze mil euros), entregando-lhe, pois, o seu único pé-de-meia, no período compreendido entre meados de 2017 e início de 2018.
40.
O qual correspondeu aos valores solicitados pelo R. FF para proceder tudo quanto tinha prometido à família, composta pelos AA CC, DD, BB e EE.
41.
Sendo que, quanto à A. AA, nenhum serviço ou trabalho foi prestado pelo R FF que lhe pudesse, ainda que abstratamente, dar direito a uma qualquer remuneração.
47.
E manifestamente falso o vertido em 64º e 65º da contestação, bem assim que a A. AA tivesse entregado o cheque a que alude os presentes autos para pagamento de qualquer empréstimo (que nunca existiu) ou pagamento de alegados serviços financeiros prestados pelo R FF.
48.
Nem, aliás, endossou o referido cheque a favor do R. FF.
49.
Não foi, pois, a A. AA que assinou o endossou constante do verso do cheque.
50.
Nunca autorizaria que o cheque fosse depositado na conta do R. FF, nem assumiu que fosse possível um cheque visado/bancário emitido à sua ordem ser depositado em conta que não fosse por si titulada.
51.
A assinatura que consta do verso do cheque –junto como doc. n.º 1 da contestação da R. Banco 1... – não foi aposta pela A. AA, bem assim pelo seu punho.
*
IV - Fundamentação jurídica
A questão sob apreciação consiste na admissibilidade da prestação de depoimento de parte do R. FF à matéria da petição inicial e da réplica indicada pelos AA..
Segundo o art.º 452.º/1 do C.P.C., o juiz pode, em qualquer estado do processo, determinar a comparência pessoal das partes para a prestação de depoimento, informações ou esclarecimentos sobre factos que interessem à decisão da causa.
Prevê o art.º 454.º/1 que o depoimento só pode ter por objeto factos pessoais ou de que o depoente deva ter conhecimento.
Nos termos do n.º 2 do mesmo art.º 454.º, não é, porém, admissível o depoimento sobre factos criminosos ou torpes, de que a parte seja arguida.
Dir-se-á, introdutoriamente, que, ao contrário do pretendido pelos apelados, não se coloca a questão da intempestividade da recusa pelo apelante em prestar depoimento. O facto de o pedido ter sido previamente formulado e deferido, não preclude a possibilidade de, até ao momento da respetiva prestação, o depoente se recusar a responder. Tampouco está afastada a possibilidade de o juiz considerar o depoimento inadmissível. Trata-se de questão que sempre poderá ser avaliada até ao momento da prestação do depoimento.
Está em causa matéria que se prende com direitos fundamentais, com assento constitucional. Até ao momento em que a questão seja concretamente apreciada, um mero despacho formal de admissão não é suscetível de contender com a apreciação casuística do objeto do depoimento sob o ponto de vista do direito da parte a não se autoincriminar.
Retornemos à questão controvertida sob um ponto de vista substancial.
Arguido significa ser um sujeito processual, formalmente constituído como tal, ou contra quem haja sido deduzida uma acusação ou aberta a instrução, sobre quem recaiam, num certo momento processual, fundadas suspeitas de ter praticado ou comparticipado na prática de um crime. Nessa qualidade, goza de um estatuto especial, designadamente um conjunto de deveres e direitos, que lhe são explicados no ato da sua constituição formal (cf. artigos 57.º a 61.º do Código de Processo Penal).
Em termos linguísticos ser
arguido
significa ter sido repreendido, censurado, condenado, acusado ou qualificado de ser um possível culpado (
Dicionário de Houaiss da Língua Portuguesa
, Lisboa, 2002).
Torpe
tem o sentido de contrariar ou ferir os bons costumes, a decência, a moral; revela caráter vil, ignóbil, indecoroso, infame, obsceno, indecente; que causa repulsa, vergonhoso, desonroso, ignóbil; é o contrário de elevado e nobre (
Dicionário de Houaiss da Língua Portuguesa
, Lisboa, 2002).
Está em causa prova ilícita em função do conteúdo do próprio facto ou matéria a demonstrar. A prova não é proibida por causa do respetivo conteúdo intrínseco, mas por relação com quem a produz - a parte, que, a ser o depoimento admissível, se autoincriminaria ou que deixaria a nu a torpeza da sua atuação.
O legislador não colocou na esfera jurídica do depoente a liberdade de escolha de aceitar ou não depor acerca de factos que o possam incriminar ou que sejam torpes. Ao considerar que o depoimento não é admissível, veda a respetiva produção.
Da conjugação destes segmentos normativos retira-se, do ponto de vista positivo, que o depoimento de parte deve incidir sobre factos que interessem à decisão da causa que sejam factos pessoais ou de que o depoente deva ter conhecimento. Do ponto de vista negativo, que o depoimento não pode incidir sobre factos criminosos ou torpes, de que a parte seja arguida.
O depoimento de parte, integrando-se no capítulo da prova por confissão, constitui um meio processual cujo objetivo fundamental é o de promover e obter de alguma das partes a confissão judicial, enquanto declaração de ciência através da qual se reconhece a realidade de um facto desfavorável ao declarante e favorável à parte contrária (art.º 352.º do C.C.). A teleologia do instituto do depoimento de parte consiste na obtenção de confissão.
Decorre das citadas disposições legais que a parte pode requerer o depoimento de parte, visando uma confissão, que só poderá incidir sobre factos desfavoráveis ao depoente. Estes sempre terão que ser factos em que aquele tenha intervindo pessoalmente ou de que tenha conhecimento direto.
Importa atender aos factos concretos sobre os quais se pretende que recaia o depoimento de parte do R. FF. Isto para determinar se os mesmos constituem factos relevantes para a discussão da causa que sejam factos pessoais ou de que o depoente deva ter conhecimento. A estes requisitos positivos há de acrescer a circunstância delimitadora de não constituírem factos criminosos ou torpes, de que a parte seja arguida.
Assim, antes mesmo de aquilatar da medida em que a matéria indicada é suscetível de integrar factos criminosos, importa aferir se pontos da mesma há que, em todo o caso, não integrem factualidade sobre a qual o depoimento deva recair. Tal, nos termos gerais, há de ficar a dever-se à circunstância de a matéria não interessar à discussão da ação, ser repetitiva e/ou conclusiva, ser de natureza jurídica ou carecer de prova documental. A inoportunidade do depoimento de parte poderá ficar ainda a dever-se a estarem em causa factos que não são pessoais do depoente ou factos acerca dos quais o depoente não deva ter conhecimento.
Da matéria da petição inicial:
- os pontos 12, 13, 33 2.ª parte, 43, 53, na parte
nenhum dos AA. conhece o 2.º R.
e 54 não são factos pessoais ou de que o R. deva ter conhecimento;
- os pontos 14, 16, 26, 31, 33 1.ª parte, 36, 37, 39, 42, 43, 44, 48 e 50 integram matéria conclusiva e/ou de índole jurídica
- os pontos 30, 34, 35, 45, 49, 50, 52 e 53 até
na conta do seu pai
2.º R. integram matéria conclusiva e/ou a provar documentalmente;
- o ponto 25 é globalmente incompreensível, não constitui facto pessoal do R. e contém conclusão.
Da matéria da réplica:
- os pontos 48, 49, 50 e 51 não constituem factos pessoais do A. ou de que este deva ter conhecimento;
- os pontos 5, 9 e 34 constituem repetição;
- os pontos 6, 7,11,13, 14, 15, 21, 23 carecem de prova documental;
- os pontos 8, 12, 18, 19, 20, 22, 35, 36, 37 e 40 são conclusivos e/ou repetitivos.
Se bem vemos, restam para apreciação sobre se relativamente aos mesmos deve incidir depoimento de parte do R.:
- da petição inicial, os pontos 10, 11, 15, 17, 18, 19, 27, 28, 29, 32, 38, 46, 47 e 53, na parte relativa a que nenhum dos AA. conhece o 2.º R., pai do 1.º R. e 54.
- da réplica: os pontos 16, 17, 24, 32, 33, 38, 39, 41 e 47.
Expurgada que está a matéria de facto relativamente à qual foi admitido o depoimento de parte do 1.º R. de factos que não são pessoais ou de que não deva ter conhecimento, da matéria jurídica, conclusiva, repetida e que depende de prova documental, analisemos se versa factos criminosos ou torpes de que seja arguido.
Constata-se que não consta dos autos que o 1.º R. haja sido constituído arguido por factualidade relacionada com a da presente ação.
Sustenta, ainda assim, o apelante que o art.º 454.º/2 há de ser interpretado no sentido de que a recusa de depoimento é legítima sempre que o objeto do mesmo incidir sobre matéria da qual possa resultar a responsabilidade criminal do depoente. Isto independentemente da qualidade processual que o depoente em concreto e no momento da prestação do depoimento assuma num eventual procedimento criminal.
Para Isabel Alexandre (
in
Provas Ilícitas em Processo Civil
, Almedina, p. 53), a restrição decorrente do n.º 2 do art.º 454.º do C.P.C. consubstancia uma proibição de demonstração de factos criminosos ou torpes, independentemente do meio de prova utilizado.
Preceitua o art.º 61.º/1/d do Código de Processo Penal (C.P.P.) que o
arguido goza, em especial, em qualquer fase do processo e salvas as exceções da lei, do direito de
n
ão responder a perguntas feitas, por qualquer entidade, sobre os factos que lhe forem imputados e sobre o conteúdo das declarações que acerca deles prestar.
O direito do arguido ao silêncio tem origem no direito à não autoincriminação, corolário do processo equitativo (
fair trial
), a que se reportam os artigos 20.º/4.º da Constituição, 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e 14.º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos.
Está em causa o princípio constitucional de proibição da autoincriminação, expresso pelo brocardo
nemo tenetur se ipsum accusare
.
Segundo este princípio, ninguém é obrigado a auto-incriminar-se ou a contribuir para a sua própria condenação. Todos têm o direito de não testemunhar contra si próprios, de não produzirem prova contra si mesmos ou de fornecer coativamente qualquer tipo de declaração ou informação que os possa incriminar, apresentando elementos que provem a sua culpabilidade.
No fundo, trata-se do princípio segundo o qual, em processo penal, ninguém pode ser coercivamente obrigado a contribuir ativamente para a sua condenação
(
in
ac. da Relação de Coimbra de 24-5-2023, proc. 221/18.0GAMIR.C1, Helena Bolieiro).
O direito do arguido à não auto-incriminação, entendido como o direito de não contribuir para a sua própria incriminação está ligado ao direito ao silêncio. A não ser reconhecido ao arguido o direito a manter-se em silêncio, este seria obrigado a pronunciar-se e a revelar informações que poderiam contribuir para a sua condenação.
O núcleo irredutível do nemo tenetur reside na não obrigatoriedade de contribuir para a auto-incriminação através da palavra, no sentido de declaração prestada no processo e para o processo. A auto-incriminação, a existir, tem de ser livre, voluntária e esclarecida (in
ac. da Relação de Évora de 09-10-2012
, proc. 199/11.0 GDFAR.E13, Ana Barata Brito)
.
A jurisprudência tem vindo a consolidar o entendimento de que o depoimento de parte, versando sobre factos favoráveis ao depoente, pode ser valorado à luz do princípio geral da livre apreciação da prova
(cf. ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 4-6-2015, proc. n.º 3852/09.5TJVNF.G1.S1, João Bernardo).
Nesse caso, o tribunal, não se deverá basear exclusivamente nessas declarações para formar a sua convicção
(ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 8-9-2015, proc. n.º 10562/12, Henrique Antunes).
Encontra-se, assim, ultrapassada a conceção restrita segundo a qual o depoimento de parte só pode ser valorado desde que os factos sobre que incide sejam suscetíveis de confissão, sendo antes de admitir a valoração do depoimento de parte, no segmento em que os factos favorecem o próprio depoente, segundo o princípio da livre apreciação da prova por parte do tribunal.
Nada obstando à valoração de factos favoráveis ao depoente que venham a resultar espontaneamente do seu depoimento de parte, a admissão prévia deste meio de prova encontra-se, assim mesmo, sujeita à verificação dos requisitos legalmente previstos para o efeito. E estes encontram-se intrinsecamente ligados ao já explicitado objetivo fundamental do legislador aquando da previsão da possibilidade de as partes prestarem depoimento (que não as declarações previstas no art.º 466.º do C.P.C.): provocar e obter do depoente uma confissão judicial (cf. ac. do S.T.J. de 21-6-2022, proc. 5419/17.5T8BRG.G1-A.S1, Maria João Vaz Tomé).
Em súmula, a proibição contida no
art.º 454.º/2 do C.P.C. destina-se à proteção da parte obrigada à prestação do depoimento. Este visa a confissão. O depoente está obrigado a
depor com verdade. Obrigá-lo a depor a propósito de factos criminosos equivaleria a um convite à mentira. Tal não pode ter sido querido pelo legislador. O intérprete deve presumir que o legislador adotou as soluções jurídicas mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, conforme se prevê no art.º 9.º/3 do C.C..
Entende-se, assim, que assiste ao R. FF o direito a não depor a propósito da matéria suscetível de o incriminar. Isto apesar de, porventura até à data, não ter sido constituído arguido em função da factualidade invocada.
O depoimento prestado na ação cível não deve ser entendido como estanque e insuscetível de extravasar para o âmbito penal.
Na verdade, pressupondo-se que o R. FF falasse com verdade, poderia ser o depoimento prestado em tribunal a desencadear o procedimento criminal. O R. tem o direito constitucionalmente protegido a obstaculizar a esse, ao menos em abstrato, possível desenlace.
Em nosso entender, porém, nem toda a factualidade remanescente é de molde a incriminar o R.. Tampouco reveste torpeza para os efeitos do estabelecido no art.º 454.º/2 do C.P.C..
Respigamos a seguinte matéria como penalmente neutra e moralmente inócua:
- da petição inicial:
do ponto 27: todos os procedimentos relativos ao empréstimo bancário foram promovidos e realizados pelo R. FF;
do ponto 29: o 1.º A. entregou o cheque ao 1.º R. após a escritura, à porta do cartório onde se realizou a escritura, onde o 1.º R. se encontrava a aguardar que a mesma terminasse.
da réplica:
16 -, pontos 1, 2 e 3
Ponto 17:
Ponto 33 na parte em que se afirma que o R. FF declarou aos AA. DD e EE que os negócios lhe tinham corrido mal em Inglaterra, pedindo-lhes empréstimos de € 100,00, de € 200,00, transferidos pelo A. EE.
E ainda no que se reporta aos pontos 38, 39, 41 e 47 da réplica.
Ainda assim, a factualidade aludida deverá ser expurgada de repetições, elementos conclusivos e redundâncias.
Em suma, o depoimento de parte do R. FF deverá ser prestado no que se refere à seguinte materialidade:
a - Da petição inicial
do ponto 27: todos os procedimentos relativos ao empréstimo bancário foram promovidos e realizados pelo R. FF;
do ponto 29: o 1.º A. entregou o cheque ao 1.º R. após a escritura, à porta do cartório onde se realizou a escritura, onde o 1.º R. se encontrava a aguardar que a mesma terminasse.
b - da réplica:
do ponto 16: p
ara a resolução dos problemas existentes, o R. FF aconselhou os AA. CC, DD, BB e EE na realização de um procedimento, com os seguintes passos:
1 - Os AA. CC e BB contrairiam vários créditos ao consumo rápidos, via net, de aprovação automática.
2 - Procederiam à abertura de uma conta bancária, no “Banco 3...”, em nome de HH, filho dos AA DD e BB.
3 - Após recebidos os dinheiros dos créditos contraídos por CC e BB, os dinheiros seriam imediatamente transferidos para a nova conta do HH.
Ponto 17: no período compreendido entre 26/09/2018 e 23/10/2018, o R. FF agilizou a celebração, em nome dos AA. CC e BB, dos seguintes créditos:
A) Em nome do A. BB:
- em 26/09/2018, no Banco 3..., 22158,44 Eur
- em 28/09/2018, no Banco 5..., 32437,66 Eur
- em 02/10/2018, na C..., 28036,27 Eur
B) Em nome da A. CC:
- em 08/10/2018, na C..., 24102,32 Eur;
- em 17/10/2018, no Banco 5..., 25.021,65 Eur;
- em 23/10/2018, na D..., 10985,63 Eur
Do ponto 33: o R. FF declarou aos AA. DD e EE que os negócios lhe tinham corrido mal em Inglaterra, pedindo-lhes empréstimos de € 100,00, de € 200,00, transferidos pelo A. EE.
38, 39, 41 e 47.
Do ponto 38: o R. FF exigiu aos AA que os seus serviços fossem antecipadamente pagos.
Do ponto 39: a A. CC pagou ao R. FF a quantia total de €13.000,00 no período compreendido entre meados de 2017 e início de 2018.
Dos pontos 41 e 47: o R. FF não prestou qualquer serviço à A. AA que desse lugar a remuneração
*
V - Dispositivo
Nos termos sobreditos, acorda-se em conceder provimento parcial ao recurso, revogando-se a decisão na parte em que admitiu o depoimento de parte do R. FF a toda a matéria indicada, devendo este ficar circunscrito nos termos que imediatamente antecedem.
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Custas por apelante e apelados, que se fixam em metade para o apelante e em metade para os apelados, atento o decaimento parcial de cada uma das partes (art.º 527.º/1/2 do C.P.C.).
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Porto, 4 de junho de 2025
Teresa Fonseca
Fernanda Almeida
Fátima Andrade
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TRP
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https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/63b45de3ba99231480258cad004e3bac?OpenDocument
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1,750,118,400,000
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REVOGADA A SENTENÇA
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2353/22.0T8VNG-A.P1
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2353/22.0T8VNG-A.P1
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ANABELA MIRANDA
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I - Na qualificação da insolvência como
culposa
, decorrente do incumprimento grave do dever de apresentação à insolvência, a lei exige a prova de que essa omissão
agravou
esse estado no período
suspeito
, ou seja, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
II - O comportamento prejudicial ao interesse dos credores, anterior a esse período de três anos, ainda que subsumível nas hipóteses legais demonstrativas de uma insolvência culposa, nenhuma relevância jurídica assume, devendo a insolvência ser qualificada como
fortuita
.
II - O vencimento de juros não é considerado factor de
agravamento
da insolvência.
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[
"INSOLVÊNCIA",
"VIOLAÇÃO GRAVE DO DEVER DE APRESENTAÇÃO À INSOLVÊNCIA",
"EFEITOS"
] |
Processo n.º 2353/22.0T8VNG-A.P1
Relatora: Anabela Andrade Miranda
Adjunto: João Diogo Rodrigues
Adjunta: Alexandra Pelayo
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Sumário
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………………………………
………………………………
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I—RELATÓRIO
O credor
AA
, em 23 de Março de 2022, requereu a qualificação da insolvência como culposa, e, nessa sequência, a afectação do gerente da devedora,
BB
, com as correspondentes sanções de inibições legais pelo período de 8 anos.
Alegou, para tanto, que aquele gerente incumpriu com o dever de apresentação da sociedade devedora à insolvência nos termos legalmente previstos já que terá iniciado os seus incumprimentos perante os credores em fevereiro de 2009, tendo dívidas quer perante a Fazenda Pública, quer perante a Segurança Social Portuguesa, ao que ainda acresce o facto de, desde o ano de 2014, não terem sido depositadas as contas anuais na Conservatória do Registo Comercial competente, e de o gerente ter dissipado património da insolvente, com prejuízo para os credores.
*
A Sr.ª Administradora da insolvência apresentou o seu parecer no qual propôs a qualificação da presente insolvência como culposa, nos termos do disposto no art.º 186.º, n.º 3, alíneas a) e b), e n.º 2, alíneas d), h) e i), todos do CIRE, devendo ser atingido por essa qualificação o sócio gerente BB.
*
Declarado formalmente aberto o presente incidente, por despacho datado de 15.12.2022, foi cumprido o disposto no art.º 188º, n.º 7, do CIRE e o Ministério Público propôs que a insolvência fosse qualificada como culposa, reputando verificadas as situações previstas no art.º 186.º, n.ºs 1, 2, alíneas d), h) e i), e n.º 3, alíneas a) e b), do CIRE, devendo ser afectado o requerido BB, já devidamente identificado nos autos.
*
Citado o gerente da devedora e notificada a sociedade insolvente, deduziu oposição impugnando os factos já aduzidos aos autos, designadamente:
.alertando para o facto de a dívida inicial existente para com o credor requerente do presente incidente já ter sido liquidada, e que o valor global alegado/reclamado pelo aludido credor se encontrar a ser discutido em acção própria ainda pendente;
.negando qualquer dolo na alegada falta de colaboração imputada ao gerente por banda da Sr.ª administradora da insolvência, desde logo a sua parca escolaridade, e apresentou a versão de que nunca foi equacionada a possibilidade de os credores serem prejudicados, em face da existência de património pessoal por banda do gerente (imóveis de elevado valor), património este que sempre seria destinado, em última instância, à satisfação dos créditos reconhecidos na insolvência (designadamente ao Estado e à Segurança Social).
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A insolvência foi declarada em 04/09/2022.
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O processo principal veio a ser encerrado por insuficiência da massa insolvente, em razão do que se deixou consignado que o presente incidente assume os seus trâmites processuais como incidente limitado.
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Foi proferido despacho saneador, no qual se tomou conhecimento das excepções deduzidas quer pelo credor requerente quer na oposição junta aos autos, julgando-as improcedentes, e se delimitaram e identificaram os temas da prova, nos termos exarados no despacho datado de 28.05.2023.
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Proferiu-se sentença que decidiu:
-qualificar a insolvência de “A..., Lda”, com os demais sinais identificadores constantes dos autos, como culposa;
-ser pessoa afectada pela presente qualificação o gerente da Insolvente, BB;
-decretar a inibição de BB para administrar património de terceiros, por um período de 2 (dois) anos e 10 (dez) meses;
-decretar a inibição para o exercício do comércio do requerido BB durante um período de 2 (dois) anos e 10 (dez) meses, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa;
-condenar BB a indemnizar os credores da devedora insolvente, reconhecidos na lista mais recente apresentada pela administradora da insolvência, no montante de 50% dos créditos não satisfeitos até à presente data (metade de € 117.642,81), acrescido do montante de € 8.245,76 (devendo contabilizar-se eventuais abatimentos que tenham vindo a ocorrer), até às forças do seu respectivo património.
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Inconformado com a decisão, o Requerido interpôs recurso finalizando com as seguintes
Conclusões
1. Desde logo deve ser conferido efeito suspensivo ao presente recurso pelos motivos acima expostos.
2. Posto isto:
3. Este processo de insolvência poderia ter tido outro curso se a sua contestação nos autos principais não tivesse sido desentranhada por falta de pagamento da taxa de justiça e consequentemente tenha sido declarada insolvente por falta de contestação.
4. O requerente deste incidente, já recebeu todo o montante que lhe era devido (facto que a Insolvente e o seu gerente tiveram que batalhar bastante para ver reconhecido nos presentes autos).
5. Também as dívidas ao Estado se encontram com acordos celebrados e em pagamento.
6. É certo que as obrigações contabilísticas nem sempre foram devidamente respeitadas, porém e conforme testemunho da própria contabilista, estas falhas não são imputáveis à sociedade ou ao seu gerente, mas antes à empresa que assumiu a contabilidade da empresa, conforme se demonstrou supra.
7. O testemunho da Contabilista certificada CC (que não foi indicada pela insolvente ou pelo seu gerente) foi fundamental para compreender o sucedido com esta sociedade e a ausência de culpa (ou pelo menos de culpa grave ou dolo) do Sr. BB.
8. O gerente da insolvente tudo fez para inverter a situação em que sociedade se encontrava, procurando honrar, dentro do possível, todos os seus compromissos – evolução que é visível nestes autos, como raramente será nos demais processos de insolvência.
9. Além das entidades públicas, que se encontram regularizadas (com acordos em cumprimento), apenas são reconhecidas duas letras vencidas em 2009, que a insolvente realmente não conseguiu juntar os comprovativos do seu pagamento (por não os encontrar), mas cuja prescrição foi alegada.
10.Se o Tribunal a quo teve a sensibilidade de compreender o esforço feito para redução tão substancial (quase 50%) do passivo societário, num período de tempo reduzido, não logramos compreender a condenação sentenciada.
11.É certo que o desconhecimento da Lei não aproveita aos seus infratores e que o Tribunal a quo não considerou provada a falta de habilitações literárias e o percurso laboral desde tenra idade do gerente da insolvente, embora faça alusões a uma perceção de “ingenuidade” não desculpante dos atos que qualifica como culposos (cfr. pág. 25 da sentença), no entanto, se ponderarmos esta factualidade e a conjugarmos com a fundamentação de Direito, verificamos que não se encontravam preenchidos os pressupostos para a condenação como culposa do presente incidente.
12.Não estão preenchidos os pressupostos do artigo 186º do CIRE porquanto não houve dolo ou culpa grave, nem é referida qualquer factualidade dos últimos 3 anos prévios à declaração de insolvência.
13.Não é apontada na sentença recorrida qualquer factualidade relativa aos anos 2019, 2020, 2021 e 2022, sendo apenas discutidas questões relativas a anos anteriores.
14.As dívidas originárias eram de expressão reduzida no computo do passivo da sociedade (estando incrivelmente inflacionadas por juros e despesas e ainda assim sendo de montante reduzido na expressão do passivo).
15.Estes títulos de crédito estão prescritos.
16.Assim como foi difícil para esta sociedade apresentar todos os elementos contabilísticos que lhe foram exigidos, também é muito complicado fazer prova do cumprimento de uma obrigação de 2009.
17.O próprio Tribunal a quo reconhece ao longo da sentença que culpa do Requerido/Gerente BB e, consequentemente, da insolvente, não é muito elevada, mencionando até por vezes que lhe percecionou alguma “ingenuidade” que não considerou no entanto como desculpante.
18.Razão pela qual a insolvência não deve ser considerada culposa mas sim fortuita.
19.Dado que não houve conduta do sócio-gerente BB que preencha os requisitos que levem à insolvência culposa.
20.Revogando-se assim a decisão anterior por outra que decida nestes termos.
*
II—
Delimitação do Objecto do Recurso
A questão principal
decidenda
, delimitada pelas conclusões do recurso, consiste em saber se a insolvência deve ser qualificada como culposa.
[1]
*
III—FUNDAMENTAÇÃO
FACTOS PROVADOS
(elencados na sentença)
1.A insolvente é uma sociedade comercial cujo objecto social se destinava a fabricação e comercialização de produtos alimentares e bebidas, nomeadamente pão, bolos, doces e produtos de pastelaria e confeitaria, bem como tabaco, jornais, revistas, brindes e lembranças; exploração de café e snack-bar, com um capital social de € 25.000,00, composto por duas quotas, a saber, uma no valor de € 5.000,00 pertencente a BB e uma outra no valor de € 20.000,00 pertencente à sociedade por quotas unipessoal B..., Unipessoal, Lda.;
2.Na estrutura societária da insolvente não ocorreram quaisquer alterações, tendo o sócio BB se mantido sempre na sua gerência, sendo que a última factura comunicada pela insolvente à Autoridade Tributária respeita a fevereiro de 2015, encontrando-se com a sua actividade cessada, em sede de IVA, com efeitos desde 31.03.2015, nos termos do art.º 34.º, n.º 1, alínea b), do CIVA;
3.À data em que foi decretada a sua insolvência – 04.09.2022 -, a insolvente já se encontrava inactiva e sem trabalhadores ao seu serviço;
4.A administradora da insolvência notificou a insolvente, na pessoa do seu ilustre mandatário, para a entrega de um conjunto de elementos tidos por necessários para a elaboração do relatório a que alude o art.º 155.º do CIRE, entre eles os mencionados no art.º 24.º do CIRE e os da sua contabilidade (devidamente descritos e aduzidos no parecer da administradora da insolvência, que aqui se dão por reproduzidos, por razões de brevidade processual), tendo a devedora A..., por comunicação de 30.09.2022-na pessoa do seu ilustre mandatário– solicitado prorrogação do prazo para apresentação dos elementos solicitados, até ao dia 06.10.2022, sendo que aos 13.10.2022 ainda nada havia sido disponibilizado ou entregue à Sr.ª administradora da insolvência;
5.A sociedade insolvente foi notificada pela administradora da insolvência para disponibilizar a senha de acesso ao Portal da AT, atendendo a que desta forma seria possível de forma mais expedita aceder às contas anuais da insolvente e as declarações fiscais ainda disponíveis para consulta, tendo a insolvente referido que iria solicitar junto da AT nova senha de acesso por o TOC anteriormente responsável pela contabilidade ter deixado de exercer a sua actividade;
6.Aos 13.12.2022, a insolvente foi novamente notificada para entrega à administradora da insolvência dos elementos já anteriormente solicitados, em face do que informou ser detentora de 21 capas A4 relativas à contabilidade da A..., que se disponibilizava a entregar, em face do que veio a Sr.ª administradora a deslocar-se ao escritório do ilustre mandatário da insolvente no dia 14.10.2022 com vista à recolha dos aludidos 21 dossiers;
7.Analisado o teor dos mencionados dossiers, verificou-se que nenhum continha os documentos referentes ao dossier fiscal da insolvente, nem nenhum documento complementar àquele, tais como Balancetes, Demonstrações Financeiras, Modelo 22, IES ou mapas de elementos do activo, contendo apenas documentos referentes aos diários de compras, vendas, bancos (estes sem quaisquer extratos bancários completos e sequenciais);
8.Os elementos disponibilizados referidos em 7) não permitem nem permitiram conhecer a real situação patrimonial, económica, e financeira da A..., Lda., não tendo sido entregues à administradora da insolvência nenhum dos documentos a que alude o art.º 24.º do CIRE nem prestada informação acerca da identificação do contabilista certificado, nem mesmo facultada a senha de acesso ao Portal da Autoridade Tributária;
9.Em face da relatada falta/deficiência de elementos fornecidos à administradora da insolvência, não logrou esta apurar as reais causas que levaram à situação insolvencial da sociedade devedora, não se tendo mostrado possível a avaliação da concreta posição económico-financeira da dita sociedade;
10.A insolvente exerceu a sua actividade enquadrada no regime normal trimestral de IVA, tendo apresentado contas anuais (IES) até ao exercício de 2013 inclusive, sendo que a prestação de contas individual do exercício de 2010 foi apresentada sem valores - conforme documento n.º 3 junto com o parecer da administradora da insolvência, que aqui se dá por reproduzido (fls.38 verso a fls. 151 deste apenso) – não obstante a devedora ter exercido actividade no exercício de 2010, gerando receitas e suportando despesas nesse mesmo exercício;
11.A prestação de contas individual do exercício de 2013 foi apresentada com os mesmos valores do exercício de 2012, não obstante a A... ter exercido actividade no exercício de 2013, gerando receitas e suportando despesas nesse mesmo exercício;
12.A A... não apresentou as contas anuais respeitantes aos exercícios de 2014 e 2015, pelo que não foi cumprida a obrigação legal estipulada no art.º 70.º do CSC relativamente aos exercícios desses anos, não obstante ter tido actividade comercial;
13.A A... não apresentou as declarações fiscais em sede de IRC relativamente aos últimos cinco exercícios, não tendo sido possível à administradora da insolvência percepcionar se as dos períodos subsequentes foram ou não entregues;
14.A sociedade devedora não disponibilizou à AI os relatórios de gestão, desconhecendo-se se foi ou não cumprido o preceituado nos art.ºs 65.º e 66.º do CSC;
15.A contabilidade da devedora insolvente tem como responsável técnico no cadastro da AT a Contabilista Certificada CC, tendo a administradora da insolvência notificado a sociedade que executou a elaboração da contabilidade da A... desde o exercício de 2010 para a entrega dos dossiers fiscais respeitantes aos últimos exercícios de actividade, o que não se mostrou possível por alegadas razões de transferência de ficheiros e do sistema informático para outra empresa, bem como ao alegado facto de a Contabilista que se encarregava dos dados da insolvente ter deixado de colaborar com aquela empresa em data concretamente não apurada mas sempre entre finais de 2018 e abril de 2019;
16.A partir dos (escassos) elementos contabilísticos a que a AI teve acesso, e através da análise aos valores inscritos nos exercícios de 2011 e 2012, verificou-se que o volume de negócios da A... variou de forma negativa do ano de 2011 para 2012;
17.Da análise às declarações periódicas trimestrais do IVA dos anos de 2013 e de 2014, verificou-se que a tendência decrescente do volume de negócios se manteve, pois as transmissões de bens e prestações de serviços de 2013 situaram-se nos € 105.801,47 e de 2014 nos € 94.214,56;
18.No primeiro trimestre do ano de 2015 – trimestre em que a sociedade insolvente cessou a actividade em IVA, o que ocorreu mais precisamente em 31.03.2015 – as vendas e prestações de serviços apresentam um valor de € 28.739,68;
19.Ao abrigo do disposto no art.º 129.º do CIRE, foram reconhecidos créditos sobre a insolvência no valor global de € 211.213,90 (duzentos e onze mil duzentos e treze euros e noventa cêntimos), sendo € 21.241,50 de natureza privilegiada (art.º 98.º do CIRE), € 189.928,36 de natureza comum, e € 44,05 de carácter subordinado;
20.Foram reconhecidos, pela Sr.ª administradora da insolvência, ao credor Segurança Social Portuguesa créditos no valor global de € 59.576,84, por referência à falta de pagamento das contribuições e cotizações reportadas aos meses de março de 2009 a dezembro de 2009, janeiro 2010 a junho de 2010, agosto de 2010 a novembro de 2010, janeiro de 2011 a dezembro de 2011, janeiro de 2012 a junho de 2012, agosto de 2012, outubro de 2012 a dezembro de 2012, janeiro de 2013, setembro de 2013 a dezembro de 2013, janeiro de 2014 a dezembro de 2014, janeiro de 2015 a maio de 2015, tudo como flui do apenso B, cujo processado aqui se dá por reproduzido, para os devidos e legais efeitos;
21.À Autoridade Tributária e Aduaneira foi reconhecido pela administradora da insolvência, o valor global de € 23.035,45 respeitante ao IRC dos anos de 2008 e 2015, IRS dos anos de 2009 a 2014, IVA referente aos anos de 2009, 2010 e 2012, e encargos, coimas e custas, tudo como flui do teor do processado junto ao apenso B, que aqui se dá por reproduzido;
22.Foram reclamados créditos (reconhecidos pela AI) pela Banco 1..., S.A., e pelo Banco 2..., S.A., respeitante a duas letras em que é sacada a A... vencidas em 22.06.2009 e 22.07.2009 no valor de, respectivamente, € 14.866,06 e € 13.214,28;
23.Nas IES do exercício de 2012, a A... apresentava um activo dividido em corrente e não corrente (consoante o que é exigível a curto ou médio/longo prazo, sendo que a rubrica de ativos fixos tangíveis – em 2012 – apresentava um valor contabilístico de € 45.333,68, desconhecendo-se qual o valor da rúbrica de activos fixos tangíveis por reporte aos anos seguintes, atenta a ausência de elementos contabilísticos;
24.Aos 31.03.2015, a sociedade “A..., Lda.” vendeu à sociedade “C..., Lda.”, NIPC ..., vários equipamentos (activo fixo tangível), pelo preço de € 8.245,76 acrescido de IVA, designadamente, vestiários, mesas e cadeiras, forno e estufa, armário mural, frigorífico, utensílios de cozinha, máquina de tabaco, equipamento administrativo, mobiliário de escritório, equipamento informático, arca congeladora, LCD 42 com suporte, equipamento ..., entre outros, tudo conforme cópia da factura n.º ... de 31.03.2015 junta como documento 23 no parecer da Sr.ª Administradora da insolvência (fls. 218 verso deste apenso), e que aqui se dá por reproduzida;
25.A sociedade insolvente foi notificada pela administradora da insolvência para entregar a relação de bens consagrada na norma constante do art.º 24.º, n.º 1, alínea e), do CIRE, sendo que nada veio dizer ou requerer a esse título, nem entregou qualquer activo para efeitos de arrolamento e apreensão a favor da massa insolvente;
26.Desde 20.12.2017, a insolvente constava na Lista Pública de Execuções por inexistência de bens penhoráveis;
27.As últimas facturas comunicadas pela A... à AT foram emitidas em fevereiro de 2015, num total de € 3.725,00, conforme documento junto com o parecer da AI sob o n.º 24, cujo teor aqui se dá por reproduzido;
28.A sociedade “C..., Lda.” mencionada em 24), foi constituída em 02.02.2015, com o objecto societário de “fabricação e comercialização de produtos alimentares e bebidas, nomeadamente, pão, bolos, doces e produtos de pastelaria e confeitaria, bem como tabaco, jornais, revistas, brindes e lembranças; exploração de café e snack-bar”, tendo fixado a sua sede social na Rua ..., ... (vide certidão junta com o parecer da AI como documento 25, que aqui se dá por reproduzido);
29.O capital social da «C..., Lda.» é constituído, desde o início da sociedade, por duas quotas, uma no valor de € 4.500.00 pertencente a DD (NIF ...) e outra no valor de € 500,00 pertencente a “B... Unipessoal, Lda.” (sócia da A...);
30.A gerência da “C..., Lda.”, ficou confiada ao requerido BB;
31.Aquando da elaboração do parecer da Sr.ª Administradora da Insolvência, a sociedade que se encontrava a explorar o estabelecimento comercial outrora explorado pela A... era a sociedade “D..., Lda.”, NIPC ..., constituída em 22.02.2021, com o objecto societário “Pastelaria, fabrico de pão e bolos, serviço de esplanada, venda de tabaco, restauração com lugares ao balcão”, tendo a sua sede social sido fixada na Rua ..., ...;
32.O capital social da sociedade aludida em 31) é constituído por duas quotas, uma no valor de € 300,00 (trezentos euros), pertencente a BB e outra no valor de € 700,00 (setecentos euros) pertencente a B... UNIPESSOAL, Lda., sendo que a sua gerência ficou confiada a BB (sócio e gerente da insolvente A...);
33.Não obstante a inactividade da A... desde o ano de 2015, continuou a ser feita publicidade à denominação “A...”, designadamente nos blackout´s que no estabelecimento comercial ainda permaneciam e da publicidade afixada no exterior;
34.Em alguns dos documentos consultados pela administradora da insolvência verificou-se que a morada « Rua ..., ...» embora não sendo o local da sede da insolvente era também utilizada pela insolvente como sendo a morada do seu estabelecimento, pelo que, não obstante a A... ter a sua sede social fixada na Rua ..., ..., também usava a morada Rua ..., ..., como morada associada ao seu estabelecimento comercial (o estabelecimento tem acesso por ambas as ruas);
35.Apesar de desde o ano de 2009, a A... ter obrigações vencidas, continuou a exercer a sua actividade até 31.03.2015, nunca se tendo apresentado à insolvência;
36.Ao não se ter apresentado à insolvência, a insolvente, através da pessoa do seu gerente, deu continuidade à sua exploração (deficitária), acumulando novas dívidas, designadamente perante a Fazenda Nacional e à Segurança Social, situação que o aludido gerente não podia ignorar, o que provocou incremento do seu passivo;
37.Pelo menos, desde 31.03.2015 – data em que cessou a sua actividade em termos de IVA e em que transmitiu todo o activo que lhe era conhecido (a favor da sociedade “C..., Lda.”) que não é conhecido qualquer giro comercial à insolvente, estando a mesma incapaz de gerar meios financeiros capazes de saldar o seu passivo, apresentando nessa altura um passivo de valor não inferior a € 190.692,63, sendo que 42% desse passivo era devido ao ESTADO (AT e SS);
38.Aos 20.12.2017, a A... é inscrita na Lista Pública de Execuções pelo motivo aposto de “inexistência de bens”;
39.Por virtude dos factos aludidos em 37) e 38), a não apresentação da A... à insolvência nos anos de 2009 a 2012, agravou a sua situação insolvencial, facto que o requerido, enquanto seu gerente, não podia desconhecer;
40.O requerido BB exerceu sempre as funções de gerente da insolvente, decidindo os destinos da mesma;
41.O requerido diligenciou por entregar e amortizar a dívida ao credor requerente da insolvência AA, após ter havido lugar a transação homologada em 20.05.2015 no âmbito do processo n.º 218/14.9T8VNG, no valor global contabilizado pela administradora da insolvência em 78.000,00 €, tudo como flui da lista anexa à exposição de 29.06.2023 da AI junta ao apenso B, que aqui se dá por reproduzida, para os devidos e legais efeitos;
42.No âmbito da lista de créditos actualizada (a 29.06.2023) junta pela AI no âmbito do apenso de reclamação de créditos, foi reconhecido ao credor requerente da insolvência, o crédito de € 38. 165,98, sendo que € 28.944,36 foram ali insertos sob condição suspensiva, por forma a remeter o concreto valor em dívida para o que vier a resultar da decisão a ser proferida pelos embargos de executado pendentes a tal respeito, por referência à interpretação do que as partes haverão estipulado a título de cláusula penal no acordo almejado entre ambas em processo judicial);
43.O aqui credor requerente deixou de figurar como credor na lista mais recente actualizada pela administradora da insolvência, uma vez que o seu crédito veio a ser satisfeito;
44.Na decorrência da dívida da sociedade insolvente perante a Segurança Social Portuguesa, houve lugar a reversão, estando o requerido BB a efectuar pagamentos àquela entidade, tudo como flui dos documentos juntos a este apenso com a exposição de ref.ª 46847495;
45.O requerido tem 53 anos de idade, e é empresário do ramo da hotelaria;
46.Não foram apreendidos quaisquer bens a favor da massa insolvente – à excepção de um saldo de € 216,01 -, tendo o processo principal sido encerrado por insuficiência da massa insolvente por despacho proferido em 15.12.2022;
47.Na lista de créditos mais recente – devidamente actualizada em 29.01.2025 – a administradora da insolvência fez saber que os créditos que se mantém operantes são os dos credores Autoridade Tributária (€ 24. 213,22), os da Segurança Social (€ 49.793,96), os da Banco 1... (€ 23.056,70), e os do Banco 2... (€ 20.578,93) – todos eles comuns e em parte subordinado, totalizando a globalidade do passivo o montante de € 117.642,81, tudo como flui da exposição e lista anexa à mesma com a ref.ª 51178167, que aqui se dá por integralmente reproduzida, para os devidos e legais efeitos.
*
Factos não Provados
a)Os trabalhadores (ou alguns deles) que estiveram vinculados à A... tivessem transitado para a sociedade que lhe sucedeu na exploração do estabelecimento comercial;
b)O requerido BB detenha património pessoal, designadamente imóveis de avultado valor, de valor superior ao montante da dívida global apurada pela administradora da insolvência;
c)O requerido BB detenha parca escolaridade e que, nessa decorrência, não estivesse inteirado das falhas e incumprimentos contabilísticos acima apurados, e tivesse achado que as capas de arquivo que entregou à AI respondessem a todas as questões suscitadas.
d)As contas anuais do exercício da empresa nos anos de 2013 a 2018, e que a omissão dos depósitos dos legais documentos contabilísticos se tenha ficado a dever a falha da Autoridade Tributária;
e)O agravamento da situação económica da empresa se tenha ficado a dever única e exclusivamente a factores exógenos à pessoa do aqui requerido;
f)DD seja divorciada do gerente da A..., ora requerido BB;
g)O requerido BB tenha celebrado acordo de pagamento prestacional com a AT e esteja a proceder ao pagamento da dívida reconhecida a tal credor no âmbito destes autos;
h)As dívidas reconhecidas aos credores Banco 2... e Banco 1... derivem de duas letras indevidamente cobradas.
*
IV-DIREITO
No presente
incidente
de
qualificação
da
insolvência
, o tribunal
a quo
considerou-a culposa por falta de apresentação da devedora à insolvência no prazo legal para esse efeito, ter disposto dos bens em proveito de terceiros, favorecendo outra empresa na qual o gerente tem interesse directo-(cfr. 186.º, n.º 2, als. d) e f) e n.º 3, al.a) do CIRE).
O Recorrente discordou frontalmente do enquadramento jurídico sustentado na sentença argumentando nomeadamente que não é apontada na sentença recorrida qualquer factualidade relativa aos anos 2019, 2020, 2021 e 2022, sendo apenas discutidas questões relativas a
anos anteriores
.
Defendeu que foi desconsiderado que, entre o momento da declaração de insolvência e a sentença deste incidente já foi liquidado 50% do passivo e, à exceção das dívidas ao Estado que reverterão naturalmente para o seu gerente, as demais dívidas são de 2009, foram impugnadas e eram de expressão reduzida no cômputo do passivo da sociedade. Entende que estas dívidas de 2009 estão prescritas.
Acrescentou que a afectação da qualificação da insolvência não só o afecta a si pessoalmente como também os trabalhadores que dele dependem.
Reconheceu a
imperfeição
da sua actuação, declarando, contudo, que não foi dolosa pois liquidou todo o passivo que conseguiu e continua a fazê-lo.
Regime jurídico aplicável
O regime da
qualificação
da insolvência é uma novidade introduzida no C.I.R.E. que sofreu a influência do direito espanhol, ou seja, do regime homólogo consagrado na recente Ley Concursal, de Julho de 2003.
[2]
No ponto 40 do Preâmbulo do CIRE
[3]
o legislador revelou o objectivo de se conseguir uma
maior e mais eficaz responsabilização dos titulares da empresa e dos administradores de pessoas colectivas,
o que seria útil para evitar o surgimento de condutas altamente prejudiciais à protecção e segurança do tráfego jurídico-mercantil.
Como esclarece Catarina Serra
[4]
, o objectivo do incidente é apurar se houve culpa de algum ou de alguns sujeitos na criação ou no agravamento da situação de insolvência e aplicar certas medidas (sanções) aos culpados.
Segundo o artigo 186.º, n.º 1 do CIRE a insolvência deve ser qualificada como
culposa
na hipótese de ter sido
criada
ou
agravada
em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos
três anos anteriores ao início do processo de insolvência
.
Na anotação a este normativo, de indiscutível importância, Carvalho Fernandes e João Labareda
[5]
esclarecem que “a insolvência culposa implica sempre uma actuação dolosa ou com culpa grave do devedor ou dos seus administradores, de direito ou de facto…” que “…deve ter criado ou agravado a situação de insolvência em que o devedor se encontra.”
E, com muito interesse para a decisão deste caso, aduzem que “…uma actuação com as características e a relevância acima identificadas deixa de ser atendida, para o efeito de qualificar a insolvência como culposa,
se não tiver ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência
.” (sublinhado nosso)
A última parte do preceito legal referente ao designado
período suspeito
é de enorme relevância porquanto só a actuação culposa causadora da insolvência ou do seu agravamento, ocorrida no triénio anterior ao início do processo de insolvência pode ser considerada pelo juiz para efeito de qualificação da insolvência como culposa.
Por outras palavras, qualquer comportamento prejudicial ao interesse dos credores, anterior a esse período de três anos, ainda que subsumível nas hipóteses legais demonstrativas de uma insolvência culposa, nenhuma relevância jurídica assume, devendo a insolvência ser qualificada como
fortuita
.
Sobre as hipóteses legais caracterizadoras de comportamentos que configuram uma situação de insolvência culposa, auxiliadoras do intérprete, rege o n.º 2, do art. 186º, do C.I.R.E.: «Considera-se
sempre
culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto tenham:
a)Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;
b)Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas;
c)Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação;
d)Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
e)Exercido, a coberto da personalidade colectiva da empresa, se for o caso, uma actividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa;
f)Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto;
g)Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;
h)Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;
i)Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração previstos no artigo 83.º até à data da elaboração do parecer referido no n.º 6 do artigo 188.º .
A Lei n.º 9/2022 de 11.02 introduziu no n.º 3 do citado preceito uma nova redação com vista a esclarecer as dúvidas entretanto suscitadas.
Assim, nos termos do n.º 3 do art. 186.º do CIRE “Presume-se
unicamente
a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido:
a)O dever de requerer a declaração de insolvência;
b)A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.
(…).”
Analisando as alíneas do nº 2 do art. 186º, Maria do Rosário Epifânio
[6]
considera que “podem ser agrupadas em três categorias fundamentais, a saber: 1) atos que afetam, no todo ou em parte considerável, o património do devedor; 2) atos que, prejudicando a situação patrimonial, em simultâneo trazem benefícios para o administrador que os pratica ou para terceiros; 3) incumprimento de certas obrigações legais.
(…) O proémio do nº 2 do art. 186º prevê um elenco de presunções
iuris et de iure
, considerando “sempre culposa a insolvência” quando se preencha alguma das suas alíneas.”
Nesta conformidade, se o(s) facto(s) praticado(s) pelos legais representantes da devedora for(em) subsumível(is) a qualquer uma das situações previstas no n.º 2 do art. 186.º do C.I.R.E. presume-se que a insolvência é
culposa
, sendo considerado, pela doutrina e jurisprudência, que estamos perante uma presunção
iuris et de iure
, ou seja,
inilidível
de acordo com o preceituado no art. 350.º do C.Civil.
O Tribunal Constitucional
[7]
pronunciou-se no mesmo sentido: “E assim, uma vez verificado o facto típico previsto na lei (nas várias alíneas deste nº 2), “fica, desde logo, estabelecido o juízo normativo de culpa do administrador, sem necessidade de demonstração do nexo causal entre a omissão dos deveres constantes das diversas alíneas do n.º 2 e a situação de insolvência ou o seu agravamento.”
Em suma, ocorrendo qualquer um dos
factos típicos
previstos no art. 186º nº 2 do CIRE, praticado pelo administrador da insolvente,
nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência
- a insolvência deve sempre qualificar-se como
culposa
por se presumir que foi praticado com dolo ou culpa grave e que criou ou agravou a situação de insolvência, dispensando-se a prova quer da culpa do administrador quer do nexo de causalidade entre o facto ilícito e a situação de insolvência.
Ao invés, quando os administradores, de direito ao de facto, incumpram as obrigações elencadas nas alíneas do n.º 3 do citado preceito legal, e apesar de se presumir a culpa grave dos administradores, para que a insolvência seja qualificada como culposa, a lei exige a prova do
nexo de causalidade
entre esse incumprimento e a situação de insolvência ou o seu agravamento.
Na doutrina, Catarina Serra
[8]
reconhece que a alteração da norma com a introdução do advérbio
unicamente
“tem como inequívoco propósito de esclarecer que a presunção (relativa) aí consagrada respeita apenas ao requisito da culpa grave e a mais nenhum.”
A referida autora refere que a solução legal traduz uma
medida intrigante por ser “dificílimo provar os restantes requisitos da insolvência culposa.
E questiona “Em quantos casos se demonstrará o nexo de causalidade entre o incumprimento da obrigação de apresentação à insolvência ou entre o incumprimento da obrigação de elaborar as contas anuais, de submeter as contas à fiscalização ou de depositar as contas na conservatória do registo comercial e a criação ou o agravamento da insolvência? Desde logo, o incumprimento da obrigação de apresentação à insolvência nunca poderá ser a causa da criação da insolvência, uma vez que é na situação de insolvência que reside a fonte desta obrigação.”
Anteriormente à alteração do mencionado n.º 3, o Acórdão da Relação de Coimbra, de 22/05/2012
[9]
, analisando as respectivas alíneas bem como as alíneas h) e i) do n.º 2 do art. 186.º do CIRE também questionou o conteúdo normativo nos seguintes termos:
“Em que medida é que a não organização ou desorganização da contabilidade e a falsificação dos respectivos documentos – enfim, irregularidades contabilísticas – geram ou agravam a insolvência? Em nenhuma medida; quando muito escondem e ocultam a situação de insolvência, mas não geram ou agravam a situação de insolvência [12].
Em que medida é que o incumprimento do dever de apresentação à insolvência pode ser causa da sua criação (da insolvência)? Em nenhuma medida; quando muito tal incumprimento não revela a, em si pressuposta, situação de insolvência.
Em que medida é que o incumprimento dos deveres de elaboração e de depósito das contas podem ser causa duma insolvência ou sequer do seu agravamento? Em nenhuma medida; quando muito escondem e ocultam a situação de insolvência, mas não geram ou agravam a situação de insolvência.
Em que medida a falta sistemática de comparência e de apresentação, aos órgãos processuais, dos elementos exigidos contribuem para a situação de insolvência? Em nenhuma medida; desde logo, tal falta sistemática de comparência e de apresentação apenas ocorre e releva em momento posterior à própria declaração judicial de insolvência.
Enfim, os actos/factos constantes das alíneas h) e i) do n.º 2 e das alíneas a) e b) do n.º 3 são “estranhos” à ideia de nexo lógico, de conexão substancial, de relação causal com a criação ou o agravamento da situação de insolvência.
O que basicamente está em causa, nas alíneas h) e i) do n.º 2 e nas alíneas a) e b) do n.º 3, é o incumprimento/violação dos deveres específicos dos comerciantes (v. g. art. 18.º do C. Comercial) e/ou dos deveres gerais dos insolventes (cfr. art. 83.º do CIRE)[13]; é a violação ilícita e culposa de tais deveres legais que leva a lei determinar a aplicação do regime (da insolvência culposa) a estas situações.”
Sobre o
incumprimento
da obrigação de apresentação à insolvência, devemos articular com o prescrito sobre a mesma no art. 18º, n.º 1 do CIRE «[o] O devedor deve requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 30 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência, tal como descrita no nº1 do artigo 3º ou à data em que devesse conhecê-la.»
Especificamente sobre o
conhecimento
da situação de insolvência o nº 3 estatui que «[q]uando o devedor seja titular de uma empresa, presume-se de forma inilidível o conhecimento da situação de insolvência decorridos pelo menos três meses sobre o incumprimento generalizado de obrigações de algum dos tipos referidos na al. g) do nº1 do artigo 20º.”
Este incumprimento
generalizado
refere-se às obrigações
tributárias; contribuições e quotizações para a segurança social; dívidas emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação; rendas de qualquer tipo de locação, incluindo financeira, prestações do preço da compra ou de empréstimo garantido pela respetiva hipoteca, relativamente ao local em que o devedor realize a sua atividade ou tenha a sua sede ou residência.
No caso
sub judice
o tribunal, perante a matéria de facto provada, concluiu, como vimos, que a insolvência culposa resulta do incumprimento de apresentação à insolvência e da transmissão do património da devedora a terceiros, concretamente a uma sociedade, com quem o gerente tem interesse directo.
Sobre a imputada omissão dos deveres de ter contabilidade organizada e de prestação anual de contas, considerou-se que a conduta (omissiva) não teve carácter doloso.
Análise do Quadro Factual e Subsunção ao Direito
Importa recordar que o Recorrente apontou como falha no enquadramento jurídico não ter ficado demonstrada qualquer actuação
ilícita
no período de três anos precedente ao início do processo.
Da análise do quadro factual afigura-se-nos que lhe assiste razão, como iremos verificar:
A insolvente exerceu uma actividade destinada à fabricação e comercialização de produtos alimentares e bebidas, nomeadamente pão, bolos, doces e produtos de pastelaria e confeitaria, bem como tabaco, jornais, revistas, brindes e lembranças; exploração de café e snack-bar.
A AI apresentou uma análise do volume de negócios da insolvente do ano 2011 para 2012, e das declarações periódicas trimestrais do IVA dos anos de 2013 e de 2014.
As últimas facturas comunicadas pela devedora à AT foram emitidas em
fevereiro de 2015
, num total de € 3.725,00, cessando a actividade.
No mês seguinte, em 31.03.2015, vendeu à sociedade “C..., Lda.” vários equipamentos (activo fixo tangível), pelo preço de € 8.245,76 acrescido de IVA, designadamente, vestiários, mesas e cadeiras, forno e estufa, armário mural, frigorífico, utensílios de cozinha, máquina de tabaco, equipamento administrativo, mobiliário de escritório, equipamento informático, arca congeladora, LCD 42 com suporte, equipamento ..., entre outros.
Esta sociedade foi constituída em 02.02.2015 (no mês em que foram emitidas as últimas facturas da insolvente), exactamente com o mesmo o objecto societário da insolvente.
E o capital social é constituído, desde o início da sociedade, por duas quotas, uma no valor de € 4.500.00 pertencente a DD e outra no valor de € 500,00 pertencente a “B... Unipessoal, Lda.” (sócia da A...), sendo a sua sede social numa das moradas associadas ao estabelecimento da insolvente.
A gerência da “C..., Lda.”, ficou confiada ao requerido BB.
Desde 20.12.2017 que a insolvente consta na Lista Pública de Execuções por inexistência de bens penhoráveis.
Deste conjunto de factos podemos concluir que o gerente da insolvente transmitiu para esta nova sociedade, que também foi gerir, o equipamento da sociedade insolvente, a qual deixou de exercer actividade em 2015, ou seja, cerca de
7 anos
antes do início do presente processo.
Em suma, na data em que foi decretada a sua insolvência, em 04.09.2022, requerida por um credor, em 23/03/2022, a insolvente, desde 2015, já se encontrava inactiva, sem trabalhadores ao seu serviço.
Apurou-se que a prestação de contas individual do exercício de 2013 foi apresentada com os mesmos valores do exercício de 2012, não obstante a A... ter exercido actividade no exercício de 2013, gerando receitas e suportando despesas nesse mesmo exercício;
Não apresentou as contas anuais respeitantes aos exercícios de 2014 e 2015, pelo que não foi cumprida a obrigação legal estipulada no art.º 70.º do CSC relativamente aos exercícios desses anos, não obstante ter tido actividade comercial.
Nem apresentou as declarações fiscais em sede de IRC relativamente aos últimos cinco exercícios, não tendo sido possível à administradora da insolvência percepcionar se as dos períodos subsequentes foram ou não entregues.
Ora, dúvidas não restam que todos estes factos ocorreram num período anterior ao triénio suspeito, lapso temporal que releva para efeito de enquadrar tais comportamentos na qualificação da insolvência como culposa, sendo que a alegada falta de colaboração com a AI resulta da inactividade da empresa desde 2015 e sobretudo das vicissitudes ocorridas com a empresa de contabilidade, como foi evidenciado na sentença.
Reconhece-se que o comportamento omissivo do Requerido em não apresentar a sociedade à insolvência a partir de 2015, que, na altura, já se confrontava com um passivo elevado, desrespeitou, com culpa grave, esse dever.
Todavia, se por um lado, estamos perante um facto de natureza
continuada
[10]
,
por outro, é manifesto não ter ficado provado que, por via desse comportamento, a insolvência sofreu um
agravamento
nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência justamente por estar inactiva desde 2015.
Como se observou no Acórdão da Relação de Coimbra, de 06/10/2020
[11]
referente a um caso similar “
Da própria alegação da autora ressalta a irrelevância do atraso posterior a julho de 2016 para a criação ou agravamento da situação de insolvência, uma vez que, em tal data, já a sociedade insolvente se encontrava destituída de qualquer património e inativa, pelo menos, desde 30 de setembro de 2015.”
Ademais tem sido entendido, sobre esta questão, que o mero decurso do tempo designadamente com o aumento dos juros vencidos nesses três anos não integra o agravamento da insolvência, exigido pela lei.
[12]
Note-se que
foram reconhecidos créditos à Autoridade Tributária, Segurança Social e a dois bancos, reportados aos anos de 2008 a 2015, ano em a devedora cessou a sua actividade.
No elenco dos factos provados consta que a falta de apresentação à insolvência em resultado da falta de giro comercial, da transmissão do património e da inscrição na Lista Pública de Execuções pelo motivo aposto de “inexistência de bens” e do elevado passivo (pontos 37 e 38)
agravou a sua situação insolvencial, facto que o requerido, enquanto seu gerente, não podia desconhecer
(ponto 39), o que manifestamente consubstancia um juízo conclusivo.
Na verdade, não ficaram provados quaisquer factos susceptíveis de integrar o agravamento da insolvência em consequência da falta de apresentação à insolvência.
Mutatis mutandis
em relação à falta de apresentação das contas anuais respeitantes aos exercícios de 2014 e 2015 e incumprimento da obrigação legal estipulada no art.º 70.º do CSC relativamente aos exercícios desses anos, não obstante ter tido actividade comercial.
Efectivamente, não ficou demonstrado em que medida esse incumprimento
contribuiu
para o indemonstrado agravamento nos anos de 2019, 2020 e 2021 da situação de insolvência, que era manifesta em 2015 com a cessação da actividade.
Finalmente, cumpre reconhecer o esforço do Recorrente na regularização das dívidas considerando que o aqui credor requerente deixou de figurar como credor na lista mais recente actualizada pela administradora da insolvência, uma vez que o seu crédito veio a ser satisfeito. Relativamente aos créditos à Segurança Social foi operada a reversão, estando o requerido BB a efectuar pagamentos àquela entidade.
Na lista de créditos mais recente – devidamente actualizada em 29.01.2025 – a administradora da insolvência fez saber que os créditos que se mantém operantes são os dos credores Autoridade Tributária (€ 24. 213,22), os da Segurança Social (€ 49.793,96), os da Banco 1... (€ 23.056,70), e os do Banco 2... (€ 20.578,93).
Em resumo, pese embora se reconheça a ilicitude da actuação do gerente da sociedade insolvente, dúvidas não restam que não foi praticada nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, inexistindo, por isso, fundamento legal, para qualificar a insolvência como culposa.
Por outro lado, não se registou um agravamento da insolvência nesse período temporal em consequência do incumprimento de apresentação à insolvência e das contas anuais societárias.
Pelas razões expostas, a insolvência deve ser qualificada como fortuita e não culposa.
*
V-DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente o recurso, e em consequência, revogam a sentença, declarando a insolvência fortuita.
Custas pelo Recorrido.
Notifique.
Porto, 17/6/2025
Anabela Miranda
João Diogo Rodrigues
Alexandra Pelayo
______________
[1]
O efeito do recurso foi fixado (meramente devolutivo) no despacho de recebimento.
[2]
Serra, Catarina, “O Novo Regime Português da Insolvência, uma Introdução”, 2.ª edição, Almedina, 2005, pág. 67.
[3]
Dec-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março.
[4]
Lições de Direito da Insolvência
, 2018, Almedina, pág. 156.
[5]
Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado
, QJ, 3.ª edição, nota 4, pág. 680.
[6]
In
Manual de Direito da Insolvência
, 6ª edição, págs. 129 e segs.
[7]
Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 570/2008, Processo n.º 217/08, de 26/11/2008, DR, 2.ª série, n.º 9 de 14.01.2009, consultável em www.tribunalconstitucional.pt.
[8]
Revista Julgar, n.º 48, págs. 20 e segs.
[9]
Rel. Barateiro Martins, disponível em www.dgsi.pt
[10]
Ac. TRC de 06/10/2020 (Maria João Areias) disponível em www.dgsi.pt..
[11]
Rel. Maria João Areias disponível em www.dgsi.pt
[12]
A título de exemplo v. Ac. TRG de 11/05/2023 (Maria João Matos) disponível em www.dgsi.pt.
|
TRP
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https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/22ac817163dd776c80258cb4004f141f?OpenDocument
|
1,756,944,000,000
|
IMPROCEDENTE
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14510/17.7T8LSB-C.L1-4
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14510/17.7T8LSB-C.L1-4
|
CELINA NÓBREGA
|
Face ao quadro legal vigente, a remessa da nota discriminativa e justificativa de custas de parte ao mandatário da parte basta para que se forme o título executivo.
|
[
"NOTA DISCRIMINATIVA DE CUSTAS DE PARTE",
"TÍTULO EXECUTIVO"
] |
Acordam os Juízes na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa:
Relatório
Na sequência de execução com base em nota discriminativa de custas de parte, que
SPDH – SERVIÇOS PORTUGUESES DE HANDLING, S.A.
, NIPC …, com sede no Aeroporto de Lisboa, Lisboa, propôs contra
AA
, casado, NIF ..., residente na ..., veio o Executado deduzir oposição à execução, mediante embargos de executado, invocando, em síntese, inexistir título executivo uma vez que o Embargante nunca foi notificado pessoalmente da nota de custas já que a Embargada limitou-se a enviá-la para o Tribunal, o que não substitui a notificação à parte vencida, sendo que nem o Embargante, nem a sua então Ilustre Mandatária foram interpelados para proceder a qualquer pagamento, pelo que deve declarar-se extinta a execução; que mesmo que se considerasse que o título executivo era existente, não tendo o Embargante sido notificado/interpelado para pagamento da nota de custas, a obrigação exequenda sempre seria inexigível posto que a obrigação só pode considerar-se vencida e, consequentemente, exigível, após interpelação para pagamento, o que não sucedeu; que detém um contra crédito no valor de € 43.843,00 sobre a Embargada, pelo que argui a excepção de compensação de créditos até ao limite do seu crédito sobre aquela e que, ainda que assim não se entenda, devem os presentes embargos ser julgados parcialmente procedentes, considerando-se não verificado o vencimento da obrigação exequenda, por falta de interpelação do Embargante para pagamento e, em consequência, julgar-se improcedente o pedido de condenação do Embargante no pagamento dos juros de mora.
Pediu, a final, que os embargos sejam julgados procedentes por verificação da excepção de falta/inexistência de título executivo e, em consequência, se julgue extinta a execução, fixando-se as custas a cargo da Embargada, que, caso assim não se entenda, que os embargos sejam julgados improcedentes declarando-se verificada a excepção de inexigibilidade da obrigação exequenda e, em consequência, seja julgada extinta a execução, fixando-se as custas a cargo da Embargada e, ainda, caso assim não se entenda, nos termos da alínea h) do artigo 729.º do Código de Processo Civil, sejam os embargos julgados procedentes, declarando-se verificada a excepção de compensação até ao limite da quantia exequenda, por o Embargante ser titular de um contracrédito sobre a Embargada e, em consequência, julgar-se extinta a execução, fixando-se as custas a cargo da Embargada e que, mesmo que assim não se entenda, devem os embargos ser julgados parcialmente procedentes, por falta de interpelação do Embargante para pagamento e inerente falta de vencimento da quantia exequenda e, em consequência, julgar-se improcedente o pedido de condenação do Embargante no pagamento dos juros de mora. Mais requereu a suspensão do prosseguimento da execução sem prestação de caução.
Notificada para contestar veio a Embargada invocar, em resumo, que, após o trânsito em julgado da sentença, em 06/10/2020 apresentou a sua nota discriminativa e justificativa de custas de parte ao Executado e peticionou a esse título o pagamento de € 5.273,2, o que fez através de requerimento, devidamente notificado através do Citius à então Mandatária do Embargante, sendo, que, no dia seguinte, 07/10/2020, através de mensagem de correio electrónico remetido para a mesma Mandatária, foi dado conhecimento e interpelado a proceder ao pagamento da nota discriminativa e justificativa de custas de parte, que em 17/10/2020, o Embargante reclamou do requerimento com a nota discriminativa e justificativa de custas de parte, alegando unicamente a intempestividade da sua apresentação, reclamação que foi indeferida, que as custas de parte não foram pagas após notificação e pagamento da conta de custas por parte da Exequente, esta apresentou um aditamento à sua nota discriminativa e justificativa de custas de parte oportunamente apresentada, reclamando do Executado o pagamento do saldo actualizado e total de € 6.155,42, o que fez através de requerimento, devidamente notificado através do Citius à então Mandatária do Embargante, ainda no mesmo dia, 07/02/2022, através de mensagem de correio electrónico remetido para a sua Ilustre Mandatária, deu conhecimento e interpelou-o a proceder ao pagamento do aditamento da nota discriminativa e justificativa de custas de parte que não foram pagas, pelo que intentou a execução, o Embargante não mencionou na oposição que a Embargada apresentou nos autos os requerimentos com a nota discriminativa e justificativa de custas de parte e o aditamento, notificou a então sua Mandatária e através desta interpelou o mesmo a efectuar o pagamento devido. Concluiu que, quando a parte constitui mandatário judicial, a notificação prevista no n.º 1 do art.º 25.º do Regulamento das Custas Processuais apenas tem que ser feita a esse mandatário, não havendo necessidade de notificar pessoalmente a parte, que face aos actos e notificações realizadas nos autos, o Embargante tomou conhecimento dos valores fixados e constantes da nota discriminativa e justificativa de custas de parte e do aditamento, tanto que apresentou reclamação, mas além disso também houve interpelação para o pagamento e que estando as partes representadas por mandatários, estes não podem remeter interpelações directamente às partes (art.º 247.º do CPC e art.º 112.º, n.º 1. al. e), dos Estatutos da Ordem dos Advogados), nem faz sentido que no âmbito dum processo judicial em curso e com mandatários, as partes tenham ou se encontrem a interpelar directamente a outra parte no âmbito desse processo e que o Embargante litiga com manifesto abuso de direito, sob a forma de
"venire contra factum proprium"
, porque na acção reclamou da tempestividade da apresentação da nota discriminativa e justificativa de custas de parte, o que significa que teve perfeito conhecimento da mesma, não negou e não nega ser devedor do valor executivo e agora insurge-se contra as consequências da possibilidade da sua execução, pelo que devem ser recusados os fundamentos que invoca, sendo certo que, face à sentença, notificação, interpelação, "trânsito" e não pagamento da nota discriminativa e justificativa de custas de parte, é manifesto que o crédito de custas de parte que a Embargada detinha sobre o Embargante se tornou certo, líquido e exigível e que o pedido de compensação padece de indeterminação quanto aos requisitos subjacentes e aplicáveis, bem como quanto à concreta determinação do valor, uma vez que o alegado é genérico e conclusivo e, por essa razão, não pode ser objecto de produção de prova, sendo inepto além do Embargante não deter sobre a Embargada o invocado direito de crédito no valor de € 43.843,00
Terminou pedindo que a oposição seja julgada improcedente, prosseguindo a execução os seus ulteriores termos.
O Embargante respondeu concluindo como no requerimento inicial.
A Embargada requereu o desentranhamento da resposta.
Foi designada uma tentativa de conciliação e proferido despacho que suspendeu a execução ao abrigo do disposto no art.º 733º, nº 1, al. c), do CPC.
Tendo a Embargada sido declarada insolvente foi dado conhecimento da pendência dos presentes autos ao processo de insolvência e notificado o Administrador da Insolvência nos termos e para os efeitos previstos no artigo 85.º, n.ºs 1 e 3 do CIRE, vindo a massa insolvente informar que pretendia que os autos prosseguissem no Juízo do Trabalho.
Notificadas as partes para, querendo, se pronunciarem sobre a possibilidade de ser proferida a decisão de mérito sem necessidade de mais diligências instrutórias, nada disseram.
Fixado o valor da causa e dispensada a realização da audiência prévia, foi proferido despacho saneador sentença que julgou os embargos totalmente improcedentes e condenou o Embargante nas custas.
Inconformado com o saneador sentença, o Embargante recorreu e formulou as seguintes conclusões:
“A) O presente recurso submetido à apreciação de V. Exas., vem interposto sentença de 29/09/2024 de fls..., na parte em que decidiu pela existência e exigibilidade do título executivo, objeto dos presentes autos.
B) Decidindo conforme decidiu, o Tribunal a quo violou flagrantemente a ratio legis cristalizada, nomeadamente, nos artigos 25º, nº 1, RCP e 31º, nº 1, da Portaria 419- A/2009, de 17 de Abril.
A. DA INEXISTÊNCIA E INEXIBILIDADE DO TÍTULO EXECUTIVO OBJETO DOS PRESENTES AUTOS
C) A douta sentença sustenta que a notificação entre mandatários da junção da nota de custas de parte aos autos é válida e suficiente, considerando, por isso, exigível, o título executivo compósito, formado pela sentença condenatória e pela nota discriminativa e justificativa das custas de parte.
Acontece que,
D) Conforme decorre do artigo 25.º do RCP e do artigo 31.º da Portaria n.º 419- A/2009, de 17 de Abril, para que a parte vencedora tenha direito ao recebimento do montante discriminado na sua nota de custas, necessário se torna que se verifiquem, de forma cumulativa, os seguintes requisitos: a) O envio da nota de custas para o tribunal; b) O envio da nota de custas para a parte vencida (interpelação para pagamento) e, quando aplicável; c) O envio da nota de custas para o agente de execução
E) In casu, o embargante nunca foi notificado da nota de custas que serve de base à presente execução. A embargada, ora recorrida, apenas e tão só enviou a nota de custas para o tribunal, via Citius e para a sua então mandatária (de fls…), não para o embargante.
F) Ora, o legislador refere expressamente que a nota discriminativa e justificativa deve ser enviada, quer ao tribunal, quer à “parte vencida”. Não o faz, referindo-se à parte vencida, em abstrato, como se nela coubesse quer a parte vencida, quer o seu mandatário.
G) Tal não poderia, sequer, considerar-se, em face do disposto no artigo 9.º, nº 2 e 3 do Código Civil:
“Artigo 9.º
Interpretação da lei
(…) 2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”.
H) Efetivamente, o legislador, de harmonia com o sistema jurídico, nomeadamente com o estabelecido no Regulamento das Custas Processuais, no Código de Processo Civil ou na Portaria n.º 419-A/2009, de 17 de Abril, refere-se à parte vencida e não ao seu mandatário.
Vejamos:
I) A lei utiliza expressamente, não só o termo “parte vencida”, como “remetem (…) para a parte vencida”. Ao invés de “notificam”, o legislador optou, e bem, por clarificar que a nota de custas deve ser, verdadeiramente, remetida à parte.
J) Por outro lado, sempre se diga, que os poderes conferidos pelo mandato forense ao mandatário constituído, definido nos termos da Lei n.º 10/2024, de 19 de Janeiro, terminam com o trânsito em julgado da sentença final, pelo que nunca poderia a interpelação para pagamento bastar-se com a notificação ao mandatário da nota de custas
K) É precisamente por tais razões que a notificação da conta de custas, que vale também como interpelação para pagamento, é dirigida pela secretaria diretamente às partes, e não apenas aos seus mandatários.
L) Que sentido faria, que a conta de custas, como interpelação para pagamento que é, fosse notificada diretamente às partes e não o fosse, mesmo que assim o legislador o determine expressamente, a nota de custas de parte?
M) Ora, querendo o legislador que a nota discriminativa e justificativa fosse notificada diretamente à parte - o que nos presentes autos não se verificou - não pode a notificação à mandatária relevar como interpelação para pagamento.
N) Não tendo existido interpelação para pagamento dirigida ao executado, forçosamente se conclui, visto que o vencimento da obrigação depende da interpelação para pagamento efetivamente concretizada, inexistir título executivo.
O) A respeito da matéria vertida nos presentes autos, veja-se o entendimento jurisprudencial sufragado em Acórdãos proferidos em casos similares:
P)
“Embora a parte credora de custas de parte comunique a nota discriminativa e justificativa ao tribunal e notifique o mandatário da parte devedora de tal acto, esta comunicação à parte devedora das custas não releva como interpelação para pagamento. O vencimento da obrigação depende da interpelação para pagamento concretizada através da expedição para a parte vencida da nota discriminativa e justificativa, só assim se criando título executivo.” (…)”.
(cfr. O Douto Acórdão da Relação de Lisboa, de 26-03-2019);
Q) “II - Por isso, considerando a unidade do sistema jurídico e porque devemos presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados devemos interpretar o segmento «parte vencida» do nº 1 do art.º 25º e do nº 2 do art.º 26º do RGP bem como do nº 1 do art.º 31º da Portaria 419-A/2009 como sendo a «parte responsável pelo pagamento» referida no nº 1 do art.º 31º do RCP.
III - Assim, a nota discriminativa e justificativa das custas de parte deve ser, tal como a conta, notificada também à própria parte responsável pelo pagamento.”. (…)”. (O douto Acórdão da Relação de Lisboa, de 10-10-2019);
R)
“(…) Ora, no caso sub judice, não tendo o apelante sido pessoalmente notificado da nota discriminativa e justificativa das custas de parte, conforme definido no nº. 1 do art.º 25º do RCP. e não havendo uma interpelação concreta, não se criou qualquer título executivo. A notificação através do mandatário não substitui nem isenta a notificação da própria parte.» [3] (…)”
. (O douto Acórdão da Relação de Coimbra, de 05-05-2020);
S)
“A parte vencida nas custas de parte tem de ser notificada pessoalmente do montante das custas devidas e constante da “guia da nota discriminativa e justificativa das custas de parte” devidas, não bastando ser a mesma apenas notificada aos mandatários judiciais das partes envolvidas no processo (…)”
. (O douto Acórdão da Relação de Évora, de 21-09-2021);
T)
“por mais adequado aos relevantes interesses em presença (e sua salvaguarda), do regime do n.º 2 daquele art.º 247.º, com notificação cumulativa [ao mandatário, por ser o técnico/especialista, mas também à parte (devedor), por ser esta quem, pessoalmente, haverá, uma vez interpelada, de suportar o pagamento devido, sob pena de célere execução e penhora sobre os seus bens].”
(O douto Acórdão da Relação de Coimbra, de 15-02-2022);
Com efeito,
U) Não havendo interpelação para pagamento, não se encontra, de todo o modo, vencida a obrigação exequenda, pelo que se conclui pela inexistência e concomitante inexigibilidade do título executivo.
V) Salvo melhor entendimento, não se poderia o Tribunal a quo ter considerado a existência de interpelação para pagamento, mediante simples notificação do mandatário.
W) Decidindo conforme decidiu, a mui douta Sentença violou o disposto nos artigos 25º, nº1 do RCP, 31º, nº1 da Portaria 419-A/2009, de 17 de Abril e 713.º do Código de Processo Civil.
Pelo que,
X) Deve o presente recurso ser julgado totalmente procedente, sendo a mui douta sentença revogada e substituída por outra que que faça uma correta aplicação do direito.
Termos em que, dando provimento ao presente recurso, deve ser revogada a mui douta sentença recorrida, sendo substituída por outra que faça uma correta interpretação e aplicação do direito, concluindo pela inexistência e inexigibilidade do título executivo que dá causa aos presentes autos, nos termos dos artigos 25º, nº 1, do RCP, 31º, nº 1, da Portaria 419-A/2009, de 17 de Abril e 713.º do Código de Processo Civil.”
A Embargada contra-alegou e apresentou as seguintes conclusões:
“1.ª - Não se verifica a alegada inexistência de título executivo e a inexigibilidade da obrigação exequenda respeitante às custas de parte devidas pelo Apelante à Apelada.
2.ª - A execução foi intentada com base em título executivo composto pela Sentença proferida nos autos principais, com a condenação em custas processuais, e os requerimentos apresentados com a nota discriminativa e justificativa de custas de parte em conformidade e aditamento e que foram notificadas à mandatária do Apelante através do Citius e de correio electrónico.
3.ª - "A nota justificativa e discriminativa das custas de parte a que se refere o artigo 25 do RCP só tem de ser notificada ao advogado da parte vencida." (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 22/06/2023, relatado pelo Juiz Desembargador Pedro Martins, Proc. n.º 23320/19.6T8LSB-A.L1-2, in
www.dgsi.pt
).
4.ª - O disposto no art.º 25.º, n.º 1 do Regulamento das Custas Processuais e no art.º 31.º, n.º 1, da Portaria n.º 419-A/2009, de 17/04, não exige a notificação pessoal da parte quando é representado por advogado.
5.ª - A citação para execução também afastou qualquer questão quanto à liquidação ou à exigibilidade da obrigação relativa às custas de parte devidas pelo Apelante à Apelada.
6.ª - Sendo que, caso proceda o alegado, à cautela diga-se que o Apelante nos autos principais reclamou mas apenas da apresentação intempestiva da nota justificativa e discriminativa das custas de parte, nada invocando quanto a valores ou não ter sido notificado.
7.ª - Para ter reclamado significa que teve conhecimento, pelo que as questões suscitadas nos embargos de executado pelo Apelante constituem abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, o que em última análise impõe que não sejam consideradas.
8.ª - A douta Sentença não violou qualquer preceito legal nos termos invocados pelo Apelante.
Termos em que deve ser negado provimento ao recurso interposto pelo Apelante, assim se fazendo a habitual JUSTIÇA!”
Foi proferido despacho que admitiu o recurso.
Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.
O Embargante respondeu ao Parecer sustentando, no essencial, o já afirmado em sede de recurso.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
Objecto do recurso
O âmbito do recurso é delimitado pelas questões suscitadas pelo recorrente nas conclusões das suas alegações (arts. 635.º n.º 4 e 639.º do CPC,
ex vi
do n.º 1 do artigo 87.º do CPT), sem prejuízo da apreciação das questões que são de conhecimento oficioso (art.608.º nº 2 do CPC).
Assim, no presente recurso, a questão a apreciar consiste em saber se, no caso, inexiste título executivo e a obrigação exequenda é inexigível por a nota discriminativa e justificativa de custas de parte não ter sido notificada directamente ao Executado/Embargante.
Caso proceda a mencionada questão, haverá ainda que apreciar a questão suscitada pela Embargada nas contra-alegações no sentido de o Embargante actuar com abuso do direito na modalidade de
venire contra factum proprium
.
Fundamentação de facto
A sentença considerou provados os seguintes factos:
A) – Na parte decisória da sentença proferida em 06/04/2019 no processo principal, confirmada por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa já transitado em julgado, consta:
«Por tudo o que ficou exposto e nos termos das disposições legais citadas, julgo a acção parcialmente procedente e procedente a reconvenção, em consequência:
I – Condeno a ré a pagar ao autor o subsídio de chefia correspondente ao exercício das funções de responsável pela Área de Qualidade e Informática, no período compreendido entre Dezembro de 2011 e Abril de 2014;
II - Condeno o autor a devolver à ré o diferencial correspondente à retribuição de cargo que lhe foi paga e a retribuição base que deveria ter recebido, de acordo com a sua categoria profissional e escalão em que estava inserido, no período compreendido entre 16 de Junho de 2008 e 15 de Junho de 2009.
Custas na proporção do decaimento - art.º 527º, nº 2, do CPC.».
B) – Por requerimento enviado ao processo principal em 06/10/2020 (Refª 36703920), notificado, via citius, à ilustre mandatária do ali autor, aqui embargante, a ali ré, aqui embargada, apresentou a sua nota discriminativa e justificativa de custas de parte e peticionou, a esse título, o pagamento de € 5.273,22.
C) – Em 07/10/2020, por mensagem de correio electrónico remetida à ilustre mandatária do autor, aqui embargante, junta como doc 1 à contestação, cuja cópia consta de fls. dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzida, o ilustre mandatário da ré, aqui embargada, interpelou por essa via o autor, AA, para pagar o saldo apresentado no requerimento de custas de parte, que anexou.
D) – Por requerimento enviado ao processo principal em 14/10/2020 (Refª 36794138), o autor, ora embargante, reclamou do requerimento com a nota discriminativa e justificativa de custas de parte, referido em B), alegando a intempestividade da sua apresentação.
E) – Por despacho proferido no processo principal, em 31/05/2021, a reclamação, referida em D), foi indeferida.
F) – Por requerimento enviado ao processo principal em 07/02/2022 (Refª 41249841), notificado, via citius, à ilustre mandatária do ali autor, aqui embargante, a ali ré, aqui embargada, apresentou um aditamento à nota discriminativa e justificativa de custas de parte, referida em B), peticionando o pagamento do total actualizado de € 6.155,42.
G) – Em 07/02/2022, por mensagem de correio electrónico remetida à ilustre mandatária do autor, aqui embargante, junta como doc. 4 à contestação, cuja cópia consta de fls. dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzida, o ilustre mandatário da ré, aqui embargada, interpelou por essa via o autor, AA, para pagar o saldo apresentado no requerimento de aditamento às custas de parte, que anexou.
H) – Em 13/10/2022, foi instaurada a execução que constitui o apenso .1, pelo valor de € 6.310,57
I) – No apenso referido em H), o ali executado, aqui embargante, foi citado em 29/11/2022.
J) – O embargante, em 02/12/2022, deduziu contra a embargada incidente de liquidação, que constitui o apenso B, no qual indicou o valor de € 43.843,00.
K) - O requerimento inicial dos presentes embargos foi enviado a tribunal, via citius, em 19/12/2022.
L) – Por sentença de 08/11/2023, já transitada em julgado, foi julgada extinta a instância incidental, referida em J), por inutilidade superveniente da lide, devido à insolvência da ali requerida, aqui embargada.
*
Discutindo-se nos presentes autos se inexiste título executivo e se a obrigação exequenda é inexigível, o que pressupõe que o credor não terá sido interpelado, não pode manter-se a redacção dos factos provados nas alíneas C) e G) dos factos provados na parte em que refere expressamente que a Embargada interpelou o Embargante.
Assim, considerando o teor dos documentos que suportam os mencionados factos, ao abrigo do disposto no artigo 662.º n.º 1 e 663.º n.º 2 do CPC, altera-se as alíneas C) e G) dos factos provados que passam a ter a seguinte redacção:
C) – Em 07/10/2020, o ilustre mandatário da embargada enviou mensagem de correio electrónico à ilustre mandatária do embargante com o seguinte teor:
“(…)
Na qualidade de mandatário da SPDH-SERVIÇOS PORTUGUESES DE HANDLING, S.A., anexo requerimento de custas de parte que dei entrada nos autos acima identificados, interpelando por esta via e através da Ilustre Colega o A. AA a pagar o saldo apresentado.
(…).”
G) – Em 07/02/2022, o ilustre mandatário da embargada enviou mensagem de correio eletrónico à ilustre mandatária do embargante com o seguinte teor:
“(…).
Na qualidade de mandatário da SPDH-SERVIÇOS PORTUGUESES DE HANDLING, S.A., anexo requerimento de aditamento de custas de parte que dei entrada nos autos acima identificados, interpelando por esta via e através da Distinta Colega o A. AA a pagar o saldo apresentado.
(…).”
Fundamentação de direito
Vejamos, então, se, no caso, inexiste título executivo e a obrigação exequenda é inexigível por a nota discriminativa de custas de parte não ter sido notificada directamente ao Executado/Embargnte.
Sobre a questão entendeu o saneador sentença o seguinte:
“O art.º 729º do CPC, sob a epígrafe Fundamentos de oposição à execução baseada em sentença, estabelece:
“Fundando-se a execução em sentença, a oposição só pode ter algum dos fundamentos seguintes:
a) Inexistência ou inexequibilidade do título; b) Falsidade do processo ou do traslado ou infidelidade deste, quando uma ou outra influa nos termos da execução; c) Falta de qualquer pressuposto processual de que dependa a regularidade da instância executiva, sem prejuízo do seu suprimento; d) Falta ou nulidade da citação para a acção declarativa quando o réu não tenha intervindo no processo; e) Incerteza, inexigibilidade ou iliquidez da obrigação exequenda, não supridas na fase introdutória da execução; f) Caso julgado anterior à sentença que se executa; g) Qualquer facto extintivo ou modificativo da obrigação, desde que seja posterior ao encerramento da discussão no processo de declaração e se prove por documento; a prescrição do direito ou da obrigação pode ser provada por qualquer meio; h) Contracrédito sobre o exequente, com vista a obter a compensação de créditos; i) Tratando-se de sentença homologatória de confissão ou transação, qualquer causa de nulidade ou anulabilidade desses atos.”.
No requerimento inicial começa o embargante por alegar a inexistência de título executivo, uma vez que nunca foi notificado da nota de custas que serve de base à execução, faltando, assim, o requisito da notificação para pagamento endereçada à parte por ele responsável.
Sobre um caso semelhante, pronunciou-se o Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de 20/04/2016 (por lapso consta 2026), Pº 2417/07.0TBCBR-C.C1, em cujo sumário doutrinal pode ler-se:
“1. A execução por custas de parte, da parte vencedora contra a parte vencida (art.º 36º, nº 3, do Regulamento das Custas Processuais) assenta em título executivo compósito - nota discriminativa de custas de parte enviada pela primeira à segunda mais a própria sentença que condenou em custas; 2. O envio da nota justificativa das custas de parte ao mandatário da parte vencida vale como se o envio tivesse sido efectuado para a parte que representa.”.
E, em sede de fundamentação, pode ainda ler-se no mesmo acórdão:
“(…)
3. A decisão recorrida merece, na generalidade, a nossa concordância. A recorrente, contudo, objecta com 3 argumentos: que o envio feito pela parte vencedora da conta de custas de partes apenas e só ao advogado constituído não é suficiente face o estatuído no dito art.º 25º, nº 1, tanto mais que o próprio mandato cessará com o trânsito em julgado da sentença, não podendo, portanto, ser invocado o art.º 247º, nº 1, do NCPC; o legislador na letra da lei utiliza o termo “remetem” e não notificam e “para a parte vencida”; que, tal como a secretaria judicial notifica, quando há lugar a pagamento de custas, a parte e o mandatário, sendo tal expediente exigido legalmente, o mesmo deverá ser feito no caso das custas de parte.
Analisemos.
Quanto ao 1º argumento, dispõe o art.º 25º, nº 1, do RCP, que após o trânsito em julgado (ou após a notificação de que foi obtida a totalidade do pagamento ou do produto da penhora, consoante os casos), as partes que tenham direito a custas de parte remetem para o tribunal, para a parte vencida (e para o agente de execução, quando aplicável), a respectiva nota discriminativa e justificativa.
Uma evidência, por um lado, pode, pois, afirmar-se. O referido preceito não determina que o envio da nota justificativa de custas de parte não possa ser remetido ao mandatário constituído pela parte vencida, nem tal restrição decorre do aludido art.º 44º, nº 1, do NCPC.
Assim, recebendo o mandatário a nota discriminativa, naturalmente recebê-la-á na qualidade de representante da parte. Nem, por outro lado, a interpretação que a recorrente faz do art.º 247º, nº 1, do NCPC, de que o processo não estava pendente, e por isso não pode haver notificação ao mandatário judicial porque o seu mandato já cessou (com o trânsito em julgado da sentença) tem o valor que aparenta. Na verdade, após o trânsito em julgado da sentença, a lei prevê expressamente a notificação aos mandatários das partes da conta de custas (cfr. art.º 31º, nº 1, do RCP), por entender naturalmente ou ficcionar que o mandatário da parte continua a ser o seu representante. A ser levada à letra tal interpretação, tal notificação não devia acontecer mas não é isso que se passa. O que se compreende, pois, tal notificação acautela os interesses da parte já que o seu mandatário sempre estará em melhores condições para avaliar se a conta está em harmonia com as disposições legais, e, eventualmente reclamar da conta ou mesmo recorrer (cfr. nºs 3 e 6 do referido art.º 31º). O mesmo ocorre com o pedido de custas de parte, pois o respectivo mandatário sempre estará, também, em melhores condições para decidir se as mesmas são ou não devidas, e, eventualmente reclamar da mencionada nota justificativa ou mesmo recorrer (cfr. art.º 33º, nº 1 e 3, da Portaria 419-A/2009, de 17.4 (que regulamenta o RCP).
Concluímos, por isso, que havendo mandatário constituído no processo a nota justificativa das custas de parte pode e deve ser remetido ao mandatário da parte vencida.
Quanto ao 2º argumento também ele peca por redutor na comparação entre os termos “remetem” e “notificam”. Se é verdade que em tal art.º 25º, nº 1, se utiliza o termo remetem, já no art.º 31º, nº 1, da apontada Portaria 419-A/2009, e que tem redacção praticamente igual, se usa o termo “enviar”, enquanto no art.º 33º, nº 1, da mesma Portaria, se refere que a contagem do prazo para reclamação da nota de custas de parte se inicia após a “notificação” da reclamação à contraparte. Ou seja, todas estas expressões significam o mesmo, dar conhecimento à parte vencida das custas de parte devidas à parte vencedora, interpelá-la ao pagamento, via remessa, envio ou notificação da mesma de tal nota discriminativa e justificativa.
Não divisamos, assim, o relevo diferenciador de interpretação e aplicação da lei que a recorrente quer emprestar a tais termos redactoriais.
Quanto ao 3º argumento. É verdade que o indicado art.º 31º, nº 1, do RCP ordena a notificação aos mandatários das partes da conta de custas e à parte responsável pelo pagamento delas. Mas a analogia não pode ser estabelecida com tal simplicidade.
Na verdade, embora nas custas processuais se distingam a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte (art.º 529º, nº 1, do NCPC), dando o normativo a entender que as custas de parte correspondem a uma categoria distinta das restantes, e com elas cumulável, no âmbito das custas totais do processo, o certo é que se vê no art.º 533º do mesmo código que continua a não ser assim: as custas de parte não designam, como a taxa de justiça e os encargos, quantias a pagar pela parte ao tribunal, mas quantias que a parte vencida tem o dever de pagar directamente à parte vencedora. O mesmo resulta, igualmente, do art.º 26º, nº 2, do RCP. Tanto é assim que as custas de parte não se incluem na conta de custas (cfr. art.º 30º, nº 1, da acima apontada Portaria 419-A/2009. Trata-se, pois, de duas realidades diferentes. Na primeira, conta de custas judiciais, estabelece-se a chamada relação jurídica tributária, de tipo obrigacional, resultante da lei e da actividade jurisdicional desenvolvida, encabeçada pelo Estado, sujeito activo, e pelos utentes do serviço de justiça vencidos, sujeitos passivos, cujo objecto imediato e mediato se consubstancia, respectivamente, na vinculação ao respectivo pagamento e na prestação pecuniária correspondente (vide Ac. do STJ de 5.2.2004, Proc. 03B809, em www.dgsi.pt).
Daí a compreensível notificação da pessoa responsável pelo pagamento dessas custas ao Estado. Já na segunda, custas de parte, essa relação é estabelecida directamente entre as próprias partes. Não se verifica, assim, a mesma razão de decidir para estabelecer a referida analogia, como defendido pela recorrente.
Em suma, entendemos que o envio da nota justificativa das custas de parte ao mandatário da parte vencida vale como se o envio tivesse sido efectuado para a parte que representa. Como o título executivo é compósito, é a nota discriminativa de custas de parte enviada à mesma mais a própria sentença que condenou em custas (vide o indicado art.º 26º, nº 1, do RCP), e no nosso caso isso se verifica (factos 3. a 6.), não se verifica a invocada inexistência do título executivo, como afirma a apelante.
(…)”.
Revertendo ao caso dos autos, em vista do que se deixou referido nas alíneas A) a G), dos factos provados, e aplicando, com as necessárias adaptações, a doutrina expendida no aresto citado, só podemos concluir, aqui como ali, que não se verifica a inexistência de título executivo invocada pelo embargante.
As mesmas razões valem para a alegada inexigibilidade da obrigação exequenda que, como tal, também não se verifica.
Mas, ainda que assim não se entendesse, sempre a citação do devedor na acção executiva, que teve lugar em 29/11/2022 – cfr. al. I) dos factos provados –, seria suficiente para afastar a situação de inexigibilidade. Neste sentido vd. Ac. STJ de 27/01/2022, Pº 1522/12.6TBMTJ-B.L1.S1.
Quanto à pretendida compensação do alegado contracrédito do embargante sobre a embargada, é certo que, como consta da alínea J) dos factos provados, o embargante, em 02/12/2022, deduziu contra a embargada incidente de liquidação, que constitui o apenso B, no qual indicou o valor de € 43.843,00.
No entanto, como se deixou dito em L) dos mesmos factos, tal instância incidental foi julgada extinta por inutilidade superveniente da lide, devido à insolvência da ali requerida, por sentença de 08/11/2023, já transitada em julgado.
Assim, não tendo sido liquidado qualquer crédito do embargante sobre a embargada, não se mostra possível operar a pretendida compensação.
E sendo a obrigação exequenda certa, líquida e exigível, são devidos juros de mora, nos termos pedidos pela exequente, aqui embargada.
Finalmente, quanto à pedida suspensão da execução, a mesma foi ordenada por despacho proferido nos autos em 24/05/2023.
Falece, assim, toda a argumentação aduzida pelo embargante no requerimento inicial.
Nem resultam provados quaisquer outros factos que se enquadrem em algum dos fundamentos de oposição, taxativamente enumerados no preceito supra transcrito.
Aqui chegados, sem necessidade de mais alongadas considerações, só podemos concluir pela improcedência da oposição deduzida e, consequentemente, dos presentes embargos.
Prosseguindo a execução nos seus precisos termos.”
A questão suscitada nestes autos já foi apreciada em vários Acórdãos das diferentes Relações sendo exemplificativos os identificados por ambas as partes. E sobre essa questão delinearam-se duas correntes jurisprudenciais: uma que defende que o título executivo se forma com a remessa directa, à parte vencida, da nota discriminativa e justificativa das custas de parte e outra que afirma bastar a remessa de tal nota ao mandatário constituído da parte vencida para que se complete o título executivo.
O Embargante estriba-se na primeira corrente jurisprudencial e argumenta nos seguintes termos: i) o elemento literal (a lei utiliza expressamente, não só o termo “parte vencida”, como “remetem (…) para a parte vencida”, ao invés de “notificam”, o que significa que o legislador clarificou que a nota discriminativa e justificativa de custas de parte deve ser remetida directamente à parte; ii) os poderes conferidos pelo mandato forense ao mandatário constituído, definido nos termos da Lei n.º 10/2024, de 19 de Janeiro, terminam com o trânsito em julgado da sentença final, pelo que nunca poderia a interpelação para pagamento bastar-se com a notificação ao mandatário da nota de custas; iii) é pelas mesmas razões que a notificação da conta de custas, que vale também como interpelação para pagamento, é dirigida pela secretaria directamente às partes e não apenas aos seus mandatários; iv) não faz sentido que a conta de custas fosse notificada directamente às partes e não o fosse a nota discriminativa de custas de parte; v) o legislador quis que a nota discriminativa e justificativa das custas de parte fosse notificada directamente à parte; e vi) não pode a notificação à mandatária relevar como interpelação para pagamento. Donde, conclui, a obrigação não se venceu, não existindo, assim, título executivo.
Vejamos:
Nos termos do artigo 10.º n.º 5 do CPC,
“Toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da ação executiva.”
No presente caso, o título executivo é composto pela sentença que condenou em custas e pela nota discriminativa e justificativa das custas de parte.
Como resulta da factualidade provada, a nota discriminativa e justificativa das custas de parte foi notificada à Ilustre Mandatária do Embargante via Citius e via e-mail, conforme decorre dos factos provados B), C), F) e G). Não foi remetida ou enviada directamente ao Embargante.
Estatui o n.º 1 do artigo 25.º do Regulamento das Custas Processuais (RCP):
“1 - Até 10 dias após o trânsito em julgado ou após a notificação de que foi obtida a totalidade do pagamento ou do produto da penhora, consoante os casos, as partes que tenham direito a custas de parte remetem para o tribunal, para a parte vencida e para o agente de execução, quando aplicável, a respetiva nota discriminativa e justificativa, sem prejuízo de esta poder vir a ser retificada para todos os efeitos legais até 10 dias após a notificação da conta de custas.”
E dispõem os nºs 1 e 2 do artigo 26.º do RCP
“1 - As custas de parte integram-se no âmbito da condenação judicial por custas, salvo quando se trate dos casos previstos no artigo 536.º e no n.º 2 do artigo 542.º do Código de Processo Civil.
2 - As custas de parte são pagas diretamente pela parte vencida à parte que delas seja credora, salvo o disposto no artigo 540.º do Código de Processo Civil, sendo disso notificado o agente de execução, quando aplicável.”
Nos termos do n.º 1 do artigo 31.º da Portaria n.º 419-A/2009, de 17 de Abril (Regula o modo de elaboração, contabilização, liquidação, pagamento, processamento e destino das custas processuais, multas e outras penalidades),
“As partes que tenham direito a custas de parte devem enviar para o tribunal e para a parte vencida a respetiva nota discriminativa e justificativa, nos termos e prazos previstos no artigo 25.º do RCP.”
Por seu turno, o artigo 26-A do RCP prevê a possibilidade de reclamação da nota de custas dispondo o n.º 1 que
“A reclamação da nota justificativa é apresentada no prazo de 10 dias, após notificação à contraparte, devendo ser decidida pelo juiz em igual prazo e notificada às partes.”
No caso, o Embargante reclamou da nota de custas invocando a sua extemporaneidade, reclamação que foi indeferida.
Por fim, o artigo 31.º n.º 1 do RCP estabelece que
“A conta é sempre notificada ao Ministério Público, aos mandatários, ao agente de execução e ao administrador de insolvência, quando os haja, ou às próprias partes quando não haja mandatário, e à parte responsável pelo pagamento, para que, no prazo de 10 dias, peçam a reforma, reclamem da conta ou efectuem o pagamento.
Ora, desde logo e quanto à invocação do elemento literal por parte do Embargante, entendemos ser de acompanhar o que, a propósito, refere o Acórdão citado na sentença recorrida. Com efeito, as expressões, “remetem”, “enviam” e “notificam” aparecem com o mesmo significado pois, a não ser assim, então, o artigo 31.º n.º 1 do RCP teria, necessariamente, de distinguir a remessa às partes da notificação aos mandatários, o que, manifestamente, não faz.
Quando aos demais argumentos invocados pelo Recorrente, importa atentar no que se escreve no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 07.12.2023, proc. 558/23.6T8OER-A.L1, consultável em
www.dgsi.pt
, cujo entendimento sufragamos:
“Aos fundamentos expostos, a que aderimos, diremos ainda que se o legislador pretendesse que a notificação fosse efetuada pessoalmente à parte vencida ter-se-ia expressado em consonância, tal como o fez no art.º 31º, nº 1 do mesmo diploma legal (Regulamento das Custas Processuais).
Dispõe este preceito que “a conta é sempre notificada ao Ministério Público, aos mandatários, ao agente de execução e ao administrador de insolvência, quando os haja, ou às próprias partes quando não haja mandatário, e à parte responsável pelo pagamento, para que, no prazo de 10 dias, peçam a reforma, reclamem da conta ou efetuem o pagamento.”
A redação substancialmente diferente constante do art.º 25º, nº 1 do RCP (e art.º 31º da Portaria 419-A/2009, de 17 de abril), sem se referir expressamente à parte vencida, ainda que tenha mandatário constituído, leva-nos a concluir que não contempla a exigência de notificação pessoal da parte vencida - exceto no caso de esta não ter mandatário constituído, tudo em conformidade com as regras da notificação constantes dos art.ºs 221º e 247º do CPC e das regras gerais do mandato forense (art.º 1157º do CC e 44º do CPC). Esta é a interpretação que se nos afigura de acordo com os ditames do art.º 9º do CC.
Decorre das mencionadas regras que as notificações entre as partes, são efetuadas pelos respetivos mandatários, as notificações às partes em processos pendentes são feitas na pessoa dos seus mandatários judiciais, exceto quando a notificação se destine a chamar a parte para a prática de ato pessoal – o que não é o caso.
Está em causa a notificação de nota discriminativa de custas de parte, com interpelação para o seu pagamento – o que é efetuado de e para os respetivos mandatários. A tal não obsta o facto de ter ocorrido o trânsito em julgado da sentença, pois também a conta de custas é notificada aos mandatários das partes, como previsto no art.º 31º, nº 1 do RCP, a que subjaz entendimento de que o mandatário continua a ser o representante da parte. Tal como ocorre com a notificação da conta de custas, a notificação da nota discriminativa e justificativa das custas de parte ao mandatário da parte vencida melhor acautela os interesses da parte, já que o seu mandatário estará em melhores condições para avaliar se a conta está em harmonia com as disposições legais, e, eventualmente apresentar reclamação, da conta de custas ou das custas de parte, e da respetiva decisão interpor recurso - cfr. respetivamente art.º 31º, nº 1 e 6 do RCP e artºs 26-A, nºs 1 e 3 do RCP e 33º, nºs 1 e 3 da Portaria 419-A/2009, de 17 de abril.
À notificação da nota discriminativa e justificativa de custas de parte não há que aplicar analogicamente o art.º 31º do RCP, pois não há lacuna a integrar (art.º 10º do CC): não estamos perante um caso omisso e, ainda que se entendesse em sentido contrário, não procedem as razões justificativas da regulamentação do caso previsto naquele preceito. Com efeito, o art.º 31º regula a conta de custas, concretamente a reforma e reclamação, numa relação jurídica que se estabelece entre os utentes dos serviços de justiça e o Estado, enquanto o art.º 25º rege uma relação entre partes do processo.
Não ocorrendo insuficiência do título executivo impunha-se a improcedência dos embargos.”
E no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22.6.2023, Proc. 23320/19.6T8LSB-A.L1-2 que vem citado pela Embargada escreve-se, além do mais, o seguinte:
“O que parece evidente: dizendo a lei que a parte deve comunicar a nota também ao tribunal, está a pressupor que essa notificação é feita pelo mandatário (quando exista), como qualquer outro acto processual, pelo que lhe atribui poderes para o efeito. E se o advogado da parte vencedora pode decidir a prática desse acto, também o advogado da parte vencida tem poderes para receber a notificação, ou seja, a lei está a dar ao advogado da parte poderes para receber a notificação da nota, pelo que o acto serve de interpelação para o cumprimento.
Por outro lado, o facto de ser possível reclamar da nota justificativa e de a questão ser resolvida num incidente do processo, reforça a ideia de que se trata de um acto processual, apesar de o processo já ter a sua questão principal decidida e por isso já não estar pendente.
Ora, os mandatários são os representantes das partes no processo e podem praticar actos em nome delas, incluindo o de receber notificações, que podem ter a natureza de interpelações. Ainda: o art.º 25/1 do RCP só fala na notificação da parte vencida e não faz a distinção entre a parte que tem advogado e a que o não tem, e isto numa fase do processo em que ainda se praticam actos em que quem é notificado é o advogado, quando exista, e não a própria parte. Pelo que, não distinguindo a lei e não impondo uma dupla notificação, a notificação a fazer é ao advogado e não à parte. Se não fosse assim e se só se notificasse a parte, embora o advogado ainda pudesse ter que praticar actos no processo, não se lhe dava conhecimento de um acto que podia implicar a prática desses actos, o que é um absurdo.
(…).”
Para mais completa fundamentação remete-se para o ac. do TRG de 21/10/2021, do qual ainda se salienta o seguinte, por dar resposta mais que suficiente a questões que têm sido colocadas pela jurisprudência contrária:
“Devendo as notificações às partes em processos pendentes ser feitas “na pessoa” dos seus mandatários judiciais (artigo 247/1, CPC) e estas directamente “entre mandatários” (artigos 221 e 255, CPC), bastará a “remessa” da nota ao da parte vencida?
Não se tratando de chamar esta “para a prática de acto pessoal” (o exercício do direito de reclamação é eminentemente acto da competência do mandatário e não é condição do pagamento que este seja efectivado pelo próprio mandante bem podendo sê-lo, prática, desejável e até estatutariamente […], pelo seu advogado, desde que provisionado com os fundos para o efeito), nem resultando expressamente da lei, apesar da sua letra, que se esteja perante um “caso especial” de “notificação pessoal” à parte, tudo, na redacção dos preceitos e no sistema de relacionamento processual em que pontifica o mandato, apontando no sentido de que, tendo o devedor um mandatário constituído, a nota justificativa das custas de parte pode e deve ser remetida pessoal e directamente a este, assim produzindo todos os efeitos, mormente o de liquidação e de consolidação do título executivo originado pela sentença condenatória nas custas de parte.
[…]
Em face do regime legal vigente sobre as custas, maxime as custas de parte, é de todo peregrina […] a alusão a que não ocorre interpelação. Esta consuma-se inequivocamente com a remessa da nota discriminativa das quantias devidas e indicação nela do “valor a receber”.
O procedimento legalmente previsto tal pressupõe e nada mais exige.
[…]
Não colhe o argumento de que se a conta de custas também é, nos termos da lei [artigo 31/1 do RCP], notificada à própria parte responsável, igualmente deve sê-lo a nota das de parte.
Além do que a esse propósito se refere no ac. do TRC quanto à distinta relação jurídica em causa, importa ponderar que se trata de resquício de antigo procedimento remontante ao Código das Custas Judiciais que não tem a ver com a formação do título executivo mas se destina a assegurar a informação do responsável sobre a obrigação de pagamento de tributo ao Estado que, como colateral ao objecto do litígio e portanto não coincidente com o cerne do mandato forense considerado na perspectiva mais estrita, serve para aquele se precaver e prover (por si próprio ou através do patrono) ao respectivo pagamento, já que, na hipótese de haver lugar a reclamação, a decisão de a apresentar e a avaliação dos necessários fundamentos (técnicos e jurídicos) para tal caem melhor na competência do respectivo advogado.
[…]”
Por fim, dispondo o artigo 9.º do Código Civil que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (n.º 1); que, não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (n.º 2) e que na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (n.º 3), entendemos, com todo o respeito que nos merece a orientação contrária, que a exigência de notificação directa à parte vencida da nota discriminativa e justificativa de custas de parte não tem o mínimo de respaldo na letra da lei. E a circunstância de tal notificação ser exigida no que respeita à conta de custas, apenas vem acentuar a conclusão de que se o legislador pretendesse criar igual regime quanto à nota discriminativa e justificativa de custas de parte tê-lo-ia dito com todas as letras.
Acresce que, considerando a unidade do sistema jurídico, não se vislumbra razão plausível para que a nota discriminativa e justificativa de custas de parte não possa ser notificada ao mandatário constituído, quando este, afinal, é notificado dos demais actos processuais que ocorrem no processo e será este que, no fim de contas, apresentará reclamação à nota, como sucedeu no caso presente.
Em suma, o título executivo que serve de base à execução, a que estes embargos foram apensados, existe e é exigível devendo, pois, prosseguir a execução, como bem determinou o saneador sentença.
Improcede, pois, a apelação.
Prejudicado fica o conhecimento da questão relativa ao invocado abuso do direito.
Considerando o disposto no artigo 527.º n.ºs 1 e 2 do CPC, as custas são da responsabilidade do Recorrente.
Decisão
Face ao exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso e confirmar o saneador sentença recorrido.
Custas pelo Recorrente.
Registe e notifique.
Lisboa, 9 de Abril de 2025
Maria Celina de Jesus de Jesus de Nóbrega
Maria José Costa Pinto
Maria Eugénia Guerra
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TRL
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https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/4116793e4d204b5d80258c6d0038eae2?OpenDocument
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1,743,897,600,000
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CONFIRMADA A SENTENÇA
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3422/23.5T8PNF.P1
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3422/23.5T8PNF.P1
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JUDITE PIRES
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I - Cabendo apelação autónoma da decisão que haja indeferido meio de prova, é de 15 dias o prazo de recurso dessa decisão.
II - Só a falta absoluta de fundamentação, jurídica ou factual, constitui causa de nulidade da sentença.
III - Uma interpretação actualista do artigo 505.º do Código Civil não exclui a possibilidade de concorrência com a responsabilidade objectiva, associada ao risco inerente à circulação do outro veículo também interveniente no acidente de viação.
IV - Essa concorrência, porém, não se configura quando o acidente se ficou a dever a culpa exclusiva do próprio lesado, constituindo esta uma circunstância excludente da responsabilidade do outro interveniente no acidente.
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"ACIDENTE DE VIAÇÃO",
"CULPA EXCLUSIVA DO LESADO",
"NÃO ADMISSÃO DE MEIO DE PROVA",
"PRAZO PARA RECORRER"
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Processo n.º 3422/23.5T8PNF.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este
Juízo Central Cível de Penafiel – Juiz 3
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I. RELATÓRIO.
AA, NIF ..., residente na Rua ..., ..., ... ..., concelho de Felgueiras, instaurou acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, demandando A... - COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., NIPC ..., com sede no Largo ..., ..., ... Lisboa, pedindo que:
a) a Ré seja condenada a pagar ao A. a quantia de 27.581,20€, relativa ao valor necessário para a reparação dos danos causados na sua viatura, resultado das proveniências referidas em 31 e 42 da petição inicial;
b) a Ré seja condenada a pagar ao A. quantia diária de 100,00€/dia, resultante da imobilização e privação da viatura, desde o dia do sinistro até efectivo e integral pagamento da indemnização devida, que na presente data perfaz a quantia de 18.400,00€ (acrescido do valor diário vincendo até efetivo e integral pagamento da reparação), resultado das proveniências referidas em 54 e 55 da petição inicial;
c) a Ré seja condenada a pagar ao A. a quantia de 5.000,00€ a título de danos não patrimoniais, resultado das proveniências referidas em 56 e 60 da petição inicial;
d) E ainda nos juros legais desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.
Para tanto e em síntese, alega ter ocorrido um acidente de viação, no qual foram intervenientes o veículo ligeiro de passageiros, matrícula ..-IH-.., propriedade do A. e conduzido pelo próprio, e o veículo ligeiro de passageiros, matrícula ..-..-MZ, propriedade de BB e conduzido pelo mesmo.
Após descrever a sua versão do acidente, que imputa à conduta culposa do condutor do veículo MZ, alega o autor os danos sofridos e directamente resultantes do acidente.
Citados, contestou a ré, aceitando a existência do contrato de seguro alegado pelo autor e impugnando os demais factos por ele alegados, descrevendo a sua versão do acidente, que imputa a culpa efectiva e exclusiva do próprio autor.
Assim, pugna pela improcedência da acção e pela sua absolvição do pedido.
Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador, onde se afirmou a validade e regularidade da instância, o objecto do litígio, os factos assentes e os temas da prova.
Procedeu-se a julgamento, após o que foi proferida sentença que, julgando a acção totalmente improcedente, absolveu a ré de todos os pedidos contra ela deduzidos.
Não se resignando o Autor com tal sentença, dela interpôs recurso de apelação para esta Relação, formulando com as suas alegações as seguintes conclusões:
“1. A prova produzida não foi avaliada criticamente, nem foram especificados os fundamentos decisivos para a convicção que consta da sentença, não sendo cumprido o dever de fundamentação, pelo que a sentença recorrida padece de nulidade, por falta de fundamentação.
2. Por outro lado, a prova produzida demonstrou que o sinistro ocorreu por culpa do segurado da Ré, que violou as mais elementares regras da estrada e deu causa ao mesmo de forma exclusiva.
3. Verificando-se, assim, incorretamente julgados os factos provados sob os n.ºs 13 (na parte “apenas com limitação de velocidade”), 14, 15, 16 e 17, bem como os factos não provados sob os números 1, 3, 4, 5, 6, 7, 8 e 9.
4. Pois, o que resulta da prova testemunhal, em conjugação com a prova documental (nomeadamente os documentos com que foram confrontadas as testemunhas – fotografias – que demonstram os danos nas laterais) é diferente do que vem provado e não provado na sentença recorrida.
5. Aliás, dessa prova o que resulta é que o sinistro ocorreu por culpa do segurado da Ré, que inegavelmente transpôs a linha continua – cfr. artigo 7 dos factos provados.
6. O Tribunal não se pode render a uma versão sem qualquer espírito critico que não seja desacreditar o testemunho dos restantes intervenientes, tomando nitidamente partido pela versão da Ré, sendo certo que o ponto 7 dos factos provados refere que as duas vias são dividas por linha contínua – assim se concluiu que o condutor do MZ transpôs a linha contínua em transgressão do código da estrada (constituindo contraordenação muito grave nos termos do artigo 146.º do CE e artigo 60.º, n.º 1, M1 do regulamento da sinalização de trânsito – decreto regulamentar n.º 22-A/98, de 1 de outubro) e provocou o acidente dos autos.
7. Para o presente recurso, a prova relevante (no que diz respeito à dinâmica do sinistro, posicionamento final das viaturas e danos) é a seguinte: CC – militar da GNR – inquirido por videoconferência no dia 12/09/2024, cujo depoimento foi gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática do Tribunal, com início pelas 09 horas e 41 minutos e termo pelas 10 horas e 02 minutos. BB – condutor do MZ – inquirido por videoconferência no dia 12/09/2024, cujo depoimento foi gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática do Tribunal, com início pelas 10 horas e 06 minutos e termo pelas 10 horas e 49 minutos. DD – filha do A. – inquirida no dia 12/09/2024, cujo depoimento foi gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática do Tribunal, com início pelas 10 horas e 49 minutos e termo pelas 11 horas e 18 minutos. EE – rebocador – inquirido no dia 12/09/2024, cujo depoimento foi gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática do Tribunal, com início pelas 11 horas e 42 minutos e termo pelas 11 horas e 56 minutos. Declarações de parte prestadas em 12/09/2024 pelo A. (AA), cujas declarações se encontram gravadas no sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática do Tribunal, com início às 14 horas e 56 minutos e finalizadas pelas 15 horas e 31 minutos. E prova documental junta aos autos, nomeadamente as fotografias juntas na PI (documento 4 – e alegada no artigo 8.º da PI), fotografia junta pela Ré na sua contestação, documentos juntos pela CA seguros em 23/01/2024 e relatório da B... junto aos autos pela Ré em 13/03/2024, com a referência 9493457.
8. Quanto à prova testemunhal, tanto ou mais importante que o conteúdo das declarações é o modo como são prestadas, a excessiva firmeza (como foi o depoimento do condutor do MZ – que ao longo do seu depoimento se foi intitulando como um condutor extremamente prudente e de muitos quilómetros, mas que sem dúvida aceita que transpôs a linha continua e refere que as linhas continuas não são necessárias – e o Tribunal não relevou as suas declarações nessa parte), ou o compreensível enfraquecimento da memória.
9. QUANTO AOS FACTOS DADOS COMO PROVADOS SOB OS NÚMEROS 13 (NA PARTE “APENAS COM LIMITAÇÃO DE VELOCIDADE), 14, 15 E 16 (NA PARTE EM QUE REFERE “OCUPOU LENTAMENTE A FAIXA DA ESQUERDA E AÍ CIRCULOU CERCA DE 40 METROS”): É de referir que, nem pela Ré, nem pelo A., não foi feita qualquer prova nesse sentido.
10. Na verdade, as testemunhas ouvidas em audiência de julgamento prestaram depoimento sob juramento e o seu depoimento foi submetido a contraditório, mas
11. Nenhuma testemunha declarou em audiência de julgamento que a via da esquerda se encontrava com limitação de velocidade,
12. Nenhuma testemunha declarou em audiência de julgamento que, em virtude de o trânsito se encontrar completamente imobilizado, lentamente, todos os outros veículos que circulavam na faixa do meio iam integrando a faixa da esquerda,
13. Nenhuma testemunha declarou em audiência de julgamento que na faixa da esquerda os respetivos condutores iam permitindo entrar um a um,
14. Nenhuma testemunha declarou em audiência de julgamento que o condutor do MZ ocupou lentamente a faixa da esquerda e aí circulou cerca de 40 metros (nem o próprio condutor – testemunha BB – o referiu em audiência de julgamento).
15. Portanto, quanto a estes factos, não existe prova testemunhal.
16. Resta analisar a prova documental, nomeadamente os relatórios de averiguação juntos aos autos, mais precisamente o relatório da B... junto aos autos pela Ré por requerimento de 13/03/2024 (o qual, por requerimento datado de 27/03/2024, foi impugnado pelo A.).
17. Ora, o referido relatório é constituído, além do mais, por depoimentos de alegadas pessoas que não foram sequer indicadas como testemunhas nos presentes autos.
18. Ainda assim e contra o que tem vindo a ser decidido, o Tribunal à quo entendeu que nenhum desses relatórios configurava prova nula ou proibida, ao contrário do que foi sustentado pelo A..
19. Quanto ao relatório da B... junto aos autos pela Ré por requerimento de 13/03/2024, trata-se de um relatório de averiguação feito a pedido da Ré e junto aos autos pela Ré.
20. Não se trata de um documento oficial, nem o mesmo tem a virtualidade de fazer prova plena, até porque se trata de um documento junto pela parte (Ré), que não está assinado e cujo teor não foi sequer confirmado em audiência de julgamento pelo seu autor (averiguador que procedeu à averiguação), a que acresce o facto de a Ré não o ter indicado como testemunha e, se indicou, de ter prescindido das suas testemunhas, desistindo do seu depoimento. Acresce que, apenas as fotografias juntas nesse relatório podem ser consideradas meio de prova porquanto as testemunhas inquiridas em julgamento apenas foram confrontadas com as fotografias constantes desse relatório. Não tendo os restantes elementos do referido relatório sido alvo de discussão nestes autos ou sequer questionados às testemunhas. A que acresce o facto de não ser contraditado, o que viola claramente o princípio do contraditório.
21. Por outro lado, os alegados depoimentos constantes do referido documento (relatório da B...) tratam-se de prova nula, obtida por um mero averiguador (e não um perito) em fase extrajudicial, sem contraditório, sem controlo, juramento ou na presença de um juiz. Nesse sentido decidiu o Tribunal da Relação de Lisboa, a 22/11/2018, no âmbito do processo n.º 18262/17.2T8LSB.L1-2, que “As declarações prestadas perante um averiguador pago por uma seguradora, sem a presença da parte contrária nem o controlo do juiz, não valem como elementos de prova utilizáveis no tribunal, sejam elas corporizadas por um escrito feito na sequência das mesmas ou transmitidas pelo averiguador como testemunha (art. 421.º do CPC, a contrário).” Referindo, ainda, que “Quanto às declarações prestadas aos Srs. peritos (ou melhor: averiguadores): Diz o art. 421.º, n.º 1 do CPC, sobre o valor extraprocessual das provas produzidas num processo judicial: (…) Ora, se isto é assim quanto a provas produzidas num processo judicial, como é que poderia ter valor como prova aquilo que foi dito por alguém numa inquirição não contraditória feita perante uma pessoa que está a fazer um trabalho pago por uma das partes e cujo resultado se for favorável a essa parte levará ao não pagamento de uma indemnização substancial?” Não havendo, pois, “qualquer razão para confiar que as perguntas feitas por um averiguador, pago pela Ré, no decurso de um processo particular extrajudicial, no segredo da sua inquirição informal com o autor, sem o controlo do juiz e da parte contrária, não tenham sido impertinentes, sugestivas, capciosas ou vexatórias. Pelo que o resultado desse depoimento/declarações do autor, seja qual for a forma em que se traduza, designadamente transmitido pelo depoimento do averiguador ou por algum escrito elaborado na sua sequência, não tem qualquer valor.” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, a 22/11/2018, no âmbito do processo n.º 18262/17.2T8LSB.L1-2).
22. O documento não faz, nem pode fazer, por si só, prova dos factos dados como provados sob os números 13 (na parte “apenas com limitação de velocidade), 14, 15 e 16 (na parte em que refere “ocupou lentamente a faixa da esquerda e aí circulou cerca de 40 metros”), nem as alegadas declarações testemunhais dele constantes têm qualquer valor probatório, porquanto não foram prestadas perante o juiz, não foram sujeitas a contraditório, nem sob juramento legal, correspondendo apenas a uma alegação em sede de contestação, da qual a Ré não fez prova.
23. Pelo que, não tendo sido feita prova segura e suficiente, deverão factos dados como provados sob os números 13 (na parte “apenas com limitação de velocidade), 14, 15 e 16 (na parte em que refere “ocupou lentamente a faixa da esquerda e aí circulou cerca de 40 metros”), ser declarados não provados.
24. QUANTO AO FACTO DADO COMO PROVADO SOB O NÚMERO 16 (Foi o que aconteceu com o condutor do MZ, que acionou o sinal luminoso da esquerda, e chegado ao local onde os veículos da faixa do meio se encontravam imobilizados, ocupou lentamente a faixa da esquerda e aí circulou cerca de 40 metros): Embora já tenha impugnado anteriormente parte do facto provado sob o número 16, o mesmo é agora impugnado na parte restante.
25. Quanto a este facto: BB – condutor do MZ: Minuto 03:50 a 04:00, do minuto 06:55 ao minuto 07:00, ao minuto 10:00 referiu que passou a ponte e se colocou na faixa da esquerda (confessando a versão do A.), do minuto 27:20 a 27:50:
26. Ora, considerando o facto provado em 7 dos provados, obviamente que o condutor segurado da Ré transpôs a linha contínua calcando-a, o que evidencia a prática de infração estradal – o que o Tribunal aceitou sem consequências.
27. DD – filha do A.: do minuto 03:10 ao minuto 03:20, minuto 04:20 a 04:30, minuto 05:00 referiu que “Nós íamos na faixa da esquerda, não estava impedida e continuamos a seguir, só que um carro pôs-se à nossa frente e bateu, minuto 13:30 até ao minuto 14:00, minuto 14:10 declarou que “Ele estava parado”, o minuto 17:25 a 17:35, minuto 21:10 até ao minuto 22:00,
28. Na verdade, esta testemunha – que presenciou o sinistro – é esclarecedora e prestou um depoimento claro, direto e imparcial sobre os factos. Relatou os factos de forma isenta. Demonstrou conhecimento da dinâmica do sinistro, porque o viu a acontecer mesmo à sua frente. E a forma como relatou o sinistro é de facto compatível com o sinistro. Relatou que o condutor segurado da Ré, que se encontrava parado, entrou na via da esquerda repentinamente, que o fez junto da ponte, galgando a linha continua e que não houve tempo para reagir. Acresce que a esta testemunha se limitou a responder ao que lhe era perguntado, sem alongamentos nas respostas, nem explicações arranjadas para o momento.
29. E é o que resulta também das declarações de parte prestadas em 12/09/2024 pelo A. (AA): minuto 07:00, minuto 18:55 até ao minuto 19:45 declarou que:
30. Tanto os depoimentos das testemunhas como as declarações de parte do A. devem ser confrontadas com a imagem indicada no artigo 8.º da PI – fotografia do local onde se deu o sinistro, que por brevidade se deu por reproduzida neste recurso.
31. As declarações do A. foram corroboradas pela testemunha DD que, apesar de ser sua filha e ter apenas 17 anos, prestou um depoimento claro, imparcial, isento e esclarecedor (porquanto não entrou em contradições, nem relatou uma realidade exagerada, mas tão-só o que vivenciou.
32. Ou seja, da prova produzida, avaliada à luz da experiência comum, não podia resultar provado que o condutor do MZ acionou o sinal luminoso da esquerda, e chegado ao local onde os veículos da faixa do meio se encontravam imobilizados, ocupou lentamente a faixa da esquerda e aí circulou cerca de 40 metros). Porquanto, resultou precisamente o contrário, ou seja, que o condutor do MZ se encontrava parado na via da direita, transpôs a linha continua e ocupou a via da esquerda por onde circulava o veículo do A.. E o condutor do segurado da Ré em momento algum referiu que entrou na via da esquerda lentamente e que o sinistro se deu após ter percorrido cerca de 40 metros – nem tais factos foram declarados pelas restantes testemunhas ou resultaram de qualquer outro meio de prova.
33. Nessa medida, deve o facto provado sob o número 16 passar a constar do elenco dos factos não provados.
34. QUANTO AO FACTO DADO COMO PROVADO SOB O NÚMERO 17 (Após ter circulado pela faixa da esquerda aqueles cerca de 40 metros, o veículo MZ foi embatido na traseira do lado esquerdo pela frente lateral direita do veículo pelo ..-IH-.., conduzido pelo autor, que não conseguiu imobilizar o seu veículo a tempo de evitar aquele embate):
35. A testemunha BB – condutor do MZ: minuto 21 (No meu carro foi do meu lado esquerdo. Mais ou menos na zona central para a esquerda), minuto 21:55 até ao minuto 22:05, minuto 22:50, minuto 33:55 ao minuto 34:20,
36. A testemunha BB relata os danos como se o embate tivesse levado uma “pancada na traseira” – sendo certo que as fotografias que constam da página 8 e 9 do relatório da B... junto através de requerimento datado de 13/03/2024, com a referência 9493457, com o qual a testemunha foi confrontada (conforme consta da ata de audiência final), são esclarecedoras de que não houve uma pancada na traseira, mas na lateral traseira – desde a porta traseira esquerda até ao guarda lamas – que incidem com mais evidência junto à roda esquerda traseira e depósito de combustível.
37. Ou seja, o que a testemunha declarou em tribunal não corresponde ao que ficou demonstrado pelas fotografias que constam da página 8 e 9 do relatório da B... junto através de requerimento datado de 13/03/2024, com a referência 9493457, pelo que não pode merecer credibilidade que o Tribunal à quo lhe deu.
38. E conforme declarações já transcritas na impugnação do facto 16 e que se dão por reproduzidas, a testemunha DD, aos minutos 03:10 a 03:20, 04:20 a 04:30, 13:30 a 14:10, 17:25 a 17:35, 21:10 a 22:00, relatou que o condutor segurado da Ré se encontrava parado na via do meio, entrou na via da esquerda repentinamente, que o fez junto da ponte, galgando a linha continua e que não houve tempo para o seu pai reagir, minuto 05:00 ao minuto 06:00 explicou que “Nós íamos na faixa da esquerda, não estava impedida e continuamos a seguir, só que um carro pôs-se à nossa frente e bateu. E que o embate “Foi do meu lado.”
39. O A. AA também declarou do minuto 04:30 ao minuto 05:10 que os veículos não ficaram na posição desenhada no croqui da GNR.
40. Há que ressalvar que, embora o Tribunal à quo tenha colocado em causa o declarado pelo A., o certo é que a posição final dos veículos relatada pelo A. foi expressamente confirmada pelas declarações da testemunha CC – militar da GNR que elaborou o croqui – minuto 08:20 a 09:00, onde disse: “os carros estavam enganchados um no outro”, “era a parte do lado direito de um na traseira do lado esquerdo do outro”, e do minuto 13:20 a 14:25 disse “estava a parte da frente lateral do veículo 1 e estava o veículo 2 do lado esquerdo”, e quando lhe perguntado se a pancada foi em cheio na traseira, disse “em cheio não, foi de lado”, “estavam enganchados aqui nas laterais”.
41. Também a testemunha EE – rebocador – relatou o mesmo posicionamento dos veículos (relatado pelo A. e pelo militar da GNR): 02:50 a 04:00.
42. Apenas e só porque o embate foi entre as laterais e não frente com traseira.
43. A dinâmica do sinistro relatada pelo A., confirmada pela sua filha, cujas posições finais dos veículos também foram confirmadas pela testemunha CC, militar da GNR que elaborou o croqui,
44. Sendo natural e mais verosímil que um veículo ao sair repentinamente de uma fila de transito, onde está integrado, para circular na faixa da esquerda, embata com a sua traseira esquerda (parte lateral) na frente direita (parte lateral) resultando daí o seu enganchamento na barra de proteção.
45. Pelo que, deve o facto 17 dos provados ser julgado não provado.
46. E porque é o que resulta da prova, dar-se como provado que: o veículo MZ embateu com a traseira do lado esquerdo na frente lateral direita do veículo pelo ..-IH-.., conduzido pelo autor.
47. Quanto aos FACTOS NÃO PROVADOS sob os números 1, 3, 4, 5, 6, 7 e 9 perante a prova produzida, impõe-se que os mesmos sejam considerados provados, senão vejamos:
48. Quanto ao FACTO NÃO PROVADO sob o número 1 (O veículo segurado da Ré encontrava-se integrado na fila de trânsito parado da via do meio e à sua esquerda tinha a via da esquerda), foi produzida a seguinte prova que impõe a sua alteração para provado:
49. Atente-se ao depoimento da testemunha DD – filha do A.: minuto 13:30 até ao minuto 14:00, o minuto 14:10 declarou que: “Ele estava parado”, minuto 21:45 ao minuto 22:00 (A testemunha respondeu com clareza, referindo que o segurado da Ré estava parado na faixa do meio e que para trás dele e para a frente havia mais veículos).
50. E é o que resulta também das declarações de parte prestadas em 12/09/2024 pelo A. (AA): Minuto 19:30 a 19:40.
51. Pelo que, deve o facto não provado sob o número 1 (O veículo segurado da Ré encontrava-se integrado na fila de trânsito parado da via do meio e à sua esquerda tinha a via da esquerda), ser alterado para provado.
52. Quanto aos FACTOS NÃO PROVADOS sob os números 3 (Sem que nada o fizesse prever, o A. foi surpreendido pelo veículo segurado da Ré, que saiu da fila de trânsito da via do meio, transpôs a linha contínua à sua esquerda e ocupou a via de trânsito da esquerda) e 4 (O que fez sem qualquer sinalização, sem qualquer atenção aos veículos da via da esquerda e transpondo a linha contínua, ingressou da esquerda), foi produzida a seguinte prova que impõe a sua alteração para provados,
53. DD – filha do A.: Ao minuto 03:10 a 03:20, minuto 04:20 a 04:30, minuto 13:30 até ao minuto 14:00, minuto 14:10, minuto 21:10 até ao minuto 22:00 (a testemunha não tem dúvidas de que o segurado da Ré, sem qualquer atenção ao trânsito, sai repentinamente da fila do meio onde estava parado, transpõe a linha continua e ocupa a via de trânsito da esquerda, surpreendendo o A.).
54. Declarações de parte prestadas em 12/09/2024 pelo A. (AA): minuto 01:00 ao minuto 02:00, declarou, minuto 07:00, minuto 18:55 até ao minuto 19:45,
55. Tanto o depoimento da testemunha como as declarações de parte do A. devem ser confrontadas com a imagem indicada no artigo 8.º da PI – fotografia do local onde se deu o sinistro.
56. Nessa medida, devem os factos não provados sob os números 3 (Sem que nada o fizesse prever, o A. foi surpreendido pelo veículo segurado da Ré, que saiu da fila de trânsito da via do meio, transpôs a linha contínua à sua esquerda e ocupou a via de trânsito da esquerda) e 4 (O que fez sem qualquer sinalização, sem qualquer atenção aos veículos da via da esquerda e transpondo a linha contínua, ingressou da esquerda), ser alterados para provados.
57. Quanto ao FACTO NÃO PROVADO sob o número 6 (Ao fazê-lo, o segurado da Ré acelerou de forma a entrar rapidamente na via da esquerda, cortando a linha de circulação do veículo do A.), foi produzida a seguinte prova que impõe a sua alteração para provado,
58. Depoimento de DD – filha do A.: minuto 05:00, minuto 21:10, a testemunha declarou que o carro saiu da faixa do meio e meteu-se à frente do carro do pai. Que vinha do lado da linha continua. Que foi tudo de repente. Que o veículo segurado da Ré estava integrado numa fila de trânsito parada e que repentinamente saiu da fila para a esquerda, passou a linha continua bateu-lhes e causou o acidente.
59. A testemunha DD não teve dúvidas de que, quando circulavam pela via da esquerda, um carro pôs-se à frente deles e bateu. O A. esclareceu que tal manobra, por parte do segurado da Ré, foi repentina e causadora do sinistro.
60. O A. (AA): minuto 01:00, minuto 14:55, minuto 20:00, minuto 21:00.
61. De facto, considerando também o facto provado em 7 dos provados, bem como as declarações das testemunhas e de parte do A., não há dúvida que o segurado da Ré transpôs a linha continua e provocou o sinistro de forma exclusiva.
62. Nessa medida, deve o facto não provado sob o número 6 (Ao fazê-lo, o segurado da Ré acelerou de forma a entrar rapidamente na via da esquerda, cortando a linha de circulação do veículo do A.), ser dado como provado.
63. Quanto aos FACTOS NÃO PROVADOS sob os número 7 (E porque o A. já se encontrava ao seu lado, o veículo segurado da Ré, imprimindo velocidade à sua viatura, galgou a linha continua, provocou o embate entre a sua roda traseira esquerda com a roda direita dianteira do veículo do A., provocou que as mesmas ficassem atreladas uma na outra), e 9 (O embate deu-se assim entre a lateral esquerda do veículo segurado da Ré e a lateral direita do veículo do A.), foi produzida a seguinte prova que impõe a sua alteração nos seguintes termos,
64. Porque este facto vem na sequência da impugnação dos factos não provados 3, 4 e 6 (que em virtude da prova também se verificam provados), nomeadamente quanto à transposição da linha continua e à forma como o segurado da Ré entrou na via da esquerda, dão-se por reproduzidos todas as transcrições já feitas, particularmente as declarações prestadas pelo A. e o depoimento da sua filha DD, bem como o facto provado em 7 dos provados.
65. Atente-se ao depoimento (CC – militar da GNR que elaborou o croqui, nomeadamente do minuto 08:20 a 09:00, que esclareceu a posição em que encontrou os veículos (porque não viu o acidente, mas tão-só a posição final dos mesmos): “os carros estavam enganchados um no outro”, “era a parte do lado direito de um na traseira do lado esquerdo do outro”, e do minuto 13:20 a 14:25 disse “estava a parte da frente lateral do veículo 1 e estava o veículo 2 do lado esquerdo”, e quando lhe perguntado se a pancada foi em cheio na traseira, disse “em cheio não, foi de lado”, “estavam enganchados aqui nas laterais”. Ou seja, se esclareceu que os carros estavam enganchados nas laterais, por isso o embate só podia ter sido de lado.
66. Na verdade, quanto ao posicionamento final dos veículos, também percepcionado pelo militar da GNR e pelo rebocador, o mesmo é absolutamente coincidente. Pelo que, não se compreende que o Tribunal tire conclusão diferente da percecionada e declarada pelas testemunhas.
67. Os danos mais intensos são nas laterais dos veículos.
68. Declarações de parte do A. AA, ao minuto 01:00, minuto 14:30, minuto 14:30, minuto 16:25 a 17:00, minuto 28:00.
69. Também o condutor segurado da Ré, testemunha BB – condutor do MZ, quanto ao guarda lamas traseiro que se situa na lateral esquerda (por cima da roda traseira esquerda) referiu ao minuto 34:00: “Estava partido. Estava todo esmagado, estava todo partido” – o que não aconteceu com o para-choques traseiro que apenas caiu (conforme se pode verificar nas fotografias constantes das páginas 8 e 9 do relatório da B... junto aos autos pela Ré em 13/03/2024).
70. O para-choques não tem quaisquer vestígios de embate, mas sim o guarda-lamas traseiro esquerdo (que ficou totalmente danificado).
71. A testemunha EE – rebocador: minuto 02:00 a 03:00.
72. Quanto ao FACTO NÃO PROVADO sob o número 7 (E porque o A. já se encontrava ao seu lado, o veículo segurado da Ré, imprimindo velocidade à sua viatura, galgou a linha continua, provocou o embate entre a sua roda traseira esquerda com a roda direita dianteira do veículo do A., provocou que as mesmas ficassem atreladas uma na outra), foi produzida prova que impõe a sua alteração para provado, com a seguinte redação: “o veículo segurado da Ré, imprimindo velocidade à sua viatura, galgou a linha continua, provocou o embate entre a parte da roda traseira e guarda-lamas traseiro da lateral esquerda com a parte da roda direita dianteira do veículo do A., provocou que as mesmas ficassem atreladas uma na outra através da barra de transmissão”.
73. E quanto ao facto não provado 9 (O embate deu-se assim entre a lateral esquerda do veículo segurado da Ré e a lateral direita do veículo do A.), foi de facto produzida prova que impõe a sua alteração para provado, com a seguinte redação: O embate deu-se assim entre a traseira lateral esquerda do veículo segurado da Ré e a frente lateral direita do veículo do A..
74. Quanto ao posicionamento final das viaturas, os carros ficaram enganchados pelas laterais, conforme resulta dos depoimentos de todas testemunhas (inclusive, pela testemunha CC, militar da GNR) e das declarações de parte do A..
75. Quanto aos danos se verifiquem nas laterais (lateral traseira de um e lateral frente de outro) – conforme foi dito por todas as testemunhas ao longo do julgamento inclusive pela testemunha CC, militar da GNR, os quais (sem margem para dúvidas) podem ser visualizados nas fotografias constantes das páginas 8, 9 e 11 do relatório da B... junto aos autos pela Ré em 13/03/2024, com a referência 9493457.
76. Quanto ao embate, o mesmo não foi na traseira, conforme resulta dos depoimentos de todas testemunhas (inclusive, pela testemunha CC, militar da GNR) e das declarações de parte do A. e das fotografias constantes das páginas 8, 9 e 11 do relatório da B... junto aos autos pela Ré em 13/03/2024, com a referência 9493457, onde é possível visualizar que não houve um embate na traseira.
77. Acresce que, se o militar da GNR esclareceu que os carros estavam enganchados nas laterais, não podia o Tribunal concluir que o acidente se dá por embate na traseira, pelo que devem as declarações do militar da GNR ser tidas em consideração na decisão (porquanto é uma testemunha completamente isenta e imparcial e que relatou ter visto os veículos enganchados pelas laterais, dizendo que perante o embate não podia ter sido na traseira).
78. Por outro lado, resulta da experiência comum de um cidadão médio que, se a posição final dos veículos fosse a que consta do croqui da GNR, os danos dos veículos seriam completamente diferentes dos verificados e demonstrados nas fotografias constantes das páginas 8, 9 e 11 do relatório da B... junto aos autos pela Ré em 13/03/2024, com a referência 9493457, porquanto a intensidade dos danos deveria verificar-se no para-choques e mala e não no guarda-lamas traseiro (como acontece no presente caso).
79. A manobra realizada pelo segurado da Ré e comprovada pelo A. e pelas testemunhas (militar da GNR, rebocador e filha do A. – ocupante de viatura do A.)
80. A prova produzida demonstrou que o sinistro ocorreu por culpa do segurado da Ré, que violou as mais elementares regras da estrada, porquanto sem verificar com total segurança o trânsito à sua retaguarda, ocupou repentinamente a via por onde circulava o A., transpondo uma linha contínua.
81. Alterada a matéria de facto quanto à dinâmica do sinistro e danos, deve a Ré ser condenada nos termos peticionados, porquanto se encontram verificados os pressupostos de que depende a responsabilidade civil mesma (estando, pois, preenchidos todos os requisitos que levam à sua condenação).
82. E na audiência final (onde a testemunha EE (rebocador), que foi inquirido no dia 12/09/2024 (com início às 11H42 e termo às 11H56), do minuto 07:30 ao minuto 10:00 referiu que tinha tirado fotografias ao veículo do A. e que as descarregou numa plataforma da empresa) foi requerida a junção das referidas fotografias, a qual foi indeferida pelo Tribunal à quo.
83. Na verdade, a testemunha declarou não conhecer o A. (conforme até foi referido na sentença pelo Tribunal à quo), os documentos (fotografias) encontravam-se em poder de terceiro (da entidade patronal daquela testemunha) e eram fotografias da posição em que se encontravam os veículos – provavelmente bem esclarecedoras dos factos (ainda assim, o Tribunal decidiu indeferir a sua junção). Aliás, do minuto 07:30 ao minuto 10:00 (mesmo antes de ter sido feito qualquer requerimento), o Tribunal foi bem explicito ao referir que não queria mais fotografias e que não voltava a suspender o julgamento.
84. As fotografias foram requeridas nos termos do artigo 432.º do CPC, porquanto se encontravam em poder de terceiro, das quais o A. só teve conhecimento no decorrer da audiência de julgamento, foram especificados os factos que se pretendiam provar e, embora o tivesse indicado no seu rol, o A. não conhecia a testemunha.
85. Conforme dispõe o art. 411.º do CPC, incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.
Consagra-se aqui o princípio do inquisitório, atribuindo-se ao juiz um papel activo em encetar ou ordenar todas as diligências pertinentes à busca da verdade material e justa composição do litígio, perante os factos que pode conhecer.
86. E sempre que alguma das partes alegue justificadamente dificuldade séria em obter documento ou informação que condicione o eficaz exercício de faculdade ou o cumprimento de ónus ou dever processual, deve o juiz, sempre que possível, providenciar pela remoção do obstáculo (cfr. art.º 7º, n.º 4, do CPC).
87. Incumbe ao tribunal, por sua iniciativa ou a requerimento de qualquer das partes, requisitar informações, pareceres técnicos, plantas, fotografias, desenhos, objectos ou outros documentos necessários ao esclarecimento da verdade, podendo a requisição der feita aos organismos oficiais, às partes ou a terceiros (cfr. art.º 436º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
88. Pelo que, deverá ser revogada a decisão recorrida, devendo a mesma ser substituída por outra que ordene a notificação da entidade patronal da testemunha (C...) para juntar aos autos todas as fotografias do acidente que foram tiradas pela testemunha EE.
89. Mostram-se assim violados, entre outros, os artigos 7.º, n.º 4, 411.º, 432.º, 436.º, 607.º, n.º 4 e 615.º, n.º 1, b) do CPC, 146.º do Código da Estrada, 60.º, n.º 1, M1 do Decreto Regulamentar 22-A/98, de 01 de outubro,
Pelo que,
E revogando a douta sentença e proferindo outra que altere a matéria de facto e condene a R. conforme supra exposto,
E revogando a decisão que indeferiu a junção das fotografias recolhidas pelo rebocador e proferindo outra que ordene a notificação da entidade patronal da testemunha (C...) para juntar aos autos todas as fotografias do acidente que foram tiradas pela testemunha EE.
Farão V/Exas. Venerandos Desembargadores a costumada JUSTIÇA!”.
A apelada apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso e confirmação do decidido.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar.
II.OBJECTO DO RECURSO.
A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelo recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.
B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelo recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar:
- se a sentença padece de nulidade;
- se a matéria de facto foi incorrectamente apreciada;
- consequências jurídicas da eventual alteração da matéria de facto.
III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
III.1. Foram os seguintes os factos julgados
provados
em primeira instância:
1. No dia 13 de maio de 2023, pelas 13H20, na Auto Estrada ..., ao km 13,500, na União de Freguesias ... e ..., concelho de Lousada, ocorreu um embate em que foram intervenientes duas viaturas: a) O veículo ligeiro de passageiros, matrícula ..-IH-.., propriedade do A. (AA) e conduzido pelo próprio; e, b) O veículo ligeiro de passageiros, matrícula ..-..-MZ, propriedade de BB e conduzido pelo mesmo.
2. Era dia, estava bom tempo, o piso estava seco e a visibilidade era boa.
3. A faixa de rodagem tem cerca de 11 metros de largura.
4. Apresenta três vias de trânsito, no mesmo sentido de trânsito.
5. Da berma para o separador central, a primeira faixa destina-se aos veículos que vão no sentido de ... e ....
6. A segunda e terceira vias destinam-se a quem circula no sentido .../....
7. Essas duas vias são divididas por linha contínua.
8. No local onde se deu o sinistro, a via configura uma reta.
9. O trânsito na via mais à direita e na via do meio encontrava-se parado, uma vez que se encontrava um cão à deriva naquele local e onde várias pessoas tentavam apanhá-lo.
10. A GNR estava também no local a regular o trânsito, em virtude da prova de rally de Portugal que se realizava nesse dia, estando nomeadamente a regular a circulação em direção às saídas da autoestrada.
11. A viatura segurada da Ré (com a matrícula ..-..-MZ) seguia pela via do meio, contudo o trânsito nessa via encontrava-se parado.
12. À data do embate, o proprietário do veículo de matrícula ..-..-MZ havia transferido a responsabilidade civil automóvel decorrente da circulação daquele veículo para a Ré através da Apólice n.º ..., nos moldes vertidos no documento n.º 1 junto com a contestação que aqui se dá por integralmente reproduzido.
13. Embora, o trânsito nas vias do meio e da direita estivesse parado, a via da esquerda encontrava-se livre e o trânsito decorria normalmente, apenas com limitação de velocidade.
14. Em virtude de o trânsito se encontrar completamente imobilizado, devido ao facto já referido nos factos assentes, lentamente, todos os outros veículos que circulavam na faixa do meio iam integrando a faixa da esquerda – a única por onde se circulava.
15. E onde os respetivos condutores lhes iam permitindo entrar um a um.
16. Foi o que aconteceu com o condutor do MZ, que acionou o sinal luminoso da esquerda, e chegado ao local onde os veículos da faixa do meio se encontravam imobilizados, ocupou lentamente a faixa da esquerda e aí circulou cerca de 40 metros.
17. Após ter circulado pela faixa da esquerda aqueles cerca de 40 metros, o veículo MZ foi embatido na traseira do lado esquerdo pela frente lateral direita do veículo pelo ..-IH-.., conduzido pelo autor, que não conseguiu imobilizar o seu veículo a tempo de evitar aquele embate.
18. No momento imediatamente anterior ao embate, a viatura do A. (com a matrícula ..-IH-..) seguia na referida via da esquerda (onde o trânsito estava a circular) para trás do veículo MZ.
19. O A. perdeu a direção do seu veículo, porque foi arrastado (deixando marcas de arrasto na via) pelo veículo MZ e só parou quando o veículo segurado da Ré parou, percorrendo ambos cerca de 60 m após o embate e até pararem.
20. Em consequência do embate, o veículo do autor teve danos na frente direita do veículo, bem como na roda da frente direita, eixo, longarina.
21. Em virtude do embate ficaram danificadas as peças que constam do orçamento de reparação, efetuado pela oficina M. Coutinho de Paredes, que é o doc. 5 junto com a petição inicial e que se dá por reproduzido para todos os efeitos legais.
22. E, porque tais peças ficaram amolgadas, encolhidas, fragmentadas e partidas, a reparação do veículo do autor implica a sua substituição, sendo necessários trabalhos de mão de obra, pintura, mecânica e chapeiro descritos no doc. 5 junto com a petição inicial.
23. A referida oficina orçamentou a referida reparação no valor de 27.581,20€.
24. O veículo do A. (antes do sinistro) satisfazia todas as suas necessidades de deslocação.
25. Encontrava-se em bom estado de conservação, apresentava boas condições de funcionamento e de mecânica e tinha todas as revisões em dia.
26. Não estava à venda, nem o A. pretendia vendê-lo.
27. O veículo do A., devido aos danos sofridos, ficou imediatamente impossibilitado de circular, estando imobilizado.
28. Em consequência, ficou o A. privado do uso do seu veículo e de fruir todas as utilidades que o mesmo lhe proporcionaria durante todo este tempo.
III. 2. A mesma instância considerou
não provados
os seguintes factos:
1. O veículo segurado da Ré encontrava-se integrado na fila de trânsito parado da via do meio e à sua esquerda tinha a via da esquerda.
2. A viatura do A. (com a matrícula ..-IH-..) seguisse a cerca de 70Km/hora.
3. Sem que nada o fizesse prever, o A. foi surpreendido pelo veículo segurado da Ré, que saiu da fila de trânsito da via do meio, transpôs a linha contínua à sua esquerda e ocupou a via de trânsito da esquerda.
4. O que fez sem qualquer sinalização, sem qualquer atenção aos veículos da via da esquerda e transpondo a linha contínua, ingressou da esquerda.
5. Por onde circulava o veículo do A. e no preciso momento em que o A. se encontrava lado a lado com o veículo segurado da Ré.
6. Ao fazê-lo, o segurado da Ré acelerou de forma a entrar rapidamente na via da esquerda, cortando a linha de circulação do veículo do A..
7. E porque o A. já se encontrava ao seu lado, o veículo segurado da Ré, imprimindo velocidade à sua viatura, galgou a linha continua, provocou o embate entre a sua roda traseira esquerda com a roda direita dianteira do veículo do A., provocou que as mesmas ficassem atreladas uma na outra.
8. O arrastamento da viatura do A. por cerca de 50 metros, a viatura segurada na ré tivesse ampliado os danos que já havia provocado ao embater-lhe.
9. O embate deu-se assim entre a lateral esquerda do veículo segurado da Ré e a lateral direita do veículo do A..
10. O A. tivesse travado.
11. O Autor, para além da velocidade que imprimia ao seu veículo, seguia distraído.
12. E quando se apercebeu da distância que o separava do veículo MZ, ainda tentou travar e desviar-se para a esquerda.
13. O A. utilizasse o veículo ..-IH-.. diariamente, quer nas suas deslocações de trabalho, quer nas suas deslocações de lazer.
14. O A. é empresário na área das madeiras e componentes e tem necessidade de se deslocar diariamente a diversos clientes e fornecedores, por todo o país, utilizando a referida viatura nessas suas deslocações laborais.
15. Utilizava também o mesmo para fazer face à sua economia doméstica e para transportar o seu agregado familiar.
16. O A. socorreu-se de automóveis de familiares e amigos, relativamente aos quais ficou e ficará a dever o favor.
17. Em consequência dos factos descritos, o A. sofreu transtornos, agastamentos e angústia.
18. O sinistro provocou-lhe insónias e mau estar.
19. Sofreu de dores físicas nos dias que seguiram ao sinistro.
20. No momento do sinistro, ficou com um sentimento de impotência e de medo ao ver que o veículo segurado da Ré embateu do lado do veículo em que seguia a sua filha.
IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
1. Questão prévia: do recurso que visa a decisão que indeferiu a junção de fotografias em poder de terceiro.
O apelante, juntamente com o recurso interposto da sentença que julgou a acção improcedente e absolveu a Ré dos pedidos contra ela formulados, impugnou também recursivamente a decisão que indeferiu a junção de fotografias colhidas pela testemunha EE, rebocador da viatura sinistrada do Autor, na sequência da sua inquirição – conforme conclusões 82.º a 88.º -, pugnando, a final, pela revogação da referida decisão “
devendo a mesma ser substituída por outra que ordene a notificação da entidade patronal da testemunha (C...) para juntar aos autos todas as fotografias do acidente que foram tiradas pela testemunha EE”.
Do despacho que não admita/rejeite meio de prova cabe apelação autónoma, como claramente resulta do disposto no artigo 644.º, n.º 2, d) do Código de Processo Civil.
É de 15 dias o prazo de recurso dessa decisão, como decorre da última parte do n.º 1 do artigo 638.º do mesmo diploma legal.
A decisão que indeferiu a junção das fotografias obtidas pela identificada testemunha foi proferida a 12.09.2024.
Esse prazo mostra-se largamente excedido quando o apelante, juntamente com a sentença final, interpõe recurso visando também aquela decisão de indeferimento do aludido meio de prova.
Por não ter interposto recurso do mencionado despacho no prazo de 15 dias, aquela decisão transitou em julgado, não podendo, por isso, ser objecto de sindicância em sede de recurso, sendo este, nesta parte, extemporâneo.
Como tal, não se conhece do recurso relativamente à decisão proferida a 12.09.2024, que indeferiu a requerida junção de fotografias, achando-se esta transitada em julgado.
2. Da nulidade da sentença.
Imputa o recorrente à sentença que recursivamente impugna vício de nulidade que enquadra na previsão do artigo 615.º, n.º, b) do Código de Processo Civil, invocando falta de fundamentação.
Sobre a nulidade da sentença dispõe o n.º 1 do artigo 615.º do mesmo diploma legal:
“É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido
.
A nulidade da sentença - ou de despacho - constitui vício intrínseco da decisão, desde que ocorra alguma das circunstâncias taxativamente previstas no artigo 615.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, que, pela sua gravidade, comprometem a sentença ou o despacho
qua tale
.
Como o n.º 1 do artigo 668.º do anterior diploma, também o n.º 1 do artigo 615.º do actual Código de Processo Civil contém uma enumeração taxativa das causas de nulidade da sentença
[1]
, nelas não se inserindo o designado erro de julgamento, que apenas pode ser atacado por via de recurso, quando o mesmo for legalmente admissível
[2]
.
Como já se anotou, o erro de julgamento não se confunde com a invalidade da sentença: a sentença é nula quando ocorra algum dos circunstancialismos taxativamente previsto no citado artigo 615.º, n.º 1; ocorrendo erro de julgamento, de facto ou de direito, esse erro não colide com a validade da sentença, podendo, todavia, a parte prejudicada com esse erro impugná-la pela via do recurso, quando preenchidos os necessários pressupostos processuais.
A falta de fundamentação, de facto ou de direito, constitui circunstância tipificada na alínea b) do referido normativo que, a ocorrer, dita a nulidade da sentença afectada por essa omissão.
É pela fundamentação que a decisão se revela um acto não arbitrário, traduzindo a concretização da vontade abstracta da lei ao caso particular submetido à apreciação jurisdicional.
É por ela que as partes tomam conhecimento das razões que ditaram o desfecho da acção e das pretensões que nela formularam, permitindo-lhes ajuizar da viabilidade de recurso aos meios processuais de impugnação.
Compreende-se, assim, que a falta de fundamentação da decisão, quando seja devida, gere a sua nulidade. Tal falta, quer se trate de um mero despacho ou de uma sentença, há de revelar-se por ininteligibilidade do discurso decisório, por ausência total de explicação da razão por que se decide de determinada maneira
Como esclarecem Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora
[3]
, a propósito do vício previsto no citado dispositivo, “
para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta embora esta se possa referir aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito.
[…] Para que haja falta de fundamentação, como causa de nulidade da sentença, torna-se necessário que o juiz não concretize os factos que considera provados e coloca na base da decisão. Relativamente aos fundamentos de direito, dois pontos importa salientar:
Por um lado, o julgador não tem que analisar todas as razões jurídicas que cada uma das partes invoque em abono das suas posições, embora lhe incumba resolver todas as questões suscitadas pelas partes: a fundamentação da sentença contenta-se com a indicação das razões jurídicas que servem de apoio a solução adoptada pelo julgador.
Por outro lado, não é indispensável, conquanto seja de toda a conveniência, que na sentença se especifiquem as disposições legais que fundamentam a decisão; essencial é que se mencionem os princípios, as regras, as normas em que a sentença se apoia
”
[4]
.
O dever de fundamentação da sentença basta-se com a simples indicação das razões de facto e de Direito que servem de apoio à solução adotada pelo julgador.
Como é entendimento pacífico na doutrina e na jurisprudência, só a falta absoluta de fundamentação penaliza com nulidade a sentença afectada por tal omissão
[5]
. Como já o Prof. Alberto dos Reis
[6]
esclarecia, “
o que a lei considera causa de nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou a mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz a nulidade
.
Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto
”.
Note-se que “
da falta absoluta de motivação jurídica ou factual - única que a lei considera como causa de nulidade —há que distinguir a fundamentação errada, pois esta, contendendo apenas com o valor lógico da sentença, sujeita-a a alteração ou revogação em recurso, mas não produz nulidade
”
[7]
.
Uma errada, insuficiente ou incompleta fundamentação não afecta o valor legal da decisão, não gerando a sua nulidade: “
o vício de insuficiência da decisão de facto é equacionável com base no artigo 662.º, n.º 2, alínea c), parte final, do CPC, sendo de conhecimento oficioso e suscetível de implicar a ampliação daquela decisão, pelo que a sua eventual invocação pelo apelante não está sujeita aos requisitos impugnativos prescritos no artigo 640.º, n.º 1, do mesmo Código, os quais só condicionam a admissibilidade da impugnação, com fundamento em erro de julgamento, dos juízos probatórios concretamente formulados”
[8]
.
Do vício de nulidade, por falta de fundamentação, não padece a sentença recorrida, na qual estão mencionadas razões que motivam a decisão relativa à matéria de facto, com indicação das provas atendidas, assim como os fundamentos jurídicos que suportam a decisão de mérito da acção.
Improcedem, pois, as alegações recursórias do apelante quanto à invocada nulidade da sentença.
3. Reapreciação da matéria de facto.
Dispõe o n.º 1 do artigo 662.º do Código de Processo Civil que “
a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa
”, estabelecendo o seu nº 2:
“
A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:
a) Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;
b) Ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;
c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta
”.
Como refere A. Abrantes Geraldes
[9]
, “a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência”… “afastando definitivamente o argumento de que a modificação da decisão da matéria de facto deveria ser reservada para casos de erro manifesto” ou de que “não é permitido à Relação contrariar o juízo formulado pela 1ª instância relativamente a meios de prova que foram objecto de livre apreciação”, acrescentando que este tribunal “deve assumir-se como verdadeiro tribunal de instância e, por isso, desde que, dentro dos seus poderes de livre apreciação dos meios de prova, encontre motivo para tal, deve introduzir as modificações que se justificarem”.
Note-se que a construção da realidade fáctica submetida à discussão não se poderá efectuar de forma parcelar e desconexa, atendendo apenas a determinado meio de prova, ou a parte dele, e ignorando todos os demais, ainda que expressem realidade distinta, a menos que razões de credibilidade desacreditem estes.
Ou seja: nessa tarefa não pode o julgador conformar-se com a análise parcelar e parcial transmitida pelos litigantes, mas antes submetê-la a uma ponderação dialéctica, avaliando a força probatória do conjunto dos meios de prova destinados à demonstração da realidade submetida a debate.
Assinale-se que a construção – ou, melhor dizendo, a reconstrução, pois que é dela que se deve falar quando, como no caso, se procede à ponderação dos factos que por outros foram apreendidos e transmitidos com o filtro da interpretação própria de quem processa essa apreensão – da realidade fáctica não pode efectuar-se de forma parcelar e desconexa, antes reclamando o contributo conjunto de todos os elementos que a integram.
Quer isto dizer que a realidade surge de um conjunto coeso de factos, entre si ligados por elos de interdependência lógica e de coerência.
A realidade não se constrói apenas a partir de um depoimento isolado ou de um conjunto disperso de documentos, ainda que confirmadores de uma determinada versão factual, antes se deve conformar com um património fáctico consolidado de forma sólida, coerente, transmitido por elementos probatórios com idoneidade e aptidão suficientes a conferir-lhe indiscutível credibilidade.
Como se escreveu no acórdão da Relação de Lisboa de 21.12.2012
[10]
, “…a verdade judicial traduz-se na correspondência entre as afirmações de facto controvertidas, relevantes e pertinentes, aduzidas pelas partes no processo e a realidade empírica, extraprocessual, que tais afirmações contemplam, revelada pelos meios de prova produzidos, de forma a lograr uma decisão oportuna do litígio. Sobre as doutrinas da verdade judicial como mera coerência persuasiva ou como correspondência com a realidade empírica, vide Michele Taruffo, La Prueba, Marcial Pons, Madrid, 2008, pag. 26-29. Quanto à configuração do objecto da prova e a sua relação com o thema probandum, vide Eduardo Gambi, A Prova Civil – Admissibilidade e relevância, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, Brasil, 2006, pag. 295 e seguintes; LLuís Muñoz Sabaté, Fundamentos de Prueba Judicial Civil L.E.C. 1/2000, J. M. Bosch Editor, Barcelona, 2001, pag. 101 e seguintes.
Por isso mesmo, a “reconstrução” cognitiva da verdade, por via judicial, não tem, nem jamais poderia ter, a finalidade exclusiva de obter uma explicação exaustiva e porventura quase irrefragável do acontecido, como sucede, de certo modo, nos domínios da verdade história ou da verdade científica, muito menos pode repousar sobre uma crença inabalável na intuição pessoal e íntima do julgador. Diversamente, tem como objectivo conseguir uma compreensão altamente provável da realidade em causa, nos limites de tempo e condições humanamente possíveis, que satisfaça a resolução justa e legítima do caso (…)”.
No caso, o recorrente manifesta a sua discordância relativamente à decisão que considerou provados os factos elencados nos pontos 13. (na parte “apenas com limitação de velocidade”), 14.º, 15.º, 16.º e 17.º e que julgou não provada a matéria contida nos n.ºs 1, 3, 4, 5, 6, 7, 8 e 9, reclamando desta instância o seu reexame.
Mostrando-se cumpridos os ónus fixados no artigo 640.º do Código de Processo Civil, importa proceder à reapreciação da matéria objecto de impugnação.
O recorrente convoca, além das suas próprias declarações prestadas em audiência de julgamento, prova testemunhal e documental.
De acordo com o n.º 3 do artigo 466.º do Código de Processo Civil, o tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão.
Lebre de Freitas, cujo pensamento se pode reconduzir à tese do carácter supletivo e vinculado à esfera restrita de conhecimento dos factos em termos de valoração das declarações de parte, defende que “a apreciação que o juiz faça das declarações de parte importará sobretudo como elemento de
clarificação
do resultado das provas produzidas e, quando outros não haja, como prova
subsidiária
,
máxime
se ambas as partes tiverem sido efetivamente ouvidas”
[11]
.
Carolina Henriques Martins
[12]
, sustenta, por seu turno que “[...] não é material e probatoriamente irrelevante o facto de estarmos a analisar as afirmações de um sujeito processual claramente interessado no objecto em litígio e que terá um discurso, muito provavelmente, pouco objectivo sobre a sua versão dos factos que, inclusivamente, já teve oportunidade para expor no articulado.
Além disso, [...] também não se pode esquecer o caráter necessário e essencialmente supletivo destas declarações que, na maior parte dos casos, servirá para combater uma fraca ou inexistente prestação probatória.
Caso se considere útil a audição da parte nesta sede quando coexistem outros meios de prova, propomos a sua apreciação como um princípio de prova, equivalente ao mencionado
argomenti di prova
italiano, que não deixará de auxiliar na persuasão do juiz, mas que apenas o fará em correlação com a restante prova já produzida contribuindo para a sua (des)credibilização, e apenas nesta medida.
Estas são as coordenadas fundamentais para a consideração das declarações de parte no nosso esquema probatório”.
Miguel Teixeira de Sousa, tomando posição sobre a mesma específica questão, escreveu:
“
Se o princípio de prova é o menor grau de prova admissível e se se atribui esse valor às declarações de parte, então o que não teria nenhum valor probatório em si mesmo (nem sequer como mera justificação) passa a poder ter algum valor probatório, ainda que o menor na escala dos valores probatórios. Mais em concreto: se se atribui às declarações de parte relevância como princípio de prova, isso significa que estas declarações, apesar de não serem suficientes para formar a convicção do juiz nem sobre a verdade, nem sobre a plausibilidade ou verosimilhança do facto, ainda assim podem ser utilizadas para corroborar outros resultados probatórios. A conclusão não deixa de ser a mesma, se se pretender defender (…) que as declarações de parte só podem relevar como princípio de prova.
À medida que se baixa nos graus de prova, mais fácil se torna atribuir relevância probatória a um certo meio de prova. Lembre-se o que sucede em sede de procedimentos cautelares. É exatamente com o intuito de facilitar a prova de um facto que o art. 368.º, n.º 1, CPC aceita, no âmbito destes procedimentos, a mera justificação como o grau de prova suficiente.
Assim, em vez de atribuir às declarações de parte o valor de princípio de prova, melhor solução parece ser o de atribuir a estas declarações o grau normal dos meios de prova, que é o de prova
stricto sensu
ou, nas providências cautelares, o de mera justificação. Isto significa que, de acordo com o critério da livre apreciação da prova, o tribunal tem de formar uma prudente convicção sobre a verdade ou a plausibilidade do facto probando (cf. art. 607.º, n.º 5 1.ª parte, CPC).
Abaixo desta relevância probatória e da convicção sobre a verdade ou a plausibilidade do facto, as declarações de parte não devem ter nenhuma relevância probatória, nem mesmo para corroborarem outros meios de prova. Esta é, aliás, a melhor forma de combater a natural tendência das partes para só deporem sobre factos que lhes são favoráveis”
[13]
.
Já Mariana Fidalgo
[14]
especifica: “[...] ponto, para nós, assente é que este meio de prova não deve ser previamente desprezado nem objecto de um estigma precoce, sob pena de perversão do intuito da lei e do princípio da livre apreciação da prova. Não olvidando o carácter aparentemente subsidiário das declarações de parte, certo é que foram legalmente consagradas como um meio de prova a ser livremente valorado, e não como passíveis de estabelecer um mero princípio de prova ou indício probatório, a necessitar forçosamente de ser complementado por outros. Assim sendo, e ainda que tal possa naturalmente suceder com pouca frequência na prática, defendemos que será admissível a concorrência única e exclusiva deste meio de prova para a formação da convicção do juiz em determinado caso concreto, sem recurso a outros meios de prova”.
Após audição das declarações/depoimentos prestados em audiência de julgamento constata-se:
- o Autor descreveu o acidente de viação do qual resultaram os danos na sua viatura, que na altura conduzia, em termos coincidentes com os factos narrados na petição inicial, referindo, no essencial, que na altura circulava na ..., na direcção .../... quando, ao chegar à saída para ..., estando o trânsito imobilizado nas faixas direita e central, uma viatura saiu repentinamente do lado direito para a faixa mais à esquerda, por onde o Autor circulava, transpondo a linha contínua, embatendo na roda esquerda da sua viatura, tendo os dois veículos acabado por ficar “engatados, presos um ao outro”.
- a testemunha DD, filha do Autor, que, apesar de não indicada na participação do acidente elaborada pelas autoridades policiais que acorreram ao local do acidente, referiu que seguia no veículo conduzido pelo pai quando ocorreu o embate, relatou que seguiam na faixa da esquerda, que não estava impedida, quando, a determinada altura, um outro veículo, de repente, passou a linha contínua, e “aparece à frente” (“veio para a nossa frente”), e, sem que o pai tivesse tempo de reagir, deu-se o embate.
- a testemunha BB, condutor do veículo ..-..-MZ, também interveniente no acidente, descrevendo em que circunstâncias ocorreu o acidente, precisou que nos momentos que antecederam o embate o trânsito que circulava nas faixas da direita e do meio da autoestrada estava parado, encontrando-se um cão à solta na via e várias pessoas a tentar apanhá-lo.
Porque a faixa da esquerda se achasse desimpedida, os condutores da faixa do meio, por onde circulava o depoente, começaram a aceder à faixa da esquerda, à medida que os condutores que circulavam nesta iam permitindo o ingresso na mesma, o que também ele fez.
Esclareceu que, quando já se achava a circular nessa faixa da esquerda, tendo percorrido já alguma distância, foi embatido na traseira do seu veículo pelo veículo do Autor.
Das demais testemunhas inquiridas, não tendo presenciado o acidente, nada puderam esclarecer acerca da dinâmica do mesmo, apenas relataram o que verificaram no local, com os dois veículos já embatidos, designadamente, posicionamento das viaturas após o embate e quais as partes embatidas.
Quanto à dinâmica do acidente, verifica-se convergência entre as declarações do Autor e o depoimento da testemunha DD, sua filha. Já em relação ao posicionamento das viaturas após o acidente e partes embatidas das mesmas, as versões mostraram-se divergentes, coincidindo o relato da testemunha DD com o da testemunha BB.
A versão do acidente e das circunstâncias que estiveram na sua origem não convencem, não se mostrando minimamente credíveis, não se ajustando às evidências físicas deixadas no local e nas viaturas envolvidas no sinistro.
Com efeito, aquela descrição dos factos não se compatibiliza quer com a posição dos veículos após o embate, ilustrada, de forma convergente, no croqui da participação policial e na fotografia junta com a contestação da Ré, quer com a localização dos danos nas duas viaturas resultantes do embate e com a extensão desses mesmos danos, documentados nas fotografias que constam dos relatórios de averiguações juntos aos autos, realizados, cada um deles, a solicitação das seguradoras de ambos os veículos intervenientes no acidente.
A versão transmitida pelo Autor e sua filha acerca da dinâmica do acidente, isto é, que o condutor do MZ saiu da faixa do meio, onde, com o restante trânsito, estava parado, e,
repentinamente
, entrou na faixa da esquerda, por onde o Autor circulava, sem que este tivesse tempo de reacção de modo a evitar o embate, não encontra a mínima correspondência nos sinais físicos apreendidos após a eclosão do embate, designadamente, e como se referiu, a posição dos veículos imobilizados, os estragos causados em ambas as viaturas, sua localização e extensão.
O condutor do MZ descreveu, de forma serena e coerente, o acidente e os momentos que o antecederam, concretizando a manobra que efectuou para sair da faixa central, onde o trânsito estava imobilizado e as cautelas tomadas – admitindo, ainda assim, que possa ter “calcado” o primeiro ou segundo metro da linha contínua -, passando a circular na faixa da esquerda, na qual, percorrida alguma distância, foi embatido pelo veículo do Autor que transitava nessa mesma faixa.
Tal depoimento, prestado de forma objectiva e descomprometida, revela coerência, adequando-se os factos narrados aos vestígios resultantes da eclosão do acidente, designadamente, posicionamento final das duas viaturas sinistradas e natureza e localização dos danos resultantes para as mesmas do embate.
Ponderados os elementos probatórios em causa, e analisados os mesmos à luz das regras da experiência comum e da normalidade do acontecer, é possível concluir com segurança bastante que o condutor do MZ, que seguia na faixa central da via, onde o trânsito, tal como na faixa da direita, estava imobilizado, mudou de faixa, para passar a circular na da esquerda, que se achava desimpedida, acionando previamente o sinal luminoso de mudança de direcção.
Não o fez repentinamente, nem quando o veículo conduzido pelo Autor já se encontrava a seu lado, cortando o respectivo sentido de trânsito, como sustenta o demandante.
Transparece antes da prova produzida que o condutor do MZ abandonou a faixa central, onde o trânsito se achava imobilizado, ingressou na faixa da esquerda, pisando, na concretização dessa manobra, parte do traço contínuo marcado no pavimento, e, tendo já percorrido vários metros dessa faixa esquerda, numa distância não concretamente apurada, foi embatido, na sua traseira, pela parte frontal direita do veículo do Autor.
Em conformidade com o exposto, altera-se a matéria constante dos pontos 16.º e 17.º dos factos provados, que passam a ter a seguinte redacção:
Ponto 16º
.: Foi o que aconteceu com o condutor do MZ, que acionou o sinal luminoso da esquerda, e chegado ao local onde os veículos da faixa do meio se encontravam imobilizados, ocupou lentamente a faixa da esquerda, depois de transpor parte da linha contínua que separa aquelas duas faixas.
Ponto 17.º
: Após ter circulado pela faixa da esquerda, percorrendo uma distância, não concretamente apurada, de vários metros, o veículo MZ foi embatido na traseira do lado esquerdo pela frente lateral direita do veículo pelo ..-IH-.., conduzido pelo autor, que não conseguiu imobilizar o seu veículo a tempo de evitar aquele embate.
Quanto à demais matéria de facto objecto de impugnação, mantém-se a mesma, sem alterações.
4. Do mérito do julgado.
4.1. Da responsabilidade.
Dispõe o artigo 483.º, n.º 1 do Código Civil que “
aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
Da simples leitura do preceito, resulta que, no caso de responsabilidade por facto ilícito, vários pressupostos condicionam a obrigação de indemnizar que recai sobre o lesante, desempenhando cada um desses pressupostos um papel próprio e específico na complexa cadeia das situações geradoras do dever de reparação.
Reconduzindo esses pressupostos à terminologia técnica assumida pela doutrina, podem destacar-se os seguintes requisitos da mencionada cadeia de factos geradores de responsabilidade por factos ilícitos: a) o facto; b) a ilicitude; c) imputação do facto ao lesante; d) o dano; e) e nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Assim, antes de mais, para que o facto ilícito gere responsabilidade é necessário que o agente tenha actuado com culpa, pois a responsabilidade objectiva ou pelo risco tem carácter excepcional, como se depreende da disposição contida no nº 2 do citado preceito legal.
Com efeito, a responsabilidade civil, em regra, pressupõe a culpa, que se traduz numa determinada posição ou situação psicológica do agente para com o facto. Aqui operam as fundamentais modalidades de culpa: a mera culpa (culpa em sentido estrito ou negligência) e o dolo, traduzindo-se aquela no simples desleixo, imprudência ou inaptidão, e esta na intenção malévola de produzir um determinado resultado danoso (dolo directo), ou apenas aceitando-se reflexamente esse efeito (dolo necessário), ou ainda correndo-se o risco de que se produza (dolo eventual).
Em termos de responsabilidade civil consagra-se a apreciação da culpa em abstracto, ou seja, desde que a lei não estabeleça outro critério, a culpa será apreciada pela diligência de um bom pai de família
(in abstracto
), e não segundo a diligência habitual do autor do facto ilícito
(in concreto
)
[15]
. Como sustenta o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29.01.2008
[16]
, “a lei ficciona um padrão ideal de comportamento que seria o que um homem medianamente sensato e prudente adoptaria se estivesse colocado diante das circunstâncias do caso concreto – critério do “
bonus pater familias
”; irreleva a diligência normalmente usada pelo agente”.
A culpa define-se, para este efeito, na circunstância de uma determinada conduta poder merecer reprovação ou censura do direito, ou seja, importará sempre avaliar se o lesante, face à sua capacidade e às circunstâncias concretas do caso em que actuou, podia e devia ter agido de outro modo
[17]
.
Causa de um acidente é a acção ou omissão normalmente idónea a produzi-lo. Tem tais características, a acção ou omissão que, no consenso da generalidade das pessoas medianamente prudentes, colocadas nas circunstâncias do caso, e segundo um juízo de prognose póstumo e de acordo com as regras da experiência comum ou conhecida do agente, é apta a produzir o evento danoso
[18]
.
Via de regra, e segundo o disposto no artigo 487.º do Código Civil, incumbe ao lesado a prova da culpa do autor da lesão
[19]
, mas casos há em que a lei estabelece presunções de culpa do responsável.
Nas acções de indemnização por facto ilícito, embora caiba ao lesado a prova da culpa do lesante, essa sua tarefa está aliviada com o recurso à chamada prova de primeira aparência (presunção simples). Em princípio procede com culpa o condutor que, em contravenção aos preceitos estradais, cause danos a terceiros, ideia que pacificamente encontra eco na jurisprudência dos tribunais portugueses.
Ou seja: “
sob pena de tornar-se excessivamente gravoso ou incomportável, o ónus probatório instituído no art. 487.º C.Civ. deverá ser mitigado pela intervenção da denominada prova prima facie ou de primeira aparência, baseada em presunções simples, naturais, judiciais, de facto ou de experiência - praesumptio facti ou hominis, que os arts. 349º e 351º C.Civ. consentem, precisamente enquanto deduções ou ilações autorizadas pelas regras de experiência - id quod plerumque accidit (o que acontece as mais das vezes) (…) Como assim, e dum modo geral, a ocorrência de situação que em termos objectivos constitua contravenção de norma(s) do Código da Estrada importa presunção simples ou natural de negligência, que cabe ao infractor contrariar, recaindo sobre ele o ónus da contraprova, isto é, de opor facto justificativo ou factos susceptíveis de gerar dúvida insanável no espírito de quem julga…”
[20]
.
Do acervo factual apurado em julgamento resulta demonstrado que no dia 13 de Maio de 2023, pelas 13h 20m, na Auto Estrada ..., ao km 13,500, na União de Freguesias ... e ..., concelho de Lousada, ocorreu um embate entre o veículo ligeiro de passageiros, matrícula ..-IH-.., propriedade do A. e conduzido pelo mesmo, e o veículo ligeiro de passageiros, matrícula ..-..-MZ, propriedade de BB e por ele conduzido.
Na altura estava bom tempo, o piso achava-se seco e a visibilidade era boa.
A faixa de rodagem, com cerca de 11 metros de largura, dispõe de três vias de trânsito, no mesmo sentido.
O trânsito na via mais à direita e na via do meio encontrava-se parado, uma vez que se encontrava um cão à deriva naquele local e onde várias pessoas tentavam apanhá-lo.
A viatura segurada da Ré (com a matrícula ..-..-MZ) seguia pela via do meio, contudo o trânsito nessa via encontrava-se parado, tal como na via direita; a via da esquerda encontrava-se livre e o trânsito fluía normalmente.
Em virtude de o trânsito se encontrar completamente imobilizado, lentamente, todos os outros veículos que circulavam na faixa do meio iam integrando a faixa da esquerda – a única por onde se circulava, e onde os respectivos condutores lhes iam permitindo entrar, um a um.
Nestas circunstâncias, o condutor do MZ, chegado ao local onde os veículos da faixa do meio se encontravam imobilizados, acionou o sinal luminoso da esquerda, ocupou lentamente a faixa da esquerda, depois de transpor parte da linha contínua que separa aquelas duas faixas.
Após ter circulado pela faixa da esquerda, percorrendo uma distância, não concretamente apurada, de vários metros, o veículo MZ foi embatido na traseira do lado esquerdo pela frente lateral direita do veículo pelo ..-IH-.., conduzido pelo autor, que não conseguiu imobilizar o seu veículo a tempo de evitar aquele embate.
Perante tal cenário, efectivamente demonstrado nos autos, não pode ser atribuída ao condutor do MZ qualquer responsabilidade pela produção do acidente, mesmo a título de co-causalidade.
Não obstante a infracção estradal por ele cometida ao transpor parte do traço contínuo, não foi esta causal do acidente, nem para ele concorreu.
Ao contrário da versão alegada pelo Autor, não resultou comprovado que o condutor do MZ tenha invadido repentinamente a via por onde aquele circulava, quando o veículo deste já se encontrava a seu lado, cortando a sua linha de circulação, sendo impossível ao mesmo evitar o embate, mostrando-se antes comprovado que o condutor do veículo segurado pela Ré acionou o sinal luminoso da esquerda, ocupou lentamente a faixa da esquerda, onde passou a circular, e tendo percorrido uma distância não concretamente apurada, foi embatido na traseira pela parte frontal direita do veículo do Autor.
Dever-se-á, pois, concluir pela contribuição do Autor na produção do acidente de viação de que foi vítima.
Resta, ainda assim, indagar se concorre alguma outra causalidade para a produção do acidente, mesmo que a título de risco.
Já no Acórdão Relação do Porto, 16.03.73
[21]
se defendia: “não podendo atribuir-se culpa no acidente a qualquer dos condutores dos veículos colidentes, não obstante a responsabilidade civil brotar, como regra geral, dos factos ilícitos culposos (artº 483º do Código Civil), há que atender à chamada responsabilidade civil objectiva ou pelo risco, a qual se reveste, na nossa lei, de natureza excepcional (artigos 483º, nº2, 499º, e 503º do Código Civil)”.
Defende, sem oscilação, a jurisprudência, ser possível a convolação para a responsabilidade pelo risco do pedido de indemnização fundado apenas na culpa, não provada
[22]
.
Como esclarece o Acórdão da Relação de Évora, de 02.07.75
[23]
: “ o risco em matéria de acidente de viação provém do perigo que os veículos em marcha representam para a circulação rodoviária e para as pessoas”.
Tem sido largamente debatido na jurisprudência e na doutrina a questão de se saber se, perante a existência de culpa, mas não exclusiva, do lesado no acidente de viação de que foi vítima, e ausência de culpa, pelo menos demonstrada, do condutor do outro veículo automóvel interveniente no mesmo acidente, é admissível o concurso entre culpa e risco, na linha do entendimento da mais recente jurisprudência e doutrina, ou se, como é sustentado pela mais tradicional jurisprudência, a existência de culpa do lesado, ainda que não exclusiva, afasta a possibilidade de concurso com a responsabilidade do titular da direcção efectiva do veículo, assente no risco.
Esta última posição ancora nos ensinamentos do Prof. Antunes Varela para quem o artigo 505º do Código Civil coloca um inultrapassável problema de causalidade: sempre que ocorra uma das circunstâncias nele contempladas (acidente imputável ao lesado, por facto culposo ou não, ou a terceiro, ou quando o acidente tenha resultado de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo) ocorre uma quebra do nexo de causalidade entre os riscos próprios do veículo e o dano, afastando a possibilidade de responsabilidade objectiva do detentor do veículo por risco inerente à sua utilização.
A tese defendida pelo Prof. Vaz Serra, nos trabalhos preparatórios do Código Civil, no sentido da admissibilidade de concorrência entre responsabilidade pelo risco do detentor ou condutor do veículo e responsabilidade emergente de culpa do próprio lesado, não logrou então obter vencimento, não tendo sido acolhida no texto definitivo do aludido diploma a sua proposta de consagração de preceito enunciador dessa possibilidade.
Mas não obstante a sucumbência dessa sua proposta, mesmo após publicação do Código Civil continuou este Professor a defender a tese favorável à admissibilidade da aludida concorrência, argumentando, por um lado, que a expressão “acidente imputável ao lesado” inserida no artigo 505º do Código Civil deve ser entendida com o significado de acidente devido unicamente a facto do lesado, e, por outro, havendo similitude entre a situação de concorrência entre risco e culpa e a situação contemplada no artigo 570º do mencionado diploma, deve este ser aplicado por analogia, o que leva à aplicação das regras gerais sobre a conculpabilidade do lesado.
Também o Prof. Calvão da Silva vem pugnando pela tese da admissibilidade de concorrência entre culpa do lesado e risco inerente ao veículo, quando ambos os factos em causa contribuem para a produção do dano. Na análise interpretativa que faz do artigo 505º do Código Civil, sustenta este Autor que a ressalva consagrada na parte inicial do preceito (“sem prejuízo do disposto no artigo 570º”) reporta-se à responsabilidade objectiva fixada no nº1 do artigo 503º do citado diploma, pelo que a concorrência entre a culpa do lesado do artigo 570º e o risco da utilização do veículo do artigo 503º resulta do disposto no artigo 505º, só sendo excluída a responsabilidade pelo risco quando o acidente for imputável, ou seja exclusivamente devido, com ou sem culpa, ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando ele resulte, também exclusivamente, de força maior estranha ao funcionamento do veículo.
Isto é, para este autor, sem prejuízo do concurso com a culpa do lesado, a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando a acidente se dever unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando o mesmo resulte exclusivamente de causa de força maior alheia ao funcionamento do veículo
.
Também Brandão Proença
[24]
se tem pronunciado, a propósito da questão em debate, pela necessidade de introdução de uma interpretação mais actualista e harmoniosa dos preceitos em análise, que não exclua liminarmente a possibilidade de concurso entre responsabilidade decorrente do perigo da utilização do veículo e a que deriva de facto (culposo ou não) imputável ao lesado: “numa época em que a relação pura de responsabilidade, nos domínios do perigo criado por certas actividades, se enfraqueceu decisivamente, não parece compreensível, a não ser por preconceitos lógico-formais, excluir liminarmente o concurso de uma conduta culposa (ou mesmo não culposa) do lesado, levando-se a proclamada excepcionalidade do critério objectivo às últimas consequências”
[25]
.
Pode ler-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04.10.2007
[26]
: “a este entendimento doutrinal mais moderno, de afirmação da concorrência do risco com a culpa da vítima – para cujo desenvolvimento é de justiça salientar também o papel dos estudos desenvolvidos por JORGE SINDE MONTEIRO desde há quase 30 anos Cfr. “Responsabilidade civil”, in RDEc., ano IV, n.º 2, Jul./Dez. 1978, pág. 313 e ss., e “Responsabilidade por culpa, responsabilidade objectiva, seguro de acidentes, in RDEc., ano V, n.º 2, Jul./Dez. 1979, pág. 317 e ss. e ano VI/VII, 1980/1981, pág. 123 e ss. – têm aderido outros prestigiados juristas, como ANA PRATA Cfr. o estudo intitulado “Responsabilidade civil: duas ou três dúvidas sobre ela”, in Estudos em comemoração dos cinco anos da Fac. de Direito da Univ. do Porto, 2001, pág. 345 e ss., merecendo referência o actual posicionamento do Prof. ALMEIDA COSTA, que, tendo seguido, durante muito tempo, a posição tradicional, na esteira de A. VARELA, se mostra agora sensível à argumentação de BRANDÃO PROENÇA e dos demais arautos da tese da concorrência “Se um facto do próprio lesado, (...) concorrer com a culpa do condutor, a responsabilidade poderá ser reduzida ou mesmo excluída, mediante aplicação do artigo 570º. E, de igual modo, existindo concorrência de facto de terceiro, quanto à repartição da responsabilidade. Ora, valerá esta doutrina para o caso de haver concurso de facto da vítima ou de terceiro, já não com a culpa do condutor, mas com o risco do veículo? Respondem afirmativamente VAZ SERRA, (...), PEREIRA COELHO, (...), SÁ CARNEIRO, (...), e por último BRANDÃO PROENÇA, (...). Afiguram-se-nos ponderosas as considerações aduzidas, designadamente na perspectiva da tutela do lesado” (Direito das Obrigações, 10ª ed. reelaborada, Almedina, Setembro/2006, pág. 639, nota 1..
Entre os práticos do direito tem sido o Juiz Desembargador AMÉRICO MARCELINO, com argumentação consistente, um estrénuo defensor deste entendimento Cfr. “Acidentes de Viação e Responsabilidade Civil”, 8ª ed. revista e ampliada, pág. 309 e ss.”.
E acrescenta o mesmo acórdão: “…não podemos deixar de ponderar a justeza da crítica, que à corrente tradicional tem sido dirigida, de conglobar, na dimensão exoneratória da norma do art. 505º, tratando-as da mesma forma, situações as mais díspares, como sejam os comportamentos mecânicos dos lesados, ditados por um medo invencível ou por uma reacção instintiva, os eventos pessoais fortuitos (desmaios e quedas), os factos das crianças e dos (demais) inimputáveis, os comportamentos de precipitação ou distracção momentânea, o descuido provocado pelas más condições dos passeios, uniformizando, assim, “as ausências de conduta, as condutas não culposas, as pouco culposas e as muito culposas dos lesados por acidentes de viação”, “desvalorizando a inerência de pequenos descuidos à circulação rodoviária”, e conduzindo, muitas vezes, a resultados chocantes.
Tal corrente mostra, ademais, na sua inflexibilidade e cristalização, uma insensibilidade gritante ao alargamento crescente, por influência do direito comunitário – e tendo por escopo a garantia de uma maior protecção dos lesados – do âmbito da responsabilidade pelo risco, que tem tido tradução em vários diplomas (a que faremos alusão mais adiante) cujo relevo maior radica, por um lado, na exigência, como circunstância exoneratória, de culpa exclusiva do lesado, e, por outro, na expressa consagração, no sector da responsabilidade civil do produtor ou fabricante de produtos defeituosos, da hipótese de concorrência entre o risco da actividade do agente e “um facto culposo do lesado” (art. 7º/1 do Dec-lei 383/89, de 6 de Novembro).
Esta evolução legislativa não pode, a nosso ver, ser ignorada, e dela devem ser retiradas “as devidas consequências para uma actualização interpretativa da rigidez normativa do Código Civil, tanto mais que a partir de meados da década de 80 passaram a coexistir dois regimes diferenciados, ou seja, o rígido sistema codificado e uma série de subsistemas imbuídos de um escopo protector e direccionado para os lesados” Autor e loc. cits. na nota anterior, pág. 29.
Como não deve ser ignorado o papel das directivas comunitárias no domínio do seguro obrigatório automóvel e a sua influência no direito da responsabilidade civil do próprio Código Civil. Sendo embora certo que, como é entendimento do Tribunal de Justiça, “na falta de regulamentação comunitária que precise qual o tipo de responsabilidade civil relativa à circulação de veículos que deve ser coberta pelo seguro obrigatório, a escolha do regime de responsabilidade civil aplicável aos sinistros resultantes da circulação de veículos é, em princípio, da competência dos Estados-Membros”, não deixa de ser igualmente verdade que as soluções decorrentes da interpretação das disposições das directivas ou do seu efeito útil penetram (ou devem penetrar) as legislações nacionais nesse domínio; e a sua influência no direito português é visível, quer na erradicação, do texto do art. 504º, dos limites aí estatuídos para a responsabilidade do transportador a título gratuito, quer na alteração dos limites máximos indemnizatórios do art. 508º.
A corrente jurisprudencial tradicional é igualmente insensível à filosofia que dimana do regime, estabelecido no Código do Trabalho, para os acidentados laborais, onde se estabelece que o dever de indemnização do empregador só é excluído se o acidente “provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado”.
Estas são razões com força suficiente, a nosso ver, para pôr de remissa a interpretação jurisprudencial a que vimos aludindo”.
A propósito do acórdão citado, a cuja fundamentação também adere, esclarece o acórdão da Relação de Coimbra de 03.06.2008
[27]
: “está em causa neste aresto a interpretação que parte significativa da nossa doutrina vinha adiantando, com base na crítica ao entendimento tradicional de referir o sentido exoneratório do artigo 505º do CC a todas as situações de culpa do lesado ou de causalidade exterior ao lesante”.
Explica o acórdão da mesma Relação de 29.05.2012: “A doutrina dominante [...] era (…) a de uma interpretação estritamente causalista da norma contida no artº 505 do Código Civil que enfatizava o primado da culpa, não admitindo qualquer solução ponderativa: a concepção, mais preocupada com a função reparadora da responsabilidade civil e com a tutela da vítima e que, em coerência rejeitava a visão absorvente da culpa do lesado, era nitidamente minoritária.
Simplesmente, é claro que o entendimento, doutrinaria e jurisprudencialmente dominante, do problema – assente numa solução extremista de tudo ou nada [...] – uniformiza as ausências de conduta, as condutas não culposas, as pouco culposas e as muito culposas dos lesados por acidentes de viação e desvaloriza a inerência de pequenos descuidos à circulação rodoviária, conduzindo, por vezes, a resultados chocantes, formalmente exactos mas materialmente inexplicáveis [...].
Sensível ao irrecusável desamparo do lesado que decorre de uma leitura da norma considerada à luz estrita da causalidade – sobretudo nos casos em que o dano é atribuído exclusivamente a uma falta leve do lesado e à conduta inesperada de pessoas desadaptadas ao tráfego [...], em atenção à pouca mobilidade e à dificuldade de percepção da pessoa idosa ou deficiente e à normal imprudência da criança que se atravessa de repente na via ou que corre atrás de uma bola – e impressionada pelo nada indemnizatório como preço de pequenos descuidos, a doutrina mais recente orienta-se para a admissibilidade da concorrência do riso com a culpa do lesado, ou mais exactamente, do concurso do risco com o facto, culposo ou não, da vítima, só excluindo a responsabilidade objectiva do detentor do veículo quando o acidente seja devido, com ou sem culpa, unicamente ao próprio lesado ou a terceiro [...].
E a jurisprudência não deixou de se mostrar permeável a esta evolução doutrinária. Exemplo acabado disso mesmo é, decerto, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Outubro de 2007 [...] que – de forma não inteiramente acorde – concluiu que o artº 505 do CC deve ser interpretado no sentido de que nele se acolhe a regra do concurso a culpa do lesado com o risco próprio do veículo, ou seja que a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veiculo”.
Entendendo ser cada vez mais defensável uma interpretação actualista do artigo 505.º do Código Civil, que não exclui a possibilidade de concorrência com a responsabilidade objectiva resultante do risco subjacente à utilização de veículo interveniente em acidente de viação, de acordo com os fundamentos espelhados na doutrina citada e jurisprudência mais recente, designadamente no mencionado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04.10.2007, sempre, no caso concreto, se afigura inaplicável tal entendimento, por se concluir que foi a actuação negligente do próprio Autor a concorrer, de forma exclusiva, para a produção do acidente.
Com efeito, como sustenta a sentença sob recurso, “...
o apurado comportamento do autor viola frontalmente o disposto nos arts. 3º, n.º 2, 18º, n.º 1, e 24º, n.º 1, do Código da Estada (na versão em vigor à data do factos).
E estas infracções estradais, para além de terem sido causais, conferem presunção simples ou natural de negligência, pois que dúvidas não temos que os eventos estão compreendidos nos riscos que as citadas normas pretendem evitar, sendo certo que essas presunções não se mostram elididas por qualquer circunstância de facto apurada.
Ora, a ser assim, como entendemos que é, como o autor, enquanto condutor do outro veículo interveniente no acidente, não respeitou as regras que lhe eram impostas pelas citadas normas estradais, é possível dirigir-lhe um juízo de censura, o qual assenta precisamente no facto de não ter observado as regras estradais que se lhe impunham no caso concreto, e cuja observância teria permitido evitar o embate, que se não previu tinha obrigação de prever”.
Note-se que, não obstante a via da esquerda, por onde o Autor circulava, se achar desimpedida, na via do meio e na via da direita, o trânsito estava imobilizado, encontrando-se um cão à deriva naquele local e várias pessoas que tentavam apanhá-lo.
Sendo dia, fazendo bom tempo, havendo boas condições de visibilidade, e tendo a via no local traçado recto, facilmente o Autor se terá apercebido do que se estava a passar à sua frente, pelo que lhe era exigível que adequasse a sua condução e a velocidade que imprimia à sua viatura àquelas condições, de modo que lhe permitisse imobilizá-la sem embater em qualquer obstáculo (designadamente, o animal ou as pessoas que procuravam detê-lo) que eventualmente pudesse surgir à sua frente.
Tais cuidados não foram, podendo sê-lo, adoptados pelo Autor e por isso, e apenas por isso, veio a embater no veículo segurado pela Ré, que, provindo da via do meio, circulava já na via por onde o Autor seguia, à sua frente.
Deve, assim, concluir-se que a produção do acidente ficou a dever-se em exclusivo a culpa do próprio lesado, o que constitui circunstância excludente da responsabilidade da demandada pela reparação dos danos sofridos pelo Autor.
Improcedem, consequente, as conclusões de recurso, impondo-se a manutenção do decidido.
*
Síntese conclusiva:
………………………………
………………………………
………………………………
*
Pelo exposto, acordam as juízes desta Relação, na improcedência da apelação, em confirmar a sentença recorrida.
Custas: pelo apelante, nos termos do disposto no artigo 527.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.
Notifique.
Acórdão processado informaticamente e revisto pela 1.ª signatária.
Porto, 4/6/2025
Judite Pires
Ana Luísa Loureiro
Manuela Machado
______________
[1]
Cf. Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil anotado”, vol. V, pág. 137.
[2]
Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, “Manual de Processo Civil”, 2ª ed., pág. 686.
[3]
“Manual de Processo Civil”, 2ª ed., pág. 687 e seguintes.
[4]
Cf. em idêntico sentido, Acórdão STJ de 19/03/02, “Rev. nº 537/02-2ª sec., Sumários, 03/02”; Acórdão Relação de Coimbra de 16/5/2000,
www.dgsi.pt
; Acórdão STJ de 13/01/00, “Sumários, 37-34”; Acórdão Relação Lisboa, de 01/07/99, BMJ 489-396.
[5]
Cf., entre outros, Pais do Amaral,
“
Direito Processual Civil”, 7ª ed., pág. 390, e os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 27.4.2004 e de 10.4.2008, o acórdão da Relação de Lisboa de 17.1.1999, BMJ 489/396, e ainda os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 13.1.2000, de 26.2.2004, de 12.5.2005 e de 10.7.2008, o primeiro
in
Sumários, 37º, pág. 34 e, os restantes, em
www.dgsi.pt
.
[6]
“Código de Processo Civil anotado”, vol. 5º, pág. 140.
[7]
Anselmo de Castro, “Direito Processual Civil Declaratório”, vol. III, pág. 141.
[8]
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22.03.2018, processo 290/12.6TCFUN.L1.S1,
www.dgsi.pt
.
[9]
“Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2013, Almedina, pág. 224 e 225.
[10]
Processo nº 5797/04.2TVLSB.L1-7, l1-7,
www.dgsi.pt
.
[11]
“A Acção Declarativa Comum, À Luz do Processo Civil de 2013”, Coimbra Editora, 2013, pág. 278.
[12]
“Declarações de Parte”, Universidade de Coimbra, 2015, pág. 58.
[13]
https://blogippc.blogspot.pt/2017/01/jurisprudencia-536.html#links
, texto publicado a 20.01.2017.
[14]
“A Prova por Declarações de Parte”, FDUL, 2015, pág. 80.
[15]
Acórdão do STJ, 18.05.2006, procº nº 06B1644,
www.dgsi.pt
.
[16]
www.dgsi.pt
.
[17]
cf. Antunes Varela, “Revista de Legislação e Jurisprudência”, ano 102º, pág. 8 e ss.
[18]
Neste sentido, Acórdão Relação do Porto, 14/3/89, BMJ 385º, 603.
[19]
O que, de resto, se coaduna com as regras gerais da repartição do ónus da prova, plasmadas no artigo 342º do Código Civil, já que a culpa, sendo um dos pressupostos que integra e fundamenta o dever de indemnizar, é um facto constitutivo do direito a que o lesado se arroga; cf. ainda, neste sentido, entre outros, Acórdãos do STJ, 12.07.2005, 21.11.2006, 13.11.2008, Acórdão desta Relação, de 21.09.2004, todos em
www.dgsi.pt
.
[20]
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.10.2009, Processo n.º 04B2638,
www.dgsi.pt
.
[21]
BMJ 226º-271; cfr. ainda Acórdão Relação de Coimbra, 25.07.75, BMJ 251º-213, Acórdão Relação de Coimbra, 02.02.82, Colectânea de Jurisprudência 1982, 1, 95.
[22]
Entre outros, Acórdão Relação de Lisboa, 09.05.78, Colectânea de Jurisprudência 1978, 3, 921; Acórdão Relação de Coimbra, 18.02.76, Colectânea de Jurisprudência 1976, 1, 33; Acórdão Relação Évora, 02.07.75, BMJ 250º- 219; Acórdão Relação de Lisboa, 03.07.74, BMJ 239º-255.
[23]
BMJ 250º-219.
[24]
“A conduta do lesado como pressuposto e critério de imputação do dano extracontratual”, Almedina, Coimbra, 1997.
[25]
Ob. cit., pág. 276.
[26]
Processo nº 07B1710,
www.dgsi.pt
.
[27]
Processo nº 801/2002.C1,
www.dgsi.pt
.
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TRP
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https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/c3ed547908a3984b80258ca80049db1a?OpenDocument
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1,748,390,400,000
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INDEFERIDO O PEDIDO DE ESCUSA
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867/23.4JALRA-A.C1
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867/23.4JALRA-A.C1
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MARIA DA CONCEIÇÃO MIRANDA
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1 - Não é suscetível de suscitar desconfiança sobre a imparcialidade do Juiz na boa administração da justiça, o facto de, em obediência a uma decisão de um Tribunal Superior, o referido Juiz ter proferido despacho de recebimento da acusação e - mantendo-se a sua intervenção nos autos, por razões de carácter orgânico e funcional, - ter de intervir, na qualidade de juiz presidente, na audiência de julgamento e prolação do acórdão.
2 - O pedido de escusa traduz num desvio ao princípio do juiz natural, que visa assegurar a isenção e independência de um Juiz quando toma uma decisão, só sendo admissível o afastamento do juiz natural quando este não ofereça garantias de imparcialidade e isenção no exercício da sua função.
3 - O cumprimento de decisões proferidas por Tribunal de Recurso em sentido contrário ao do Juiz a quo, só por si, não constitui fundamento de escusa por não ser apto a gerar desconfiança da comunidade sobre a imparcialidade e isenção do Juiz no exercício da função.
4 - Se todos os casos em que o recurso interposto da decisão do Juiz obtém provimento, constituíssem motivo de escusa (ou de recusa) do magistrado, estaria encontrada a forma de impedir o andamento normal dos processos.
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[
"ESCUSA",
"JUIZ NATURAL"
] |
Acordam, em Conferência, na 5. Secção do Tribunal – Criminal - da Relação de Coimbra
Relatório
O Meritíssimo Senhor Juiz de Direito Dr. AA, em exercício de funções no Juízo Central Criminal- Juiz 3, do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, veio, nos termos do disposto no artigo 43.º nº. s 1 e 4 do Código Processo Penal, apresentar pedido de escusa de intervenção no processo comum coletivo 867/23.....
Em ordem a fundamentar tal pedido invocou, para tanto, o seguinte:
- “é titular do Proc. 867/23...., que lhe foi distribuído. Sucede que o signatário não recebeu a acusação aí deduzida, por considerar que os factos imputados não constituíam crime.
Nessa sequência, foi interposto recurso deste despacho, vindo o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra a anular tal decisão, determinando que a mesma fosse substituída por outra, que recebesse a acusação, decisão essa que o signatário acatou, como é seu dever, recebendo a acusação.
Não obstante, o signatário já formou um pré-juízo sobre a causa, ao entender não se estar perante a prática de um crime. Atenta tal circunstância, entende o signatário que presidir a esse julgamento, tendo já feito expressamente esse pré-juízo, é uma situação que corre o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade- cf. art. 43,
0
, n.
0
1 e 4, do Código de Processo Penal.(…)”
Os presentes autos mostram-se instruídos com as peças processuais para a decisão de mérito, não se revela, por isso, necessária a produção de outras provas.
Nesta Relação, o Exmo. Sr. Procurador Geral Adjunto entende que a pretensão deve ser indeferida.
Foi efetuado exame preliminar, colhidos os vistos legais e realizada a conferência.
Cumpre, agora, apreciar e decidir.
II - Apreciação do incidente de escusa.
A questão a dirimir, no presente incidente de escusa de juiz, consiste em aquilatar da verificação ou não de motivo de suspeição sobre a imparcialidade do Mmº. Juiz, para presidir à audiência de julgamento no processo comum coletivo nº 867/23....,
que
corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, Juízo Central Criminal, juiz 3.
Vejamos, então.
Consagra o artigo 203º da Constituição da República Portuguesa o princípio fundamental da independência dos Tribunais, aí se estatuindo que: “Os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei “.
Por sua vez, estabelece o artigo 32º, nº 9, da Constituição da República Portuguesa, que “nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior”.
O direito a um tribunal imparcial e justo, próprio de um Estado de direito democrático, é também reconhecido em instrumentos que integram o sistema internacional de proteção dos direitos humanos, nomeadamente no artigo 6º. da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, no artigo 14º. do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, no artigo 10º. da Declaração Universal dos Direitos do Homem e no artigo 47º. da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
Não obstante o legislador consagrar, como principio inalienável, o princípio do juiz natural ou legal, pressupondo tal princípio que intervém no processo o juiz a quem o processo foi distribuído, segundo as regras de competência legalmente estabelecidas para o efeito, estabeleceu o seu afastamento em casos-limite, - artigos 39º e 40º, 426º-A e 43º a 45º do Código de Processo Penal-, ou seja, quando se evidenciem situações que ponham em causa a garantia de imparcialidade do juiz penal e da confiança dos sujeitos processuais e do público em geral nessa imparcialidade e independência.
Preconiza o artigo 43º, do Código de Processo Penal, sob a epígrafe “Recusas e Escusas” que:
“1 - A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
2 - Pode constituir fundamento de recusa, nos termos do n.º 1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40º.
3 - A recusa pode ser requerida pelo Ministério Público, pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis.
4 - O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos n.os 1 e 2. (…)”
Como é sabido, a lei processual penal não define o que deve entender-se por “motivo sério e grave”, mas realça que ele terá que ser adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador.
A densificação que tem sido efetuada, pela doutrina e jurisprudência, desta cláusula geral atinente à imparcialidade de um juiz sublinha que deve ser delimitada numa dupla dimensão subjetiva e objetiva.
Na perspetiva subjetiva da imparcialidade do Juiz está relacionada com o que o Magistrado pensa no seu foro íntimo perante um determinado acontecimento da vida real. Nesta perspetiva se internamente o Magistrado Judicial tiver algum motivo para desfavorecer um sujeito processual em favor de outro, ou por outras palavras se tiver um preconceito sobre o mérito da causa, ocorrerá uma situação de parcialidade. A imparcialidade do Juiz presume-me nesta vertente.
No concernente à vertente objetiva a imparcialidade do Juiz encontra-se relacionada com o comportamento exteriorizado pelo Magistrado Judicial, apreciado do ponto de vista do cidadão comum e das dúvidas fundadas sobre a sua conduta.
Neste particular, realça o Acórdão do Tribunal Constitucional nº.935/96, in www.tribunalconstitucional.pt que:
“ (…) Assim, necessário é, inter alia, que o desempenho do cargo de juiz seja rodeado de cautelas legais destinadas a garantir a sua imparcialidade e a assegurar a confiança geral na objectividade da jurisdição. É que, quando a imparcialidade do juiz ou a confiança do público nessa imparcialidade é justificadamente posta em causa, o juiz não está em condições de "administrar justiça". Nesse caso, não deve poder intervir no processo, antes deve ser pela lei impedido de funcionar - deve, numa palavra, poder ser declarado iudex inhabilis. Importa, pois, que o juiz que julga o faça com independência. E importa, bem assim, que o seu julgamento surja aos olhos do público como um julgamento objectivo e imparcial. É que a confiança da comunidade nas decisões dos seus magistrados é essencial para que os tribunais, ao "administrar a justiça", actuem, de facto, "em nome do povo" (cfr. artigo 205º, nº 1, da Constituição)". (…) salienta Ireneu Barreto (cfr. Notas para um Processo Equitativo, Análise do Artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, à Luz da Jurisprudência da Comissão e do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, in Documentação e Direito Comparado nºs. 49/50, p. 114,115): "A imparcialidade do juiz pode ser vista de dois modos, numa aproximação subjectiva ou objectiva. Na perspectiva subjectiva, importa conhecer o que o juiz pensava no seu foro íntimo em determinada circunstância; esta imparcialidade presume-se até prova em contrário. Mas esta garantia é insuficiente; necessita-se de uma imparcialidade objectiva que dissipe todas as dúvidas ou reservas, porquanto mesmo as aparências podem ter importância de acordo com o adágio do direito inglês justice must not only be done; it must also be seen to be done. Deve ser recusado todo o juiz de quem se possa temer uma falta de imparcialidade, para preservar a confiança que, numa sociedade democrática, os tribunais devem oferecer aos cidadãos".
O fundamento invocado pelo Mmº. Juiz para alicerçar o seu pedido de escusa radica na circunstância da decisão que não recebeu o despacho de acusação ter sido revogada por acórdão deste Tribunal da Relação de Coimbra que determinou a substituição por outra que recebesse a acusação, por essa razão, entende que já formou um pré-juízo sobre a causa,
o que é
suscetível
de criar uma suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade- cf. art. 43,
0
, n.
0
1 e 4, do Código de Processo Penal. (…)”
Ora, como se vê, o Mmº. Juiz não manifesta ter qualquer relação com os sujeitos processuais, nenhum interesse pessoal no caso a julgar, suscetível de comprometer a sua imparcialidade, a qual, aliás, se presume existir.
Assim, o que releva decisivamente, neste quadro, é a possível imparcialidade
do
Mmº. Juiz, na dimensão objetiva, que pode afetar a imagem externa de garantia de isenção para o julgamento da causa.
Com efeito, tendo em linha de conta o juízo do homem médio, representativo da comunidade, não se vê que, no caso, o facto do Mmº. Juiz, em obediência a uma decisão de um Tribunal Superior, ter proferido despacho de recebimento da acusação e mantendo-se a sua intervenção nesses autos, por razões de carácter orgânico e funcional, terá de intervir, na qualidade de juiz presidente, na audiência de julgamento e prolação do acórdão, não é suscetível de suscitar desconfiança sobre a imparcialidade do Senhor Juiz na boa administração da justiça.
O afastamento do princípio do juiz natural, de consagração constitucional, só deve ocorrer perante motivos que, face à sua seriedade e gravidade, sejam objetivamente aptos a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz, o que no caso não se verifica.
Dito isto, concluímos, pois, que as circunstâncias invocadas pelo Sr. Juiz de Direito não são de molde a constituir risco sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, pelo que se decide não conceder a escusa peticionada.
IV- Decisão.
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes na 5º. Secção do Tribunal – Criminal - da Relação de Coimbra em indeferir o pedido de escusa formulado pela Sr.º Juiz de Direito Dr. AA, relativamente à sua intervenção no processo comum coletivo 867/23.....
Sem tributação.
Notifique e demais diligências necessárias, remetendo de imediato o processo à primeira instância.
Certifica-se, para os efeitos do disposto no artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, que o presente acórdão foi elaborado pela relatora e revisto pelas signatárias.
*
Coimbra, 28 de Maio de 2025
Maria da Conceição Miranda
Sandra Rocha Ferreira
Alcina da Costa Ribeiro
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TRC
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https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/30f33b877f5de59d80258ca7004e6f1b?OpenDocument
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1,754,524,800,000
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NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
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392/23.3GDCBR.C1
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392/23.3GDCBR.C1
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PAULO GUERRA
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I - Não configura erro notório na apreciação da prova a consideração, na sentença, de certificado de registo criminal emitido há mais de 3 meses, porquanto a eventual desactualização desse CRC só pode ser resolvida por recurso a elementos exteriores à própria sentença.
II - A passagem do prazo de 3 meses sobre a emissão do CRC constante do processo não inibe o tribunal de relevar os antecedentes criminais que dele constem.
III - Se, devido à desactualização do CRC, o processo fosse reenviado para novo julgamento, a 1.ª instância não podia levar em conta nenhuma nova condenação constante do “novo” CRC entretanto obtido, sob pena de julgar “contra” o arguido.
IV - A subordinação da pena de suspensão da execução ao cumprimento de deveres e/ou regras de conduta está sujeita a uma dupla limitação, porque não pode violar os direitos fundamentais do condenado e deve ser adequada e proporcional às finalidades visadas.
V - A pena de trabalho a favor da comunidade tem na base a ideia de centrar o conteúdo punitivo na perda, para o condenado, de uma parte substancial dos seus tempos livres, sem por isso o privar de liberdade, permitindo-lhe a manutenção das suas ligações familiares, profissionais e económicas, assistindo a esta pena um conteúdo socialmente positivo, porque traduz uma prestação activa do condenado a favor da comunidade, com o seu consentimento.
|
[
"VALIDADE DO CERTIFICADO DE REGISTO CRIMINAL",
"CONSIDERAÇÃO DE CRC EMITIDO HÁ MAIS DE 3 MESES",
"REENVIO DO PROCESSO PARA NOVO JULGAMENTO",
"PENA DE SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA SUBORDINADA AO CUMPRIMENTO DE DEVERES E/OU REGRAS DE CONDUTA",
"PENA DE PRESTAÇÃO DE TRABALHO A FAVOR DA COMUNIDADE"
] |
Acordam, em conferência, na 5ª Secção - Criminal - do Tribunal da Relação de Coimbra:
I -
RELATÓRIO
1.
A DECISÃO RECORRIDA
No processo …, foi decidido:
a) «Condenar o arguido
…
pela prática de um crime de desobediência, previsto e punido pelo artº 348º, nº 1, alínea b) do Código Penal, na pena de 9 (nove) meses de prisão e pela prática de um crime de violação de imposições, proibições ou interdições, previsto e punido pelo artº 353º do Código Penal, na pena de 6 (seis) meses de prisão;
b) Operando o cúmulo jurídico das penas aplicadas ao arguido,
decide-se condenar o mesmo na pena única de 12 (doze) meses de prisão, pelos crimes de desobediência e violação de imposições, proibições ou interdições, cuja execução será em regime de permanência na habitação, nos termos do artigo 43º, nº 1, do Código Penal, pelo período da pena de prisão, ou seja, 12 (doze) meses
».
2.
O RECURSO
Inconformado,
o arguido
…
recorreu da sentença condenatória
, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões
(transcrição)
:
A.
«…
B.
Numa visão global de conjunto está em causa I) prática dos factos motivada pela falta de auxílio da sua mãe que num momento difícil teve de centrar atenções na sua filha gravemente doente; II) factualidade cometida por um arguido ainda em idade ainda favorável à inversão de percurso ilícito, III) que se mostra inserido do ponto de vista social e familiar (factos provados 12) e 16)], IV) que apresenta razoável inserção laboral [factos provados 13), 15) e 30)]; V) que não foi interveniente em qualquer acidente de viação, não tendo objectivamente causado quaisquer danos a terceiros, VI) que assumiu e confessou os factos, revelando arrependimento (facto provado 32)] e VII) que se mostra a combater o problema de dependência de estupefacientes de que padece (factos provados 21), 22), 23) e 31)];
C.
Temos por violados os princípios da (des)igualdade, proporcionalidade bem como do carácter de ultima ratio do Direito prisional, ainda que a cumprir na habitação e sujeita a vigilância electrónica, que assim se verá convocado, para efeitos de execução de uma pena de prisão, quando a danosidade material se mostra in casu diminuta e a “justiça restauradora” uma realidade ao alcance do decurso do tempo e da suspensão da sua execução associada ao cumprimento de deveres ou regras de conduta/injunções por parte do condenado por forma a poder efectuar o pagamento em termos ressarcitórios à sociedade pois importa não esquecer o princípio basilar que confere consistência à criminalização de comportamentos: o princípio da subsidiariedade do Direito penal prisional, a representar um plus acrescido face à subsidiariedade penal;
D.
Sempre faltou o Tribunal a quo fundamentar devidamente em que medida o cumprimento efectivo de pena de prisão, ainda que a cumprir na habitação sujeita a vigilância electrónica, se revela a única via possível para salvaguardar as finalidades das penas e importa saber como é que o cumprimento da pena privativa de liberdade se mostrará socialmente mais adequado e minorará tal alarme e/ou indignação pois a não execução de prisão efectiva nunca significaria absolvição ou a dispensa de pena tout court, sendo sabido e notório que a libertação vai para além da simples fisicidade, sendo também libertação espiritual de todas as amarras inerentes à privação da liberdade!
E.
A simples exigência acrescida em termos de censura de revogação e ameaça de efectiva execução da pena de prisão, com o estigma associado, realizarão de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, mostrando-se o arguido já interiorizado do desvalor da sua conduta e seriamente empenhado em tornar a sociedade contrafacticamente de novo acreditada nos valores da justiça e bens jurídicos violados requerendo-se aos Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Coimbra o provimento ao presente recurso, devendo a douta decisão ser substituída por outra pois a efectividade da prisão é manifestamente excessiva, desumana e não ética!
F.
Trata-se de pessoa que goza e beneficia de apoio familiar de suporte, e a quem a cultura privativa de liberdade, além de todo o estigma associado, lhe será prejudicial e a liberdade vinculada ao cumprimento de injunções/regras de conduta decorrentes da suspensão da execução da pena de prisão não fará do arguido necessariamente feliz mas será indiscutivelmente factor de humanização e consagração de ser humano, razão pela qual, sempre a efectividade da prisão tenha de ser ponderada, tendo por base um juízo de culpa do arguido e fazendo um juízo de nefasticidade sobre os efeitos criminógenos associados sobre a evolução futura da pessoalidade do arguido, aquilatando da especial censurabilidade que justifique tal tratamento privativo de um direito consagrado em múltipla legislação nacional e internacional, concluindo-se que quer do ponto de vista jurídico quer sobretudo humanista deverá encontrar-se alternativa de cumprimento da pena, seja pela substituição pela prestação de trabalho a favor da comunidade ou, no limite, suspensão assente em rigorosíssimo regime de prova;
G.
A suspensão da execução da pena insere-se num conjunto de medidas não institucionais que, não determinando a perda da liberdade física, importam sempre uma intromissão mais ou menos profunda na condução da vida dos condenados, pelo que, embora funcionem como medidas de substituição, não podem ser vistas como formas de clemência legislativa, pois constituem autênticas medidas de tratamento bem definido, com uma variedade de regimes aptos a dar adequada resposta a problemas específicos, julgando-se adequadas as seguintes: a) Fixar a sua residência naquela morada; b) Manter boa conduta e integração a nível sociofamiliar e dentro dos parâmetros pró-sociais; c) Aceitar a tutela dos serviços de reinserção social da área da sua residência, cumprindo os deveres inerentes; d) Aceitar a sua referenciação para unidade de saúde para despiste de problemas de dependência de estupefacientes e submissão a tratamento se tal for determinado pelos serviços competentes; e e) abster-se de conduzir veículos a motor veículos;
H.
…
…».
3.
O Ministério Público respondeu ao recurso, defendendo a sua improcedência.
4. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se, invocando a existência de um erro notório na apreciação da prova pois a sentença usou um CRC emitido há mais de 3 meses, em violação do artigo 15º, nº 3 do DL nº 171/2025, de 25/8.
5.
Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal (doravante CPP), foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419º, nº 3, alínea c) do mesmo diploma.
II –
FUNDAMENTAÇÃO
1. Poderes de cognição do tribunal
ad quem
e delimitação do objecto do recurso
…
Assim, é seguro que este tribunal está balizado pelos termos das conclusões formuladas em sede de recurso.
…
Assim são apenas estas as questões a decidir por este Tribunal (
recorde-se que que só relevam as questões deduzidas no recurso e já não em qualquer outra peça processual oriunda de um qualquer outro sujeito processual, sem prejuízo das questões oficiosas
):
-
Medida de cúmulo da pena de prisão
a.
A pena de prisão aplicada deveria ter sido suspensa na sua execução, com regime de prova?
b.
A pena de prisão aplicada deveria ter sido substituída por trabalho a favor da comunidade?
2.
DA SENTENÇA RECORRIDA
2.1.
O tribunal
a quo
considerou
provados os seguintes factos
, com interesse para a decisão deste recurso
(transcrição):
«1) Por sentença proferida no processo sumário n.º 58/16...., do Juízo Local Criminal 2 da comarca de Coimbra, foi o arguido condenado pela prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelos artigos 69º, nº 1, alínea a) e 137.º, n.º 1, e de omissão de auxílio, p. e p. pelo artigo 200.º, n.ºs 1 e 2, todos do Código Penal, numa pena de 2 (dois) anos e 10 (dez) meses de prisão efectiva e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses.
2) A referida sentença transitou em julgado no dia 13/11/2019.
3) O arguido iniciou o cumprimento da pena acessória em 14/07/2022, data em que procedeu à entrega da sua carta de condução à ordem daqueles autos e cujo termo ocorrerá aos 14/03/2025.
4) No dia 24/09/2023, pelas 17h00m, …, em ..., o arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros, …
5) O ora aludido veículo foi apreendido pela GNR, por falta de seguro de responsabilidade civil obrigatório, tendo sido lavrado o auto ….
6) O veículo ficou depositado na Rua …, ..., sendo naquela ocasião o arguido nomeado fiel depositário do veículo e pessoalmente advertido pelo Militar da GNR … que não o podia remover, alterar o estado, utilizar, alienar, destruir, danificar ou inutilizar, sob pena de incorrer na prática, nomeadamente, de um crime de desobediência nos termos do artº 348º do Cód. Penal, tudo conforme resulta do teor de fls. 5, cujo conteúdo ora se dá por integralmente reproduzido.
7) À data da apreensão, o veículo registava 257588 km.
8) Todavia, o arguido continuou a conduzir o mencionado veículo, até perfazer 257985 km, em 08/10/2023.
9) Assim, no dia 08/10/2023, pelas 21h40m, na …, em ..., o arguido conduzia o referido veículo ligeiro de passageiros, …, o qual se encontrava ainda apreendido, por falta de seguro automóvel, e estando ainda em curso o período de cumprimento da pena acessória de proibição de condução no âmbito do processo nº 58/16.....
10) O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito concretizado de conduzir o veículo automóvel nas circunstâncias descritas, bem sabendo que aquele veículo se encontrava apreendido por falta de seguro automóvel e que não o podia remover ou utilizar por ter sido nomeado fiel depositário, bem sabendo que assim incorria na prática de um crime de desobediência conforme foi expressamente elucidado e bem sabendo ainda que, naquela data, estava impedido de conduzir veículos automóveis por força de condenação em pena acessória por sentença transitada em julgado.
11) O arguido sabia que todas as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.
12) … reside com a mãe em habitação, apartamento tipologia 3, dispõe de razoáveis condições de habitabilidade.
13) … esteve desempregado durante alguns meses, tendo iniciado a 11-11-2024, atividade laboral na empresa A... de fabricação e montagem de estruturas metálicas, com obras em Portugal.
14) Durante o período de desemprego, … teve curtas experiências laborais, sem vinculo contratual, numa oficina auto (cerca de 5 meses), depois na empresa de construção civil “B...” de onde se despediu após 6 meses, por fisicamente não aguentar o esforço de trabalho.
15) No atual trabalho, o arguido recebe um vencimento de 850€ mensais, com direito a almoço e jantar às expensas do patrão, uma vez que trabalha fora da área de residência, regressando ao fim de semana a ....
16) A família, nomeadamente a mãe e irmãos, continuam a ser o suporte do arguido, principalmente no apoio financeiro extra e no acolhimento.
….
19) … apresenta um problema de adição, tendo-se iniciado no consumo de estupefacientes, já em idade adulta, cerca dos 25 anos, em contexto de grupo de pares, primeiramente haxixe e depois heroína e cocaína, tornando-se dependente destas substâncias.
20) A toxicodependência enquadrou um histórico de vários processos judiciais, sendo que o impacto não foi mais negativo na sua vida porque teve sempre suporte e apoio da família, estruturada e inserida.
21) Atualmente, encontra-se com acompanhamento na Equipa Reduz – Cáritas Diocesana de ..., com consulta e plano medicamentoso.
22) A referida entidade faz o controlo da toma da Metadona (antagonista de opiáceos) pelo arguido e intervém no sentido de estabilizar progressivamente a sua vida ao nível pessoal e clinico.
23) O arguido regista indicadores de abstinência e cumprimento do plano terapêutico prescrito.
24) … tem noção de como o seu passado criminal e dependência de substâncias aditivas têm influenciado negativamente o seu modo de vida, nomeadamente pelas dificuldades na procura e manutenção de emprego e autonomização económica.
25) O arguido manifesta preocupação pelo desfecho do processo em curso, por se encontrar com outros processos em curso.
26) No âmbito do processo 14/20.... Juízo Local Criminal de Coimbra – juiz 1 … encontra-se a cumprir, mas com interrupções, 269 horas de trabalho a favor da comunidade em substituição de 9 meses de prisão.
27) Tem pendentes os processos 8/24.... - Juízo Local Criminal de Coimbra – Juiz 2, 179/24.... - Juízo Local Criminal de Coimbra – Juiz 3, 115/23.... Juízo Local Criminal de Coimbra – Juiz 3, e 366/23.... – Juízo Local Criminal de Coimbra - Juiz 3.
…
30) Conseguiu recentemente ocupação laboral com vinculo contratual, mantendo-se empenhado em consolidar a sua independência económica dos familiares de origem
…
32) O arguido confessou integralmente os factos tal como se provaram e mostra-se arrependido.
33) Do certificado do registo criminal do arguido constam as seguintes condenações:
…
2.2.
Não há factos não provados e é irrelevante a transcrição da motivação de facto pois inexiste qualquer impugnação da matéria factual.
3.
APRECIAÇÃO DO RECURSO
3.1.
Foi o arguido condenado pela prática de um crime de desobediência, previsto e punido pelo artº 348º, nº 1, alínea b) do Código Penal, doravante, CP, na pena de 9 (nove) meses de prisão e pela prática de um crime de violação de imposições, proibições ou interdições, previsto e punido pelo artº 353º do CP, na pena de 6 (seis) meses de prisão.
Em cúmulo jurídico das penas, foi decidido
condenar o arguido na pena única de 12 (doze) meses de prisão, cuja execução será em regime de permanência na habitação, nos termos do artigo 43º, nº 1, do CP, por igual período.
O recurso do arguido abrange somente a opção do tribunal em não suspender a execução da pena em causa e em não aplicar a pena substitutiva de trabalho a favor da comunidade.
…
Olhando para os vícios do artigo 410º, nº 2 do CPP – não directa e expressamente invocados pela defesa -, e defendendo nós que o seu conhecimento por esta Relação é de conhecimento oficioso, diremos apenas que não vislumbramos sombra de qualquer um deles na estrutura interna do sentenciado.
…
Na verdade, ao contrário do que se sustenta no douto parecer do Exmº PGA, não vislumbramos qualquer vício do artigo 410º, nº 2 do CPP, assente que a questão levantada do CRC «desactualizado» só pode ser resolvida por recurso a elementos exteriores à própria sentença (consulta do CITIUS em causa).
Como tal, não o temos por verificado.
Mas sempre se dirá que a passagem do prazo de 3 meses aposto no CRC do arguido não pode significar que o tribunal da condenação não poderia «ler»
esses
antecedentes criminais aí inscritos, podendo legitimamente retirar deles ilações ao nível da dosimetria da pena a aplicar, assente ainda que, se reenviássemos o processo para novo julgamento, como se aduz no aresto desta Relação, invocado no parecer do Exmº PGA, sempre a 1ª instância não poderia levar em linha de conta eventual nova factualidade resultante desse «novo» CRC, caso houvesse acrescentos ao mesmo cadastro, sob pena de julgar «contra» o arguido.
Mais se diga que, a existir algum vício, sempre seria uma mera irregularidade, já há muito suprida (nunca tal foi invocado pela defesa).
Inexistindo quaisquer vícios do artigo 410º, nº 2 do CPP, passemos ao conhecimento das questões efectivamente controvertidas.
3.2.
Foi bem encontrada a pena concreta, no caso, 12 meses de prisão, a executar em regime de permanência na habitação?
Vejamos.
Foi assim que decidiu, em termos de argumentação, o tribunal recorrido:
«
…
Em matéria de escolha da pena, rege o princípio geral da preferência pela pena alternativa não privativa da liberdade, a qual deverá ser aplicada sempre que, verificados os respectivos pressupostos de aplicação, se revele adequada e suficiente á realização das finalidades da punição, de acordo com o disposto no art.º 70º do Código Penal.
…
No caso concreto a pena de multa não satisfaz de forma suficiente e adequada as finalidades da punição, designadamente as exigências de reprovação e prevenção do crime, estando, pois, indicada uma pena de prisão. Com efeito, como decorre dos factos assentes, o arguido já tem antecedentes criminais, tendo diversas condenações, num total de 19, pela prática de diversos tipos legais de crime, demonstrando uma personalidade desconforme ao direito, sendo que tem seis condenações pela prática de crimes de desobediência e não tem nenhuma condenação pela prática do crime de violação de imposições, proibições ou interdições.
…
Assim, nos termos do art.º 71º do Cód. Penal, aplica-se ao arguido uma pena de 9 (nove) meses de prisão pelo crime de desobediência e uma pena de 6 (seis) meses de prisão pelo crime de violação de imposições, proibições ou interdições.
Ora, tendo o arguido praticado dois crimes importa fazer referência ao concurso de crimes. Para determinar a medida da pena que caberá ao concurso, em primeiro lugar, o tribunal tem de determinar a pena que concretamente caberia a cada um dos crimes do concurso, como se de crimes singulares se tratasse para tanto seguindo o procedimento normal de determinação da pena. No presente caso encontramos, então, uma pena de 9 (nove) meses de prisão e uma pena de 6 (seis) meses de prisão para cada um dos crimes que o arguido praticou.
…
Assim, afigura-se-nos adequado e proporcional aplicar ao arguido uma pena de 12 (doze) meses de prisão, resultante do concurso dos crimes de desobediência e violação de imposições, proibições ou interdições.
…
No caso concreto, tendo em atenção e ponderando todos os factores referidos aquando da determinação da medida concreta da pena, nomeadamente o facto de o arguido já ter sido por dezanove vezes condenado pela prática de vários tipos legais de crime, em penas de multa, de prisão suspensa na sua execução e de prisão efectiva, persistindo na actividade criminosa, demonstrando uma personalidade desconforme ao direito, não permite fazer um juízo de prognose favorável, no sentido de acreditar que a simples censura do facto e a ameaça da prisão bastarão para afastar o arguido da prática de novos crimes e satisfazer as necessidades de reprovação e prevenção do crime, pelo que
não se substitui a pena de prisão aplicada por pena de multa ou por prestação de trabalho nem se suspende a pena aplicada ao arguido.
Com a entrada em vigor da Lei nº 94/2017, de 23/08, que alterou o Código Penal, é possível a execução de uma pena de prisão aplicada em medida não superior a dois anos através do regime de permanência na habitação, nos termos do artigo 43º do Código Penal.
Estipula o artigo 43º, nº 1, alínea a) do Código Penal que “
sempre que o tribunal concluir que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da execução da pena de prisão e o condenado nisso consentir, são executadas em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância: a) a pena de prisão efectiva não superior a dois anos; (…)
”.
Da factualidade provada resulta que o arguido está social e familiarmente integrado e confessou a prática dos factos. Acresce que se encontra a efectuar tratamento ao problema da dependência de produtos estupefacientes de que padece.
Considera-se, desta forma, que o cumprimento de tal pena de prisão, em regime de permanência na habitação, realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, caso haja parecer favorável nos termos do artº 7º, nº 2 da Lei 33/2010, de 02/09.
Fixa-se como residência ao arguido para cumprimento da pena de prisão, no regime de permanência na habitação, …
O arguido consentiu na aplicação da vigilância electrónica (cfr. acta da leitura de sentença, de acordo com o artigo 4º, nº 2 da Lei 33/2010, de 02.09)».
3.3.
O recurso «versa primacialmente sobre a forma de execução da pena única, defendendo-se «forma alternativa sem ser privativa de liberdade».
Já sabemos que não está em causa a escolha da pena de prisão, em detrimento da de multa, na operação do artigo 79º do CP.
E não está em causa o
quantum
de 12 meses na pena de cúmulo, cuja moldura abstracta vai dos 9 aos 15 meses (não o estando também o
quantum
das penas parcelares).
Apenas está em discussão a questão da substituição dessa pena de prisão por uma não privativa da liberdade.
Pergunta-se, então: será de lançar mão de alguma das penas substitutivas previstas no artigo 50º e 58º do CP (anteriores à do artigo 43º, essa aplicada
in casu
)?
3.4. Uma palavra sobre a suspensão da execução da pena de prisão
O regime jurídico da pena em causa está previsto nos artigos
50º a 57
º do CP e nos artigos
492º a 495º
, do CPP.
O artigo 50º, nº 1, do CP – revisto em 2017 - dispõe:
SECÇÃO II
Suspensão da execução da pena de prisão
Artigo 50º
Pressupostos e duração
1 - O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
2 - O tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova.
3 - Os deveres e as regras de conduta podem ser impostos cumulativamente.
4 - A decisão condenatória especifica sempre os fundamentos da suspensão e das suas condições.
5 - O período de suspensão é fixado entre um e cinco anos.
…
A revisão do Código Penal, introduzida pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, reforçou o princípio da última
ratio
da pena de prisão, valorizou o papel da multa como pena principal e alargou o âmbito de aplicação das penas de substituição, muito embora não contemple, como classificações legais, as designações de «pena principal» e de «pena de substituição».
A classificação das penas como principais, acessórias e de substituição continua a ser válida e operativa, ainda que a lei não utilize expressamente estas designações, a não ser no tocante às penas acessórias.
Deste modo, sob o prisma dogmático, penas principais são as que constam das normas incriminadoras e podem ser aplicadas independentemente de quaisquer outras.
Já as penas acessórias são as que só podem ser aplicadas conjuntamente com uma pena principal.
Por seu lado, as penas de substituição são as penas aplicadas na sentença condenatória em substituição da execução de penas principais
concretamente determinadas
.
Se assim é, ou seja, se a pena de suspensão de execução da prisão é uma pena de substituição em sentido próprio (em contraste com as penas de substituição detentivas ou em sentido impróprio), temos como pressuposto material da sua aplicação que o tribunal, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste,
conclua
pela formulação de um juízo de prognose favorável ao agente que se traduza na seguinte proposição:
a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Note-se que agora, e desde 2007 (cfr. Lei nº 59/2007), o período de suspensão é fixado entre 1 e 5 anos.
Esta pena assim aplicada pode revestir:
·
a modalidade simples (artigo 50º, do CP),
·
a forma de subordinação ao cumprimento de deveres e/ou regras de conduta (
artigos 51º e 52º, do CP
),
·
o acompanhamento de um
regime de prova
(
artigos 53º e 54º, do CP
).
No segundo caso, a
imposição de deveres e regras de conduta
visa a reparação do mal do crime e a ressocialização do condenado, evitando que cometa novos crimes.
Está sujeita a uma dupla limitação, na medida em que não pode violar os direitos fundamentais do condenado e deve ser adequada e proporcional às finalidades visadas.
Em qualquer situação, torna-se imperiosa uma rigorosa selecção de deveres ou regras de conduta, devida e ajustadamente exequíveis, cuja aplicação deve ter em conta a imagem global dos factos e deve adaptar-se às exigências de prevenção geral e especial exigidas pelo caso.
…
Recuperamos aqui muito do que decidimos no recente aresto datado de 14 de Maio de 2025, no Pº 179/24.6GDCBR.C1.
Também nós, neste nosso processo presente (mais um), não iremos suspender a execução desta nova pena de prisão [conheceu 5 suspensões, uma das quais em acórdão de cúmulo jurídico – cfr. facto provado nº 33, alíneas e), k), l), m) e p)].
O seu passado não nos dá qualquer garantia de correcção.
O que vai explanado permite concluir que a simples ameaça da prisão não permite realizar de forma adequada as finalidades da punição, tanto mais que o arguido revela uma personalidade desconforme ao direito.
Entendendo-se que resulta dos presentes autos que o arguido tem antecedentes criminais, tendo sofrido já condenações sucessivas, que inexistem comprovadas circunstâncias que o possam favorecer e que tais circunstâncias impedem um juízo de prognose a si favorável, tanto mais que não se vislumbra do seu recente comportamento que tenha interiorizado o desvalor da sua conduta delituosa (tal juízo terá como ponto de partida, o momento da decisão e não a data da prática do crime), o tribunal recorrido afastou, e bem, a possibilidade de suspender a pena de prisão que aplicou concretamente ao arguido.
Certos de que o que está aqui em causa não é qualquer certeza, mas a esperança (in)fundada de que a socialização em liberdade possa ser lograda, entendemos, na linha do sentenciado em 1ª instância, que a simples censura do facto e a ameaça da pena de prisão não realizam, de forma adequada, as exigências e finalidades da punição.
O juízo de prognose favorável que o percurso criminal do arguido e a persistência que vem demonstrando na prática de crimes, nomeadamente da natureza dos autos, revela-se, à saciedade, irremediavelmente comprometido, revelando ele uma personalidade desconforme ao Direito e autista relativamente à força persuasiva e ressocializadora das penas que já lhe foram aplicadas no passado.
Quem até já esteve preso devia estar emendado, deveria pensar duas vezes antes de resolver prevaricar.
Este arguido já viu durante 5 vezes suspensa a execução de uma pena de prisão – e mesmo assim voltou a prevaricar.
A pena de suspensão da execução da pena de prisão não realiza de forma adequada as finalidades da punição quando o agente, apesar de já ter sido por diversas vezes condenado, volta a praticar infracção de natureza semelhante.
Esta pena suspensa seria ineficaz num caso deste jaez, não se acreditando que a ameaça da pena de prisão fosse suficiente para afastar este homem deste tipo de criminalidade com a qual ainda terá algumas «contas interior a ajustar».
Ligado ao mundo da toxicodependência, sem poiso certo, sem hábitos de trabalho, neste momento, a suspensão de pouco lhe valeria.
Lamentamos ter de assim agir – «haveria de haver» um momento em que o ciclo de reclusão se teria de romper.
Ainda não é chegado o momento, infelizmente.
É certo que o seu passado não tem sempre de marcar a sua esperança de futuro (e uma vida de erros não significa sempre e necessariamente uma vida de erros).
Contudo, no momento em que nos chega às mãos este pedaço da sua vida, ainda nos classificamos de impotentes para mudar o seu curso existencial, empurrados ainda que somos, pela enxurrada de ilicitudes por si cometidas, para o mundo da reclusão, mesmo que em casa (e acreditamos que esta será uma última chance antes de voltarmos à real reclusão intramuros de um EP).
3.5.
O mesmo se diga da pena substitutiva do artigo 58º, já aplicada por 5 vezes em 2014, 2016 e 2020 – cfr. facto provado nº 33, alíneas f), g), h), j) e r) - e sem qualquer decisivo e útil efeito na ressocialização deste arguido, não se podendo, assim, afirmar que tal pena substitutiva realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Já sabemos que a pena de trabalho a favor da comunidade consiste na prestação de serviços gratuitos ao Estado, a outras pessoas coletivas de direito público ou a entidades privadas cujos fins o Tribunal considere de interesse para a comunidade (artigo 58º, nº 2 do CP) e tem lugar se ao agente dever ser aplicada pena de prisão em medida não superior a dois anos, sempre que se concluir que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (artigo 58º, nº1 do CP).
O pressuposto formal desta pena é a aplicação de uma pena de prisão em medida não superior a dois anos e a aceitação pelo condenado da sua substituição pelo trabalho a favor da comunidade (artigo 58º, nº 5 do CP).
O pressuposto material é poder concluir-se que pela aplicação dessa pena de substituição se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
A pena de trabalho a favor da comunidade tem na base a ideia de centrar o conteúdo punitivo na perda, para o condenado, de uma parte substancial dos seus tempos livres, sem por isso o privar de liberdade e permitindo-lhe consequentemente a manutenção íntegra das suas ligações familiares, profissionais e económicas, ou seja, a manutenção com o seu ambiente e a integração social; por outro lado, com não menor importância, o conteúdo socialmente positivo que a esta pena assiste, enquanto se traduz numa prestação activa, com o seu consentimento, a favor da comunidade.
Por isso, a prestação de trabalho a favor da comunidade é, de
per si
, uma pena autónoma que visa satisfazer “as finalidades da punição”.
Ora, olhando para o caso vertente, diremos que as mesmas considerações expostas no ponto anterior valem para aqui.
As anteriores penas de prisão substituídas por trabalho comunitário não surtiram qualquer efeito no arguido: após a aplicação dessas penas a executar na comunidade – a sua extinção - logo volta ao crime em 2020 [cfr. facto provado nº 33, alíneas r) e s)].
Como, assim, justificar agora tal pena de trabalho comunitário, assente que as anteriores experiências/condenações não «mexeram» com a consciência do AA?
Daqui se retira a pouca susceptibilidade do arguido em ser influenciado positivamente pelas penas em que foi condenado, não interiorizando, concluímos nós, o desvalor da sua conduta ilícita repetida no tempo.
Os seus
antecedentes criminais são reveladores de uma certa personalidade, essa sim, única, mas que projecta as suas consequências na culpa que concorre para a formação dessa personalidade e que se reflecte inevitavelmente na medida da pena e que vai bulir também nas exigências de prevenção.
Assim, os antecedentes criminais projectam a sua importância, sem que haja lugar a quaisquer duplicações, quer na medida da pena quer na culpa, quer nas exigências de prevenção.
E estamos a falar de alguém que já cumpriu penas efectivas de prisão (facto provado nº 33, alíneas q) e s)], sendo já de assinalar esta benevolência do JLC Coimbra ao aplicar-lhe,
de novo, e pela 3ª vez
, uma pena do artigo 43º [cfr. facto provado nº 33, alíneas n) e o)].
Razões de prevenção geral e especial impõem, assim, o afastamento também desta pena substitutiva.
De nada lhe vale o alegado no recurso, a saber:
·
«I) prática dos factos motivada pela falta de auxílio da sua mãe que num momento difícil teve de centrar atenções na sua filha gravemente doente»
- nada disto consta dos factos provados, não tendo aqui havido qualquer impugnação da matéria dada como provada:
·
«II) factualidade cometida por um arguido ainda em idade ainda favorável à inversão de percurso ilícito» -
pelas razões acima explanadas, foram vezes de mais a prevaricar e muitas hipóteses já dadas para esse «arrepiar de caminho», nunca aproveitadas;
·
«III) que se mostra inserido do ponto de vista social e familiar» –
não pode a boa integração familiar justificar desajustada benevolência para quem tão repetidamente transgride a lei;
·
«IV) que apresenta inserção laboral» -
não pode a boa integração profissional justificar desajustada benevolência para quem tão repetidamente transgride a lei;
·
«V) que não foi interveniente em qualquer acidente de viação, não tendo objectivamente causado quaisquer danos a terceiros» -
absolutamente irrelevante no nosso caso pois a ilicitude existe mesmo sem a produção de acidentes de viação na via pública, não sendo esta a 1ª vez que desobedece em crimes rodoviários;
·
«VI) que assumiu e confessou os factos, revelando arrependimento» -
tal já foi ponderado na determinação da exacta medida da pena, não revestindo esta confissão grande relevo atenta a intercepção policial da qual tinha ele pouca forma de escapar, adiantando-se ainda que o arrependimento demonstrado pouca relevância – e até sinceridade - terá face ao seu passado criminal (note-se que o tribunal apenas apurou que o arguido
se mostrou
arrependido e não que estivesse verdadeiramente arrependido);
·
e «VII) que se mostra a combater o problema de dependência de estupefacientes de que padece» -
não é essa circunstância que poderá beneficiá-lo neste caso, assente que os crimes dos autos nada têm a ver com a sua toxicodependência mas apenas com a sua insistência em conduzir fora das condições legais para o efeito em veículos que não se mostram habilitados a ser tripulados na via pública.
3.6.
Como tal, não reconhecemos no panorama do CP, em termos de penas, qualquer outro «fármaco alternativo», usando a imagem do recorrente, que seja capaz de fazer expiar a culpa deste homem, useiro e vezeiros em ilicitudes várias (conduções em estado de embriaguez, desobediências, furtos, falsificações e um homicídio negligente/omissão de auxílio).
Em suma, vai ser considerado improcedente este recurso, não se tendo por violados quaisquer preceitos do Código Penal, do Código de Processo Penal, do Código Civil ou da própria Constituição da República Portuguesa, nomeadamente os invocados na conclusão H), validando-se, assim, a pena aplicada por total proporcionalidade e adequação.
III –
DISPOSITIVO
Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção - Criminal - deste Tribunal da Relação em:
·
NEGAR provimento ao recurso intentado pelo arguido …, mantendo-se, na íntegra, a condenação gizada pela 1ª instância.
Custas pelo arguido recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCs [artigos 513º, n
o
1, do CPP e 8º, nº 9 do RCP e Tabela III anexa].
Coimbra, 8 de Julho de 2025
(Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário, sendo ainda revisto pelo segundo e pelo terceiro – artigo 94º, nº 2, do CPP -, com
assinaturas
electrónicas
apostas
na
1.ª
página,
nos
termos
do
artº
19º
da
Portaria
nº
280/2013,
de
26-08,
revista
pela
Portaria
nº
267/2018,
de
20/09)
Relator: Paulo Guerra
Adjunto: Alcina da Costa Ribeiro
Adjunto: Sara Reis Marques
|
TRC
|
https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/eda1943c3d6ee20480258cde003bf303?OpenDocument
|
1,738,022,400,000
|
ANULADA
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1817/21.8T8PVZ.P1
|
1817/21.8T8PVZ.P1
|
MARIA EIRÓ
|
O cumprimento/execução dos contratos de intermediação financeira de acordo com o CVM exigem ao intermediário financeiro comportamentos altos padrões de lealdade.
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[
"IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO",
"AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO",
"CONTRATO DE INTERMEDIAÇÃO FINANCEIRA",
"INTERMEDIÁRIO FINANCEIRO"
] |
Apelação nº 1817/21.8T8PVZ.P1
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
O A AA intentou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum contra: - Banco 1..., S.A., SUCURSAL EM PORTUGAL, pedindo que na procedência da ação se declare:
a) que as vendas/resgastes dos fundos de investimento/instrumentos financeiros, descritas nos art. 248º e 249º, foram ilegais, ilícitas e violam o conteúdo contratual acordado entre Autor e Banco Réu;
b) que todas as cláusulas de “margin call”, “stop-loss” e “cross-default”, e demais cláusulas abusivas, designadamente relativas ao vencimento antecipado, ao reforço de garantias, apostas nos contratos em causa nos autos são ilegais, ilícitas e abusivas, e em consequência, deverão ser declaradas nulas e de nenhum efeito tais cláusulas apostas em todos os contratos de mútuo e de penhor celebrados pelo A com o R;
c) declarar ilícito o vencimento antecipado dos contratos de mútuo em causa nestes autos, e, em consequência, ser o R condenado a pagar ao Autor a quantia €81.435,40, como ressarcimento e indemnização do dano resultante diretamente das vendas e resgastes dos fundos de investimentos /instrumentos financeiros em causa nos autos, acrescido dos juros de mora, à taxa legal;
d) condenar o Banco Réu a pagar ao Autor a quantia €24.289,16, como ressarcimento e indemnização do dano resultante da perda de rendimentos/rendas, rendas vencidas, decorrente das vendas e resgastes dos fundos de investimentos/instrumentos financeiros em causa nos autos, acrescido dos juros de mora;
e) condenar o Banco Réu a pagar ao Autor a quantia € 3.031,80, como ressarcimento e indemnização dos encargos e despesas indevidamente debitados na conta bancária do Autor, acrescido dos juros de mora, calculados à taxa legal, desde as datas dos respetivos débitos até efetivo e integral pagamento;
f) Deve o Banco Réu a pagar ao Autor a quantia € 20.000,00, a título de danos não patrimoniais, acrescido dos juros de mora, calculados à taxa legal;
g) Deve o Banco Réu a pagar ao Autor as rendas vincendas relativas aos fundos de investimentos /instrumentos financeiros em causa nos autos, nomeadamente identificados no art. 252, desde janeiro de 2022 até ao termo da vigência de cada um desses contratos/fundos investimentos, em valor a ser fixados em execução de sentença.
Alegou para tanto, e em síntese, que é cliente do Réu junto do balcão ..., titular de uma conta que teve origem no Banco 2... e detentor de uma carteira de investimento que o acompanhava; em 2018 e 2019 fez várias operações bancárias, sendo que à data da operação de venda do Banco 2... para a Banco 1..., o A era detentor de obrigações, fundos de obrigações e fundos misto conservadores, no valor global de €220.000,00, que manteve; em Outubro de 2019 foi abordado pelo seu gestor de conta que lhe apresentou uma proposta de investimento, afirmando a sua solidez e rentabilidade e assegurando que não comportaria grande risco, através da subscrição de determinados fundos de investimento para os quais o Réu lhe em estaria €200.000,00, tendo para o efeito de assinar uma livrança em branco, e ficando os instrumentos financeiros como penhor, proposta que o A aceitou, ficando em Fevereiro de 2020, com um capital global em dívida no valor de €420.00,00; em março de 2020, plena pandemia, o seu gestor de conta propôs um novo investimento de €50.000,00, sendo apenas 10.000,00 de capital próprio do A, e o demais por empréstimo do banco, para investir nos fundos A... e B..., investimento que realizou; que a 17 de Março o seu gestor de conta entrou em contacto consigo informando-o que os fundos estavam a desvalorizar muito e a perguntar-lhe se o A os queria resgatar ou vender, tendo-lhe comunicado que não pretendia resgatar ou vender os fundos/instrumentos financeiros, uma vez que iria perder dinheiro e estava convencido que oportunamente iriam revalorizar, como veio a acontecer; que a 26.03 o seu gestor de conta tornou a perguntar-lhe se não queria resgatar/vender os fundos, o que o A mais uma vez recusou, acrescentando que não subscrevia mais fundos (fundos a preço baixo, seria uma boa altura para comprar) por não terna altura disponibilidade financeira para tal; que ficou convencido que os fundos não seriam resgatados pelo Banco Reu, pois não deu autorização para tal nem o Banco Réu lhe comunicou que iria concretizar tais vendas/resgates; teve um prejuízo total de €75.429,62 nos sete investimentos que tinha, a que acresceram as despesas no valor global de €6.005,78, valor que pretende ser ressarcido; refere que o investimento alavancado está reservado a investidores profissionais, sendo que o Banco o qualificou como tendo um perfil de investidor de grau 7, em 9, quando o seu perfil de investidor não corresponde a tal grau; desconhecia o conceito de margin cal ou stop loss, nem o mesmo lhe foi explicado, sendo certo que o Banco Réu nunca lhe solicitou um reforço das garantias, antes de proceder à venda e resgate dos produtos financeiros; o A teve ainda o prejuízo decorrente da rentabilidade dos produtos financeiros subscritos que manteria, caso os mesmos não tivessem sido resgatados, entre Abril de 2020 e Março de 2021, no valor global de €24.289,16, e ainda as rendas vincendas desde
Janeiro de 2022 até ao termo da vigência de cada um dos contratos/fundos de investimento, a liquidar em execução de sentença, valores que reclamação.
Peticiona ainda o valor que o Banco R lhe cobrou e retirou da conta, nomeadamente em comissões e despesas, no valor global de €3.031,80, bem como a quantia de €20.000,00 a título de danos não patrimoniais sofridos em consequência da perda das quantias referidas.
*
Contestou a Ré Banco 1... por exceção invocando:
- a sua ilegitimidade relativamente a alguns dos contratos, porquanto não teve intervenção nos mesmos, dado que foram celebrados com o Banco 2..., entidade distinta, ilegitimidade essa suprível mediante a intervenção de tal entidade bancária, a qual deduz;
- a prescrição dos direitos do A: tendo decorrido mais de dois anos desde as datas em que o A teve conhecimento da conclusão do negócio e dos respetivos termos, mesmo que se admita que o Réu havia incumprido os seus deveres de intermediário financeiro, nos termos do artigo 324.º n.º 2 CVM, a sua responsabilidade estaria já prescrita.
No demais impugna a factualidade alegada, invocando o cumprimento dos deveres de informação, confirmando os produtos subscritos pelo A, o contato do gerente de conta aquando da instalação da pandemia, a 16.3.2020, da intenção firme do A na manutenção da sua posição relativamente aos investimentos, da comunicação por escrito por parte do R, para a morada contratualmente estipulada, dos níveis de cobertura e, face ao não reforço das garantias por parte do A, do acionamento legitimo da clausula stop loss, nos termos contratualmente previstos, com a consequente venda dos fundos de investimento que se encontravam a garantir os contratos de mútuo celebrados.
Esclarece ainda, porém, terem sido mantidos, os fundos de investimento B... e A..., até ao termo dos mesmos, continuando a ser creditados na conta os respetivos rendimentos.
Refere nunca ter sido transmitido ao A que os produtos em causa tinham rentabilidade e capital garantido, não ter sido acionada qualquer clausula “crossdefault”, nem tal está em causa nos autos, sendo certo que atua com má fé o A ao peticionar a nulidade do clausulado dos contratos que livre e conscientemente acionou.
Mais alude aos valores auferidos pelo A entre junho de 2019 e Março de 2020, que não foram por aquele descontados no valor que reclama a título de perda de rendimentos, correspondente à diferença entre os valores investidos e os valores de venda, concluindo que máximo que o A poderia peticionar a titulo de prejuízo decorrente do resgate dos fundos, é de €63.277,73.
Quanto aos valores peticionados a título de despesas e encargos, os mesmos são devidos nos termos contratuais, não existindo fundamento para a sua devolução.
No que concerne aos valores correspondentes a rendimentos não auferidos entre Abril de 2020 e Março de 2021, que o A entende que teria direito a receber, refere o R, não é garantido que tais produtos financeiros gerassem rentabilidade no referido período, não sendo por tal um dano indemnizável. Já quanto ao pagamento das rendas vincendas a partir de Janeiro de 2022, tal pedido consubstancia uma situação de enriquecimento sem causa, sendo que o A em Março de 2021 encerrou a sua conta e cessou, por sua iniciativa qualquer relação contratual com o R.
Por último, invoca, não estarem alegados factos suficientemente gravosos que preencham a obrigação de indemnizar por parte do R, a título de danos não patrimoniais.
Pugna pela procedência das exceções deduzidas, pela improcedência da ação e deduz pedido de intervenção principal do Banco 2....
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Proferido despacho a admitir a intervenção, como R, a título subsidiário, veio o Banco 2... SUCURSAL EM PORTUGAL, apresentar contestação.
Invocou igualmente a exceção de prescrição, porquanto o contrato de abertura de conta foi celebrado em 07.01.2015, os produtos financeiros foram subscritos entre 2015 e Fevereiro de 2019, pelo que tendo decorrido mais de dois anos desde a data em que o A teve conhecimento da conclusão dos negócios, conforme dispõe o artigo 324º, nº do CVM, a sua responsabilidade relativamente a tais produtos está prescrita.
Impugnou os factos alegados pelo A., invocando que o Autor, contrariamente ao alegado na sua petição inicial, sempre teve pleno conhecimento do tipo de produtos financeiros que subscreveu junto do banco Réu bem como dos financiamentos solicitados, até devido à sua formação académica, visto ser advogado, existindo sempre por parte Réu, o cuidado e diligência de lhe explicar as características e funcionamento de todas as operações antes da subscrição das mesmas concluindo pela improcedência da ação.
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AA apelou concluindo nas suas alegações:
1. Salvo o devido respeito, que é muito, o Recorrente entende que o Tribunal “a quo” efetuou uma incorreta e inadequada fixação dos factos provados e não provados, designadamente como decorrência da incorreta interpretação da prova produzida e, por esse e outros motivos, designadamente pela inadequada subsunção fáctico-legal dos factos provados ao direito, efetuou uma deficiente aplicação do direito, absolvendo a Ré do pedido.
2. Pelo presente Recurso, pretende-se que o Tribunal “ad quem” repondere a prova produzida em audiência, altere a matéria de facto dada como provada e não provada e efetue a devida subsunção dos factos ao direito, o que adiante se requererá, o que, tudo ponderado, determinará a condenação da Recorrida por este Tribunal.
I. Da insuficiência de factos que fundamentem as vendas dos instrumentos financeiros
3.O cerne dos presentes autos é a apreciação, pelo Tribunal, da legalidade e licitude das vendas/resgastes dos instrumentos financeiros, efetuadas pelo Banco Recorrido e em causa nos autos, porquanto, entende o Recorrente, as mesmas foram ilegais, ilícitas e violaram o conteúdo contratual acordado, acrescendo que foram essas vendas que causaram ao Recorrente o prejuízo cujo ressarcimento reclama nestes autos.
4. No que se refere ao ónus da prova, o ordenamento jurídico Português é absolutamente cristalino, instituindo que, àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado (art 342º do CC); às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas (art. 5º, nº 1, e 572, alíneas b) e c), CPC); a dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita (art. 414º CPC)
5. Importa ainda reter que, nos termos do CVM, o direito à informação de um investidor é um direito que não se esgota nas negociações prévias, nem na celebração dos contratos de investimento, antes acompanhando todo o processo de investimento, incluindo no momento da venda.
6. É o que prescreve o art. 7º do CVM, que refere no nº 1, que o direito à informação respeita “a mais acrescentando que essa informação deve ser “completa, verdadeira, atual, clara, objetiva e lícita”.
7.Isto é, o cumprimento do dever de informação impõe que tal informação seja ATUAL, o que implica, nomeadamente, que também no momento da venda a informação deve obedecer aos requisitos em causa.
8. Acresce que, como prescreve o art. 304 do CVM, os intermediários financeiros devem orientar a sua atividade no sentido da proteção dos legítimos interesses dos seus clientes e devem observar os ditames da boa-fé, de acordo com elevados padrões de diligência, lealdade e transparência.
9.O direito à informação do Recorrente é um direito amplo sendo que, por contraponto, o dever de cumprimento desse direito à informação, ao Recorrente, era um dever amplo do Banco Recorrido.
10. No caso concreto e no que releva para a boa decisão da causa, o ónus da prova, deveria ter sido cumprido pelo Banco Recorrido em dois momentos distintos: Na fase extrajudicial, em momento imediatamente anterior às vendas, comunicando ao Recorrente a intenção de vender os instrumentos financeiros, de forma fundamentada, atual e factual; Na fase judicial, alegando, na contestação os factos que, integrados no teor contratual, permitiam ao Banco Recorrido efetuar tais vendas de forma unilateral (isto é, contra a vontade do Recorrente, assim demonstrando a respetiva legalidade, licitude e conformidade contratual).
11. Assim, quanto à legalidade das vendas, incumbia ao Banco Recorrido o respetivo ónus de prova, isto é a alegação de factos de onde resultasse a legalidade dessas operações, acrescendo que, em caso de dúvida sobre a realidade de um facto, essa dúvida deveria ser resolvida contra o Banco Recorrido.
12. No que releva para a boa decisão da causa e no que concerne ao cumprimento ou incumprimento do ónus da prova e do cumprimento do dever de informação, o que relevava, para a boa decisão dos autos, era apurar factualmente se, na data das comunicações e na data das vendas, os instrumentos financeiros estavam abaixo das coberturas mínimas previstas contratualmente (designadamente atentos os factos provados 31, 34, 42, 56 da sentença), e assim se verificava ou não uma situação de margim call ou stop loss.
13. Nos termos contratuais, nomeadamente descritos nesses factos provados, o Banco Recorrido só poderia efetuar tais vendas, desde que e quando, a cotação dos instrumentos financeiros fosse correspondente a uma percentagem do valor do financiamento (conforme os casos, de 110%, 115% e 120%).
14. Acresce que, como é facto notório e publico, o cálculo da Margim Call e do Stop Loss é complexo e implica conhecimentos complexos (de um economista ou especialista em investimentos), tem de ser acompanhado diariamente, o que só pode ser feito por um profissional - o intermediário financeiro, exigindo, nomeadamente, o conhecimento diário do valor da cotação de cada unidade de participação desses instrumentos financeiros ou fundos de investimento, e o valor das unidades de participação de cada um deles, a ponderação do valor investido, e a atualidade de tal matéria factual, sendo que, o autor tinha vários fundos de investimento.
15. Ou seja, incumbia ao Banco Recorrido a alegação e prova de que, na data das vendas/resgates, a cotação dos instrumentos financeiros vendidos fosse correspondente a uma percentagem do valor do financiamento (como referido, conforme os casos, de 110%, 115% e 120%).
16. Ora o cumprimento do referido ónus da prova e do dever de informação e, consequentemente, a legalidade e licitude das vendas, apenas se mostraria concretizado se e quando o Banco informasse o Recorrente dos valores que resultassem da operação a fazer, nomeadamente, da indicação dos valores dessas cotações dos vários fundos de investimento do autor, as respetivas datas e da respetiva subsunção fatual à percentagem mínima do valor do financiamento e a indicação da natureza e valor do pretendido reforço de garantias.
17. Parece inequívoco, quer atentas as regras do ónus da prova, quer atentas as regras relativas ao direito à informação a que amplamente se refere o CVM, que tal cumprimento só se poderia considerar concretizado pelo Banco Recorrido quando e se o mesmo, comunicasse ao Recorrente, de forma individualizada (por cada instrumento financeiro) e no momento de cada comunicação e de cada venda/resgate, pelo menos as seguintes informações: Valor do investimento inicial e à data das vendas; Cotação inicial e cotação dos instrumentos financeiros no mercado, data e hora das cotações, no momento em que se verificasse que estaria em situação de margin call ou stop loss (anterior às vendas) e o número de unidades de participação de cada um dos fundos; Alegação e demostração aritmética da cobertura da garantia e da percentagem mínima do valor do financiamento que, nos termos contratuais, fundamentaria, validando, a venda uniliteral pelo Banco Recorrido; Integração factual no conceito de MC ou SL; Explicitação do tipo de garantia e valor que o Banco Recorrido pretendia como reforço da garantia para não acionar a Margim Call ou Stop Loss e não vender esses instrumentos financeiros.
18. Só nessas condições e com conhecimento desses factos, o Recorrente poderia verificar se as vendas tinham cumprido os pressupostos contratuais em causa; Só nessas condições e com conhecimento desses factos, o Tribunal “a quo” poderia ponderar, apreciar, verificar e decidir se as vendas tinham cumprido os pressupostos contratuais em causa, nomeadamente se verificava-se ou não uma situação de margin call ou stop loss; Só nessas condições e com conhecimento desses factos, o Tribunal “ad quem” poderá ponderar, apreciar, verificar e decidir se as vendas/resgates tinham cumprido os pressupostos contratuais em causa.
19. É claramente insuficiente e não cumpre o ónus da prova ou o dever de informar, a mera comunicação, ao Recorrente, do facto “a relação da cobertura dos instrumentos dados em garantia de 114,12% (inferior ao limite mínimo de 115% estabelecido no contrato de mútuo)” (como resulta do teor das cartas referidas nos art. 113º a 118º dos factos provados e replicada nos demais investimentos, apenas variando a percentagem em causa).
20. É que tal expressão é absolutamente genérica, é um conceito indeterminado (ou, pelo menos, um conceito carecedor de integração fatual, como sobredito) e, como tal, nem pode ser dada como provada, nem é apta a permitir a ponderação e apreciação, quer pelo Recorrente, quer pelas instâncias judiciais, da legalidade das vendas).
21. O alegado pela recorrida, é uma mera conclusão, de algo que se desconhece especificamente ou em concreto.
22. O Banco Recorrido incumpriu, claramente, o ónus de prova que sobre si recaía, E tal incumprimento verifica-se nos dois momentos em causa: na fase extrajudicial e na fase judicial.
23. Assim, os autos não contêm os elementos de factos necessários, pelo que o Tribunal “a quo” e o Tribunal “ad quem” não possuía, nem possui, os factos que lhe permitiriam ou permitem ponderar, verificar e apreciar a legalidade de tais vendas/resgates e, a final, decidir sobre a licitude das mesmas.
24. Acresce que, ponderado o teor dos factos provados conclui-se que inexistem factos provados relativos à legalidade das vendas/resgates, nomeadamente nos termos supra descritos, nomeadamente não se mostra provado valor do investimento à data das vendas, a cotação inicial e cotação dos instrumentos financeiros quando no entender do banco se verificaria a margin call ou a stop loss, no momento imediatamente anterior às vendas, nem dos mesmos resulta a demostração, aritmética, da relação da cobertura da garantia com a percentagem mínima do valor do financiamento, Integração factual no conceito de MC ou SL, que, nos termos contratuais, fundamentaria, validando, a venda uniliteral pelo Banco Recorrido, nem que garantia e por que valor se pretendia que o Recorrente efetuasse o reforço da garantia.
25. E não existem porque não foram alegados pelo Banco recorrido, sendo que tal insuficiência fatual já procede da violação do dever de informar, que deveria ser cumprido antes das vendas.
26. E, em rigor, nem sequer se mostra provado o conceito indeterminado - relação da cobertura dos instrumentos dados em garantia com a percentagem dos limites mínimos estabelecidos nos contratos de mútuo – dado que dos factos provados 113º a 118º resulta, quando muito, que o Banco Recorrido declara ter sido atingido tais limites, mas não que os mesmos foram efetivamente atingidos.
27. Acresce que percorrido o elenco dos factos provados nenhum outro facto provado se refere à verificação dos pressupostos contratuais e legais que fundamentariam a legalidade e licitude dessas vendas.
28. Importa notar que, em rigor, não se trata de uma situação de ineptidão da contestação, porquanto o vício (não alegação do facto), atento o direto à informação, remonta à fase extrajudicial, momento e omissão que o poder jurisdicional não pode, agora, intervir ou remediar.
29. Dos autos não resulta que nem nos dias que antecederam nem na data das vendas/resgates se verificasse, factualmente, uma situação (valor das cotações das unidades de participação de cada um dos vários instrumentos financeiros que o autor tinha) que integrasse uma situação de MC ou SL, nem factos provados existem que o demonstrem.
30. Atento tudo o exposto, a tese do Banco Recorrido nunca poderia proceder, nem o Tribunal “a quo” detinha os elementos de facto que lhe permitissem concluir pela legalidade das vendas,
31. Caso em que, como sobredito, na dúvida sobre a realidade de um facto, essa dúvida deveria ser resolvida contra o Banco Recorrido.
32. Consequentemente, deve este Tribunal “ad quem”, fundamentado na violação das regras do direito à informação, do ónus da prova e na insuficiência dos factos provados, declarar a ilegalidade das vendas, nos termos peticionados na p.i., o que se requer com todas as demais consequências legais.
I. Alteração da matéria de facto dada como provada
Nota Prévia – Do método e teor da fixação da matéria de facto
33. Sempre com o devido e elevado respeito pelo Tribunal “a quo”, nos termos do ordenamento processual Português, às partes cabe alegar os factos e ao Tribunal, nomeadamente como resultado da prova produzida em julgamento, cabe apurar quais dos factos alegados se provaram ou não (podendo ainda aditar factos, se entender adequado) e fixá-los na sentença.
34. Ou seja, o Tribunal tem de fixar os factos resultantes do julgamento, incluindo aqueles que, pese contrários à versão de uma das partes, nomeadamente à parte perdedora, resultam da prova, e só depois deve aplicar o direito e decidir.
35. Como resulta da p.i. e da contestação de fls., ambas as partes alegaram centenas de factos, o que se justifica pela longevidade e complexidade da matéria de facto.
36. Todavia, como resulta da leitura dos factos provados, da douta sentença, estes são constituídos, na sua esmagadora maioria, pelos factos alegados na contestação do Banco Recorrido (e quase nenhuns factos dos alegados na p.i., incluindo aqueles sobre os quais se produziu prova irrefutável).
37. Mais, o teor dos factos provados na sentença, são, na sua esmagadora maioria, quase ipsis verbis, correspondentes aos factos alegados na contestação (basta comparar a literalidade do teor da contestação com os factos provados).
38. Da matéria de facto fixada parece resultar, pelo menos na aparência, que o Tribunal “a quo”, produzida e ponderada a prova, optou por uma das versões em confronto (no caso credibilizou a versão e os factos alegados pelo Banco Recorrido) e, efetuada este livre e discricionária opção, optou por dar como provados quase só os factos alegados pelo Banco Recorrido, ignorando praticamente todos os factos alegados na p.i.
39. Certo é que, metodicamente, a fixação da matéria de facto deve anteceder a aplicação do direito e o sentido da decisão jurisdicional, a favor de uma das partes, não pode excluir, da matéria de facto fixada, os factos alegados pela parte perdedora, até porque existe uma segunda instância de apreciação.
40. O que justifica o número de factos cuja alteração se requer.
Nota Prévia – Da prova produzida e da respetiva credibilidade
41. Como resulta dos autos, a prova produzida foi documental e testemunhal.
42. Atento o teor dos depoimentos, são especialmente relevantes o depoimento da testemunha BB, gestor do Banco Recorrido e do Recorrente, e as declarações de parte do Recorrente.
43. E compreende-se que assim seja, porquanto o referido gestor era o representante do Banco Recorrido, era só com ele que o Recorrente falava, acrescendo que, como intermediário financeiro, o comportamento desse gestor poderia gerar responsabilidades pessoais (vide, nomeadamente, art.304º, nº5 e 304º-A do CVM).
44. Neste sentido, exigia-se ao Tribunal uma igual equidistância em relação ao teor e valorização desses dois depoimentos.
45. Desde logo atento o princípio da igualdade das partes, previsto nomeadamente, no art.º 4º do CPC, e dado que estamos perante um caso de relação de confiança, em que no essencial se encontram sempre apenas duas pessoas, e sendo certo que o Recorrente é parte interessada, não é menos certo, que o a testemunha/gestor BB era para o Recorrente o Banco Recorrido,
46. Sendo, no presente caso, a testemunha BB, além de ser o verdadeiro representante do Banco Recorrido (desde logo porque tinha poderes para, em nome do Banco Recorrido, negociar e celebrar os contratos em apreço nos autos),
47. Acresce essa testemunha é também interessado no desfecho do “litígio”, por força da sua responsabilidade prevista no CVM (nomeadamente, (vide art.304º, nº5 e 304º-A do CVM) e nas regras do banco,
48. Assim, a qualidade formal de testemunha (da testemunha BB) não lhe confere, só por si, a credibilidade de uma qualquer vulgar testemunha, sendo que tal entendimento cria uma grande desigualdade de forças, uma grande desigualdade de armas, entre as partes litigantes,
49. Por isso, facilmente se conclui, que, o gestor de conta BB não é uma testemunha, na verdadeira aceção da palavra, mas sim, parte interessada, pelo que, o tribunal “a quo” não teve em consideração na sua análise dos factos, como deveria, os normativos supra expostos, que, na nossa modesta opinião, foram assim violados.
50. Acresce que o depoimento do referido BB, é pleno de omissões, inverdades e contradições, como adiante se enunciará.
51. Consequentemente e sem outra prova, não deve valorizar, como suficiente, o depoimento da testemunha BB ignorando as declarações de parte do Recorrente.
Pontos da Matéria de Facto dada como Provada e Incorretamente Julgados (art. 640º, nº 1, al. a))
52. O Tribunal “a quo” deu como provados os factos sob os nºs. 47, 50, 51, 52, 53, 54, 55, 56, 57, 58, 59, 62, 80, 84, 85, 92, 95, 98, 99, 100, 101, 102, 103, 104, 105, 106, 107, 108, 109, 110, 111, 112, 113 e suas alíneas a) a c), 114 e suas alíneas a) a c), 115 e suas alíneas a) e b), 116 e suas alíneas a) e b), e 117, 132, 134, 135, da douta sentença, cujo teor supra se transcreveu e que aqui se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos.
53. Todavia, tais factos, que se dão aqui por impugnados, deveriam ter sido julgados como não provados ou provados com as alterações que infra se requer.
54. Os factos supra referidos são muitíssimo relevantes pois, sendo dados como não provados e conjugados com os demais que consideramos aqui no presente recurso que deveriam ter sido dados como provados, com a correta aplicação de direito, determinam a procedência do presente recurso e da ação.
Meios Probatórios dos Pontos da Alteração da Matéria de Facto Provada (art. 640º, nº 1, al. a))
55. Facto provado 47 – inexiste prova
56. Factos Provados nº 50, 51, 52, 53, 54 (este à exceção da parte final, referente a uma livrança em branco que foi subscrita e entregue pelo autor, e que por isso não se impugna), 55, 56, 57 e 58:
Prova documental: Docs. 3 ficha de abertura da conta, onde consta além da assinatura do Recorrente e confronto com assinatura de contratos juntos a fls., teor do requerimento entregue via citius, 13-03-2023,
57. Factos Provados nº 59, 95, 98 e 99: Prova documental docs. nº 29 a 33 da contestação do réu, onde está escrito, tal como em todos os outros, que o investimento resulta de proposta e iniciativa do banco; Declarações de parte - Depoimento de AA gravado em (01:06:50) a (01:14:35), (01:17:34) a (01:18:34); Prova Testemunhal - Depoimento de CC – Depoimento gravado em (00:10:20) a (00:10:25), (00:17:33) a (00:18:18), (00:22:57) a (00:23:54), de (00:18:47) a (00:20:00), de (00:23:39) a (00:25:01), Depoimento de BB: de (00:54:43) a (00:55:18), de (00:55:23) a (00:57:18), em (00:28:18) a (00:33:01 ), cujo teor se reproduz.
58. Do depoimento do BB, nomeadamente, deste último, extrai-se ou resulta então, que o Recorrente não percebia nada das margin call ou stop loss pois tudo denota que o autor não tinha a noção do funcionamento da noção financeira ou de mercado mobiliário das margin call e do stop loss.
59. Facto Provado nº 80 - Declarações de Parte: AA de (00:07:47) a (00:20:13); Prova testemunhal: CC, depoimento de (00:03:20) a (00:10:25), de (00:11:01) a (00:12:15), de (00:14:49) a (00:15:04), de (00:17:33) a (00:20:00), e também de (00:22:40) a (00::25:01), de (00:28:40) a (00:30:53), cujo teor se reproduz do qual resulta que o A., procurava e queria era proteção e segurança com o seu investimento.
60. Facto Provado nº 84 - Declarações de Parte: AA de (00:07:47) a (00:20:13); Prova testemunhal: CC, depoimento de (00:03:20) a (00:10:25), de (00:11:01) a (00:12:15), de (00:14:49) a (00:15:04), de (00:17:33) a (00:20:00), de (00:22:40) a (00::25:01), de (00:28:40) a (00:30:53); Depoimento de BB, em (00:56:30) a (00:57:20) e ainda em (02:48:15);
Depoimento de DD de (00:01:31) a (00:03:50), também de (00:18:15) a (00:23:33) de (00:34:43) a (00:35:31), (00:46:00), cujo teor se reproduz do qual resulta que o autor não estava familiarizado com este tipo de investimentos, e vivia sempre com uma grande intranquilidade, de stress, e insegurança e o que o A. procurava e queria era proteção e segurança com o seu dinheiro.
61. Facto Provado nº 85 - Prova documental: Docs. bancários, nomeadamente, os Multi-Ordem (exemplo, de fls.384), onde é referido em todos eles, na 1ª folha, iniciativa do banco, Declarações de Parte: AA de (00:28:30) a (00:39:52); Prova testemunhal: CC, depoimento de (00:03:20) a (00:10:25), de (00:11:01) a (00:12:15), de (00:14:49) a (00:15:04), de (00:17:33) a (00:20:00), de (00:22:40) a (00::25:01), de (00:28:40) a (00:30:53); Depoimento de BB, depoimento gravado, em (00:56:30) a (00:57:20), Depoimento de DD; de (00:01:31) a (00:03:50), também de (00:18:15) a (00:23:33) e ainda de (00:34:43) a (00:35:31) e (00:46:00), ),cujo teor se reproduz do qual resulta que a possibilidade manifestada em investir noutros produtos, não era da iniciativa do autor, mas da iniciativa do banco Recorrido e que este é que manifestava vontade.
62. Facto Provado 100 - Natureza Fiduciária da Relação de Intermediação; Declarações de parte Depoimento gravado de AA: (00:22:24) a (00:24:52) e ainda de (01:15:50) a (01:15:51) Prova Testemunhal Depoimento gravado de DD: de (00:01:18) a (00:02:43), cujo teor se reproduz. Além de nenhuma prova ter sido efetuada, este facto é irrelevante – um advogado não pode ser beneficiado ou prejudicada por essa qualidade.
63. Facto Provado nº 101 - Prova documental no período a que se refere o facto provado 59 e no que se refere o 121 da sentença, nos dias 31 de Março e 01 de Abril de 2020, e já até nos dias que antecederam estas datas, nomeadamente, 30, 29, 28, 27 e 26 de Março, os fundos de investimento do A., não se encontravam já em situação de margin call ou stop loss; Prova Testemunhal - Depoimento de BB de (02:24:49) a (02:24:53), cujo teor se reproduz do que resulta que não se verificou a queda acentuada do mercado em todo o mês de Março de 2020, mas apenas em alguns dos seus dias.
64. Facto Provado nº 102 - Prova documental; Prova Testemunhal - Depoimento de BB, de (02:24:49) a (02:24:53), cujo teor se reproduz, da qual resulta que nos dias 31 de Março e 01 de Abril de 2020, e já até nos dias que antecederam estas datas, nomeadamente, 30, 29, 28, 27 e 26 de Março, os fundos de investimento do A., não se encontravam em situação de margin call ou stop loss, pelo que, a parte que se pede aqui para ser retirada, para além de ser conclusiva e não factual, não se verificava nas datas aqui supra referidas.
65. Factos Provados 103, 104, 105, 106, 107, 108, 109 e 110 - Prova Documental - Doc. de fls. 74, email do autor, que não teve resposta, que está provado no ponto 139 factos provados da sentença; Declarações de parte Depoimento de AA, (00:04:00) a (00:20:13), de (00:33:50) a (00:38:01), de (01:06:57) a (01:14:02), de (01:13:35) a (01:14:02), de (01:17:03) a (01:30:01); Prova testemunhal - Depoimento de CC, de (00:10:20) a (00:10:25), (00:24:26) a (00:25:01), Depoimento de DD: de (00:26:29) a (00:42:46), Depoimento de BB, de (00:18:01) a (00:18:10) de (00:57:54) a (01:02:51) de (00:57:38) a (01:01:03), cujo teor se reproduz.
66. Desta prova pode-se concluir com segurança, que, não houve mais de 3 telefonemas, sem se saber exatamente as suas datas, que o gestor BB esteve retido em Ovar a partir de 17 de Março de 2020 até ao fim do confinamento geral decretado a nível nacional (factos do conhecimento público), designadamente, não podendo visitar os seus clientes.
67. Acresce que, contratualmente, este meio de prova – telefonema - não era admissível, porquanto o art. 327º do CVM, dispõe que as ordens dadas telefonicamente são registadas em suporte fonográfico, nos termos do artigo 307.º-B, (e logo também a recusa do alegado reforço de garantias) sendo que são ineficazes e nulas as ordens e comunicações sem esse requisito – gravação – se mostre cumprido.
68. Ora os telefonemas em causa não cumprem este requisito, nem o mesmo foi alegado pelo Banco, pelo que o teor dos telefonemas é irrelevante
69. Ou seja, não tendo sido gravadas as conversas em causa, o ónus de prova incumbia ao Banco, que não a cumpriu, pelo que o teor desses telefonemas não pode ser dado como provado, nem pode produzir qualquer efeito, nem pode ser valorado pelo Tribunal.
70. É que quanto ao teor das conversas telefónicas, só com a sua gravação seria possível apurar-se a verdade e fazer-se justiça, só assim se consegue ser justo, sobretudo por força e em nome da transparência, nomeadamente, por força do normativo acima já referido, nºs 2 e o seu nº 3, ambos do art.º 309 CVM,, por força do disposto no nº 2 do art.º 304º “ deve observar os ditames da boa fé, de acordo com elevados padrões de transparência, do CVM, mormente no que a este particular diz respeito, e por isso, só através da sua gravação é que seria e é seguro saber-se o que exatamente se passou, em cumprimento, por analogia, do disposto no art.º 327º, nº 2 do CVM (é sobretudo em nome da transparência que existe esta exigência legal), e que o Banco réu não gravou ou não juntou aos autos como era sua obrigação e deveria.
71. Acresce que, no presente caso, o banco estava devidamente salvaguardado, dado que, teria sempre por parte do autor, a garantia do seu grande património imobiliário, que conhecia e que resultou provado, e que, com as várias livranças em branco que o banco réu podia preencher e que tinha em sua posse, cada uma delas individualmente para cada mútuo e cada subscrição que foram feitas, que resultou também provado,
72. Provou-se assim, que o réu, à data da celebração dos mútuos, exigiu, e que resulta do conteúdo dos contratos, e dos factos provados, como Titulação Adicional ou garantia adicional do banco, em todos os mútuos que fez a assinatura do cliente Autor de uma (e várias) livrança em branco, tendo o autor assinado no total sete (7) livranças, uma livrança em branco para cada mútuo ou empréstimo, que ficou na posse do banco réu, permitindo assim ao banco o poder de em qualquer altura usar o direito de livremente as poder preencher colocando nelas o local que entender a data
que entender e a importância ou valor em euros que entender, com a data do seu vencimento que também entender, 73. Não tendo nem existindo qualquer limite, qualquer obstáculo ou qualquer impedimento, seja de que natureza for, nomeadamente, quanto ao montante ou valor em euros que nas livranças em branco ou por preencher o banco sempre podia ou tinha o poder de por sua livre vontade e com total liberdade fazer escrever (garantia que permitia ao banco garantir em qualquer momento para si um título de crédito de qualquer montante ou valor monetário em euros que podia usar contra o seu cliente caso este estivesse em dívida para consigo, podendo exigir deste o seu pagamento, conjugado com o facto de ser do seu pleno conhecimento, além do mais, o significativo património imobiliário do autor dado como provado no ponto 138 da matéria provada.
74. Facto Provado 111 – fundamentos aduzidos nas conclusões 68 a 76, cujo teor aqui se se reproduz, e Prova Documental - as livranças em branco na posse do réu (cf. ponto provado 29, 33, 40, 54) e o património imobiliário do autor (facto provado 138); Declarações de parte - Depoimento de AA, de (01:13:35) a (00:14:02), e ainda de (01:17:03) a (01:30:01); Prova Testemunhal - Depoimento gravado BB em (00:01:12) a (00:06:15), de (00:18:01) a (00:18:10) de (01:14:46) a (01:15:20), de (01:18:57) a (01:19:15) de (01:35:45) a (01:38:33), (02:05:30) a (02:06:39), de (02:16:15) a (02:16:33), de (02:18:57) a (02:21:51), Depoimento de DD: de (00:26:29) a (00:42:46), cujo teor se reproduz.
75. Do que resulta que a volatilidade do mercado financeiro é o normal, a incerteza é uma constante, o mercado está constantemente em oscilações ou variações, (veja-se o facto provado 13, da sentença) e que, perante uma queda, a seguir aparece uma subida, e a seguir à subida uma outra descida e é sempre assim, e o Banco como profissional sabe bem isso, perante uma situação de queda não poderia entrar em pânico, se entrou em pânico, como aconteceu, é porque a que sendo anormal ou extraordinária, não estava nem poderia estar prevista nos riscos próprios do contrato uma queda abruta, não era previsível, e portanto, entra na alteração posterior das circunstâncias com que as partes tomaram a decisão de contratar.
76. No presente caso, a queda abruta do mercado, não se deveu a razões de dificuldades das empresas, de falta de clientes, de falta de vendas por má qualidade dos seus produtos ou outras, de falta de trabalhadores, etc..., mas sim só e apenas, por uma questão de saúde pública, pandemia covid 19, que nada teve a ver com o funcionamento normal das empresas.
77. O banco, quando resgatou os fundos do autor, o mercado já estava a começar a recuperar, e as garantias dadas com o penhor desses fundos ao banco, naturalmente, também já estavam a aumentar com a subida, além de que, o banco tinha 7 livranças em branco, para cada mútuo e subscrição, e tinha do seu conhecimento o património do autor (facto provado 138), de valor muito superior a € 300.000,00, e a garantia que o banco diz que era suficiente para não vender, para além de dizer que poderia ser qualquer garantia do autor (então já tinha as 7 letras e o património do autor), não o tendo dito nunca ao autor, é que, €15.000, ou €20.000,00, seria o suficiente.
78. O que é manifestamente desproporcional, à venda/resgate, que causou ao autor um prejuízo de cerca de €110.000,00.
79. Se o banco tivesse informado o autor desse valor (art.7º CVM), é evidente que, entre um prejuízo tão elevado e a pequena garantia adicional de € 15.000,00, o autor teria sempre optado por esta última, como nos parece óbvio, e resulta das regras de experiência de vida.
80. A exigência de uma garantia adicional por parte do banco tem que ter razão de ser, tem de ter razoabilidade, tem de fazer sentido, tem de ser vista caso a caso e com alguma ponderação e não com precipitação, muito menos com pânico, não é isto que se espera ou se exige de um intermediário financeiro, de um profissional, e tem de ser provado através de gravação das conversas, em nome da transparência exigida pelo CVM. A boa fé, assim o impõe, e o CVM assim o exige.
81. A nosso ver, as livranças em branco conjuntamente com o património conhecido do A, vale e muito, e era o suficiente, mais que suficiente, para não prejudicar o investidor, para garantir e evitar maiores perdas para o investidor, a tal preocupação que o réu deveria ter do seu cliente investidor, expressa nos docs, nomeadamente, doc. 14 junto com a contestação, e que consta da matéria de facto provada, nomeadamente, no facto provado 42, para onde se remete V.ªs Ex.ªs, a que se refere os artigos 56º e 157º da contestação do réu Banco 1..., que aqui se transcreve essa parte, a saber: “ (...), para evitar maiores perdas para o investidor”
82. É este o espírito e o que resulta do CVM e outras normas europeias, para proteção do investidor. O que está expressamente escrito no contrato, e dado como provado, precisamente para proteção do investidor, neste caso, o autor, é, para evitar maiores perdas para o investidor.
83. À data em que o banco réu deu a ordem dos resgates dos fundos/instrumentos financeiros do autor, já o valor destes fundos estava em recuperação, já não se encontravam em situação de margin call ou stop loss, e logo a seguir continuaram a aumentar e até bastante como disse em audiência o gestor BB.
84. Portanto, não fez nem fazia já qualquer sentido os resgates, que não fosse causar uma grande perda ao investidor, aqui recorrente, como veio a suceder, fruto de um pânico desmedido e de uma precipitação incompreensível para um profissional como é o intermediário financeiro banco réu.
85. O banco Recorrido devia ter pautado a sua conduta, agindo com os elevados padrões de diligência a que se refere o CVM, mas nem sequer agiu com suficientes padrões de diligência, agiu com maus padrões de diligência,
86. Do supra, resulta, além do mais, que, a cláusula que prevê uma garantia adicional nas circunstâncias supra expostas, vai manifestamente além do que são as garantias razoáveis que podem ser exigidas pelo credor em nome de um principio de tutela da confiança, pondo em causa o equilíbrio de interesses das partes contratantes, sendo excessiva, desproporcionada e desequilibrada e por isso contrária à boa-fé.
87. Daí, a invocação, além do mais, da nulidade da cláusula em questão, pois tratando-se de uma clausula contratual geral, tendo sido unilateralmente redigida pelo banco réu, sem que tenha sido objeto de prévia negociação contratual, encontra-se abrangida pelo regime do DL 446/85, cláusula que viola o art.º 15º do mesmo diploma legal, por ser contrária á boa fé.
88. Deve por isso, o facto expresso no art.º 111 da matéria provada, ser dado como não provado, quer porque à data dos resgates 31-03-2020 e 01-04-2020 e entre as suas datas, e até antes, os fundos resgatados já não estavam em margin call e stop loss, e o mercado já estava a recuperar, e os resgates dos fundos não era a única forma de o banco proceder, aliás, foi a pior forma do banco proceder, tinha como supra referido outras e melhores alternativas que tivessem em vista também o interesse do cliente investidor e lhe evitasse as perdas que lhe causou com os resgates, que aqui o autor foi por isso obrigado a peticionar.
89. Factos Provados 112, 113 e suas alíneas a) a c), 114 e suas alíneas a) a c), 115 e suas alíneas a) e b), 116 e suas alíneas a) e b), e 117 e 118 - Prova Documental Doc. de fls. 74, email do autor, que não teve resposta, que está provado no ponto 139 factos provados da sentença; Declarações de parte Depoimento de AA, de (01:13:35) a (00:14:02), e ainda de (01:17:03) a (01:30:01); Prova Testemunhal - Depoimento de BB, de (00:33:48) a (00:33:51), sendo que este depoimento resulta que o gestor BB o, não pediu garantias ao autor, desde logo, por não fazer sentido, até porque se fosse qualquer garantia, essa o banco já tinha, 7 livranças e branco e património imobiliário do autor (cf. matéria provada), depois e ainda, de (00:57:38) a (01:03:38), e de (01:12:45) a (01:13:06), e também de (01:14:46) a (01:15:20), de (01:18:57) a (01:19:15), também gravação de (02:16:15) a (02:16:33), e ainda de (02:18:57) a (02:21:51), e ainda de (02:22:43) a (02:24:19), em que o gestor confessa que não soube de cartas enviadas pelo réu ao autor e por isso também não falou sobre isso ao autor; Depoimento de DD: de (00:26:29) a (00:42:46), cujo teor se reproduz.
90. Atenta a prova produzida (e inexiste outra) apenas ficou provado que as cartas aí referidas foram remetidas pelo banco, mas não se pode dar como provado que foram recebidas pelo autor.
91. O autor impugnou a receção das cartas, nomeadamente, no seu requerimento de resposta aos documentos juntos com a contestação, arts. 10 a 10.9, enviado aos autos por citius em 21-02-2022.
92. Em qualquer caso, não existe prova sequer, do envio destas cartas, pois, tendo sido impugnadas, nenhuma testemunha o confirmou, pelo contrário, disseram desconhecer se tinham sido ou não enviadas, nomeadamente, o gestor do Autor BB.
93. Segundo a teoria da receção, a prova de que as cartas foram recebidas, e de que a comunicação foi realizada, só poderá ser feita, ou através de aviso de receção, devidamente assinado, ou, nos termos do nº 2 do art.º 364º do CC.
94. Ou seja, a comunicação, para ser perfeita, compreende obviamente, a receção da mensagem, e o aviso de receção é a forma de tornar segura a prova sobre o recebimento das cartas, só a confissão expressa estaria em condições substantivas de substituir o aviso de receção, enquanto conhecimento ficto da comunicação efetuada. O que nem uma coisa nem outra sucedeu no presente caso. O Autor nega a sua receção, sendo que incumbia ao Banco a prova do envio e do dia da receção pelo Autor,
95. Reitera-se sobre o que acima se disse, sobre a insuficiência factual do teor dessas cartas, nomeadamente, quanto à falta de cumprimento do dever de informar, designadamente, a omissão de indicação do valor do investimento em causa, das unidades de participação dos fundos de investimento em causa, dos valores das cotações das unidades de participação no mercado, e a referencia ao dia e hora da cotação, e consequente demonstração de que tais factos, integravam o conceito de margin call ou stop loss e da indicação do valor concreto de reforço de garantia pretendido.
96. Estes factos apenas provam que nas cartas o Banco declara que existia situação de margin call e stop loss - facto conclusivo. Aliás, não existe nenhum facto, nos factos provados, que consigne, que nas datas das supostas comunicações e vendas se verificavam de facto as circunstâncias de facto que permitissem concluir pela existência de margin call ou stop loss.
97. Atento o teor dessas cartas conclui-se que em nenhuma o Banco diz qual é exatamente (numericamente) a margim call ou stop loss, nem sequer quais as garantias pretendidas.
98. No espírito da norma e da Margin Call, que, repete-se exige pedido, prévio à venda, de reforço de garantias, está ínsito que o Banco terá de concretizar o tipo de reforço pretendido, o valor e condições.
99. Não existindo tais informações (atualizadas e completas) dever de informação CVM) o Autor não podia sequer, ainda que o pretendesse fazer, aceder á pretensão do Banco, sendo ilegal a invocação da Margin Call ou Stop Loss.
100. Mais, o Banco, como o gestor BB admitiu, sabia que o Autor estava em Vila Real, confinado, e não podia receber as cartas em ..., nomeadamente não as receberia antes das vendas/resgates, assim sendo cerceada a possibilidade de prestar garantias adicionais.
101. Em qualquer caso, existe um claro incumprimento contratual do Banco quanto ao meio das comunicações (cartas) em causa, porquanto, como resulta dos contratos juntos aos autos, as comunicações, para serem válidas e eficazes tinham de ser remetidas e recebidas, pelo Banco ao Recorrente, por carta registada com aviso de AR, (B... - Capital próprio do Recorrente (a venda depende apenas da decisão do cliente); A... - Clª 24.1. (doc. 14 contestação) e Clª 28.1. (doc. 15 contestação); C... - Clª 24.1. (doc. 18), sendo de 30.000,00 era capital próprio (a venda depende apenas da decisão do cliente); Contrato de Mútuo (doc. 27 contestação) e Contrato de penhor (doc. 28 contestação) clª 12.3.).
102.Quanto aos instrumentos financeiros de investimento, existem investimentos com capital próprio e exclusivo do Recorrente, nos quais a venda depende apenas da decisão do cliente, e nos demais está convencionada uma obrigação clara de comunicação por carta registada com AR, que se mostra violada.
103.Quanto aos mútuos e penhor a necessidade de registo e AR resulta da interpretação da cláusula 11ª do penhor- comunicações, onde se refere que tal é obrigatório quando exista essa obrigação nos contratos conexos e dados ao penhor (“salvo disposição legal ou contratual em contrário” – sendo que, como acima visto) existe disposição contratual em contrário, nos contratos de investimento que, como indicado, exigem comunicação por escrito com AR.
104.Mais, ninguém, nomeadamente o homem médio, e considerando as obrigações previstas no CVM, pode achar normal que estando em causa € 420.000,00 se baste uma comunicação por carta simples sem garantia do respetivo recebimento pelo afetado – cliente e investidor.
105.Acresce que o procedimento comunicacional adotado pelo Banco Recorrido, viola frontalmente o espírito da Margin Call e Stop Loss, por não terem comunicado a MC e SL e o necessário reforço de garantias ao investidor,
106. Assim, por incumprimento contratual, AS VENDAS SÃO ILEGAIS E VIOLAM O CONTRATADO, o que deve ser reconhecido e declarado pelo Tribunal com todas as consequências legais. Decisão a proferir sobre os Pontos da Alteração da Matéria de Facto Provada (art. 640º, nº 1, al.c).
107. Pelo exposto, ponderados os referidos depoimentos e toda a demais prova carreada para os autos, deve este Tribunal “ad quem” alterar a decisão do Tribunal “a quo”, devendo, nos termos supra requeridos, julgar não provados os factos dados como provados sob os 47, 50, 51, 52, 53, 54, 55, 56, 57, 58, 59, 62, 80, 84, 85, 92, 95, 98, 99, 100, 101, 102, 103, 104, 105, 106, 107, 108, 109, 110, 111, 112, 113 e suas alíneas a) a c), 114 e suas alíneas a) a c), 115 e suas alíneas a) e b), 116 e suas alíneas a) e b), e 117, 118, 132, 134, 135, 136,
a) Alterar a redação dos factos provados 80, 85,100,101 e 102, dando-lhes a seguinte redação:
80 - Após a venda do produto D..., o Autor contactou o gestor CC para saber a oferta de produtos financeiros que o banco tinha e de todos os que lhe foram apresentados, o Autor optou pelo fundo E..., que ia ao encontro do pretendido pelo Autor que procurava obter um rendimento mensal, sendo que o o autor procurava nessa mudança era tranquilidade, proteção e segurança do seu dinheiro procurava menos risco
85 - Na reunião de Fevereiro de 2018, o gestor BB, aconselhou o Autor a investir noutros produtos financeiros, mas sem utilizar os investimentos em curso ou canalizar capitais próprios para o efeito, esclareceu-o que para investimentos com recurso a financiamento ou alavancagem (não “co-investimento”), isto é, com recurso a financiamento do banco, seria necessário avaliar em concreto a sua situação financeira, reunindo para o efeito informações de carácter pessoal, como por exemplo a idade do investidor, número de dependentes a cargo, capacidade de poupança, património total, nível de endividamento, entre outros.
100 - O A é advogado.
101 - Em Março de 2020, viveram-se tempos de grande instabilidade (generalizada) decorrente do inicio da pandemia, intensificada com o período inicial de confinamento por tempo incerto, e que se refletiu de forma acentuada nos mercados em alguns dias de Março de 2020, não sendo certo quais seriam as consequências desta instabilidade. - facto público e notório-
102 – Com a pandemia instalada, começou a assistir-se a uma queda acentuada dos mercados, e devido à queda abrupta de todos os ativos financeiros.
II. Alteração da matéria de facto expressamente dada como não provada
Pontos da Matéria de Facto dada como não provada Incorretamente Julgados (art. 640º, nº 1, al.a))
108. O Tribunal “a quo” deu como não provados os factos constantes das alíneas, H, P, R, V, X, Y, da douta sentença, todavia tais factos devem ser dados como provados.
Meios Probatórios dos Pontos da Alteração da Matéria de Facto Não Provada (art. 640º, nº 1, al.a)).
109. Facto Não Provado Alínea H - Prova documental cf. doc. nº 27, doc. nºs 32, 33 e 34,35, 36, 37, doc. nº 38 - avisos de lançamento créditos, datado de 12.04.2019., dado que resulta evidente do teor dos documentos supra, que o Banco Réu procedeu unilateralmente e sem a devida formalização e/ou conhecimento ou consentimento do Autor, à alteração dos créditos descritos no supra art. 61º e segs da petição inicial, conforme por si alegado nos arts. 67 a 67.4, da p.i., e o banco réu não fez qualquer prova em contrário.
110.Face ao exposto, deve o facto dado como provado o facto da alínea H, com a seguinte redação:
H - O Banco unilateralmente alterou os montantes dos mútuos e os investimentos efetuados pelo A, no que respeita aos contratos de mútuo da quantia de € 20.000,00 e de 80.000,00, referidos nos docs. 27,33,34, 35, 36 e 37, juntos com a p.i.;
111.Facto Não Provado Alínea P - Por razões de brevidade processual, dá-se aqui por reproduzido o teor as conclusões 92 a 108, incluindo argumentação e meios de prova aí referidos, sendo que por tais fundamentos, deve ser dado como provado, que o Autor não recebeu essas cartas.
112.Face ao exposto, deve o facto dado como provado o facto da alínea P, com a seguinte redação:
P - O A não recebeu na morada registada no banco as cartas por este remetidas e referidas nos factos provados 113 a 118.
113.Facto Não Provado Alínea R - Não se compreende como tal facto foi dado como não provado, porquanto a prova produzida é claramente oposta - Prova Documental - Todos os documentos dos bancos, os Multi-Ordem e os das subscrições de fls., referem que o local das reuniões era no escritório do Autor; Declarações de parte De AA: de (00:39:47) a (00:39:54), ainda de (00:40:19) a (00:42:30), e também de (00:52:33) a (00:52:42) a (00:55:17); Prova Testemunhal Depoimento de BB: de (00:14:31) a (00:14:38) e ainda em (00:50:25), que reconhece que se reuniu com o Recorrente sempre no escritório deste, Depoimento de DD: de (00:01:31) a (00:08:34), cujo teor se reproduz e de onde resulta a prova do facto.
114.Face ao exposto, deve o facto dado como provado o facto da alínea R, com a seguinte redação:
R -O gestor do R, BB, deslocava-se ao escritório do Autor recorrentemente e sem marcação prévia;
115.Facto Não Provado Alínea V – Prova documental email enviado pelo autor junto como doc. 74 da p.i. e carta enviada pelo A. ao réu, doc. 75, e dados como provados no ponto 139 da sentença, e que nem um nem outro tiveram resposta; Das declarações de parte do Autor: Depoimento de AA: de (00:47:01), e também de (00:53:43) a (00:53:48) e ainda de (01:17:03) a (01:30:01); Prova Testemunhal: Depoimento de EE: de (00:09:10) a (00:12:14), Depoimento de DD: de (00:26:29) a (00:36:28) e ainda de (00:38:50) a (00:39:29), Depoimento de FF: de (00:02:19) a (00:06:54), Depoimento de GG: de (00:02:06) a (00:06:23), cujo teor se reproduz e de onde resulta a prova do facto.
116.Importa ainda corrigir o lapso de escrita na data, uma vez que o Autor tomou conhecimento dos resgates dos fundos apenas em 24 de Abril de 2020,
117. Face ao exposto, deve o facto dado como não provado sob a alínea V, ser agora dado como provado, com a seguinte redação: V – O A, desde 24 de Abril de 2020, sente-se profundamente enganado, profundamente deprimido por ter perdido as quantias em causa nos autos, que muita falta lhe fazem;118.Facto Não Provado Alínea X -Não se compreende como tal facto foi dado como não provado, porquanto a prova produzida é claramente oposta e tal facto é confessado na contestação do Banco Recorrido (vide art. 146 e segs da contestação do Banco 1... – tempos inéditos e extraordinários, - quebra abrupta mercados). - Prova Testemunhal: Depoimento de CC: de (00:21:23) a (00:21:57), Depoimento de BB: em (00:29:24) e ainda de (00:32:28) a (00:33:01) e também de (00:57:38) a (01:01:03), Depoimento de HH: de (00:03:03) a (00:07:06) e ainda de (00:07:37) a (00:09:09)
119.Como resulta do depoimento das testemunhas que trabalham no banco réu, o banco réu, através das pessoas que nele trabalham, aquando dos resgates dos fundos do A., entrou em pânico, em irracionalidade, tendo por força disso resgatado os fundos de investimento do A., causando-lhe o prejuízo que aqui se peticiona.
120.Face ao exposto, deve o facto dado como não provado sob a alínea X, ser agora dado como provado, com a seguinte redação: X – O que motivou o resgate dos fundos por parte do Banco R foi o pânico de perder os montantes emprestados ao A;
121.Facto Não Provado Alínea Y - Tal facto deve ser provado -Prova documental - As cotações a que se refere a sentença, caso este tribunal as considere, dado que estes docs foram impugnados, e não foi feita sobre eles nenhuma prova pelo réu, como já aqui referido; Prova Testemunhal - Depoimento de BB de (02:24:49) a (02:24:53).
122.Pelo que, nomeadamente, por força da prova testemunhal, dado que a documental foi impugnada, o mercado começou a subir, e até já antes da ordem do réu para efetuar os resgates dos fundos do A. (não existindo já em 31/03 e 01/04 nenhum dos fundos em situações de margin call e stop loss), contra a vontade deste, e em Junho de 2020, os fundos já tinham recuperado e estavam ao nível de fevereiro de 2020, confirmando-se assim a normal volatilidade do mercado, e a irracionalidade do pânico e da decisão dos resgastes por parte do intermediário réu.
123.Face ao exposto, deve o facto dado como não provado sob a alínea X, ser agora dado como provado, com a seguinte redação: Y – Em Junho de 2020 os fundos já tinham recuperado e estavam ao nível de fevereiro de 2020; Decisão a Proferir sobre os Pontos da Matéria de Facto Não Provada (art. 640º, nº 1, al. c))
124.Pelo exposto, ponderados os referidos depoimentos e toda a demais prova carreada para os autos, deve este Tribunal “ad quem” alterar a decisão do Tribunal “a quo”, devendo, nos termos supra requeridos, julgar como provados os factos dados como não provados sob as alíneas, H, P, R, V, X, Y, da douta sentença, nos termos das conclusões antecedentes.
II. Alteração da matéria de facto alegada na PI e genericamente dada como não provada
125.O Recorrente alegou na sua petição inicial diversos factos, que são integráveis na matéria constante do despacho saneador, nomeadamente na matéria controvertida, e são muito relevantes para a descoberta da verdade material. Sobre estes factos o Tribunal “a quo” não se pronunciou diretamente, dando-os como não provados genericamente.
126.Entende o Recorrente que haverá que proceder à alteração da matéria de facto dada como não provada e omissa da sentença que deveria ser dada como provada.
Pontos da Matéria de Facto dada como Não Provada, mas alegada na PI – Incorretamente Julgados (art. 640º, nº 1, al. a))
127.Entende o recorrente que os factos alegados nos arts. 68, 76, 82, 83, 85, 87, 89, 104 a 108, 114, 171, 173, 174, 120, 121, 124, 122, 129, 125, 130, 131, 132, 134, 139, 167, 179, 209, 211, 226, 231, 232, 233, 234, 236, 252, 253, e 257 da petição inicial, deveriam ter sido julgados como provados.
128.4.2. Meios Probatórios dos Pontos da Alteração da Matéria de Facto Não Provada mas alegada na PI (art. 640º, nº 1, al. a))
129.Facto alegado no Art. 68 da p.i. Prova documental - Todos os docs. das subscrições e mútuos celebrados com o Banco 2... e Banco 1... (nomeadamente, Docs. nºs 27 a 35, do banco, designadamente cláusulas 28.1. e 24, juntos com a petição inicial, Docs. nº 13 e 16, juntos com a contestação do Banco 1..., da subscrição do fundo A..., onde no contrato de mútuo, na clausula 2.4 e 2.4.1,(doc. 13) e no doc. 16, no contrato de mútuo, na clausula 2.8 e 2.8.1, as comunicações pelo banco ao cliente autor, devem ser efetuadas por escrito com carta registada com aviso de receção, Docs. nº 17 e 18 juntos com a contestação do Banco 1... da subscrição do fundo C..., e contrato de mútuo, neste na clausula 2.4 e 2.4.1, as comunicações pelo banco ao cliente autor, devem ser efetuadas por escrito com carta registada com aviso de receção.
130.Deve o facto alegado no art. 68 da p.i., ser dado como provado, sugerindo-se a seguinte redação: “Nos termos dos contratos de fls., todas as comunicações entre as partes relativamente aos contratos devem ser efetuadas por escrito, mediante carta registada com aviso de receção ou telefax, e dirigidas para os seguintes endereços e postos de receção indicadas nas Condições Particulares.”
131.Facto alegado no Art. 76 da p.i. - Prova documental: Todos os contratos de subscrição dos fundos de investimento e dos mútuos e penhores, dos bancos juntos aos autos a fls., nomeadamente, de fls. 411, 415 a 419, nomeadamente, onde diz, proposta e iniciativa do banco, que são contratos tipo ou de adesão; Declarações de parte AA: de (00:37:12) a (00:38:01).
Prova testemunhal - Depoimento gravado CC: de (00:01:39) a (00:03:11), e ainda de (00:03:20) a (00:07:52), e ainda de (00:10:20) a (00:10:25), e de (00:14:19) a (00:20:00),e ainda de (00:22:57) a (00:23:54) e ainda e também de (00:24:26) a (00:25:01) e igualmente de (00:26:37) a (00:29:09), e também de (00:29:17) a (00:30:53), Depoimento gravado BB em (00:01:12) a (00:06:15), e ainda de (00:18:01) a (00:18:10) e ainda, e também de (01:14:46) a (01:15:20), de (01:18:57) a (01:19:15) e também de (01:35:45) a (01:38:33) em que o gestor apresentava os investimentos com conforto por forma que o A. os subscrevesse, e ainda de (01:24:18) a (01:24:30).
132.Atenta a prova transcrita, a confissão do gestor BB e o teor documental, não se percebe como este facto não foi dado como provado, o qual é muito relevante para a descoberta da verdade e boa decisão da causa.
133.Deve o facto alegado no art. 76 da p.i., ser dado como provado, sugerindo-se a seguinte redação: “Toda a iniciativa, montagem, estratégia e formalização de todas as operações, nomeadamente quanto ao conteúdo dos contratos (sempre pré-preenchidos pelo Banco Réu), foi da exclusiva responsabilidade do Banco Réu, assim tal formalização contratual configurando-se como contratos de adesão, cujo teor não era, nem nunca foi, negociável pelo e com o Autor.”
134.Facto alegado no Art. 82 da p.i. - Prova documental docs. 52 e 53 juntos com a p.i., Depoimento de Parte AA (Depoimento gravado em (01:02:00) a (01:02:18), Depoimento gravado BB em (00:01:12) a (00:06:15), e ainda de (00:18:01) a (00:18:10) e ainda, e também de (01:14:46) a (01:15:20), de (01:18:57) a (01:19:15) e também de (01:35:45) a (01:38:33)
135.Deve com base na prova indicada, o facto alegado no art. 82º da p.i., ser dado como provado, sugerindo-se a seguinte redação: Com venda do Banco 2... ao réu Banco 1..., o Autor manteve todos os empréstimos e todas as aplicações/fundos de investimento que tinha no Banco Réu, dado que o gestor BB lhe prometeu que tudo ficaria e continuaria igual depois da transição para o ..., incluindo que o próprio gestor transitaria, como transitou, para o Banco 1..., o que foi pressuposto para manutenção do Autor como cliente do Banco Réu.
136.Facto alegado no Art. 83 da p.i. - Prova documental docs. 52 e 53 juntos com a p.i., Declaração de parte AA (Depoimento gravado em (01:02:00) a (01:02:18)
137.Deve o facto alegado no art. 83º da p.i., ser dado como provado, sugerindo-se a seguinte redação: O Banco Réu, nomeadamente através do referido gestor, assegurou ao Autor que, além do mais, se manteriam inalteráveis todos os produtos de crédito e as respetivas condições que tinha contratado com o Banco 2..., os quais transitavam para o Banco 1..., sem necessidade de intervenção do Autor, e sem qualquer alteração, incluindo as datas de pagamento das prestações.
138.Facto alegado no Art. 85 da p.i. - Prova documental docs., 17 (Perfil de risco: Moderado e Muito Conservador) e 54 juntos com a p.i., e 21 da contestação do réu, fls. 384; Declarações de parte AA Depoimento gravado em (00:20:10) a (00:25:13) e ainda de (00:52:42) a (00:53:07); Prova
Testemunhal- BB Depoimento gravado em (00:14:31 a (00:14:38) e ainda (01:35:05) a (01:38:33), e também de (01:14:46) a (01:15:38); DD Depoimento gravado em (00:01:18) a (00:08:34) e ainda de (00:18:15) a (00.23:33).
139.Deve o facto alegado no art. 85 da p.i., ser dado como provado, sugerindo-se a seguinte redação: “O gestor BB aparecia no escritório do Autor em Matosinhos com regularidade, sempre tentando convencer o Autor a realizar novos investimentos, sempre apresentando nova sugestões ou ofertas do Banco Réu, sempre alegando que tais propostas se destinavam a melhorar a sua carteira de investimento, sempre com o pressuposto de que o Autor era um investidor moderado e com investimentos de baixo risco e boa rentabilidade.”
140.Facto alegado no Art. 87 da p.i. - Declarações de parte AA (00:11:41 a 00:11:44) e facto provado 13 da sentença, Testemunhal BB (Depoimento gravado em (00:18:01) a (00:18:10)
141.Deve o facto alegado no art. 87 da p.i., ser dado como provado, sugerindo-se a seguinte redação: “O gestor BB, dizia ao Autor que este tipo de investimento são escolhidos pelo Banco Réu e que eram e têm que ser pensados para serem vistos a médio/longo prazo, momento em que a rentabilidade é muito maior e que não se tratavam de investimentos para se adquirir e vender pouco tempo depois, pois tal procedimento não compensava.”
142.Facto alegado no Art. 88 da p.i. - Prova documental docs. 54 junto com a p.i. e 21 da contestação do réu, fls. 384., Declarações de parte AA (Depoimento gravado em (00:53:22) a (01:01:19) e ainda em (01:04:02) a (01:05:50), Testemunhal BB (Depoimento gravado em (00:14:31 a (00:14:38)
143.Deve o facto alegado no art. 88, da p.i, ser dado como provado, sugerindo-se a seguinte redação: “O gestor BB dizia ao Autor, que ser o Banco Réu a escolher o investimento conferia ao investimento uma garantia de rendimento, solvabilidade e proteção do investidor, assim beneficiando o Autor, porquanto tais opções estratégicas de investimento eram efetuadas por gestores do Banco Réu muito competentes e profissionais, que escolhiam investimentos diversificados e em empresas internacionais credíveis, e em fundos que já estavam estruturados por bons gestores de fundo desde o seu inicio, para que, quando o mercado caísse se poderem proteger e poderem aguentar a crise.
144.Facto alegado no art. 89º da p.i. - Prova documental docs. 54, 55, 57 junto com a p.i. e 21 da contestação do réu, fls. 384., Artigos 96, 144, 144.1 a 144.4, 145 e 156 (teor infra) todos da petição inicial (a págs. 21,31,32 e 35), docs. nºs 66 e 67, talões do Banco 1... de Liquidação Operação datados de 04-11-2021, e docs nºs 64 a 66;
145.Deve o facto alegado no art. 89, da p.i, ser dado como provado, sugerindo-se a seguinte redação: Em outubro de 2019, o Banco 1..., através do gestor do Autor BB, escolheu os instrumentos financeiros/valores mobiliários onde seriam investidos esses € 200.000,00, tendo definido que esses investimentos seriam, obrigatoriamente e sem possibilidade de alteração pelo Autor.
146.Facto alegado no art. 104º a 108º da p.i. - Prova documental docs. nº 29 a 33 da contestação do réu, Declarações de parte AA, Depoimento gravado em (01:06:50) a (01:14:35), Testemunhal CC - Depoimento gravado em (00:10:20) a (00:10:25 ) e ainda (00:17:33) a (00:18:18) e de (00:18:47) a (00:20:00), e também de (00:23:39) a (00:25:01), BB - Depoimento gravado em (00:28:18) a (00:33:01 )
147.Deve o facto alegado no art. 104º a 108., da p.i, ser dado como provado, sugerindo-se as seguintes redações:
a) Em finais de fevereiro de 2020, o gestor BB, contactou telefonicamente o Autor, pedindo-lhe nova reunião no seu escritório, como sempre o fazia, informando-o que o mercad0 estava a baixar e era agora uma boa oportunidade para o Autor investir, dizendo-lhe que o caso Covid- 19 (que já afetava gravemente a China e a Europa), era como a gripe das aves e/ou a gripe A (ou seja, era apenas de um susto) e que a situação do covid-19 estava a fazer baixar o mercado, mas o mesmo em breve haveria de subir e assim iria beneficiar com a compra em baixa, com todos estes argumentos tentando convencer o Autor a não ter receio e a investir,
b) Que os produtos do banco que nunca são para se vender passados poucos anos mas são investimentos para se pensar a médio/longo prazo, no mínimo mantê-los cerca de 4/5 anos, para poder rentabilizar o investimento na aquisição ou entrada para os fundos, através do recebimento dos seus rendimentos que eles sempre iam pagando ao longo dos meses e dos anos.
148.Facto alegado no art. 114.4, da p.i., e ainda dos arts. 171, 173, e 174 da p.i. - Prova documental Docs. 76, 77 e 78 juntos com a p.i., a fls. 122 e segs., Testemunhal DD (Depoimento gravado em (00:25:09) a (00:26:13)
149.Devem os factos alegados 114.4, da p.i., e ainda dos arts. 171, 173, e 174 da p.i sugerindo-se a seguinte redação: O Banco réu nunca entregou ao Autor toda a documentação.
150.Facto alegado no art. 120º da p.i. facto notório e do conhecimento público, que os residentes do concelho de Ovar durante um mês, de 17 de Março até 17 de abril de 2020, e o confinamento geral, decretado para todo o país, no âmbito do Estado de Emergência, desde 19 de Março até meados de junho de 2020; Declarações de parte Depoimento de AA, de (01:14:36) a (01:15:48); Testemunha Depoimento de BB, em (00:33:17)
151.Deve o facto, alegado no art. 120, da p.i, ser dado como provado, sugerindo-se a seguinte redação: Desde 17 de março de 2020 e até meados de junho de 2020, o gestor do Autor BB teve de estar fechado em casa, em Ovar, sem poder sair para trabalhar, sem poder contatar clientes, situação que se manteve durante o confinamento geral, decretado para todo o país, no âmbito do Estado de Emergência, que se prolongou precisamente até meados de junho de 2020.
152.Facto alegado no art. 121º da p.i.- facto notório e do conhecimento público, confinamento geral, decretado para todo o país, no âmbito do Estado de Emergência, desde 19 de Março até meados de junho de 2020, em que as pessoas obrigatoriamente não podiam se deslocar do concelho onde estivessem, sendo aconselhadas a permanecer em casa; Declarações de parte de AA, de
(01:15:50) a (01:16:28), Testemunhal - Depoimento de BB, em (02:22:08) a (02:22:40), Depoimento de DD (00:26:29) a (00:28:23), Depoimento de EE de (00:03:41) a (00:03:46) e ainda (00:08:43) a (00:09:53).
153.Deve o facto alegado no art. 121, da p.i, ser dado como provado, sugerindo-se a seguinte redação: Durante todo este período e porque quando o confinamento geral foi decretado quando o Autor se encontrava em Vila Real, de onde é natural e onde tem família e segunda residência, o Autor não esteve presente na sua residência habitual em ..., nem no seu escritório em Matosinhos.
154.Facto alegado no art. 124º da p.i.Prova documental - As cotações a que se refere a sentença, caso este tribunal as considere, Prova Testemunhal - Depoimento de BB de (002:24:49) a (02:24:53).
155.Deve o facto alegado no art. 124, da p.i, ser dado como provado, sugerindo-se a seguinte redação: No dia 26 de março de 2020, o mercado dos fundos de investimento já estava a começar a subir, e a dar sinais positivos de boa retoma, como efetivamente veio a suceder.
156.Facto alegado no art. 122º e 129º da p.i. - Declarações de parte de AA: de (01:13:35) a (01:14:02), e ainda de (01:17:03) a (01:17:20), Prova Testemunhal - Depoimento do gestor do A., BB, em (00:53:11) a (00:53:51).
157.Devem os factos e alegados no art. 122 e 129, da p.i, serem dados como provados, sugerindo-se a seguinte redação: Durante o confinamento nacional, em 26 de março de 2020, o Autor comunicou, expressa e imediatamente, ao gestor BB que não pretendia resgatar ou vender os fundos/instrumentos financeiros, nem o autor deu autorização ao réu nem este nunca lhe comunicou que iria concretizar os regastes/vendas dos fundos, nomeadamente, através do meio previsto, carta registada com o aviso de receção.
158.Facto alegado no art. 125 da p.i. Prova documental: Do email enviado pelo autor junto como doc. 74 da p.i. e dado como provado no ponto 139 da sentença, e que não teve resposta, Das declarações de parte do autor: Depoimento de AA: de (00:47:01), e também de (00:53:43) a (00:53:48) e ainda de (01:17:03) a (01:30:01)., Prova Testemunhal - Depoimento de EE: de (00:09:10) a (00:12:14), Depoimento de DD: de (00:26:29) a (00:36:28) e ainda de (00:38:50) a (00:39:29), Depoimento de FF: de (00:02:19) a (00:06:54), Depoimento de GG: de (00:02:06) a (00:06:23)
159.Deve o facto, alegado no art. 125, da p.i, ser dado como provado, sugerindo-se a seguinte redação: Durante o confinamento nacional, em 26 de março de 2020, o Autor comunicou, expressa e imediatamente, ao gestor BB que não pretendia resgatar ou vender os fundos/instrumentos financeiros, nem o autor deu autorização ao réu nem este nunca lhe comunicou que iria concretizar os regastes/vendas dos fundos, nomeadamente, através do meio previsto, carta registada com o aviso de receção.
160.Facto alegado no art. 130 da p.i. - Prova documental: email enviado pelo autor junto como doc. 74 da p.i. e dado como provado no ponto 139 da sentença, e que não teve resposta.; declarações de de AA: de (00:47:01), e também de (00:53:43) a (00:53:48) e ainda de (01:17:03) a (01:30:01).; Prova Testemunhal: Depoimento de EE: de (00:09:10) a (00:12:14), Depoimento de DD: de (00:26:29) a (00:36:28) e ainda de (00:38:50) a (00:39:29), Depoimento de FF: de (00:02:19) a (00:06:54), Depoimento de GG: de (00:02:06) a (00:06:23)
161.Resulta assim da prova, das declarações de parte e da prova testemunhal, e, nomeadamente, do doc. 74 (email que não teve resposta), donde se retira, que, quando o A. no dia 24 de Abril de 2020, regressa a ..., foi surpreendido com os resgates dos seus fundos, e que transmite através desse email, a sua surpresa, o seu choque, a sua indignação e revolta, por lhe terem resgatado o fundos, não só sem o A. ter dado qualquer ordem, mas ainda contra a sua vontade e sem o seu conhecimento.
162.Deve o facto alegado no art. 130, da p.i, ser dado como provado, sugerindo-se a seguinte redação: Em finais de abril de 2020, quando o A. regressou a sua casa em ..., ao ver os extratos dos movimentos da sua conta à ordem, verificou, com espanto e grande indignação, que à revelia da manifestação da sua recusa da venda/resgate, o Banco Réu tinha, unilateralmente, efetuado a venda/ resgate dos fundos de investimento e instrumentos financeiros do A., sem o seu conhecimento ou consentimento.
163.Facto alegado no art. 131 e 132º da p.i. - Prova documental: Documento do réu Banco 1..., junto pelo autor, na resposta à contestação do Banco 2..., junto aos autos em 12/09/2022, como doc. nº1, e único (onde consta o supra referido, os valores iniciais dos investimentos e os valores apurados dos resgates, e os prejuízos daí resultantes), Dos. 66 e 64 juntos com a p.i. – movimentos de depósitos à ordem da conta do autor de 01-04-2020 a 30-04-2020.
164.Estes factos consubstanciam os prejuízos diretos sofridos pelo Recorrente com as vendas. Tais factos deveriam ter sido ponderados e apreciado pelo Tribunal “a quo”, segundo as várias soluções plausíveis de direito, sendo que tais factos são inequívocos.
165.Deve o facto alegado no art. 131 e 132, da p.i, ser dado como provado, sugerindo-se a seguinte redação:
1. No dia 31 de março de 2020, o Banco Réu vendeu/resgatou os seguintes fundos de investimento: F..., pelo montante de € 21.784, 87, quando o valor do investimento inicial tinha sido de € 25.000,00, assim provocando uma perda e prejuízo para o Autor de € 3.215,13 E..., pelo montante de € 110.697,61, quando o valor do investimento tinha sido de € 126.853,60, assim provocando uma perda e prejuízo para o Autor de € 16.155,99, B..., pelo montante de € 42.003,78, quando o valor do investimento inicial tinha sido de € 50.055,47, assim provocando uma perda e prejuízo para o Autor de € 8.051,69. B..., pelo montante de € 17.482,00, quando o valor do investimento inicial tinha sido de € 19.986,00, assim provocando uma perda e prejuízo para o Autor de € 2.504,00.
2. No dia 1 de abril de 2020, o Banco Réu vendeu/resgatou os seguintes fundos de investimento:
A..., pelo montante de € 80.867,36, quando o valor do investimento inicial tinha sido de € 99.332,17, assim provocando uma perda e prejuízo para o Autor de € 18.464,81. A..., pelo montante de € 44.892,00, quando o valor do investimento inicial tinha sido de € 50.000,00, assim provocando uma perda e prejuízo para o Autor de €5.108,00. C..., pelo montante de € 128.070,00, quando o valor do investimento inicial tinha sido de € 150.000,00, assim provocando
uma perda e prejuízo para o Autor de € 21.930,00.
166.Facto alegado no art. 134º da p.i. Prova documental - Documento do réu Banco 1..., junto pelo autor, na resposta à contestação do Banco 2..., junto aos autos em 12/09/2022, como doc. nº1, e único (onde consta o supra referido, os valores iniciais dos investimentos e os valores apurados dos resgates, e os prejuízos daí resultantes)., Dos. 66 e 64 juntos com a p.i. – movimentos de depósitos à ordem da conta do autor de 01-04-2020 a 30-04-2020, Doc. 7 junto com a contestação.
167.De onde resulta que dos valores iniciais dos investimentos e dos valores apurados nos resgates feitos unilateralmente pelo réu, o autor teve um prejuízo daí resultante, no valor de € 81.435,40.
168.Estes factos consubstanciam os prejuízos diretos sofridos pelo Recorrente com as vendas. Tais factos deveriam ter sido ponderados e apreciado pelo Tribunal “ aquo”, segundo as várias soluções plausíveis de direito, sendo que tais factos são inequívocos.
169.Deve o facto alegado no art. 134, da p.i, ser dado como provado, sugerindo-se a seguinte redação: Como consequência direta e necessária dessas vendas e resgastes, o Autor sofreu um prejuízo imediato e minimamente do valor de € 75.429,62 (valor de investimentos vs. valor venda), acrescido das despesas e encargos pelo autor suportados no valor de € 6.005,78, sendo o total da perda e prejuízo do autor de € 81.435,40.
170.Facto alegado no art. 139º da p.i. - Prova documental: email enviado pelo autor junto como doc. 74 da p.i. e dado como provado no ponto 139 da sentença, e que não teve resposta; Das declarações de parte de AA: de (00:47:01), e também de (00:53:43) a (00:53:48) e ainda de (01:17:03) a (01:30:01).; Prova Testemunhal - Depoimento de EE: de (00:09:10) a (00:12:14), Depoimento de DD de (00:26:29) a (00:36:28) e ainda de (00:38:50) a (00:39:29), Depoimento de FF: de (00:02:19) a (00:06:54), Depoimento de GG: de (00:02:06) a (00:06:23).
171.Deve o facto alegado no art. 139, da p.i, ser dado como provado, sugerindo-se a seguinte redação: O Banco Réu, nunca, informou, o Autor, que iria resgatar/vender os fundos ou efetuar qualquer amortização dos empréstimos.
172.Facto alegado no art. 167º da p.i. - Declarações de parte de AA de (01:19:45) a (01:22:24) e ainda de (01:37:44) a (01:38:42), Prova Testemunhal - Depoimento de BB, de (00:51:35) a (00:51:42), ainda de (00:53:06) a (00:54:42), Depoimento de DD, de (00:35:33) a (00:36:28)
173.O Tribunal deu como provado (cf. sentença, ponto 90 da matéria de facto provada), que entre o gestor do Autor BB e o Autor eram mantidos contactos regulares, quer telefónica, quer presencialmente, no âmbito dos quais eram abordadas todo o tipo de questões relacionadas com a gestão de conta e prestados esclarecimentos sobre movimentos da conta, entre outros que se afigurassem necessários ou que iam sendo suscitados pelo Autor, nomeadamente sobre a evolução
dos investimentos.
174.Deve o facto alegado no art.º 167 da p.i. ser dado como provado, com a seguinte redação: A partir de março de 2020, o gestor BB, deixou definitivamente de comparecer no escritório do Autor e de o contactar telefonicamente ou por SMS, cessou todos os contactos com o Autor, mostrando-se ainda indisponível para atender o Autor.
175.Facto alegado no art. 179º da p.i. - Prova Documental - Doc. 17 junto com a p.i., relatório do réu a que se refere o facto provado 82 da sentença. Todos os documentos dos bancos, os Multi-Ordem e os das subscrições, por exemplo fls. 384, referem que o local das reuniões era no escritório do Autor e a iniciativa do banco; Declarações de parte de AA: de (00:39:47) a (00:39:54), ainda de (00:40:19) a (00:42:30), e também de (00:52:33) a (00:52:42) a (00:55:17); Prova Testemunhal Depoimento do gestor CC: (00:03:20) a (00:03:56) e ainda em (00:00:42) e de (00:05:27) a (00:07:52), de (00:07:55) a (00:08:43) e ainda de (00:13:31) a (00:13:39), e também em (00:14:19) e ainda (00:14:49) a (00:15:04), e de (00:22:40) a (00:22:56) e de (00:22:57) a (00:23:54) e ainda de (00:23:44) a (00:25:01), e também de (00:29:17) a (00:30:53) e de (00:31:43) a (00:31:51) e de (00:36:06) a (00:33:10) e ainda de (00:33:37) a (00:35:21), Depoimento do gestor BB: de (00:02:17) a (00:06:15), e de (00:08:03) a (00:08:47) e de (00:13:09) a (00:14:11) e ainda de (00:14:31) a (00:14:38), e de (00:18:20) a (00:21:49), também em (00:24:25) e ainda em (00:50:25), também de (01:04:45) a (01:05:22) e ainda de (01:09:03) a (01:10:44), e também de (01:11:10) a (01:13:06) e ainda em (01:29:38) e de (01:36:09) a (01:37:31), também de (01:38:08) a (01:38:33) e ainda de (01:49:02) a (01:50:35) e ainda de (01:51:18) a (01:52:53), Depoimento de DD: de (00:01:31) a (00:08:34) e ainda de (00:25:09) a (00:26:13),
176.Da prova, resulta, que sob a gestão de BB foi sempre este a deslocar-se ao escritório do autor em Matosinhos, sendo que a sua agência era em ... no Porto (depoimento de MA (00:14:31) a (00:14:38) e ainda em (00:50:25), e ainda todos os documentos do banco onde é referido, local da reunião: Escritório do autor, e iniciativa: do banco réu,
177.Deve o facto alegado no art.º 179 da p.i, ser dada como provado com a seguinte redação: Todos os contactos e contratos, celebrados com o Banco Réu, através do gestor BB, bem como todas as negociações e informações inerentes, foram sempre da iniciativa do Banco Réu e tratadas no escritório do Autor, o qual nunca se deslocou à agencia bancária onde tinha domiciliado a sua conta bancária, procedimento que era habitual antes do referido BB se tornar gestor da conta bancária do Autor.
178.Facto alegado no art. 209º da p.i. - Matéria de facto provada art. 138 provado (Património do A.) e as livranças em branco entregues pelo A. na posse do Réu, nomeadamente, arts. 29, 33, 40, 54, provados. Prova Testemunhal - Depoimento de CC: de (00:21:23) a (00:21:57), Depoimento de BB: em (00:29:24) e ainda de (00:32:28) a (00:33:01) e também de (00:57:38) a (01:01:03), Depoimento de HH: de (00:03:03) a (00:07:06) e ainda de (00:07:37) a (00:09:09)
179.Deve o facto alegado no art.º 209 da p.i, ser dada como provado, com a seguinte redação: O Banco Réu ao aperceber-se da existência e contornos da pandemia, do confinamento determinado pela mesma e das consequências nas cotações dos instrumentos financeiros, entrou em pânico, e com medo de perder os montantes que havia emprestado ao Autor, apesar das garantias de cumprimento e solvabilidade deste que já detinha.
180.Facto alegado no art. 211º da p.i. Prova Documental: As cotações dos fundos a que se referem a sentença em motivação da decisão da matéria de facto, caso este tribunal entenda valorar, Prova Testemunhal: Depoimento de BB de (02:24:49) a (02:24:53), (02:24:49]
181.De onde resulta que o mercado começou a subir, e até já antes da ordem do réu para efetuar os resgates dos fundos do A. (não existindo já em 31/03 e 01/04 nenhum dos fundos em situações de margin call e stop loss), contra a vontade deste, e em Maio/Junho de 2020, os fundos já tinham subido para os valores pré-pandêmicos e alguns até ultrapassado, confirmando-se assim a normal volatilidade do
intermediário réu, que, por ser um profissional, um intermediário financeiro como tal classificado, não se justifica, a não ser o ter em vista o seu próprio interesse como na realidade sucedeu.
182.Deve o facto alegado no art.º 209 da p.i, ser dada como provado, com a seguinte redação: Em meados de maio/junho de 2020, já os mercados financeiros tinham subido para os valores pré- pandémicos, sendo que alguns instrumentos financeiros tinham até, nessa data, cotações superiores ao valor pré-pandémico.
183.Facto alegado no art. 226º da p.i. Prova Documental - Todas as subscrições em fundos de investimento com dinheiro conjunto do banco réu e do cliente, ou seja, o denominado alavancado, que se encontram junto aos autos e dados como provados, nomeadamente, em matéria provada ponto 53, fls. 411 segs., Prova Testemunhal - Depoimento de CC, de (00:28:40) a (00:32:00), Depoimento de BB, de (00:56:30) a (00:57:20) e ainda de (01:43:25) a (01:43:28) e ainda de (01:45:36) a (01:47:59)
184.Resulta da prova documental, nomeadamente de fls. 411, que era o banco, por sua iniciativa, que escolhe os fundos/produtos ou instrumentos financeiros, o autor não escolhe nada, e que entra com uma parte do capital e o cliente com outra, e ainda que o banco com o investimento alavancado não tem risco nenhum, sendo o risco do cliente, e o banco ganha de várias formas, nomeadamente, do cliente, dos produtos que o banco monta a chamada D... (que foi o 1º investimento que levaram o A. a subscrever), e também recebe das empresas que têm fundos como a própria E..., pelo que, tem todo o interesse e boas vantagens e benefícios em emprestar dinheiro aos seus clientes para investimento em instrumentos financeiros ou valores mobiliários
185. Deve o facto alegado no art. 226º da p.i, ser dado como provado, com a seguinte redação: O Banco Réu tem todo o interesse em emprestar dinheiro aos seus clientes para investimento em instrumentos financeiros ou valores mobiliários, com a condição de ser o Banco a escolher o instrumento financeiro, como aconteceu no caso concreto. Para mais, em parte com capital próprio do Autor, beneficiando depois, e em exclusivo, o Banco Réu das remunerações que recebeu dessas entidades gestoras ou emitentes desses instrumentos financeiros, a título de incentivos monetários de terceiros, sem se preocupar com o resultado de tal investimento para o cliente.
186. Facto alegado no art. 231 e 232º da p.i. - Prova documental - Todos os docs. das subscrições e mútuos celebrados com o Banco 2..., nomeadamente: Docs. nº 13 e 16 junto com a contestação do Banco 1... da subscrição do fundo A..., onde no contrato de mútuo, na clausula 2.4 e 2.4.1,(doc. 13) e no doc. 16, no contrato de mútuo, na clausula 2.8 e 2.8.1, as comunicações pelo banco ao cliente autor, devem ser efetuadas por escrito com carta registada com aviso de receção.
Docs. nº 17 e 18 juntos com a contestação do Banco 1... da subscrição do fundo C..., e contrato de mútuo, neste na clausula 2.4 e 2.4.1, as comunicações pelo banco ao cliente autor, devem ser efetuadas por escrito com carta registada com aviso de receção. Doc, email enviado pelo autor junto como doc. 74 da p.i. e carta enviada pelo A. ao réu, doc. 75, e dados como provados no ponto 139 da sentença, e que nem um nem outro tiveram resposta. Todos os docs. das subscrições e mútuos celebrados com o Banco 2... e Banco 1..., nomeadamente: Vide, por exemplo, doc. nº 27, 28, 30, cláusulas 28.1. e 24), juntos com a p.i, declarações de parte de AA: de (00:47:01), e também de (00:53:43) a (00:53:48) e ainda de (01:17:03) a (01:30:01), Prova Testemunhal - Depoimento de EE: de (00:09:10) a (00:12:14), Depoimento de DD: de (00:26:29) a (00:36:28) e ainda de (00:38:50) a (00:39:29), Depoimento de FF: de (00:02:19) a (00:06:54), Depoimento de GG: de (00:02:06) a (00:06:23)
187. Deve o facto alegado no art. 231º e 232 da p.i, ser dado como provado, com a seguinte redação:
1. O Banco Réu estava obrigado a comunicar, por escrito, a intenção de vender os instrumentos financeiros ao Autor, devendo tal comunicação ser efetuada por carta registada com aviso de receção.
2. O Banco réu nunca enviou qualquer comunicação, registada ou por registar, ao Autor, nomeadamente a informar a sua intenção de proceder à venda e resgates em causa, não o fez antes de as concretizar, nem sequer depois, pois o Autor apenas tomou conhecimento da respetiva concretização depois de serem efetivadas pelo Banco Réu e somente pela leitura do extrato mensal habitualmente enviado pelo Banco Réu.
188. Facto alegado no art. 233º da p.i. - Prova documental - Todos os docs. das subscrições e mútuos celebrados com o Banco 2... e Banco 1..., nomeadamente: Docs. nº 13 e 16 junto com a contestação do Banco 1... da subscrição do fundo A..., onde no contrato de mútuo, na clausula 2.4 e 2.4.1,(doc. 13) e no doc. 16, no contrato de mútuo, na clausula 2.8 e 2.8.1, as comunicações pelo banco ao cliente autor, devem ser efetuadas por escrito com carta registada com aviso de receção. Docs. nº 17 e 18 juntos com a contestação do Banco 1... da subscrição do fundo C..., e contrato de mútuo, neste na clausula 2.4 e 2.4.1, as comunicações pelo banco ao cliente autor, devem ser efetuadas por escrito com carta registada com aviso de receção. Doc. email enviado pelo autor junto como doc. 74 da p.i. e dado como provado no ponto 139 da sentença, e que nem um nem outro tiveram resposta, Das declarações de parte de AA: de (00:47:01), e também de (00:53:43) a (00:53:48) e ainda de (01:17:03) a (01:30:01). Prova Testemunhal - Depoimento de EE: de (00:09:10) a (00:12:14), Depoimento de DD: de (00:26:29) a (00:36:28) e ainda de (00:38:50) a (00:39:29), Depoimento de FF: de (00:02:19) a (00:06:54), Depoimento de GG: de (00:02:06) a (00:06:23)
189.Do que resulta que o Banco réu nunca enviou ao Autor qualquer comunicação, registada ou por registar, como era sua obrigação, nomeadamente a informar a sua intenção de reforço de garantia, e que valores eram necessários para essa garantia que estavam em causa, e de que tipo de garantia, e como proceder para efetuar essa garantia, nem o fez através do seu gestor BB, e o Autor apenas tomou conhecimento da respetiva concretização dos resgates dos fundos, depois de serem efetivadas pelo Banco Réu e somente pela leitura do extrato mensal habitualmente enviado pelo Banco Réu, quando em finais de Abril de 2020 regressou a sua casa em ..., dado que tinha estado até essa data e desde o inicio do confinamento em 19 de Março de 2020 numa sua residência em Vila Real, tendo ficado em choque.
190.Repare-se ainda, que, os fundos acima referidos não ficaram como penhor/garantia dos mútuos do réu Banco 1..., pelo que, caso o entendimento seja contrário à nossa posição neste recurso que é o de que todas as comunicações teriam de ser por carta registada com A/R, pelo menos em relação a estes dois fundos teriam necessariamente de o ser por força do clausulado contratual acima referido ainda com o Banco 2....
191.Deve o facto alegado no art. 233º da p.i, ser dado como provado, com a seguinte redação: O Réu nunca solicitou ao Autor um reforço das garantias já prestadas pelo mesmo, nomeadamente nunca o solicitou em momento prévio às vendas/resgastes em causa.
192.Facto alegado no art. 234º da p.i. - Prova documental Docs. 13 a 33 juntos com a contestação do réu Banco 1...: Todos os contratos celebrados com recurso ao crédito e que consta da matéria de facto provada tinham como garantia o penhor dos fundos de investimento/instrumentos financeiros, e ainda, e porque o Banco exigiu também como garantia e recebeu do cliente para cada mútuo em todos eles uma livrança em branco para o banco poder preencher pelo valor que estivesse em dívida num total de sete (7) livranças.
193.Deve por isso, por força do que consta dos contratos, de subscrição dos fundos e de mútuo onde constam as garantias de penhor e as entregas em todos eles de uma livrança em branco, este facto ser dado como provado.
194.Deve o facto alegado no art. 234º da p.i, ser dado como provado, com a seguinte redação: O Autor emitiu e entregou ao Banco Réu sete livranças em branco, com pacto de preenchimento, que o Banco Réu poderia preencher.
195.Facto alegado no art. 236º da p.i. – facto provado 138, docs. de fls,. Certidões prediais e cadernetas prediais juntas aos autos pelo recorrente (a que se refere a sentença na 1ª folha da parte da motivação da decisão sobre a matéria de facto), donde resulta o valor patrimonial dos vários bens imóveis de que é proprietário e comproprietário, que têm um valor patrimonial tributário superior a €300.000,00, e ainda facto provado na sentença nº 138, Prova Testemunhal:
Depoimento gravado de BB de (00:43:45) a (00:44:00), e ainda de (00:44:05) a (00:44:14) e ainda de (00:57:38) a (01:00:58), Depoimento gravado de II, testemunha da ré, em (00:09:55) a (00:13:25.
196.Por outro lado, II, Diretor de Operações do Réu Banco 1..., afirmou, que, quanto ao pedido de reforço de garantias, este pedido depende do conhecimento que o Banco Réu tenha do património do cliente/investidor, conforme resulta do seu depoimento de que aqui infra se
transcreve, de (00:09:55) a (00:13:25),
197.Do que decorre, deste Diretor de Operações do réu Banco 1..., um homem experiente nesta área, e salvo sempre melhor interpretação, o pedido de reforço de garantias, depende muito do conhecimento que o banco tem do que o cliente detém em termos de património financeiro ou
imobiliário.
198.O facto alegado no art.º 236 da p.i., deve ser dado como provado, com a seguinte redação:
O património imobiliário do Autor, era do perfeito e completo conhecimento do Banco Réu, e tinha um valor patrimonial tributário, de pelo menos, € 300.000,00.
199.Facto alegado no art. 252º e 253º da p.i. - Matéria de facto provada: Ponto 70 dos factos provados; Prova documental - os Doc. 7 (extratos de movimento de conta onde constam os valores a receber por cada fundo de investimento), e docs 8 a 28 juntos com a contestação do réu Banco 1... - todos os contratos de subscrições dos fundos de investimento, e também referidos na matéria de facto provada.
200.É notório que, por causa da venda/resgates dos fundos de investimento do A., o autor deixou de passar a receber os rendimentos que até recebia dos fundos de investimento subscritos como o réu, acima referidos, e que, resulta da documentação referida e ainda do que consta da matéria de factos provada.
201.Este facto consubstancia os prejuízos alegados pelo Autor e devem, em qualquer caso, ser dados como provados atentas as várias soluções plausíveis de direito.
202.Deve o facto alegado nos arts. 252º e 253 da p.i., ser dado como provado, com a seguinte redação: O Autor perdeu ainda todo o rendimento, anual e mensal, que receberia como rentabilidade desses produtos, fundos de investimento, caso o Banco Réu não os tivesse vendido, rendimento que, considerando a previsão dos ganhos do Autor a partir de abril de 2020 e até dezembro do ano 2021, com a distribuição dos rendimentos dos diversos fundos (que recebia na sua conta de depósitos à ordem que lhes estava associada), se situam nos seguintes valores: “E...” - o Autor perdeu as rendas que se venceriam entre abril de 2020 e dezembro de 2021, no valor de € 6.804,00 (renda mensal de € 324,00 x 21 meses).“A...” - o Autor perdeu as rendas que se venceriam entre abril de 2020 e dezembro de 2021, no valor de € 5.411,00 (renda mensal de € 773,00 x 7 meses). “B...” - o Autor perdeu as rendas que se venceriam entre abril de 2020 e dezembro de 2021, no valor de € 3.171,00 (renda mensal de € 151,00 x 21 meses).“B...” - o Autor perdeu as rendas que se venceriam entre abril de 2020 e dezembro de 2021, no valor de € 721,00 (renda mensal de € 360,00 x 2 meses).“C...”, o Autor perdeu as rendas que se venceriam entre abril de 2020 e dezembro de 2021, no valor de € 5.162,00 (renda anual de € 2,581,20 x 2 anos).“F...” - o Autor perdeu as rendas que se venceriam entre abril de 2020 e dezembro de 2021, no valor de € 2.086,00 (renda mensal de € 298,00 x 7 meses).“A...” - o Autor perdeu as rendas que se venceriam entre abril de 2020 e dezembro de 2021, no valor de € 2,520,00 (renda mensal de € 120,00 x 21 meses).Tudo somado, o Autor perdeu, no período de 12 meses, de abril de 2020 a março de 2021, num total de € 25.874,00, sendo esse o montante da sua perda, neste particular.
203.Facto alegado no art. 257º da p.i. - Matéria de facto provada- Toda a matéria provada donde resulte a subscrição e o clausulado dos fundos e sua documentação junta aos autos, nomeadamente, o Ponto 70 dos factos provados, Prova documental Doc. 7 (extratos de movimento de conta onde constam os valores a receber por cada fundo de investimento), e docs. 8 a 28 juntos com a contestação do réu Banco 1... -todos os contratos de subscrições dos fundos de investimento, e também referidos na matéria de facto provada.
204.Este facto consubstancia os prejuízos alegados pelo Autor e devem, em qualquer caso, ser dado como provados atentas as várias soluções plausíveis de direito.
205.Deve este facto alegado nos arts. 257º da p.i., ser dado como provado, com a seguinte redação:
O Autor não recebeu, nem vai receber, os rendimentos que, não fora as vendas/resgastes ilegais e ilícitas efetuadas pelo Banco Réu, auferiria com a vigência e vencimento desses instrumentos financeiros/aplicações, durante os anos seguintes, designadamente desde janeiro de 2022 até ao termo da vigência de cada um desses contratos/fundos investimentos.
Decisão a proferir sobre os Pontos da Matéria de Facto Não Provada mas alegada na PI (art. 640º, nº 1, al. c))
206. Pelo exposto, ponderados os referidos depoimentos e toda a demais prova carreada para os autos, deve este Tribunal “ad quem” alterar a decisão do Tribunal “a quo”, devendo, nos termos supra requeridos julgar provados os factos alegados na p.i. sob os ns. 68, 76, 82, 83, 85, 87, 89, 104 a 108, 114, 171, 173, 174, 120, 121, 124, 122, 129, 125, 130, 131, 132, 134, 139, 167, 179, 209, 211, 226, 231, 232, 233, 234, 236, 252, 253, e 257, nomeadamente com a redação constantes das conclusões 131 a 207, que aqui se reproduzem.
SUBSUNÇÃO JURIDICO-FATUAL
Insuficiência Fatual - Incumprimento do Ónus de Prova pelo Banco Recorrido
207.Por razões de brevidade processual, dá-se aqui por reproduzido o teor as conclusões 4 a 31.
208.Atentas as regras do ónus da prova e as regras relativas ao direito à informação a que amplamente se refere o CVM, o dever de informação, do Banco ao Autor, só se poderia considerar concretizado pelo Banco Recorrido quando e se o mesmo, comunicasse ao Recorrente, de forma individualizada (por cada instrumento financeiro) e no momento de cada comunicação e de cada venda/resgate, pelo menos as seguintes informações: Valor do investimento inicial e à data das vendas, Cotação inicial e cotação dos instrumentos financeiros no mercado, data e hora das cotações, no momento em que se verificasse que estaria em situação de margin call ou stop loss (anterior às vendas) e o número de unidades de participação de cada um dos fundos, Alegação e demostração aritmética da cobertura da garantia e da percentagem mínima do valor do financiamento que, nos termos contratuais, fundamentaria, validando, a venda uniliteral pelo Banco Recorrido, Integração factual no conceito de MC ou SL, Explicitação do tipo de garantia e valor que o Banco Recorrido pretendia como reforço da garantia para não acionar a Margim Call ou Stop Loss e não vender esses instrumentos financeiros.
209.Só nessas condições e com conhecimento desses factos, o Recorrente poderia verificar se as vendas tinham cumprido os pressupostos contratuais em causa Só nessas condições e com conhecimento desses factos, o Tribunal “a quo” poderia ponderar, apreciar, verificar e decidir se as vendas tinham cumprido os pressupostos contratuais em causa, nomeadamente se verificava-se ou não uma situação de margin call ou stop loss. Só nessas condições e com conhecimento desses factos, o Tribunal “ad quem” poderá ponderar, apreciar, verificar e decidir se as vendas/resgates tinham cumprido os pressupostos contratuais em causa.
210.Dos autos não resulta que na data das vendas/resgates se verificasse, factualmente, uma situação (valor das cotações das unidades de participação de cada um dos vários instrumentos financeiros que o autor tinha) que integrasse uma situação de MC ou SL, nem factos provados existem que o demonstrem.
211.Consequentemente, deve este Tribunal “ad quem”, fundamentado na violação das regras do direito à informação, do ónus da prova e na insuficiência dos factos provados, declarar a ilegalidade das vendas, nos termos peticionados na p.i., o que se requer com todas as demais consequências legais.
Cláusulas Contratuais Gerais - Decreto-Lei 446/85 de 25 de outubro
212.O Decreto-Lei 446/85 de 25 de outubro estabeleceu o regime a que estão sujeitas as cláusulas contratuais gerais.
213.É que o legislador reconheceu que a massificação do comércio jurídico levou ao surgimento de contratos que não são precedidos de fase negocial, limitando-se a liberdade contratual à aceitação ou não de determinada proposta apresentada, como é o caso nos autos, todos os contratos resultam de proposta e iniciativa do Banco.
214.Foi o que sucedeu no caso concreto, dado que a liberdade contratual do Autor foi limitada à mera declaração de aceitação dos termos exigidos pelo Banco Réu, isto é, dos requisitos negociais e contratuais prévia e unilateralmente determinados pelo Banco Réu,
215.Ora, como a execução contratual veio a demonstrar, no caso concreto, o Autor foi, e é, a parte contratualmente mais fraca, sendo que o objetivo da aludida regulamentação é precisamente a salvaguardar dos interesses da parte mais fraca, surgindo como uma emanação do princípio da boa fé.
216.nos termos do art.º 1.º n.º 1 do diploma mencionado, cláusulas contratuais gerais são aquelas que são “elaboradas sem prévia negociação individual”, ou seja, são prévia e unilateralmente definidas por um dos contraentes, tendo em vista uma generalidade e pluralidade de pessoas que não as vão negociar e influenciar, no âmbito de um padrão negocial uniformizado. Este é precisamente o caso dos autos.
217.Ora, as cláusulas de “Margin call”, “stop-less” e “cross-default”, apostas, nomeadamente, nos contratos supra juntos aos autos sob os ns. 27, 30, 55 e 57, são, indiscutivelmente, cláusulas contratuais gerais, ou seja, dado que o respetivo conteúdo foi pré-elaborado pelo Banco Recorrido, sendo que tal conteúdo foi insuscetível de ser influenciado ou negociado pelo Autor.
218. Este tipo de cláusulas constituem, hoje, uma prática a que frequentemente os bancos recorrem, sendo que estas instituições se servem amiúde de cláusulas contratuais gerais, o que sucedeu no caso concreto. Todavia, tais cláusulas têm de considerar-se submetidas à proteção do regime
estabelecido pelo Decreto-Lei 446/85 de 25 de outubro. É o que resulta expressamente do art. 321º, nº 3º do CVM.
219.Neste sentido, as de “Margin call”, e “stop-loss”, e de garantias apostas, nomeadamente, nos contratos supra juntos aos autos, estão submetidas ao referido regime jurídico.
220.Além do mais, desde logo por preverem a possibilidade de o Banco Recorrido vender os investimentos e fazer cessar a relação contratual de forma unilateral, contra a vontade do Recorrente e num momento em que este cumpria integralmente as respetivas obrigações, tais cláusulas são manifestamente contrárias à boa-fé.
221.Mais a mais quando, como sucedeu no caso concreto, o facto que determinou a venda dos produtos financeiros, assim também determinando a respetiva cessação contratual, resultou de um facto imprevisível – Pandemia, não imputável ao Recorrente, o qual precipitou uma decisão precipitada do Banco Réu, resultante de um pânico incompreensível,
222. Acrescendo que com tais comportamentos o Banco Recorrente apenas quis proteger o seu património à custa do património do Recorrente, ignorando, totalmente, a proteção do consumidor e contraparte (Recorrente), a que estava, nos termos do direito constituído, obrigado a respeitar.
223.Em concreto mostra-se violada a boa-fé, que é o princípio orientador das cláusulas contratuais gerais. Este princípio é concretizado no art.º 16.º que dispõe: “Na aplicação da norma anterior devem ponderar-se os valores fundamentais do direito, relevantes em face da situação considerada e, especialmente:
a) A confiança suscitada, nas partes, pelo sentido global das cláusulas contratuais em causa, pelo processo de formação do contrato singular celebrado, pelo teor deste e ainda por quaisquer outros elementos atendíveis;
b) O objectivo que as partes visam atingir negocialmente, procurando-se a sua efetivação à luz do tipo de contrato utilizado.”
224. As cláusulas proibidas contrárias à boa-fé são nulas, conforme dispõe o art.º 12.º do mesmo diploma.
225. Importa notar que quem recorre à utilização de cláusulas contratuais gerais se encontra numa posição de superioridade relativamente aos aderentes, que são privados de interferir na “modelação” das cláusulas.
226. Tal tem como contraponto o dever de levar em consideração os interesses dos aderentes, só assim encontrando correspondência a uma conduta conforme à boa-fé.
227. Por outro lado, de um ponto de vista objetivo, a cláusula imposta deve ser equilibrada e razoável na ponderação dos vários interesses em presença, o que a execução concreta contratual veio a demonstrar não assegurar.
228. As cláusulas em apreço não foram negociadas entre as partes, pelo que exigiam, da parte que as impôs, um comportamento conforme à boa-fé, sendo fundamental que o respetivo exercício seja equilibrado, proporcional e razoável, o que não sucedeu no caso concreto e configura responsabilidade pré-contratual e contratual do Banco Recorrido.
229. É que, como se demonstrou, as cláusulas em questão apresentam-se como desproporcionadas, desequilibradas e desrazoáveis, como a respetiva execução concreta veio a evidenciar.
230. Acresce que, em qualquer caso, o Banco Réu apenas poderia antecipar o vencimento contratual e tornar a dívida exigível: a) se existisse um incumprimento de qualquer obrigação pelo Autor, o que não foi o caso. b) se existisse não apenas o incumprimento da obrigação principal, mas também o incumprimento do contrato cruzado, e no caso concreto o Autor não incumpriu nenhuma das obrigações. c) se existisse mora, o que não foi o caso. d) se existisse falta de cumprimento de uma qualquer obrigação do Recorrente, o que não foi o caso. e) Se pusesse em causa garantia geral patrimonial do Banco Recorrido, o que não foi o caso.
231. Verifica-se assim, mesmo tendo em conta a finalidade que está na origem da utilização das cláusulas em apreço, na situação concreta o equilíbrio contratual das partes ficou muito afetado, através da aposição de cláusulas em que o contraente mais forte ampliou, como evidencia a execução contratual concreta, as situações que podem determinar o vencimento antecipado da obrigação, o que pôs manifestamente em causa o equilíbrio contratual entre as partes e permitiu causar efeitos muito gravosos para o Recorrente, num contrato que estava a ser devidamente e pontualmente cumprido.
232. A previsão das cláusulas contratuais em questão vai além do que são as garantias razoáveis que podem ser exigidas pelo credor em nome de um princípio de tutela da confiança, visando apenas a proteção da posição contratual do Banco Recorrido e dos seus interesses, pondo dessa forma em causa o equilíbrio de interesses das partes contratantes, bem como a confiança ou expectativa no caso depositada pelo Recorrente na celebração do contrato, sendo por isso manifestamente excessiva e contrária à boa-fé
233. Devem assim ser declaradas NULAS às cláusulas de “Margin call”, “stop-loss”, e de reforço de garantias, apostas nos contratos em causa nos autos, nomeadamente, nos termos descritos no ponto 3 do pedido, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
Do Direito e Dever de Informação e da Regulamentação Mobiliária Aplicável ao intermediário Financeiro.
234. Antes do mais, é fundamental notar que o direito à informação é um direito que não se esgota nas negociações prévias, nem na celebração dos contratos de investimento, antes acompanhando todo o processo de investimento, incluindo no momento da venda.
235. É o que prescreve o art. 7º do CVM, que refere no nº 1, que o direito à informação respeita “a formas organizadas de negociação,” “às atividades de intermediação financeira”, à liquidação”
236. Mais acrescentando que essa informação deve ser completa, verdadeira, atual, clara, objetiva e lícita.
237. Importa relevar o dever de a informação ser atualizada (ATUAL), o que implica, nomeadamente, que também no momento da venda a informação deve obedecer aos requisitos em causa.
238. Tal dever de informação foi, várias vezes, violado pelo Banco, nomeadamente no momento da venda.
239. Nos termos do art. 304-A do CVM “Os intermediários financeiros são obrigados a indemnizar os danos causados a qualquer pessoa em consequência da violação dos deveres que lhes sejam impostos por lei.
240. Sendo que a culpa do intermediário financeiro presume-se quando o dano seja causado no âmbito de relações contratuais ou pré-contratuais e, em qualquer caso, quando seja originado pela violação de deveres de informação.
241. Assim, provado o dever de violação da informação, pelo menos no momento da venda, como sobredito, a culpa do Banco presume-se e, consequentemente, era ao banco que incumbia o ónus de demonstrar o cumprimento desse dever de informação em toda a sua plenitude.
242. Acresce que, como prescreve o art. 304 do CVM, Os intermediários financeiros devem orientar a sua atividade no sentido da proteção dos legítimos interesses dos seus clientes e devem observar os ditames da boa-fé, de acordo com elevados padrões de diligência, lealdade e transparência.
Este tribunal deve assim ponderar se as circunstâncias fatuais em causa nos autos, nomeadamente o comportamento do Banco, protegeu os interesses do cliente, ora Autor, e se agiu de boa-fé nessa relação
243. Ambas as respostas devem ser negativas, o Banco não protegeu os interesses do Autor, antes o prejudicou ostensiva e injustificadamente, e nunca agiu de boa-fé.
244. Como se referiu, e resulta dos factos provados (nomeadamente teor dos contratos de fls.) ao longo de toda a relação bancária em causa, foi sempre o Banco Recorrido que teve a iniciativa e propôs ao Autor a subscrição dos instrumentos financeiros em causa, bem como aos contornos e consequências do respetivo clausulado contratual.
245.E que o Autor apenas se reuniu com o gestor BB no seu escritório e nunca se deslocou ao Banco.
246. O art. 322 do CVM que refere que os contrato de investimento efetuados por investidor não profissional (como é o caso do Autor) quando efetuadas fora do estabelecimento do intermediário (como foi o caso) e sem solicitação deste (também o caso) são inadmissíveis e ilegais – Art. 322, nº 5 - O consultor para investimento não pode efetuar contactos com investidores não profissionais que por estes não tenham sido solicitados.
247. No entanto, era o Banco, através do gestor, que sugeria os investimentos, fundos, valores, condições que eram inegociáveis
248. Note-se que, entre 2018 e 2020, no curto espaço de 2 anos, foram efetuados cerca de 12 investimentos (uns atrás dos outros, uns substituindo outros), com mútuos pelo meio, o que representavam cerca de € 460.000,00. Isto é, em média, de 2 em 2 meses, era efetuada uma subscrição.
249. Uma vertigem e recorrência (e número) inexplicável, não solicitada pelo Autor antes proposta pelo Banco (incluindo investir e resgatar do E... e voltar a investir no E... – e segunda compra por valor e superior ao inicial), o que viola o disposto no Art. 310 do CVM.
250. É a chamada figura da intermediação excessiva, que impõe limites de bom senso, a qual, no caso concreto, está bastamente evidenciada, e configura a violação das normas aplicáveis pelo banco.
251. Ou seja, o Banco recorrido violou várias vezes as regras de intermediação previstas no CVM, tal determinando a ilegalidade das vendas.
Das Cláusulas de “Margin Call” e/ou “Stop Loss” e do Reforço de garantias
252. Por razões de brevidade processual, dá-se aqui por reproduzido o teor as conclusões 220 a 236.
253. A integração dos conceitos de margim cal stop loss implicava a realização de diversas e complexas operações ariméticas e matemáticas, apenas ao alcance de economistas,
254. As cotações dos valores das unidades de participação nos mercados financeiros estavam sempre em constantes variações e diárias, pelo que esse trabalho e calculo incumbia a quem é profissional em investir em valores mobiliários ou instrumentos financeiros, nomeadamente incumbia aos gestores do Banco Réu, como o próprio BB, e não a alguém com o perfil do Autor.
255. Note-se que, como diremos, a Margin Call e stop loss não obrigam o Banco a vender, quando muito apenas lhe permite essa possibilidade,
256. A Margim call – apenas permite pedido de reforço garantias (não foram pedidas e chegavam as já dadas)
257. O Stop loss – visa evitar perdas maiores para o investidor – espírito é proteger investidor, mas contra a vontade deste não…
258. Em face de das garantias já prestadas pelo Recorrente (7 livranças em branco), do valor do património do Autor e estando em causa apenas € 20.000,00, não se justificava o reforço de garantias,
259. Não existe qualquer comunicação do Banco a informar o Recorrente, como era seu dever, qual a garantia pretendida e o respetivo valor.
260. O ónus de prova desse pedido de reforço de garantias, devidamente concretizado (valor, tipo, etc) incumbia a Banco mas este nem sequer o alegou.
261. Mais a mais atento o princípio da proteção do interesse do Cliente (CVM) incluindo, em caso de colisão com os interesses do intermediário financeiro, o dever de dar prevalência aos interesses do cliente (art. 309º do CVM).
262. Acresce que nas data das vendas não se verifica uma situação de margim cal ou stop loss, o Tribunal “a quo” ignorou completamente, nem tal resulta dos factos provados.
263. Pelo que as vendas configuram a violação do dispositivo contratual celebrado entre as partes.
Alteração Superveniente das Circunstâncias
264. Verifica-se que, em qualquer caso, o Banco Recorrido não poderia ter vendido os instrumentos financeiros, dado que, nessa data, se viviam circunstâncias de facto que configuram uma verdadeira da alteração superveniente das circunstâncias, a qual, impedia, o exercício, pelo Banco Recorrido, dos direitos contratualmente estipulados.
265. Com interesse para a decisão deste ponto em concreto, são relevantes, nomeadamente, os factos provados 101º e 102º, na sentença.
266. É certo, o que se admite, que, em regra, o mercado dos investimentos financeiros em causa é evolutivo, isto é, sujeito a oscilações quanto à respetiva cotação e, consequentemente, quanto ao valor dos instrumentos financeiros.
267. Tais oscilações são, contudo e em regra, marginais e cíclicas (baixa e sobe) e, salvo um evento-limite, como o caso de insolvência de uma das empresas que integra o fundo, tais variações nunca são abruptas, nem atingem, rapidamente, um valor tão baixo que imponha a venda.
268. Aliás, como é consabido e resultou da prova produzida em audiência, os instrumentos financeiros em causa nos autos eram constituídos por várias empresas, precisamente para conter um evento-limite, numa das empresas que o constituem (a lógica é que se uma empresa desce as outras aguentam o valor da cotação).
269.É facto notório e público que em fevereiro/março de 2020 se instalou, em todo o mundo, a pandemia de Covid-19, provocando milhões de mortes e afetando inesperada e gravemente a economia mundial, com confinamentos generalizados e encerramento ou suspensão da atividade comercial de inúmeras empresas em todo o mundo, incluindo as empresas que integravam os instrumentos financeiros em causa nos autos.
270.Do que resultou que, durante esse período, nomeadamente em Março de 2022, se tenha verificado, m todo o mercado mundial, um quebra abrupta e acentuada do valor das empresas e, consequentemente, da cotação dos fundos (assim oposta à regra da flutuação dos mercados).
271.Tais acontecimentos – pandemia e consequências nas cotações – eram inesperadas, imprevistas, supervenientes à contratação dos instrumentos financeiros e não estavam previstas no conteúdo contratual (contratos) celebrados ente as partes.
272.Ou seja, a quebra das cotações não resultou da normal evolução do mercado (o aludido sobe e desce normal deste tipo de instrumentos financeiros, Pelo contrário, resultou de uma circunstância excecional.
273.Pelo que, ainda que as cláusulas de “margin call” e stop loss” fossem aplicáveis e/ou admissíveis (e não são se alegou) no contexto pandémico em causa nunca seriam aplicáveis ou poderiam ser invocáveis pelo Banco Réu.
274. Desde logo porque, nos termos expostos, a pandemia e a consequente baixa abruta e extraordinária das cotações alteraram as circunstâncias em que Autor e Banco Réu fundaram a decisão de contratar, provocando uma alteração anormal, que afetou gravemente os direitos do Autor e os princípios da boa-fé, sendo que tal alteração foi superveniente à contratação e não estava coberta pelos riscos próprios do contrato, nomeadamente no que respeita à possibilidade de invocar a aplicar as cláusulas de margin call e stop loss.
Verificou-se, assim, uma alteração superveniente das circunstâncias, prevista no art. 437º do CPC, a qual impedia, em qualquer caso, o Banco de vender/resgatar os instrumentos financeiros apenas porque estes baixaram a cotação por força, única e exclusivamente, do efeito da pandemia nos mercados financeiros.
276. Neste sentido decidiu o Acórdão Ac. TRL de 14.06.2017 e ACT STJ d 11.05.2023,
277. A crise COVID-19 consubstancia uma “grande alteração das circunstâncias”, criando a necessidade de reconformação do quadro em que se desenvolve a generalidade das relações jurídicas de carácter patrimonial.
278. É desejável que esta reconformação seja feita por via legislativa, mas, sempre que não exista diploma específico, é admissível o recurso a disposições e princípios de carácter geral como o artigo 437.º do CC e o princípio da boa-fé.
279. A Covid-19 constitui um exemplo claro de alteração de circunstâncias geral e totalmente alheia a condutas das partes, e a cujo domínio e controlo escapam completamente.
280. A repercussão jurídica da Covid-19 deve ser repartida por igual (igualdade não no sentido formal – no sentido de matematicamente igual -, mas antes material, ou seja, de forma equitativa) de forma a que não se criem desequilíbrios na distribuição do risco contratual.
281. O Direito Civil português, estipula um princípio e uma regra que podem resultar em soluções distintas, mesmo opostas, aquando da execução dos contratos.
282. O princípio pacta sunt servanda (“os pactos são para ser observados / os pactos devem ser cumpridos”), com origem no Direito canónico. A regra (ou cláusula) rebus sic stantibus, segundo a qual as partes celebram um acordo tendo em conta a situação de facto existente no momento da sua celebração, podendo assim invocar a alteração dessa situação de facto como razão da alteração ou rompimento do pacto, quando ocorram mudanças substanciais extraordinárias e imprevisíveis que modifiquem o equilíbrio do acordo, trazendo vantagem a uma das partes e causando grande prejuízo / lesão enorme à outra parte.
283. Ora, a superveniência da pandemia COVID-19, em Março de 2020, tida como imprevisível até pouco tempo antes da sua eclosão, justifica que se modifiquem ou resolvam os contratos negociados e celebrados quando o contexto era outro, mesmo nestes casos em que estão em causa instrumentos financeiros como o dos autos suscetíveis à normal volatilidade do mercado.
284. O art. 437º do CC, tem como pressupostos cumulativos de aplicação, a alteração das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar e que tal alteração seja uma alteração anormal e absolutamente imprevisível e extraordinária (o que sucedeu no caso dos autos).
285. Sendo aplicável, a parte lesada tem direito à resolução do contrato ou à modificação delesegundo juízos de equidade, desde que a exigência do cumprimento das obrigações por ela (parte lesada) assumidas afete gravemente os princípios da boa fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato.
286. Quando se refere à base do negócio, mencionam-se as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar, a “G...”. Esta discordância entre realidade e vontade contratual deve ser objectiva, não pode ter em conta as previsões ou pressuposições individuais dos contraentes: o futuro é, por definição, imprevisível, não há erro sobre o futuro.
287. Como refere Oliveira Ascensão, exemplificando a aplicabilidade do art. 437º do CC, “quem investe na Bolsa está sujeito aos riscos da oscilação das cotações, mas o encerramento das Bolsas é uma ocorrência extraordinária”, neste caso há uma alteração anormal das circunstâncias, dado que a base do negócio deve ser rompida por eventos objetivamente imponderáveis (com é o caso da pandemia).
288. Ora, esse exemplo é exatamente paralelo à situação dos fundos financeiros em causa nos autos
- a pandemia e as consequentes na economia mundial e nas cotações foram um evento objetivo imprevisível, imprevisto e anormal.
289. Significa apenas que as circunstâncias em que as partes se basearam, em que fizeram assentar a celebração do negócio, sofreram uma modificação que o curso anterior da realidade não deixava prever: a doença pandémica faz parte da História da Humanidade, mas a sua ocorrência, quando devastadora, não deixa de ser anormal - as doenças pandémicas são imponderáveis numa sociedade em que a maior parte das doenças é controlável e está controlada.
290. Importa recordar que, a Margin Call e stop loss não obrigam o Banco a vender, quando muito apenas lhe permite essa possibilidade, mas como é evidente, essa decisão não pode, como foi o caso, ofender as regras, contratuais e legais, ou os princípios da boa-fé
291. É claro que o Banco Recorrido optou por vender os instrumentos, como forma de evitar o seu prejuízo, ignorando totalmente o prejuízo que as vendas provocariam ao Recorrente, facto que o Banco Recorrido tinha pleno conhecimento,
292. Tais vendas, além do mais, foram precipitadas e fruto de um pânico, instalado no Banco Recorrido, como, aliás, resulta da contestação de fls. e do depoimento das testemunhas arroladas pelo Banco Recorrido.
293. No caso concreto, o comportamento do Banco provocou ao Recorrente, a designada “lesão enorme”, assim desequilibrando, para além do risco aceitável, os termos e condições que fundamentaram a celebração dos contratos em causa
294. Perante a evidência de uma alteração de circunstâncias anormal (como a súbita eclosão da pandemia COVID-19), aos casos pontuais em que o equilíbrio contratual se tenha alterado ou rompido com prejuízo manifesto de uma das partes, para quem a exigência de cumprimento do contrato nessas condições comporte danos obviamente causados por esse desequilíbrio que não seja legítimo, exigia-se que o Banco Recorrido não tivesse efetuado a venda em março de 2020, em plena pandemia,
295. Impondo a boa-fé, que tivesse aguardado pelo desenrolar desse fenómeno, até porque, pouco tempo depois, as cotações voltaram a subir, para níveis pré-pandémicos, com valores que impediam o preenchimento das figuras da Margim Call e Stop Loss.
296. Os contratos civis são contratos entre iguais. As grandes alterações sócio-económicas, como as que podem decorrer da pandemia COVID-19, justificam a modificação de um contrato se, como no caso concreto, se romper o equilíbrio contratual com lesão enorme para uma das partes que torne inexigível, pela boa-fé, o cumprimento da obrigação assumida.
297. Deve ser reconhecida e declarada por este Tribunal “ad quem”, e consequentemente a ilegalidade e ilicitude das vendas dos instrumentos financeiros, o que se requer com todas as demais consequências legais.
298. Do notório desequilíbrio entre as prestações e contraprestações relutantes da execução contratual – Abuso de Direito 299. No caso concerto, a execução contratual em causa (nomeadamente o comportamento do Banco Recorrido - vendas), causou um notório desequilíbrio notório nas prestações e contraprestações contratuais das partes, sem justificação para tal, o que não é admissível à luz do princípio da boa-fé contratual.
300. Assim, a execução contratual em concreto é também manifestamente abusiva, ofende os bons costumes e a boa-fé negocial, desde logo, porque, tudo ponderado, se verifica, que, após os resgates/vendas dos instrumentos financeiros, e como consequência direta e necessária dessas vendas, se verifica um resultado económico que corresponde a um manifesto desequilíbrio da prestação e contraprestação das partes, 301. Na verdade, por força das vendas dos instrumentos financeiros, o Recorrente teve um prejuízo de superior a € 100.000,00 e o Banco Recorrido não perdeu qualquer quantia, antes ganhou em comissões (pagas pelo Recorrido e pelos instrumentos financeiros).
302. Verifica-se, assim, que da execução contratual (mais a mais considerando as circunstâncias – pandemia) resultou um sacrifício incomportável apenas para uma das partes – o Recorrente.
303. Ora, como se demonstrou, o comportamento do Banco Recorrido foi desleal, inesperado, imprevisível e factualmente infundamentado, contrário a todo o comportamento anterior e à convicção que criou no autor, sendo que o exercício do direito em causa defraudou a confiança do Autor e provocou-lhe danos irreversíveis, gravosos e injustificados. 304. Importa ainda notar que, não foi a baixa da cotação dos instrumentos financeiros em causa, o risco do negócio ou qualquer outra das razões invocadas na carta do Banco, suprarreferida, que determinou as vendas/resgates em causa.
305. Na verdade, o Banco Réu ao aperceber-se da existência e contornos da pandemia, do confinamento determinado pela mesma e das consequências nas cotações dos instrumentos financeiros, entrou em pânico, e com medo de perder os montantes que havia emprestado ao Recorrido, apesar das garantias de cumprimento e solvabilidade deste que já detinha.
306. Até porque em finais de Março e em Abril de 2020, pouco tempo depois das vendas/resgastes em causa, com a racionalização das consequências da pandemia e evolução científica, já os mercados financeiros tinham recuperado da baixa das cotações, que subiram para os valores pré- pandémicos, sendo que alguns instrumentos financeiros tinham até, nessa data, cotações superiores ao valor pré-pandémico.
307. Com as vendas/resgastes, o Banco Réu preocupou-se única e exclusivamente com a proteção do seu património e crédito e das suas vantagens, preferindo ignorar os prejuízos que as vendas/resgates causavam ao Autor.
308. Certo é que, tal opção do Banco Réu salvaguardou os interesses económicos deste à custa dos graves prejuízos que causou ao Autor, do que resulta que do exercício do alegado direito do Banco, nas circunstâncias e contexto pandémico, resultou um desequilíbrio nas contraprestações e vantagens que apenas e MUITO favoreceram o Banco Recorrido, assim tal comportamento ofendendo os princípios basilares de boa-fé e da lealdade e demais deveres do intermediário financeiro.
309.Assim, a execução contratual e que o comportamento do Banco Recorrido, configura uma situação de abuso de direito.
310.Como é consabido, o abuso de direito emerge quando sendo respeitada a estrutura formal do direito, o respetivo exercício viola a afetação substancial, funcional e/ou teleológica do direito.
311.Verifica-se abuso de direito, nos termos do art.º 334.º n.º 1 do C.C., quando o titular do direito exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
312.Atentos os factos descritos, é clamorosamente ofensivo e viador da boa-fé o comportamento do Banco Recorrido, nomeadamente ao ter efetuado a venda dos instrumentos financeiros contra a vontade do Recorrente (mais a mais em plena pandemia).
313.Pelo que ainda que o mesmo fosse legítimo, e não é, o exercício do direito em causa sempre deveria decair, por ilegal, em face do instituto do abuso de direito.
314.Razões de lealdade e confiança são inerentes ao princípio da boa-fé, que se impõe, quer na negociação dos contratos, quer na sua execução, conforme dispõem, respetivamente o art.º 227.º e 762.º n.º 2 do C.Civil.
315.O abuso de direito deve ser reconhecido e declarado por este Tribunal “ad quem”, e consequentemente a ilegalidade e ilicitude das vendas dos instrumentos financeiros, o que se requer com todas as demais consequências legais.
316. Neste sentido, Ac. STJ, de 31-05-2011, Proc. 854/10.2TJPRT.S1 Ac. STJ de 08-05-2013, Proc. 813/09.8YXLSB.S1 AC. STJ de 24-04-2014, Proc. 6659/09.6TVLSB.L1.S1. Incumprimento das Obrigações Contratuais do Banco Réu
317. Como já se referiu, independentemente da eventual validade da causa ou do fundamento, para poder validamente vender/resgatar os investimentos/aplicações/contratos em causa, o Banco Réu estava obrigado a comunicar, por escrito, tal intenção ao Autor, devendo tal comunicação ser efetuada por carta registada com aviso de receção (vide, por exemplo, doc. nº 27, 28, 30, cláusulas 28.1. e 24). 318. Acontece que o Banco nunca enviou qualquer comunicação, registada ou por registar, ao Autor, nomeadamente a informar a sua intenção de proceder à venda e resgates em causa, não o fez antes de as concretizar, nem sequer depois (como se disse o Autor apenas tomou conhecimento da respetiva concretização depois de serem efetivadas pelo Banco Réu e somente pela leitura do extrato mensal habitualmente enviado pelo Banco Réu).
319. Em qualquer caso, existe um claro incumprimento contratual do Banco quanto ao meio das comunicações (cartas) em causa, porquanto, como resulta dos contratos juntos aos autos, as comunicações, para serem válidas e eficazes tinham de ser remetidas e recebidas, pelo Banco ao Recorrente, por carta registada com aviso de AR, (B... - Capital próprio do Recorrente (a venda depende apenas da decisão do cliente); A... - Clª 24.1. (doc. 14 contestação) e Clª 28.1. (doc. 15 contestação); C... - Clª 24.1. (doc. 18), sendo de 30.000,00 era capital próprio (a venda depende apenas da decisão do cliente); Contrato de Mútuo (doc. 27 contestação) e Contrato de penhor (doc. 28 contestação) clª 12.3.).
320. Quanto aos instrumentos financeiros de investimento, existem investimentos com capital próprio e exclusivo do Recorrente, nos quais a venda depende apenas da decisão do cliente, e nos demais está convencionada uma obrigação clara de comunicação por carta registada com AR, que se mostra violada.
321. Quanto aos mútuos e penhor a necessidade de registo e AR resulta da interpretação da cláusula 11ª do penhor- comunicações, onde se refere que tal é obrigatório quando exista essa obrigação nos contratos conexos e dados ao penhor (“salvo disposição legal ou contratual em contrário” – sendo que, como acima visto) existe disposição contratual em contrário, nos contratos de investimento que, como indicado, exigem comunicação por escrito com AR
322. Mais, ninguém, nomeadamente o homem médio, e considerando as obrigações previstas no CVM, pode achar normal que estando em causa € 420.000,00 se baste uma comunicação por carta simples sem garantia do respetivo recebimento pelo afetado – cliente e investidor.
323. Acresce que o procedimento comunicacional adotado pelo Banco Recorrido, viola frontalmente o espírito da Margin Call e Stop Loss, por não terem comunicado a MC e SL e o necessário reforço garantias ao investidor,
324. Assim, por incumprimento contratual, AS VENDAS SÃO ILEGAIS E VIOLAM O CONTRATADO, o que deve ser reconhecido e declarado pelo Tribunal com todas as consequências legais.
325. Por tudo o exposto, deve este Tribunal revogar a decisão de absolvição proferida pelo Tribunal “a quo” e julgar provada e procedente a presente ação, substituindo essa douta sentença por decisão condene o Banco Recorrido nos termos do pedido formulado na p.i., cujo conteúdo aqui s dá por reproduzido, nomeadamente:
326. Deve este tribunal declarar e reconhecer que as vendas/resgastes dos fundos de investimento/instrumentos financeiros, nomeadamente descritas nos art. 248º e 249º, foram promovidas unilateralmente pelo Banco Réu, sem conhecimento e contra a vontade do Autor, em violação das obrigações do Banco Réu, nomeadamente os deveres e requisitos emergentes dos respetivos contratos, bem como os deveres do intermediário financeiro, assim declarando e reconhecendo que tais vendas/resgastes são ilegais, ilícitas e violam o conteúdo contratual acordado entre Autor e Banco Réu, o que se requer com todas as demais consequências legais;
327.Deve este tribunal declarar e reconhecer que todas as cláusulas de “margin call”, “stop-loss” e demais cláusulas abusivas, designadamente relativas ao vencimento antecipado, ao reforço de garantias e ainda as referidas no corpo deste articulado, apostas nos contratos em causa nos autos são ilegais, ilícitas e abusivas, nomeadamente por se tratar de cláusulas contratuais gerais que violam o disposto no Decreto-Lei 446/85 de 25 de outubro, nomeadamente o art. 12º, designadamente os dever de equilíbrio entre as partes, de boa-fé, quer pré-contratual, quer contratual, o que se requer com todas as demais consequências legais;
328.Deve este Tribunal julgar e declarar nulas e de nenhum efeito, as cláusulas de “margin call”, “stop loss”, e demais cláusulas abusivas, designadamente relativas ao vencimento antecipado, ao reforço de garantias e ainda as referidas no corpo deste articulado, apostas em todos os contratos em causa nos autos, nomeada mas não exclusivamente, nos seguintes contratos: Contrato de Mútuo, junto como doc. 27, designadamente as cláusulas nºs 1.24, 1.30., 1.25, 1.25(a), 1.25 (b) 1.31, 1.31(a), 1.31 (b) das Condições Particulares, e cláusulas 1.1.1, 12., 12.1 a 12.6; 13., 13.1 a 13.3; 20, 20.1, 20.1.2, 20.3, 20.1.5; 21, 21.1, 21.2 e 21.3; 22., 22.1, 22.1.1. das Condições Gerais, Contrato de Mútuo, junto como doc. 30, designadamente as cláusulas nºs 1.22., 1.22(a) 1.22 (b) 1.27., 1.27(a) 1.27 (b), das Condições Particulares, e cláusulas 1.1.1, 1.1.11, 1.1.14, 15. 15.1, 20, 20.1, 20.1.6, 20.2, 20.4, 21, 21.1, 21.3, 21.4, 22, 22.1, 22.1.1. das Condições Gerais, Contrato de Mútuo, junto como doc. 55, designadamente as cláusulas 1.4, 5. 11., 11.2.,12., 12.1, 12.2, 13, 13.2, 13.3 das Condições Gerais. Contrato de Mútuo, junto como doc. 57, designadamente as cláusulas das condições particulares, para efeitos de Margin Call: (%) 120 do valor do financiamento, para efeitos de Stop Loss: (%) 115 do valor do financiamento, e cláusulas 1.1. 1.4., 2.3. 2.3.1. alínea (b), 3., 3.1., 3.1.1., 3.2, 3.2.1., 3.2.2., 7., 7.1., 7.2.,7.3., 8, 8.1., 8.1.1., 9. 9.1 e 9.2, 10. 10.1. das condições gerais., bem como todas as cláusulas de “margin call”, “stop-loss” e demais cláusulas abusivas, designadamente relativas ao vencimento antecipado, ao reforço de garantias e ainda as referidas no corpo deste articulado, apostas e constantes dos demais contratos relativos aos investimentos em causa nos autos
329. Deve este Tribunal julgar e declarar ilícito o vencimento antecipado dos contratos de mútuo em causa nestes autos, promovido unilateralmente pelo Banco Réu, o que se requer com todas as demais consequências legais;
330.Deve este Tribunal condenar o Banco Réu a pagar ao Autor a quantia € 81.435,40, como ressarcimento e indemnização do dano resultante diretamente das vendas e resgastes dos fundos de investimentos /instrumentos financeiros em causa nos autos, acrescido dos juros de mora, calculados à taxa legal, desde as datas dessas vendas até efetivo e integral pagamento, o que se requer com todas as demais consequências legais;
331.Condenar o Banco Réu a pagar ao Autor a quantia € 24.289,16, como ressarcimento e indemnização do dano resultante da perda de rendimentos/rendas, rendas vencidas, decorrente das vendas e resgastes dos fundos de investimentos/instrumentos financeiros em causa nos autos, acrescido dos juros de mora, calculados à taxa legal, desde as datas dos respetivos vencimentos até efetivo e integral pagamento, o que se requer com todas as demais consequências legais;
332.Condenar o Banco Réu a pagar ao Autor a quantia € 3.031,80, como ressarcimento e indemnização dos encargos e despesas indevidamente debitados na conta bancária do Autor, acrescido dos juros de mora, calculados à taxa legal, desde as datas dos respetivos débitos até efetivo e integral pagamento, o que se requer com todas as demais consequências legais;
333. Deve este Tribunal condenar o Banco Réu a pagar ao Autor a quantia € 20.000,00, a título de danos não patrimoniais, acrescido dos juros de mora, calculados à taxa legal, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento, o que se requer com todas as demais consequências legais
334. Deve este Tribunal condenar o Banco Réu a pagar ao Autor as rendas vincendas relativas aos fundos de investimentos /instrumentos financeiros em causa nos autos, nomeadamente identificados no art. 252 da p.i., desde janeiro de 2022 até ao termo da vigência de cada um desses contratos/fundos investimentos, em valor a ser fixados em execução de sentença, o que se requer com todas as demais consequências legais;
335. E, em consequência, condenar o Réu, a pagar ao Autor, procuradoria, custas de parte e demais encargos com o presente processo, com as demais consequências legais
336. Ao julgar como julgou, o Tribunal “a quo” " fez, salvo o devido respeito, uma inadequada aplicação do direito, uma incorreta interpretação do mesmo e uma inadequada fixação da prova provada e não provada, violando, entre outros,
Foram violados todos os normativos e legislação referidos na motivação e conclusões do presente recurso, nomeadamente, os artigos, 101º da CRP, 334, nº 1, 342º, 364º, nº2, 374º, nº2, 437º, 227.º e 762.º n.º 2 do Código Civil, e ainda os artigos nºs 7º, nº1, 304º, nºs 1, 2 e 5, 304º-A, 305º, nº1, alínea a), 307º-B, 309º nºs 2 e 3, 310º, 311º, 312º,313º, 321º, nº3, 322º,nº 5, 326º, nº1, al. b), 327º, nº2, 347º, 358º, CVM, e ainda os arts.º 4º, 5º, nº 1, e 572º, alíneas b) e c), art. 414º, CPC, e também os Arts., º1, 12º, 15, 16º, 19º, alínea f), do Decreto-Lei 446/85 de 25 de outubro, e ainda os Princípios de direito, nomeadamente, da igualdade, da boa fé, da transparência, da lealdade, e da equidade.
337.Devendo, em consequência, ser revogada a douta sentença e a mesma substituída por outra que julgue provada e procedente a presente ação e, em consequência, deve este Tribunal “ad quem” condenar o Recorrido, nos termos peticionados na petição inicial e nas conclusões antecedentes, com todas as demais consequências legais.
Nestes termos, e nos que Vossas Excelências mui doutamente suprirão, julgando procedente o presente recurso e julgando de conformidade com as precedentes CONCLUSÕES, será feita uma verdadeira e sã JUSTIÇA. O ADVOGADO,
Nas contra-alegações as Rés sustentaram a improcedência das alegações de Recurso.
*
O recurso.
O recurso delimita-se pelas conclusões das alegações (artigos 635.º, n.º 3 e 640º n.ºs 1 e 3 do CPC), salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 608º, nº 2, in fine), em tudo o mais transitando em julgado.
Delimitado o recurso pelas conclusões das alegações as questões a decidir consistem:
1.Impugnação da matéria de facto;
2.Saber se o Réu, enquanto intermediário financeiro incumpriu o contrato ao proceder á venda antecipada dos produtos financeiros aplicados/ pelo Autor, e se o mesmo incorre em dever de indemnizar.
A apelante/Autora impugnou a matéria de facto. Sendo que quanto a este ponto do recurso temos de observar o que preceitua o art.º 640.º n.ºs 1 e 2 do C. P. Civil, ou seja, que é ónus do apelante que pretenda impugnar a decisão sobre a matéria de facto, isto é, não basta ao apelante atacar a convicção que o julgador formou sobre cada uma ou a globalidade das provas para provocar uma alteração da decisão da matéria de facto, sendo ainda indispensável, e “sob pena de rejeição”, que:
a) - Especifique quais os concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados;
b) - Indique quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem decisão diversa da recorrida sobre cada um dos concretos pontos impugnados da matéria de facto; indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respetiva transcrição.
c) – Indique a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Encontram-se satisfeitos estes requisitos legais.
O Autor mediante a presente impugnação pretende a alteração sobre os julgamentos dos seguintes factos do rol dos provados, ora com outra redação ora como não provados:
A.nºs. 47, 50,51,52,53,54,55,56,57,58, 59, 62, 80, 84, 85, 92, 95,98,99, 100, 101, 102, 103, 104, 105, 106, 107, 108, 109, 110, 111, 112, 113 e suas alíneas a) a c), 114 e suas alíneas a) a c), 115 e suas alíneas a) e b), 116 e suas alíneas a) e b), e 117, 132, 134, 135, da douta sentença, cujo teor supra se transcreveu e que aqui se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos.
B. Pretende que sejam julgados como provados os factos constantes das alíneas, H, P, R, V, X, Y, que a sentença julgou não provados.
*
As partes e a sentença recorrida qualificaram os contratos no âmbito da intermediação financeira.
A intermediação financeira designa o conjunto de atividades destinadas a mediar o encontro entre oferta e procura no mercado de capitais, assegurando o seu regular e eficaz funcionamento
Citamos a este propósito o ac. STJ de 20-06-2023, in www.dgsi.pt, que traz à colação o acórdão uniformizador de jurisprudência, nele referido, “1.O Banco atuou como intermediário financeiro e estava sujeito aos especiais deveres de informação consagrados no Código de Valores Mobiliários.
2. O direito aplicável é o Código de Valores Mobiliários, na redação originária do DL n.º 486/99, de 13 de novembro, as normas de direito comum relativas à responsabilidade civil pré-contratual (artigo 227.º do Código Civil) e à responsabilidade civil contratual (artigos 798 e seguintes do Código Civil), bem como as normas jurídicas que regulam o dever de indemnização (artigo 562.º e 564.º do Código Civil) e o nexo de causalidade entre o facto ilícito e o dano (artigo 563.º do Código Civil).
3. Sobre as questões de direito aqui suscitadas pelo recorrente, foi proferido um Acórdão Uniformizador de Jurisprudência (doravante designado por AUJ n.º 8/2022), proferido no Processo n.o 1479/16.4T8LRA.C2. S1-A e publicado em Diário da República, I .ª Série, N.º 212, 3 de novembro de 2022, pp. 10 e seguintes.”
Como contrato “O negócio jurídico de intermediação financeira deve considerar-se como um "contrato-quadro", um "negócio de cobertura" ou um contrato organizatório, que tem a função de previsão das diretrizes gerais do projeto a desenvolver no futuro e das relações negociais, devendo ser reduzido a forma escrita (artigo 321.º, n.º 1, do CVM) e observar um conteúdo mínimo imposto por lei, funcionando assim como um instrumento de informação e de transparência contratual (artigo 321.º-A, do CVM).” – cfr Ac. STJ de 23-03-2021, in www.dgsi.pt.
Perante este contrato de intermediação financeira celebrado entre as partes e o incumprimento imputado à Ré pelo autor, defende-se a Ré dizendo que os produtos financeiros dada a volatilidade de mercado, neste caso influenciada pela pandemia, atingiram a fase de pré aviso “Margin Call” e depois a “Stop Loss”, e tendo avisado o autor, este não fez um reforço dado a contínua desvalorização dos produtos financeiros, reforço que podia ser em dinheiro ou qualquer outra garantia. Este reforço evitaria a venda antecipada dos produtos investidos.
Mas o Autor sustenta que a Ré não cumpriu o contrato de intermediação financeira celebrado entre ambos, e que este incumprimento lhe causou prejuízo, uma vez que se materializou na venda/resgate dos fundos de investimento/instrumentos financeiros, visto ter sido considerado, face ao contexto, o seu vencimento antecipado, incumprimento que consiste na errada percepção do momento do “Margin Call” e “Loss Stop”; de não ter sido suficientemente informado e esclarecido deste ponto com elementos contabilísticos escritos; que o mercado – volátil – recuperou logo de seguida, e, no momento da ordem de venda, esta deveria ter sido abortada (pois que, inclusivamente na altura da ordem de venda, já estes momentos de risco – “Margin Call” e “Stop Loss”, estavam ultrapassados, a venda/resgate deixou de ter razão de ser ocorrendo a sua valorização e regularização); não lhe foi comunicado o montante de reforço da garantia e que mesmo assim, dados os altos padrões de exigência e lealdade exigidos pela lei (CVM) impunha-se que tivesse utilizado as várias livranças que subscreveu e entregou ao branco.
Desta feita o Autor imputa ao Réu comportamentos de falta de informação, temerários, e pouco diligentes no ato da venda dos seus produtos, porquanto refere falta informação sólida, com elementos contabilísticos das situações de “Margin Call” e “Stop Loss”, o montante do reforço para garantir os produtos (que impediria a venda), que o réu tinha na sua posse livranças em branco, podendo dessa forma fazer o reforço, de proceder à venda no dia que estes pontos de queda e críticos já estavam ultrapassados e os produtos a valorizar.
A cláusula “Margin Call” define o limite mínimo fixado em contrato, abaixo do qual o banco pode pedir um reforço das garantias prestadas no âmbito do financiamento concedido aos clientes.
A clausula “Stop Loss”, define o limite fixado em contrato, abaixo do qual o banco pode pedir um reforço das garantias prestadas no âmbito do financiamento concedido aos clientes.
Pois bem atentemos nos deveres de informação do intermediário financeiro. São de dois tipos, fixando-se em 2 grupos: os deveres de informação pré-contratual regulado nos artº 312º do CVM destinados ao investidor para que possa tomar decisões esclarecidas e devidamente fundamentadas sobre os projetos de investimento, gerando-se um clima sadio de segurança e confiança essenciais ao funcionamento de mercado de capitais; Os deveres de informação contratual estão previstos no artigos 323º e segts do CVM e têm por objeto os deveres de informação nas operações de execução de ordens e o efeitos das operações a realizar e realizadas.
Estamos no âmbito de uma ação de responsabilidade civil, e, nestes autos o incumprimento atribuído à Ré situa-se essencialmente nestes segundos deveres.
Feitas estas considerações resulta da análise da matéria de facto:
1.Não consta a existência dos alegados prejuízos do autor pelo alegado incumprimento da Ré na matéria de facto fixada na sentença.
2.Que é necessário apurar a data da venda dos produtos, a garantia necessária e o respetivo valor para evitar os alegados Margin Call e Stop Loss.
3.Dada a complexidade da operação e avaliação do risco convém apurar se à data em que o banco deu ordem dos resgates dos produtos financeiros do autor, já estes estavam em recuperação, não se encontrando em situação de “Margin Call” e “Stop Loss” e continuaram a subir – cfr. alínea X e Y) dos factos não provados e bem assim se em Junho de 2020 tinha voltado ao normal de Fevereiro do mesmo ano.
Assim e dada a alegação destes factos, para melhor enquadramento e resolução deste caso ao abrigo do disposto no artº411º do CPC, impõe-se a anulação do julgamento por existirem dúvidas fundamentadas sobre a prova produzida e a sua repercussão no apuramento da verdade material, para a realização de perícia especializada com o confronto da documentação e com o mercado de valores de capitais, para avaliar os pontos, 1, 2 e 3 e se necessário proceder à requisição por parte do tribunal dos documentos oficiais aos organismos competentes constituindo novos produção de meios de prova ao abrigo do disposto no artº 662º, nº 2, e b) do CPC.
Assim na procedência das conclusões das alegações de recurso decide-se nos termos do artº662º, nº2, c) e b) do CPC, anular a sentença recorrida para ampliar a matéria de facto e renovação dos meios de prova nos termos expostos.
Custas a final pela parte vencida a ser levados em conta a final- artº 527º do CPC.
Sumário:
………………………………
………………………………
………………………………
Porto, 28/1/2025
Maria Eiró
Anabela Miranda
Rui Moreira
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TRP
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https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/43a38412b72cf64d80258c2f003ff38b?OpenDocument
|
1,738,195,200,000
| null |
386/24.1T8BJA.E1-A
|
386/24.1T8BJA.E1-A
|
FILIPE AVEIRO MARQUES
|
Sumário
:
1.
O despacho que altera o regime de visitas deve ser fundamentado, embora a sua medida deva adequar-se ao tipo de decisão a proferir e à sua complexidade.
2.
A absoluta falta fundamentação, mesmo que sumária ou simplificada, de facto e de direito desse despacho conduz à sua nulidade.
3.
É pressuposto da substituição referida no artigo 665.º CPC que o Tribunal superior possua todos os elementos necessários para o efeito, o que não ocorre nos casos, como os dos autos, de absoluta omissão de fundamentação de facto e de direito.
|
[
"FUNDAMENTAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS",
"NULIDADE",
"REGULAÇÃO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS"
] |
Apelação n.º
386/24.1T8BJA.E1-A
(1.ª Secção)
Relator: Filipe Aveiro Marques
1.º Adjunto: Filipe César Osório
2.º Adjunto: Fernando Marques da Silva
***
Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:
I. RELATÓRIO:
I.A.
AA
, requerente nos autos de Regulação das Responsabilidades Parentais que instaurou contra
BB
, interpôs recurso do despacho de 11/10/2024 (Referência: 34815305) proferido pelo Juízo de Família e Menores de ..., do Tribunal Judicial da Comarca de ..., que é do seguinte teor:
“
1. Vistos os autos.
2. Ref.ª 2850593 – Tomei conhecimento. Dê conhecimento aos progenitores.
3. Atento o teor das informações prestadas pela EMAT decido suspender por 6 meses os convívios entre o progenitor e a criança, após o que se reavaliará a situação.
4. Oficie à EMAT solicitando que decorridos 6 meses nos seja informado o ponto da situação e da viabilidade de retoma dos convívios
”.
O requerente/apelante, na sua petição inicial de 27/02/2024, tinha vindo requerer a regulação do exercício das responsabilidades parentais relativamente ao filho de ambas as partes
CC
.
Por despacho de 14/03/2024 consignou-se que foi consultado o processo por crime de violência doméstica, tendo-se verificado que não foram aplicadas quaisquer medidas de coacção e foi oficiado a esse processo crime para que seja comunicado, caso sejam aplicadas medida dessa natureza.
Por despacho de 27/05/2024 foi designada data para conferência de pais.
Em 17/09/2024 foi realizada a conferência de pais onde foram tomadas declarações ao requerente e à requerida. Na falta de acordo entre eles, o Ministério Público requereu a audição do menor, o que foi deferido e realizado. De seguida, o Ministério Público requereu que se fixasse regime de regulamentação das responsabilidades parentais a título provisório nos seguintes termos:
“
1) O menor (…) mantém a residência junto da mãe.
2) As responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância para a vida da criança serão exercidas conjuntamente por ambos os progenitores, exceto nos casos de manifesta urgência, em que qualquer um deles poderá agir sozinho, devendo informar o outro logo que possível.
3) As responsabilidades parentais relativas às questões da vida corrente do menor serão exercidas pelo progenitor com quem a criança se encontre.
4) A título de prestação de alimentos, o pai contribuirá com a quantia mensal de €75,00 (setenta e cinco euros), a pagar por transferência ou depósito bancário para a conta de titularidade da mãe com IBAN (…), até ao dia 8 (oito) de cada mês.
Mais requereu que, nos termos do artigo 28.º do R.G.P.T.C., se fixe um regime de convívios supervisionados entre o pai e o menor, a executar nas instalações da Segurança Social de ....
”.
Foi, então, proferido despacho do seguinte teor:
“
Estabelece o artigo 38.º do RGPTC que, não sendo obtido o acordo dos progenitores em sede de conferência de pais, o juiz decide provisoriamente quanto ao pedido formulado. O estabelecimento de um regime provisório configura-se como um poder-dever do juiz, que por período e condições determinadas, regula as responsabilidades parentais conforme entender mais conveniente para os interesses da criança, considerados os elementos existentes nos autos.
A solução consagrada na lei favorece a obtenção de acordo quanto à regulação do exercício das responsabilidades parentais, e permite ainda ajuizar da utilidade e adequabilidade do regime definitivo a estabelecer e sua exequibilidade.
No caso vertente, e atendendo quer aos elementos constantes dos autos, quer às declarações prestadas pelos progenitores decido fixar o regime provisório nos exatos termos requeridos pelo Ministério Público.
*
Oficie à EMAT de ... solicitando a elaboração de plano de convívios supervisionados da criança com o progenitor, a efetuar 1 (uma) vez por mês.
Mais solicite que o plano de convívios a implementar seja remetido aos presentes autos, e após o início da sua execução, solicite a remessa de relatório intercalar.
”
Recebido ofício a 7/10/2024 da Unidade de Desenvolvimento Social (Núcleo De Infância e Juventude) da Segurança Social, foi aberta vista ao Ministério Público que promoveu nos seguintes termos: “
Visto. O Ministério Público não se opõe ao deferimento da proposta apresentada pela técnica da Segurança Social
”.
De seguida foi proferido o despacho recorrido.
As partes foram notificadas conjuntamente do despacho e do ofício de 7/10/2024.
I.B.
O requerente/apelante apresentou alegações que terminam com as seguintes conclusões:
“
1 - O Recorrente vem interpor recurso da decisão proferida por douto Despacho em 11/10/2024, com a Ref. 34815305, o qual decidiu o Tribunal “a quo”: “…Atento o teor das informações prestadas pela EMAT decido suspender por 6 meses os convívios entre o progenitor e a criança, após o que se reavaliará a situação.”
2 - O Recorrente AA requereu a Regulação do Exercício das Responsabilidades Parentais, quanto ao seu filho CC, contra BB, nos termos do artigo 43º do RGPTC.
3 - O Recorrente e DD são pais do menor CC, e viveram em união de facto desde Dezembro 2008 até ... de ... de 2023, encontrando-se separados desde essa data o qual saiu de casa onde vivia com o Recorrente, sem qualquer motivo e aviso e levou o filho consigo.
4 - Desde a separação, ou seja, desde ... de ... de 2023, que o Recorrente nunca mais teve notícias e nem esteve com o seu filho, inclusive desconhecendo onde reside e onde estuda.
5 – Por desconhecer o paradeiro do seu filho, requereu o Recorrente ao Tribunal que fosse fixado os termos relativamente ao exercício das responsabilidades parentais do menor, nomeadamente, no que respeita ao regime de visitas, pensão de alimentos e residência da menor.
6 – A Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), informou os autos que a mãe do menor e o mesmo se encontravam em acolhimento numa Casa de Abrigo para Mulheres Vítimas de Violência Doméstica.
7 - Por despacho do Tribunal “a quo” com a Referência: 34278616, foi consignou:
“2. Consigno que após ter obtido informação relativamente ao número do processo crime de violência doméstica (NUIPC 1665/23.0...) consultei o mesmo, eletronicamente, tendo verificado que não foram aplicadas quaisquer medidas de coação, assim devem os autos aguardar o agendamento, de modo a salvaguardar a prioridade relativamente aos processos entrados.
3. Oficie ao processo crime solicitando que caso sejam aplicadas medidas de coação tal nos seja, de imediato, comunicado.”
8 - O Recorrente desconhece se existe algum processo crime de violência doméstica, uma vez que em momento algum foi citado do mesmo, além de que em momento algum praticou qualquer ato de violência doméstica, contra a mãe do menor e o próprio menor.
9 - No dia 17 de setembro de 2024, realizou-se a conferência de pais a que alude o artigo 35º do RGPTC, no Tribunal “a quo”.
10 - Na mencionada conferencia foram questionados “os progenitores as circunstâncias que levaram ao afastamento do CC do seu pai. Neste momento, pela progenitora foi dito que a separação ocorreu em contexto de violência doméstica entre o casal. Mais refere que o seu filho também terá sido vítima dessa violência, pois terá sido obrigado pelo pai a trabalhar no monte e a tratar dos cavalos contra a sua vontade, e por essas razões ficou transtornado e com receio do pai, pelo que não pretende falar nem estar com este. Mais referiu que o menor que se encontra a ser acompanhado por Pedopsiquiatra, estando presente no Tribunal Judicial de Vila Pouca de Aguiar na companhia dessa Pedopsiquiatra (Dr.ª EE), com o intuito de prestar declarações por aconselhamento e vontade da própria e da sua ilustre mandatária. O progenitor/requerente negou as acusações de violência, explicando que por uma ocasião atingiu o filho com um chicote, sem querer, enquanto se encontravam a treinar um cavalo.”
11 - Perante a falta de acordo entre os progenitores, a Senhora Procuradora requereu que se aproveitasse a presença do menor CC no Tribunal Judicial de...para se proceder à sua audição com o intuito de se recolherem mais alguns elementos que permitam ao Tribunal fixar convívios entre este e o progenitor, o que foi determinado de imediato pela Mm.ª Juiz, tendo a criança sido ouvida só na sua presença, bem como da Senhora Procuradora e acompanhado da Pedopsiquiatra Dr.ª EE, ficando a audição documentada através do sistema de gravação disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, com inicio pelas 10h21m20s e com termo pelas 10h32m42s.
12 - A Senhora Procuradora requereu que se fixasse o regime de regulação das responsabilidades parentais a título provisório, nos termos do artigo 28.º do R.G.P.T.C., com os convívios supervisionados entre o pai e o menor, a executar nas instalações da Segurança Social de ....
13 – Em consequência, foi proferido por despacho: “… No caso vertente, e atendendo quer aos elementos constantes dos autos, quer às declarações prestadas pelos progenitores decido fixar o regime provisório nos exatos termos requeridos pelo Ministério Público. Oficie à EMAT de...solicitando a elaboração de plano de convívios supervisionados da criança com o progenitor, a efetuar 1 (uma) vez por mês. Mais solicite que o plano de convívios a implementar seja remetido aos presentes autos, e após o início da sua execução, solicite a remessa de relatório intercalar.”
14 - O Recorrente ficou a aguardar indicação da data para o início dos convívios com o seu filho.
15 - No entanto, antes do agendamento das visitas, foi junto aos autos um Relatório Social emitido pela Unidade de Desenvolvimento Social de Infância e Juventude, de ..., sobre o plano de convívios supervisionados do menor ao Recorrente, no qual:
“… A progenitora verbalizou que o menor tem medo do progenitor e que não quer falar com o mesmo, devido aos mãos tratos quer físicos, quer psicológicos, que o próprio menor sofreu às mãos do requerente;
Conclusão/Parecer:
Face ao exposto e segundo a opinião da técnica da Segurança Social, da progenitora, da técnica da APAV e do menor (em não querer e dizer que tem medo do pai), parece-nos, que deveríamos deixar que o menor retoma-se o acompanhamento pelo psicólogo da escola que frequenta e em articulação depois com o mesmo, elaboraríamos um plano de visitas supervisionadas, quando o psicólogo nos desse a entender que o menor se encontrava em condições de poder estar com o seu progenitor.”
16 - Por douto Despacho em 11/10/2024, com a Ref. 34815305, ora recorrido, decidiu o Tribunal “a quo” suspender por 6 meses os convívios entre o progenitor e a criança, após o que se reavaliará a situação.
17 - O Recorrente desconhece o conteúdo do alegado processo crime de violência doméstica.
18 - Em momento algum o Recorrente teve comportamentos violentos com a mãe do seu filho e o seu filho. Nem violência física, nem violência psicológica. Aliás, vem agora a mãe do menor alegar comportamentos do Recorrente para com o seu filho, no entanto, se esses comportamentos existissem, o que não aconteceu, em momento algum foi apresentada alguma denuncia ou queixa crime contra o Recorrente.
19 - O filho do Recorrente em momento algum apresentou comportamentos de resistência, em relação ao progenitor. A alegada violência em momento algum aconteceu. O menor sempre quis acompanhar o Recorrente, vivendo uma vida feliz e sem qualquer perturbação ou ansiedade, porque nunca existiu qualquer motivo para tal.
20 - O Recorrente não pode ter outra opinião que não seja uma manipulação da mãe do menor de forma a evitar a convivência do menor com o Recorrente, deturpando a verdade e inventando factos.
21 - Por outro lado, em momento algum o filho do Recorrente descreveu os comportamentos relatados no relatório apresentado pela APAV de .... Aliás, conforme o mencionado relatório é a progenitora “que verbalizou que o menor tem medo do progenitor e que não quer falar com o mesmo”.
22 – Não existe nenhuma decisão relativamente ao alegado processo crime por violência doméstica á mãe do menor, nem existiu, nem poderá existir, porque não aconteceu qualquer comportamento do Recorrente nesse sentido. De igual forma que nunca existiu qualquer comportamento de violência em relação ao seu filho.
23 - Cada vez mais há um afastamento entre o menor e o Recorrente, sem qualquer motivo real nem comprovado.
24 - Aliás, com o devido respeito, que é muito, e salvo melhor opinião, somente após a existência de visitas entre o menor e o Recorrente, é que será possível avaliar as mesmas visitas e o relacionamento entre ambos. Situações que não é possível apurar por impedimento, á realização dos convívios supervisionados entre o pai e o menor.
25 - A permanência do afastamento entre pai e filho, e o fato da mãe do menor, informar e falar com o mesmo sobre a alegada violência doméstica, que não existiu, é intencional, de forma a afastar o menor do Recorrente, deturpando a verdade. Não existe nenhuma medida de coação, nem condenação aplicada ao Recorrente,
26 - O Recorrente desconhece por completo se efetivamente o menor se recusa em se sujeitar às visitas com o mesmo, uma vez que os convívios supervisionados entre o pai e o menor, a executar nas instalações da Segurança Social de..., ainda não foram iniciados em sequência do douto Despacho ora recorrido.
27 - Aliás, somente após a realização das mesmas poderão ser apuradas as razões desse comportamento, a existir, não sendo possível apurar efetivamente e em verdade, se o menor se opõe aos convívios com o Recorrente. De igual forma o Recorrente desconhece se efetivamente o seu filho tem algum acompanhamento psicológico e qual a causa do mesmo.
28 - É entendimento do Recorrente que não existe fundamento para a não realização das visitas ao seu filho, em regime de convívios supervisionados, a executar nas instalações da Segurança Social de ....
29 - A inexistência de quaisquer contatos pessoais entre Recorrente e filho, não possibilita a construção de um quotidiano familiar e social entre o progenitor e o filho, nem permite gerar e consolidar laços afetivos com o progenitor, os quais são essenciais para um desenvolvimento psicoafectivo ajustado.
30 - A decisão proferida, e ora recorrida, de suspensão por 6 meses das visitas supervisionadas, não é justa e adequada aos superiores interesses do menor, devendo por isso ser alterada nos seus termos, fixando-se visitas mensais, com recurso à intervenção e mediação da Segurança Social de..., conforme decisão judicial anterior.
31 - Entende o Recorrente que o douto Despacho ora recorrido, carece de fundamentação (de direito e de facto) a que se refere a alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do C.P.C..
32 - Por todas as razões expostas, e nos melhores de Direito, sempre com o mui douto suprimento de V. Exªs, deverá ser dado provimento ao presente recurso e, consequentemente, revogar-se a decisão recorrida, substituindo-se essa decisão por outra que dê provimento ao requerido, ou seja, á realização das visitas.
Assim decidindo, far-se-á, JUSTIÇA!
”
I.C.
A requerida/apelada veio apresentar contra-alegações onde defende a manutenção da decisão recorrida.
O Ministério Público também apresentou alegações defendendo a manutenção da decisão recorrida.
I.D.
O recurso foi recebido pelo tribunal
a quo
, como sendo de apelação, com subida nos próprios autos e efeito devolutivo.
Nos termos do artigo 617.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, foi determinada a baixa do processo para que fosse proferido o despacho a que alude o n.º 1 dessa norma, e, na Primeira Instância, foi apreciada a questão no sentido de se entender não se verificar a nulidade invocada.
Já neste Tribunal da Relação foi alterado o regime de subida, determinou-se a organização deste apenso e a baixa do processo principal à Primeira Instância.
Após os vistos, cumpre decidir.
***
II. QUESTÕES A DECIDIR:
As conclusões das alegações de recurso delimitam o respetivo objecto de acordo com o disposto nos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, mas não haverá lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (artigos 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).
No caso impõe-se apreciar:
a. a questão prévia da nulidade do despacho recorrido por falta de fundamentação;
b. não se verificando essa nulidade, se deve manter-se a suspensão do regime de visitas.
***
III. QUESTÃO PRÉVIA:
Como se viu, o recorrente invoca expressamente a nulidade do despacho recorrido por falta de fundamentação.
A recorrida, nesse particular (conclusão 23), veio defender que o despacho se encontra suficientemente fundamentado (invocando, mesmo, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21/03/2017, processo n.º 3084/08.0TBSXL-S.L1).
O Ministério Público defende, nesse ponto, que “
a fundamentação por remissão não determina, por si só, a nulidade da decisão por falta de fundamentação, desde que cumpra com a razão de ser da imposição constitucional e legal do dever de fundamentação – dar a conhecer as razões de se decidir de modo que permita, nomeadamente, dissentir. No caso em apreço consegue-se descortinar e alcançar as razões que levaram o Tribunal a decretar a suspensão do regime de convívios supervisionados provisoriamente fixado, porque a informação social, para a qual a decisão recorrida remete, concretiza‑as de modo perfeitamente claro e compreensível
”.
O despacho recorrido foi transcrito no relatório. Na parte impugnada é do seguinte teor: “
Atento o teor das informações prestadas pela EMAT decido suspender por 6 meses os convívios entre o progenitor e a criança, após o que se reavaliará a situação
”.
*
Dispõe o artigo 154.º do Código de Processo Civil (com a epígrafe: “
Dever de fundamentar a decisão
”) que:
“
1 - As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas.
2 - A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade.
”
Por seu turno, prescreve-se na alínea b), do n.º 1, do artigo 615.º do Código de Processo Civil que a sentença é nula quando “
não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão
”, norma aplicável aos despachos, “
com as necessárias adaptações
” (artigo 613.º, n.º 3 do Código de Processo Civil).
Será útil ter presente que decorre do artigo 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a expressa obrigação de fundamentação das decisões judiciais, nos seguintes termos: “
As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei
”.
A propósito da fundamentação dos despachos, António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa
[
1
]
, defendem que “
ainda que o pedido não seja controvertido ou que a questão não suscite qualquer dúvida, a respetiva decisão deverá ser fundamentada nos termos que forem ajustados ao caso. Naturalmente que tal dependerá da complexidade das questões ou da maior ou menor discussão que exista na jurisprudência ou na doutrina acerca das mesmas” e, ainda, que “no campo dos despachos interlocutórios, a exigência de fundamentação pode não ser tão intensa, autorizando-se o juiz a fundamentar por remissão para os fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, desde que verificados os seguintes requisitos: faltar oposição ao pedido pela contraparte e tratar-se de caso de manifesta simplicidade
”.
Permite-se, por isso, uma fundamentação por remissão apenas para os fundamentos alegados no requerimento ou na oposição quando reunidos dois requisitos que, no caso vertente, não estão verificados: nem existiu falta de oposição, nem é um caso de manifesta simplicidade.
Na verdade, o despacho recorrido não pode ser considerado como um despacho de mero expediente (cf. artigo 152.º, n.º 4, do Código de Processo Civil), pois não se destina simplesmente a prover andamento regular do processo, sem interferir no conflito de interesses entre as partes, pois que ainda é relativo ao regime provisório de regulação das responsabilidades parentais (e sobre o regime de visitas, parte muito importante do conflito que urge dirimir).
Não se pode dizer que sobre a matéria não existia oposição (essa ficou expressa na falta de acordo aquando da realização da conferência de pais; além de que o relatório e a promoção do Ministério Público não foram notificados às partes antes de se proferir o despacho recorrido); nem a matéria é de manifesta simplicidade (como se verifica pela circunstância de o Tribunal recorrido ter estabelecido um regime provisório depois da tomada de declarações dos progenitores e do menor e ter tomado, em parte, posição contrária após o relatório de uma técnica – que não está fundamentado juridicamente).
Só pode concluir-se, por isso, não estarem reunidos os requisitos para que se possa fundamentar por remissão.
Ora, “
é na fundamentação que o Tribunal colhe legitimidade e autoridade para dirimir o conflito entre as partes e lhes impor a sua decisão, sendo a fundamentação imprescindível ao processo equitativo e contraditório”, mas “só a falta absoluta de fundamentação, entendida como a total ausência de fundamentos de facto e de direito, gera a nulidade
” (nas palavras do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9/12/2021, processo n.º
7129/18.7T8BRG.G1.S1
[
2
]
).
É, por isso, consensual que apenas a absoluta falta de fundamentação e não a fundamentação alegadamente insuficiente e ainda menos o putativo desacerto da decisão pode incluir-se na previsão legal (neste sentido ver António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa
[
3
]
e, entre muitos outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2/06/2016, processo n.º
781/11.6TBMTJ.L1.S1
[
4
]
).
Mas, no âmbito do regime provisório de uma acção de regulação das responsabilidades parentais (regime que se aplicará às decisões, também provisórias, que alteram um regime provisório fixado) tem vindo a ser unanimemente entendido que tais decisões estão sujeitas à regra geral de fundamentação das decisões.
Neste sentido, podem consultar-se:
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 16/11/2010 (processo n.º
2861/09.9TBVCD-B.P1
[
5
]
): “
o julgador (…) deve fundamentar tanto no plano fáctico, como no plano jurídico, a decisão provisória por si proferida nos termos do art. 157 da OTM. (…) Se o não fizer, essa decisão é nula por falta de fundamentação
”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15/01/2013 (processo n.º
718/11.2TMCBR-A.C1
[
6
]
) “
Uma decisão provisória proferida no âmbito de providência tutelar cível de regulação do exercício do poder paternal instaurado no âmbito do art. 150º da O.T.Menores, sendo processo de jurisdição voluntária, deve ser fundamentada (…). Assim, o julgador (…) deve fundamentar tanto no plano fáctico, como no plano jurídico, a decisão por si proferida. A não fundamentação destas decisões implica a sua nulidade
”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 7/11/2013 (processo n.º
7598/12.9TBCSC-A.L1-6
[
7
]
): “
O princípio da motivação das decisões judiciais constitui uma das garantias fundamentais do cidadão no Estado de Direito. (…) E este princípio aplica-se a todas as decisões que incidam sobre qualquer pedido controvertido, incluindo, por conseguinte, a decisão a que respeita os presentes autos - regulação provisória do exercício das responsabilidades parentais - por força do princípio da aplicação subsidiária do código de processo civil, estabelecido no art.º 161.º da OTM. (…) A decisão recorrida é totalmente omissa na referência às razões que, à luz dos princípios legais aplicáveis, – a defesa do superior interesse da criança – justificariam a mesma. Logo, é nula (…)
”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 27/02/2020 (processo n.º
2069/19.5T8PTM-A.E1
[
8
]
): “
no âmbito de uma providência tutelar cível, na qual o citério da oportunidade ou conveniência dá azo à prolação de uma decisão provisória, tal não implica que o Julgador esteja dispensado de cumprir o ritualismo mínimo inerente à decisão, designadamente a discriminação dos factos que considera provados e relevantes para sustentar a sua posição aplicando-lhe o direito que tiver por adequado; (…) as decisões judiciais, sejam elas sentenças ou simples despachos, carecem de ser fundamentadas, excluindo-se apenas o dever de fundamentação das decisões de mero expediente
”;
- o Acórdão deste Tribunal da Relação de Évora 11/02/2021 (processo n.º
1433/20.1T8FAR-A.E1
[
9
]
): “
em suma, sendo a omissão total da matéria de facto o grau máximo da deficiência, deve considerar-se oficiosamente nula, nos termos do art. 662º nº 2 al. c) do CPC e tal nulidade deve ser suprida pelo Mº Juiz a quo
”.
Parece claro que por se tratar de uma decisão provisória “
não se exigiria uma fundamentação exaustiva, incompatível com a natureza providencial do processo e com a sua celeridade, mas uma motivação mínima de factos indiciados, concatenada com a convocação das pertinentes normas jurídicas
”, nas palavras do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10/05/2018 (processo n.º
2208/17.0T8CSC-A.L1-6
[
10
]
).
Na verdade, mesmo o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21/03/2017 (processo n.º
3084/08.0TBSXL-S.L1
[
11
]
) citado nas contra-alegações não deixa de acentuar que “
uma decisão meramente provisória, passível de alteração a todo o tempo, conforme as novas informações e outras vicissitudes conhecidas nos autos, não comporta um nível de exigência de fundamentação idêntico ao das decisões definitivas sobre o fundo da causa
”, sendo que o pressuposto dessa afirmação foi a circunstância de a decisão em apreciação nesse caso apresentar “
justificação factual e legal (…) absolutamente clara e suficiente
”.
Será importante, também, uma distinção entre a decisão de estabelecer um regime provisório (que não carece de fundamentação) e a decisão que fixa o conteúdo desse regime provisório (que já carece de fundamentação). Neste sentido ver o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11/02/2021 (processo n.º
2145/20.1T8CSC-A.L1-2
[
12
]
) e o Acórdão da Relação de Évora de 10/10/2024 (processo n.º
4448/24.7T8STB-B.E1
[
13
]
)
No caso vertente, o despacho recorrido alterou o regime provisório, mas não foi precedido da fixação de factos indiciariamente provados e do respetivo enquadramento legal, ainda que de forma necessariamente sucinta.
Essa falta de fundamentação acentua-se quando se trata de alterar o regime que havia sido fixado pelo mesmo Tribunal menos de um mês antes.
Concluindo, o despacho que altera o regime de visitas deve ser fundamentado, embora a sua medida deva adequar-se ao tipo de decisão a proferir e à sua complexidade. Como qualquer outra decisão judicial onde exista conflito, importa não esquecer que qualquer decisão de regulação provisória das responsabilidades parentais corresponde a uma decisão de mérito que pode ser sindicada pelas partes em sede recurso, o que impõe a necessidade da sua fundamentação, mesmo que sumária ou simplificada, de facto e de direito.
Não tendo o despacho recorrido qualquer fixação de factos indiciariamente provados nem qualquer fundamento jurídico (o que, como se viu, não pode ser feito por simples remissão), é nulo por falta de fundamentação.
*
Por outro lado, não estão reunidos os requisitos do artigo 665.º do Código de Processo Civil para que este Tribunal de recurso se substitua ao Tribunal
a quo
.
É pressuposto dessa substituição que o Tribunal superior possua todos os elementos necessários para o efeito, o que não ocorre nos casos, como os dos autos, de absoluta omissão de fundamentação de facto e de direito.
Os meios de prova a considerar (declarações dos progenitores, do menor e relatórios juntos aos autos) estão sujeitos à livre apreciação do Tribunal de Primeira Instância, não podendo ultrapassar-se essa pronúncia para não se suprimir um grau de jurisdição.
Neste sentido:
- Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 18/12/2017 (processo n.º
1099/17.6T8VNF.G1
[
14
]
): “
A intenção subjacente à regra da substituição que tem como fundamento a celeridade não se aplica aos casos de total ausência de pronúncia, devendo, nesses casos, a decisão ser anulada
”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 7/12/2021 (processo n.º
8513/09.2YYLSB-B.L2-7
[
15
]
) “
esta nulidade apenas pode ser colmatada pelo tribunal que proferiu a sentença, porquanto a apreciação da prova produzida pelo tribunal de recurso significaria a diminuição de um grau de jurisdição na apreciação e julgamento da matéria de facto
”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21/03/2024 (processo n.º
1019/23.9T8ALM-B.L1-2
[
16
]
): “
Verificando-se a ausência de elementos necessários ao conhecimento do objecto do recurso, que se reconduz à própria falta da fundamentação, não deve o tribunal de recurso afirmar tal fundamentação em substituição do tribunal recorrido, nos termos do nº 1 do art.º 665º do Código de Processo Civil, mas antes deve ser o tribunal recorrido a suprir a falta de fundamentação, na decisão que há-de proferir em substituição da decisão anulada
”.
Não estando, por isso, reunidos os pressupostos do regime de substituição por parte deste Tribunal de recurso, deve ser declarado nulo o despacho recorrido por falta de fundamentação para poder ser substituído por outro que supra tal nulidade.
*
As custas do presente recurso deverão ficar a cargo da requerida/apelada, nos termos do disposto no artigo 527.º do Código de Processo Civil, por ter ficado vencida, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário.
***
IV. DECISÃO:
Em face do exposto, decide-se julgar procedente a apelação e, em conformidade, declara-se nulo o despacho recorrido de 11/10/2024 (Referência: 34815305).
Condena-se a requerida/apelada nas custas do recurso, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário.
Notifique.
Évora, 30 de Janeiro de 2025
Filipe Aveiro Marques
Filipe César Osório
Fernando Marques da Silva
_____________________________________
1. Código de Processo Civil Anotado , Vol. I, 2.ª Ed., Almedina, pág. 199.
↩︎
2. Acessível em
https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/54940067083ff01f802587a80057e6d2
.
↩︎
3. Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2.ª Edição, Almedina, pág. 763.
↩︎
4. Acessível em
https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/627963eb32586aac80257fc700392a00
.
↩︎
5. Acessível em
https://www.dgsi.pt/JTRP.NSF/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/d98f7d3a19f41cc2802577fb0057e50c
.
↩︎
6. Acessível em
https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/39f73369fbf0c8eb80257b08004bb85e
.
↩︎
7. Acessível em
https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:TRL:2013:7598.12.9TBCSC.A.L1.6
.
↩︎
8. Acessível em
https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/5a795ab2550374758025856e004e9ca6
.
↩︎
9. Acessível em
https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/bb67f17b77c62b888025868800764265
.
↩︎
10. Acessível em
https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/e53c96001f0fed5e802582c8003a1c87
.
↩︎
11. Acessível em
https://pgdlisboa.pt/jurel/jur_mostra_doc.php?codarea=58&nid=5232
.
↩︎
12. Acessível em
https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/e43c1bcec3866542802586880039a21b
.
↩︎
13. Acessível em
https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/92c8346a06e33a7280258bd300332793
.
↩︎
14. Acessível em
https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/-/266CD5DE2A3881A68025824700349EF6
.
↩︎
15. Acessível em
https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/cc626aa850737425802587c0005109f4
.
↩︎
16. Acessível em
https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/f996d9cc930ff1e080258af500555de1
.
↩︎
|
TRE
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https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/6d9b9e89ad6a3b4580258c280038522d?OpenDocument
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1,750,809,600,000
|
PROCEDENTE
|
2803/19.3T9VCT.G1
|
2803/19.3T9VCT.G1
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LUÍSA OLIVEIRA ALVOEIRO
|
1. O Ministério Público, no interesse da comunidade e por direito próprio, pode sempre peticionar a perda de vantagens, através de requerimento apresentado a todo o tempo, desde que permita o exercício efetivo do contraditório.
2. O art. 110º do CPenal não indica o prazo para a dedução do pedido de decretamento da perda de produtos e vantagens e impõe-na ao juiz que não pode deixar de a decretar, desde que verificados os necessários pressupostos legais.
|
[
"PERDA DE VANTAGENS",
"REQUERIMENTO",
"PRAZO"
] |
Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:
I. RELATÓRIO
No Processo nº 2803/19.3T9VCT do Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, Juízo Central Criminal de Viana do Castelo - Juiz 2, foi proferido, em 20.02.2025, o seguinte despacho:
“Referência ...75:
O Ministério Público veio promover que em sede de acórdão se declare perdido a favor do Estado o valor total de €303.265,40 (trezentos e três mil, duzentos e sessenta e cinco euros e quarenta cêntimos), que corresponde à vantagem patrimonial que, através de factos ilícitos típicos, foi adquirido pelo arguido AA e pelas sociedades “EMP01..., Lda.” e “EMP02... – Unipessoal, Lda.”, e se condene solidariamente o arguido e as sociedades, por si detidas e geridas, no respetivo pagamento, nos termos dos artigos 110.º n.º 1, al. b) e n.º 4 do Código Penal.
Mais requer que o arguido e as sociedades “EMP01..., Lda.” e “EMP02... – Unipessoal, Lda.” sejam notificadas do presente requerimento. (…)
Assim, a primeira questão que se coloca é saber se o Ministério Público pode formular o pedido de perda de vantagens em qualquer altura, ou seja, se o requerimento apresentado depois de deduzida a acusação é tempestivo. (…)
No caso, a acusação foi deduzida em 18.03.2024, foi designada data para realização da audiência de discussão e julgamento em 18.09.2024, agendada para dia 15.01.2025, tendo o requerimento em causa dado entrada nos autos em 23.12.2024 e nada constando da acusação relativamente ao procedimento de perda agora requerido. (…)
Ora, delimitando a acusação o objecto do processo, o do requerimento de perda de vantagens tem de se basear na mesma factualidade que ali é alegada, sob pena de ocorrer uma alteração substancial dos factos.
Pelo exposto, e pelos fundamentos acima mencionados, julgo intempestivo/inadmissível o requerimento apresentado pelo Ministério Público”.
*
O
Ministério Público
veio interpor
recurso
, formulando as seguintes
conclusões
:
“1. O presente recurso é restrito a matéria de Direito.
2. É interposto do despacho de 20/02/2025 (referência ...58), que julgou intempestivo/inadmissível o requerimento do Ministério Público, datado de 23/12/2024 (Referência ...75) que peticiona a declaração de perda de vantagens, ao abrigo do art. 110º, n.º 1, al. b) e n.º 4 do C. Penal, com os seguintes fundamentos:
a. É intempestivo, porque devia ter sido deduzido na acusação, datando esta de 18/09/2024, estando o julgamento agendado para 07/05/2025, não havendo norma a estabelecer prazo, como na Lei 5/2002 – princípio do acusatório, regime semelhante às penas e medidas de segurança – art. 283º, al. C) do C. Processo Penal.
b. É inadmissível, porque vai além da acusação, referindo quantias recebidas, em vez de faturadas, o que constituiria uma alteração substancial dos factos.
3. O Instituto jurídico que aqui está em causa está regulado nos arts. 109º a 111.º- A do C. Penal sob a epígrafe “Perda de instrumentos, produtos e vantagens”.
4. O art. 111º, nº 2 diz o seguinte: “São também perdidos a favor do Estado, sem prejuízo dos direitos do ofendido ou de terceiro de boa-fé, as coisas, direitos ou vantagens que, através do facto ilícito típico, tiverem sido adquiridos, para si ou para outrem, pelos agentes e representem uma vantagem de qualquer espécie”.
5. Não resulta do Código Penal ou do Código de Processo Penal que o Ministério Público tenha que requerer a aplicação daquele instituto e que o tenha de fazer na acusação.
6. Da leitura dos arts. 109º a 111º-A resulta que a perda de vantagens pode ser decretada oficiosamente e deve ser decretada contra os agentes do crime e também contra os terceiros beneficiados com a sua prática.
7. A acusação foi deduzida contra o arguido AA, e apenas contra este, porque os crimes em causa não preveem a punibilidade criminal das pessoas coletivas (crimes de prevaricação e de participação económica em negócio, arts. 11º e 23º da Lei 34/87).
8. Com a notificação do requerimento do MP, com a concessão de prazo para defesa, quer do arguido quer das duas sociedades beneficiadas, como requerido, não se viola o direito de defesa nem o direito a um julgamento equitativo (art. 31º, n.º 1 e 5 da CRP).
9. O instituto da perda de vantagens não é uma acusação ou juízo de culpa e pode até ocorrer sem condenação.
10. Não se confunde com o pedido de indemnização civil (Acórdão do STJ, de 29/04/2020, citado no Acórdão do STJ, de 11/04/2024, este último com abundante citação de doutrina (alguma supra referida), jurisprudência dos Tribunais das Relações, do Supremo Tribunal, Tribunal Constitucional e referência à legislação europeia).
11. Trata-se sim de uma consequência jurídica de carácter patrimonial dos ilícitos cometidos, e por isso está num capítulo autónomo (Capítulo IX) do Título III (Das consequências jurídicas do crime) da Parte Geral (Livro I) do Código Penal.
12. Em nada releva para o caso, a Lei 5/2002 prever um prazo até 30 dias antes da audiência de julgamento, pois trata-se de instituto jurídico completamente diverso – perda do valor do património incongruente – também chamado perda alargada.
13. Enquanto no Código Penal se estipula que a declaração da perda ocorre quanto a recompensas dadas ou prometidas ao agente de um facto ilícito típico ou quanto a vantagens obtidas através desse facto, no regime previsto na Lei 5/2002 exige-se a condenação pela prática de um dos crimes de catálogo.
14. O indeferimento por inadmissibilidade é prematuro, entendendo o despacho em crise que o pedido de vantagens vai além da acusação e que isso seria uma alteração substancial dos factos, sem fazer o julgamento, sem saber o que será dado como provado e não provado, isto é, se são provados os factos só da acusação ou também do pedido de perda de vantagens.
15. Caso tal se venha a verificar – alteração não substancial ou substancial – cumprir-se-á então o disposto nos arts. 358º ou 359º, ambos do C. Processo Penal.
16. Acresce que mesmo quanto aos factos inovadores, também não se justifica a posição do tribunal. Na verdade, o confisco é uma ação patrimonial que corre os seus termos no processo penal e paralelamente ao mesmo. Quando há um pedido (se houver factos até deverá ser oficiosamente) de perda, que possa ser notificado em tempo útil ao visado (arguido, beneficiário ou terceiro) nada impede que seja feito fora da acusação. Ainda assim o visado poderá contestar esse pedido e defender-se do mesmo.
17. O requerimento formulado pelo MP visa demonstrar que o crime não compensa, só assim se mostrando que não se tolera uma situação antijurídica, na defesa do Estado de Direito.
18. Pelo exposto, e sempre salvo o devido respeito, o Tribunal recorrido violou o art. 111º do C. Penal e o art. 283º do C. Processo Penal”.
*
O recurso foi admitido, por despacho de 25.03.2025, com subida imediata, em separado e com efeito devolutivo, mas, por despacho de 24.04.2025, entendeu-se ser de atribuir efeito suspensivo ao recurso.
*
O
arguido AA
apresentou
resposta
, formulando as seguintes
conclusões
:
“A. Deve fixar-se ao recurso efeito suspensivo do processo, ao abrigo do disposto no n° 3 do art° 408°, CPP.
B. O douto despacho recorrido não merece qualquer reparo, mostrando-se injustificadas as críticas que o Recorrente lhe dirige na douta motivação do recurso sob resposta”.
*
Nesta Relação, o Exmo Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no qual formulou a seguinte conclusão:
“pedido de perda de vantagens apresentado pelo Ministério Público em momento posterior à dedução da acusação pública, porque inexiste norma que defina o momento para a apresentação daquele pedido de “perda clássica”, sendo esta, aliás, uma imposição legal livre da formulação de um qualquer requerimento com tal fim – art.º 110, n.º1 do CPenal, e porque segura jurisprudência o confirma, é legalmente tempestivo, ao contrário do afirmado no despacho recorrido que o aloca por ocasião da acusação, devendo, pois, ser admitido e sujeito a oportuno contraditório, revogando-se, então, o despacho colocado sob sindicância”
.
*
Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, n.º 2 do C.P.Penal.
*
Proferido despacho liminar e colhidos os “vistos”, teve lugar a conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
*
II. OBJETO DO RECURSO
Conforme é jurisprudência assente (cfr. Acórdão do STJ, de 15/04/2010, acessível em www.dgsi.pt:
“é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso. É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões (…)”
.
O âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente (das quais devem constar de forma sintética os argumentos relevantes em sede de recurso) a partir da respetiva motivação, pelo que
“[a]s conclusões, como súmula da fundamentação, encerram, por assim dizer, a delimitação do objeto do recurso. Daí a sua importância. Não se estranha, pois, que se exija que devam ser pertinentes, reportadas e assentes na fundamentação antecedente, concisas, precisas e claras”
(Pereira Madeira, Art. 412.º/ nota 3, Código de Processo Penal Comentado, Coimbra: Almedina, 2021, 3.ª ed., p. 1360 – mencionado no Acórdão do STJ, de 06.06.2023, acessível em www.dgsi.pt).
Isto, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (artigo 412º, nº 1 do CPPenal).
*
Face ao exposto e às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, cumpre apreciar a tempestividade, ou não do requerimento apresentado pelo Ministério Público, em 23.12.2024, para perda de vantagens.
A questão prévia, suscitada pelo arguido na resposta ao recurso, relativa ao regime de subida do recurso mostra-se prejudicada pela prolação, em 24.04.2025, do despacho que alterou o efeito do recurso, pelo que nada há a determinar a este respeito.
*
III. FUNDAMENTAÇÃO
Com interesse para a apreciação da questão suscita importa ter presente os seguintes elementos que constam dos autos:
1.
Em 18.03.2024 foi deduzida acusação (Refª ...98), cujo teor se dá por integralmente reproduzido, contra o arguido AA, pela prática
“em autoria singular, dolo direto e concurso efetivo: - um crime de prevaricação p.º e p.º pelo art.º 11.º da Lei nº 34/87, de 16 de Julho conjugado com o art.º 5.º do mesmo diploma legal, com as últimas alterações introduzidas pela Lei nº 94/2021, de 21/12; - um crime de participação económica em negócio, p.º e p.º pelo art.º 23.º da Lei nº 34/87, de 16 de Julho, conjugado com o art.º 5.º do mesmo diploma legal, com as últimas alterações introduzidas pela Lei nº 94/2021, de 21/12”
;
2.
Em 02.07.2024 (Refª ...88), foi proferido despacho que recebeu a acusação deduzida pelo Ministério Público e admitiu o pedido cível deduzido por requerimento de 15.04.2024 (Refª ...45);
3.
Por despacho de 18.09.2024 (Refª ...39) foi admitida a contestação (de 16.09.2024 – Refª ...31) e designadas datas para a realização da audiência de julgamento;
4.
Em 23.12.2024, o Ministério Público apresentou requerimento (Refª ...75), cujo teor se dá por integralmente reproduzido, no qual promove que
“em sede acórdão se declare perdido a favor do Estado o valor total de €303.265,40 (trezentos e três mil, duzentos e sessenta e cinco euros e quarenta cêntimos), que corresponde à vantagem patrimonial que, através de factos ilícitos típicos, foi adquirido pelo arguido AA e pelas sociedades “EMP01..., Lda.” e “EMP02... – Unipessoal, Lda.”, e se condene solidariamente o arguido e as sociedades, por si detidas e geridas, no respetivo pagamento, nos termos dos artigos 110.º n.º 1, al. b) e n.º 4 do Código Penal”
;
5.
Em 06.01.2025, foi proferido o seguinte despacho (Refª ...02):
“Referência ...75:
Dê conhecimento aos sujeitos processuais.”
6.
Em 08.01.2025, o arguido apresentou requerimento (Refª ...14) com o seguinte teor:
“Considerando o prazo que o Arguido e as referidas Sociedades dispõem para exercerem o direito de resposta e a necessidade reunirem os elementos necessários para o efeito, não é possível fazê-lo antes do próximo dia 15 de janeiro. Pelo exposto, requer que s e declare sem efeito a data agendada para a audiência de julgamento (15 de janeiro de 2025) e se aguarde que o Arguido e as Sociedades Requeridas exerçam o direito de resposta que lhes assiste para, oportunamente, se designar nova data para o ato”;
7.
Em 14.01.2025, foi proferido o seguinte despacho (Refª ...43):
“Referências ...75, ...14 e ...29:
Atendendo que ainda se encontra em curso o prazo para o arguido se pronunciar quanto ao requerimento apresentado pelo Ministério Público ( o que não fez até este momento ), que o arguido requereu o prazo de 15 dias para se pronunciar e o consequente adiamento da audiência de discussão e julgamento, ao qual o Ministério Público não se opôs, determino o adiamento da audiência de discussão e julgamento designada para o dia de amanhã, bem como a segunda data, uma vez que na mesma já foi agendada a audiência de discussão e julgamento no processo 192/22.8GBAVV e duas continuações nos processos 76/17.1T9CMN e 1396/20.3JABRG.
Defiro o prazo requerido pelo arguido.
Como nova data para a realização da audiência de discussão e julgamento designo o dia 07 de maio de 2025, pelas 09.15 horas e continuação no mesmo dia pelas 14.00 horas, com o mesmo escalonamento da prova, e não antes por indisponibilidade de agenda.
Notifique e desconvoque”.
8.
Em 20.02.2025, foi proferido o seguinte despacho (Refª ...58 -
despacho recorrido
):
“Referência ...75:
O Ministério Público veio promover que em sede de acórdão se declare perdido a favor do Estado o valor total de €303.265,40 (trezentos e três mil, duzentos e sessenta e cinco euros e quarenta cêntimos), que corresponde à vantagem patrimonial que, através de factos ilícitos típicos, foi adquirido pelo arguido AA e pelas sociedades “EMP01..., Lda.” e “EMP02... – Unipessoal, Lda.”, e se condene solidariamente o arguido e as sociedades, por si detidas e geridas, no respetivo pagamento, nos termos dos artigos 110.º n.º 1, al. b) e n.º 4 do Código Penal.
Mais requer que o arguido e as sociedades “EMP01..., Lda.” E “EMP02... – Unipessoal, Lda.” sejam notificadas do presente requerimento.
Cumpre decidir:
Determina o artigo 110º, n.º 1, al b) do Código Penal que:
“ 1. São declarados perdidos a favor do Estado:
b) as vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem.
4 . Se os produtos ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao estado do respetivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112.º -A. “
Como refere José Nuno Duarte, A Perda de Instrumentos, produtos e vantagens do Crime no Código Penal Português, pág. 97 e ss, “por estamos perante uma figura sancionatória de Direito Público, susceptível de atingir direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, a perda de bens inclui-se na reserva da função jurisdicional (…).
Concomitantemente, uma vez que o confisco, mesmo não desempenhando uma função punitiva, prossegue finalidades de segurança pública e de combate ao crime que autorizam que a situação jurídico-patrimonial das pessoas visadas seja alterada, forçoso é que esteja sujeito ao príncipio da legalidade e a todos os demais princípios e garantias constitucionais próprios do Direito e do Processo Criminais, genericamente previstos nos artigos 29º e 32º da CRP, bem como às vinculações impostas pelo artigo 18º, nº 2 da CRP. Por isso, a perda de bens, obedece, desde logo, aos seguintes princípios (…).
Para além destes princípios materiais, aplicam-se à perda de bens as garantias de defesa próprias do Processo Criminal, particularmente relevantes não só para quem, sendo já sujeito processual, possui interesses patrimoniais que podem ser afectados pelo confisco, como, de forma ainda mais intensa, para os terceiros que são titulares de bens visados pelo procedimento confiscatório”.
E, por isso, é aplicável à perda de bens, entre o mais, o princípio do acusatório que postula que haja uma clara separação entre o órgão acusador, a quem compete definir o objecto do processo e o julgador. Por isso, como adianta o mesmo Autor, obra citada, pág. 101, “idealmente, a acusação deve indicar toda a factualidade de que depende a aplicação de sanções jurídicas, bem como precisar quais as sanções em que incorre a pessoa contra quem é dirigida a imputação acusatória”.
Assim, como consta da nota 205, “Nesta conformidade, impõe a nossa legislação processual penal que, sob pena de nulidade, a acusação deduzida pelo Ministério Público contenha, entre o mais, a narração, ainda que sintética dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis (art. 283, nº 3, al. c) do Código de Processo Penal)”.
Assim, a primeira questão que se coloca é saber se o Ministério Público pode formular o pedido de perda de vantagens em qualquer altura, ou seja, se o requerimento apresentado depois de deduzida a acusação é tempestivo.
No Código de Processo Penal não existe norma que indique o prazo para a dedução do pedido de decretamento da perda de bens, existindo uma lacuna na lei que deve ser integrada de acordo com o princípio prescrito no artigo 4º do CPP.
Porém, como vimos e decorre do princípio do acusatório e do disposto pelo art. 283º do Código de Processo Penal, o Ministério Público tem o poder-dever de, na acusação, indicar todos os elementos de facto e de direito necessários para o decretamento da perda de bens.
No caso, a acusação foi deduzida em 18.03.2024, foi designada data para realização da audiência de discussão e julgamento em 18.09.2024, agendada para dia 15.01.2025, tendo o requerimento em causa dado entrada nos autos em 23.12.2024 e nada constando da acusação relativamente ao procedimento de perda agora requerido. De acordo com o disposto no artigo 283º, n.º 3, alínea b), do CPP, a acusação contém sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.
A perda de vantagens a que alude o artigo 110º do CP: “é um instituto autónomo em relação à indemnização civil, atenta a sua natureza e finalidade preventivas, e o seu carácter sancionatório análogo à da medida de segurança.” – in Acórdão da Relação de Évora de 12/09/2023, www.dgsi.pt
Ora, atenta a natureza jurídica do instituto de perda de vantagens semelhante às penas ou medidas de segurança, os factos e as disposições legais que fundamentam tal instituto deverão ser indicados na acusação.
Mesmo que se considere que tal instituto poderá eventualmente ter uma natureza civil, o pedido de indemnização civil previsto no artigo 77º, do CPP tem igualmente de ser deduzido até à prolação do despacho de acusação.
Fazendo ainda referência à perda ampliada a que se reporta a Lei 5/2002 de 11 de janeiro, o artigo 8º prevê igualmente que o requerimento em causa terá de ser efetuado aquando da acusação, ou se tal não foi possível até ao 30.º dia anterior à data prevista para a realização da audiência de discussão e julgamento, contudo entendemos que no caso, por a referida lei se tratar de norma excecional, não pode ser aplicada analogicamente.
Isto para concluirmos que, em qualquer dos casos, o requerimento apresentado pelo Ministério Público é intempestivo, porque não deduzido na acusação.
Acresce que a menção “a todo o tempo “ do n.º 4 do artigo em questão, não se reporta à possibilidade de dedução e consequente tempestividade do requerimento a apresentar pelo Ministério Público, pois essa norma aplica-se apenas a uma eventual necessidade de substituição dos produtos ou vantagens cuja apropriação em espécie não foi possível pelo pagamento ao Estado do respetivo valor.
Por outro lado, sempre se dirá que os factos ora alegados no requerimento apresentado pelo MP, designadamente no ponto 3: “valor efetivamente recebido” ; ponto 4 “ receberam efetivamente o valor das obras “, bem como em todo o ponto 5, alíneas a) e b) – descrição da conta corrente, não constam da acusação que, no ponto 12, apenas remete para os extratos de conta corrente sem discriminar os valores agora mencionados. Paralelamente da alínea c) do requerimento apresentado constam quadros ilegíveis (eventualmente legíveis à lupa ou ao microscópio), relativos a “duplicados de faturas relativas aos serviços prestados pelas duas empresas identificadas e documentos respeitantes à obra do parque infantil, com mapas e extratos explicativos”, factos que não foram alegados na acusação.
Ora, delimitando a acusação o objecto do processo, o do requerimento de perda de vantagens tem de se basear na mesma factualidade que ali é alegada, sob pena de ocorrer uma alteração substancial dos factos.
Pelo exposto, e pelos fundamentos acima mencionados, julgo intempestivo/inadmissível o requerimento apresentado pelo Ministério Público”.
*
Apreciação do Recurso
O Ministério Público, nos termos e ao abrigo do disposto no art. 110º, nº 1, al. b) e nº 4 do Código Penal, requereu (em requerimento autónomo e após ter deduzido acusação contra o arguido AA imputando-lhe a prática, em concurso efetivo, de um crime de prevaricação p. e p. pelo art. 11º da Lei nº 34/87, de 16 de julho conjugado com o art. 5º do mesmo diploma legal, com as últimas alterações introduzidas pela Lei nº 94/2021, de 21 de dezembro; e de um crime de participação económica em negócio, p. e p. pelo art. 23º da Lei nº 34/87, de 16 de julho, conjugado com o art. 5º do mesmo diploma legal, com as últimas alterações introduzidas pela Lei nº 94/2021, de 21 de dezembro) que se declare perdido a favor do Estado o valor total de € 303.265,40, correspondente à vantagem patrimonial obtida pelo arguido e pelas sociedades “EMP01..., Lda” e “EMP02... – Unipessoal, Lda”, por ele detidas e geridas, sendo condenados solidariamente no respetivo pagamento.
O tribunal
a quo
julgou
“intempestivo/inadmissível o requerimento apresentado pelo Ministério Público”
com os seguintes fundamentos:
“atenta a natureza jurídica do instituto de perda de vantagens semelhante às penas ou medidas de segurança, os factos e as disposições legais que fundamentam tal instituto deverão ser indicados na acusação. Mesmo que se considere que tal instituto poderá eventualmente ter uma natureza civil, o pedido de indemnização civil previsto no artigo 77º, do CPP tem igualmente de ser deduzido até à prolação do despacho de acusação. Fazendo ainda referência à perda ampliada a que se reporta a Lei 5/2002 de 11 de janeiro, o artigo 8º prevê igualmente que o requerimento em causa terá de ser efetuado aquando da acusação, ou se tal não foi possível até ao 30.º dia anterior à data prevista para a realização da audiência de discussão e julgamento, contudo entendemos que no caso, por a referida lei se tratar de norma excecional, não pode ser aplicada analogicamente. Isto para concluirmos que, em qualquer dos casos, o requerimento apresentado pelo Ministério Público é intempestivo, porque não deduzido na acusação. Acresce que a menção “a todo o tempo “ do n.º 4 do artigo em questão, não se reporta à possibilidade de dedução e consequente tempestividade do requerimento a apresentar pelo Ministério Público, pois essa norma aplica-se apenas a uma eventual necessidade de substituição dos produtos ou vantagens cuja apropriação em espécie não foi possível pelo pagamento ao Estado do respetivo valor. Por outro lado, sempre se dirá que os factos ora alegados no requerimento apresentado pelo MP … não foram alegados na acusação. Ora, delimitando a acusação o objecto do processo, o do requerimento de perda de vantagens tem de se basear na mesma factualidade que ali é alegada, sob pena de ocorrer uma alteração substancial dos factos”.
Dispõe o art. 110º do C.Penal nos segmentos que importam:
1 - São declarados perdidos a favor do Estado:
(…)
b) As vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem.
(…)
4 - Se os produtos ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112.º-A. (…)”.
Está em causa saber se é tempestivo e admissível o requerimento do Ministério Publico que peticiona a perda de vantagens por não ser deduzido na acusação e ir além desta (referindo quantias recebidas em vez de faturadas e reportando-se ao teor de documentos que haviam sido mencionados na acusação).
A perda de vantagem do facto ilícito a favor do Estado ou a chamada “perda clássica”, prevista no art. 110º do C.Penal, tem subjacente o princípio ético-jurídico de que “o crime nunca pode compensar” (enquanto efeito dissuasivo). Ideia que se deseja reafirmar tanto sobre o concreto agente do ilícito-típico (prevenção especial), como nos seus reflexos sobre a sociedade no seu todo (prevenção geral) – o crime não compensa porque acarreta uma punição e porque são perdidas as vantagens adquiridas com o crime.
De facto, a perda de vantagens desenvolve um papel fundamental no combate à criminalidade, designadamente económica, porquanto, só privando os infratores, de forma efetiva, dos bens, serviços e benefícios que a atividade criminosa lhes proporciona, melhor dizendo, garantindo que não beneficiam economicamente da sua prática, se consegue o efeito dissuasor pretendido, pois a comunidade não compreende nem aceita que o crime possa ser uma fonte de enriquecimento pessoal para o condenado.
“Por um lado, visa-se acentuar a intenção de prevenção, quer geral, quer especial, através da demonstração de que o crime não rende benefícios; por outro, pretende-se evitar o investimento dos proveitos da actividade ilícita na prática de novos factos ilícitos típicos, estimulando, ao invés, a sua aplicação na indemnização das vítimas e no reforço dos instrumentos de combate ao crime; e, ainda, reduzir os riscos de concorrência desleal no mercado, resultantes da acumulação de riqueza nas mãos de criminosos que investem os lucros em actividades empresariais ilícitas … A perigosidade das vantagens decorre da sua própria natureza e das circunstâncias do caso concreto, dada a possibilidade de poderem vir a ser utilizadas para a prática de um novo facto ilícito com o intuito de gerar lucros, subvertendo as regras da economia”
(Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ de 11.04.2024, Proc. nº 1105/18.7T9PNF.P1-A.S1).
Como acentua Paulo Pinto de Albuquerque (in “Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, pág. 528):
“a perda de produtos e vantagens é exclusivamente determinada por necessidades de prevenção. Não se trata de uma pena acessória, porque não tem relação com a culpa do agente, nem de um efeito de condenação, porque também não depende de uma condenação ... Trata-se de uma medida sancionatória, análoga à medida de segurança, pois baseia-se na necessidade de prevenção do perigo da prática de crimes “mostrando ao agente e à generalidade que, em caso de prática de um facto ilícito típico, é sempre e em qualquer caso instaurada uma ordenação dos bens adequada ao direito decorrente do objeto “(Figueiredo Dias, 1993:638 …)”
.
A este propósito, o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 392/2015, de 12 de agosto, refere que
“além destas finalidades preventivas, a este regime também está subjacente uma necessidade de restauração da ordem patrimonial dos bens correspondente ao direito vigente. Um Estado de Direito não pode deixar de preocupar-se em reconstituir a situação patrimonial que existia antes de alguém através de condutas ilícitas ter adquirido vantagens patrimoniais indevidas, mesmo que estas não correspondam a um dano de alguém em concreto”
.
A declaração de perda das vantagens de um crime, concretizada através do valor correspondente, decorre diretamente do art. 4º, n° 1 da Diretiva 2014/42/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, que impõe aos Estados Membros a adoção de regras mínimas em matéria de confisco e a adequação do direito interno às exigências europeias (neste sentido, Acórdão do TRP de 21.02.2024, Proc. nº 13738/15.9T9PRT-G.P1).
Figueiredo Dias (in “Direito Penal Português Parte Geral II As consequências Jurídicas do Crime”, Aequitas, 1993, pág. 635 § 1008) defende que a perda de vantagens está relacionada com a gravidade do ilícito-típico cometido, por referência ao princípio da proporcionalidade, pois considera que:
“Trata-se aqui, pois, de mais um pressuposto (jurídico-constitucionalmente imposto e, por conseguinte, irrenunciável) de aplicação da perda de vantagens: verificada judicialmente a desproporcionalidade, a perda de vantagens ou não pode ser decretada ou só poderá sê-lo relativamente a uma(s) vantagem(ns) que ainda conserve(m) proporção com a gravidade do ilícito-típico cometido”.
Contudo, não falta quem entenda que a lei não deixa que a perda de vantagens de um crime fique à mercê de interpretações ou de juízos de oportunidade, antes impõe necessariamente a perda (cfr. art. 110º, nº 1, al. b) do C.Penal), sem dar a possibilidade ao julgador de equacionar a sua aplicação ou não aplicação (perda esta que se não em espécie, terá de ser em valor), o que assenta na coerência do próprio sistema, pois
“é incoerente punir alguém pela prática de um crime e permitir-lhe ficar com as vantagens adquiridas com a prática desse crime. E também é incoerente o Estado sofrer uma perda patrimonial e não procurar reconstituir a situação patrimonial que existia antes da prática do crime”
(Acórdão do TRG de 25.03.2019, Proc. nº 103/14.4TACBT.G1).
Também no Acórdão do TRP de 26.01.2022, Proc. nº 2769/16.1T9PRT.P1, se defende que “
não se atribui ao intérprete ou ao realizador do direito qualquer margem de discricionariedade na aplicação deste mecanismo ablativo. Como afirma João Conde Correia, “mesmo nos casos em que no confronto com a pena aplicada ele seja insignificante, implique a utilização de meios ou custos desproporcionados, torne muito difícil a obtenção da própria condenação ou seja óbvia a inexistência de bens confiscáveis, o Ministério Público e o juiz não podem prescindir da questão patrimonial e restringir o objeto do processo à questão penal. A adesão do confisco à sorte do processo penal é total, precludindo qualquer tipo de ponderação sobre a sua pertinência ou utilidade prática” ... Reconhecendo-se a autonomia do instituto da perda de vantagens, a sua natureza e finalidade marcadamente preventivas, o seu carácter sancionatório análogo à da medida de segurança e, para além disso, obrigatório, subtraído a qualquer critério de oportunidade ou utilidade, o juiz não pode deixar de decretar a perda de vantagens obtidas com a prática do crime, na sentença penal. E isto independentemente de o lesado ter deduzido ou não pedido de indemnização civil (e do seu desfecho), ou de ter optado por outros meios alternativos de cobrança do crédito que possa coexistir com a obrigação e necessidade de reconstituição da situação patrimonial prévia à prática do crime, própria do instituto da perda de vantagens”.
Seja como for, apesar de alguns autores defenderem a sua natureza penal ou quase penal (o tribunal
a quo
considerou que a natureza jurídica do instituto de perda de vantagens é
“semelhante às penas ou medidas de segurança”
, devendo os factos e as disposições legais que o fundamentam ser indicadas na acusação), a posição mais seguida é a de que se trata de uma providência sancionatória de natureza análoga à da medida de segurança
[1]
[2]
.
No caso em apreço, o Ministério Público sustenta o requerimento apresentado na vantagem decorrente da prática dos crimes que são imputados ao arguido na acusação. A perda de vantagens inclui todo e qualquer benefício económico que resulte do crime, haja ou não vítima. O valor da vantagem afere-se pela diferença entre o que o arguido tem e aquilo que teria se não fosse cometido o crime, pois pretende-se colocar o arguido no
status quo
patrimonial anterior à prática do crime, demonstrando que este não é título legítimo de aquisição.
Transpondo as considerações expostas há que atender, conforme destaca o despacho recorrido, à circunstância de que, no
nosso ordenamento jurídico,
“não existe norma que indique o prazo para a dedução do pedido de decretamento da perda de bens”
, pois o mencionado art. 110º do CPenal não refere quem pode requerer a perda de produtos e vantagens, nem em que prazo terá de o fazer.
No entanto, entendemos que não será de aplicar à “perda clássica” o disposto no art. 8º, nº 2 da Lei 5/2002, de 11.01 (
“se não for possível a liquidação no momento da acusação, ela pode ainda ser efetuada até ao 30.º dia anterior à data designada para a realização da primeira audiência de discussão e julgamento, sendo deduzida nos próprios autos”
), por se tratar de norma excecional, aplicada à “perda alargada” (por referência ao conceito de património incongruente, ao qual se chega através do confronto entre o conceito de património como referido no o art. 7.º e o conceito de rendimento lícito) e que consagra um prazo perentório (tem como consequência que não tendo sido efetuada no prazo fixado por lei, não pode ser praticada posteriormente
[3]
).
Por outro lado, como vimos, a perda de vantagens é independente do pedido de indemnização cível e não tem sequer de ser requerida por qualquer sujeito processual.
E,
desde que verificados os indispensáveis pressupostos constitucionais e os necessários pressupostos legais (o facto ilícito típico, a existência de benefícios patrimoniais e a demonstração de que esses benefícios resultaram, direta ou indiretamente, da prática daquele facto), o juiz não pode deixar de a decretar, ainda que oficiosamente.
Não obstante
, o Ministério Público, no interesse da comunidade e por direito próprio, pode sempre peticionar a perda de vantagens (cfr. Acórdão do TRG de 08.11.2021, Proc. nº 4/19.0T9VNC.G1 do qual consta sumariado:
“V- O Ministério Público no interesse da comunidade e por direito próprio, pode sempre peticionar a perda de vantagens do crime fiscal, mesmo que a Autoridade Tributária não pretenda que seja deduzido pedido de indemnização cível”
) que se insere no domínio das suas competências (e cuja declaração
“é uma consequência necessária da prática de um facto ilícito criminal, procurando-se com ela reconstituir a situação do seu autor antes da sua prática, ou seja, de modo a ficar sem qualquer benefício da prática do crime, assim percebendo que “o crime não compensou”
[4]
).
Assim sendo, será de concluir pela tempestividade do requerimento apresentado pelo Ministério Público no qual peticiona a perda de vantagens (o qual pode ser
apresentado a todo o tempo desde que permita o exercício efetivo do contraditório, o que,
in casu
, se verifica).
A sustentação factual da perda de vantagens assenta na consequência da prática de um crime e tem uma relação direta com os factos que constam da acusação, os quais são a base para determinar a perda de vantagens. Ou seja, a acusação define os factos que são objeto do processo e, portanto, os factos que podem levar à perda de vantagens, a qual não pode ultrapassar os limites dos factos descritos na acusação (em obediência ao princípio do acusatório consagrado no art. 32º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa).
Efetivamente,
“os factos descritos na acusação (normativamente entendidos, isto é, em articulação com as normas consideradas infringidas pela sua prática e também obrigatoriamente indicadas na peça acusatória), definem e fixam o objecto do processo que, por sua vez, delimita os poderes de cognição do tribunal e o âmbito do caso julgado”
(Cruz Bucho in “Alteração Substancial dos Factos em Processo Penal”, JULGAR N.º 9, pág. 43).
No entanto, durante a discussão, podendo surgir factos novos que traduzam alteração dos anteriormente descritos, encontrando-se tal matéria regulada nos arts. 1º, al. f), 303º, 358º e 359º do C.P.Penal que distinguem entre
“alteração substancial”
e
“alteração não substancial”
dos factos descritos na acusação ou pronúncia.
O tribunal
a quo
considerou que:
“sempre se dirá que os factos ora alegados no requerimento apresentado pelo MP, designadamente no ponto 3: “valor efetivamente recebido” ; ponto 4 “ receberam efetivamente o valor das obras “, bem como em todo o ponto 5, alíneas a) e b) – descrição da conta corrente, não constam da acusação que, no ponto 12, apenas remete para os extratos de conta corrente sem discriminar os valores agora mencionados. Paralelamente da alínea c) do requerimento apresentado constam quadros ilegíveis (eventualmente legíveis à lupa ou ao microscópio), relativos a “duplicados de faturas relativas aos serviços prestados pelas duas empresas identificadas e documentos respeitantes à obra do parque infantil, com mapas e extratos explicativos”, factos que não foram alegados na acusação”
.
Ora, da comparação entre o teor da acusação de 18.03.2024 e o teor do requerimento de 23.12.2024 constatamos que este remete para a descrição factual e para a qualificação jurídica constante da acusação deduzida (cfr. ponto 1 do requerimento). E, nos pontos 3 e 4 do requerimento reporta-se à factualidade constante dos pontos 4 e 12 da acusação. Por outro lado, no ponto 5 do requerimento especifica e reproduz documentos já mencionados nos pontos 15 e 16 da acusação (nomeadamente:
“Extrato de conta corrente com a “EMP01..., Lda.”, referente ao período compreendido entre maio de 2016 e dezembro de 2018 – fls. 1 a 2 – e documentos de suporte”
;
“- Extratos da Conta Corrente da EMP01... Lda. relativo aos anos 2016 a 2020, fls. 2 e 3 do Anexo II”
;
“- Extratos da Conta Corrente da EMP02... Unipessoal, Lda. entre os anos de 2018 e 2021, fls. 76 a 79 do Anexo II”
e
“Documentos respeitantes à obra do parque infantil da ..., respetivos mapas e extratos explicativos”
).
Concretizando.
Consta do ponto 4 da acusação que:
“o arguido, nos contratos a seguir assinalados, nas datas e com os valores que neles constam, adjudicou obras às sociedades das quais era sócio-gerente, conforme quadros que seguem:”
, ascendendo a soma dos valores que deles constam a € 30.728,71 (mencionado no ponto 3 do requerimento).
O ponto 12 da acusação tem o seguinte teor:
“Tais sociedades faturaram, assim, à Junta da Freguesia ... os seguintes valores: - a sociedade EMP01... Lda., entre 07/05/2016 e 09/11/2020 faturou 91.951,14€, (cfr. extrato de conta corrente de fls. 2 e 3 e listagem de trabalhos de fls. 5 e 6 do Anexo II; - a sociedade EMP02... – Unipessoal, Lda., entre 1/10/2018 e 16/06/2021 faturou 180.585,55€, (cfr. extrato de conta corrente de fls. 76 a 79 e listagem de trabalhos fls. 80 a 82”)
, o que ascende ao valor total de € 272.536,69 (mencionado no ponto 4 do requerimento).
Também decorre do teor dos pontos 18 e 20 da acusação que o arguido beneficiou
“as suas sociedades em detrimento de terceiros”
e que atuou
“com a intenção de obter para si e para as sociedades das quais era sócio gerente vantagem patrimonial nos contratos de adjudicação referentes às obras descritas em 4 e nos montantes ali referidos”
.
Em contrapartida, o Ministério Público afirmou nos pontos 3 e 4 do requerimento:
“obras estas que foram realizadas, faturadas e o valor efetivamente recebido, no montante global de €30.728,71 (trinta mil, setecentos e vinte e oito euros e setenta e um cêntimos)”
e
“o arguido AA, em seu nome e das sociedades “EMP01..., Lda.” e “EMP02... – Unipessoal, Lda.”, que geria e detinha, em benefício daquele e das sociedades, faturaram e receberam efetivamente o valor de obras e/ou prestação de serviços que não foram realizados e/ou prestados, no montante global de €272.536,69 (duzentos e setenta e dois mil, quinhentos e trinta e seis euros e sessenta e nove cêntimos)”
, respetivamente.
Aliás, consistindo a reprodução dos documentos numa concretização que nada de novo acrescenta à descrição tipicamente relevante que consta da acusação, é apenas quanto aos concretos aspetos, relativos ao invocado efetivo recebimento, que se pode suscitar o seu enquadramento na alteração substancial ou não substancial dos factos constantes da acusação. No entanto, essa ponderação deverá ocorrer em fase de julgamento, isto é, no momento em que o tribunal analisa a acusação ou a pronúncia e decide se a alteração proposta afeta substancial ou não substancialmente o objeto do processo.
Ora, atento o momento processual em que o requerimento foi apresentado pelo Ministério Púbico, é de considerar prematura a ponderação do tribunal
a quo
, no despacho recorrido, acerca da sua admissibilidade/inadmissibilidade.
Com efeito, o despacho recorrido avançou com a possibilidade de
“ocorrer uma alteração substancial dos factos”
, precedentemente ao início da produção e apreciação da prova, e fê-lo à margem da audição e do contributo dos sujeitos processuais acerca deste aspeto em concreto e cuja comunicação deve ter lugar durante a audiência de julgamento
[5]
.
Assim sendo, também é de concluir, nesta fase processual e contrariamente ao despacho recorrido, pela admissibilidade do requerimento apresentado pelo Ministério Público com vista à declaração da perda de vantagens, do que decorre a consequente procedência do recurso interposto pelo Ministério Público.
*
IV- DECISÃO
Pelo exposto
,
acordam os Juízes que integram a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães, após conferência, em conceder provimento ao recurso e, consequentemente, substituir o despacho recorrido por outro que admita o requerimento apresentado pelo Ministério Público, em 23.12.2024, por tempestivo e admissível.
Sem tributação.
Notifique.
*
Guimarães, 25 de junho de 2025
Luísa Oliveira Alvoeiro
(Juíza Desembargadora Relatora)
António Bráulio Alves Martins
(Juiz Desembargador Adjunto)
Fernando Chaves
(Juiz Desembargador Adjunto)
[1]
Figueiredo Dias in “Direito Penal Português Parte Geral II As Consequências Jurídicas do crime”, 17.º Cp. Perda de coisas e direitos.
[2]
No sentido de que “
a declaração de perda de vantagens do crime…, sendo uma consequência jurídica de carácter patrimonial dos “factos ilícitos” cometidos (pois, após a revisão do CP de 1982, em 1995, deixou de se referir ao “crime”), independentemente da classificação que lhe possa ser atribuída (não devendo ser considerada uma pena acessória), não é uma pena nem uma medida de segurança, nem uma forma de indemnização civil por danos emergentes do crime … Devendo notar-se, a este propósito, que a perda não se inclui nos capítulos relativos às penas (Capítulo II), às penas acessórias e efeitos das penas (Capítulo III) ou às medidas de segurança (Capítulo VII), mas num capítulo autónomo (Capítulo IX) do Título III (Das consequências jurídicas do crime) da Parte Geral (Livro I) do Código Penal”
, vide Acórdão do STJ de 29.04.2020, Proc. nº 928/08.0TAVNF.G1.S1.
[3]
Cfr. Acórdão do TRP de 07.12.2016, Proc. nº 12/13.4GAPNF-D.P2.
“Do teor literal da disposição em análise resulta que a liquidação será formulada na acusação (o que bem se compreende face ao respectivo objectivo e à sua intrínseca ligação ao respectivo objecto) e apenas por impossibilidade justificada, pode o Ministério Público fazer uso dos trinta dias que precedem a realização da audiência”
(Hélio Rigor Rodrigues in “Perda de bens no Crime de Tráfico de Estupefacientes”, Revista do Ministério Público nº 134, pág. 241).
“V - Tal como está desenhado o figurino legal, a dedução de tal liquidação está dependente de um critério de oportunidade / estratégia investigatória no âmbito estrito das competências legais atinentes deferidas ao MP e pode ocorrer num determinado período. VI - A intervenção do juiz está reduzida, neste particular e neste contexto temporal, ao controle do prazo final até quando o respetivo pedido pode ser deduzido, ou seja, até ao 30.º dia anterior à data designada para a realização da primeira audiência de discussão e julgamento, daqui decorrendo que inexiste qualquer existe ónus de alegação de quaisquer pressupostos temporais de admissibilidade, ou seja, não existe ónus por parte do Ministério Público de, quando deduz acusação, alegar quaisquer motivos pelos quais apenas procederá à liquidação mais tarde ou, por outro lado, deduzindo a aludida liquidação mais tarde, alegar (e provar) porque não o fez na acusação”
– Acórdão do TRE de .25.03.2025, Proc. nº 679/22.2T9MMN.E1.
[4]
Acórdão deste TRG de 20.06.2022, Proc. nº 27/18.6GACBT.G1.
[5]
Paulo Pinto de Albuquerque in “Comentário do Código de processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos”, 5ª edição Vol. II, págs. 419 e 423).
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TRG
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https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/30e0ca810761369780258cc700385917?OpenDocument
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1,759,795,200,000
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REVOGADA A SENTENÇA RECORRIDA
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1199/18.5T8BJA-A.E1
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1199/18.5T8BJA-A.E1
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MÁRIO BRANCO COELHO
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Sumário
:
1. O incidente de revisão de incapacidade pode ser accionado pelo responsável pelo pagamento da prestação, mas este deve alegar e provar uma melhoria da lesão ou da doença que deu origem à lesão, de modo a poder obter a redução ou extinção da prestação anteriormente fixada.
2. Está em causa um facto novo, modificativo da capacidade de trabalho ou de ganho, e daí que importe averiguar se esse novo facto efectivamente ocorreu e em que medida.
3. A prova realizada neste tipo de incidentes é essencialmente pericial (perícia médica singular ou por junta médica), tanto mais que estão em apreciação factos para os quais são necessários conhecimentos especiais, nomeadamente de carácter médico, que os julgadores não possuem.
4. Porém, o juiz não fica limitado ao parecer médico, podendo efectuar quaisquer diligências que se mostrem necessárias, e visto que o incidente corre no apenso para fixação da incapacidade, deve ponderar todo o manancial probatório já aí recolhido.
5. Não pode ser retirada a IPATH anteriormente arbitrada, se não estiver demonstrado que ocorreu uma efectiva melhoria da situação de facto que anteriormente determinou a atribuição daquela incapacidade.
6. Nomeadamente, tendo sido anteriormente apurado que o sinistrado estava incapacitado para a sua profissão habitual de motorista de pesados, não se pode concluir que readquiriu a capacidade necessária ao desempenho dessa profissão, se apenas está demonstrado que, após a alta, conduziu veículos ligeiros, durante um determinado período, e continua mesmo assim a apresentar limitações nessas novas funções.
|
[
"ACIDENTE DE TRABALHO",
"REVISÃO DA INCAPACIDADE",
"PROVA PERICIAL",
"PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA",
"FORÇA VINCULATIVA",
"FIXAÇÃO DA INCAPACIDADE"
] |
Acordam os Juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora
:
No Juízo do Trabalho de Beja, foi participado acidente de trabalho ocorrido em 13.12.2017 a
AA
, quando exercia as funções de motorista de pesados e distribuidor, por conta e sob a direcção de
Transportes (…), Lda.
, estando parte da retribuição transferida para
Generali Seguros, S.A.
.
A sentença decidiu fixar ao sinistrado uma IPP de 5,94%, desde a data da alta (25.06.2018), com IPATH.
Interposto recurso, esta Relação de Évora, por Acórdão de 30.06.2021, transitado em julgado, decidiu confirmar a sentença.
Em 29.04.2024, a Seguradora requereu a revisão da incapacidade, alegando que o sinistrado sofreu melhorias no seu estado de saúde e pode desempenhar a sua actividade profissional de motorista de pesados.
No exame médico singular, o perito médico declarou que o sinistrado mantinha a mesma situação clínica e a mesma incapacidade.
A Seguradora requereu a realização de junta médica, e do respectivo auto de exame consta o seguinte:
“A junta médica após consulta dos Autos e observação do examinando, responde aos quesitos por unanimidade:
Masculino, 61 anos motorista de pesados, após a alta conduziu carrinhas ligeiras e actualmente no desemprego desde Março de 2022. Dia 13-11-2017 tratado cirurgicamente e teve alta em 25-06-2018 com IPP de 5,94%, tem queixas de dores no tornozelo associadas à cicatriz bimaleolar do tornozelo direito, nesta data já não tem rigidez das mobilidades, pelo que não se pode dar a desvalorização por rigidez do tornozelo, sem dor á palpação. (…) Queixa-se de dificuldade em pressionar com o pé direito o acelerador e a embraiagem.”
Os quesitos formulados e a respectiva resposta pelos peritos médicos é a seguinte:
1.º Quais as sequelas que o sinistrado actualmente apresenta, em consequência do acidente ocorrido em 12/11/2017?
“1 - Tem duas cicatrizes no tornozelo direito, nesta data já não tem a rigidez das mobilidades do tornozelo, observadas nas anteriores avaliações por exames singulares e por junta médica.”
2.º Registou-se, desde a data da avaliação médico-legal realizada nos autos principais, uma melhoria das sequelas resultantes do acidente?
“2 - Sim.”
3.º Qual o grau de incapacidade (IPP) de que sofre o sinistrado actualmente?
“3 - IPP de 1,5%.”
4.º A alteração da IPP é resultado de melhoria das sequelas?
“4 - Sim. Melhorou a mobilidade do tornozelo e objectiva-se cicatrizes dolorosas.”
5.º Actualmente o sinistrado encontra-se capaz para o desempenho da actividade profissional que exercia na data do acidente, ainda que afectado pelas sequelas de que é portador, ou mantém-se em situação de IPATH?
6.º Caso o sinistrado esteja capaz para o desempenho da actividade profissional que exercia na data do acidente, ainda que afectado pelas sequelas de que é portador, a alteração dessa situação é resultado de melhoria das sequelas?
“5 e 6– Tendo em conta as sequelas actualmente observadas e em consonância com a resposta dada na junta médica de Fls. 124 e 125. As sequelas são apenas limitativas da profissão que desempenhava anteriormente na medida da sua IPP.”
A junta médica de fs. 124-125 é a que foi realizada na fase inicial do processo, em 04.02.2020, na qual os peritos médicos declararam que
“as sequelas são apenas limitativas da profissão que desempenhava anteriormente”
, não estando incapacitado para o trabalho habitual.
No entanto, face às conclusões constantes do parecer técnico solicitado ao IEFP, a sentença proferida na fase inicial e o Acórdão desta Relação de 30.06.2021 concluíram que o sinistrado se encontrava incapacitado para o seu trabalho habitual de motorista de pesados.
Nestas decisões, consta do elenco de factos provados, para além do mais, o seguinte:
“19. As funções que o autor exercia à data do acidente, enquanto motorista de veículos pesados de mercadorias, exigem subida e descida frequente da cabine (que dista cerca de 1 metro do chão); força ao nível do tronco, membros inferiores e superiores para subir e descer da caixa do veículo pesado e transportar a carga; força dinâmica ao nível dos membros inferiores para accionar os pedais do veículo pesado e agilidade motora para manobrar porta-paletes.
20. O Autor não consegue, com carácter diário, subir e descer do camião pesado, carregar no acelerador do camião pesado e movimentar cargas superiores a 30 kg.
21. Actualmente e após o acidente, o Autor conduz apenas veículos ligeiros de mercadorias e movimenta cargas leves.
(…)
23. Como resultado do acidente o autor padece de sequelas de rigidez dos movimentos do tornozelo direito, sequelas que o afectam de uma IPP de 5,94%, com IPATH, desde a data da alta clinica [decisão do apenso de fixação de incapacidade].”
Tendo sido impugnados os pontos 20 e 23 deste elenco fáctico, o Acórdão de 30.06.2021 decidiu confirmá-los, sob a seguinte fundamentação:
“Desde há muito que esta Secção Social vem entendendo, pacificamente, que a prova pericial é livremente apreciada pelo Tribunal e que não existe qualquer impedimento a que seja atribuída, justificadamente, maior força probatória a outros meios de prova carreados para os autos, nomeadamente ao parecer do IEFP .
Tal entendimento foi confirmado pelo recente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de Junho de 2021, proferido no processo n.º 3004/16.8T8FAR.E1.S1.
No vertente caso, é certo que a junta médica, unanimemente, considerou que as sequelas decorrentes do acidente apenas limitavam o exercício da profissão anteriormente desempenhada pelo sinistrado.
Para fundamentar esta opinião dos peritos, os mesmos tiveram em consideração, como decorre do auto de junta médica, as afirmações do sinistrado (“trabalho no mesmo local com serviços ligeiros”), as lesões/sequelas identificadas («Entorse grave da tibiotársica direita, com lesão de ligamento colateral, sendo sujeito a cirurgia, tendo ficado com sequelas de rigidez dos movimentos do tornozelo»), bem como a resposta que deram aos quesitos 2 e 3 em que afirmaram que o sinistrado consegue subir e descer de um veículo pesado de mercadorias e consegue carregar no acelerador de tal tipo de veículo.
Porém, no parecer técnico elaborado pelo IEFP, ao abrigo do artigo 21.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro (LAT), concluiu-se que as limitações funcionais ao nível do membro inferior direito do sinistrado dificilmente são compatíveis com a actividade de condução de veículos pesados de mercadoria, em condições de segurança para si e para terceiros, assim como para a operação de um porta-paletes.
Mais se referiu que o desempenho da actividade exercida pelo trabalhador à data do acidente (motorista de pesados e distribuidor) implica mobilização, destreza e força dinâmica dos membros inferiores, bem como coordenação motora coxa-perna-pé e pé-pé. Explicou-se que tais exigências são necessárias para o controlo persistente e alternado na pressão dos pedais do travão e do acelerador, inerentes à condução em estrada e às manobras de parqueamento de um veículo pesado de mercadorias, assim como para subir e descer para a cabine e compartimento de carga do veículo e manobrar um porta-paletes.
Este parecer contém uma análise do posto de trabalho do sinistrado bem fundamentada e muito completa, e uma ponderação cuidadosa entre as sequelas e limitações físicas do sinistrado e as exigências do posto de trabalho que o mesmo ocupava aquando da verificação do acidente.
Acresce que consta da ficha de aptidão para o trabalho, junta pelo empregador, que o mesmo foi considerado “apto condicionalmente”, constando das observações que «deve evitar esforços físicos extremados a moderados, tais como carregar ou levantar pesos, de forma repetitiva e/ou prolongada. Deve evitar ortostatismo e trabalho sentado por períodos prolongados.»
Ora, conjugando os mencionados meios probatórios, dos mesmos não resultam divergências quanto à existência de sequelas funcionalmente limitadoras, ao nível do membro inferior direito do sinistrado.
Contudo, os peritos médicos não revelaram possuir um conhecimento profundo das concretas funções do posto de trabalho que o sinistrado tinha à data do acidente.
Já no relatório elaborado pelo IEFP procedeu-se a uma exaustiva análise do posto de trabalho e concluiu-se que as limitações físicas de que o sinistrado padece comprometem, com carácter permanente e absoluto, o exercício da sua profissão habitual.
Não poderia o tribunal a quo desprezar este importante meio probatório produzido (corroborado pela “ficha de aptidão para o trabalho”), que se sobrepõe à frágil perícia por junta médica, no que respeita à questão de saber se o sinistrado está ou não afectado de IPATH.
O parecer do IEFP constitui um meio probatório qualitativamente superior quanto a tal matéria.
Pelo exposto, entendemos que existe suporte probatório consistente para ter sido julgada provada a materialidade descrita nos pontos 20 e 23 dos factos assentes.”
A primeira instância decidiu julgar procedente o incidente de revisão de incapacidade, fixando ao sinistrado uma IPP de 1,5%, a partir da data de entrada do incidente.
Daí o recurso do sinistrado, patrocinado pelo Ministério Público, que conclui:
1. O sinistrado não se conforma com a sentença do presente incidente que decidiu fixar a sua incapacidade em 1,5% de IPP (que considera o factor de bonificação de 1,5) a partir da data da entrada do incidente de revisão (29/04/2024) omitindo a IPATH fixada.
2. Com efeito, nos autos com o n.º 1199/18.5T8BJA foi atribuída ao sinistrado uma incapacidade de 5,94% (IPP), desde a data da alta (25.06.2018), com IPATH, por sentença transitada em julgado e confirmada pelo TRE.
3. Tal decisão assentou nas exigências da profissão de motorista de um pesado de mercadorias, tendo o Tribunal formado a sua convicção no relatório do IEFP e que mereceu credibilidade em face das regras de experiência de vida.
4. Sucede que a Junta Médica a que o ora sinistrado foi submetido, reconheceu melhorias, atribuindo-lhe uma IPP de 1,5%, mas omitindo a IPATH, admitindo que as sequelas são limitativas da profissão que desempenhava, na medida da sua IPP, colocando em causa o teor da sentença proferida nos autos já transitada em julgado, que foi confirmada pelo Tribunal da Relação de Évora (1199/18.5T8BJA.E1), as quais reconhecem que o sinistrado está afectado por IPATH.
5. A douta sentença ora recorrida não ponderou o teor do relatório do IEFP, no qual se relata que as limitações do sinistrado se afiguram dificilmente compatíveis com a condução de veículos pesados de mercadorias e ignorou a que a Junta Médica não fundamentou como é que o sinistrado poderia voltar a desempenhar aquelas funções.
6. Na verdade, o sinistrado/Recorrente não sente melhorias, sentindo-se incapaz de voltar às suas funções.
7. A IPP de 5,94 % com IPATH fixada ao sinistrado nos autos principais resultou, ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova, da conjugação de toda a prova produzida, onde se inclui o parecer do IEFP, cremos que a douta sentença ora proferida mal andou ao alterar a IPP e a IPATH fixada ao sinistrado tendo por base, apenas, a nova junta médica efectuada.
8. Pelo exposto, verifica-se omissão de pronúncia quanto aos motivos de ser retirada ao sinistrado a IPATH que lhe foi fixada por sentença transitada em julgado, o que configura nulidade, nos termos do art. 615.º, n.º1, als. d) do CPC.
9. Nulidade que expressamente se vem arguir, nos termos do disposto no art. 77.º do Cód. Proc. Trabalho e cuja declaração se requer, com as legais consequências.
10. Em consequência deve ser revogada a sentença proferida.
A Seguradora sustenta a manutenção do julgado.
Cumpre-nos decidir.
Os factos a ponderar na decisão do recurso são os constantes do relatório.
APLICANDO O DIREITO
Da revisão da incapacidade
De acordo com o art. 70.º n.º 1 da LAT – Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro – a prestação pode ser alterada ou extinta, quando se verifique uma modificação na capacidade de trabalho ou de ganho do sinistrado proveniente de agravamento, recidiva, recaída ou melhoria da lesão ou doença que deu origem à reparação, ou de intervenção clínica ou aplicação de ajudas técnicas e outros dispositivos técnicos de compensação das limitações funcionais ou ainda de reabilitação e reintegração profissional e readaptação ao trabalho.
Pode a revisão ser requerida pelo sinistrado ou pela responsável pelo pagamento da prestação (n.º 2), mas, no que a esta respeita, deve alegar e provar uma melhoria da lesão ou da doença que deu origem à lesão, de modo a poder obter a redução ou extinção da prestação anteriormente fixada.
Está em causa um facto novo, modificativo da capacidade de trabalho ou de ganho, e daí que importe averiguar se esse novo facto efectivamente ocorreu e em que medida.
Face ao art. 145.º do Código de Processo do Trabalho, a prova realizada neste tipo de incidentes é essencialmente pericial (perícia médica singular ou por junta médica), tanto mais que estão em apreciação factos para os quais são necessários conhecimentos especiais, nomeadamente de carácter médico, que os julgadores não possuem. Porém,
“apesar de a resposta do perito assentar, por via de regra, em conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, é ao tribunal, de harmonia com o prudente critério dos juízes, que se reconhece o poder de decidir sobre a realidade do facto a que a perícia se refere. Parte-se do princípio de que aos juízes não é inacessível controlo do raciocínio que conduz o perito à formulação do seu lado e de que lhes é de igual modo possível optar por um dos laudos ou afastar-se mesmo de todos eles, no caso frequente de divergência entre os peritos.”
[1]
No âmbito do incidente, o juiz não fica limitado ao parecer médico, podendo efectuar quaisquer diligências que se mostrem necessárias – art. 145.º n.º 6 do Código de Processo do Trabalho – e visto que o incidente corre no apenso para fixação da incapacidade, pondera igualmente todo o manancial probatório já aí recolhido.
No caso, no incidente de revisão revelou-se a mesma tensão que já havia ocorrido aquando da fixação inicial da incapacidade – os peritos médicos continuam a entender que o sinistrado não está incapacitado para o seu trabalho habitual de motorista de pesados, como já haviam declarado anteriormente, mas nada de novo apresentam para contrariar a matéria de facto apurada nos pontos 19, 20 e 21 do Acórdão desta Relação de 30.06.2021, relativa à descrição das funções do sinistrado como motorista de pesados e distribuidor – subida e descida frequente da cabine (que dista cerca de 1 metro do chão); força ao nível do tronco, membros inferiores e superiores para subir e descer da caixa do veículo pesado e transportar a carga; força dinâmica ao nível dos membros inferiores para accionar os pedais do veículo pesado e agilidade motora para manobrar porta-paletes; impossibilidade de, com carácter diário, subir e descer do camião pesado, carregar no acelerador do camião pesado e movimentar cargas superiores a 30 kg; e após o acidente, o sinistrado apenas conduzir veículos ligeiros de mercadorias e movimentar cargas leves.
Na junta médica, os peritos afirmam que o sinistrado
“após a alta conduziu carrinhas ligeiras e actualmente no desemprego desde Março de 2022”
– ou seja, não conduziu pesados até Março de 2022, e essa era a sua profissão à data do acidente – e declaram que
“tem queixas de dores no tornozelo associadas à cicatriz bimaleolar do tornozelo direito, nesta data já não tem rigidez das mobilidades”
,
“melhorou a mobilidade do tornozelo e objectiva-se cicatrizes dolorosas”
, e
“queixa-se de dificuldade em pressionar com o pé direito o acelerador e a embraiagem.”
Ponderando que o sinistrado não conduziu mais pesados – até Março de 2022 não o fez, depois dessa data ficou desempregado – as dores no tornozelo e a dificuldade constatada em pressionar com o pé direito o acelerador e a embraiagem revelam-se na condução de veículos ligeiros.
Tudo isto significa que o sinistrado revela limitações, desde logo, na condução de veículos ligeiros, e nada demonstra que tenha menores limitações da condução de veículos pesados e na distribuição de cargas superiores a 30 kg, tendo readquirido a capacidade de realizar essas funções.
A experiência comum não comprova que seja menos exigente fisicamente a condução de pesados que a de ligeiros, e certo é que o Acórdão desta Relação de 30.06.2021 considerou provado que o sinistrado estava impossibilitado de
“com carácter diário, subir e descer do camião pesado, carregar no acelerador do camião pesado e movimentar cargas superiores a 30 kg”
.
Tudo para concluir que os factos apurados pelos peritos médicos não demonstram que o sinistrado tenha readquirido a capacidade física necessária ao desempenho da profissão que desempenhava à data do acidente, de motorista de pesados e distribuidor, e ponderando o dever de livre apreciação da prova pericial – já declarado no Acórdão desta Relação de 30.06.2021 – somos a constatar que não está demonstrada a melhoria do sinistrado apta à retoma da sua profissão habitual à data do acidente, pelo que devemos acompanhar o parecer do perito médico singular, ao declarar que o sinistrado mantinha a mesma situação clínica e a mesma incapacidade (tanto mais que o tribunal não está obrigado a optar necessariamente pelo parecer formulado em junta médica, em detrimento do parecer médico singular, e muito menos quando verifica que aquele se fundou em factos não demonstrados nos autos).
Como tal, o incidente deve improceder.
Para terminar, o argumento do sinistrado, de nulidade da sentença por omissão de pronúncia quanto aos motivos de ser retirada a IPATH, não tem aqui cabimento: a pronúncia foi exercida, o que ocorre é mero erro de direito, mas essa é questão distinta.
DECISÃO
Destarte,
concede-se provimento ao recurso, revoga-se a sentença recorrida e julga-se o pedido de revisão improcedente
.
Valor do incidente: € 8.628,06 x 11,006 = € 94.960,43.
Custas pela Seguradora, na proporção da retribuição que lhe foi transferida (76,04%).
Évora, 10 de Julho de 2025
Mário Branco Coelho
(relator)
Paula do Paço
Emília Ramos Costa
__________________________________________________
[1] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 2.ª ed., 1985, pág. 583.
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TRE
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https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/6e516fdc2ec6a8d980258cd20047ad9b?OpenDocument
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1,759,536,000,000
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CONFIRMADA A SENTENÇA
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1663/15.8T8PVZ.P1
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1663/15.8T8PVZ.P1
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PAULO DIAS DA SILVA
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I - A natureza do Condomínio como consumidor depende do tipo de utilização a que se destinam as fracções que compõem o edifício a que o Condomínio respeita.
II - No caso em apreço, tendo as fracções maioritariamente um destino habitacional, então o condomínio deve ser qualificado como consumidor (ut artigo 2º, nº 1 da Lei nº 24/96, de 31.06).
III - Equivale à denúncia, o reconhecimento, por parte do empreiteiro, da existência do defeito.
IV - Reparando uma obra com defeitos, o empreiteiro reconhece esses defeitos.
V - E, reconhece o direito dos autores à sua reparação, verificando-se um facto impeditivo da caducidade para a propositura da acção judicial destinada a obter o ressarcimento dos prejuízos sofridos.
VI - O empreiteiro deve executar a obra em conformidade com o que foi convencionado, e sem vícios que excluam ou reduzam o valor dela, ou a sua aptidão para o uso ordinário ou previsto no contrato.
VII - Os contratos devem ser pontualmente cumpridos, sendo que o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado.
VIII - O cumprimento defeituoso da obrigação constitui uma forma de falta de cumprimento obrigacional, presumindo-se o cumprimento defeituoso do empreiteiro.
IX - Considerando que ao empreiteiro cabe a prova dos factos impeditivos da sua responsabilidade (art.º 342.º, n.º 2), incumbe-lhe demonstrar que o aparecimento do defeito se ficou a dever a culpa do lesado ou terceiro, o que não sucede no caso vertente.
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[
"CONSUMIDOR",
"ADMINISTRADOR DO CONDOMÍNIO",
"EMPREITADA",
"DEFEITOS",
"RECONHECIMENTO PELO EMPREITEIRO",
"CADUCIDADE"
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Recurso de Apelação - 3ª Secção
ECLI:PT:TRP:2025:1663/15.8T8PVZ.P1
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
1. Relatório
Condomínio ... - Lote ..., referente aos prédios constituídos em regime de propriedade horizontal correspondentes à segunda fase daquele empreendimento sito na Rua ..., ..., e Rua ..., ..., na freguesia ..., concelho de Vila do Conde, portador do número de identificação fiscal ..., aqui representado em juízo pela sua Administração “A..., Lda.”, com sede na Avenida ..., portadora do número de identificação fiscal ..., Póvoa de Varzim, instaurou acção declarativa sob a forma de processo comum contra os Réus:
1º - AA, residente no Lugar ..., ..., freguesia ..., concelho da Trofa;
2º - BB, residente no Lugar ..., ..., freguesia ..., concelho da Trofa;
3º - CC, residente no Lugar ..., ..., freguesia ..., concelho da Trofa;
4º - DD, residente no Lugar ..., ..., freguesia ..., concelho da Trofa;
5º - EE, residente no Lugar ..., ..., freguesia ..., concelho da Trofa;
6º - FF, residente no Lugar ..., ..., freguesia ..., concelho da Trofa; e
7º - “B..., Unipessoal, Lda.”, com sede na Rua ..., ..., na freguesia ..., concelho da Póvoa de Varzim, portadora do número de identificação de pessoa colectiva ..., onde concluiu pedindo a condenação:
a) do primeiro ao sexto Réus a reconhecerem a existência dos defeitos em apreço, bem como a respectiva responsabilidade na reparação dos mesmos, no que concerne aos terraços acessíveis, terraços inacessíveis, varandas, chaminés e floreiras e da sétima Ré no que respeita à fachada;
b) de todos os Réus, na medida das suas responsabilidades, a procederem a todas as reparações que se mostrarem necessárias, in casu, no empreendimento sub judice, tornando-o isento de quaisquer defeitos e anomalias de construção;
c) ou, e em alternativa, de todos os Réus, a pagarem solidariamente, na medida das respectivas responsabilidades, o valor das obras que se mostrarem necessárias à total reparação do empreendimento em apreço, tornando-o isento de quaisquer defeitos e anomalias, cujo efectivo montante remete para liquidação em execução de sentença.
Alegou, em síntese, que a sociedade, entretanto dissolvida, cujos sócios eram os primeiro a sexto Réus, promoveu a construção e venda do “Edifício ...”, tendo-a demandado devido a problemas de construção que originavam infiltrações.
Acrescentou que celebrou transacção onde fixaram os defeitos de construção da responsabilidade da sociedade relativamente a terraços acessíveis, não acessíveis, chaminés, claraboias e floreiras, que a mesma se obrigou a reparar através da contratação de empresa idónea à sua escolha, a aprovar por técnico por si indicado, remetendo para um parecer quanto aos terraços acessíveis, salvo se implicasse demolição ou substituição das partes do prédio exclusivamente privadas, reparar deficiências nos terraços inacessíveis para eliminar infiltrações.
Mais alegou, que o primeiro e o segundo Réu acordaram com a sétima Ré a realização dos trabalhos, garantindo esta o seu trabalho por dez anos.
Acrescentou que haviam também patologias provenientes das fachadas, tendo acordado com a sétima Ré a sua reabilitação e impermeabilização; apesar de os trabalhos da responsabilidade dos primeiro a sexto Réus terem sido dados como concluídos em 2009, nunca o aceitou, por não eliminação total dos problemas das infiltrações, tendo intentado execução que veio a ser extinta por procedência da oposição que deduziram, deixando de se interessar pela resolução dos problemas existentes.
Alegou, ainda, que em finais de 2014 devido a deficiência dos trabalhos realizados pela sétima Ré no âmbito dos dois contratos, interpelou todos os Réus, mas a última sugeriu uma nova limpeza após o decurso do inverno.
Acrescentou que discriminou as patologias nas coberturas acessíveis, não acessíveis, chaminés, pavimentos e tectos de varandas, nas fachadas, em partes comuns e no interior de fracções, com agravamento de uns, nos problemas noutros que atribuiu a má/deficiente intervenção dos Réus.
*
Citados, os primeiros ao sexto Réus apresentaram contestação, que, todavia, foi desentranhada devido a intempestividade.
*
Citada, a sétima Ré contestou.
Contrapondo que o Autor admite que os defeitos se verificam desde 2012 e que nas actas das assembleias de condóminos já existiriam desde 2011/2012, concluindo pela caducidade por não ter havido denúncia até finais de Janeiro de 2012.
Referiu que concluiu, em meados de 2011, todos os trabalhos constantes dos orçamentos e realizou-os com supervisão técnica, nunca reconheceu a existência de patologias da sua responsabilidade, nem manifestou intenção de os solucionar.
*
Notificado, o Autor exerceu o contraditório argumentando que a responsabilidade da sétima Ré foi pela mesma reconhecida, interrompendo a caducidade e invocou o prazo de garantia de dez anos previsto no contrato celebrado entre a mesma e os primeiros Réus, asseverando ter interpelado a Ré por diversas vezes.
*
Dispensada a realização de audiência prévia, foi proferido despacho saneador, relegando para final o conhecimento da excepção de caducidade.
*
Foi identificado o objecto do litígio, fixou-se a matéria de facto assente e enunciaram-se os temas da prova.
*
O Autor e os Réus primeiro a sexto celebraram transação, homologada por sentença proferida em 1 de Julho de 2020, transitada em julgado.
*
Os autos prosseguiram relativamente à sétima Ré, realizando-se a audiência de julgamento, com observância das formalidades legais.
*
Foi proferida sentença que julgou a acção procedente e, em consequência:
A) condenou a Ré B..., Unipessoal, Ld.ª:
a) a reconhecer a existência dos defeitos identificados nos pontos 27) f), g), h), j) e k), 29) quanto à degradação nos tetos, paredes, pavimentos, rodapés e guarnições, 33), 36) quanto às manchas e degradação do revestimento interior junto aos vãos envidraçados exteriores que dão acesso às frações, 38), 40), 41), 42) quanto às manchas de bolores em paredes exteriores orientadas a norte, 43) e 44) todos da fundamentação de facto, existentes no Empreendimento ... - Lote ... e a responsabilidade na sua reparação;
b) a proceder à reparação das patologias referidas em a) tornando o edifício isento desses defeitos;
B) absolvendo a Ré B..., Unipessoal, Ld.ª do pedido alternativo deduzido pelo Autor Condomínio ... - Lote ...”.
*
Não se conformando com a decisão proferida, veio a ré “B..., Unipessoal, Ld.ª”, interpor recurso de apelação, em cujas alegações concluiu da seguinte forma:
I.Nestes autos, o Tribunal
a quo
condenou parcialmente a Sétima Ré/Recorrente no pedido, julgando, parcialmente, procedente a acção e condenando a Recorrente:
a) a reconhecer a existência dos defeitos identificados nos pontos 27) f), g), h), j) e k), 29) quanto à degradação nos tetos, paredes, pavimentos, rodapés e guarnições, 33), 36) quanto às manchas e degradação do revestimento interior junto aos vãos envidraçados exteriores que dão acesso às frações, 38), 40), 41), 42) quanto às manchas de bolores em paredes exteriores orientadas a norte, 43) e 44) todos da fundamentação de facto, existentes no Empreendimento ... - Lote ... e a responsabilidade na sua reparação;
b) a proceder à reparação das patologias referidas em a) tornando o edifício isento desses defeitos; B) absolve a Ré B..., Unipessoal, Ld.ª do pedido alternativo deduzido pelo Autor Condomínio ... – Lote ....
II. O Tribunal “a quo” não valorou devidamente toda a produção de prova, designada e essencialmente os esclarecimentos prestados pelos peritos e ainda o depoimento de parte da Recorrente, 7ª Ré, em total desrespeito pelas regras processuais e de apreciação da prova, nem sequer justificando, a não valoração do depoimento de parte da 7ª Ré, o que se traduz numa omissão da fundamentação da sentença, o que implica a sua nulidade por força do art.º 615º, nº 1, alínea d) do C.P.C.
III. A sentença recorrida não se pronunciou quanto a uma eventual verificação da caducidade do direito do Recorrido de exigir a competente indemnização. O Tribunal a quo apenas apreciou a questão da denúncia dos defeitos, mas não se pronunciou quanto ao prazo para instaurar ação de condenação do empreiteiro na eliminação dos defeitos, incorrendo, por tal motivo, na nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. d) do CPC.
IV. Ademais, no decurso dos autos, foi celebrada entre o A e 1ºs a 6ºs RR, uma transação, que, de facto, configurou uma verdadeira desistência, entre A., 1º a 6º RR., que deveria aproveitar à 7ª Ré, o que sempre conduziria à sua absolvição da totalidade do pedido.
V. A Douta Sentença não se pronunciou quanto à questão do pedido genérico e simplista efectuado pelo A. na PI, no qual peticiona uma condenação de todos os RR., na reparação dos defeitos, na proporção das suas responsabilidades, sem especificar, como lhe competia ao abrigo do princípio do pedido, que defeitos a cada um dos RR. competia reparar e a responsabilidade concreta de cada um.
VI. Decorre do princípio do dispositivo que compete ao Julgador esgrimir quais as responsabilidades de cada um dos RR., mas sim ao A. elencá-las, não só na sua alegação, mas também no pedido, sob pena de não serem apreciados factos da alegação da PI, mas tão somente na medida do pedido efectuado.
VII. Ainda que tais questões fossem sendo analisadas e contraditadas, questionando-se todas as testemunhas e peritos quanto a tais factos, e produzindo-se prova testemunhal e documental bastante, pretendeu não valorizar a integralidade da prova testemunhal e pericial produzida, de modo a condenar parcialmente a Ré na reparação de alguns dos defeitos peticionados, quando da prova produzida, com especial relevância para a prova pericial e esclarecimentos dos peritos, se demonstra que os alegados defeitos não têm como responsável a atuação da 7ª Ré, mas sim problemas estruturais dos prédios, em nada relacionado com as intervenções, obras e reparações realizadas pela 7ª Ré, o que sempre conduziria à absolvição total da 7ª Ré.
VIII. A pronúncia cuja omissão releva incide sobre o concreto objeto que é submetido à cognição do tribunal, correspondendo aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, às concretas controvérsias centrais a dirimir, como é o caso dos autos, pelo que verificando-se uma omissão de pronúncia do Tribunal a quo, verifica-se uma clara violação do disposto no nº 2 do art.º 608º do C. P.C, o que sempre acarretará a nulidade da sentença, nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, o que deverá ser declarado com as legais consequências.
IX. Entende a Recorrente que os factos dados como provados contêm, em si mesmos, graves e insanáveis contradições com outros factos constantes dos autos, bem como, com o depoimento prestado pelas testemunhas em sede de instrução, e ainda com a motivação e omissão de pronúncia supra alegada, o que impede, necessariamente, que, em conjunto, possam servir para fundar a convicção do Tribunal.
X. Além disso, a apelante considera que a prova produzida é manifestamente suficiente para se dar como provado alguns dos factos não provados.
XI. O Tribunal a quo tinha o dever de atender a todas as provas produzidas, tivessem estas emanado, ou não, da parte que devia produzi-las, em consagração do princípio da aquisição processual (art. 413.º do CPC) o que, conforme veremos infra, efectivamente não aconteceu, tendo aquele mantido a sua posição estanque.
XII. A Meritíssima Juíza do Tribunal a quo não julgou verificada a exceção perentória da caducidade na medida em que, na sua perspetiva, existiu reconhecimento do direito da Recorrida à eliminação (de parte) dos defeitos, daí decorrendo a “inoperabilidade” da caducidade, o que, não faz qualquer sentido, na medida em que, a ré/recorrente nunca reconheceu, nem direta, nem indiretamente, qualquer defeito.
XIII. Compulsados os autos da prova produzida, nenhum comportamento da Recorrente pode ser entendido como tendo assumido a existência de qualquer suposto defeito. Todas as diligências efetuadas pela Recorrente na tentativa de resolução de alguns problemas, aconteceram ainda enquanto não estavam terminados os trabalhos, pois iam surgindo algumas reclamações por parte dos proprietários das frações ao longo da execução dos trabalhos. Assim, a Recorrente encontrando-se, ainda, a executar alguns trabalhos no âmbito do contrato adjudicado, procedeu a pequenos reparos e intervenções pontuais, em virtude pedidos lhe iam surgindo por parte dos condóminos.
XIV. Não obstante, o reconhecimento do direito impeditivo da caducidade, para os efeitos do artigo 331º, n° 2 do Código Civil, tem de ser expresso, concreto e preciso, de modo a que não subsista qualquer dúvida sobre a aceitação pelo devedor dos direitos do credor, não sendo bastante a admissão vaga ou genérica desses direitos. Isto é, o reconhecimento do direito deve que ser expresso de forma a não existirem dúvidas sobre a assunção da responsabilidade do devedor, não obstante, vemos que nada disso acontece no caso em apreço.
XV. Nesta senda, o facto de a Recorrente ter levado a cabo pequenas intervenções nas juntas das fachadas dos blocos ..., ..., ... e ... não significa per si que admitiu que essa parte da obra padecia de defeitos, por outro lado, tais reparações não indicam, sem qualquer dúvida, que se trataram de intervenções tendentes à eliminação de defeitos alegadamente denunciados.
Como se disse, as afinações e retoques localizados ocorridas em 2012/2013 foram meramente pontuais, na sequência de solicitações dos próprios condóminos, que à medida que as obras iam acontece detetavam pequenos danos e comunicavam diretamente à Recorrente, que efetuou pequenas intervenções ao nível de limpezas e retoques nos trabalhos já executados, pelo que não poderá considerar-se ter ocorrido um reconhecimento dos defeitos por parte da Recorrente.
XVI. Sem prescindir, não houve qualquer reconhecimento do direito do Autor, ora Recorrida, à eliminação dos defeitos por esta denunciados na obra executada pela Recorrente, mas apenas um reconhecimento e dispensa a efetivação da denúncia pelo Recorrido, o que não o exonera de tempestivamente exercer o direito de ação subsequente à denúncia do defeito.
XVII. Mas, ainda que se considerasse existir o invocado reconhecimento dos defeitos, o que, de facto, não se verificou, a denúncia dos defeitos pelo Recorrido verificou-se no ano de 2011 - o que resultou da prova testemunhal, mais concretamente da testemunha GG, testemunha indicada pelo A. e cujo depoimento se encontra transcrito e também do depoimento de parte do representante legal da 7º Ré, e resultava da prova documental – ata da assembleia geral de condóminos - pelo que o Recorrido teria a partir desse momento um ano para intentar a competente ação judicial de responsabilização do empreiteiro, ao abrigo do artigo 1224º, n.º 1 do Código Civil.
XVIII. Ora a ação deve ser proposta no prazo de um ano contados desde a data em que foi feita a denúncia, pelo que se devem aplicar as regras gerais da caducidade, devendo assim apurar-se da existência de qualquer causa impeditiva nos termos do artigo 331.º do Código Civil, nomeadamente o reconhecimento expresso, do defeito, pelo empreiteiro, sendo que neste caso a ação sempre poderia ser intentada após o referido prazo, o que não veio a acontecer pois a presente demanda apenas deu entrada a 08 de dezembro de 2015, isto é, decorridos três anos do alegado reconhecimento (que, de facto, não se verificou) do Recorrente dos defeitos existentes no empreendimento.
XIX. Pelo exposto, conclui-se que não houve qualquer impedimento da caducidade do direito a exigir a eliminação do defeito denunciado, antes sim a verificação da exceção da caducidade de instauração da ação competente a exigir a eliminação dos defeitos de obra, questão que deveria ter sido apreciada e declarada pelo douto Tribunal Recorrido, com as legais consequências.
XX. Ainda quanto à questão da caducidade de instauração da competente ação, importa referir que as obras efetuadas pela Recorrente iniciaram no ano de 2009, tendo ficado finalizadas em maio de 2011, sendo certo que após a conclusão dos trabalhos, o Recorrido informou que não aceitaria a obra entregue pela Recorrente, conforme resulta da ata n.º ..., datada de 26 de novembro de 2011, que já se encontra junta aos autos, onde resulta do ponto cinco da ordem de trabalhos o seguinte: “tomou a palavra um membro da Administração que fez um ponto de situação quanto às obras de reabilitação do empreendimento (...). Não obstante a obra ter sido dada como concluída pelo Empreiteiro, a Administração informou, não ter aceitado o “termo da obra” entregue pelo mesmo (...)”.
XXI. Mais resultou das declarações dos próprios proprietários das frações do Condomínio que os alegados problemas já se faziam notar no ano de 2011, porquanto muito se estranha que se tenham verificado alegados problemas em algumas frações, logo no ano de 2011 e que os proprietários dessas frações, enquanto condóminos não os tenham comunicado de imediato ao Recorrido.
XXII. Assim sendo, a verificarem-se os alegados problemas no ano de 2011, o Recorrido tinha conhecimento desses defeitos e, eventualmente, por esse motivo, não aceitou o termo da obra, mas não tendo feito a denúncia expressa e precisa à Recorrente.
XXIII. Posto isto, e ainda que se entenda que não ocorreu a denúncia de defeitos expressa e precisa das frações, imediatamente a seguir à conclusão dos trabalhos pelo Recorrente, no ano de 2011, o Recorrido recusou a aceitação da obra, pelo que já nessa data conhecia a existência dos alegados defeitos, neste sentido vide acta nº ..., de 26 de novembro de 2011.
XXIV. Caso assim não se entenda, ainda que se considere ser aplicável ao caso o DL n.º 67/2003, concretamente, o prazo previsto no n.º 3 do artigo 5.º-A aditado pelo DL n.º 84/2008, ou seja, o prazo de três anos para efetivação do seu direito, como entendeu, erroneamente, o Tribunal a quo também, a conclusão era a mesma. Isto porque, a Recorrida manifestou a existência de supostos defeitos nas obras levadas a cabo pela Recorrente, no Empreendimento denominado “..., Lote ..., ...” em 2011 e apresentou ação em tribunal em 08 de dezembro de 2015, ou seja, quatro anos depois daquela data, porquanto à luz do artigo 5.º-A, n.º 3 do DL n.º 67/2003 aditado pelo DL n.º 84/2008 o prazo de três anos para o exercício do direito de eliminação dos defeitos, em 2015, já se encontrava há muito ultrapassado.
XXV. Na verdade, os invocados defeitos já eram reclamados antes mesmo de ter ocorrido a entrega da obra pelo empreiteiro, aqui recorrente, porquanto, ao longo dois anos em que ocorreram as obras já nessa altura se verificavam pequenas reclamações dos proprietários das frações quanto aos defeitos que a adjudicada apresentava.
XXVI. Da prova produzida em julgamento, mais concretamente do depoimento da testemunha HH, cujo depoimento se encontra transcrito e se anexa, resultou que as alegadas queixas relativas aos danos em causa pelos quais a recorrente foi condenada nos autos, já haviam sido discutidos em várias assembleias gerais de condóminos do prédio do Recorrido, antes mesmo de a obra estar terminada, o quer isto dizer que os defeitos cuja eliminação em apreciação nos autos são os mesmos constantes das atas das assembleias gerais de condóminos e, portanto, já reclamados antes mesmo da entrega da obra pela Recorrente.
XXVII. Em suma, perante o exposto, da conjugação da matéria de direito e matéria de facto, deve a matéria de facto provada ser aditada nos seguintes termos:
72) no ano de 2011, o Autor teve conhecimento de problemas que afetavam algumas frações, designadamente, frações “AB”, “AD”, “AC”, “BC”, “BD”, “AZ” e “AX”;
73) Nesta sequência, aquando da realização da Assembleia-Geral Ordinária do Condomínio ... - Lote ...”, no dia 26 de novembro de 2011, um dos membros da Administração assumiu que, apesar de obra ter sido dado como concluída pelo Empreiteiro, não aceitaram o termo da obra, por discordar do modo de realização das intervenções nos terraços inacessíveis;
74) Os problemas existentes nas fracções já existiam antes de 2008, o que era do conhecimento do A, resultando isso mesmo da testemunha indicada pelo A, HH, neste sentido vide depoimento que se transcreve e se anexa.
XXVIII. O tribunal
a quo
não se pronunciou devidamente acerca dos efeitos jurídicos da transação efectuada entre A. e 1ª a 6ª RR, em 29/06/2020, homologada por sentença, que, de facto, configura uma verdadeira desistência do pedido, condicionada ao pagamento da quantia de 150.000,00 € (efetuado), o que, salvo melhor entendimento, deverá aproveitar à Recorrente, o que sempre deverá conduz à sua absolvição da totalidade do pedido.
XXIX. Tal terá, necessariamente ocorrer, pela forma como os factos vêm articulados pela A. e pela forma como o pedido foi formulado. Compulsados os autos, resulta que a responsabilidade/imputação pelo reconhecimento dos defeitos e sua eliminação, vem apresentada de forma genérica formulada contra todos os RR., neles se incluindo a Recorrente, logo, decorre que, com a referida transação/desistência, o A. desiste/renuncia ao seu pedido, na globalidade.
XXX. O A/Recorrido formulou um pedido genérico, no qual peticionou a condenação de todos os RR., na reparação dos defeitos, na proporção das suas responsabilidades, sem especificar, como lhe competia ao abrigo do princípio do pedido, que defeitos a cada um dos RR. competia reparar e a responsabilidade concreta de cada um. Ora, se a todos é imputada responsabilidade aos RR (todos) e no decurso dos autos, a A. desiste contra alguns dos RR. - por via dos factos alegados e peticionados - tal desistência é extensível aos demais, in casu, à Recorrente, pois com a referida transação/desistência, a A. desiste/renúncia ao seu crédito, na globalidade, até porque, foi nesses termos que formulou o pedido.
XXXI. Por tal razão deverá a sentença homologatória da referida transação/desistência do pedido, ser extensível à Recorrente, determinando a sua absolvição do pedido.
XXXII. Quanto aos demais factos, mais concretamente os factos que conduziram à condenação - ainda que reduzida - da Recorrente, verificam-se factos provados, que entram em contradição com a motivação e demais prova testemunhal.
XXXIII. O Tribunal a quo deu como provado, entre outros, os factos provados 27) f), g), h), j) e k), 29) quanto à degradação nos tetos, paredes, pavimentos, rodapés e guarnições, 33), 36) quanto às manchas e degradação do revestimento interior junto aos vãos envidraçados exteriores que dão acesso às frações, 38), 40), 41), 42) quanto às manchas de bolores em paredes exteriores orientadas a norte, 43) e 44). Contudo, dada a prova testemunhal e pericial produzida nos autos, não conduzem à prova desses factos, devendo considerar-se como não provados.
XXXIV. O Tribunal a quo, delimitou desde logo, a responsabilidade da Recorrente ao contrato outorgado e 17/08/2009, onde não se incluem os trabalhos de reparação e eliminação das infiltrações provenientes das zonas de cobertura.
XXXV. Mais conclui que, existia um parecer do Prof. Eng. II, que contemplava uma solução quanto aos terraços acessíveis e tratamento das fachadas, que não foi a adoptada, por escolha única e exclusiva da A., por ser uma opção dispendiosa, que teria um custo de quase uma nova construção, tendo a A. optado por uma solução remediada mais económica.
XXXVI. Da motivação decorre que os problemas existentes nas fachadas, não são, na realidade, da responsabilidade da Recorrente, ora porque não foi sua opção não prosseguir com o método e execução do parecer do Eng. II, ora porque subsistiam problemas que advinham da cobertura, que a Recorrente nunca intervencionou, não constando como objecto do contrato de 17/08/2009.
XXXVII. Contudo, contrariamente ao que motiva a sua decisão, o Tribunal a quo acaba por condenar parcialmente a Recorrente, quer em infiltrações e humidades nas fracções que provinham da cobertura, quer em defeitos nas fachadas, quando, na verdade, a Ré não foi responsabilizada (nem pode ser) pela errada opção da A. ao optar não seguir o parecer do Eng. II – motivada por razões económicas.
XXXVIII. Da prova produzida em julgamento, designadamente dos esclarecimentos dos Srs. Peritos, cujos depoimentos se encontram integralmente transcritos e se anexam - e ainda do depoimento da testemunha JJ quanto à descoloração dos vidros - na sessão de audiência de 23/11/2022 estes afirmam que os problemas existentes provêm muito provavelmente e têm origem na exposição muito próxima do mar, que pode existir uma degradação do edifício precisamente por essa exposição, uma vez que o edifício se situa na primeira linha do mar.
XXXIX. Outrossim, referem que tais problemas surgem já da conceção do edifício, ou seja, relacionados com a sua construção, constituindo um problema crónico que só uma solução radical permitiria ultrapassar, tendo referido que a solução apresentada no parecer do prof. II implicaria um custo igual ou superior à construção do prédio.
XL. Afirmam ainda que, independentemente da boa ou má execução das reparações e até mesmo com a solução preconizada no parecer, sempre surgiriam problemas em virtude da
exposição ao mar e a vida útil dos materiais aplicados.
XLI. Na verdade, além do teste de carga junto aos autos a 18/07/2019, onde colocaram água nas coberturas para verificarem se ocorriam infiltrações e seus esclarecimentos de 11/10/2019, embora se verifiquem infiltrações em 3 blocos, ..., ... e ..., os Srs. Peritos concluem que “No entanto, podem ocorrer situações em que algumas infiltrações tenham origem na cobertura, mas que as águas apareçam em planos verticais de paredes, e por isso existe sempre uma fronteira ténue e uma certa duvida, sobre a origem das mesmas.”
XLII. Da prova produzida, designadamente dos testes realizados pelos peritos, estes não conseguem afirmar com certeza qual a origem das infiltrações, o que, salvo o devido respeito, exclui toda e qualquer responsabilidade da Recorrente, não conseguindo o A. produzir prova cabal que conduza à condenação da Recorrente nos termos em que foi condenada, tanto mais que o ónus da prova é do A.
XLIII. Ademais, o relatório pericial de 09/02/2018, veio confirmar que a degradação da fachada, mais concretamente a degradação generalizada do aspecto da superfície exterior das caixilharias dos vãos envidraçados exteriores, ocorre precisamente devido à exposição ao tempo, proximidade marítima e a degradação natural dos elementos, pelo que foi possível verificar nas frações visitadas, como decorre da resposta ao quesito 16, o que vem corroborar a tese da Recorrente, ou seja, não se pode falar de má execução do contratado a 17/08/2009, mas antes na deterioração rápida e inevitável dos materiais aplicados e fachadas, precisamente em virtude da exposição ao tempo, proximidade marítima e degradação natural.
XLIV. Refira-se ainda que, da prova produzida – esclarecimentos dos peritos - resultou que mesmo que a solução adoptada fosse a do parecer do Eng. II, inevitavelmente ocorreria uma degradação acentuada das fachadas, precisamente pelos mesmos factores supra descritos.
XLV. Opinião unânime é que de facto deveriam ter sido seguidas as soluções construtivas do parecer do Eng. II, mas que, por opção da A., não o foram optando esta por uma solução mais económica. Aliás, em resposta ao quesito 70 e 72, quesitos relativos à origem das infiltrações e patologias da fachada, os Srs. Peritos são esclarecedores e referem apenas que deveria ter sido adoptada a solução construtiva do referido parecer.
XLVI. Ora, a Recorrente, é completamente alheia a esses factos, ora porque um decorre da acção da natureza, ora porque decorre duma opção única e exclusivamente tomada pelo A., pois a solução do parecer em causa era extremamente dispendiosa, pelo que optaram por uma solução mais económica, que a Recorrente executou de acordo com a vontade do A.
XLVII. A perícia é um meio de prova e a sua finalidade é a perceção de factos ou a sua valoração de modo a constituir prova atendível, figurando o perito como um auxiliar do juiz, chamado a dilucidar uma determinada questão com base na sua especial aptidão técnica e científica para essa apreciação, de modo a esclarecer o juiz com conhecimentos especiais que este não possui. E de facto, o relatório elaborado pelos Srs. Peritos nestes autos, foi deveras esclarecedor, dotado de certeza técnico científica e dissipando quaisquer dúvidas, permitindo alcançar o que supra se adiantou: não pode ser imputado à Recorrente qualquer responsabilidade nos defeitos/patologias cujo reconhecimento e reparação é peticionado, razão pela qual terá que ser absolvida da totalidade do pedido.
XLVIII. Acresce que, conforme exposto supra, ainda que se contemplasse a solução do parecer do Eng. II - per si excessivamente onerosa e irrealizável, os problemas que surgiram no edifício, surgiram de igual modo, precisamente e em virtude da exposição ao mar.
XLIX. A presente ação mais não é que, uma tentativa do A, aproveitando-se de ter encarregue a Ré, aqui recorrente, de uma pequena parte de trabalhos do prédio – trabalhos de pequena monta, em face dos problemas que se verificavam – tentar imputar-lhe a obrigação de executar reparações para as quais não foi contratada para resolver.
L. O A., acedeu de forma consciente – até porque estava munido de parecer técnico amplamente discutido em diversas assembleias gerais de condóminos – em optar por uma solução «de remedeio», mais económica e sabia que tal não resolveria o problema, mas que, simplesmente, o atenuava e percebe-se que o tenha feito, pois, como resultou da prova produzida, levar a cabo obras com base no parecer do prof. II, poderia ter um custo exorbitante para os condóminos.
LI. Ora foi, precisamente para fugir a tal encargo brutal, que, recorde-se, no entendimento dos peritos poderia nem sequer resolver os problemas do edifício, que levou o A. a optar por uma solução económica, consciente de que tal estava a contratar um remedeio que permitisse atenuar os problemas no prédio.
LII. Sucede que, não obstante ter contratado um remedeio, pretende, de forma, abusiva e de má fé, exigir a implantação em obra de algo que, ele próprio, não contratou. E para tal, não só pretende manter uma narrativa que ele próprio criou: a de que contratou a reconstrução global do prédio com base no parecer do prof. II - o que o tribunal concluiu (e bem) não corresponder à verdade, como, aproveitou para retirar dos autos os maiores responsáveis - 1ºs a 6ºs RR - a troco do pagamento de 150.000,00 €, exigindo da Ré/Recorrente - o elo mais fraco - mais de meio milhão de euros, o que, não só não faz sentido do ponto de vista legal, como roça a imoralidade e parafraseando-o um professor de direito civil: aquilo que é imoral, não tem enquadramento legal.
LIII. Até porque os peritos, afirmam ainda que, independentemente da boa ou má execução das reparações e até mesmo com a solução preconizada no parecer, sempre surgiriam problemas em virtude da exposição ao mar e a vida útil dos materiais aplicados.
LIV. Igualmente importante, é o facto da alegada humidade no interior das fracções decorrer da cobertura, onde objectivamente a Recorrente não teve qualquer intervenção nem responsabilidade contratual, pois não decorria do contrato outorgado a 17/08/2009 e a Recorrente foi absolvida de toda e qualquer responsabilidade do contrato outorgado entre a e 1ª a 6ª RR, não podendo, em face disso, ser objecto de condenação.
LV. Em suma, perante o exposto nas conclusões supra, resulta, da conjugação da matéria de direito e matéria de facto, designadamente da que, ao abrigo do artigo 640º do CPC se transcreveu (por implicar conclusão diversa) na motivação do presente recurso, que deve a matéria de facto ser alterada e, em face disso, serem julgados como não provados os factos os factos provados 27) f), g), h), j) e k), 29) quanto à degradação nos tetos, paredes, pavimentos, rodapés e guarnições, 33), 36) quanto às manchas e degradação do revestimento interior junto aos vãos envidraçados exteriores que dão acesso às fracções, bem como os factos n.ºs 38), 40), 41), 42) quanto às manchas de bolores em paredes exteriores orientadas a norte, e 43) e 44).
LVI. Não se pode esquecer que o ónus da prova é do A. e era a ele que cabia a prova de que os defeitos existiam, prova essa que, objectivamente, não fez, resultando da prova produzida, conforme transcrição efectuada, conclusão diversa, o que deverá ser declarado.
LVII. O princípio da livre apreciação da prova, apesar da designação que lhe é dada, não se traduz, de modo algum, na existência da discricionariedade ou arbitrariedade por parte do juiz na apreciação da prova, nem tão pouco numa apreciação feita com base na mera impressão gerada pelos vários meios probatórios no espírito do julgador, nem sequer pela parcialidade. O sistema da prova livre não se abre, pois, ao arbítrio, à subjectividade ou à emotividade, muito menos quando, como é caso dos presentes autos, existe prova, testemunhal e documental a que impõe decisão diversa da tomada pelo Tribunal.
LVIII. Deve, pois, o presente recurso ser julgado procedente, por provado, com as legais consequências, terminando com a absolvição total da Ré, aqui Recorrente.
*
Não se conformando com a decisão proferida, veio a autora Condomínio ... - Lote ... interpor recurso de apelação, em cujas alegações concluiu da seguinte forma:
I.Vem o presente recurso de apelação interposto da douta sentença exarada a fls. … e segts. (referência 453068891), atenta a qual, na parte que ora releva, por entender que:
“... apesar de ter ficado provado que a existência de infiltrações ficou a dever-se, em parte, a má escolha da solução construtiva, na medida em que para as debelar deveriam ter sido seguidas as soluções propostas no parecer, atento o conteúdo do contrato celebrado e das aludidas circunstâncias, não podemos responsabilizar a ré pelas consequências da opção tomada, nem pela realização de trabalhos que passem por executar uma nova obra, desta feita, cumprindo escrupulosamente todas as tarefas recomendadas pela sociedade C..., Ld.ª, avaliadas entre ¤ 427.440 a ¤ 534.300 para os paramentos verticais, ou seja, fachadas.“ (transcrevemos sempre com a devida vénia), apenas condena a r. ora recorrida:
“a) a reconhecer a existência dos defeitos identificados nos pontos 27) f), g), h), j) e k), 29) quanto à degradação nos tetos, paredes, pavimentos, rodapés e guarnições, 33), 36) quanto às manchas e degradação do revestimento interior junto aos vãos envidraçados exteriores que dão acesso às frações, 38), 40), 41), 42) quanto às manchas de bolores em paredes exteriores orientadas a norte, 43) e 44) todos da fundamenta todos da fundamentação de facto, existentes no Empreendimento ... - Lote ... e a responsabilidade na sua reparação;
b) a proceder à reparação das patologias referidas em a) tornando o edifício isento desses defeitos;”;
II. Com aquela citada douta decisão, e sempre salvo o devido respeito pela Exma. julgadora que, aliás, é muito, não se conforma o ora recorrente, pelo que da mesma interpôs o competente recurso, deixando desde logo expresso que, nos termos do disposto no artº 635º pretende delimitar objectivamente o recurso sub judice àquele concreto segmento decisório que limitou a responsabilidade da recorrida, tal como vem a mesma expressamente referido na douta decisão ora em crise, à reparação das patologias mencionadas em a) da citada parte decisória;
III. Quanto à matéria de facto dada como provada e não provada pelo tribunal recorrido, existem determinados pontos que a ora recorrente, por um lado, considera incorrectamente julgados, e, por outro, entende que existem nos autos meios probatórios que necessariamente impunham decisão diversa daquela objecto do recurso em apreço;
IV. Tal como consta na douta sentença em crise, haverá que, de acordo com o ali referido ter em atenção que as questões que o tribunal recorrido foi convocado a decidir, e no que in casu particularmente releva, são:
“- determinar se existem patologias no edifício associadas aos trabalhos realizados pela sétima ré e a sua repercussão em partes comuns e frações autónomas;
- indagar os trabalhos necessários à reparação das patologias.”;
V. Como bem refere o tribunal recorrido na douta sentença em crise, e há que o referir aqui expressamente, a defesa pela ora recorrida apresentada em tempo e local próprios, ou seja, em sede de contestação, assenta, em suma, no seguinte:
“a sétima ré contestou contrapondo que o autor admite que os defeitos se verificam desde 2012 e que nas atas das assembleias de condóminos já existiriam desde 2011/2012, concluindo pela caducidade por não ter havido denúncia até finais de janeiro de 2012.
Referiu que concluiu, em meados de 2011, todos os trabalhos constantes dos orçamentos e realizou-os com supervisão técnica, nunca reconheceu a existência de patologias da sua responsabilidade nem manifestou intenção de os solucionar.”;
VI. ou seja, a ora recorrida, em sede de contestação, veio arguir:
- a excepção da caducidade;
- impugnou a factualidade alegada em sede de petição inicial, alegando que:
“32. Na verdade, a ré contestante é uma sociedade com larga experiência na reparação e impermeabilização de edifícios,
33. Tendo executado os trabalhos a que, contratualmente, se obrigou, em respeito pelas regras da arte, sem quaisquer defeitos, não sendo, nessa parte, as intervenções a que o a faz referência na p.i, designadamente de 131 a 137º da p.i., que se impugna.
34. Em suma: a ré executou, quer ao a, quer aos co-réus, os trabalhos constantes dos orçamentos que, previamente, lhes apresentou, tendo realizado esses trabalhos com supervisão técnica, colocando e utilizando os materiais indicados,
35. Realizando os trabalhos com mão-de-obra especializada e experimentada em respeito pelas regras da arte.”;
VII. A propósito do facto provado sob o número 67:
“67. a solução técnica referida em 20) foi negociada entre o autor e a 7ª ré como alternativa à prevista no parecer identificado em 9) 6º que custaria muito mais [resposta ao artigo 127º da petição inicial].”, e que conduziu à conclusão/ilação do tribunal recorrido que “...apesar de ter ficado provado que a existência de infiltrações ficou a dever-se, em parte, a má escolha da solução construtiva, na medida em que para as debelar deveriam ter sido seguidas as soluções propostas no parecer, atento o conteúdo do contrato celebrado e das aludidas circunstâncias, não podemos responsabilizar a ré pelas consequências da opção tomada, nem pela realização de trabalhos que passem por executar uma nova obra, desta feita, cumprindo escrupulosamente todas as tarefas recomendadas pela sociedade C..., Ld.ª, avaliadas entre ¤ 427.440 a ¤ 534.300 para os paramentos verticais, ou seja, fachadas.“ (transcrevemos sempre com a devida vénia), entende a recorrente que o mesmo deve ser eliminado dos factos provados, porquanto, se por um lado tal facto não consta da defesa, seja por excepção, seja por impugnação pela recorrida apresenta, constituindo tal factualidade um facto essencial da pretensa defesa, por outro lado, da prova testemunhal produzida sede de audiência de julgamento resulta o contrário do que o tribunal recorrido a propósito decidiu;
VIII. Aquela factualidade, tal como da motivação ao presente recurso se deixou referido e demonstrado, o que aqui se reproduz por mera questão de brevidade, nunca dos autos constou até à prolação da sentença, seguramente um facto essencial para a defesa da r. ora recorrida, que a mesma nunca alegou... certo será que aquela douta sentença ora em crise padece do vício da nulidade ao conhecer de tal concreta factualidade e se pronunciar sobre questão de não poderia conhecer (as denominadas circunstâncias da negociação da solução técnica) - vide o disposto na alínea d) do nº 1 do artº 615º, devendo assim ser aquele número 67 ser eliminado dos factos (sejam eles provados ou não provados);
IX. Tal como supra se cuidou de deixar discriminadamente alegado no que à escalpelização do depoimento de parte e depoimento testemunhal se transcreveu, mormente no capítulo vi da presente motivação, que por mera questão de brevidade aqui se dá por reproduzido no que aos respectivos excertos concerne, deve ser eliminado o número 67 dos factos provados ou, e em alternativa, passar o mesmo para o elenco dos factos não provados;
X. Cumpre referir, a propósito, que ainda contrariamente ao que da citada motivação fáctica consta, as testemunhas que prestaram declarações, bem como e ainda o próprio legal representante da recorrida, referiram coisa bem diversa daquela que se mostra supra transcrita em número 67 dos factos provados, mormente, mas não só, que a testemunha KK apenas interveio no processo (de empreitada) em momento posterior ao da negociação do contrato (com a aprovação do orçamento do qual constam discriminados os trabalhos a executar ou, melhor dizendo, executados de modo deficiente);
XI. Do depoimento de parte na parte supra transcrita, há ainda que o referir expressamente, na parte em que confessa que a solução orçamentada (nos termos referidos na assembleia realizada) e contratada iria resolver o problema das infiltrações das fachadas, bem como e ainda o que daquela mencionada assembleia (na qual esteve presente resulta), sai amplamente reforçado/credibilizado pelo que as testemunhas que prestaram declarações referiram em sede de audiência de julgamento e cujos depoimentos, nas partes relevantes, supra se transcreveram;
XII. Do supra transcrito depoimento da testemunha KK, resulta que, contrariamente ao referido pelo legal representante da recorrida e a testemunha LL, funcionário que foi desta, nenhuma intervenção teve aquela testemunha na negociação do contrato dos autos, mormente, mas não só da aprovação do orçamento (do qual constam discriminados os trabalhos a executar ou, melhor dizendo, executados de modo deficiente);
XIII. Do supra transcrito depoimento da testemunha JJ resulta que, contrariamente ao referido pelo legal representante da recorrida e a testemunha LL, funcionário que foi desta, tendo estado na mencionada assembleia conjuntamente com estes, assistiu à apresentação do orçamento por aqueles com a garantia de que os trabalhos ali previstos iriam resolver os problemas de infiltrações nas fachadas e discriminados no contrato;
XIV. E, finalmente, no que a tal concreta questão concerne (facto provado sob o número 67 respeita), há que referir o depoimento da testemunha que alicerçou/fundamentou a resposta positiva a tal facto segundo da sentença recorrida consta, qual seja a testemunha LL;
XV. De tal depoimento resulta que a testemunha LL, tendo estado na mencionada assembleia apresentou o orçamento com base no estudo do prof. II, garantindo ali a todos os presentes que se o problema fosse das fachadas a intervenção a realizar resolveria os problemas de infiltrações nas fachadas e discriminados no contrato, não podendo a mesma ter previamente acordado com a testemunha KK o que quer que fosse atendendo a que este não era ainda proprietário da fracção com a garantia de que os trabalhos ali previstos iriam resolver (logo, como será de concluir, nunca poderia ter estado na elaboração/discussão/ dos trabalhos a realizar e orçamentados por não ser parte interessada);
XVI. Por tais motivos, e atendendo a tal prova constante dos autos deve ser eliminado o número 67 dos factos provados, ou, e em alternativa, passar o mesmo para o elenco dos factos não provados;
XVII. Acresce ainda que dos factos não provados consta que:
“ag) os trabalhos a realizar para reparação das infiltrações em apreço são os seguintes:
...
- tratamento das coberturas inclinadas com revestimento de telha cerâmica, sendo que os pontos singulares do contorno e o princípio de drenagem de águas pluviais são os aspectos que merecem maior preocupação;
- tratamento das fachadas onde existem infiltrações, que deverão ser intervencionadas por painéis;”, entende a recorrente que tal concreta factualidade deverá passar a constar dos factos provados;
XVIII. Desde logo porque da prova documental junta aos autos, bem como da matéria já dada como assente, resulta o contrário, a saber: - do facto provado em 19) resulta demonstrada a celebração do contrato de empreitada aos 17 de agosto de 2009 com o que do respectivo teor consta, ou seja, resulta demonstrado/provado que os trabalhos a realizar pela recorrida, de acordo e nos exactos termos contratados, tendo como desiderato o que da epígrafe do contrato consta – reabilitação e impermeabilização das fachadas, consistiam, no que in casu particularmente interessa:
“19. entre o ora autor e a 7ª ré foi outorgado documento que denominaram “contrato de empreitada”, datado de 17 de agosto de 2009, através do qual a 7ª ré se obrigou à realização de “empreitada de reabilitação e impermeabilização das fachadas do edifício” denominado «“...” – Lote ..., ..., sito na rua ..., ..., ..., vila do conde», tal como resulta do doc. nº 4 junto com a p.i. [cujo teor aqui damos por integralmente reproduzido] [ponto 8º do despacho em referência].
...
5. tratamento de fissuras
5.1. as fissuras das fachadas existentes com espessura superior a 0,3 mm devem ser reparadas, seguindo-se aplicação de novo revestimento, prevendo o alargamento das fissuras com um disco rotativo com 0,5 mm de espessura, abrindo a fissura em forma de v, na zona de tratamento picar ligeiramente o reboco existente, devendo o reboco existente apresentar uma resistência mecânica adequada, aplicação de reboco armado com rede de fibra de vidro (massa igual ou superior a 130 g/m2) à base de argamassa de polímeros sika monotop 620. nota: se as fissuras se verificarem em panos de fachada em cerâmica rosa, será substituída toda a fiada horizontal, por cerâmica branca.
Isto deve-se ao facto de não se fabricar actualmente cerâmica desta cor;
6. extração/tomação de juntas entre ladrilhos cerâmicos
6.1. remoção de “argamassa na junta entre cerâmicas e de mastique das juntas entre cerâmicas, aplicação de nova tomação de juntas com argamassa colorida para juntas exteriores weber.colorflex da weber, prevendo a existência de juntas de fracionamento entre cerâmicas, área max. 30 m2 e distância máxima 6 m, sendo preenchidas com mástique sikaflex hp! da sika (largura da junta cerca de 10 mm, antes da aplicação do mástique prevê-se a aplicação de 2 demãos de hidro-repelente hydrofuge hs, da labo, nas juntas já tomadas;
...
8 juntas de dilatação estruturais
8.1. após limpeza, escovando e aspirando o pó, protege-se o bordo exterior das juntas com fita adesiva, no fundo da junta aplicar um cordão em espuma de polietileno expandido, com um diâmetro 25% superior à largura da junta, preenchendo com mastique de 1ª categoria sikaflex pro 2 hp da sika, aplicado com pistola adequada, com três passagens, duas delas apertando o bico da pistola contra os dois bordos da junta e uma terceira na zona central, contra o fundo da junta.“ (sic);
mais resultando demonstrado/provado que:
“65. além do referido em 64), a 7ª ré não removeu integralmente o material existente nas juntas do revestimento cerâmico ao executar a operação prevista em 20) 6.1 [resposta ao artigo 132º da petição inicial].
...
68. a existência de infiltrações deve-se a má escolha da solução construtiva e má execução das juntas entre os ladrilhos cerâmicos [resposta aos artigos 135º e 136º da petição inicial].”;
XIX. Ou seja, resulta desde logo demonstrado/provado que a recorrida não cumpriu integralmente o que se mostra contratado (tendo em vista a reabilitação e impermeabilização das fachadas), mormente, mas não só, procedendo à execução de tais concretos trabalhos no âmbito do contrato celebrado;
XX. O que desde logo conduz à conclusão de que a recorrida não cumpriu o contratado, incorrendo em incumprimento contratual no que a tal execução de trabalhos concerne, devendo, consequentemente, ser condenada a executar os mesmos em conformidade com o contratado, como se impõe;
XXI. De resto, tal incumprimento contratual resulta da prova do facto de que a “68. a existência de infiltrações deve-se a má escolha da solução construtiva e má execução das juntas entre os ladrilhos cerâmicos [resposta aos artigos 135º e 136º da petição inicial].“;
XXII. A tudo isto acresce que, segundo o que do relatório pericial que foi elaborado a fls. 225, no âmbito do incidente de produção antecipado de prova suscitado, resulta que o exmo. sr. perito ali referiu, sem que qualquer contestação merecesse de recorrente e recorrida que a recorrida não cumpriu integralmente o que se mostra contratado, incorrendo em incumprimento contratual;
XXIII. O que tudo é complementado pela prestação de esclarecimentos que pelos Exmos. Srs. peritos é efectuada em sede de audiência de julgamento na parte que supra se transcreveu e que aqui se dá por reproduzido;
XXIV. O que tudo reforça o supra alegado no que à demonstração/prova de que a factualidade vertida em:
“ag) os trabalhos a realizar para reparação das infiltrações em apreço são os seguintes:
...
- tratamento das coberturas inclinadas com revestimento de telha cerâmica, sendo que os pontos singulares do contorno e o princípio de drenagem de águas pluviais são os aspectos que merecem maior preocupação;
- tratamento das fachadas onde existem infiltrações, que deverão ser intervencionadas por painéis;“ deverá ser dada como provada;
XXV. Assim, da conjugação de tal supra citada prova - depoimento de parte, depoimentos testemunhais e mencionada documentação, seguramente resultará:
- a não demonstração da factualidade dada como provada e que deverá ser eliminada ou dada como não provada – facto número 67;
- a demonstração da seguinte factualidade como provada que foi dada como não provada e/ou desconsiderada pelo tribunal recorrido e que implica que sejam aditados aos factos provados os seguintes factos:
“ag) os trabalhos a realizar para reparação das infiltrações dadas como provadas são os seguintes:
...
- tratamento das coberturas inclinadas com revestimento de telha cerâmica, sendo que os pontos singulares do contorno e o princípio de drenagem de águas pluviais são os aspectos que merecem maior preocupação;
- tratamento das fachadas onde existem infiltrações, que deverão ser intervencionadas por painéis;“;
XXVI. Assim sendo, deveria o tribunal recorrido, na correcta interpretação das declarações das testemunhas, depoimento de parte prestado pelo legal representante da recorrida, e prova pericial (com os esclarecimentos prestados em audiência) conjugados, para além do mais, com os documentos que se encontram juntos aos autos e as regras da experiência comum, ter decidido a matéria de facto em conformidade com o supra exposto e naqueles exactos termos;
XXVII. Sendo certo que, fruto da supra referida alteração da matéria de facto dada como provada e não provada, outra não poderá ser a decisão final a proferir que não seja a de condenar a recorrida a executar todos os trabalhos necessários, sem excepção, para reparação de todas as identificadas patologias nas fachadas e coberturas inclinadas nos exactos termos contratados, com as legais consequências;
XXVIII. No caso em apreço indiscutível é que se verifica que, tendo a obra dos autos sido realizada com defeitos (conforme factos provados), e não tendo a recorrida conseguido demonstrar não serem os mesmos imputáveis à má execução da obra, nomeadamente por serem devidos a outras causas a que seria estranha, tem a recorrente direito à sua eliminação integral conforme peticionou nos autos a título principal;
XXIX. Devendo de tal modo a recorrida se condenada naqueles termos, porque foi feita a prova dos defeitos elencados ao longo dos factos provados e respeitantes à empreitada celebrada entre a mesma e a recorrente, não tendo a recorrida sequer alegado e, consequentemente, logrado provar, que tais defeitos não são imputáveis à má execução da obra por si realizada (tendo até resultado provado o contrário), tendo assim a recorrente direito à eliminação integral de tais defeitos tal como peticionou nos autos a título principal;
XXX. Ao decidir como decidiu o tribunal recorrido interpretou de forma errada e/ou violou o disposto, entre outros, nos artigos 5º, 573º e 608º, todos do cód. de proc. civil e ainda 342º nº 1, 351º, 393º, 1208º, 1221º e 1225º, todos do Cód. Civil e ainda o disposto no Dec.-lei nº .../2003 de 8 de abril nos seus artºs. 1º e 3º.
*
Foram apresentadas contra-alegações.
*
Colhidos que se mostram os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre decidir.
*
2. Factos
2.1 Factos assentes
O Tribunal
a quo
considerou assentes os seguintes factos:
1. O Autor é constituído por todos os proprietários das 51 fracções que compõem os 7 (sete) Blocos do Lote ... do denominado “Edifício ...”, sito na freguesia ..., concelho de Vila do Conde [ponto 1º do despacho em referência].
2. A sociedade comercial por quotas denominada “A..., Lda.”, foi reeleita por maioria dos votos de todos os presentes na Assembleia Geral de Condóminos realizada no dia 24 do mês de Janeiro do ano de 2015, tendo nessa reunião sido deliberado “…por unanimidade avançar com processo judicial contra o empreiteiro…” [ponto 2º do despacho em referência].
3. O “Empreendimento ... - Lote ...” situa-se na freguesia ..., no concelho de Vila do Conde, e é confinado a norte pela Rua ... e a nascente pela Rua ... [ponto 14º do despacho em referência].
4. No edifício existem 52 (cinquenta e duas frações), sendo 50 (cinquenta) frações destinadas a habitação e 2 (duas) frações destinadas a comércio e serviços, o Empreendimento é constituído por 7 (sete) blocos adjacentes, cujo número de pisos acima da cota de soleira varia entre 3 (três) e 5 (cinco) pisos, existindo ainda 1 (um) piso parcialmente enterrado (cave) destinado ao estacionamento de viaturas, arrumos e espaços técnicos [ponto 15º do despacho em referência].
5. A cada bloco corresponde uma entrada coletiva de acesso às frações de habitação:
- Bloco ... - Rua ..., ...;
- Bloco ... - Rua ..., ...;
- Bloco ... - Rua ..., ...;
- Bloco ... - Rua ..., ...;
- Bloco ... - Rua ...;
- Bloco ... - Rua ...;
- Bloco ... - Rua ..., ... [ponto 16º do despacho em referência].
6. O Autor instaurou procedimento cautelar de arresto como preliminar à ação declarativa comum de condenação intentada contra a sociedade comercial “D..., Ld.ª”, a qual correu termos pelo então 2º Juízo de Competência Cível da Comarca de Vila do Conde sob o processo nº 158/2001 [ponto 3º do despacho em referência].
7. No âmbito daquele mencionado processo judicial, foi celebrado acordo/transação judicial aos 16 de Novembro de 2006, através da qual os 1º, 2º, 3º, 4º, 5º e 6º, sócios e gerentes da dita sociedade comercial D..., assumiram pessoalmente a responsabilidade pela reparação e eliminação dos problemas de infiltrações provenientes dos terraços acessíveis e não acessíveis, chaminés, claraboia e floreiras existentes no empreendimento [ponto 4º do despacho em referência].
8. Tal transação foi então homologada por sentença judicial atenta a qual “…homologo o acto em transacção, condeno a autora Condomínio ... e os réus CC, AA, DD, FF, EE e BB, nos precisos termos de acto de transacção…” [ponto 5º do despacho em referência].
9. No âmbito da aludida transação, ficou estipulado que:
“...pretendem pôr termo ao litígio que discutiam nos presentes autos, por transacção, nos termos constantes das seguintes cláusulas:
1º - Demandante e demandados aceitam em fixar os defeitos de construção existentes no empreendimento em apreço, da responsabilidade desta, no problema de infiltrações de água e humidades e no que concerne aos terraços acessíveis e não acessíveis, chaminés, clarabóia e floreiras existentes.
2º - A Demandada, aqui representada pelos seus sócios CC, AA, DD, FF, EE e BB, aceita expressamente a assumpção de responsabilidade dos defeitos referidos na cláusula anterior, os quais se obriga a reparar de forma a eliminar os mesmos nos exactos moldes a seguir melhor discriminados.
3º - A Demandada, aqui representada pelos seus sócios CC, AA, DD, FF, EE e BB, obriga-se a no prazo de 90 (noventa) dias a contar desta data a celebrar contrato de empreitada com empresa idónea por ela a escolher, sendo este contrato aprovado por técnico a indicar pela Demandante e em todos os seus aspectos: prazos, modos de execução e aceitação.
4º - Todo o preço da empreitada supra referida será pago pela Demandada, aqui representada pelos seus sócios CC, AA, DD, FF, EE e BB, bem como o pagamento de quaisquer licenças, taxas e seguros, se necessários.
5º - O contrato de empreitada a celebrar entre a Demandada, aqui representada pelos seus sócios CC, AA, DD, FF, EE e BB, e a empreiteira terá por objecto a execução de todo e qualquer trabalho, incluindo material, de forma a resolver os problemas de infiltrações e humidades provenientes dos elementos mencionados na alínea primeiro.
6º - Os trabalhos a executar nos terraços acessíveis será de acordo com as recomendações previstas no parecer elaborada em Abril de 2005 pela sociedade “C..., Ld.ª”, cuja cópia integral se encontra na posse da Demandada, aqui representada pelos seus sócios CC, AA, DD, FF, EE e BB, que o declara conhecer.
7º - Quanto aos terraços inacessíveis a Demandada, aqui representada pelos seus sócios CC, AA, DD, FF, EE e BB, apenas se obriga a reparar qualquer deficiência por forma a eliminar infiltração de humidades.
8º - Demandante e Demandada, aqui representada pelos seus sócios CC, AA, DD, FF, EE e BB, acordam em que para a eliminação das respectivas deficiências, em específico quanto aos terraços acessíveis, pode ser executada uma outra solução, que seja aceite pelo Técnico da Demandante e sempre que as obras a efectuar impliquem a demolição ou substituição de partes do prédio que sejam exclusivamente privadas (por exemplo soleiras, janelas, portas, etc.).
9º - Desde já fica aceite que se não for possível encontrar no mercado tijoleira ou cerâmica igual à existente, poderão ser aplicado materiais de qualidade igual, mas de cor diferente, em toda a extensão.
10º - A Demandada, aqui representada pelos seus sócios CC, AA, DD, FF, EE e BB, fica automaticamente desonerada de qualquer trabalho nos terraços acessíveis cujo dono não permita o acesso desde que para tal notificado com a antecedência de 30 dias.
11º - Finda a obra o Técnico indicado pela Demandante assinará o auto de recepção definitiva.
12º - Mais se obriga a Demandada, aqui representada pelos seus sócios CC, AA, DD, FF, EE e BB, a autorizar que a realização das obras a efectuar no empreendimento sejam fiscalizadas por técnico a designar pela Demandante, o qual deverá em prazo nunca superior a 10 (dez) dias pronunciar-se acerca dos trabalhos entretanto realizados de molde a autorizar o pagamento das mesmas por parte da Demandada, aqui representada pelos seus sócios CC, AA, DD, FF, EE e BB.
O Demandante obriga-se a no prazo de 30 dias comunicar para o escritório do Ilustre mandatário da Demandada, aqui representada pelos seus sócios CC, AA, DD, FF, EE e BB, a identificação completa do Técnico mencionado no corpo da presente cláusula.
13º - Como garantia da boa execução do presente acordo, Demandante e Demandada, aqui representada pelos seus sócios CC, AA, DD, FF, EE e BB, aceitam que na eventualidade da empreiteira, por qualquer motivo, não concluir as obras contratadas, esta obriga-se a suportar os custos com a execução dos trabalhos em falta por terceiro a contratar pelo Demandante.
14º - Os sócios da Demandada CC, DD, EE, FF, AA e BB, na qualidade de fiadores e principais pagadores, assumem o cumprimento das obrigações aceites pela Demandada, com renúncia ao benefício da excussão prévia.” [ponto 6º do despacho em referência].
10. No âmbito e cumprimento da aludida transação judicial, os 1º e 2º Réus outorgaram documento denominado “contrato de empreitada”, datado de 30 de Abril de 2007, através do qual a 7º Ré se obrigou perante aqueles a realizar os trabalhos ali melhor discriminados, tal como resulta do Doc. nº 3 junto com a p.i. [cujo teor aqui damos por integralmente reproduzido] [ponto 7º do despacho em referência].
11. O acordo identificado em 10) dizia respeito aos seguintes trabalhos:
a) terraços acessíveis: “as obras a executar serão de acordo com parecer elaborado pela sociedade C..., Ld.ª e que é do conhecimento de todos, de acordo com o Processo: 1663/15.8T8PVZ doc. 2 que se anexa a este contrato” ou “de forma diferente da prevista no referido parecer desde que tal implique a demolição ou a substituição das partes do prédio que sejam exclusivamente privadas e essa solução mereça o acordo com técnico indicado (…) MM, Engenheiro Civil”;
b) terraços inacessíveis: “reparar qualquer deficiência por forma a eliminar qualquer infiltração de humidades”;
c) “defeitos existentes nas chaminés, claraboia, floreiras e que gerem infiltração de águas e humidades” [resposta ao artigo 16º da petição inicial].
12. No mapa de quantidades e preços do acordo referido em 10) especificaram-se as seguintes tarefas:
“1. Terraços acessíveis:
1.1 Remoção/demolição do revestimento existente, incluindo remoção da impermeabilização e transporte dos produtos sobrantes a vazadouro autorizado.
1.2. Abertura de roços, em toda a zona envolvente das coberturas acessíveis, até 25 cm do pavimento incluindo fornecimento e aplicação de rufo metálico em zinco puro para remate e proteção das telas
1.3. Correção de pendentes com argamassa de regularização com espessura média de 3 cm com pendentes para as saídas das águas existentes com acabamento de superfície lisa e livre de arestas.
1.4. Fornecimento e aplicação de duas telas homologadas elastómeras SBS, a inferior de 3kg/m2 com armadura em fibra de vidro de 50gr/m2 com ambas as faces em polietileno, pousada livremente, tipo Texsa Moflex FV, e a superior de 4kg/m2 com armadura em fibra de poliéster de 160gr/m2 com ambas as faces em polietileno coladas 100% a maçarico, tipo Texsa Moflex FP, sobrepostas de 8cm e dobragem de 25cm no encontro com paramentos verticais.
1.5. Fornecimento e aplicação de primário especial para Betão tipo Vernis Antac para a aderência da tela.
1.6. Fornecimento e aplicação de uma tela homologada elastómera SBS com 5kg/m2 tipo RUCGUM PY 50H cinza colada a 100% a maçarico com armadura em fibra de poliéster de 150gr/m2 com uma face em polietileno e outra em grão mineral nas zonas aderentes.
1.7. Fornecimento aplicação de geotêxtil com densidade de 200 g/m2 seguido de folha de polietileno com espessura não inferior a 100 microns, com sobreposição de 15 cm nas juntas.
1.8. Fornecimento e aplicação de isolamento térmico homologado em placas de poliestireno extrudido, do tipo Alysom30 ou equivalente, com 3cm de espessura.
1.9. Fabrico e aplicação de betonilha com dosagem mínima de 300 kg de cimento por m3 de betão, ligeiramente armado, com rede, com 5 cm de espessura, incluindo a realização de juntas de fracionamento o máximo a cada 4m formando áreas não superiores a 10m2 e aplicação de junta de dilatação no encontro com elementos verticais realizada com a aplicação de poliestireno expandido com 1cm e remate com cordão de mástique de poliuretano tipo Sikaflex Construction, da Sika.
1.10. Fornecimento e aplicação de revestimento cerâmico no pavimento do fabricante Saloni, colados com cimento cola Diera, ou equivalente, incluindo betumação das juntas das cerâmicas com Weber Color Flex, da Weber ou equivalente.
1.11. Remoção e posterior recolocação de portas das respetivas soleiras bem como das claraboias em terraços acessíveis de forma a permitir a impermeabilização e a dobragem das telas sob as soleiras.
1.12. Fornecimento e aplicação de novas soleiras em pedra natural de mármore vidraço moleanos amaciada com 2 cm de espessura.
1.13. Fornecimento e aplicação de saídas de água em zinco puro com diâmetro até 90mm e comprimento de 250mm.
1.14. Fornecimento e aplicação de saídas de água em zinco puro com diâmetro até 110mm e comprimento de 250mm.
1.15. Tratamento da junta de dilatação horizontal, com mangueira.
1.16. Substituição das tampas das chaminés degradadas/partidas e sem impermeabilização dos terraços inacessíveis, por lajetas de betão com dosagem mínima de 300 kg de cimento por m3 de betão, ligeiramente armado com malhasol CQ30, com 5cm de espessura.
1.17. Fornecimento e aplicação de primário especial para betão tipo Vernis Antac para a aderência da tela.
1.18, Fornecimento e aplicação de uma tela homologada elastómera SBS com 5kg/m2 tipo RUCGUM PY 50H cinza colada a 100% a maçarico com armadura em fibra de poliéster de 150gr/m2 com uma face em polietileno e outra em grão mineral.
5. Floreiras
5.1. Remoção da terra vegetal existente e seu armazenamento temporário tendo em vista posterior reutilização.
5.2. Remoção/demolição do revestimento existente, incluindo remoção da impermeabilização e transporte os produtos sobrantes a vazadouro autorizado.
5.3. Correcção de pendentes com argamassa de regularização com espessura média de 3cm, com pendentes para as saídas das águas existentes com acabamento de superfície lisa e livre de arestas.
5.4. Abertura de roços em toda a zona envolvente das floreiras até 25cm do pavimento das floreiras.
5.5. Regularização das paredes interiores das floreiras com argamassa de reparação e impermeabilização à base de cimento, areias selecionadas, sílica de fumo e polímeros sintéticos, tipo Sika MONOTOP 620 da Sika e aplicação de rede de fibra de vidro (massa igual ou superior a 130g/m2).
5.6. Fornecimento e aplicação de primário especial para betão tipo Vernis Antac para a aderência da tela.
5.7. Fornecimento e aplicação de uma tela homologada elastómera SBS com 4kg/m2 tipo RUCGARDEN PY 40H cinza colada a 100% a maçarico com armadura em poliéster de 180gr/m2 com uma face em polietileno e outra em arão mineral.
5.8. Fornecimento e aplicação de uma camada drenante e filtrante do tipo “Enkadrein”, adjacente às superfícies verticais.
5.9. Fornecimento e colocação de uma camada de argila expandida, com uma altura até 20 cm, envolta por geotêxtil com 200gr/m2 de massa.
5.10. Fornecimento e aplicação de um tubo vertical furado em PVC, atravessando a altura da terra vegetal, por forma a facilitar o escoamento das águas superficiais, protegido superiormente por um ralo de pinha em PVC.
5.11. Reposição da terra vegetal existente.
5.12. Fornecimento e aplicação de saídas de água das floreiras para o terraço em zinco puro, com diâmetro até 50mm e comprimento até 250mm [resposta ao artigo 16º da petição inicial].
13. Na cláusula 6ª do acordo identificado em 10) ficou a constar que a sétima Ré “garante o seu bom trabalho, bem como a execução do mesmo e presta garantia durante o período de dez anos” [resposta ao artigo 17º da petição inicial].
14. Pese embora todos os Réus terem informado o Autor no ano de 2009 que os trabalhos referidos em 10) e 11) se encontravam concluídos e executados, este não aceitou, por discordar do modo de realização das intervenções nos terraços inacessíveis [resposta aos artigos 29º, 30º da petição inicial].
15. Por apenso aos autos declarativos aludidos em 3), o Autor intentou execução, dando como título executivo o termo de transação e respetiva decisão homologatória, tendo em vista a condenação dos ali executados, ora 1º, 2º, 3º 4º 5º e 6º Réus, no integral cumprimento dos trabalhos acordados e que a exequente considerava não efetuados/executados [ponto 9º do despacho em referência].
16. Os executados deduziram oposição que veio a ser julgada procedente, por ter considerado terem sido executados todos os trabalhos acordados no âmbito do título dado à execução, o que veio a ser confirmado por Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, em 17 de Setembro do ano de 2012, assim julgando extinta a execução [ponto 10º do despacho em referência].
17. No âmbito de diligência de inspeção realizada a 17 de Março de 2011, no processo nº 158/2002-D, identificado em 15) e 16), constatou-se o seguinte:
A) no 3º andar da entrada ...:
a) a cobertura desse apartamento constitui um terraço acessível do qual foram retiradas as floreiras de origem;
b) existiam humidades:
i) num quarto virado a poente/norte;
ii) na parede este de outro quarto;
iii) no outro quarto com paredes exteriores a norte e a poente, em cerca de 1 metro, bem como no tecto;
iv) no cimo das escadas de acesso ao 3º andar a parede circundante da claraboia apresenta sinais de humidade;
B) no 3º andar direito da entrada ...:
a) existiam humidades:
i) visíveis no teto do interior da sala, junto à parede que confina a este com a fração adjacente;
ii) no teto da casa de banho de serviço junto à sala, localizada no interior dessa fração;
iii) no teto do hall da entrada junto à parede que confronta com as escadas comuns do prédio;
b) no cimo das escadas de acesso ao 3º andar a parede circundante da claraboia apresenta sinais de humidade;
c) por cima deste apartamento existe outra fração ao nível do 4º andar, que é recuado, sendo o terraço desse andar acessível e está localizado sobre a sala do 3º andar direito;
C) no 2º andar da entrada ...:
a) toda a cobertura da fração é terraço acessível do 3º andar da entrada ...;
b) existiam humidades:
i) no teto e parede no interior do hall de acesso ao andar;
ii) no teto do quarto junto à fachada norte e parede interior;
iii) no teto junto à parede exterior a norte;
iv) na parede exterior poente de um outro quarto;
v) na casa de banho deste quarto em todo o teto com mais incidência junto à parede que constitui fachada poente;
vi) no teto e parede da chaminé da sala que constitui fachada sul;
D) no terraço inacessível da entrada ..., verifica-se água na componente a sul aquando da pressão na tela que constitui o piso desse terraço;
E) no 3º andar esquerdo da entrada ...:
a) no cimo das escadas de acesso ao 3º andar a parede circundante da claraboia apresentava sinais de humidade;
b) existiam humidades:
i) no teto da sala com maior incidência junto à fachada poente;
ii) no teto da casa de banho da suite do casal, cuja parede constitui a fachada do prédio;
iii) na parede de entrada da suite que confronta com o elevador do prédio;
iv) no teto e na parede interna de um dos quartos, sendo que por cima deste quarto existe um terraço inacessível;
v) no teto da casa de banho contígua a esse quarto, o qual é também constituído por terraço inacessível;
c) a maior parte da cobertura desta fração constitui um terraço acessível;
d) na parte da sala onde se registava o maior foco de humidade a cobertura é feita por um terraço inacessível;
e) no terraço acessível que constitui a maior parte são visíveis floreiras em cimento de grandes dimensões que aí foram pousadas;
F) no 3º andar direito da entrada ...:
a) a sala e a marquise anexa à cozinha estão viradas a poente sendo a respetiva parede fachada do prédio;
b) a parede norte confronta com outra fração e a parede nascente constitui fachada do prédio;
c) a cobertura desta fração é toda constituída por terraço inacessível;
d) existiam humidades:
i) no teto da sala onde é visível ter sido colocado teto falso;
ii) no teto da marquise anexa à cozinha;
iii) no teto e nas paredes nascente e norte da suite [resposta aos artigos 32º, 37º da petição inicial].
18. O acordo referido em 11) não resolvia todos os problemas de infiltrações que afetavam o edifício, designadamente, por não contemplar as fachadas [resposta ao artigo 19º da petição inicial].
19. Entre o ora Autor e a 7ª Ré foi outorgado documento que denominaram “contrato de empreitada”, datado de 17 de Agosto de 2009, através do qual a 7ª Ré se obrigou à realização de “empreitada de reabilitação e impermeabilização das fachadas do edifício” denominado «“...” – Lote ..., ..., sito na rua ..., ..., ..., Vila do Conde», tal como resulta do Doc. nº 4 junto com a p.i.[cujo teor aqui damos por integralmente reproduzido] [ponto 8º do despacho em referência].
20. Na cláusula 1ª do escrito identificado em 9) ficou a constar que os trabalhos a executar eram “conforme orçamento nº ...”, que especificou os seguintes:
» blocos ... a ...:
1. Montagem de andaimes
1.1. montagem e desmontagem de meios de acesso e apoio à execução dos trabalhos (andaime e/ou baileu) com proteções de acordo com as normas de segurança em vigor, incluindo escadas interiores no andaime;
2. Limpeza a jacto de água
2.1. limpeza a jacto de água a alta pressão de toda a superfície com cerâmica incluindo aplicação de químico tipo PK Cleaner, da ZVL, para remoção de fungos, gorduras e escorridos de calcário, incluindo lavagem das caixilharias em PVC com vaselina líquida;
3. Ventilação/drenagem de paredes duplas
3.1. aplicação de tubos de aço inox 316 de 15 mm de diâmetro de 2 em 2 metros de fachada, para ventilação/drenagem da caixa de ar entre panos de parede dupla, ao nível das lajes entre pisos, sendo todos os tubos alinhados entre si verticalmente e horizontalmente;
4. Reabilitação da ligação caixilharia/parede
4.1. remoção do mástique existente nas ligações entre caixilharia e fachada e soleiras e aplicação de novo mástique de poliuretano Sikaflex 11FC;
5. Tratamento de fissuras
5.1. as fissuras das fachadas existentes com espessura superior a 0,3 mm devem ser reparadas, seguindo-se aplicação de novo revestimento, prevendo o alargamento das fissuras com um disco rotativo com 0,5 mm de espessura, abrindo a fissura em forma de V, na zona de tratamento picar ligeiramente o reboco existente, devendo o reboco existente apresentar uma resistência mecânica adequada, aplicação de reboco armado com rede de fibra de vidro (massa igual ou superior a 130 g/m2) à base de argamassa de polímeros sika monotop 620. Nota: se as fissuras se verificarem em panos de fachada em cerâmica rosa, será substituída toda a fiada horizontal, por cerâmica branca. Isto deve-se ao facto de não se fabricar actualmente cerâmica desta cor;
6. Extração/tomação de juntas entre ladrilhos cerâmicos
6.1. remoção de “argamassa na junta entre cerâmicas e de mastique das juntas entre cerâmicas, aplicação de nova tomação de juntas com argamassa colorida para juntas exteriores Weber.colorflex da Weber, prevendo a existência de juntas de fracionamento entre cerâmicas, área max. 30 m2 e distância máxima 6 m, sendo preenchidas com mástique Sikaflex HP! Da Sika (largura da junta cerca de 10 mm, antes da aplicação do mástique prevê-se a aplicação de 2 demãos de hidro-repelente Hydrofuge HS, da LABO, nas juntas já tomadas;
7. Soleiras e peitoris
7.1. remoção das soleiras e peitoris de portas e janelas, limpeza de quaisquer partes não aderentes e que não se apresentem sólidas, eliminação de depósitos de pó, revestimentos já existentes, gorduras, ferrugem, desconfrantes, vernizes e pinturas, leitança de cimento e quaisquer outras substâncias que possam prejudicar a aderência à base, impermeabilização da base com revestimento elástico em dois componentes reforçado com fibras e cimentos especiais, tipo Sikalastic®-150 e fornecimento e aplicação de novas soleiras/peitoris em vidraço Ataija. Nota: exclui-se portas de entrada ao nível do rés-do-chão.
8 Juntas de dilatação estruturais
8.1. Após limpeza, escovando e aspirando o pó, protege-se o bordo exterior das juntas com fita adesiva, no fundo da junta aplicar um cordão em espuma de polietileno expandido, com um diâmetro 25% superior à largura da junta, preenchendo com mastique de 1ª categoria Sikaflex Pro 2 HP da Sika, aplicado com pistola adequada, com três passagens, duas delas apertando o bico da pistola contra os dois bordos da junta e uma terceira na zona central, contra o fundo da junta.
9. Repintura dos tectos das varandas
9.1 Raspagem da tinta desagregada dos tectos das varandas e posterior pintura com tinta REPMAT da Robbialac, em 1 demão, após aplicação de primário 2 componentes (diluente + primário) no reboco à vista.
10. Tubos de queda
10.1 Substituição de abraçadeiras por iguais às existentes, com acessórios em inox e substituição de tubos bem como capiteis que se encontrem desagregados, pintura dos tubos de queda com 2 demãos de esmalte para P.V.C. da Robbialac, com cor existente e aplicação de tubo de aço inox com diâmetro superior ao existente “tipo camisa”, com 2 metros de altura, junto à cota do passeio. Aplicação nas saídas de águas das coberturas de mastique Sikaflex 11FC entre o tub de PVC e a saída.
11. Floreiras exteriores no rés-do-chão
11.1 Retirar pedra natural que capeia as floreiras e assentamento de cerâmica saloni de cor branca colada com cimento cola de 1ª qualidade da Sika.
12. Impermeabilização das floreiras maiores
12.1 Remoção da terra vegetal existente e seu armazenamento temporário tendo em vista posterior reutilização
12.2. Remoção/demolição do revestimento existente, incluindo remoção da impermeabilização e transporte os produtos sobrantes a vazadouro autorizado.
12.3. Correcção de pendentes com argamassa de regularização com espessura média de 3cm, com pendentes para as saídas das águas existentes com acabamento de superfície lisa e livre de arestas.
12.4. Abertura de roços em toda a zona envolvente das floreiras até 25cm do pavimento das floreiras e refechamento dos mesmos com cerâmica idêntica à existente até meia altura da floreira.
12.5. Regularização das paredes interiores das floreiras com argamassa de reparação e impermeabilização à base de cimento, areias selecionadas, sílica de fumo e polímeros sintéticos, tipo Sika Monotop 620 da Sika e aplicação de rede de fibra de vidro (massa igual ou superior a 130g/m2).
12.6. Fornecimento e aplicação de primário especial para betão tipo Vernis Antac para a aderência da tela.
12.7. Fornecimento e aplicação de uma tela homologada elastómera SBS com 4kg/m2 tipo RUCGARDEN PY 40H cinza colada a 100% a maçarico com armadura em poliéster de 180gr/m2 com uma face em polietileno e outra em arão mineral.
12.8. Fornecimento e colocação de uma camada de argila expandida, com uma altura até 20 cm, envolta por geotêxtil com 200gr/m2 de massa.
12.9. Reposição da terra vegetal existente.
12.10. Fornecimento e aplicação de uma saída de água em zinco puro, com diâmetro até 50mm e comprimento até 250mm.
13. Eliminação e impermeabilização das floreiras mais pequenas
31.1 Retirar pedra natural do parapeito das varandas, retirar terra existente na floreira, encher floreiras com argila expandida leca, regularização com argamassa tradicional, impermeabilização da base com Sikalastic – 150 da Sika, um revestimento elástico com 2 componentes, reforçado com fibras e à base de cimentos especiais e assentamento de nova pedra natural idêntica a existente com posterior aplicação de 2 demãos de hidrófugo Hydrofuge HS da Labo.
1. Impermeabilização e tratamento dos 8 telhados inclinados em telha:
1.1. Desmonte/remoção de telhas, rincões e beirais da cobertura existente, incluindo transporte do entulho para vazadouro autorizado.
1.2. Limpeza, raspagem e tratamento de toda a chaparia à vista (caleiros de água) das coberturas inclinadas em telha, com produto que assoca um primário à base de epóxi, um intermediário à base de epóxi com cargas lamelares e um acabamento à base de poliuretano, tipo Icosit EG-5, da Sika, em 1 demão, com grau 6 de secagem segundo a norma DIN 53150, incluindo aplicação prévia de Primário 511, da Sika, como primário mordente promotor de aderência e anticorrosivo.
1.3. Fornecimento e aplicação de primário especial para Betão tipo Verniz Antac, para a aderência da tela.
1.4. Fornecimento e aplicação de uma tela homologada elastómera SBS com 4kg/m2 tipo RUCGUM PY 40H cinza colada a 100% a maçarico com armadura em poliéster de 150gr/m2 com uma face em polietileno e outra em grão mineral.
1.5. Fornecimento e aplicação de nova telha cerâmica de aba e canudo vermelha, idêntica à existente, incluindo execução de ripado em cimento.
3. Tratamento e pintura dos pilares em betão exteriores do rés-do-chão
3.1. Picagem geral das superfícies de betão de modo a garantir-se um saneamento completo das superfícies, e a remoção das camadas de recobrimento desagregadas. Decapagem das armaduras existentes, e que fiquem aparentes em resultado da operação anterior, removendo todos os vestígios de gordura, óleo, ferrugem ou calamina.
3.2. Aplicação de 2 demãos de proteção anticorrosiva das armaduras, com agente de aderência e revestimento anticorrosivo, à base de cimento e resina epóxi modificada, em 3 componentes, tipo “Sikatop Armatec 110 Epocem” da Sika. Reparação de peças de betão armado degradado, por aplicação de argamassa preparada tixotrópica, à base de cimentos, sílica de fumo, resinas e areias selecionadas e reforçadas com fibras de poliamida Sika Monotop 620 e posterior pintura com excelente resistência à intempérie, aos alcalis e ao envelhecimento, tipo Sikagard 680 ES Betoncolor Ral 756 da Sika, dada em duas demãos.
Nota: está incluída a reposição do tubo coletor e o revestimento cerâmico da área da intervenção.
4. Chapins dos muretes dos terraços
5.1. Substituição dos chapins dos muretes dos terraços após limpeza de quaisquer partes não aderentes e que não se apresentem sólidas, eliminação de depósitos de pó, revestimentos já existentes, gorduras, ferrugem, desconfrantes, vernizes e pinturas, leitança de cimento e quaisquer outras substâncias que possam prejudicar a aderência à base. Impermeabilização da base com revestimento elástico em 2 componentes reforçado com fibras e cimentos especiais, tipo Sikalastic®-150 e fornecimento e aplicação de novos chapins em vidraço Ataija [resposta aos artigos 22º, 25º da petição inicial].
21. Em Maio de 2011 a 7ª Ré concluiu a execução dos trabalhos discriminados em 20) [resposta ao artigo 19º da contestação]
22. O Autor, através de Advogado, por carta registada com aviso de receção datada de 2 de Fevereiro do ano de 2015, interpelou os Réus no sentido dos mesmos procederem à realização de todas as obras de reparação/execução de todos os defeitos/problemas constatados [ponto 11º do despacho em referência].
23. Os 1º, 2º, 3º, 4º 5º e 6º Réus, através da respetiva Sra. Advogada, responderam que
“…excluem/renegam qualquer tipo de responsabilidade pelos defeitos invocados, porque a sua responsabilidade já se encontra cessada pelo cumprimento do acordo em 2008, conforme sentença judicial que absolveu do pedido em 2011”, tal como resulta do Doc. nº 8 junto com a p.i. [cujo teor aqui damos por integralmente reproduzido] [ponto 12º do despacho em referência].
24. A 7ª Ré respondeu, através da respetiva Sra. Advogada, nos termos constantes da carta junta como Doc. 9 com a p.i. [cujo teor aqui damos por integralmente reproduzido] [ponto 13º do despacho em referência].
25. Na missiva referida em 24) a 7ª Ré informou o Autor “desde que a empresa terminou os trabalhos adjudicados através do referido contrato de empreitada têm sido ao longo dos últimos anos prestadas todas as assistências técnicas solicitadas, nunca tendo a empresa descurado tal assistência, nem se esquivado às suas responsabilidades” e solicitou agendamento de reunião no local [resposta ao artigo 51º da petição inicial].
26. As reparações referidas em 25) tiveram lugar durante o período de 2012/2013 referindo-se às juntas das fachadas dos blocos ..., ..., ... e ... [resposta ao artigo 4º do articulado de exercício do contraditório].
27. No exterior do edifício detetaram-se as seguintes patologias:
a) degradação de algumas telas betuminosas autoprotegidas que foram aplicadas nas coberturas em terraço não acessível a revestir total ou parcialmente as platibandas, muretes, paredes, chaminés e outros corpos emergentes, ou nos remates com os diversos pontos singulares (claraboias, saídas de águas pluviais, vãos de acesso às caixas de escadas);
b) degradação e deformação de algumas placas de isolamento térmico (poliestireno extrudido) das coberturas em terraço não acessível: a camada de godo que deveria recobrir a camada de isolamento térmico das coberturas tem uma espessura insuficiente e as placas encontram-se parcialmente expostas; em algumas zonas da cobertura não existe isolamento térmico;
c) a impermeabilização da cobertura em terraço não acessível sobre a lavandaria da fração AD encontra-se em deficiente estado;
d) ocorre fissuração no pavimento de varandas;
e) nas frações AB – 3º andar do Bloco ..., AD – 4º andar do Bloco ..., AC – 4º andar do Bloco ..., BC, BD – 3º andar, respetivamente, esquerdo e direito do Bloco ..., AZ e AX – 2º andar, respetivamente, esquerdo e direito do Bloco ..., ocorre acumulação de carbonato de cálcio nos terraços acessíveis, junto a saídas de drenagem de águas pluviais;
f) existe degradação da pintura do teto de varandas das frações identificadas em e) na zona adjacente à interceção com um tubo de queda de águas pluviais;
g) existe acumulação de carbonato de cálcio sobre os ladrilhos cerâmicos e nas juntas do revestimento das fachadas e das guardas das varandas das frações identificadas em e);
h) existe degradação do material de preenchimento existente na junta de ligação entre os ladrilhos cerâmicos das fachadas e o revestimento do pavimento de varandas das frações identificadas em e);
i) nas frações identificadas em e) verifica-se a degradação generalizada do aspeto da superfície exterior das caixilharias dos vãos envidraçados exteriores devido à exposição ao tempo, proximidade marítima e degradação natural dos elementos;
j) nas frações identificadas em e) verifica-se degradação do material de preenchimento das juntas entre as caixilharias dos vãos envidraçados exteriores e a fachada;
k) nas frações identificadas em e) ocorre degradação dos peitoris dos vãos envidraçados exteriores [resposta aos artigos 63º a 66º, 69º, 73º, 74º, 76º a 78º, 81º, 82º da petição inicial].
28. Verificam-se as seguintes patologias em zonas comuns:
a) degradação e humidificação do teto do átrio do 4º andar do Bloco ... e das escadas de madeira de acesso à cobertura não acessível;
b) degradação do revestimento do teto, do contorno das claraboias e das paredes do último piso das caixas de escadas [resposta aos artigos 83º a 85º da petição inicial].
29. As frações “AB”, “AD”, “AZ” referidas em 27) apresentam degradação nos tetos, paredes, pavimentos, rodapés e guarnições provenientes da presença de um elevado grau de humidade [resposta ao artigo 87º da petição inicial].
30. Nas frações “AC” e “AD” referidas em 27) ocorre degradação do revestimento dos tetos e das paredes de compartimentos situados sob coberturas em terraço não acessível com proteção pesada de godo [resposta ao artigo 89º da petição inicial].
31. O referido em 30) surge em locais situados na proximidade do contorno da cobertura ou dos corpos que desta emergem, designadamente, corpos sobre as caixas de elevadores ou chaminés [resposta ao artigo 89º da petição inicial].
32. Na lavandaria da fração “AD” referida em 27), situada sob uma cobertura em terraço não acessível revestido com telas betuminosas auto-protegidas, ocorre infiltração de água e degradação do revestimento do teto e paredes onde são visíveis fungos e bolores [resposta ao artigo 90º da petição inicial].
33. Nas frações “AD” e “BD” referidas em 27) ocorrem manchas e degradação do revestimento de paredes e tetos relacionados com infiltrações provenientes do interior dos corpos emergentes com cobertura inclinada de telha cerâmica [resposta ao artigo 91º da petição inicial].
34. Na fração “AC” referida em 27) constata-se a existência infiltração de água, degradação, manchas e/ou desenvolvimento de fungos no interior de armários embutidos [resposta ao artigo 93º da petição inicial].
35. Os problemas referentes aos armários aludidos em 35) ocorrem quer em armários situados sob as coberturas em terraço, acessíveis ou não, quer sob compartimentos de outras frações [resposta ao artigo 93º da petição inicial].
36. Nas frações “AD”, “AC” e “BD” referidas em 27) ocorrem manchas e degradação do revestimento interior na base das paredes adjacentes a varandas ou terraços e/ou junto aos vãos envidraçados exteriores que lhes dão acesso [resposta ao artigo 94º da petição inicial].
37. Na fração “BD” referida em 27) existe também infiltração de água através do vão entre a lavandaria e o terraço acessível desta fração [resposta ao artigo 94º da petição inicial].
38. Nas frações “AC”, “AB” e “BD” referidas em 27) existem manchas e/ou degradação do revestimento interior de paredes sob vãos envidraçados exteriores [resposta ao artigo 95º da petição inicial].
39. Na fração “AB” referida em 27) verifica-se degradação do revestimento interior de paredes de fachada junto a unidades interiores de climatização, existindo tubagens e cabos que atravessam a parede exterior, para ligação às unidades exteriores de climatização e para drenagem da água condensada pelas unidades interiores [resposta ao artigo 96º da petição inicial].
40. Na fração “AD” referida em 27) verificam-se manchas e degradação das guarnições de madeira das ombreiras de vãos envidraçados exteriores [resposta ao artigo 99º da petição inicial].
41. Na fração “AC” referida em 27) ocorrem manchas no pavimento e na caixilharia do vão envidraçado exterior da lavandaria [resposta ao artigo 100º da petição inicial].
42. Nas frações “AB”, “AD”, “AC”, “BC”, “BD”, “AZ” e “AX” referidas em 27) existem manchas de bolores em tetos e paredes exteriores orientadas a norte [resposta ao artigo 101º da petição inicial].
43. Na fração “AD” existem gotas de água e manchas nos tetos e nas paredes dos corpos emergentes dos terraços acessíveis cuja cobertura é inclinada com revestimento de telha cerâmica [resposta ao artigo 102º da petição inicial].
44. Durante a execução da obra de impermeabilização da fachada, devido ao uso de ácidos, alguns vidros dos vãos das frações, designadamente da “AC” do Bloco ... e “AD” do Bloco ..., ficaram descolorados [resposta ao artigo 107º da petição inicial].
45. Na fração “AC” do Bloco ... os problemas das infiltrações apenas surgiram após as obras realizadas pela 7ª Ré [resposta ao artigo 109º da petição inicial].
46. O feltro betuminoso inferior do sistema de impermeabilização deve ser aplicado sobre um primário betuminoso e colado por soldadura, por meio de chama, para que fique totalmente aderente ao suporte [resposta ao artigo 111º da petição inicial].
47. O material aplicado nos terraços não acessíveis e o modo de execução não cumpriu a respetiva função de impermeabilização [resposta ao artigo 111º da petição inicial].
48. No estudo referido em 9) 6º o isolamento térmico dos terraços era constituído uma camada de poliestireno extrudido com 50 mm de espessura [resposta ao artigo 113º da petição inicial].
49. As placas de poliestireno extrudido aplicadas no âmbito do acordo identificado em 10) e 11) têm 30 mm de espessura, correspondendo à espessura mínima para um desempenho energético escasso [resposta ao artigo 113º da petição inicial].
50. O geotêxtil e o filme de polietileno devem ser aplicados entre a camada de isolamento térmico e a betonilha armada e não sobre o sistema de impermeabilização [resposta ao artigo 114º da petição inicial].
51. Os critérios de execução e reparação constantes no relatório referido em 9) 6º no acordo judicial não foram cumpridos pelos 1º a 6º Réus [resposta ao artigo 115º da petição inicial].
52. A configuração do remate dos terraços acessíveis com os elementos emergentes e com o contorno, com as saídas de águas pluviais e com as soleiras dos vãos exteriores não corresponde na totalidade às soluções recomendadas contempladas no estudo referido em 9) 6º [resposta ao artigo 117º da petição inicial].
53. Os trabalhos de reparação pontuais que foram realizados nas coberturas em terraço não acessível são insuficientes para a resolução dos problemas de infiltrações de água existentes no edifício [resposta ao artigo 118º da petição inicial].
54. Nas coberturas em terraço não acessível não foi realizada intervenção integral recomendada, optando os 1º a 6º Réus pela solução identificada em 11) b) [resposta ao artigo 119º da petição inicial].
55. Os Réus removeram a camada de godo, do isolamento térmico e do sistema de impermeabilização existente nas coberturas [resposta ao artigo 121º da petição inicial].;
56. Verificaram e corrigiram as pendentes [resposta ao artigo 122º da petição inicial].
57. Aplicaram um novo sistema de impermeabilização, novo isolamento térmico, geotêxtil e camada de proteção de godo e de lastro complementar (lajetas de betão) no contorno das coberturas [resposta aos artigos 123º a 126º da petição inicial].
58. Os elementos que emergem ou delimitam as coberturas (chaminés, platibandas, guardas, paredes) deveriam ser integralmente tratados através de impermeabilização dos paramentos verticais e correção dos elementos de capeamento [resposta ao artigo 127º da petição inicial].
59. Todas as coberturas deveriam dispor de “trop-pleins” para evitar a ocorrência de inundações em caso de obstrução das saídas ou dos tubos de drenagem de águas pluviais [resposta ao artigo 128º da petição inicial].
60. Os trabalhos executados nas coberturas em terraço acessível apresentam problemas na intersecção das paredes verticais com o terraço contribuindo para que ocorram infiltrações [resposta ao artigo 129º da petição inicial].
61. As reparações pontuais nas coberturas não acessíveis não permitiram a resolução dos problemas de infiltrações daí provenientes [resposta ao artigo 130º da petição inicial].
62. O parecer referido em 9) 6º previa o tratamento das fachadas através de:
a) demolição integral do revestimento cerâmico;
b) travamento dos cunhais situados sobre elementos em consola com tirantes passivos de cimento armado;
c) análise integral do reboco das fachadas por percussão, demolindo as partes que soem a oco;
d) enchimento das áreas demolidas com argamassa tixotrópica com resinas sintéticas para regularização da superfície;
e) abertura de orifícios de ventilação/drenagem do espaço de ar das paredes da fachada, com tubos em inox de diâmetro interior de 20 mm espaçados de 2 em 2 metros, com a extremidade interior o mais possível ao nível da base e a exterior voltada para baixo e afastada em 20 mm do paramento da fachada, com o contorno selado com mástique;
f) tratamento das fissuras de espessura igual ou superior a 0,5 mm, através do seu alargamento, picagem ligeira do reboco e enchimento, seguido de aplicação de reboco armado à base de argamassa com polímeros com espessura de 3 a 5 mm, após limpeza do suporte, aplicação de primário de ligantes sintéticos, seguida da primeira camada de revestimento curativo de 2 mm, rede de fibra de vidro, com sobreposição de armaduras a uma distância de 20 cm do canto e reforço dos vãos, segundo camada de revestimento curativo e acabamento final com ladrilhos cerâmicos;
g) tratamento das juntas de dilatação estruturais com prévia limpeza, escovagem e aspiração do pó, aplicação de um cordão de espuma de polietileno expandido, seguido de preenchimento de mástique à base de polietileno e colocação de cobre-juntas em inox ou alumínio;
h) acabamento com ladrilhos cerâmicos [resposta ao artigo 131º da petição inicial].
63. O parecer previa também o tratamento:
a) do contorno dos vãos exteriores com mástique, com substituição/impermeabilização das soleiras, sugerindo a substituição das ferragens e das próprias caixilharias;
b) das guardas das varandas com a aplicação de novo revestimento cerâmico e preenchimento das juntas, seguidos de decapagem e nova pintura dos tetos;
c) das floreiras [resposta ao artigo 131º da petição inicial].
64. A metodologia proposta no orçamento identificado em 20) não contempla as recomendações referidas em 62) a), b), c) d) e h), nem a aplicação de reboco armado e acabamento com ladrilhos cerâmicos referidos em 62) f), nem a colocação do cobre-juntas referido em 62) g) [resposta ao artigo 133º da petição inicial].
65. Além do referido em 64), a 7ª Ré não removeu integralmente o material existente nas juntas do revestimento cerâmico ao executar a operação prevista em 20) 6.1 [resposta ao artigo 132º da petição inicial].
66. A solução de impermeabilização referida em 20) 5 e 6 é mais cara do que opção por capoto/ETICS (External Thermal Insulation Composite System), que é eficaz por permitir um isolamento sem interrupções na zona de estrutura, tornando-as impermeáveis à água, mas permitindo a passagem de vapor e a saída da humidade acumulada no interior, com diminuição dos consumos energéticos para aquecimento e arrefecimento dos espaços habitados, embora implique manutenção e desvalorização das frações do edifício comparativamente ao revestimento em material cerâmico [resposta ao artigo 134º da petição inicial].
67. A solução técnica referida em 20) foi negociada entre o Autor e a 7ª Ré como alternativa à prevista no parecer identificado em 9) 6º que custaria muito mais [resposta ao artigo 127º da petição inicial].
68. A existência de infiltrações deve-se a má escolha da solução construtiva e má execução das juntas entre os ladrilhos cerâmicos [resposta aos artigos 135º e 136º da petição inicial].
70. Para debelar as infiltrações deveriam ser seguidas as soluções propostas no relatório identificado em 9) 6º [resposta ao artigo 137º da petição inicial].
71. O custo de aquisição dos materiais e mão de obra para debelar as infiltrações existentes no edifício, de acordo com o referido em 70), corresponde a valores entre € 427.440 a € 534.300 para os paramentos verticais e entre € 49.860 a € 58.170 para os paramentos horizontais [resposta ao artigo 138º da petição inicial].
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2.2 Factos não provados
O Tribunal a quo considerou não provados os seguintes factos:
a) no início do ano de 2011 ainda se encontravam a ser realizados pela sétima Ré os trabalhos referentes ao acordo referido em 10) e 11);
b) até finais de 2011 todos os Réus realizaram no empreendimento várias intervenções nos terraços acessíveis, inacessíveis, chaminés, floreiras e claraboias para que fossem resolvidos os problemas das infiltrações;
c) o primeiro ao sexto Réus expressamente reconheceram a responsabilidade pela eliminação das infiltrações referidas em b);
d) no período que mediou entre 2012 e 2014 o empreendimento não apresentou novos problemas de grande relevância;
e) a cobertura em terraço não acessível sobre a lavandaria da fração AD encontra-se sem impermeabilização;
f) há deficiente drenagem de águas pluviais em coberturas não acessíveis revestidas com telas betuminosas autoprotegidas;
g) há degradação e queda de fragmentos das placas de betão que constituíam a proteção superior de algumas chaminés;
h) há fissuração no teto de uma varanda e infiltração de água proveniente do piso superior, o que conduz à degradação da pintura daquele teto e ao aparecimento de manchas no pavimento;
i) fissuração e degradação da pintura do teto de uma varanda na zona adjacente a uma junta de dilatação estrutural;
j) fissuração da guarda de um terraço acessível, em correspondência com a localização de uma junta de dilatação estrutural;
k) manchas nos ladrilhos cerâmicos que revestem o pavimento das varandas, que surgiram durante a execução de trabalhos na envolvente exterior do edifício pela 7ª Ré;
l) manchas de escorrências e gotas de água no interior dos vidros duplos de vãos envidraçados exteriores, o que origina infiltrações para o interior das habitações através dos perfis da caixilharia;
m) vidros riscados pelo exterior em vãos envidraçados verticais, efetuados durante a execução de trabalhos na envolvente exterior do edifício pela 7ª Ré;
n) o referido em 29) se reporte à fração “AA”;
o) nas frações identificadas em 29) e na “AA” parte do revestimento dos tetos caiu e, após a ocorrência de precipitação é possível observar água a escorrer pela superfície interior das paredes;
p) em algumas frações dos pisos subjacentes às frações AA, AB, AD e AZ, designadamente na fração “T”, também existe degradação dos revestimentos de paredes e tetos, que é aparentemente resultante de água infiltrada;
q) degradação do revestimento dos tetos e das paredes de compartimentos situados sob ou adjacentes a instalações sanitárias, lavandarias ou cozinhas frações P, J e AU;
r) no caso da instalação sanitária da fração AU, a área do teto com degradação situa-se junto à parede exterior do edifício, que é adjacente a uma varanda;
s) na fração BE verificam-se as patologias descritas em 34) e 35);
t) nas frações BE e T ocorrem as patologias descritas em 36) e 37);
u) fissuração e degradação do revestimento interior na base de outras paredes exteriores da fração BE;
v) manchas, degradação e/ou levantamento do revestimento de madeira dos pavimentos junto aos vãos envidraçados exteriores nas frações J, P, T e AD;
w) nas frações AD, P e BE verificam-se as patologias referidas em 40);
x) na fração P ocorre a patologia identificada em 41);
y) fissura no teto de uma sala, com manchas em todo o seu desenvolvimento e empolamento pontual da pintura da fração P;
z) as lareiras têm um funcionamento deficiente;
aa) os problemas nas coberturas em terraço não acessível e nos vãos envidraçados exteriores agravaram-se;
ab) surgiram novos problemas nas varandas e terraços acessíveis: fissuração no pavimento, teto e/ou guardas, manchas no revestimento cerâmico, vidros riscados nos vãos de acesso em resultado das intervenções dos Réus;
ac) devia proceder-se à correção das soleiras dos vãos de acesso aos terraços para fazer face à alteração de cotas;
ad) os feltros betuminosos aplicados têm armaduras com massa superficial ligeiramente inferior ao previsto no estudo a que é feita referência no acordo judicial, o que frustra a cabal impermeabilização dos respectivos componentes construtivos exteriores;
ae) nos restantes terraços acessíveis foram colocadas membranas refletoras que, na ausência de um espaço de ar adjacente, como acontece nestes casos, não são adequadas como camada de isolamento térmico;
af) a aplicação de membranas refletoras como camada de isolamento térmico em alguns terraços acessíveis constituiu uma opção inadequada, por não permitir uma melhoria significativa da resistência térmica daquelas coberturas nem contribuir para a resolução dos problemas de condensações superficiais existentes nas frações subjacentes;
ag) os trabalhos a realizar para reparação das infiltrações em apreço são os seguintes:
- tratamento integral das coberturas em terraço não acessível, incluindo todos os elementos emergentes, as platibandas, paredes ou muretes do contorno, as saídas de águas pluviais e as juntas de dilatação horizontais;
- tratamento dos terraços acessíveis sobre frações com problemas de infiltração (no projeto de execução deverá avaliar-se a possibilidade de eventuais intervenções parciais para tratamento dos elementos emergentes, das guardas e paredes do contorno e das floreiras);
- tratamento das coberturas inclinadas com revestimento de telha cerâmica, sendo que os pontos singulares do contorno e o princípio de drenagem de águas pluviais são os aspectos que merecem maior preocupação;
- tratamento das fachadas onde existem infiltrações, que deverão ser intervencionadas por painéis;
- tratamento dos vãos envidraçados exteriores com infiltrações, devendo impermeabilizar-se o seu contorno e avaliar-se a substituição das respetivas caixilharias e soleiras ou peitoris;
ah) a 7ª Ré não teve o cuidado de informar o Autor que o custo dos trabalhos adjudicados para o tratamento das juntas entre ladrilhos cerâmicos e para limpeza das fachadas era excessivamente elevado em relação a outras soluções técnicas mais eficazes.
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2.3 Convicção do Tribunal
O Tribunal a quo fundamentou a sua convicção nos seguintes termos:
“«» nos seguintes documentos:
» no acordo de empreitada correspondente ao documento 4 junto com a petição inicial (fls. 30 vº e 31) que alicerçou a fixação dos pontos 11), 12) e 13) da fundamentação de facto;
» no acordo de empreitada correspondente ao documento 4 junto com a petição inicial (fls. 42 vº a 56) em particular o mapa de quantidades, outorgado entre o Autor e a sétima Ré, que alicerçou a fixação dos pontos 20) e 64) da fundamentação de facto;
» no auto de inspeção correspondente ao documento 5 junto com a petição inicial, que alicer-çou a fixação do ponto 17) da fundamentação de facto; conjugado com a matéria vertida no ponto 15) da fundamentação de facto quando ao desfecho do processo de execução nº 158-D/2001, levou à alínea c) dos factos não provados, particularmente porque das patologias detetadas apenas há alusão ao terraço não acessível da entrada ... e ao terraço de cobertura da fração do 3º andar direito e parte do 3º andar esquerdo ambos da entrada ...;
» na página do livro de obra anexo à missiva de resposta do primeiro e segundo Réus junto com a petição inicial (fls. 73), datado de 13 de Maio de 2008, do qual resulta que a 7ª Ré e o Engenheiro fiscal haviam alertado o Autor desde o início dos trabalhos que era necessária a intervenção nas fachadas pois as intervenções nos terraços não resolvia o problema das infiltrações a 100%; alicerçou a fixação do ponto 18) da fundamentação de facto e da alínea a) dos factos não provados;
» na missiva datada de 10 de Fevereiro de 2015, em resposta à carta remetida à 7ª Ré com data de 4 de Fevereiro de 2015 (fls. 74, 75), a Mandatária refere “desde que a empresa terminou os traba-lhos adjudicados através do referido contrato de empreitada têm sido ao longo dos últimos anos prestadas todas as assistências técnicas solicitadas, nunca tendo a empresa descurado tal assistência, nem se esquivado às suas responsabilidades”, solicitando esclarecimento sobre onde se encontravam localizados os defeitos e danos (entrada, andares afetados, frações atingidas) com envio de fotografias, assim como agendamento de reunião no local; quanto aos vidros do exterior do empreendimento que o Autor referia terem sido afetados por produtos compostos por ácidos, a Mandatária referiu “a empresa atempadamente pronunciou-se quanto aos mesmos, tendo assumido as devidas reparações e as mesmas sido designadas para a data em que forem efetuados os pagamentos ainda em débito pelo condomínio”; não existe obstáculo à sua valoração uma vez que o seu conteúdo não se subsume em qualquer dos preceitos do artigo do EOA, mormente porque não ficou evidenciado que esse assunto profissional tivesse sido conhecido, exclusivamente, por revelação do cliente ou por ordem deste; conduziu à fixação do ponto 25) da fundamentação de facto; no confronto com a listagem correspondente ao documento 10 junto com a petição inicial (fls. 79) não resulta provado que os vidros tivessem ficado riscados, sendo que as testemunhas mencionaram, igualmente, consequências de ácidos, conduzindo à alínea m) dos factos não provados;
» a listagem de anomalias junta como documento 10 da petição inicial (fls. 78 vº e 79) foi valorada apenas para identificar as frações por correspondência à respetiva entrada, já que a mesma surge repetida nos diversos blocos;
» no “termo de encerramento da obra” junto como documento 1 da contestação (fls. 104 vº e 105), datado de 20 de Junho de 2011, da autoria da 7ª Ré que deu por concluídos os trabalhos referentes ao orçamento nº ... solicitando que no prazo de 15 dias fossem comunicadas por escrito quaisquer observações; este documento não foi impugnado nem foi junto qualquer documento relativo a comunicação de observações;
» na comunicação datada de 13 de Julho de 2010, junto como documento 2 da contestação (fls. 105 vº) da autoria da 7ª Ré, que alude a uma reunião a 10 de Julho e retifica a entrega das etapas dos trabalhos que realizara:
- impermeabilização nos 8 telhados concluídos e pagos em Novembro de 2008 [conduziu à alínea a) dos factos não provados];
- etapa 1: cobertura dos blocos ... a ...;
- as cerâmicas que se encontravam fissuradas na cobertura do Bloco ... haviam sido substituídas por outras de tonalidade aproximada, o que sanara o problema de infiltração, mas a fiscalização suscitava um problema estético que permanecia por não ter peças antigas;
- etapa 2:
- fachada sul, nascente e poente do Bloco ...;
- fachada sul, nascente e poente do Bloco ..., mencionando que a última não fora concluída por estar a aguardar desde Fevereiro que os letreiros, luminárias, câmaras, holofotes, caixas de som do Restaurante Maratona fossem retiradas [que o contrato de empreitada de Agosto de 2009 excluiu expressamente ser incumbência da 7ª Ré];
»» no confronto com plano de trabalhos que integra o documento 4 junto com a petição inicial (fls. 45 vº), verificamos que faltavam as obras da 3ª (blocos ... e ... frentes), 4ª (bloco ... e ... frentes) e 5ª (Bloco ... e conclusões das traseiras) fases.
» no “termo de responsabilidade e garantia”, junto como documento 3 da contestação, acompanhado de quadro de início e termos das obras (fls. 106 e 106 vº), indica o início da garantia de cinco anos:
- Bloco ...: cobertura (Setembro de 2009 – Março de 2010);
- Bloco ...: cobertura (Setembro de 2009 – Março de 2010);
- Bloco ...: cobertura (Setembro de 2009 – Outubro de 2009);
- Bloco ...: cobertura (Setembro de 2009 – Outubro de 2009);
- Bloco ...: cobertura (Setembro de 2009 – Março de 2010);
- Bloco ...: cobertura (Setembro de 2009 – Março de 2010);
- Bloco ...: cobertura (Dezembro de 2009 – Junho de 2010);
- Bloco ...: fachada sul (Outubro de 2009 - Fevereiro de 2010), nascente (Setembro de 2009 – Março de 2010), poente (Dezembro de 2009 – Maio de 2010);
- Bloco ...: fachada sul (Janeiro de 2010 - Maio de 2010), poente (Janeiro de 2010 - Maio 2010), norte (Abril de 2010 - Julho de 2010);
- Bloco ...: fachada norte (Maio de 2010 - Dezembro de 2010);
- Bloco ...: fachada nascente (Maio de 2010 - Dezembro de 2010);
- Bloco ...: fachada norte (Dezembro de 2010 – Março de 2011);
- Bloco ...: fachada nascente (Maio de 2010 – Novembro de 2010);
- Bloco ...: fachada norte (Novembro de 2009 – Março de 2011), nascente (Outubro de 2009 – Novembro 2010), sul (Fevereiro de 2011 – Março de 2011);
- Bloco ...: fachada sul (Março de 2011 – Maio de 2011);
- Bloco ...: fachada sul (Fevereiro de 2010 – Maio de 2011);
- Bloco ...: fachada poente (Janeiro de 2011 – Maio de 2011);
- Bloco ...: fachada poente (Novembro de 2010 – Março de 2011);
»» este documento não foi impugnado: extrai-se, pois, que os trabalhos ficaram concluídos no mês de Maio de 2011, conduzindo ao ponto 21) da fundamentação de facto;
» as fotografias juntas nos requerimentos de 12 de Junho de 2016 (fls. 168 a 172 e 173 vº a 178), apenas foram valoradas em conjugação com o depoimento da testemunha GG;
» na certidão judicial junta em 15 de Julho de 2016 (fls. 187 vº 215, 216 vº a 224) da qual se extraiu o conteúdo do ponto 17) da fundamentação de facto e alínea c) dos factos não provados;
» na cópia das atas das assembleias de condomínio realizadas em:
»» 15 de Março de 2008 (fls. 315 a 317): realizado o ponto de situação sobre as obras previstas na transação, o Eng. NN, técnico responsável pela fiscalização, referiu ter acompanhado ao pormenor todas as intervenções na cobertura do empreendimento, com a realização de testes durante dois dias, com os terraços cobertos de água com níveis de 15-20 cm, sem ter sido detetada qualquer infiltração [relevante para a fixação da alínea a) dos factos não provados] e alertou para o facto de as cerâmicas existentes nas paredes exteriores e muretes poderem ser um bom condutor de águas para o interior das habitações; referiu também que as obras haviam sido executadas mediante o caderno de encargos do Prof. II, pela orientação da “D..., Ld.ª”, que entendeu intervir em casos pontuais, indicados à 7ª Ré e “sem prejuízo de os trabalhos terem sido realizados por empresas especializadas em credíveis, pecaram por terem sido delimitados apenas às zonas intervencionadas pontualmente, como no caso dos terraços com telas” [relevante para a fixação do ponto 14) da fundamentação de facto]; explicou, também, que todas as claraboias haviam sido retiradas e recolocadas depois de o local ter sido intervencionado, tendo as chaminés sido também reconstruídas e devidamente revestidas; nessa assembleia foi apresentado o orçamento da 7ª Ré (única escolhida “visto ser esta a empresa que está a executar as obras da cobertura em parceria com as restantes especialidades, tendo já dado provas da sua eficácia e honestidade”), tendo tido intervenção, em sua representação o Eng. LL;
»» 27 de Julho de 2009 (fls. 317 vº a 318 vº): no âmbito do ponto de situação relativamente às obras nas fachadas foi referida, como dificuldade, a falta de pagamento das quotas para esse efeito da parte de alguns condóminos, que poderia levar à interrupção dos trabalhos [o contrato apenas foi celebrado em Agosto do ano seguinte, ficando explicado o hiato temporal entre a deliberação e o início da execução];
»» 26 de Novembro de 2011 (fls. 319 a 320): um membro da administração referiu que a obra no empreendimento fora dada como concluída pelo empreiteiro, mas não fora aceite e que o valor da obra não fora pago integralmente, pronunciando-se alguns condóminos que não o haviam feito “como forma de garantia pelos danos sofridos até serem devidamente resolvidos”, tendo sido mencionados danos nos vidros; a proprietária da fração “AD” informou a falta de algumas tijoleiras nas fachadas ao nível do seu terraço, que poderia estar na origem da humidade sentida no seu interior, tendo a admi-nistração sido mandatada para enviar aos condóminos uma ficha para registo de problemas surgidos na sequência da intervenção e/ou problemas subsistentes apesar da intervenção [este problema não consta do documento 10 junto com a petição inicial, depreendendo-se que tenha sido resolvido, contribuindo para a fixação do ponto 26) da fundamentação de facto] ; a condómina da fração AV pediu ao pro-prietário da fração BD para a resolução dos problemas do seu apartamento causados pela infiltração proveniente da casa de banho;
»» 13 de Julho de 2013 (fls. 320 vº a 324): o condómino GG referiu que as obras não haviam sido eficazes na resolução das infiltrações apontando como prova a existência de “buracos existentes no tecto e paredes com pintura danificada no quarto” falando também dos danos causados nos vidros da sua fração, que não haviam sido tratados apesar de a 7ª Ré ter assumido a responsabilidade e acionado o seguro, mas que a seguradora lhes comunicara diretamente ter declinado; a condómina OO (fração “Q”) afirmou que a sua fração apresentava problemas idênticos acrescidos de danos no piso da varanda [não especificou o tipo de danos para podermos aferir a existência de nexo de causalidade, além de que o documento 10 junto com a petição inicial identifica a proprietária PP]; a administração do condomínio informou que a 7ª Ré “tem vindo a executar reparações no prédio para resolver o problemas que continuam a persistir (…) prova disso foi a montagem e instalação do andaime na fachada do Bloco ... no passado mês de Maio” [relevante para a fixação do ponto 26) da fundamentação de facto] e que lhe solicitara a presença em finais de Novembro para visitar as frações “AB” e “AD” para verificar in loco o teto que desabara e outras anomalias; o proprietário da fração “T” disse que tinha problemas no seu apartamento que não existiam antes das obras na fachada [não os identificou, motivo pelo qual não foram valorados]; foi deliberado intentar ação e constituição de Mandatário, assim como, com vista à sua preparação, a elaboração de um relatório técnico para identificar todos os problemas existentes, a sua origem e soluções a considerar; conduziu à alínea d) dos factos não provados;
»» 22 de Novembro de 2014 (fls. 320 vº a 324): o relatório fora elaborado; os condóminos das frações AZ, AC, BF continuavam com problemas de infiltrações [relevante para a fixação da alínea d) dos factos não provados] e o da última informou que intentara ação contra a 7ª Ré quanto aos danos nos vidros e a condómina da fração “Q” reclamou novamente os danos nos vidros e no piso da varanda, para serem incluídos na ação; nessa assembleia foram apresentados orçamentos para impermeabilização dos terraços inacessíveis dos Blocos ..., ... e ...;
»» 24 de Janeiro de 2015 (fls. 25 vº a 27 e 324 vº a 327): a proprietária da fração AC fizera obras em casa e substituíra os vidros danificados pelo empreiteiro; no âmbito da apreciação dos orçamentos para nova impermeabilização dos terraços inacessíveis dos Blocos ..., ... e ..., foi referido que compreendiam a substituição das saídas de águas pluviais e das cantoneiras do remate, sendo proposto a eleição de uma comissão de obras para elaboração de checklist (os condóminos das frações AG, AS, BD – este na garagem e vidros partidos na claraboia do seu terraço, tomando a administração posição sobre acionar o seguro por no primeiro caso poder tratar-se de rotura de canalização - AL, AR, AA, AD referiram problemas com infiltrações) para recolha de orçamentos; foi apresentado também orçamento para reparação da estrutura de acesso comum aos terraços e substituição da caixilharia das lavandarias, sendo também proposta a elaboração de check list;
» no relatório/parecer junto em 6 de Novembro de 2017 pelo Autor (fls. 352 a 366 vº, 368 vº a 386 vº) elaborado pelo Prof. Eng. II na sequência de visitas realizadas a 25 de Janeiro e 15 de Março de 2005, que corresponde ao que foi tomado em consideração para a celebração da transação; alicerçou a fixação dos pontos 18), 46), 47), 48), 50), 51), 54), 62), 63), 64) da fundamentação de facto;
«» relatório pericial apresentado em 20 de Julho de 2016 no âmbito da produção antecipada de prova e nos esclarecimentos prestados em 8 de Novembro seguinte do qual decorre que, na sequência de visita às seguintes frações (não visitou outras por falta de colaboração dos moradores, apesar de acordo quanto ao agendamento) e partes comuns, o Sr. Perito encontrou as seguintes patologias:
» entrada ... [Bloco ...]:
- 3º esquerdo (T4) [no confronto com o documento 10 junto na petição inicial corresponde à fração “BD”]: infiltrações nos tetos da sala, instalações sanitárias e quartos, com apodrecimento do gesso e danificação do teto falso;
- 3º direito (T2) [no confronto com o documento 10 junto na petição inicial corresponde à fração “BC”]: infiltrações nos tetos da sala, cozinha e quartos com zonas degradadas e em paredes, com algumas condensações:
- hall comum aos apartamentos do 3º andar: humidade no teto;
nicial corresponde à fração “AZ”]: infiltrações nos tetos da sala, corredores, lavandaria, hall de entrada, instalações sanitárias e quartos, com locais sem gesso por ter caído; humidades na parede sul de um dos quartos em local correspondente à fachada;
- entrada ... [Bloco ...]:
- 4º andar (T4) [no confronto com o documento 10 junto na petição inicial corresponde à fração “AC”]: condensações nos tetos e infiltrações na parede sul de um quarto e da sala correspondente a fachada e em alguns tetos;
- hall de acesso: humidade no teto;
» terraço não acessível: diversas zonas sem isolamento térmico, outras com esse material à vista e degradado;
» rufos deficientemente rematados e tela descolada, correspondente a má execução;
» falta de tratamento uniforme das juntas de material cerâmico, nuns locais perfeitamente preenchidas e noutros esfarela com a simples passagem do dedo;
» zonas de soleiras dos vãos de abertura com sinais de infiltrações dando origem ao apodrecimento das madeiras;
»» mostrou-se relevante para a fixação do ponto 42) da fundamentação de facto;
«» embora a admissão da perícia no âmbito da qual foi apresentado o relatório pericial junto em 22 de Janeiro de 2018 (fls. 399 a 416) não tenha base legal, na medida em que, tendo sido ordenada perícia em produção antecipada de prova, apenas se admitiria, se requerido, segunda perícia em moldes singulares, a decisão de 29 de Maio de 2017, que a ordenou, não foi impugnada, tendo transitado em julgado, pelo que constitui mais um meio de prova disponível e será objeto de apreciação sem observância dos critérios previstos no artigo do Código de Processo Civil;
»» este relatório foi elaborado na sequência de visitas às frações AB (Bloco ..., 3º andar – entrada ...), AD (Bloco ..., 4º andar – entrada ...), AC (Bloco ..., 4º andar – entrada ...), BC, BD (Bloco ..., 3º andar esquerdo e direito, respetivamente – entrada ...), AZ e AX (Bloco ..., 2º andar esquerdo e direito, respetivamente – entrada ...), tendo sido juntas fotografias ilustrativas das patologias e prestados esclarecimentos dos peritos QQ, RR, SS em 23 de Novembro de 2022
Os senhores Peritos explicaram que, quando visitaram o edifício pela primeira vez, já tinham passado mais de quatro anos após a entrada da ação e que se trata de um prédio muito exposto às intempéries (primeira linha de praia) apresentando-se com forte degradação; no confronto entre o parecer do Prof. Eng. II, que previa a remoção de toda a cerâmica e a colocação de um novo revestimento por todo o edifício, com o contrato de empreitada celebrado com a 7ª Ré, sobretudo na listagem das quantidades e preços, concluíram que o Autor optou por uma solução que não era a preconizada, o que explicaram pela diferença de custos; relativamente ao esfarelamento das massas referiram que pode ser má execução mas também resultado da exposição ao mar, o que pode ocorrer ao fim de 2 anos e que a ideia de não tratamento uniforme pode ser contrariada pela circunstância de haver zonas de fachada mais protegidas (a área total de fachada corresponde a 5.353 m2 e 17.500 juntas); referiram que o capoto necessita de lavagem e manutenção (com custos associados), tem menor durabilidade, ao passo que a solução de fachada ventilada apenas tem o custo do investimento inicial; quanto à acumulação de carbonato de cálcio explicaram que se trata de uma reação química da água com a argamassa que se agrava na presença de cloretos (assim sucede na proximidade do mar) e que era previsível que se verificasse a curto prazo (a 7ª Ré sabia que não teria muita durabilidade); mencionaram que a humidade interior é provocada por humidade exterior indicando as telas das placas de cobertura e as juntas das fachadas como os dois focos de proveniência; quanto às placas de cobertura referiram que detetaram situações em que a espessura do isolamento era menor (a solução de 3 cm é a normal), em 7 coberturas 3 ou 4 tinham problemas, no entanto, não conseguiram estabelecer a relação com a humidade existente nos interior das frações – tetos – que ficavam sob coberturas não acessíveis, sem teste de carga, pois a humidade pode entrar num sitio e sair noutro; notaram que, em alguns locais, as telas estavam descoladas junto às floreiras e nos terraços não acessíveis explicando que, quando há muitos recantos, o profissional precisa de ter mais cuidados ao executar e que a descolagem significa má execução, sendo que a fissuração é geralmente da aplicação (corresponde a perda de capacidade elástica à medida que degrada), mas também pode ser da plastificação das telas; esclareceram que as floreiras que existem a dividir os blocos, maioritariamente não têm plantas, as telas têm 10 anos de garantia (que é de 25 anos para o roofmate com godo) e que a reclamação ao fim de 4/5 anos indicia tela mal aplicada na ligação das juntas, explicando que a tela tem de ser soldada com aplicação direta de calor e se for demasiado quente pode ficar plastificada, associado ao tempo de exposição, proximidade ou temperatura [segundo a explicação anterior quando ao aparecimento de fissuras que têm na perda de elasticidade] ou sem qualidade; quanto ao remate dos muretes, referiram que existe um conjunto de regras, tendo verificado que havia uma ou duas situações de tela descolada e quanto às peças de rufos/capacetes havia um solto; também falaram da tela exposta na platibanda que tem 80/90 cm de altura, ao passo que o godo tem 5 cm; a existência de 2 tonalidades/colorações nas juntas, na perspetiva de quem usou a mesma cor, representa má execução, sendo a mais escura a mais antiga, afirmando quanto às respostas aos quesitos 74 e 75 que, em alguns locais, de forma residual estavam mal executadas (era a causa das humidades nas frações que visitaram), mas a solução de tratamento das juntas, não resolve pois não é durável; quanto à fissuração das partes suspensas em consola referiram que estas são mais suscetíveis de abrir com deslocações e movimentos, tendo o defeito a ver com o modo como o edifício foi projetado; afirmaram que em empenas a que não tiveram acesso pelo interior existem manifestações de humidade correspondentes a cobertura e fachada; referiram que a solução mais económica seria o capoto mas implicava alteração do projeto e diminuição do valor das frações (valem mais quando o prédio está revestido a cerâmico) pois a substituição do cerâmico corresponde ao dobro do custo (20 anos de garantia, argamassas de cola, peso da peça cerâmica).
O relatório pericial e os esclarecimentos sustentaram a fixação dos pontos 27) a 43), 49), 52), 53), 55) a 61), 65), 66), 70) e 71) da fundamentação de facto e alíneas e) a g), n), o) e w) (quanto à fração “AD”) dos factos não provados
No depoimento de parte, TT, gerente da 7ª Ré, explicou que o parecer do Prof. Eng. II não foi seguido relativamente às fachadas (tirar o cerâmico, consolidar com barramento armado e voltar a pôr cerâmico) pois ficaria 4 ou 5 vezes mais caro do que o orçamento que apresentaram (custaria € 3 ou 4 milhões), nem orçamentaram, tendo sido acordada com a administração do condomínio uma solução aligeirada, para debelar os problemas do prédio; referiu que, em 2008, o empreiteiro [D..., Ld.ª] pediu testes das floreiras (foram todas postas à carga) e algumas reparações em coberturas não acessíveis, umas floreiras foram arranjadas, precisando que era o Engenheiro quem decidia e que, por sua vez, queria que outras fossem reparadas na íntegra, mas foi recusado, pois pretendiam apenas trabalhos pontuais, tendo também realizado trabalhos de manutenção das chaminés ao nível das tampas; identificou os trabalhos acordados entre a sua representada e o Autor como tendo a ver com as fachadas e, pontualmente, com os terraços acessíveis e corpos emergentes relacionados com as frações recuadas e as casas das máquinas, do nível do terraço para cima e em floreiras, assim como nas claraboias (troca de vidros) situando “assistências aligeiradas” em 2012 traduzidas em retoques e afinações em telas/telhas [foi valorado como confissão para a fixação do ponto 26) da fundamentação de facto], seguido de um intervalo sem contactos e depois a ação; recordava que havia entrada de água na caixa de ar até ao primeiro andar (havia fissuras significativas na parede dupla) e que houve preenchimento das juntas das fachadas; explicou que as fachadas são revestidas por chapas de grés de revestimento cerâmico de 60 x 60 cm, com 1 cm de junta, que apresentavam fissuras tanto verticais como horizontais, por onde entrava água devido à força do vento da beira mar e que demoliram o pavimento das coberturas com colocação de novas telas; afirmou que o Eng. RR que era o representante do Autor na obra e que o mesmo encontrava-se com a diretora da obra da Ré aos fins de semana para assinar os autos (não estava durante a semana), sendo o Eng. KK (proprietário de uma fração) quem dava indicações para a escolha de materiais; admitiu terem ido (o depoente e o Eng. LL) a uma assembleia de condóminos apresentar a proposta e negocia-la; quanto aos artigos 64º a 82º da petição inicial respondeu: a) os trabalhos nas telas foram realizados em 2008/2009 para a D..., Ld.ª de forma pontual; b) não lhe foi dito para adicionar godo nem substituir placas; c) não conseguiu localizar a fração “AD”; d) não fizeram trabalho que afetasse a drenagem; e) a D..., Ld.ª pediu a reparação com telas em vez da substituição; alíneas f) a i) não sabia; j) a acumulação de calcário tem a ver com a saturação do sal junto ao mar, havendo necessidade de ser realizada manutenção (são juntas largas sendo necessário raspar e lavar frequentemente com produtos próprios), sendo natural que aconteça se a fração não for habitada durante todo o ano; l) as manchas nos ladrilhos cerâmicos reclamadas foram limpas, referindo que os objetos ferrosos deixados marcam além da acumulação do calcário; m) sim [fundou a fixação do ponto 27) g) da fundamentação de facto]; n) não tinha conhecimento, mas admitiu que a degradação do material de preenchimento pode ter origem em calcário existente na betonilha que pressiona para o exterior, referindo que o assentamento em betonilha não é a melhor solução, mas antes as lajetas ou o pavimento hidrólito para drenar (não liberta calcário); o) a caixilharia é em PVC, com ligação em ferro no interior e quando contaminada por água salgada “incha”, o que explica o aparecimento de ferrugem nos aros das janelas, que empurra a capa do PVC e as borrachas, levando a infiltrações e mesmo a quebra de vidros (encontraram muita caixilharia danificada, mas o condomínio não quis investir pois havia muitas segundas habitações); q) referiu que só no último bloco ... condómino se queixou de vidros riscados, explicando que na limpeza final os microdefeitos aparecem (deu como exemplo o queimado resultante das fezes das gaivotas); r) referiu que as juntas das caixilharias são preenchidas com silicone e se houver pressão dos elementos degradados a partir do interior vai haver degradação mais rápida (por norma, o silicone dura 5 anos, a proximidade do mar é prejudicial); s) os peitoris não foram substituídos (só eventualmente algum partido), mas reparados com líquido que o Eng. KK propôs para selagem; quanto aos artigos 83º a 85 da petição inicial admitiu que encontraram algumas situações mas não perceberam a origem; referiu que, depois da reparação no exterior, foram contratados por 1 ou 2 condóminos para reparação dos rebocos e pinturas das duas frações; quanto às lareiras explicou que não fizeram qualquer alteração nas chaminés, pois a configuração permaneceu a mesma, desconhecendo se já anteriormente havia problemas de tiragem; recordou que houve a colocação de um andaime no período de um ano subsequente ao findar da obra devido ao aparecimento de calcário na junta vertical, que foi aberta novamente e não conseguiram detetar a origem do calcário; confrontando com a carta da sua representada datada de 24 de Julho de 2015 não recordava quem se deslocou à reunião proposta; explicou que o mástique previsto no ponto 4 do orçamento corresponde ao cordão de silicone (negou ter mexido nas caixilharias) e que a impermeabilização das fachadas pressupunha que houvesse rebetumagem total das juntas (que correspondem a um total de 25 km), opinando que ficaria resolvido, mas que as paredes estão partidas e o cerâmico tem fissuras devido às altas temperaturas; precisou que os trabalhos duraram 2 anos e meio e durante esse período não foram reportados problemas nem foi dada indicação de que o fora feito nos blocos anteriores não devia ser repetido nos que faltavam.
No que diz respeito às testemunhas:
KK, proprietário fração “U” (2º andar direito do nº ...), que comprou em Junho de 2008 a uma financeira, num momento em que já estavam feitos os trabalhos relacionados com o primeiro e segundo Réus e que a obra de recuperação das fachadas já tinha sido aprovada [a ata de 15 de Março desse ano confirma-o], não reside no apartamento tendo-o arrendado; referiu que na primeira assembleia em que interveio disse que a solução de tratamento das juntas não era adequada pois também o cerâmico deveria ter intervenção (admitiu que não ficou a constar da ata) [não houve qualquer menção dessa advertência, expressamente negada pela testemunha JJ, como veremos infra]; situou a conclusão das obras pela Ré em 2012/2013 [sabemos, no entanto, de forma objetiva pelo documento 3 da contestação, que a conclusão ocorreu em Maio de 2011, mas pode ser explicado por reparações na sequência de reclamações conforme referido infra] e que reparou ao fim de algum tempo que surgiram problemas na sua sala com origem na fachada pois haviam retirado o material flexível na ligação (que ali havia colocado) substituindo-o por um rígido com betumagem, mas, tendo apresentado reclamação à administração do condomínio, removeram o material rígido e colocaram material flexível não mais tendo tido problemas, salvo mais recentemente, num quarto de outra fachada com relação com a junta de dilatação; referiu que a sua empresa fez uma obra de reabilitação interior de uma fração situada no Bloco ..., correspondente ao 4º esquerdo [a fração AD pertencente à testemunha JJ], num momento em que já tinha feito a reabilitação e que continuava a haver infiltrações; afirmou ter conhecimento do estudo do Prof. II que associou a uma solução mais cara; admitiu ter falado 2 ou 3 vezes com a Engenheira da Ré e que pode (não se recordava se o fizera) ter recomendado o material para reparação da junta de dilatação, referindo, no entanto, que só por si não resolve o problema a longo prazo.
Com pouco conhecimento dos factos apenas se mostrou relevante para a fixação do ponto 26) da fundamentação de facto.
UU, proprietário fração “AG”, situada ao no rés-do-chão esquerdo do Bloco ..., onde habita de forma permanente desde o Verão de 2008, chegou a falar com a Eng. VV que representava a Ré na obra; explicou que os pais estiveram na assembleia de apresentação do orçamento reportando que a obra iria resolver o problema; recordou que teve uma infiltração grave na lavandaria virada a poente (a água caia no vão virado à piscina) no topo da parede acima da janela, e que a Eng. VV se deslocou à sua fração (num momento que estavam a decorrer obras no seu bloco, o que estimou ter acontecido em 2010/2011) e afirmou que se ia resolver, no entanto, o problema manteve-se e depois agravou-se e que os pais falaram com a administração do condomínio antes de as obras terem terminado sugerindo que os terraços fossem verificados, mas mostrou-se hesitante sobre se tal ocorreu ou não numa assembleia de condóminos, revelando a convicção que fora conversa com a Eng. VV [na ata de 24 de Janeiro de 2015 está referida a intervenção de WW em representação da fração “AG” questionando de que forma iria ser resolvida a infiltração da marquise obtendo como resposta que se fosse da caixilharia ficaria resolvida com a aprovação do orçamento e, caso fosse da fachada, teria de aguardar pelas responsabilidades a assacar ao empreiteiro [não foi facultado aos senhores Peritos o acesso à fração em causa, pelo que não foi possível estabelecer o nexo de causalidade entre a infiltração e as obras em apreciação na presente ação; constata-se, também, que a testemunha confunde a exposição do assunto ao Autor e à Ré, o que é relevante para efeitos de denúncia]; asseverou que não voltou a ser colocado andaime no Bloco ...; situou o início das obras em 2009 e o seu termo em 2011/2012.
Dado o conhecimento limitado e as observações já efetuadas não resultou qualquer contributo para a fixação da matéria de facto.
GG, proprietário fração da “AC”, correspondente ao 4º andar da entrada ... (Bloco ...), último piso coberta por terraço inacessível e por uma estrutura ligada ao corpo do edifício com altura de 3,5 m, que comprou em Maio/Julho de 2008 e passou a habitar em Agosto de 2010; explicou que não tinha qualquer problema na sua fração, as obras iniciaram em 2009 e terminaram em Maio/Junho de 2011, sendo o Bloco ... o último e que no inverno de 2011/2012 (mais adiante falou no final de 2011 num momento em que já não havia andaimes) começou a ter infiltrações, principalmente no seu quarto e que durante as obras, durante a limpeza com jato de água a mesma entrou dentro dos quartos, esclarecendo que as janelas são inteiriças, com oscilobatente em duas partes e que a água provinha da fixação da base superior; precisou que os quartos não são cobertos por terraço, todos correspondem à fachada norte e que os problemas se situam na parte superior da parede e nos tetos; apresentou uma reclamação ao Sr. XX da administração do condomínio, que se deslocou ao apartamento, assim como uma Eng. brasileira de nome VV e outro técnico os quais disseram que podia ser algum problema ocorrido durante o processo da obra mas ia ser resolvido; asseverou que em 2012/2013 houve novamente andaimes no Bloco ... e outros fazendo trabalhos idênticos aos anteriores (limparam as juntas, voltaram a embutir e puseram tubos em aço), mas não resolveu; situou os problemas mais graves em 2013/2014 referindo que as infiltrações alastraram aos outros dois quartos e que caiu reboco e estuque de um dos tetos (do quarto da filha), tendo apresentado nova reclamação à administração do condomínio, voltando a ocorrer deslocação do Sr. XX e da Eng. VV, a qual prometeu analisar e reparar/resolver se fosse relacionado com a intervenção que haviam feito; mencionou que no inverno de 2014/2015, que foi rigoroso, a esposa lhe telefonou contando que tinha caído água no seu rosto enquanto estava na cama e 3/5 dias depois caiu o teto, numa zona irregular de 50 cm, vendo-se tijolo e vigas; confrontado com as fotografias juntas em 12 de Junho de 2016, identificou nas de fls. 172 (última do requerimento referência 22901961) e 173 (primeira do requerimento referência 22902033) o pedaço de teto caído no seu quarto; afirmou que durante a segunda intervenção, durante a remoção das juntas, usaram um produto que descolorou os vidros da sala, passando a haver uma luminosidade diferente e depois da limpeza ficou uma mancha correspondente a uma faixa não contínua, nada tendo sido feito dizendo, mais tarde que era uma adulteração do próprio vidro; mencionou que esteve em dois apartamentos um pertencente ao condómino YY com acesso pela segunda entrada da Rua ... e outro ao condómino JJ situado no quarto andar da primeira entrada da mesma rua, o qual teve problemas graves em 2011 e fez obras no interior para resolver o problema; precisou que, em Setembro/Outubro de 2022, reparou tudo e pintou o apartamento pois a filha ia casar e no dia do depoimento o teto caiu novamente asseverando é um problema proveniente da fachada alta do corpo emergente.
Tratou-se de depoimento objetivo e coerente, não obstante ser parte interessada no desfecho da ação, dada a correspondência do seu relato com outros elementos de prova (mormente, as fotografias e os documentos emitidos pela 7ª Ré relativamente às datas de conclusão dos trabalhos) contribuindo de forma relevante para a fixação dos pontos 26), 30), 42), 44), 45) da fundamentação de facto.
JJ, proprietário da fração correspondente ao 4º esquerdo da entrada ... (Bloco ...) [fração “AD”] que adquiriu ao construtor para segunda habitação e fez parte da comissão de acompanhamento das obras; relatou que esteve presente na assembleia de aprovação das obras e que no inverno de 2011 o quarto da filha ficou preto com cheiro a bolor e era impossível ter o que quer que fosse nos móveis, tendo chamado o Eng. KK para realização de obras que ocorreram em 2012 (duraram 8 meses) e consistiram na destruição da parede interior sob a cobertura (onde observou água a correr), na furação de todas as paredes interiores viradas a sul, colocação de um líquido na parede a 1 metro do chão e em todo o teto, assim como uma meia cana que conduz a água para uma caixa, tendo resolvido o problema; referiu que a Engenheira foi chamada ao apartamento e disse que ia resolver mas nada foi feito; afirmou que as 8 portadas em vidro espelhado ficaram queimadas com ácido no decurso da obra de limpeza da tijoleira; situou o início das obras em 2008/2009 e o termo em 2011, recordando que foi apresentado um único orçamento, com adjudicação à 7ª Ré pois tinha feito uma obra noutro bloco; recordou que o gerente da Ré esteve presente na assembleia assim como o Eng. LL, o qual disse que a solução que indicavam “era capaz” de resolver o problema; reteve, da explicação dada na ocasião, que iam ser feitas ranhuras de 2 cm na bordadura das tijoleiras, retiravam toda a massa e colocavam nova para vedar, iam substituir as tijoleiras rachadas, o que foi feito nos blocos ... a ... (atualmente são cor-de-salmão e anteriormente eram rosadas) em zonas concentradas, sendo que no Bloco ... e no terraço foram substituídas pontualmente, vendo-se que estavam rachadas e babadas de calcário; mencionou que observou a realização dos trabalhos e que os operários não faziam os cortes da mesma maneira, tendo chamado a atenção para terem cuidado para não ferirem o tijolo; mencionou ter questionado o Eng. KK sobre se iria dar resultado e que este dizia “vamos ver”, asseverando que se respondesse que não ia resultar, a obra não arrancaria; recordou que o vizinho do 4º direito quis ver o seu quarto, pois entrava muita água no quarto da filha, tendo ideia de, por sua vez, ter ido ver esse quarto, assim como o armário, o que situou após a obra realizada pela Ré; referiu que algum tempo após a obra que fez no apartamento (terminada em Julho/Agosto de 2012) foram montados andaimes no Bloco ..., o que estimou ter acontecido em 2013.
Á semelhança da anterior testemunha depôs de modo objetivo e coerente, sendo certo que não tem interesse no resultado do litígio por ter realizado obras no interior da fração, contribuindo de forma relevante para a fixação dos pontos 21), 26), 44) da fundamentação de facto.
ZZ, proprietário da fração correspondente ao rés-do-chão esquerdo do Bloco ... há 22 anos, afirmou que não tinha problemas no apartamento e que 5 anos depois das obras surgiu uma infiltração no teto do quarto virado para a Rua ... na zona interior, que começou por ser pequena e que está a aumentar, a qual, segundo o Eng. KK provém da junta [situando-se na zona interior, ou seja, oposta à fachada, não é possível determinar a sua origem, que tanto pode ser de uma zona da cobertura, como de rotura de alguma canalização]; esteve presente na assembleia de aprovação do orçamento, onde compareceu o gerente da Ré, que foi escolhida por ter feito uma intervenção semelhante no Bloco ..., que tinha corrido bem, bem como por ter feito as obras da cobertura da responsabilidade dos donos da construção para “não haver empurra”, ficando com a ideia que iria resolver o problema; recordava que as queixas de humidade eram relacionadas com a cobertura mas foi feito teste (puseram à carga) e foi dito que o problema era das fachadas, falando-se em substituição das juntas; mencionou que depois das obras havia pessoas que se queixavam que anteriormente não tinham problemas e passaram a ter (identificou o condómino GG), assim como problemas nos vidros (identificou o vizinho “AAA”).
Não existiu correspondência com a patologia identificada no documento 10 junto com a petição inicial (onde se refere infiltração grave na marquise), apenas se mostrou relevante como reforço dos depoimentos das testemunhas que mencionou relevando para a fixação dos pontos 44) e 45) da fundamentação de facto.
Eng. JJ, funcionário de subempreiteira, E..., que fez a impermeabilização das coberturas acessíveis e das floreiras; afirmou que após as demolições (em que não tiveram intervenção) aplicaram telas novas (duas, asfálticas) de acordo com o previsto no caderno de encargos (dobragem de 25 cm), com acabamento final, após o que fizeram teste de carga para confirmar se estava em ordem; explicou que fecham as saídas de água, enchem com 3/4 cm, mantendo durante 48 horas e, se não houver infiltrações, abrem as saídas para que se opere o escoamento; afirmou que só intervieram nos terraços onde houve demolições, não tiveram intervenção na banda do lado sul e houve dois terraços com remendos.
Equidistante em relação às partes e com conhecimentos técnicos, prestou esclarecimentos que poderiam elucidar o surgimento de infiltrações em frações situadas sob terraços acessíveis, porém, não foi produzida prova da sua ocorrência (de acordo com a perícia, as frações afetadas localizam-se sob coberturas inacessíveis que não tiveram intervenção no âmbito da subempreitada realizada pela entidade patronal da testemunha.
Eng. LL, funcionário da Ré até 2009, acompanhou a obra que ficou concluída em final de 2008 (Novembro/Dezembro) e esteve presente na assembleia de condóminos de apresentação da proposta de orçamento da sua autoria; explicou que o caderno de encargos do Prof. II serviu de inspiração dos trabalhos que desenvolveram, mas era um estudo muito abrangente e teórico que apontava algumas soluções de reparação que seguiram tendo esbarrado em constrangimentos orçamentais para outros (comentou que para cumprir integralmente mais valia atirar abaixo e fazer de novo); afirmou que o representante dos condóminos e seu interlocutor era o Eng. civil KK e que houve o consenso de orçamentar o que era mais premente/urgente, que respeitava às fachadas e varandas, tendo sido discutido previamente [apesar do que este referiu quanto ao momento da compra da fração “U”, pelo valor mencionado na ata de 15 de Março de 2008, € 339.539,94 já com IVA e aquele que consta do contrato celebrado em 17 de Agosto de 2009, € 390.647,14, com IVA, constatamos que houve evolução da negociação ao longo desse ano]; explicou que o revestimento cerâmico do prédio de 60 cm x 60 cm tem juntas de 1/1,5 cm, que eram uma das possíveis entradas de água, as quais foram serradas com rebarbadora para remover o material existente e colocaram novo, substituíram as peças partidas/estaladas/fissuradas que eram outra das possíveis entradas de água e nas varandas usaram um produto impermeabilizante (Sika), uma espécie de tela líquida que foi sugerida pelo referido engenheiro, após terem removido o cerâmico e, de seguida, colocaram novo; referiu que, para os primeiros Réus, fizeram trabalho de substituição de telas asfálticas nas coberturas, sendo a E..., uma empresa especialista, quem o executou; afirmou que visitaram várias frações situadas sob os terraços e naquelas onde havia mais problemas impermeabilizaram e nos outros não mexeram, usaram os melhores materiais e cumpriram o que estava no orçamento; foi substituído pela Eng. VV.
Mostrou-se relevante apenas para a fixação do ponto 67) da fundamentação de facto.
HH, engenheiro técnico de engenharia e construção civil trabalhava para o condómino F..., que tem uma fração no 3º andar, entrada ... [de acordo com o documento 10 junto com a petição inicial corresponde à fração “AB” do Bloco ... identificando-se como condómino a sociedade de F..., Ld.ª] ali passando [depreende-se que seja o sócio/gerente] com a família 3 a 4 meses/ano no Verão; afirmou ter realizado diversas obras em consequência de infiltrações, num período que situou entre 2009 e 2011, tendo, então, conhecido a Ré; explicou que se trata de um local muito difícil devido aos ventos e que ia com regularidade a esse apartamento, quando chovia, para ver os estragos; referiu que nessas deslocações observava o modo como trabalhavam (passavam com a rebarbadora nas juntas para tirar a tomação antiga e meteram camada de novo produto) tendo opinado que não estava bem porque, na sua opinião foram a demasiada profundidade atingindo a ceresite e que, na zona mais alta, não ficou bem impermeabilizado; referiu que ao nível do 3º andar existe babado, o que significa que a água está por dentro, terá entrado por algum sítio, logo abaixo do rufo, pois este vira 5 cm e devia ter levado silicone como reforço, pois naquela zona o vento é muito e vê-se que empurra a água para cima; asseverou que chamou a atenção dos trabalhadores que lhe disseram que sabiam o que faziam; observou que no terraço dessa fração tiraram a tela toda e junto à parede refundaram só 3 cm, quando deviam dobrar a tela 15 cm para ficar dentro da parede; afirmou que, juntamente com 5 ou 6 condóminos, reclamou por ficarem com as casas em pior estado e havia casas inabitáveis, sendo, no caso, o quarto, e que o condomínio ficou de assumir as reparações [o contrário consta das atas]; referiu que montaram andaimes para o trabalho das juntas das fachadas, tratamento de peitoris e soleiras, por duas vezes, sendo a segunda 2 anos depois; referiu que os problemas na fração se localizam no teto dos dois quartos da fachada norte e na parede de um deles, explicando que é o último andar e que a água entra pelas juntas da tijoleira do murete, vai até à laje, infiltra-se no espaço da parede dupla da fachada; sabia que a proprietária de uma das frações abriu furos na zona de baixo e fez um dreno interno entre a parede interior e a parede exterior; referiu que chegou a ir às assembleias e outras vezes ia o Advogado [esta alusão, em conjugação com a ata da assembleia de 24 de Janeiro de 2015, onde consta a intervenção do Dr. BBB, em representação do condómino, confirmar que se trata da fração “AB”].
Com conhecimentos técnicos e da fração em causa, depôs com objetividade e coerência, contribuindo para a fixação dos pontos 27) g) e 42) da fundamentação de facto.
Não foi produzido qualquer meio de prova relativamente à matéria das alíneas b), h) a m), p) a w) (quanto às frações P e BE), x) a ah) dos factos não provados.”
*
3. Delimitação do objecto do recurso; questões a apreciar e decidir
:
Das conclusões formuladas pelos recorrentes as quais delimitam o objecto do recurso, tem-se que as questões a resolver no âmbito dos presentes recursos são as seguintes:
-
Do recurso da Autora/Apelante
- Da nulidade da sentença;
- Da impugnação da matéria de facto;
- Do mérito da decisão.
-
Do recurso da Ré/Apelante
- Da nulidade da sentença;
- Da impugnação/ampliação da matéria de facto;
- Do mérito da decisão.
*
4. Conhecendo do mérito do recurso
:
-
Dos recursos da Ré/Apelante e da A./Apelante
4.1. Da nulidade da sentença por violação das alíneas b) e d), do nº 1, do artigo 615.º do Código de Processo Civil.
4.1.1. Da nulidade da sentença por falta de fundamentação.
Invoca a Ré/Apelante que o Tribunal “a quo” não valorou devidamente o alegado, essencialmente os esclarecimentos prestados pelos peritos e ainda o depoimento de parte da Recorrente, 7ª Ré, não justificando, sequer, a não valoração do depoimento de parte da 7ª Ré, o que se traduz numa omissão de fundamentação da sentença.
Invoca, ainda, a Ré/Apelante que, no decurso dos autos, ocorreu, ainda, uma transacção, que, no seu entendimento, configura uma desistência, entre A., 1º a 6º RR, o que deve aproveitar à 7ª Ré, aqui Recorrente.
Refere que, o Tribunal a quo não teceu qualquer consideração quer quanto à transacção, quer quanto ao alegado pela aqui Apelante, relativamente ao aproveitamento da mesma ao 7º Réu, o que se traduz em omissão de fundamentação da sentença.
Cumpre apreciar
A questão que importa, agora, dirimir refere-se à alegada nulidade da sentença recorrida por falta de fundamentação.
Resulta do disposto no artigo 607º, n.º 3, do Código de Processo Civil que, na elaboração da sentença, e após a identificação das partes e do tema do litígio, deve o juiz deduzir a fundamentação do julgado, explicitando “os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final.”
Por seu turno, sancionando o incumprimento desta injunção, prescreve o artigo 615º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil que é nula a sentença que “não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.
Na realidade, não basta que o juiz decida a questão posta; é indispensável, do ponto de vista do convencimento das partes, do exercício fundado do seu direito ao recurso sobre a mesma decisão (de facto e de direito) e do ponto de vista do tribunal superior a quem compete a reapreciação da decisão proferida e do seu mérito, conhecerem-se das razões de facto e de direito que apoiam o veredicto do juiz
[1]
. Neste sentido, a fundamentação da decisão deve ser expressa, clara, suficiente e congruente, permitindo, por um lado, que o destinatário perceba as razões de facto e de direito que lhe subjazem, em função de critérios lógicos, objectivos e racionais, proscrevendo, pois, a resolução arbitrária ou caprichosa, e por outro, que seja possível o seu controle pelos Tribunais que a têm de apreciar, em função do recurso interposto
[2]
.
Todavia, ao nível da fundamentação de facto e de direito da sentença, como é lição da doutrina e da jurisprudência, para que ocorra esta nulidade “não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito
[3]
”.
Neste sentido, que é o tradicionalmente perfilhado, referia J. Alberto dos Reis
[4]
, a propósito da especificação dos fundamentos de facto e de direito na decisão, que importa proceder-se à distinção cuidadosa entre a “falta absoluta de motivação, da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade
[5]
”.
Feitas estas considerações, de todo o modo, no caso em apreço, é nosso entendimento que não ocorre a invocada nulidade por falta de fundamentação de facto e/ou de direito.
Com efeito, do teor da decisão recorrida é perfeitamente possível alcançar o quadro factual e jurídico subjacente ao sentido decisório contido na mesma decisão, nomeadamente é possível alcançar, sem particular esforço, que a Sr.ª Juiz a quo definiu concretamente a matéria de facto relevante para a decisão da causa, discriminando ainda a factualidade não considerada provada, apreciando ainda os meios probatórios produzidos, designadamente do ponto de vista documental, testemunhal e pericial.
Subsequentemente, na mesma decisão, subsumiu a factualidade assente ao Direito, fundamentando juridicamente a decisão em causa, concluindo fundadamente pela procedência da acção.
Porque tal ocorre, e nesta perspectiva, a fundamentação constante da decisão recorrida é a bastante para a decisão que ali era suposto ser proferida, sendo certo que é perfeitamente claro o enquadramento factual tido por assente e considerado relevante pelo tribunal de 1ª instância, assim como o quadro normativo aplicável e subjacente à decisão, permitindo, pois, aos respectivos destinatários exercer, de forma efectiva e cabal, a sua análise e a sua crítica, suscitando a sua reapreciação, como ora sucede nesta instância.
Não pode, pois, sustentar-se que a sentença em crise seja nula por falta de fundamentação de facto e de direito, pois que os pressupostos de facto e de direito que conduziram ao sentido decisório acolhido na mesma sentença se mostram nele evidenciados de forma objectiva, lógica e racional.
Assim, não se verifica, qualquer vício de omissão de falta de fundamentação conforme pretendido pela Ré/Apelante, mormente no que à questão da transacção concerne.
A tal propósito, como da decisão em crise decorre, o Tribunal recorrido deixou expresso que:
“Não foi estabelecida qualquer relação contratual entre o Autor e a Ré B..., Unipessoal, Ld.ª, no que diz respeito aos trabalhos de reparação e eliminação das infiltrações provenientes das zonas da cobertura, objeto do contrato de 30 de Abril de 2007, pelo que o primeiro não tem legitimidade para exigir da segunda qualquer prestação, nem esta tem qualquer dever para com aquele.
Com efeito, estamos perante duas relações bilaterais: por um lado, o promotor da construção e vendedor das frações, das quais duas destinadas a comércio e serviços e cinquenta destinadas a habitação, distribuídas por sete blocos adjacentes, com um piso de cave destinado ao estacionamento de viaturas, arrumos e espaços técnicos e um nível variável entre três e cinco pisos acima da cota de soleira, perante a existência de infiltrações, assume a obrigação de reparar o imóvel constituído em propriedade horizontal administrado pelo demandante, nos termos do artigo 914º do Código Civil; por outro lado, com vista a alcançar o desiderato de eliminação das infiltrações provenientes dos terraços acessíveis e inacessíveis, chaminés, claraboias e floreiras, os dois primeiros Réus acordam com a sétima em que termos as obras de reparação iriam ser implementadas, mediante pagamento de contrapartida, surgindo como donos da obra e esta como empreiteira.
Estas duas relações contratuais não se confundem nem interpenetram: a permanência de infiltrações relacionadas com possíveis defeitos das obras de reparação das coberturas, chaminés, claraboias e floreiras, no que diz respeito ao Autor, implica a observância dos passos previstos nos artigos 916º, 917º do Código Civil e 4º, 5º do DL nº 67/2003 de 8 de Abril, ou seja, teria de proceder à sua denúncia aos primeiro a sexto Réus, no prazo de um ano subsequente à deteção da desconformidade, sob pena de caducidade, havendo um prazo limite de cinco anos para a sua descoberta e um prazo de dois anos ; em caso de denúncia do Autor, os primeiro e segundo Réus teriam, na qualidade de donos da obra, de exercer os direitos atribuídos pelos artigos 1.220º, 1221º, 1.224º e 1.225º do Código Civil, ou seja, denunciar à sétima Ré, no prazo de trinta dias, os defeitos transmitidos pelo Autor, exigindo a sua eliminação ou, não podendo ser eliminados, uma nova construção e, uma vez que empreitada teve por objeto a reparação de um edifício, a Ré seria responsável pelos defeitos que se revelassem não só no período de cinco anos contados desde a entrega da obra, conferido pelo último preceito citado, mas durante dez anos, pois a tal se obrigou perante os aludidos Réus no contrato que celebraram.
A transação outorgada entre o Autor e o primeiro a sexto Réus implica que não haja quaisquer consequências a extrair dos factos provados relativamente a infiltrações decorrentes das obras nas coberturas, concretamente, os especificados nos pontos 27) a) a e), 28), 30), 31), 32), 34), 35), 37), 46), 47), 48), 49), 50), 52), 53), 54), 59), 60) e 61) da fundamentação de facto.
Os pedidos formulados pelo demandante, identificados no relatório sob as alíneas a), b) e c), só subsistem para apreciação da relação jurídica estabelecida directamente com a Ré.
Temos de abordar as questões relacionadas com o contrato de empreitada outorgado entre o Autor e a sétima Ré em 17 de Agosto de 2009: este negócio jurídico surgiu pela circunstância de a transação celebrada com os restantes Réus no processo nº 158/2001 ter delimitado a responsabilidade destes pelas infiltrações que tinham por fonte patologias situadas nos terraços acessíveis, não acessíveis, chaminés, claraboias e floreiras, sendo certo que havia infiltrações provenientes das fachadas.“.
A recorrente pode, naturalmente, discordar do sentido decisório acolhido na sentença em apreço ou até considerar a fundamentação do mesmo insuficiente ou errónea, designadamente no que se refere à fundamentação ou motivação da decisão da matéria de facto (o que contenderá com a decisão de mérito e que pode conduzir à sua revogação ou alteração), mas não pode sustentar, de forma procedente, que a decisão em crise é nula por falta de fundamentação, sendo que, conforme o exposto, apenas a absoluta ausência ou grave deficiência de fundamentação (de facto e/ou de direito) - de forma que impeça o destinatário de alcançar o quadro factual e jurídico subjacente à decisão em crise - pode levar ao decretamento da nulidade da decisão.
Destarte, neste segmento, improcede a apelação da Ré.
4.1.2 Da nulidade da sentença por omissão de pronúncia
Invoca, ainda, a Ré/Apelante que não resulta da motivação da sentença qualquer pronuncia quanto à verificação da caducidade do direito da Autora, por si alegada, de exigir a competente indemnização.
Refere, ainda, que a sentença recorrida apreciou a questão da denúncia dos defeitos, porém, não se pronunciou relativamente à ultrapassagem do prazo para instaurar acção de condenação do empreiteiro na eliminação dos defeitos, incorrendo, por isso, na nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. d) do Código de Processo Civil.
Refere, por fim, que, também, não se pronunciou quanto à questão do pedido genérico e simplista efectuado pela A. na petição inicial.
Segundo defende, este formula um pedido genérico, no qual pede a condenação de todos os Réus, na reparação dos defeitos, na proporção das suas responsabilidades, sem, todavia, especificar, como lhe competia e ao abrigo do princípio do pedido, que defeitos a cada um dos Réus competia reparar e a responsabilidade concreta de cada um.
Cumpre apreciar.
Segundo o disposto no artigo 615º, n.º 1 al. d) do Código de Processo Civil é nula a sentença quando “o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
Esta previsão legal está em consonância com o comando do artigo 608º, n.º 2 do Código de Processo Civil, em que se prescreve que “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.”
Importa, no entanto, não confundir questões colocadas pelas partes, com os argumentos ou razões, que estas esgrimem em ordem à decisão dessas questões neste ou naquele sentido.
De facto, as questões submetidas à apreciação do tribunal identificam-se com os pedidos formulados, com a causa de pedir ou com as excepções deduzidas, desde que se apresentem, à luz das várias e plausíveis soluções de direito, como relevantes para a decisão do objecto do litígio e não se encontrem prejudicadas pela solução de mérito encontrada para o litígio.
Coisa diferente das questões a decidir são os argumentos, as razões jurídicas alegadas pelas partes em defesa dos seus pontos de vista, que não constituem “questões” no sentido pressuposto pelo citado artigo 608.º, n.º 2 do Código de Processo Civil. Assim, se na apreciação de qualquer questão submetida ao conhecimento do julgador, este não se pronuncia sobre algum ou alguns dos argumentos invocados pelas partes, tal omissão não constitui uma nulidade da decisão por falta de pronúncia.
Neste sentido, colhendo a lição de J. Alberto dos Reis
[6]
, refere este Ilustre Professor, que “uma coisa é o tribunal deixar de pronunciar-se sobre questão que devia apreciar, outra invocar razão, boa ou má, procedente ou improcedente, para justificar a sua abstenção.”
(…) São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer a questão que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão”.
Este entendimento tem, como é consabido, sido corroborado, há muito, pela jurisprudência que sempre o acolheu defendendo que a não apreciação de um ou mais argumentos aduzidos pelas partes não constitui omissão de pronúncia, porquanto o Juiz não está obrigado a ponderar todas as razões ou argumentos invocados nos articulados para decidir certa questão de fundo, estando apenas obrigado a pronunciar-se “sobre as questões que devesse apreciar” ou sobre as “questões de que não podia deixar de tomar conhecimento
[7]
”.
Quer isto dizer que ao Tribunal cabe o dever de conhecer do objecto do processo, definido pelo pedido deduzido (à luz da respectiva causa de pedir - cfr. art. 581º, n.º 4, do Código de Processo Civil, que consagra o denominado princípio da substanciação) e das excepções deduzidas. Terá, pois, de apreciar e decidir as todas as questões trazidas aos autos pelas partes - pedidos formulados, excepções deduzidas, (…) - e todos os factos em que assentam, mas já não está obrigado a pronunciar-se sobre todos os argumentos esgrimidos nos autos.
A não apreciação de algum argumento ou razão jurídica invocada pela parte pode, eventualmente, prejudicar a boa decisão sobre o mérito das questões suscitadas. Porém, daí apenas pode decorrer um, eventual, erro de julgamento ou “error in iudicando”, mas já não um vício (formal) de omissão de pronúncia.
Feitas estas considerações, cremos que, no caso vertente, não existe qualquer “omissão de pronúncia” na decisão recorrida.
Com efeito, a sentença só tem que se pronunciar sobre matéria relevante para a decisão da causa.
Assim, não padece de nulidade por omissão de pronúncia a sentença recorrida que conheceu de todas as questões que, com utilidade para o mérito (ou desmérito) da acção, devia conhecer, resolvendo-as, ainda que a descontento de uma das partes.
É que, em determinadas situações, como sucede no caso em apreço, não tem o Tribunal a obrigação de pronunciar-se sobre todas as questões suscitadas pelas partes, por ser certo que existe alguma excepção que faça falecer toda a acção.
De resto, a tal propósito e como resulta da decisão em crise refere o Tribunal a quo:
“Antes de passarmos à análise dos restantes vícios, iremos apreciar a exceção de caducidade invocada pela Ré.
O artigo 1.224º do Código Civil erige, como referência para o início da contagem do prazo de caducidade, o momento da aceitação da obra, sendo que a distinção entre defeitos aparentes e ocultos é importante na medida em que os primeiros se presumem conhecidos após tal aceitação, tenha ou não havido verificação prévia, enquanto os segundos estão sujeitos à denúncia do dono da obra ao empreiteiro em trinta dias, equivalendo à denúncia o reconhecimento da sua existência por parte deste.
Segundo as regras gerais contidas no artigo 1.221º do Código Civil, perante o defeito, o dono da obra tem o direito à sua eliminação ou na sua impossibilidade, pode exigir uma nova construção, a não ser que as despesas sejam desproporcionadas em relação ao proveito. Em segunda linha, perante a não eliminação dos defeitos ou a não realização de nova construção, o dono da obra pode exigir a redução do preço e, em última instância, se os defeitos tornarem a coisa inadequada ao fim a que se destinava, pode resolver o contrato, como decorre do artigo 1.222º. Porém, estes direitos caducam no prazo de um ano a contar da recusa da obra ou aceitação com reserva ou da denúncia se não forem exercidos.
No entanto, existe uma situação que permite o alargamento destes prazos: o artigo 1.225º estabelece que quando a empreitada tiver por objeto a construção, modificação ou reparação de edifícios ou outros imóveis destinados por sua natureza a longa duração e, no decurso de cinco anos a contar da entrega, ou no decurso do prazo de garantia convencionado, a obra, por vício do solo ou da construção, modificação ou reparação, ou por erros na execução dos trabalhos, ruir total ou parcialmente, ou apresentar defeitos, o empreiteiro é responsável pelo prejuízo causado ao dono da obra ou a terceiro adquirente. Nesta situação, a denúncia deve ser feita no prazo de um ano e a indemnização deve ser pedida no ano seguinte à denúncia, aplicando-se estes prazos de igual forma ao direito à eliminação dos defeitos.
Relativamente a todos os referidos prazos, importa considerar o enquadramento jurídico dado pelo DL nº 67/2003, já anteriormente citado, na redação dada pelo DL nº 84/2008 de 21 de Maio, que se aplica, com as necessárias adaptações, ao contrato de empreitada ou de outra prestação de serviços referente a bens de consumo, designadamente, imóvel, quando fornecidos por um profissional, ou seja, pessoa que exerça com carácter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios, a pessoa que os destine a uso não profissional: os artigos 3º, 5º e 5º-A estabelecem o prazo de cinco anos, respetivamente, para a manifestação do defeito e para a presunção da sua existência à data da entrega do imóvel, para o exercício dos direitos de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato e para que se opere a caducidade, prevendo a última norma o prazo de um ano para a denúncia após a deteção e de três anos para o exercício dos direitos, tendo como limite máximo, no entanto, o referido prazo de caducidade.
Impende sobre o dono da obra a alegação e demonstração da existência de defeitos, ou seja, que a obra padece de vícios que excluem ou reduzem o seu valor ou a sua aptidão para o uso ordinário ou previsto no contrato, bem como a efetivação da denúncia ao empreiteiro.
Consagrado prazo para o exercício do direito findo o qual se verifica a caducidade, nos termos do artigo 343º nº 2 do Código Civil, é ao empreiteiro que cabe provar, em contrapartida, o respetivo decurso para poder beneficiar da extinção ou perda do direito que o dono da obra pretende fazer valer na ação.
Pode suceder, contudo, que o empreiteiro reconheça a existência do defeito, caso em que, por se tratar de um direito disponível, esse comportamento produz o mesmo efeito impeditivo da caducidade que teria o exercício tempestivo do direito.
No caso em referência, ficou demonstrado que, concluída a execução da obra em Maio de 2011, no período de 2012/2013 a Ré levou a cabo reparações nas juntas das fachadas dos blocos ..., ..., ... e ..., o que significa que lhe foram denunciadas patologias – aliás, na inspeção judicial realizada no processo nº 158/2001-D a 17 de Março de 2011, ou seja, ainda as obras não tinham terminado, verificavam-se infiltrações nos 2º andar do Bloco ..., 3º andar do Bloco ..., 3º andar direito do Bloco ... e 3º andares esquerdo e direito do Bloco ... – e que reconheceu ser devida assistência.
Por isso, tendo por referência o prazo previsto no artigo 5º-A nº 3 do DL nº 67/2003, aditado pelo DL nº 84/2008, intentada a ação em 9 de Dezembro de 2015, afigura-se que a mesma corresponde ao exercício tempestivo do direito de eliminação dos defeitos, improcedendo a exceção.”.
Afigura-se-nos, assim, que, por ter sido julgada improcedente a excepção peremptória da caducidade, é irrelevante e desprovido de sentido a pretensão de conhecimento de todas as demais questões suscitadas e alegadas pela Recorrente, pelo que não ocorre qualquer nulidade por omissão de pronúncia.
Com efeito, a decisão sobre a excepção peremptória da caducidade diz respeito e engloba todos os pedidos da Recorrente a tal respeito, uma vez que não existe quanto a elas e no âmbito do conhecimento da caducidade, independentemente das suas particularidades de identidade, qualquer diferença ou especificidade.
Ademais, quanto à transacção efectuada e aos seus efeitos relativamente à sétima Ré já nos pronunciamos aquando da análise do ponto antecedente.
Termos em que se considera que também não houve qualquer “omissão de pronúncia” na decisão recorrida, improcedendo assim, neste âmbito, a apelação apresentada.
4.1.3 Da nulidade da sentença por excesso de pronúncia
Invoca a A./Apelante que o Tribunal recorrido nunca poderia conhecer da questão/factualidade constante do ponto 67 dos factos dados como provados, por a referida matéria não ter sido objecto de defesa da Ré, seja por excepção, seja por impugnação incorrendo, por isso, no referido segmento a decisão recorrida no vicio de excesso de pronúncia.
Cumpre apreciar.
Segundo o disposto no artigo 615º, n.º 1 al. d) do Código de Processo Civil é nula a sentença quando “o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
Esta previsão legal está em consonância com o comando do artigo 608º, n.º 2 do Código de Processo Civil, em que se prescreve que “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.”
No caso vertente, entende a Recorrente que o Tribunal recorrido nunca poderia conhecer da questão/factualidade constante do ponto 67 dos factos dados como provados, uma vez que a referida matéria não foi objecto de defesa da Ré, seja por excepção, seja por impugnação.
Porém, resulta dos autos que, a aqui Recorrida, na sua contestação apresentada a 27/01/2016, impugnou toda a factualidade alegada em sede de petição inicial, designadamente o preceituado no seu artigo 127º, nos seguintes termos:
“31. Sendo, completamente falso, o alegado pelo A, de 125º a 130º da p.i..
32. Na verdade, a Ré contestante é uma sociedade com larga experiência na reparação
e impermeabilização de edifícios,
33. Tendo executado os trabalhos a que, contratualmente, se obrigou, em respeito pelas regras da arte, sem quaisquer defeitos, não sendo, nessa parte, as intervenções a que o A faz referência na p.i, designadamente de 131 a 137º da p.i., que se impugna.
34. Em suma: a ré executou, quer ao A, quer aos co-réus, os trabalhos constantes dos orçamentos que, previamente, lhes apresentou, tendo realizado esses trabalhos com supervisão técnica, colocando e utilizando os materiais indicados,
35. Realizando os trabalhos com mão-de-obra especializada e experimentada em respeito pelas regras da arte.
36. Resulta assim não ter o A, no que, à ora contestante respeita, qualquer razão nos pedidos que formula, que, deverão improceder.”
Assim, considerando o vertido no artigo 31 do articulado apresentado pela Ré, constatamos que a referida questão já havia sido discutida e era objecto de controvérsia nos autos, sendo, por isso, uma questão a decidir pelo Tribunal, ou seja, apurar o motivo para a não adopção da solução técnica do parecer do Prof. II e se era ou não a melhor solução a adoptar para a resolução dos problemas de infiltrações das fachadas.
Como é sabido, apenas se pode afirmar que ocorre excesso de pronúncia quando se procede ao conhecimento de questões não suscitadas pelas partes ou que sejam de conhecimento oficioso, o que não se mostra verificado no caso em apreço.
Assim, feitas estas considerações, cremos que, no caso vertente, não existe qualquer “excesso de pronúncia” na decisão recorrida.
Termos em que se considera que também não houve qualquer “excesso de pronúncia” na decisão recorrida, improcedendo assim, neste âmbito, a apelação apresentada pela A.
4.2
Da impugnação/ampliação da Matéria de facto apresentada pela Autora e pela Ré.
A Autora/Apelante pugna que seja eliminado da factualidade dada como provada ou seja dado como não provado o facto número 67.
Consta do referido facto que:
“
67. A solução técnica referida em 20) foi negociada entre o Autor e a 7ª Ré como alternativa à prevista no parecer identificado em 9) 6º que custaria muito mais [resposta ao artigo 127º da petição inicial]”.
Pugna, ainda, que seja dada como provada factualidade que foi dada como não provada e/ou desconsiderada pelo tribunal recorrido, o que implica que sejam aditados aos factos provados os seguintes factos:
“ag) os trabalhos a realizar para reparação das infiltrações dadas como provadas são os seguintes:
...
- tratamento das coberturas inclinadas com revestimento de telha cerâmica, sendo que os pontos singulares do contorno e o princípio de drenagem de águas pluviais são os aspectos que merecem maior preocupação;
- tratamento das fachadas onde existem infiltrações, que deverão ser intervencionadas por painéis;”.
*
Por sua vez, a Ré apelante, em sede recursiva, pretende que seja alterada e ampliada a matéria de facto.
Pugna que sejam julgados como não provados os factos provados 27) f), g), h), j) e k), 29) quanto à degradação nos tectos, paredes, pavimentos, rodapés e guarnições, 33), 36) quanto às manchas e degradação do revestimento interior junto aos vãos envidraçados exteriores que dão acesso às fracções, bem como os factos nºs 38), 40), 41), 42) quanto às manchas de bolores em paredes exteriores orientadas a norte, e 43) e 44).
Consta dos referidos factos que:
“
27. No exterior do edifício detetaram-se as seguintes patologias:
(…)
f) existe degradação da pintura do teto de varandas das frações identificadas em e) na zona adjacente à interceção com um tubo de queda de águas pluviais;
g) existe acumulação de carbonato de cálcio sobre os ladrilhos cerâmicos e nas juntas do revestimento das fachadas e das guardas das varandas das frações identificadas em e);
h) existe degradação do material de preenchimento existente na junta de ligação entre os ladrilhos cerâmicos das fachadas e o revestimento do pavimento de varandas das frações identificadas em e);
(…)
j) nas frações identificadas em e) verifica-se degradação do material de preenchimento das juntas entre as caixilharias dos vãos envidraçados exteriores e a fachada;
k) nas frações identificadas em e) ocorre degradação dos peitoris dos vãos envidraçados exteriores [resposta aos artigos 63º a 66º, 69º, 73º, 74º, 76º a 78º, 81º, 82º da petição inicial].
29. As frações “AB”, “AD”, “AZ” referidas em 27) apresentam degradação nos tetos, paredes, pavimentos, rodapés e guarnições provenientes da presença de um elevado grau de humidade [resposta ao artigo 87º da petição inicial].
33. Nas frações “AD” e “BD” referidas em 27) ocorrem manchas e degradação do revestimento de paredes e tetos relacionados com infiltrações provenientes do interior dos corpos emergentes com cobertura inclinada de telha cerâmica [resposta ao artigo 91º da petição inicial].
36. Nas frações “AD”, “AC” e “BD” referidas em 27) ocorrem manchas e degradação do revestimento interior junto aos vãos envidraçados exteriores que lhes dão acesso [resposta ao artigo 94º da petição inicial].
38. Nas frações “AC”, “AB” e “BD” referidas em 27) existem manchas e/ou degradação do revestimento interior de paredes sob vãos envidraçados exteriores [resposta ao artigo 95º da petição inicial].
40. Na fração “AD” referida em 27) verificam-se manchas e degradação das guarnições de madeira das ombreiras de vãos envidraçados exteriores [resposta ao artigo 99º da petição inicial].
41. Na fração “AC” referida em 27) ocorrem manchas no pavimento e na caixilharia do vão envidraçado exterior da lavandaria [resposta ao artigo 100º da petição inicial].
42. Nas frações “AB”, “AD”, “AC”, “BC”, “BD”, “AZ” e “AX” referidas em 27) existem manchas de bolores em paredes exteriores orientadas a norte [resposta ao artigo 101º da petição inicial].
43. Na fração “AD” existem gotas de água e manchas nos tetos e nas paredes dos corpos emergentes dos terraços acessíveis cuja cobertura é inclinada com revestimento de telha cerâmica [resposta ao artigo 102º da petição inicial].
44. Durante a execução da obra de impermeabilização da fachada, devido ao uso de ácidos, alguns vidros dos vãos das frações, designadamente da “AC” do Bloco ... e “AD” do Bloco ..., ficaram descolorados [resposta ao artigo 107º da petição inicial].
Pugna, ainda, que a matéria de facto considera provada seja aditada dos seguintes factos:
“72) no ano de 2011, o Autor teve conhecimento de problemas que afetavam algumas frações, designadamente, frações “AB”, “AD”, “AC”, “BC”, “BD”, “AZ” e “AX”;
73) Nesta sequência, aquando da realização da Assembleia-Geral Ordinária do Condomínio ... - Lote ...”, no dia 26 de novembro de 2011, um dos membros da Administração assumiu que, apesar de obra ter sido dado como concluída pelo Empreiteiro, não aceitaram o termo da obra, por discordar do modo de realização das intervenções nos terraços inacessíveis;
74) Os problemas existentes nas fracções já existiam antes de 2008, o que era do conhecimento do A, resultando isso mesmo da testemunha indicada pelo A, HH, neste sentido vide depoimento que se transcreve e se anexa.”.
Vejamos, então.
No caso vertente, mostram-se minimamente cumpridos os requisitos da impugnação da decisão sobre a matéria de facto previstos no artigo 640.º do Código de Processo Civil, nada obstando a que se conheça da mesma.
Entende-se, actualmente, de uma forma que se vinha já generalizando nos tribunais superiores, hoje largamente acolhida no artigo 662.º do Código de Processo Civil, que no seu julgamento, a Relação, enquanto tribunal de instância, usa do princípio da livre apreciação da prova com a mesma amplitude de poderes que tem a 1ª instância (artigo 655.º do anterior Código de Processo Civil e artigo 607.º, n.º 5, do actual Código de Processo Civil), em ordem ao controlo efectivo da decisão recorrida, devendo sindicar a formação da convicção do juiz, ou seja, o processo lógico da decisão, recorrendo com a mesma amplitude de poderes às regras de experiência e da lógica jurídica na análise das provas, como garantia efectiva de um segundo grau de jurisdição em matéria de facto; porém, sem prejuízo do reconhecimento da vantagem em que se encontra o julgador na 1ª instância em razão da imediação da prova e da observação de sinais diversos e comportamentos que só a imagem fornece.
Como refere A. Abrantes Geraldes
[8]
,
“a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência”.
Importa, pois, por regra, reexaminar as provas indicadas pelos recorrentes e, se necessário, outras provas,
máxime
as referenciadas na fundamentação da decisão em matéria de facto e que, deste modo, serviram para formar a convicção do Julgador, em ordem a manter ou a alterar a referida materialidade, exercendo-se um controlo efectivo dessa decisão e evitando, na medida do possível, a anulação do julgamento, antes corrigindo, por substituição, a decisão em matéria de facto.
Tendo presentes os elementos probatórios e demais motivação, vejamos então se, na parte colocada em crise, a referida análise crítica corresponde à realidade dos factos ou se a matéria em questão merece, e em que medida, a alteração pretendida pela A. apelante e pela Ré apelante.
*
Conforme atrás referimos, a autora/Apelante em sede recursiva, pugna que seja eliminada da factualidade dada como provada o facto número 67.
Pugna, ainda, que seja dada como provada e aditados aos factos provados os seguintes factos:
“ag) os trabalhos a realizar para reparação das infiltrações dadas como provadas são os seguintes:
...
- tratamento das coberturas inclinadas com revestimento de telha cerâmica, sendo que os pontos singulares do contorno e o princípio de drenagem de águas pluviais são os aspectos que merecem maior preocupação;
- tratamento das fachadas onde existem infiltrações, que deverão ser intervencionadas por painéis;”.
Vejamos, então.
Do ponto 67 dos factos provados consta o seguinte:
“67. A solução técnica referida em 20) foi negociada entre o Autor e a 7ª Ré como alternativa à prevista no parecer identificado em 9) 6º que custaria muito mais [resposta ao artigo 127º da petição inicial].”
Ora, como resulta da prova, não olvidamos que a solução preconizada no parecer técnico do C..., Lda. fosse a mais profunda à resolução do problema dos terraços acessíveis e tratamento das fachas, contudo, essa solução foi negociada e aceite a resolução que se afigurou razoável e aceitável em termos de custos e benefícios, não merecendo, por isso, qualquer reparo a resposta dada ao ponto 67.º dos factos provados, sendo certo que o que se impunha é que fosse executada em conformidade, o que não sucedeu.
De resto, mesmo a desvalorizar-se a troca de correspondência entre mandatários o que se invoca nas alegações de recurso, o certo é que a demais prova produzida é suficiente para alicerçar a resposta dada ao referido ponto da matéria de facto.
Além disso, à luz da prova atrás mencionada e devidamente mencionada pelo Tribunal a quo não merece, também, reparo a resposta dada à alínea ag) não tendo, por isso, acolhimento neste segmento a alteração propugnada pela A./impugnante por ausência de prova que permita o aditamento dos factos referidos pela mesma.
*
Por sua vez, conforme atrás referimos a Ré apelante, em sede recursiva, também pretende que seja ampliada e aditada a matéria de facto nos termos atrás assinalados.
Vejamos, então.
Analisada a globalidade da prova, bem como a forma exaustiva como a Sr.ª Juíza a quo procedeu à sua análise crítica afigura-se-nos que a referida análise, efectivada no contexto da imediação da prova, surge como sufragável, nada justificando, por isso, a respectiva alteração.
Como é sabido, a actividade dos Juízes, como julgadores, não pode ser a de meros espectadores, receptores de depoimentos. A sua actividade judicatória há-de ter, necessariamente, um sentido crítico. Para se considerarem provados factos não basta que as testemunhas chamadas a depor se pronunciem sobre as questões num determinado sentido, para que o Juiz necessariamente aceite esse sentido ou essa versão. Os Juízes têm necessariamente de fazer uma análise crítica e integrada dos depoimentos com os documentos e outros meios de prova que lhes sejam oferecidos.
E sempre se deve ter presente a globalidade da prova e não apenas as partes que alegadamente conviria à apelante.
Ora, da análise da prova global, designadamente, da prova por declarações, testemunhal e pericial entendemos que não merece alteração a resposta dada à matéria de facto impugnada.
De resto, acompanhamos o Tribunal a quo quanto defende que o relatório pericial e os esclarecimentos prestados pelos Peritos sustentam a fixação dos pontos 27) a 43).
A este propósito aí se refere:
“Os senhores Peritos explicaram que, quando visitaram o edifício pela primeira vez, já tinham passado mais de quatro anos após a entrada da ação e que se trata de um prédio muito exposto às intempéries (primeira linha de praia) apresentando-se com forte degradação; no confronto entre o parecer do Prof. Eng. II, que previa a remoção de toda a cerâmica e a colocação de um novo revestimento por todo o edifício, com o contrato de empreitada celebrado com a 7ª Ré, sobretudo na listagem das quantidades e preços, concluíram que o Autor optou por uma solução que não era a preconizada, o que explicaram pela diferença de custos; relativamente ao esfarelamento das massas referiram que pode ser má execução mas também resultado da exposição ao mar, o que pode ocorrer ao fim de 2 anos e que a ideia de não tratamento uniforme pode ser contrariada pela circunstância de haver zonas de fachada mais protegidas (a área total de fachada corresponde a 5.353 m2 e 17.500 juntas); referiram que o capoto necessita de lavagem e manutenção (com custos associados), tem menor durabilidade, ao passo que a solução de fachada ventilada apenas tem o custo do investimento inicial; quanto à acumulação de carbonato de cálcio explicaram que se trata de uma reação química da água com a argamassa que se agrava na presença de cloretos (assim sucede na proximidade do mar) e que era previsível que se verificasse a curto prazo (a 7ª Ré sabia que não teria muita durabilidade); mencionaram que a humidade interior é provocada por humidade exterior indicando as telas das placas de cobertura e as juntas das fachadas como os dois focos de proveniência; quanto às placas de cobertura referiram que detetaram situações em que a espessura do isolamento era menor (a solução de 3 cm é a normal), em 7 coberturas 3 ou 4 tinham problemas, no entanto, não conseguiram estabelecer a relação com a humidade existente nos interior das frações – tetos – que ficavam sob coberturas não acessíveis, sem teste de carga, pois a humidade pode entrar num sitio e sair noutro; notaram que, em alguns locais, as telas estavam descoladas junto às floreiras e nos terraços não acessíveis explicando que, quando há muitos recantos, o profissional precisa de ter mais cuidados ao executar e que a descolagem significa má execução, sendo que a fissuração é geralmente da aplicação (corresponde a perda de capacidade elástica à medida que degrada), mas também pode ser da plastificação das telas; esclareceram que as floreiras que existem a dividir os blocos, maioritariamente não têm plantas, as telas têm 10 anos de garantia (que é de 25 anos para o roofmate com godo) e que a reclamação ao fim de 4/5 anos indicia tela mal aplicada na ligação das juntas, explicando que a tela tem de ser soldada com aplicação direta de calor e se for demasiado quente pode ficar plastificada, associado ao tempo de exposição, proximidade ou temperatura [segundo a explicação anterior quando ao aparecimento de fissuras que têm na perda de elasticidade] ou sem qualidade; quanto ao remate dos muretes, referiram que existe um conjunto de regras, tendo verificado que havia uma ou duas situações de tela descolada e quanto às peças de rufos/capacetes havia um solto; também falaram da tela exposta na platibanda que tem 80/90 cm de altura, ao passo que o godo tem 5 cm; a existência de 2 tonalidades/colorações nas juntas, na perspetiva de quem usou a mesma cor, representa má execução, sendo a mais escura a mais antiga, afirmando quanto às respostas aos quesitos 74 e 75 que, em alguns locais, de forma residual estavam mal executadas (era a causa das humidades nas frações que visitaram), mas a solução de tratamento das juntas, não resolve pois não é durável; quanto à fissuração das partes suspensas em consola referiram que estas são mais suscetíveis de abrir com deslocações e movimentos, tendo o defeito a ver com o modo como o edifício foi projetado; afirmaram que em empenas a que não tiveram acesso pelo interior existem manifestações de humidade correspondentes a cobertura e fachada; referiram que a solução mais económica seria o capoto mas implicava alteração do projeto e diminuição do valor das frações (valem mais quando o prédio está revestido a cerâmico) pois a substituição do cerâmico corresponde ao dobro do custo (20 anos de garantia, argamassas de cola, peso da peça cerâmica).
O relatório pericial e os esclarecimentos sustentaram a fixação dos pontos 27) a 43), 49), 52), 53), 55) a 61), 65), 66), 70) e 71) da fundamentação de facto e alíneas e) a g), n), o) e w) (quanto à fração “AD”) dos factos não provados”.
E note-se que valor da prova pericial civil não vincula o critério do julgador, que tem a faculdade de apreciar livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização, e fixa a matéria de facto em sintonia com a sua prudente convicção firmada acerca de cada facto controvertido – artigo 389.º do Código Civil e 607.º, n.º 5 do Código de Processo Civil.
Assim, a convicção do julgador sobre os factos forma-se, livremente, com base nos elementos de prova, globalmente, considerados, sem vinculação estrita às conclusões dos exames periciais.
Temos, também por relevante o depoimento prestado por GG, proprietário da fracção “AC”, correspondente ao 4.º andar da entrada ... (Bloco ...), último piso, coberta por terraço inacessível e por uma estrutura ligada ao corpo do edifício com altura de 3,5 mts, que comprou em Maio/Julho de 2008 e passou a habitar em Agosto de 2010 e JJ, proprietário da fracção correspondente ao 4.º esquerdo da entrada ... (Bloco ...) - fracção AD - que adquiriu ao construtor para segunda habitação e fez parte da comissão de acompanhamento das obras, sendo que o citado dos referidos depoimentos pelo Tribunal recorrido encontra-se em sintonia com a prova produzida e daí a sua relevância, dada a objectividade e coerência dos depoimentos, designadamente para a fixação como provada da factualidade que consta do ponto 44.
Afigura-se-nos, assim, que não merecem alteração as respostas dadas aos referidos pontos da matéria de facto, sendo certo que a análise critica da prova realizada pelo Tribunal a quo, além de manifestamente exaustiva, encontra-se em sintonia com a ampla prova produzida e com as regras da lógica e da experiência comum, pelo que a acompanhamos.
Por sua vez, a matéria fáctica que a Apelante pretende ver incluída nos factos provados, além de não provada, não se encontra, sequer, por si alegada, como se impunha, em sede de articulados apresentados, pelo que também soçobra o pretenso aditamento.
Em face do exposto, não merece reparo a fixação da matéria de facto realizada pelo Tribunal a quo, improcedendo as impugnações de facto de ambas as partes.
*
4.3 Do Mérito da Decisão
4.3.1 Do recurso da Apelante/Autora
A apelante/Autora clama pela alteração da sentença de que recorre.
Conforme atrás referimos, a Apelante/Autora pugna que seja dada como não provada a factualidade constante do ponto 67 dos factos provados, bem como sejam dados como provados os seguintes factos:
“ag) os trabalhos a realizar para reparação das infiltrações dadas como provadas são os seguintes:
(...)
- tratamento das coberturas inclinadas com revestimento de telha cerâmica, sendo que os pontos singulares do contorno e o princípio de drenagem de águas pluviais são os aspectos que merecem maior preocupação;
- tratamento das fachadas onde existem infiltrações, que deverão ser intervencionadas por painéis;”
Defende, ainda, que, em defluência da referida alteração da matéria de facto deveria a Ré ser condenada a executar todos os trabalhos necessários, sem excepção, para reparação de todas as identificadas patologias nas fachadas e coberturas inclinadas referentes aos factos que pretendia aditar aos factos provados.
Assim, sustenta, tal pretensão na alteração da decisão sobre a matéria de facto que, pela via recursiva, reclama.
Mantendo-se inalterada a decisão relativa à matéria de facto, afigura-se-nos que, à luz da mesma, se deve manter a decisão proferida pelo Tribunal a quo referente aos itens em causa, o que implica o não provimento do recurso de apelação da Autora.
4.3.2 Do recurso da apelante/Ré
A Apelante/Ré defende, desde logo, a verificação da excepção de caducidade.
Deste entendimento, dissente a Autora.
Vejamos, então.
Como é sabido, perante o cumprimento defeituoso compete ao dono da obra ou por aquele que comprou o imóvel denunciar os defeitos, sob pena de caducidade, sendo que, relativamente aos imóveis destinados a longa duração, relevam os defeitos que ocorram no decurso de cinco anos a contar da entrega da obra ou no decurso do prazo de garantia convencionado, devendo a denúncia ser feita, em qualquer dos casos, dentro do prazo de um ano após o conhecimento do defeito e a indemnização ser pedida no ano seguinte à denúncia (artigo 1225.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil).
O referido prazo é um prazo de caducidade, de natureza substantiva, sendo contínuo e efectuando-se a contagem de harmonia com o disposto nos artigos 296.º e 279.º do Código Civil, sendo que o instituto da caducidade visa satisfazer a necessidade social de segurança jurídica e certeza dos direitos e é esse aspecto objectivo da certeza e segurança que explica que a caducidade seja apreciada oficiosamente
[9]
.
Ora, o prazo de caducidade, por princípio, não se suspende nem se interrompe, começando a correr no momento em que o direito puder legalmente ser exercido (artigos 328.º e 329.º do Código Civil), sendo que a caducidade pode ser impedida, nos termos do disposto no artigo 331.º, n.º 2, quando, tratando-se de prazo fixado por contrato ou disposição legal relativa a direito disponível, haja um “(...) reconhecimento do direito por parte daquele contra quem deva ser exercido”.
Importa que esse reconhecimento “seja tal que tenha o mesmo efeito que teria a prática do acto sujeito a caducidade”, devendo o reconhecimento impeditivo da caducidade ter o mesmo efeito de tornar certa a situação, “fazendo as vezes da sentença pela qual o direito foi reconhecido
[10]
”.
Ora, podem ocorrer dois tipos de reconhecimento pelo empreiteiro da existência de defeitos na obra: um, que é o mais vulgar e que se analisa num mero «acto demonstrativo da percepção dos defeitos da obra», e outro, muito menos vulgar, que é o da «assunção da responsabilidade pela verificação desses defeitos»
[11]
.
A um e outro desses reconhecimentos há que atribuir efeitos diferentes.
É ao primeiro que o legislador se refere no artigo 1220.º, n.º 2 do Código Civil fazendo-o equivaler à denúncia dos defeitos.
A respeito deste reconhecimento diz Cura Mariano
[12]
, «que pode ser tácito ou expresso, pode ser feito perante o dono da obra ou perante terceiro (…) apenas liberta o dono da obra de efectuar a denúncia dos defeitos, mantendo-se a obrigatoriedade do exercício dos respectivos direitos dentro dos prazos referidos nos arts 1224º e 1225º CC».
Ao segundo, que é o da «assunção da responsabilidade pela verificação desses defeitos», há que atribuir efeitos muito mais extensos, pois que este, quando feito de forma inequívoca pelo empreiteiro - e ainda que este não pratique os actos equivalentes à realização do direito, por exemplo, eliminando os defeitos ou entregando obra nova - não apenas liberta o dono da obra de proceder à denúncia dos defeitos - quando, porventura, o não houvesse ainda feito - como o liberta do respeito pelo prazo de propositura da acção para fazer valer os seus direitos.
A ressalva é de Cura Mariano
[13]
, que se exprime, concretamente, deste modo: «Se é este (o empreiteiro) quem, de forma inequívoca, reconhece a existência do direito no decurso do prazo de caducidade, mesmo que não pratique os actos equivalentes à sua realização (vg. eliminação dos defeitos, entrega de obra nova), não há razão nenhuma para manter a protecção a uma situação de incerteza que já não se verifica pelo reconhecimento efectuado».
Este reconhecimento «não determina a contagem de novo prazo de caducidade, passando o exercício desse direito a estar sujeito apenas ao prazo de prescrição ordinário»
[14]
.
Ademais, compete ao dono da obra provar que efectuou a denúncia dos defeitos da coisa comprada nos termos do artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil, sendo do empreiteiro o ónus da prova do decurso do prazo da denúncia (artigo 343.º, n.º 2, do Código Civil).
Relativamente aos referidos prazos, importa, ainda, considerar o enquadramento jurídico dado pelo Decreto-Lei nº 67/2003, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 84/2008, de 21 de Maio, que se aplica, com as necessárias adaptações, ao contrato de empreitada ou de outra prestação de serviços referente a bens de consumo, designadamente, imóvel, quando fornecidos por um profissional, ou seja, pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios, a pessoa que os destine a uso não profissional.
A este propósito, os artigos 3º, 5º e 5º-A do referido diploma estabelecem o prazo de cinco anos, respectivamente, para a manifestação do defeito e para a presunção da sua existência à data da entrega do imóvel, para o exercício dos direitos de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato e para que se opere a caducidade, prevendo a última norma o prazo de um ano para a denúncia após a deteção e de três anos para o exercício dos direitos, tendo como limite máximo, no entanto, o referido prazo de caducidade.
Ora, a natureza do Condomínio como consumidor depende do tipo de utilização a que se destinam as fracções que compõem o edifício a que o Condomínio respeita.
Assim, no caso em apreço, tendo as fracções maioritariamente um destino habitacional, então o condomínio deve ser qualificado como consumidor (ut artigo 2º, nº 1 da Lei nº 24/96, de 31.06).
Além disso, resultou demonstrado que, concluída a execução da obra em Maio de 2011, a Ré/Apelante, no período de 2012/2013, levou a cabo reparações nas juntas das fachadas dos blocos ..., ..., ... e ..., de onde se extrai que lhe foram denunciadas patologias.
Aliás, na inspecção judicial realizada, a 17 de Março de 2011, no processo nº 158/2001-D, ou seja, enquanto as obras estavam em curso, verificavam-se infiltrações nos 2º andar do Bloco ..., 3º andar do Bloco ..., 3º andar direito do Bloco ... e 3º andares esquerdo e direito do Bloco ..., em que reconheceu ser devida assistência.
Destarte, tendo por referência os prazos atrás citados, o reconhecimento ocorrido dos defeitos e dado que a acção foi instaurada em 9 de Dezembro de 2015, afigura-se-nos que a mesma foi instaurada tempestivamente, o que acarreta a improcedência da referida argumentação.
*
Refere, ainda, a Ré/Apelante que o Tribunal
a quo
não extraiu as devidas consequências da transacção outorgada, em 29/06/2020, entre A. e 1ª a 6ª RR, homologada por sentença.
Adiantamos, desde já, que a situação vertida no acórdão citado pela Apelante nas suas alegações é distinta da situação em apreço, o que constitui facto impeditivo para a extensão da jurisprudência contida no referido acórdão ao caso vertente.
De resto, a transacção outorgada a 29/06/2020 e homologada por sentença em 01/07/2020, em matéria de direitos disponíveis, apenas tem efeitos no âmbito da mesma, quanto ao objecto e às partes envolvidas.
Na realidade, tratando-se de matéria de direitos disponíveis nada impede que o âmbito da transacção não seja extensivo a todo o objecto da acção, nem a todas as partes, como bem decidiu o Tribunal a quo, extraindo, ao contrário do sustentado pela Apelante, as consequências devidas, como consta da citação realizada da referida decisão aquando da apreciação da nulidade invocada por omissão de pronúncia.
*
Defende, ainda, a Ré/Apelante que não lhe pode ser imputada qualquer responsabilidade nos defeitos/patologias cujo reconhecimento e reparação lhe é pedido, pugnando, por isso, pela absolvição da totalidade do pedido.
Alega que o Tribunal a quo condenou-o na reparação de danos provenientes de infiltrações e humidades nas fracções que provinham da cobertura, não contempladas no contrato, quer em defeitos nas fachadas, quando, na verdade, a Ré não foi responsabilizada (nem pode ser) pela errada opção da A. ao não seguir o parecer do Eng. II, por razões económicas.
Dispõe, quanto ao contrato de empreitada, o artigo 1207.º do Código Civil que “Empreitada é o contrato pelo qual uma das partes se obriga em relação à outra a realizar certa obra, mediante um preço”.
Assim, o contrato de empreitada, enquanto modalidade autónoma de prestação de serviço, pressupõe a vinculação do empreiteiro a realizar certa obra, a obter um resultado, mediante o pagamento de um preço.
São, assim, elementos essenciais do contrato de empreitada os seguintes
[15]
:
a. O acordo sobre a realização de certa obra;
b. Mediante um preço, ainda que apenas determinável; e,
c. Com autonomia do executante da obra em relação ao dono desta.
O referido contrato é oneroso e sinalagmático, pois pressupõe o pagamento de um preço (pelos trabalhos realizados, pelos materiais da obra, ou por ambos) e existem obrigações recíprocas de ambas as partes do contrato, do dono da obra e do empreiteiro.
Sobre o dono da obra impendem os deveres de pagamento do preço, a efectuar, na falta de convenção ou uso em contrário, no acto de aceitação da obra (artigo 1211.º, n.º 2), colaboração necessária para que o empreiteiro possa executar a obra a que se obrigou e aceitação da obra no termo da sua conclusão.
E sobre o empreiteiro os deveres de realização da obra, em conformidade com o convencionado e sem vícios (artigo 1207.º), fornecimento de materiais e utensílios (artigo 1212.º).
Conforme dispõe o artigo 406.º, n.º 1 do Código Civil, os contratos devem ser pontualmente cumpridos, sendo que o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado (artigo 762.º, n.º 1).
No âmbito das modalidades de inexecução da obrigação conta-se a execução defeituosa, na lei designada por cumprimento defeituoso (artigo 799.º, n.º 1).
Com efeito, “na empreitada, o cumprimento ter-se-á por defeituoso quando a obra tenha sido realizada com deformidades ou com vícios. As deformidades são as discordâncias relativamente ao plano convencionado (…). Os vícios são as imperfeições que excluem ou reduzem o valor da obra ou a sua aptidão para o uso ordinário ou o previsto no contrato (…)
[16]
”.
No caso vertente, está em causa o contrato de empreitada outorgado, em 17 de Agosto de 2009, entre o Autor e a sétima Ré.
A celebração deste negócio jurídico surgiu pela circunstância de a transacção celebrada com os restantes Réus no processo nº 158/2001 ter delimitado a responsabilidade destes pelas infiltrações que tinham por fonte patologias situadas nos terraços acessíveis, não acessíveis, chaminés, claraboias e floreiras, sendo certo, ainda, que existiam infiltrações provenientes das fachadas.
Assim, perante o referido facto, os primeiros sujeitos acordaram na realização dos seguintes trabalhos:
a) ventilação/drenagem da caixa de ar entre panos de parede dupla, mediante a aplicação de tubos de aço inox 316 de 15 mm de diâmetro de 2 em 2 metros de fachada, ao nível das lajes entre pisos, todos alinhados entre si verticalmente e horizontalmente;
b) reabilitação da ligação caixilharia - parede da fachada e soleiras, através da remoção do mástique existente e aplicação de novo produto;
c) tratamento de fissuras existentes nas fachadas com espessura superior a 0,3 mm;
d) remoção do material (argamassa/mástique) existente nas juntas entre cerâmicas e colocação de novo produto;
e) remoção de soleiras e peitoris de portas e janelas, para remoção de produtos prejudiciais à aderência à base, impermeabilização desta e subsequente fornecimento e aplicação novas soleiras/peitoris em vidraço Ataija, com exclusão das portas de entrada ao nível do rés-do-chão;
f) limpeza, escovagem e aspiração das juntas de dilatação estruturais com subsequente aplicação de polietileno expandido;
g) raspagem da tinta desagregada dos tetos das varandas, aplicação de primário no reboco e posterior pintura;
h) substituição de abraçadeiras dos tubos de queda por acessórios em inox, com substituição de tubos e capiteis desagregados e pintura;
i) retirada da pedra natural de capeamento das floreiras do rés-do-chão, substituindo-a por material cerâmico;
j) impermeabilização das floreiras maiores, mediante remoção da terra e do revestimento, regularização das paredes interiores, fornecimento e aplicação de telas, argila expandida envolta em geotêxtil, reposição da terra; correção de pendentes para as saídas de águas, abertura de roços na zona envolvente das floreiras e refechamento com cerâmica até meia altura da floreira, fornecimento e aplicação de saída de água em zinco puro;
k) retirada da pedra natural do parapeito das varandas onde se situam as floreiras mais pequenas, impermeabilização, assentamento de nova pedra natural com aplicação de produto hidrófugo;
l) remoção das telhas dos 8 telhados inclinado, limpeza e tratamento dos caleiros de água, aplicação de telas para impermeabilização e fornecimento de novas telhas sobre ripado em cimento;
m) tratamento dos pilares em betão exteriores do rés-do-chão com picagem da superfície para remoção das camadas de recobrimento desgregadas, decapagem das armaduras para remoção de todos os vestígios de gordura, óleo, ferrugem ou calamina, aplicação de proteção anticorrosiva das armaduras, e reparação de peças de betão armado degradado, por aplicação de argamassa preparada tixotrópica, com posterior pintura;
n) substituição dos chapins dos muretes dos terraços após limpeza de substâncias prejudiciais à aderência à base, impermeabilização desta, fornecimento e aplicação de novos chapins em vidraço Ataija.
No parecer elaborado pela sociedade C..., Ld.ª, mencionado no texto da transacção, mormente com adesão à solução preconizada quanto aos terraços acessíveis, previa-se que o tratamento das fachadas fosse o seguinte:
a) demolição integral do revestimento cerâmico;
b) travamento dos cunhais situados sobre elementos em consola com tirantes passivos de cimento armado;
c) análise integral do reboco das fachadas por percussão, demolindo as partes que soem a oco;
d) enchimento das áreas demolidas com argamassa tixotrópica com resinas sintéticas para regularização da superfície;
e) abertura de orifícios de ventilação/drenagem do espaço de ar das paredes da fachada, com tubos em inox de diâmetro interior de 20 mm espaçados de 2 em 2 metros, com a extremidade interior o mais possível ao nível da base e a exterior voltada para baixo e afastada em 20 mm do paramento da fachada, com o contorno selado com mástique;
f) tratamento das fissuras de espessura igual ou superior a 0,5 mm, através do seu alargamento, picagem ligeira do reboco e enchimento, seguido de aplicação de reboco armado à base de argamassa com polímeros com espessura de 3 a 5 mm, após limpeza do suporte, aplicação de primário de ligantes sintéticos, seguida da primeira camada de revestimento curativo de 2 mm, rede de fibra de vidro, com sobreposição de armaduras a uma distância de 20 cm do canto e reforço dos vãos, segundo camada de revestimento curativo e acabamento final com ladrilhos cerâmicos;
g) tratamento das juntas de dilatação estruturais com prévia limpeza, escovagem e aspiração do pó, aplicação de um cordão de espuma de polietileno expandido, seguido de preenchimento de mástique à base de polietileno e colocação de cobre-juntas em inox ou alumínio;
h) acabamento com ladrilhos cerâmicos.
Além disso, recomendava o tratamento:
a) do contorno dos vãos exteriores com mástique, com substituição/impermeabilização das soleiras, sugerindo a substituição das ferragens e das próprias caixilharias;
b) das guardas das varandas com a aplicação de novo revestimento cerâmico e preenchimento das juntas, seguidos de decapagem e nova pintura dos tetos;
c) das floreiras.
É certo, como bem sustenta o Tribunal a quo, que a solução proposta pela sétima Ré não contemplou as soluções identificadas nas alíneas a) a d) e h) do penúltimo parágrafo, nem a aplicação de reboco armado no tratamento das fissuras e acabamento final em ladrilhos cerâmicos, nem a colocação de cobre-juntas em inox ou alumínio como acabamento final do tratamento das juntas de dilatação estruturais.
Ora, sabemos que o contrato de empreitada cria uma obrigação de resultado para o empreiteiro, pois assim o indica o artigo 1207º do Código Civil quando alude à obrigação de realizar uma certa obra
[17]
.
O artigo 1208º do Código Civil estatui que “o empreiteiro deve executar a obra em conformidade com o que foi convencionado, e sem vícios que excluam ou reduzam o valor dela, ou a sua aptidão para o uso ordinário ou previsto no contrato”.
Em anotação a esta norma, os Professores Pires de Lima e Antunes Varela
[18]
, citados na decisão recorrida, afirmam que a mesma “na sua segunda parte, aplica o princípio do nº 2 do artigo 762º, segundo o qual o devedor, no cumprimento da obrigação, deve proceder de boa fé, e, portanto, segundo as regras da arte «que respeitem não só à segurança, à estabilidade e à utilidade da obra, mas também à forma e aspecto estético, nos casos e nos limites em que estes últimos factores são de considerar” e, fazendo notar que a finalidade da obra é um dos factores que mais influem na definição dos deveres do empreiteiro, concretizam que este “não fica necessariamente isento de responsabilidade pelo facto de ter executado fielmente o projecto da obra ou respeitado o caderno de encargos”, pois “como perito que é ou será muitas vezes, ao empreiteiro incumbe, nos termos genéricos do artigo 762º, nº 2, avisar o dono da obra dos defeitos que note no projecto ou no caderno de encargos, quer antes de iniciada a obra, quer durante a execução dela” (…) e “pode mesmo, independentemente da culpa
dos autores do projecto, responder pelos defeitos que não descubra, mas que lhe incumbisse descobrir e apontar, nos termos rigorosos em que a nossa lei aceita a culpa do devedor”.
Também o Professor Pedro Romano Martinez
[19]
, no âmbito dos deveres laterais, derivados da boa fé, salienta que o contrato de empreitada pressupõe, muitas vezes, a existência de uma relação de confiança, por força da qual podem emergir deveres de esclarecimento e de conselho, os quais “variam substancialmente em função das circunstâncias, advêm do facto de o empreiteiro, sendo um técnico na matéria, conhecer as consequências e a melhor forma de obter o resultado pretendido”.
No caso vertente, como bem salienta o Tribunal recorrido, o Autor estava na posse de um parecer que lhe dava indicação sobre a metodologia a seguir no que diz respeito à impermeabilização das fachadas, tendo chegado a acordo com a Ré quanto ao tipo de intervenção que veio a ser contemplada no orçamento, como alternativa mais económica.
Ora, como, ainda, bem se refere na decisão recorrida, se é certo que se demonstrou que a solução adjudicada e implementada é mais cara do que a opção por capoto/ETICS (“External Thermal Insulation Composite System”), o qual é mais eficaz por permitir um isolamento sem interrupções na zona de estrutura, tornando-as impermeáveis à água, mas permitindo a passagem de vapor e a saída da humidade acumulada no interior, com diminuição dos consumos energéticos para aquecimento e arrefecimento dos espaços habitados, também é certo que existe um óbice a avaliar na medida em que implica manutenção, bem como a desvalorização das fracções do edifício quando este seja revestido em material cerâmico - substituição deste material por capoto.
Importa, ainda, notar que, além de estar munido do parecer, a transacção celebrada no processo nº 158/2001 contemplou a designação de um técnico pelo Autor com vista à fiscalização das obras e tomada de posição quanto à execução dos trabalhos com vista ao respectivo pagamento, assim como competência para assinatura do auto de recepção da obra.
Assim, apesar de ter ficado provado que a existência de infiltrações ficou a dever-se, em parte, a má escolha da solução construtiva, na medida em que para as debelar deveriam ter sido seguidas as soluções propostas no parecer, porém, atento o conteúdo do contrato celebrado e as aludidas circunstâncias, não podemos, todavia, deixar de responsabilizar a Ré/Apelante pela realização das obras que deveria ter efectuado sem vícios.
A expressão “defeitos da obra” utilizada no artigo 1208º do Código Civil “contempla um significado amplo, onde se mostram incluídos tudo o que se mostra executado em condições diferentes do convencionado sejam eles vícios ou deficiências que respeitem à aptidão e/ou funcionalidade para uso ordinário, sejam eles diferenças que assentem na aplicação de materiais ou design não conformes aos previstos, ou ainda erros ou omissões não justificáveis face ao contrato ou à legis artis
[20]
”
Reportando-nos ao caso vertente, apurou-se que a Ré/Apelante não removeu integralmente o material existente nas juntas do revestimento cerâmico, operação que fazia parte do acordado no ponto 6.1. do contrato de empreitada.
Com efeito, neste previa-se o seguinte:
- remoção de “argamassa na junta entre cerâmicas e de mastique das juntas entre cerâmicas,
- aplicação de nova tomação de juntas com argamassa colorida para juntas exteriores Weber.colorflex da Weber, prevendo a existência de juntas de fracionamento entre cerâmicas, área max. 30 m2 e distância máxima 6 m, sendo preenchidas com mástique Sikaflex HP! Da Sika (largura da junta cerca de 10 mm;
- antes da aplicação do mástique, 2 demãos de hidro-repelente Hydrofuge HS, da LABO, nas juntas já tomadas;
Assim, verificando-se que a primeira operação não foi completamente realizada, ocorreu a má execução das juntas entre os ladrilhos cerâmicos, pelo que estamos perante um incumprimento contratual da parte da Ré/Apelante.
Por sua vez, nas fracções AB - 3º andar do Bloco ..., AD - 4º andar do Bloco ..., AC - 4º andar do Bloco ..., BC, BD - 3º andar, respectivamente, esquerdo e direito do Bloco ..., AZ e AX - 2º andar, respectivamente, esquerdo e direito do Bloco ... verificou-se:
i) degradação da pintura do teto de varandas na zona adjacente à interceção com um tubo de queda de águas pluviais;
ii) acumulação de carbonato de cálcio sobre os ladrilhos cerâmicos e nas juntas do revestimento das fachadas e das guardas das varandas;
iii) degradação do material de preenchimento existente na junta de ligação entre os ladrilhos cerâmicos das fachadas e o revestimento do pavimento de varandas;
iv) degradação do material de preenchimento das juntas entre as caixilharias dos vãos envidraçados exteriores e a fachada;
v) degradação dos peitoris dos vãos envidraçados exteriores.
Ora, os pontos 2, 4, 5, 6, 7 e 9 do orçamento que integra o contrato celebrado entre Autor e Ré contemplam trabalhos de limpeza dos ladrilhos cerâmicos das fachadas, tratamento de fissuras neles existentes, extracção do material das juntas entre os ladrilhos e nas ligações entre caixilharia e fachada e soleiras e aplicação de novo material, remoção, limpeza e impermeabilização de peitoris e soleiras de portas e janelas, raspagem e pintura dos tetos das varandas, impermeabilização e tratamento dos 8 telhados inclinados em telha.
Resultou igualmente provado que existem outras patologias em algumas das aludidas fracções:
i) as fracções “AB”, “AD”, “AZ” apresentam degradação nos tetos, paredes, pavimentos, rodapés e guarnições provenientes da presença de um elevado grau de humidade;
ii) nas frações “AD” e “BD” ocorrem manchas e degradação do revestimento de paredes e tetos relacionados com infiltrações provenientes do interior dos corpos emergentes com cobertura inclinada de telha cerâmica;
iii) nas frações “AD”, “AC” e “BD” ocorrem manchas e degradação do revestimento interior na base das paredes adjacentes a varandas ou terraços e/ou junto aos vãos envidraçados exteriores que lhes dão acesso;
iv) as frações “AC”, “AB” e “BD” existem manchas e/ou degradação do revestimento interior de paredes sob vãos envidraçados exteriores;
v) na fração “AD” verificam-se manchas e degradação das guarnições de madeira das ombreiras de vãos envidraçados exteriores;
vi) na fração “AC” ocorrem manchas no pavimento e na caixilharia do vão envidraçado exterior da lavandaria
vi) nas frações “AB”, “AD”, “AC”, “BC”, “BD”, “AZ” e “AX” existem manchas de bolores em tetos e paredes exteriores orientadas a norte;
vii) na fração “AD” existem gotas de água e manchas nos tetos e nas paredes dos corpos emergentes dos terraços acessíveis cuja cobertura é inclinada com revestimento de telha cerâmica.
Assim, em face dos descritos trabalhos objecto do contrato também se nos afigura, em sintonia com o Tribunal a quo, existir nexo de causalidade com as patologias identificadas em ii), iv), v), vi), vii), bem como as referentes a paredes, pavimentos, rodapés e guarnições em i), a manchas e degradação do revestimento interior junto aos vãos envidraçados em iii) e a manchas de bolores nas paredes orientadas a norte.
Ora, o cumprimento defeituoso da obrigação (artigo 799.º, n.º 1) constitui uma forma de falta de cumprimento obrigacional, presumindo-se o cumprimento defeituoso do empreiteiro.
Assim, uma vez que ao empreiteiro cabe a prova dos factos impeditivos da sua responsabilidade (art.º 342.º, n.º 2), incumbe-lhe demonstrar que o aparecimento do defeito se ficou a dever a culpa do lesado, o que não sucede no caso vertente
[21]
.
A Ré/Apelante incorreu, assim, na obrigação de eliminar as causas das patologias descritas na sentença recorrida que, nesta parte, também, não merece reparo.
De resto, nada resulta dos autos que nos leve a concluir que as reparações dos danos em causa estivessem contempladas na transacção a que atrás nos referimos, nem que os danos emergissem de errada opção da A., que não é o empreiteiro e executante material da obra.
Provou-se, igualmente, que, durante a execução da obra de impermeabilização da fachada, devido ao uso de ácidos, alguns vidros dos vãos das fracções, designadamente da “AC” do Bloco ... e “AD” do Bloco ..., ficaram descolorados, o que corresponde a um dano com origem num facto ilícito, porque violador do direito de propriedade, gerado por negligência.
Com efeito, a tarefa da Ré/Apelante consistia em realização de uma série de tarefas destinadas à recuperação do edifício, debelando problemas que o afectavam.
Ora, o uso de ácidos implica especiais cuidados na respectiva aplicação para não causar danos e, naturalmente, mão de obra especializada, pelo que a queda e danificação dos vidros evidencia a falta de perícia e inerente responsabilidade da Ré, designadamente, ao abrigo dos pressupostos da responsabilidade civil aquiliana.
Demonstrada a existência dos defeitos identificados nos pontos 27) f), g), h), j) e k), 29) quanto à degradação nos tectos, paredes, pavimentos, rodapés e guarnições, 33), 36) quanto às manchas e degradação do revestimento interior junto aos vãos envidraçados exteriores que dão acesso às fracções, 38), 40), 41), 42) quanto às manchas de bolores em paredes exteriores orientadas a norte, 43) e 44) todos da fundamentação de facto, existentes no Empreendimento ... – Lote ... impõe-se que a Ré/Apelante proceda à sua reparação.
Afigura-se-nos, assim, que também, nesta parte, não merece reparo a sentença em crise.
Impõe-se, por isso, o não provimento do recurso de apelação da Ré/Apelante.
*
Sumariando, em jeito de síntese conclusiva:
………………………………
………………………………
………………………………
*
5. Decisão
Nos termos supra expostos, acordamos neste Tribunal da Relação do Porto, em julgar não provido o recurso de apelação da ré, bem como não provido o recurso de apelação da autora, confirmando a decisão recorrida.
*
Custas de cada um dos recursos a cargo dos respectivos apelantes.
*
Notifique.
Porto, 10 de Abril de 2025
Paulo Dias da Silva
Judite Pires
Carlos Cunha Rodrigues Carvalho
(a presente peça processual foi produzida com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas e por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem)
_______________
[1]
Cf. J. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume V, 3ª edição, Coimbra Editora, pág. 139.
[2]
Cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24.11.2015, Processo n.º 125/14.5FYLSB, relator Souto Moura, acessível em www.dgsi.pt.
[3]
Cf., neste sentido, Antunes Varela, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2ª edição, pág. 687.
[4]
Cf. Ob. citada, Vol. V, pág. 140.
[5]
Cf. Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, Coimbra Editora, 2001, pág. 609 e Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Código de Processo Civil, Lex, 1997, págs. 221-222.
[6]
Cf. Ob. cit., pág. 151.
[7]
Cf. Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, 4ª edição, pág. 283.
[8]
Cf. Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, Almedina, págs. 224 e 225.
[9]
Cf. Prof. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição, pág. 376.
[10]
Cf., neste sentido, Vaz Serra, in Prescrição Extintiva e Caducidade, n.º 107, pág. 232.
[11]
Cf. Cura Mariano, Responsabilidade Contratual do Empreiteiro pelos Defeitos da Obra, 4ª edição, pág. 92
[12]
Cf. Ob. citada, pág. 92.
[13]
Cf. Obra citada, págs. 136/137.
[14]
Cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29/06/2010, in www.dgsi.pt.
[15]
Cf. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 11-03-2008, processo n.º 4/04.4TBVNO.C2, disponível in www.dgsi.pt.
[16]
Cf. Pedro Romano Martinez, Direito das Obrigações, 2.ª ed., pág. 468.
[17]
Cf. Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, vol. II, Coimbra Editora, 3ª edição, 1986, pág. 788.
[18]
Cf. Ob. citada, pág. 791.
[19]
Cf. Direito das Obrigações (Parte Especial) Contratos, Almedina, pág. 356.
[20]
Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Maio de 2008, processo n.º 08ª475, in
http://www.dgsi.pt
.
[21]
Cf. Pedro Romano Martinez, Cumprimento Defeituoso, 2001, pág. 323.
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TRP
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https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/15fba7c91a51664580258c8200333c25?OpenDocument
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1,754,265,600,000
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REVOGADA
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3416/23.0T8LRA.C1
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3416/23.0T8LRA.C1
|
HUGO MEIRELES
|
I – Se, no quadro da declaração inicial do risco num contrato de seguro, perante questionário médico que integra a proposta de adesão a um seguro de grupo, o tomador/segurado responde negativamente à pergunta se tem ou teve HIV/SIDA, quando tal doença lhe havia sido diagnosticada anos antes e desde então se encontra em seguimento em consulta de imunodeficiência, incorre este numa atuação dolosa, tendente a enganar a outra parte, quanto a uma circunstância pessoal relevante para apreciação do risco da seguradora;
II – Provando-se que se soubesse do quadro clínico que padecia a pessoa segura à data da subscrição do contrato, a seguradora não teria aceite subscrevê-lo, está verificado o fundamento de anulação do contrato previsto no art.º 25º do RJCS, o qual pode ser invocado, por via de exceção, na contestação da ação movida contra a seguradora.
(Sumário elaborado pelo Relator)
|
[
"CONTRATO DE SEGURO",
"DECLARAÇÃO INICIAL DO RISCO",
"QUESTIONÁRIO MÉDICO",
"SIDA",
"DECLARAÇÕES INEXATAS",
"ATUAÇÃO DOLOSA",
"ANULAÇÃO DO CONTRATO"
] |
Requerente/Recorrente
: A..., SA
Recorrido
: AA
Acordam os Juízes na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra
AA instaurou ação declarativa de condenação contra A..., SA, pedindo a condenação desta:
a) a pagar ao Banco 1..., SA, beneficiário do contrato de seguro, o capital em dívida à data da decisão final destes autos, relativo ao empréstimo celebrado pelo tomador de seguro, junto daquela instituição bancária;
b) a pagar à A. o remanescente do montante do capital seguro à data do falecimento do tomador do seguro (16/03/2022), descontado o montante a que se refere a alínea a);
c) a pagar à A. o montante correspondente às prestações mensais pagas ao Banco 1..., SA relativas ao empréstimo, desde a data do óbito do tomador do seguro (16/03/2022) até à data em que a R. puser à disposição do Banco o capital do seguro, montante esse a apurar em sede de incidente liquidação e que, no presente, ascende a €4.672,58;
d) a pagar a A. juros de mora desta a citação até efectivo e integral pagamento, sobre as quantias a apurar referidas em b) e c).
Alegou, para o efeito e em síntese, que a autora e BB celebraram um contrato de mútuo com o Banco 2.... Pela utilização do capital mutuado, o dito BB e a autora obrigaram-se perante o Banco 2... a contratar um seguro de vida em benefício de tal instituição bancária, segurando o risco de morte e de invalidez, pelo montante mutuado de €12.500,00. O referido BB faleceu em 16/3/2022 de causa desconhecida. Na sequência do falecimento de BB, a autora comunicou ao Banco 2... o óbito. Comunicado o óbito à ré, esta comunicou que declinava a responsabilidade porque o BB, aquando o preenchimento do questionário, não tinha comunicado factos relevantes, que a serem conhecidos poderiam ter influído na aceitação do seguro. Em consequência a autora continua, desde março de 2022 a pagar ao Banco 2... o valor das prestações do empréstimo, tendo pago, desde 5/3/2022 e até 18/9/2023, a quantia de €4,672,58.
*
Contestou a ré, alegando, em síntese, que o segurado BB, no momento da subscrição do contrato de seguro, faltou à verdade no preenchimento do questionário sobre o seu estado de saúde que lhe foi apresentado com a proposta de seguro, respondendo que “
não
” [padecia] de “
tuberculose, hepatite (B, C ou outras), meningite, malária, HIV/SIDA, sífilis
”, quando o certo é que era seropositivo para o HIV desde 2004 e desde então estava a ser acompanhado em consulta de imunodeficiência. Alega ainda que, a ter conhecimento que o segurado se encontrava infetado com HIV desde 2004, não teria aceite a proposta de seguro, o que, defende, acarreta a nulidade do referido contrato de seguro.
*
A autora, convidada para exercer contraditório, pugnou pela improcedência da exceção perentória invocada pela ré, alegando que o questionário em causa não foi preenchido pelo segurado, que se limitou a assinar no final. Invocou ainda o incumprimento do dever de informação, por não ter sido comunicado/informado ao segurado o regime do incumprimento do dever de declarar com exatidão a sua condição de saúde. Mais alegou que o segurado não atuou com dolo, uma vez que apesar de portador de doença pré-existente, tal doença se encontrava completamente controlada e permitia ao segurado fazer a sua vida com normalidade.
*
Realizada a audiência de julgamento, em 11 de outubro de 2024, foi proferida sentença que decidiu “
julgar a ação parcialmente procedente, declarar a validade do contrato de seguro, titulado pela apólice n.º ...50, outorgado por BB, como pessoa segurada e pela Ré A..., SA e em que consta como tomador do seguro o Banco 2..., SA, à data do óbito de BB, em 16 de Março de 2022 e em consequência:
I. Condenar a Ré A..., SA, a pagar à Autora, a título de direito de regresso a quantia de €5.264,68 (cinco mil duzentos e sessenta e quatro euros e sessenta e oito cêntimos), acrescidos de juros de mora, calculados à taxa legal de 4%, sobre aquela quantia, desde 24 de Abril de 2022, até integral pagamento;
II. Absolver do demais peticionado.
III. Condenar Autora e Ré em custas, na proporção e 2/3 para a Autora e 1/3 para a Ré.
*
Não se conformando com esta decisão, a ré veio interpor recurso, concluído as suas alegações nos termos que, a seguir, se transcrevem:
(…).
*
A recorrida não apresentou contra-alegações.
*
Colhidos os vistos, cumpre decidir:
*
II. Questões a decidir
Tendo em conta o objeto do recurso delimitado pela recorrente nas conclusões da sua alegação, nos termos dos artigos 635º. n.º 4 e 639º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, por ordem lógica e sem prejuízo apreciação de questões de conhecimento oficioso:
I) A impugnação da matéria de facto;
II. A anulabilidade do contrato de seguro por declarações inexatas de natureza dolosa feitas pelo segurado;
III. Se condenação da ré no pagamento juros de mora contados desde a data do óbito do segurado traduz uma condenação em quantidade superior à peticionada, tornando a sentença nula, nessa parte, nos termos dos arts. 609º/1 e 615º/1 e), in initio.
*
III. Fundamentação de facto
A sentença recorrida, considerou provados os seguintes factos:
1. A 16 de Março de 2022 faleceu, no estado de solteiro, BB;
2. Consta da escritura de habilitação de herdeiros que a Autora AA, sua irmã, é a sua única e universal herdeira, por vocação testamentária;
3. No dia 9/1/2019, BB e a Autora subscreveram escrito particular epigrafado “crédito ao consumidor” com n.º ...01, através do qual acordaram que o Banco 2... emprestaria a BB e à Autora, o montante de €12.500,00, que estes se obrigariam a devolver ao Banco 2..., através do pagamento de 60 prestações mensais e sucessivas, no valor de €246,19 e com termo no dia 5/2/2024;
4. No dia 9/1/2019, foi ainda subscrito pelo falecido BB, enquanto pessoa segura, pela Ré A..., SA, como seguradora e pelo Banco 2..., como tomador do seguro, escrito particular epigrafado: “Proposta de Seguro – Banco 2... Protecção Crédito”, a que foi atribuído a apólice n.º ...50, de acordo com o qual, na eventualidade da verificação do evento “morte” ou “invalidez absoluta e definitiva” da pessoa segura, a seguradora pagaria à tomadora do seguro o capital seguro;
5. Em anexo ao escrito identificado em 4., consta documento particular, epigrafado “Questionário Clínico”, composto por duas folhas, subscrito pelo punho de BB onde se pode ler: “Declaro que respondi completamente e com toda a veracidade às perguntas formuladas anteriormente e tomei conhecimento de que qualquer declaração incompleta ou menos verdadeira poderá ter como consequência a nulidade do seguro”;
6. No escrito descrito em 4., só se encontram disponíveis para preencher: os campos com o valor da tensão arterial, o peso e a altura do segurado, a opção pela selecção, em cada campo, num total de 24 questões, de resposta de “não” ou “sim”, a data e local para aposição de assinatura de cada um dos outorgantes, encontrando-se escrito na questão 14.8, “se sofre ou já sofreu de”: “tuberculose, hepatite (B, C, ou outras), meningite, malária, HIV/SIDA, sífilis”;
7. O “Questionário Clínico” descrito em 5. foi integralmente lido por CC, empregada bancária no Banco 2..., que preencheu o questionário conforme as respostas de BB, que respondeu que não a todas as perguntas do questionário e explicou a BB que caso faltasse à verdade, o contrato de seguro poderia ser anulado, após o que BB rubricou com o seu punho a 1.ª folha e assinou a 2.ª e última folha;
8. No dia 16 de Março de 2022, BB faleceu no Hospital ... - ...;
9. Consta de escrito epigrafado “certificado de óbito”, com o n.º ...11, subscrito por DD, médica com a cédula n.º ...60, que não era médica assistente de BB nos seis dias que antecederam a morte e com fundamento em “informação clínica”, que BB, faleceu às 10h15, do dia 16/3/2022, de óbito “natural/causa desconhecida”;
10. A Autora efectuou a participação do sinistro por morte ao Banco 2..., que por sua vez o comunicou à Ré em 24 de Março de 2022;
11. No dia 11 de Maio de 2022, a Ré comunicou ao Banco 2... que a declinava a responsabilidade, com fundamento em “aquando do preenchimento do questionário sobre o estado de saúde, documento que serviu de base à emissão de apólice, não foram referidos factos relevantes, os quais, a serem do nosso conhecimento poderiam ter influído decisivamente para a aceitação do seguro.”;
12. O segurado BB era seropositivo para o VIH1, com seguimento desde 2004, em consulta de imunodeficiência do CHUC;
13. Por declaração médica subscrita pelo médico EE, com n.º de cédula ...30, do CHUC – Infecciosas imunodeficiência, em 20/6/2024, pode-se ler as seguintes conclusões: “À data do diagnóstico encontrava-se em estádio A1 dos CDC” [assintomático, com valores de linfócitos CD4 de valor igual ou superior a 500 cel/mm3];
“Realizou terapêutica antirretroviral com DOLULEGRAVIR 50MG + Abacavir 600mg + Lamivudina 300mg, com muito boa adesão à terapêutica com excelente resposta imunológica e virológica”;
“Apresenta cargas virais de VIH1 persistentemente indetectáveis e contagem de linfócitos CD4 persistentemente superiores a 500 cel/mm3”;
“Tratava-se por de utente portador de infecção pelo VIH1 com situação clínica estabilizada, cumpridor da terapêutica, frequentador assíduo das consultas e com óptimo status imunológico e virológico.”
14. Se, momento da adesão, a patologia descrita em 12. fosse conhecida pela Ré, esta não teria aceite a proposta de seguro;
15. No que respeita ao contrato de mútuo n.º ...01, o montante em dívida em 16/3/2022 era de €5.264,68, tendo sido pago desde aquela data até 12/3/2024 o valor de €5.264,68;
16. A concessão do crédito descrito em 3., encontrava-se dependente da celebração de seguro de vida, com coberturas obrigatórias do risco morte e invalidez absoluta e definitiva, com opção de contratar a “Banco 2... Protecção Crédito” ou outra seguradora;
*
E considerou não provados os seguintes factos:
a) Que apesar do óbito de BB, desde 5/3/2022 e até 18/9/2023 a Autora pagou ao Banco 2... o montante no valor de €4.672,58;
b) Que BB tenha sido informado ou tido conhecimento do teor do clausulado do contrato de seguro a que respeita o questionário preenchido, descrito em 5., 6., 7.
*
IV. Fundamentação de Direito
a) impugnação da matéria de facto
Insurge-se a recorrente contra a decisão proferida nos autos, intentando a reapreciação da matéria de facto provada sob os pontos 4 e o facto não provado sob a al. b).
Impõe-se, assim, antes de mais, uma breve consideração sobre os requisitos de admissibilidade do recurso quanto à reapreciação da matéria de facto pelo tribunal “ad quem”, previstos no artº 640º, nº 1, do Código de Processo Civil, o qual dispõe que:
«Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.»
No que toca à especificação dos meios probatórios, «
Quando os meios probatórios como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente,
sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”»
(art.º 640º, nº 2, al. a) do Código de Processo Civil).
No que respeita à observância dos requisitos constantes deste preceito legal, após posições divergentes na nossa jurisprudência, o Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a pronunciar-se no sentido de que
“(…) enquanto a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória.”
[1]
Assim, o que verdadeiramente importa ao exercício do ónus de impugnação em sede de matéria de facto é que as alegações, na sua globalidade, e as conclusões, contenham todos os requisitos que constam do art.º 640º do Código de Processo Civil.
A saber:
- A concretização dos pontos de facto incorretamente julgados;
- A especificação dos meios probatórios que no entender do Recorrente imponham uma solução diversa;
- E a decisão alternativa que é pretendida.
Nestes termos deste preceito resultam dois ónus principais e um secundário, consistente os primeiros na indicação concreta da matéria de facto impugnada, dos meios de prova que sustentam decisão diversa e da decisão que deveria ter sido tomada; o segundo,
“na indicação exacta das passagens relevantes dos depoimentos gravados – art. 640.º, n.º 2, al. a), do CPC”
[2]
.
Descendo ao caso vertente, dir-se-á, relativamente à impugnação do facto provado com o n.º 4, ser evidente que o recurso cumpre os supra mencionados ónus, indicando não só o mencionado ponto da matéria de facto impugnado, como também a redação que, em alternativa, lhe deverá ser dada, mencionando ainda o concreto meio de prova que impõe a alteração que a recorrente preconiza, pelo que nada impede a sua apreciação.
Vejamos, então.
No identificado ponto 4 dos factos provados escreveu-se que o Banco 2... é o tomador do seguro, enquanto se identifica o mencionado BB apenas como sendo a “pessoa segura”.
No fundo, pretende a recorrente que existe um erro sobre a qualidade assumida pelo banco mutuante no contrato de seguro celebrado entre as partes, já que não foi esta instituição a tomadora do seguro - mas antes o mencionado BB (que cumula essa qualidade com a de pessoa segura) – sendo apenas a beneficiário irrevogável do seguro.
Na motivação da decisão da matéria de facto, a Mmª Juiz
a quo
escreveu:
“No que respeita aos factos relativos à subscrição do contrato de crédito e do documento de adesão a seguro de vida por BB, nele intervindo a Ré como companhia de seguro e o B... como banco mutuante e tomador do seguro, estes factos encontram-se admitidos por acordo nos articulados e comprovados pelos documentos juntos com a contestação e juntos aos autos em requerimento do Banco, de 12/3/2024.”
Acontece que de acordo com a proposta de seguro junta com a contestação, quem subscreve o contrato na qualidade de tomador (e segurado), assumindo a obrigação de pagamento do respetivo prémio, é o mencionado contrato é o aludido BB, sendo o banco mutuante ali identificado como beneficiário (irrevogável) do seguro.
Determina-se, assim, a alteração da redação do ponto 4 dos factos provados para a seguinte:
No dia 9/1/2019, foi ainda subscrito pelo falecido BB, enquanto tomador do seguro e pessoa segura, e pela Ré A..., SA, como seguradora, escrito particular epigrafado: “Proposta de Seguro – Banco 2... Protecção Crédito”, a que foi atribuído a apólice n.º ...50, de acordo com o qual, na eventualidade da verificação do evento “morte” ou “invalidez absoluta e definitiva” da pessoa segura, a seguradora pagaria ao Banco 2... o capital seguro;
No que concerne al. b) dos factos não provados – objeto de impugnação pela recorrente - o tribunal indicou como base da sua convicção, o seguinte:
No que respeita aos factos inscritos em b), não foi declarado pela testemunha FF que tenha entregue o contrato de seguro ao segurado. Com efeito, o contrato de seguro junto a estes autos pela Ré, na contestação não se encontra assinado, nem rubricado pelo segurado, em qualquer das suas folhas, razão pela qual, atenta a sua extensão (9 páginas em letra pequena) foi julgado não provada a sua comunicação ao segurado
.
No caso dos autos, a causa de pedir subjacente à pretensão da autora é um contrato de seguro do ramo vida a que o mencionado BB terá aderido, mediante a subscrição do formulário de adesão, ao qual se aplicava, à data desta subscrição o disposto no D.L. 72/2008 de 16 de abril (Regime Jurídico do Contrato de Seguro, doravante designado RJCS)
O referido Decreto-Lei (retificado pelas Declarações de Retificação nºs 32-A/2008 de 13/06 e 39/2008 de 23/07) entrou em vigor em 01/01/09, revogando expressamente entre outras normas os artºs 425 a 462 do Código Comercial e os artºs 1 a 5 e 8 a 25 do DL. 176/95 de 26/07.
No que se reporta ao dever de informação nos contratos de seguro de vida, resulta do disposto no art.º 185º o dever de prestação pela seguradora de um conjunto de informações sobre o contrato, previstas no nº2 deste preceito e nos artºs 18º a 21º.
Por sua vez, do artº 21 do RJCS decorre que:
“
1 - As informações referidas nos artigos anteriores devem ser prestadas de forma clara, por escrito e em língua portuguesa, antes de o tomador do seguro se vincular.
2 - As autoridades de supervisão competentes podem fixar, por regulamento, regras quanto ao suporte das informações a prestar ao tomador do seguro.
3 - No contrato de seguro à distância, o modo de prestação de informações rege-se pela legislação sobre comercialização de contratos financeiros celebrados à distância.
4 - Nas situações previstas no n.º 2 do artigo 36.º, as informações a que se refere o n.º 1 podem ser prestadas noutro idioma.
5 - A proposta de seguro deve conter uma menção comprovativa de que as informações que o segurador tem de prestar foram dadas a conhecer ao tomador do seguro antes de este se vincular
.”
Relativamente à declaração inicial de risco, resulta do artº 24 nº1 que “
O
tomador do seguro ou o segurado está obrigado, antes da celebração do contrato, a declarar com exatidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador”
, dispondo o n.º 4 da mesma norma que
“O segurador, antes da celebração do contrato, deve esclarecer o eventual tomador do seguro ou o segurado acerca do dever referido no n.º 1, bem como do regime do seu incumprimento, sob pena de incorrer em responsabilidade civil, nos termos gerais.”
A este respeito alegou a autora, na resposta à contestação, que
“ao malogrado segurado não foi comunicado/explicado, quando do preenchimento do questionário que acompanhava a proposta de seguro, o regime do incumprimento do dever de informação, tal como não foi explicado à própria autora, também ela subscritora do contrato de mútuo e que acompanhou toda a tramitação da celebração dos contratos”.
Podemos assim dizer que a violação do dever de informação que aqui é imputada à Ré é a prevista no n.º 4 do artº 24, nº4 cuja consequência é a obrigação de indemnizar a cargo da seguradora.
É certo que que, conforme se diz no Ac. do STJ de 15 de maio de 2024
[3]
,
“(d)eve entender-se ser aplicável ao contrato de seguro, para além do seu regime jurídico próprio, a Lei das Cláusulas Contratuais Gerais (DL n.º 446/85, de 25 de outubro), encontrando-se a seguradora vinculada aos deveres de comunicação e de informação consagrados em tal regime.
Assim, se é à Seguradora que cabe o ónus de prova de que forneceu as informações referentes às condições do seguro e ao dever do segurado de declarar todas as circunstâncias relevantes para a aferição do risco, será à pessoa segura/aderente que cabe o ónus de alegação dos factos integradores da violação desse dever de informação,
só nesse caso se impondo o ónus de prova da prestação destas informações pelo vinculado à obrigação
[4]
.
Sucede que, em momento algum a autora alegou que não tenham sido comunicadas ao tomador/segurado as condições gerais e especiais do contrato de seguro em momento prévio à subscrição da proposta de seguro, que tenha solicitado informações complementares sobre determinadas cláusulas que não lhe tenham sido satisfeitas, mas apenas que lhe não foram explicadas, aquando do preenchimento do mencionado questionário de saúde, as consequências do incumprimento do dever de informação que resultava do preenchimento daquele questionário e qual a influência desta declaração nos direitos do autor.
O conhecimento da factualidade considerada como não provada sob a al. b) –
que o BB tenha sido informado ou tido conhecimento do teor do clausulado do contrato de seguro a que respeita o questionário preenchido, descrito em 5, 6 e 7
- pressupunha assim o prévio cumprimento do ónus de alegação, a cargo da autora, da violação do correspondente dever de informação ou de comunicação.
Em lado algum, a autora alegou a facticidade referente à violação de tais deveres de comunicação e informação.
Assim sendo, o conhecimento da factualidade a que se refere a al. b) dos factos não provados integrará, antes de mais, uma nulidade da sentença por excesso de pronúncia, por se tratar de uma questão (de facto) de que não podia tomar conhecimento, nos termos da al. b), nº1 do artigo 615º do CPC, o que determina a sua
eliminação
do elenco dos factos não provados.
*
b) A anulabilidade do contrato de seguro por declarações inexatas de natureza dolosa feitas pelo segurado
O Tribunal recorrido, afastando a anulabilidade do contrato de seguro invocada pela ré, entendeu que, em razão do óbito da pessoa segura, a autora tem direito a exigir da ré/seguradora o pagamento do valor que liquidou ao banco beneficiário do referido seguro após o óbito daquele, no valor de €5.264,68, acrescido de juros de mora contados desde a data de tal óbito
Recordemos que a ré se opôs a esta pretensão invocando em juízo que o dito tomador/segurado prestou falsas declarações quando subscreveu o contrato de seguro, mais concretamente ao preencher o questionário de saúde que então lhe foi entregue, na medida em que era portador de doença grave pré-existente, da qual não podia deixar de ter conhecimento.
A questão central posta no recurso respeita então às declarações iniciais de risco no âmbito do contrato de seguro de pessoas, cujo objeto, de acordo com o disposto no artigo 175.º, n.º 1, do RJCS, é aquele que compreende a cobertura de riscos relativos à vida, à saúde e à integridade física de uma pessoa ou grupo de pessoas.
Na modalidade de seguro de vida, o artigo 183.º do RJCS estabelece que o segurador cobre um risco relacionado com morte ou a sobrevivência da pessoa segura.
A questão posta no recurso, sobre os deveres pré-contratuais de informação que incumbem ao segurado, convoca para a sua apreciação a importância das declarações iniciais de risco e consequências da sua inobservância.
Dispõe o artigo 227.º, n.º 1, do Código Civil que [
q]uem negoceia com outrem para conclusão de um contrato deve, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra parte.
De tal preceito extrai-se que a boa-fé constitui um pilar basilar sobre o qual assenta a ordem jurídica portuguesa, conferindo segurança ao comércio jurídico na mesma medida que confere confiança aos particulares que iniciam qualquer processo negocial.
Tal princípio da boa-fé, evidenciado em vários preceitos do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, é particularmente relevante para a presente decisão, considerando o seu objeto.
Dispõe também o art.º 24º ,1 do RJCS que: "
o tomador do seguro ou o segurado está obrigado, antes da celebração do contrato, a declarar com exatidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador”.
É, assim, entendimento pacífico que, no caso de um seguro de vida, exige-se ao tomador ou ao segurado que manifestem as circunstâncias relativas à saúde do segurado que conhecem no momento da declaração, o que, para a seguradora, tendo em conta a avaliação dos riscos que vai assumir é, em princípio, relevante ou para a decisão de contratar ou para a definição concreta do conteúdo do contrato.
E de acordo com o art.º 25º,1 do RJCS, em caso de incumprimento doloso do dever referido no nº 1 do artigo anterior, o contrato é anulável mediante declaração enviada pelo segurador ao tomador do seguro, relevando para este efeito, as mais das vezes, o questionário/formulário de saúde preenchido acerca da situação do proponente do seguro.
Se é verdade que no regime que vigora entre nós não existe obrigatoriedade de apresentação de um questionário por parte da seguradora, não é menos certo que os questionários predominam nos seguros de pessoas, considerando-se nessa conformidade que sendo um questionário respondido com seriedade e de boa fé, nada mais haverá, em princípio, a acrescentar.
Como se diz no
Acórdão do Supremo Tribunal da Justiça, de 19.06.2019
[5]
“ [o] elemento decisivo para a celebração do contrato é o questionário apresentado ao segurado, na medida em que se presume não serem aí feitas perguntas inúteis e, através dele, é o próprio segurador que indica ao tomador quais as circunstâncias que julga terem influência no contrato (…) [a]s respostas ao questionário são o repositório das declarações de risco da pessoa segura em que a seguradora deve confiar e em função das quais aceita o não o contrato e fixa as respectivas condições, não se concebendo a formulação de perguntas inúteis ou irrelevantes”
Com o Regime Jurídico do Contrato de Seguro passou a estabelecer-se a distinção entre as atuações
dolosas
e meramente
negligentes
, podendo no primeiro caso a seguradora arguir a anulabilidade do contrato, enquanto que nas condutas
negligentes
a consequência se traduz, em regra, na exigência da redução proporcional da sua responsabilidade. Os arts. 25.º e 26.º do mencionado Diploma que fazem a destrinça das situações de omissões ou inexatidões dolosas das omissões ou inexatidões negligentes.
A «inexatidão» corresponde ao vício da declaração que é falsa, desconforme à verdade, à realidade objetiva conhecida. A «omissão» é o vício da declaração que silencia uma circunstância relevante, não a revelando total ou parcialmente
[6]
.
Em caso de incumprimento doloso do dever de declaração inicial do risco, o contrato é anulável mediante declaração enviada pelo segurador ao tomador do seguro (artigo 25.º, nº1 do RJCS).
Vem-se entendendo que o dolo aqui mencionado será aquele a que se reporta o nº 1 do art.º 253º do Código Civil e não o dolo modalidade da culpa – o art.º 25 regulará uma
anulabilidade por erro qualificado por dolo
. Consoante explica Pedro Romano Martinez
[7]
, neste sentido o erro causado por dolo contrapõe-se ao erro negocial simples sendo que no que respeita àquele nada obsta a que possa haver uma situação de dolo em que o agente agiu conscientemente de modo incorreto, induzindo ou mantendo em erro a contraparte, sem pretender retirar uma vantagem.
O dolo do tomador ou segurado terá de ser causa do erro, sendo o contrato anulável se a decisão do errante/segurador de se vincular se tiver devido, de modo juridicamente relevante, ao seu erro (essencialidade do erro). O ónus da prova da essencialidade compete ao segurador (art.º 342 do Código Civil)
Contrapõe-se ao erro simples, ou seja, aos casos em que a declaração negocial se formou «com algum desvio em relação ao que se queria dizer por ter assentado em pressupostos ou informações insuficientes ou incorretas, mas sem que tenha havido intenção do declarante de provocar tal situação», nos termos dos artigos 247.º, 251.º e 252.º do Código Civil.
Assim, para que se possa afirmar que o contrato se encontra viciado por erro devido a dolo, por aplicação subsidiária do artigo 254.º, n.º 1, do Código Civil, é necessário o preenchimento de dois requisitos: a causalidade entre o dolo e o erro e a essencialidade do erro para o negócio celebrado.
No que respeita ao primeiro requisito – causalidade entre o dolo e o erro – exige-se que o dolo do tomador seja causa do erro do segurador.
Não o sendo, é aplicável o regime do erro simples, o qual não afeta a validade do contrato.
Por sua vez, o requisito da essencialidade do erro quer significar que o contrato só é anulável se a decisão do segurador de se vincular se tiver devido, de modo juridicamente relevante, ao erro. Com efeito, o erro revela-se essencial quando a vontade hipotética do errante, se não estivesse em erro, teria sido a de não celebrar aquele negócio jurídico ou de o não celebrar nos moldes em que o fez.
Como se escreve no sumário do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15.11.2018
[8]
, “ para anular o contrato, o segurador terá de demonstrar que o dolo o conduziu ao erro e que, se conhecesse o erro, não teria celebrado o contrato, ou seja, terá de demonstrar a essencialidade do erro”.
No caso vertente, a posição da ré/seguradora é a de que, tendo o tomador de seguro, aquando do preenchimento do questionário de saúde contemporâneo da celebração do contrato de seguro, prestado falsas declarações, o contrato de seguro é anulável.
Anulabilidade por ela invocada, a título de exceção, na sua contestação.
Note-se que a “expressão contida no artigo 25º nº 1 do RJCS no sentido de que
“o contrato é anulável mediante declaração enviada pelo segurador ao tomador do seguro”, apenas significa que é dispensado o recurso a juízo para operar esse efeito em relação ao contrato. O sentido normativo que resulta da letra do nº 1 daquele artigo 25º é o de que a anulabilidade do contrato pode fazer-se por declaração à outra parte”
[9]
.
No caso, mostra-se provado que, objetivamente, as declarações prestadas pelo tomador do seguro não correspondiam à verdade, considerando que
era seropositivo para o HIV, com seguimento desde 2004, em consulta de imunodeficiência do CHUC e que respondeu negativamente à questão se sofre ou já sofreu de”: “tuberculose, hepatite (B, C, ou outras), meningite, malária, HIV/SIDA, sífilis”, expressamente mencionada no referido formulário.
Não podemos olvidar, por um lado, que estão em causa factos pessoais do declarante, que este não podia ignorar, e por outro lado, que qualquer pessoa normalmente diligente e cuidadosa, não podia deixar de ter consciência da sua relevância para determinação do risco a cobrir/transferir, sobretudo considerando a gravidade da patologia que então o afetava e o facto – considerado como provado – de lhe ter sido explicado, pela funcionária bancária, que caso faltasse à verdade (na resposta às questões colocadas no questionário de saúde), o contrato de seguro poderia ser anulado
Assim, ao responder negativamente, quando expressamente lhe foi perguntado se padecia de ou tinha padecido de HIV, privou a contraparte de informação relevante, que só por seu intermedio poderia chegar ao conhecimento desta, pelo que entendemos suficientemente demonstrada pelo menos a consciência “de induzir ou manter em erro” a aqui recorrente.
Como se refere no Acórdão desta Relação de 23/04/2024
[10]
,
o artifício está na elaboração das respostas, nitidamente omissivas, quanto a factos pessoais e manifestamente relevantes, tal como oferecidas ao questionário médico, bastando, em acréscimo, a dita
consciência
de induzir ou manter em erro (com dispensa da intenção de prejudicar ou dolus malus).
Face ao exposto, não nos oferecem dúvidas de que a ré logrou provar, como era seu ónus (art.º 342.º, n.º 2, do Código Civil), que o referido tomador do seguro lhe prestou declarações inexatas, omitindo uma patologia relevante aquando da proposta de celebração do seguro de vida que apresentou à seguradora, fazendo-o com dolo.
Ademais, resultou provado que se a ré tivesse conhecimento, à data da subscrição da apólice em apreço, da verdadeira situação clínica do tomador do seguro, a contratação do referido seguro não se teria sequer concretizado [facto n.º 14) se, momento da adesão, a patologia descrita em 12. fosse conhecida pela Ré, esta não teria aceite a proposta de seguro].
Ora, do exposto, resulta que não só se encontra preenchido o requisito da causalidade entre o dolo e o erro – na medida em que foi o dolo do tomador do seguro, consubstanciado nas falsas declarações prestadas em sede de questionário de saúde, a causa do erro negocial da seguradora - como também o requisito da essencialidade do erro.
*
É verdade que, como já referimos, a autora, na resposta à contestação, vem imputar a violação dos deveres pré-contratuais de informação que impendem sobre a ré, na qualidade de seguradora, mais concretamente aquele que resulta do art, 24º, n.º 4 da Lei do Contrato de seguro, alegando que que “
não foi comunicado/explicado ao tomador do seguro, nem à própria autora, quando do preenchimento do questionário que acompanhava a proposta de seguro, o regime do incumprimento do dever de informação”.
Contudo, ficou demonstrado que o dito “
Questionário Clínico
”, composto por duas folhas, foi subscrito pelo punho de BB, e nele pode ler-se: “
Declaro que respondi completamente e com toda a veracidade às perguntas formuladas anteriormente e tomei conhecimento de que qualquer declaração incompleta ou menos verdadeira poderá ter como consequência a nulidade do seguro”,
o que não deixa de constituir uma declaração confessória, desfavorável ao recorrente e prestada à entidade que emite a proposta, a aqui recorrente, tal como resulta expressamente do disposto no artº 376º do Código Civil.
Por outro lado, como refere o acórdão do STJ de 27/03/2014
[11]
, “[n]estas circunstâncias – apesar de não provado que o segurado preencheu pelo seu próprio punho o referido questionário - a assinatura do documento tem de significar e fazer presumir o conhecimento e a aprovação do seu conteúdo e a assunção da paternidade do documento pelo assinante/ subscritor”.
Ocorre que não só não foi feita a prova de que não foi prestada a mencionada informação, que corresponde no essencial ao disposto no n.º 4 do art.º 24 do RJCS, como ficou até demonstrado que o mesmo documento foi integralmente lido pela funcionária do Banco 2..., que preencheu o questionário conforme as respostas de BB - que respondeu que não a todas as perguntas do questionário - e explicou a BB que caso faltasse à verdade, o contrato de seguro poderia ser anulado, após o que BB rubricou com o seu punho a 1.ª folha e assinou a 2.ª e última folha.
De todo o modo, sempre se dirá – ao contrário do sustentado na sentença recorrida, como fundamento para a improcedência de exceção de anulabilidade invocada pela ré - que não está em causa a invocação pela ré de uma qualquer cláusula contratual de que preveja a exclusão da sua responsabilidade enquanto seguradora em caso de resposta inverídica ou incompleta sobre as circunstancias relevantes para a apreciação do risco, mas antes do regime legal que resulta do citado art.º 25º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro.
Assim, a eventual violação do dever de informação a cargo da ré não impediria a anulabilidade do contrato de seguro (como se defendeu na sentença recorrida), podendo somente fazer incorrer a seguradora, ora recorrente, em responsabilidade civil, nos termos gerais, nos termos do n.º 4 do art.º 24º da referida norma.
Resta, assim, concluir pela verificação do circunstancialismo previsto no artigo 25º nº 1 do RJCS, ou seja, pela anulabilidade do contrato de seguro em causa, com base no carácter doloso das declarações inexatas feitas pelo segurado.
Perante tal conclusão, fica prejudicado, por inútil a apreciação da invocada questão da condenação
ultra petitum
quanto a juros de mora.
Sumário (ao abrigo do disposto no art.º 663º, n.º 7 do CPC):
(…).
*
VI Decisão
Nestes termos, acordam os Juízes desta Relação em julgar a apelação procedente e, em consequência, revogar a sentença recorrida, substituindo-a por outra que julga a ação improcedente e absolve a ré dos pedidos contra ela formulados.
Mais se condena a recorrida nas custas do recurso e da ação
.
Coimbra, 8 de abril de 2025
Assinado eletronicamente por:
Hugo Meireles
Francisco Costeira da Rocha
Luís Miguel Carvalho Ricardo
(O presente acórdão segue na sua redação as regras do novo acordo ortográfico, com exceção das citações/transcrições efetuadas que não o sigam)
[1]
Assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-02-2015, processo 299/05.6TBMGD.P2.S1, (Relator Tomé Gomes), in www.dgsi.pt.
[2]
Ac. do STJ de 16/12/20, processo nº 8640/18.5YIPRT.C1.S1 (Relator Bernardo Domingos), disponível in www.dgsi.pt.
[3]
Processo n.º 61/22.1T8CPV.P1.S1 (Relatora Maria Clara Sottomayor), in www.dgsi.pt.
[4]
Cf. entre outros, o Ac. deste Relação de 14/01/2025, processo 2390/23.8T8LRA.C1 (Relatora Cristina Neves) e o Ac da Relação do Porto de 29.6.2023 (proferido no Proc. Nº 12734/21.1T8PRT.P1), ambos publicados em
www.dgsi.pt
,-“
[5]
Processo n.º 4702/15.9T8MTS.P1.S1 (relatado por Ilídio Martins), in www.dgsi.pt
[6]
Cf.
o Acórdão da Relação de Guimarães de 4/11/2021, processo n.º
4017/18.0T8GMR.G1 (Relatora Conceição Sampaio), in www.dgsi.pt.
[7]
Lei do Contrato de Seguro Anotada, Almedina, 2016, 3ª edição, pag. 153-156.
[8]
p. 12886/16.2T8PRT.P1,
in www.dgsi.pt
[9]
Cf. Ac. do STJ de19/06/2019, já citado
[10]
Processo n.º 3576/18.2T8CBR.C2 (Relator Vítor Martins), in
www.dgsi.pt
[11]
Processo 2971/12.5TBBRG.G1.S (Relator Lopes do Rego), in
www.dgsi.pt
,
|
TRC
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https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/da3e7487ecc3695680258c81004d8312?OpenDocument
|
1,750,896,000,000
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PROCEDENTE
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1658/23.8T8TVD.L1-8
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1658/23.8T8TVD.L1-8
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CRISTINA LOURENÇO
|
Sumário
:
(elaborado pela relatora - art. 663º, nº 7, do Código de Processo Civil)
:
1. O art. 530º do CPC contém regras distintas para o pagamento da taxa de justiça para as situações de litisconsórcio e coligação. Nas situações de litisconsórcio o litisconsorte que figurar como parte primeira na petição inicial deve proceder ao pagamento da totalidade da taxa de justiça, salvaguardando-se o direito de regresso sobre os litisconsortes (nº 4); apresentando-se os autores em coligação, cada um deles é responsável pelo pagamento da respetiva taxa de justiça, sendo o valor desta o fixado nos termos do RCP (nº 5º), o que significa que cada consorte em coligação paga a taxa de justiça individualmente devida (por estarmos perante uma situação de acumulação de ações), que é calculada nos termos da Tabela I-B anexa ao RCP (cf. art 13º, nº 7, al. a) deste diploma).
2. Assim sendo, é o valor do pedido específico formulado por cada autor que determinará, em conjugação com a Tabela I-B anexa ao RCP, o valor devido a título de taxa de justiça.
3. Tendo os Autores procedido ao pagamento da taxa de justiça inicial pressupondo a sua intervenção em situação de litisconsórcio, e não resultando da petição inicial a exposição dos factos individualizados que constituem a causa de pedir das respetivas ações, e consequentemente, a individualização dos pedidos que formulam respetivamente contra os Réus, caso o tribunal decida após a apresentação dos articulados (como sucedeu no caso), que os Autores apresentam-se a litigar em coligação, devem os mesmos ser convidados a aperfeiçoar a petição inicial, para supressão dos referidos vícios, nos termos e ao abrigo do disposto no art. 590º, nº 1, do CPC, a fim de poder ser determinado o valor efetivamente devido a título de taxa de justiça inicial, dando-se-lhes, assim, a oportunidade de liquidarem o que efetivamente for devido.
|
[
"TAXA DE JUSTIÇA",
"LITISCONSÓRCIO",
"COLIGAÇÃO"
] |
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
Relatório
Autores
:
1)
Condomínio ….
, representado por J…, com morada na Rua…, Ericeira, e por
M…
, com morada na Rua…, Ericeira, ambos na qualidade de administradores;
2)
A…T…
, divorciada, residente na Rua …., Ericeira;
3)
A…M…
e
J…G…
, residentes na Rua …, Ericeira;
4)
J…S…
, residente na Rua …, Ericeira;
5)
H…F…
, e
P…F…
, casados entre si no regime da comunhão de adquiridos, a primeira residente na Rua …., Ericeira, o segundo, na Avenida …, em Lisboa; na qualidade de proprietários de fração F (N.º 4, 2.º Esqº) do prédio sito na Rua ….;
6)
R…D…
, casado com C…J…, ambos com morada na Rua …, Ericeira.
*
Réus
:
1
) D…M…
, viúvo, residente na Avenida…., em Torres Vedras; e restantes herdeiros da sua falecida mulher (I…), com quem foi casado em comunhão geral de bens:
2)
M…M…
, residente na Rua …, em Torres Vedras;
3)
P… M…
, residente na Rua …, em Torres Vedras; e
4)
S…M…
, casada sob o regime de separação de bens com F…, residente na Rua…, em Torres Vedras.
*
Tipo de Ação e Forma de Processo
: ação declarativa de condenação sob a forma única de processo comum.
*
Pedido
:
a) Condenação dos Réus a procederem à eliminação dos defeitos de construção descritos e verificados nas partes comuns do prédio e nas frações dos proprietários, no prazo máximo de 30 dias, ou no pagamento imediato de € 30.950,00, acrescido de IVA, correspondente ao montante estimado para os custos de reparação destes defeitos nas zonas comuns e nas frações dos Autores, a liquidar em sede de execução de sentença, se necessário, e que inclui todos os valores despendidos com peritagens, advogado e despesas judiciais, acrescido da quantia de € 9.000,00, a título de ressarcimento de danos não patrimoniais.
b) Para o caso de assim não se entender, a condenação dos Réus pelos mesmos factos e pedido, por eventual responsabilidade extracontratual, nos termos legais, acrescendo aos pedidos juros à taxa legal de 4%, a contar da citação e até integral pagamento.
*
Os Autores atribuíram à ação o valor de € 39.950,00.
*
O Condomínio procedeu ao pagamento da taxa de justiça, no montante de € 612,00, que comprovou aquando da apresentação da petição inicial.
*
Os Réus foram citados e contestaram a ação tendo alegado, no que ora importa, que os Autores não procederam ao pagamento da taxa de justiça em conformidade com o disposto no art. 530º, do CPC; que os 2ª; 3º; 4º; 5º e 6ª Autores, deveriam ter pago a sua taxa de justiça, nos termos da tabela I B, e que, não o tendo feito, deveriam fazê-lo, ao abrigo do disposto no art. 560.º, do CPC, sob pena de aplicação, por analogia, do disposto no art. 570.º n.ºs 3, a 7, do CPC.
*
Em 14 de junho de 2024, foi proferido o seguinte despacho:
“Do pagamento de taxa de justiça pelos AA.
Atenta a causa de pedir e o pedido, os AA. demandaram os RR. em coligação e não em litisconsórcio.
Assim, devem os AA. proceder ao pagamento da taxa de justiça devida nessa qualidade e não na qualidade de litisconsórcio, como efectuaram, pelo que dispõem de dez dias para efectuar o pagamento em falta, sob pena de rejeição da petição inicial [cfr. arts. 558.º, n.º 1, al. f) e 560.º, ambos do Código de Processo Civil].
Notifique.”
*
Em 28 de junho de 2024, os Autores A..M… e J…G… vieram juntar comprovativo do pagamento de Taxa de Justiça, no montante de € 102,00, com base na invocada Tabela I-B, anexa ao Regulamento das Custas Processuais, e, no requerimento que acompanhou tal documento, disseram, ainda os Autores, o seguinte:
“Quanto aos restantes autores – proprietários a saber: A…T…, A… e .S…, H.F. e P.F., e ainda R.D.. e C.J… -, não tendo manifestado intenção de prosseguir com a acção nos termos agora determinados por V. Ex.a., com o acréscimo de custos exigido face a tão reduzidos pedidos que os Réus já poderiam ter sanado se de boa fé estivessem, aceitam que ao abrigo do estipulado no n.º 6 do artigo 570.º do Código de Processo Civil, seja “desentranhada” ou dada como não escrito na petição inicial única e exclusivamente a parte em que os seus danos pessoais são reclamados e os pedidos individuais dizem respeito, e nada mais, (…)”.
*
Em 17 de janeiro de 2025, foi proferido o seguinte despacho:
“
Do pagamento da taxa de justiça pelos AA
.
Por despacho proferido em 14.06.2024, foram os AA. notificados para proceder ao pagamento da taxa de justiça em falta, devida na qualidade de coligação, sob pena de rejeição da petição inicial [cfr. arts. 558.º, n.º 1, al. f) e 560.º, ambos do Código de Processo Civil].
Por requerimento de 28.06.2024, o A. Condomínio declarou ter procedido ao pagamento da totalidade da taxa de justiça devida e não nos termos da tabela I-B; os AA. A.M… e J.G… juntaram aos autos comprovativo de pagamento de taxa de justiça inicial, emitida nos termos da Tabela I-B, do Regulamento das Custas Processuais; e os restantes AA. (…) manifestaram não ter intenção de prosseguir com a acção, pelo que aceitam que, ao abrigo do estipulado art. 570.º, n.º 6, do Código de Processo Civil, seja “desentranhada” ou dada como não escrito na petição inicial única e exclusivamente a parte em que os seus danos pessoais são reclamados e os pedidos individuais dizem respeito, e nada mais.
Por requerimento de 12.07.2024, os RR. opuseram-se expressamente à alteração do pedido ou dedução de novos pedidos pelos A.A. efectuados, porquanto na petição inicial não foi efectuado qualquer pedido individual por qualquer condómino, designadamente os agora peticionantes A.M… e J.G…, e alegaram que o pagamento efectuado pelos AA. A.M… e J.G… não corresponde ao legalmente estabelecido, pelo que daí devem ser retiradas as devidas consequências legais (cfr. referência 15456214, de 12.07.2024).
Solicitado que a Secção informasse dos pagamentos efectuados pelas partes, veio a mesma consignar que “[…] as partes fizeram os seguintes pagamentos:
Autores:
- Condomínio …, taxa de justiça - petição inicial - refª 14185157 de 08-09-2023 - Tabela I A ........................ 612,00 €
- A.M… e J.G…, taxa de justiça - requerimento refª 15393781 de 28-06-2024 - Tabela I B........ 102,00 €
*
Réus: contestação - refª. 14314706 de 25-10-2023,
taxa de justiça (1ª prestação) Tabela I A ..................................... 306,00€
Réus: Incidente junto com a contestação - refª. 14314706 de 25-10-2023 - Taxa de Justiça- Tabela II ........................................... 408,00€” (cfr. referência 162579113, de 18.10.2024) .
Cumpre apreciar e decidir.
i)
No que concerne aos AA. (…), não tendo os mesmos procedido ao pagamento das taxas de justiça devidas, ainda que advertidos para a consequência da omissão, manifestaram não ter intenção de prosseguir com a acção, aceitando a cominação, pelo que, nos termos do disposto nos arts. 558.º, n.º 1, al. f) e 560.º, ambos do Código de Processo Civil, determino o desentranhamento da petição inicial.
Na medida em que não se mostra possível desentranhar a petição inicial, por a mesma conter factualidade a eles não respeitantes, tudo o que aos indicados AA. diga respeito, tem-se por não escrito/eliminado.
*
ii) Quanto ao pagamento efectuado pelos AA. A.M… e J.G…, verifica-se que taxa paga foi de 102,00 EUR, nos termos da Tabela I-B, referente aos valores da acção de 2.000,00 EUR a 8.000,00 EUR.
Ora, inicialmente, os AA. atribuíram à acção e indicaram no pedido o valor de 39.950,00 EUR, sem qualquer discriminação quanto valor respeitante a tais AA., pelo que seria sobre esse valor que deveriam ter calculado e pago a respectiva taxa de justiça e não pelo cálculo que efectuaram, à margem, no requerimento de 28.06.2024.
Nos termos do art. 145.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, o pagamento de taxa de justiça pelo valor inferior ao devido equivale ao não pagamento de taxa de justiça, sendo que, por estar em causa uma petição inicial, não são aplicáveis as normas dos arts. 145.º, n.º 3 e 570.º, ambos do Código de Processo Civil.
Temos, assim, que os AA. não procederam, devidamente, ao pagamento da taxa devida, advertidos que estavam das consequências do não pagamento da taxa de justiça devida.
Assim, nos termos do disposto nos arts. 558.º, n.º 1, al. f) e 560.º, ambos do Código de Processo Civil, determino o desentranhamento da petição inicial.
Na medida em que não se mostra possível desentranhar a petição inicial, por a mesma conter factualidade a eles não respeitantes, tudo o que quanto aos indicados RR. diga respeito, tem-se por não escrito/eliminado.
*
iii) Relativamente ao pagamento em excesso de taxa de justiça pelo A. Condomínio, nada sendo requerido, o mesmo será restituído, havendo lugar, após a elaboração da conta final.
Notifique e D.N.”
**
Os autores A.M… e J… não se conformaram com tal decisão e dela vieram recorrer, pedindo a sua revogação e a substituição, por outra, que decida o prosseguimento dos autos, com a notificação dos Autores para efetuarem o pagamento da taxa de justiça que seja especificamente considerada devida.
Formularam as seguintes conclusões:
“ I. Vem o presente recurso interposto do douto despacho que determinou a 17 de
Janeiro de 2025, o desentranhamento da petição inicial na parte apresentada pelos autores …., e que ordenou o seu desentranhamento, com fundamento no pagamento da taxa de justiça em valor inferior ao devido, por ter considerado o valor inicialmente indicado na PI como um todo referente ao litisconsórcio apresentado.
II. Tal decisão foi tomada sem que fosse precedida dum saneamento do processo que analisasse as razões dos AA., o pedido de aclaração do pedido em que o valor correspondente ao pedido dos AA: era de 7.500,00 € e não 30.950 €, constante do requerimento datado de 28 de Junho de 2024 que juntou o comprovativo de pagamento pago no dia anterior.
III. De qualquer forma o pedido inicial dos AA. recorrentes era 15.900,00 € + IVA conjuntamente com os restantes proprietários, e ainda 9.000,00 € solidariamente com os restantes litisconsortes.
IV. Tal decisão não foi estribada em qualquer normativo legal legitimo, e desconsiderou que a taxa de justiça inicial havia sido paga pelos litisconsortes condominio, no valor total de 612,00 €,
V. Além de desconsiderar a alteração do pedido dos AA., necessário à conformação do anterior despacho que considerava coligação em vez de litisconsórcio, datado de 14 de Junho de 2024, em clara desconformidade com o artigo 265.º/2 do CPC.
VI. O referido despacho lançou a nosso ver, mal, mão do normativo que dispõe no artigo 145 /2 CPC: “2 - A comprovação de pagamento de taxa de justiça de valor inferior ao devido, nos termos do Regulamento das Custas Processuais, equivale à falta de comprovação.“
VII. In casu, os AA. juntaram com a PI comprovativo de pagamento de taxa de justiça pela totalidade em litisconsórcio – 612,00 € -, e quando notificadas de que o pedido era considerado em coligação e não litisconsórcio, mas sem indicação do valor considerado pelo tribunal
VIII. Utilizaram o critério do artigo 530.º do CPC que estabelece :
“2 - No caso de reconvenção ou intervenção principal, só é devida taxa de justiça suplementar quando o reconvinte deduza um pedido distinto do autor.
4 - Havendo litisconsórcio, o litisconsorte que figurar como parte primeira na petição inicial, reconvenção ou requerimento deve proceder ao pagamento da totalidade da taxa de justiça, salvaguardando-se o direito de regresso sobre os litisconsortes.
5 - Nos casos de coligação, cada autor, reconvinte, exequente ou requerente é responsável pelo pagamento da respetiva taxa de justiça, sendo o valor desta o fixado nos termos do Regulamento das Custas Processuais.”
IX. Os AA. responderam devidamente e na dúvida sobre o valor a pagar, explicitaram o seu raciocínio e juntaram documento comprovativo do pagamento da taxa de justiça de valor alegadamente inferior ao devido, omissão que o tribunal a quo considerou equivalente à falta de junção do documento comprovativo do pagamento da taxa de justiça, pelo que, antes de mais, haveria que ter apreciado o seu pedido e a final, se fosse improcedente, determinar:
- suspensão da instancia até que o fosse pago, ou deserto nos termos do artigo 281.º CPC, ou
- o pagamento da taxa de justiça em falta, em ultimo caso com multa, por analogia
com o artigo 570.º do CPC.
X. O legislador cominou a falta de junção da taxa de justiça nos termos do disposto no mesmo artigo no seu nr nº 3: “3 - Sem prejuízo das disposições relativas à petição inicial, a falta de comprovação do pagamento referido no n.º 1 ou da concessão do benefício do apoio judiciário não implica a recusa da peça processual, devendo a parte proceder à sua comprovação nos 10 dias subsequentes à prática do ato processual, sob pena de aplicação das cominações previstas nos artigos 570.º e 642.º”, normativo este que, por maioria de razão, é aplicável à situação dos autos; logo, não há que recusar a apresentação ou mandar desentranhar a peça processual em causa, antes se devendo esperar que a parte que apresentou a peça processual comprove o pagamento devido da taxa de justiça, cujo depósito pressupõe não ter sido efetuado in totum.
XI. Mal andou com o devido respeito o tribunal a quo ao não respeitar o artigo 530.º/ 2 a 5 do CPC que determina que só deveria existir taxa adicional se o pedido fosse
diferente, e por outro lado que o coligado é responsavel pela taxa de justiça correspondente ao seu pedido, nos termos da tabela do RCP, 1B.
XII. Pelo que a Mme juiz do tribunal a quo, a decidir como decidiu não respeitou o artigo 590./3 do CPC.
XIII. Dispõe o nº 3 do artigo 570.º (antigo 486º) do CPC que: “3 - Na falta de junção do documento comprovativo do pagamento da taxa de justiça devida ou de comprovação desse pagamento, no prazo de 10 dias a contar da apresentação da contestação, a secretaria notifica o interessado para, em 10 dias, efetuar o pagamento omitido com acréscimo de multa de igual montante, mas não inferior a 1 UC nem superior a 5 UC”.
XIV. Reza o nº 5 do citado normativo processual que, “5 - Findos os articulados e sem prejuízo do prazo concedido no n.º 3, se não tiver sido junto o documento comprovativo do pagamento da taxa de justiça devida e da multa por parte do réu, ou não tiver sido efetuada a comprovação desse pagamento, o juiz profere despacho nos termos da alínea c) do n.º 2 do artigo 590.º, convidando o réu a proceder, no prazo de 10 dias, ao pagamento da taxa de justiça e da multa em falta, acrescida de multa de valor igual ao da taxa de justiça inicial, com o limite mínimo de 5 UC e máximo de 15 UC.”
XV. o nº 6 culmina o regime estatuindo que “6 - Se, no termo do prazo concedido no número anterior, o réu persistir na omissão, o tribunal determina o desentranhamento ...”
XVI. O regime legal justo aplicável à contestação tem que valer também para a PI, para o caso de ter faltado ou de ser insuficiente a quantia depositada a título de taxa de justiça pode resumir-se assim:
- Primeiro, há que aguardar dez dias sobre a data da apresentação da peça processual em causa a fim de que a parte que a apresentou comprove o respetivo depósito (artigo 145º-A nº 3 CPC);
- Segundo, a secretaria deve notificar o apresentante para efetuar o pagamento em falta acrescido de multa de igual montante à taxa de justiça devida, no prazo de dez dias (artigo 570º- nº 3 CPC), formalidade esta que foi preterida pelo tribunal a quo, - Terceiro, o juiz no saneamento do processo deve proceder nos termos do artigo 570º- nº 3 CPC, notificando uma vez mais a parte inadimplente a cumprir.
So assim se cumprido e havendo “lugar, a um triplo controlo da legalidade, por forma a assegurar, também por esta via, agora pelo juiz do processo, que a observância da lei não escape ao crivo do julgador numa fase em que questões de desaproveitamento de atos e de tutela da confiança ainda se não levantam”.
XVII. E alias contrariada pela conta corrente do processo que apresentava saldo 0,00€ em Outubro de 2024.
XVIII. Assim e conforme o terceiro e necessário passo de controlo sobre a taxa de justiça efectivamente paga, o juiz deveria ter convidado o apresentante a proceder, no
prazo de dez dias, ao pagamento da taxa de justiça e da multa se considerasse devidas;
XIX. E somente em Quarto lugar, finalmente, decorrido aquele prazo, sem que a parte efectue o pagamento, o tribunal determinaria o desentranhamento da peça processual em causa.
XX. O facto dos AA. terem junto um comprovativo de pagamento da taxa de justiça com a entrega da PI, e posteriormente já em coligação, em valor inferior ao devido não pode determinar, de imediato, a prolação do despacho que ordene o desentranhamento da petição inicial;
XXI. aliás, nada na lei comina tão singela omissão com tão grave sanção, pois só no caso de persistência do incumprimento por parte dos AA.s deveria salvo melhor opinião a Mme juiz a quo ter determinado o desentranhamento da PI,
XXII. que no caso em concreto tem a cominação de impedir, pelos prazos processuais aplicáveis à denuncia e caducidade de reclamar os defeitos nos contratos de construção de imovel novo, à aquela data de 5 e 1 anos respectivamente.
XXIII. Conforme jurisprudência dominante, o legislador, principalmente com as reformas que tem vindo a introduzir desde 1995, tem procurado evitar todo o tipo de decisões que põem termo ao processo por razões meramente formais, sendo também esse o princípio norteador dos nossos Tribunais Superiores, em particular nas decisões relativas à falta de pagamento de preparos.
XXIV. Na situação em apreço, porém, tendo os AA. em litisconsórcio pago a taxa de justiça na sua totalidade, e em coligação pago a quantia correspondente ao seu pedido
individualizado, embora de valor inferior ao alegadamente devido conforme entendimento do tribunal a quo, e apresentado o respetivo comprovativo, deveria ter-lhe sido dada a oportunidade de completar o valor em falta, até sem aplicação de qualquer multa.
XXV. Com o entendimento expresso no despacho recorrido ficarão os AA. irremediavelmente cerceados, por meras razões formais de entendimento sobre custas judiciais, o direito que os AA.s pretendem exercer através da presente acção contra um empreiteiro incumpridor das suas obrigações e garantias contratuais.
XXVI. A interpretação que o Tribunal a quo fez das disposições legais nesta matéria, no sentido de que a junção de documento comprovativo do prévio pagamento da taxa de justiça de valor inferior ao devido, com a apresentação da petição inicial implica
sem mais o desentranhamento da mesma, é inconstitucional, por violação dos princípios da tutela jurisdicional efetiva, da proibição da indefesa, do processo equitativo e da proporcionalidade, que brotam do princípio do Estado de Direito consagrado no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa, configurando uma solução – mais uma, infelizmente – completamente desadequada e desproporcionada, inviabilizando completamente o acesso à pretensão de defesa dos direitos.
XXVII. A não se entender assim, estaria criado um sistema em que, em idênticas
circunstâncias, conforme a actuação/omissão da secretaria e juiz, uns teriam a oportunidade de praticar o acto, outros veriam precludida essa faculdade e, como no caso dos autos, de forma irremediável – a proibição de prejuízos para as partes dos erros e omissões do tribunal, e as exigências decorrentes do princípio da igualdade (art. 13º da CRP) impedem a adopção de um sistema dualista do tipo acabado de referir.
XXVIII. A lei processual civil tem evoluído no sentido de reforçar, designadamente, os princípios da economia processual, do inquisitório e da verdade material, impedindo-se que, razões puramente formais, prejudiquem direitos substantivos.
XXIX. E mesmo se não o fosse, sempre tal despacho seria contrário ao artigo 6.º/ 2 do CPC, 590.º do CPC, e até artigo 6.º da convenção europeia dos direitos do homem,
XXX. Porque de facto e por aplicação adaptada do regime do artigo 560.º, 552.º/4 e 132º do CPC. Essa oportunidade de sanar qualquer falta sempre seria devida,
XXXI. Atento até o direito do contraditório dos AA: que não foi respeitado, por um despacho que salvo melhor opinião não se pronunciou sobre as questões apresentadas.
XXXII. Pelo que o desentranhamento so se poderia justificar em situações de evidente e absoluta certeza jurídica de que os fundamentos invocados nunca poderiam proceder qualquer que seja a interpretação jurídica que se faça dos preceitos legais, isto é, quando se não tiver na doutrina ou na jurisprudência quem os defenda, o que não é o caso.”
**
Os Réus não responderam ao recurso.
*
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
Objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das partes, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. arts. 635º, nº 4, 639º, nº 1, e 662º, nº 2, todos do Código de Processo Civil), sendo que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (cf. art.º 5º, nº3 do mesmo Código).
No caso, cumpre decidir se se impõe a revogação da decisão recorrida.
Fundamentação de Facto
Os factos que relevam para a decisão do recurso, são os que se deixaram narrados no relatório.
Fundamentação de Direito
Segundo o disposto no art. 145º, nº 1, do Código de Processo Civil (CPC), quando a prática de um ato processual exija o pagamento de taxa de justiça nos termos fixados pelo Regulamento das Custas Processuais (RCP), deve ser comprovado o seu prévio pagamento.
De acordo com este último diploma todos os processos estão sujeitos a custas (art. 1º), compreendendo aquelas a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte (art. 3º, nº 1, RCP e 529º, nº 1, CPC).
O art. 6º, nº 1, do RCP dispõe, por seu turno, que a
“…
taxa de justiça corresponde ao montante devido pelo impulso processual do interessado
e é fixada em função do valor e complexidade da causa de acordo com o presente Regulamento, aplicando-se, na falta de disposição especial, os valores constantes da tabela i-A, que faz parte integrante do presente Regulamento.”
Segundo o art. 558º, nº 1, al. f), do CPC, na parte que ora importa considerar, a secretaria deve rejeitar a petição inicial quando a(s) parte(s) não comprove(m) o prévio pagamento da taxa de justiça devida.
De acordo com o documento que acompanhou a petição inicial, o “Condomínio” procedeu ao pagamento da taxa de justiça no valor de € 612,00 (valor compatível com a aplicação da Tabela I-A anexa ao RCP, para ações de valor compreendido entre € 30.000,01 a € 40.000,01, sendo que os autores atribuíram à ação o valor de € 39.950,00).
Na sequência da defesa apresentada pelos Réus, a Mª juíza do tribunal
a quo
considerou e decidiu que em face da causa de pedir e do pedido, os Autores demandam os Réus em coligação, e não em litisconsórcio, pelo que deveriam ter procedido ao pagamento da taxa de justiça nessa qualidade e não da de litisconsórcio, como efetuaram, tendo-lhes concedido o prazo de dez dias para realizarem o pagamento em falta.
Deste despacho, não foi interposto recurso.
O art. 530º do CPC contém regras distintas para o pagamento da taxa de justiça para as situações de litisconsórcio e coligação.
Assim, de acordo com o nº 4 da norma, nas situações de litisconsórcio o litisconsorte que figurar como parte primeira na petição inicial deve proceder ao pagamento da totalidade da taxa de justiça, salvaguardando-se o direito de regresso sobre os litisconsortes.
Apresentando-se os autores em coligação – como foi considerado tratar-se da situação verificada no caso
-, cada autor é responsável pelo pagamento da respetiva taxa de justiça
, sendo o valor desta, o fixado nos termos do RCP (nº 5, do art. 530º).
O Professor Alberto dos Reis ensinou-nos que nas situações de coligação ativa os autores não se uniam para “… fazerem valer a mesma pretensão ou para formularem um pedido único, mas para fazerem valer, cada um deles, uma pretensão distinta e diferenciada”
[1]
, e, por isso, a demanda em coligação é em tudo idêntica à situação de cumulação de ações conexas, cada uma, com o seu valor.
Em matéria de custas, e de acordo com o disposto no art. 528º, nº 4, do CPC,
no caso de coligação de autores ou réus, a responsabilidade por custas é determinada individualmente
nos termos gerais fixados no n.º 2 do art. 527º, do CPC, ou seja, na proporção dos respetivos decaimentos, donde é forçoso concluir que o cálculo das custas é efetuado a partir do(s) pedido(s) de cada litigante, como se litigasse por si só, em ação autónoma.
“Nos casos de coligação, em que existe uma acumulação de ações com valor processual autónomo, a taxa de justiça é paga por cada consorte em coligação, sendo calculada nos termos da Tabela I-B anexa ao RCP, nos termos do art 13º, nº 7, al. a)”.
[2]
No sumário do Acórdão do Tribunal a Relação de Lisboa, proferido em 8/03/2017, no Processo nº 25209/16.1T8LSB-A.L1-4, acessível integralmente para consulta em
www.dgsi.pt
, lemos, por seu turno, que: “I–No caso de coligação de autores, recai sobre cada um deles a obrigação de pagar a taxa de justiça que individualmente for devida.”
O Supremo Tribunal de Justiça, em Acórdão proferido em 1/09/2016, no âmbito do processo nº 2653/13.0TTLSB.L1.S1, que encontramos acessível para consulta em
https://juris.stj.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2016:2653.13.0TTLSB.L1.S1.D3?search=Q49TREld-uppBN59En8
, decidiu, por seu turno, o seguinte: “(…) foi a ação intentada por dois autores, em coligação voluntária ativa, tendo cada um deles deduzido pedido autónomo, ainda que coincidente quanto à causa de pedir, o que se traduz na cumulação de 2 ações autónomas.
À ação foi fixado o valor de € 30.000,01.
Tem sido jurisprudência uniforme deste Tribunal que, para aferição dos requisitos de recorribilidade, há que atender ao valor de cada um dos pedidos e não à sua soma (cfr. neste sentido os acórdãos desta Seção Social de 18.02.2016, proc. nº 558/12.1TTCBR.C1.S1, de 20 de Fevereiro de 2002, proc. nº 3899/01, de 30 de Junho de 2004, proc. nº 609/04, de 13 de Julho de 2004, proc. nº 1501/04, de 11 de Maio de 2005, proc. nº 362/05 e de 6 de Dezembro de 2006, proc. nº 3215/06), sendo que, no caso de coligação ativa voluntária a “cumulação não determina a perda da individualidade de cada uma das respectivas acções, não obstante se encontrarem inseridas no mesmo processo”, pelo que “os recursos das decisões (ou da decisão final) só serão admissíveis se e na medida em que os mesmos fossem admissíveis se processados em separado” (acórdão desta 4ª secção de 2.02.2005, processo 4563/04).”
Destarte, independentemente do valor que sempre terá de ser atribuído à causa (art. 296º, do CPC) e que terá de refletir os pedidos de todos os autores coligados entre si (por exemplo, se pela ação cada um deles pretender obter qualquer quantia em dinheiro, o valor da causa corresponderá à soma de todos os valores peticionados – cf. art. 297º, nº 1, do CPC), também no que diz respeito ao pagamento da taxa de justiça devida pelo impulso processual – propositura da ação –,
é o valor do pedido específico formulado por cada autor que determinará, em conjugação com a Tabela I-B, anexa ao RCP, o valor devido a título de taxa de justiça inicial.
Significa, isto, portanto, que em caso de coligação os pedidos de cada autor devem estar individualizados, como se cada um deles tivesse interposto uma ação autónoma (o que se impõe, não só para efeitos da determinação da taxa de justiça inicial devida, como para a cabal apreciação da ação e justa composição do litígio).
Ora, analisada a petição inicial, e porventura por os Autores estarem convictos que litigavam em litisconsórcio (como afirmado pela Mª juíza do tribunal
a quo
em despacho supra citado a propósito do pagamento da taxa de justiça inicial apenas pelo primeiro Autor – Condomínio - e por referência ao valor total do processo)
são notórias as insuficiências e imprecisões na exposição dos factos, nomeadamente, no que diz respeito aos
vícios alegadamente apresentados pela fração imobiliária dos recorrentes
, ao
custo das respetivas reparações
, assim como ao
valor dos danos de natureza não patrimonial que lhes dizem respeito
, tudo com repercussão, naturalmente, na forma como vêm formulados os pedidos a final.
Tendo a Mmª juíza do tribunal
a quo
decidido que os Autores litigavam em coligação (após defesa apresentada pelos Réus e mediante despacho, a nosso ver, e salvo o devido respeito, parcamente fundamentado), perante os referidos vícios da petição (que poderia e deveria, então, ter considerado) e antes de decidir se o valor pago a título de taxa de justiça inicial era, ou não, o devido individualmente pelos ora recorrentes, exigia-se-lhe, a nosso ver, a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento do articulado inicial, nos termos e em conformidade com o disposto no art. 590º, nº 2, al. b), do CPC.
Deste modo, ancorados em razões de economia processual e no direito das partes a uma justa e equitativa composição do litígio, antes de ser proferida decisão sobre o pagamento da taxa de justiça inicial devida pelos recorrentes, impõe-se proferir despacho nos termos e ao abrigo da citada disposição legal, convidando-os a apresentarem petição aperfeiçoada, que supra os vícios apontados
. Caso o convite seja aceite e logrando-se apurar o valor do impulso processual dos recorrentes,
deve decidir-se, então, sobre se o valor já pago a título de taxa de justiça inicial é o devido, e, para o caso de não o ser, devem os recorrentes ser notificados para, querendo, reforçarem o valor já liquidado, após o que deverá ser, então, proferida decisão final sobre a questão.
Decisão
Em face do exposto, acordam as Juízas da 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente a apelação; em revogar a decisão recorrida no que diz respeito aos ora recorrentes, e determinar a sua substituição por outra, que convide ao aperfeiçoamento da petição inicial conforme acima exposto (tudo sem prejuízo do aperfeiçoamento poder visar outras questões que se afigurem pertinentes), após o que se deverá decidir sobre o pagamento da taxa de justiça inicial nos termos também acima indicados.
Custas a cargo dos Réus, que apesar de não terem respondido ao recurso, são parte vencida nesta questão (art. 527º, nºs 1, e 2, do CPC).
Notifique.
Lisboa, 26 de junho de 2025
Cristina Lourenço
Amélia Ameixoeira
Ana Paula Nunes Duarte Olivença
_______________________________________________________
[1]
In, “Comentário ao Código de Processo Civil”, Vol. III, Coimbra Editora, 1946, pág. 146.
[2]
António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, In, Código de processo Civil Anotado, Vol. I, 2ª Edição, pág. 605.
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TRL
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https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/48a1b77926be032f80258cc1003d47c7?OpenDocument
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1,747,958,400,000
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ANULAÇÃO DO PROCESSADO
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16/18.0T9VLN. G1
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16/18.0T9VLN. G1
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PAULO ALMEIDA CUNHA
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1. A extinção do procedimento criminal fundada na morte do arguido acarreta a cessação da intervenção do defensor nomeado, pois deixou de haver arguido carecido de assistência jurídica e ainda não há herdeiro habilitado para prosseguir a instância cível na qualidade exclusiva de demandado civil.
2. É obrigatória a constituição de mandatário judicial no incidente de habilitação quando o valor do pedido de indemnização civil é superior à alçada dos tribunais de primeira instância.
3. Neste caso, a citação levada a cabo no incidente de habilitação será nula se não indicar a necessidade de patrocínio judiciário.
4. A nulidade da citação fundada na preterição da formalidade da indicação da necessidade de patrocínio judiciário é de conhecimento oficioso.
|
[
"MORTE DO ARGUIDO",
"CESSAÇÃO DE FUNÇÕES DO DEFENSOR",
"PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL",
"HABILITAÇÃO",
"CONSTITUIÇÃO OBRIGATÓRIA DE ADVOGADO",
"FORMALIDADE DA CITAÇÃO",
"NULIDADE",
"CONHECIMENTO OFICIOSO"
] |
Decisão Sumária
I
-
Relatório
1.
No âmbito do processo n.º
16/18.0T9VLN
, que corre os seus termos no Juízo Central Criminal de Viana do Castelo, foi proferido
acórdão, datado de
20.06.2024
, que decidiu nos seguintes termos na parte que ora releva (transcrição):
“(…)
Em face do exposto decidem as juízes que compõem o Tribunal Colectivo, julgar a acusação improcedente, por não provada, e, em consequência:
1. Absolver
o arguido AA da prática em autoria material e concurso real, de um crime de abuso de confiança agravado, p. e p. pelos artigos 202.º, al. b), e 205.º, n.º 1, e n.º 4, al. b) do Código Penal e de dois crimes de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256.º, n.º 1, alíneas a), d) e), do Código Penal, por referência ao artigo 255.º, al. a) do mesmo diploma, de cuja prática vinha acusado.
(…)
2.
Julgar o pedido de indemnização civil deduzido pela demandante BB, improcedente por não provado e, em consequência, absolver os demandados AA e Banco 1... SA do pedido.
(…)
3.
Julgar o pedido de indemnização civil deduzido pela demandante BB, improcedente por não provado e, em consequência, absolver os demandados AA e Banco 1... SA do pedido.
(…)”.
2.
Inconformado com esta decisão, o
assistente BB
dela interpôs recurso, pugnado pela condenação criminal do arguido e pela condenação civil solidária do arguido e da sociedade “Banco 1..., S.A.” no pagamento de uma indemnização no valor de € 22.108,92, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos até integral pagamento,
3.
O Ministério Público e a demandada “Banco 1..., S.A.” responderam ao recurso, pugnado pela respectiva improcedência.
4.
Por seu turno, o arguido viria a falecer na fase de resposta ao referido recurso
5.
Foi proferido despacho judicial nos autos principais a julgar extinto o procedimento criminal em virtude do falecimento do arguido e a determinar o prosseguimento dos autos na parte relativa ao pedido de indemnização civil após a pertinente habilitação.
6.
O assistente requereu a habilitação dos herdeiros do arguido e foi proferida sentença
julgar habilitada a herança ilíquida e indivisa aberta por óbito do arguido e representada pela sua única herdeira, a sua filha CC
7.
Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto absteve-se de proferir parecer em sentido próprio em virtude do objecto do processo estar restringido à discussão do pedido de indemnização civil.
8.
Efectuado o exame preliminar, entende-se ocorrer circunstância que obsta ao conhecimento do recurso, conforme, de forma sumária, passará a explicitar-se.
II
-
Fundamentação
1.
Importa fazer uma breve
análise da tramitação
efectivamente verificada nos autos principais e no incidente de habilitação que correu por apenso.
O arguido faleceu em ../../2024 quando ainda estava em curso o prazo para responder ao recurso interposto da decisão absolutória.
Este prazo só terminaria em 23 de Outubro de 2024 e o prazo decorrido até à morte do arguido ficou sem efeito em virtude da suspensão da instância cível (art. 275.º, n.º 2, 2.ª parte, do art. 275.º, do CPC).
Foi proferido despacho judicial nos autos principais a julgar extinto o procedimento criminal em virtude do falecimento do arguido e a determinar o prosseguimento dos autos na parte relativa ao pedido de indemnização civil após a pertinente habilitação.
A
extinção do procedimento criminal fundada na morte do arguido acarreta a cessação da intervenção da Ilustre Defensora nomeada
, pois deixou de haver arguido carecido de assistência jurídica e ainda não há herdeiro habilitado para prosseguir a instância cível na qualidade exclusiva de demandado civil.
O assistente requereu o pertinente incidente de habitação de herdeiros por apenso e a filha menor do arguido – nascida em ../../2009 – veio a ser citada, na pessoa da respectiva progenitora, para, querendo, contestar a habilitação.
O expediente de citação postal em apreço contém a menção “
fica advertido de que não é obrigatória a constituição de mandatário judicial
”.
Tal indicação está errada, pois o assistente pretendia a condenação solidária dos demandados originários no pagamento de uma indemnização de valor superior à alçada dos tribunais de primeira instância.
O valor do incidente de habilitação em apreço é o do pedido de indemnização civil deduzido pelos assistentes (art. 304.º, n.º 1, do CPC).
Ora, é obrigatória a constituição de advogado nas causas de competência de tribunais com alçada, em que seja admissível recurso ordinário, bem como nos recursos (art. 40.º, n.º 1, alíneas a) e c), do CPC).
Em especial, no processo penal,
o lesado e o demandado devem fazer-se representar por advogado sempre que, em razão do valor do pedido, se deduzido em separado, fosse obrigatória a constituição de advogado
, nos termos da lei do processo civil (art. 76.º, n.ºs 1 e 2, do CPP).
Posteriormente, foi enviada nova carta à citanda a repetir aquela menção e a informar a identidade dos Senhores Advogados intervenientes nos autos, a saber, os Ilustres Mandatários do assistente e do demandado “Banco 1..., S.A.” – e nem sequer uma alusão à Ilustre Defensora que assistira o pai da citanda até ao respectivo falecimento.
Não foi apresentada qualquer contestação ao incidente de habilitação e veio a ser proferida
sentença, data de 6 de Março de 2025
, a “
julgar habilitada a herança ilíquida e indivisa aberta por óbito do arguido e representada pela sua única herdeira, a sua filha CC, nascida a ../../2009, e aqui representada pela sua mãe, DD, para prosseguir os presentes autos os seus trâmites, ocupando a posição processual daquele na presente lide
”.
Esta sentença foi notificada à representante legal da habilitada em 13 de Março de 2025.
Esta
notificação
não foi acompanhada da menção de que o prazo para responder ao recurso pendente iniciar-se-ia com a notificação da sentença
.
No dia 14 de Maio de 2025, o Tribunal
a quo
proferiu despacho a considerar cessada a suspensão da instância e a determinar a subida dos autos a esta Relação.
A demandada habilitada nunca interveio no processo a qualquer título, nomeadamente não apresentou qualquer resposta ao recurso e não constituiu advogado até à presente data.
2.
Dispõe o art. 417.°, n.° 6, alínea a), do C.P.P., que, após exame preliminar, o relator profere decisão sumária sempre que alguma circunstância obstar ao conhecimento do recurso.
No caso concreto, impõe-se constar que a citação levada a cabo no incidente de habilitação é nula em virtude de não ter observado as formalidades obrigatórias prescritas na lei, pois não indicou a necessidade de patrocínio judiciário (artigos 227.º, n.º 2, e 191.º, n.º 1, do CPC).
Todavia, no que respeita à preterição das formalidades da citação, dir-se-á, numa primeira abordagem, que a lei adjectiva só impõe o conhecimento oficioso quando não é indicado qualquer prazo para defesa (artigos 196.º, e 191.º, n.º 2, 2.ª parte, do CPC).
Será mesmo assim?
Importa chamar à colação o relevante acórdão da Relação de Lisboa, datado de 13-01-2009 (p. 5479/2008, disponível em
www.dgsi.pt
), que apreciou uma situação semelhante à dos presente autos à luz das normas equivalentes do anterior CPC e cuja fundamentação se passa a transcrever na parte que aqui releva:
“ Nos termos dos artigos 235º, n.º 2, e 236º, n.º 1, do Código de Processo Civil, na citação por via postal deve-se incluir, naturalmente se for caso disso, a indicação da necessidade de patrocínio judiciário.
Esta indicação visa evitar que o citando, «por ignorância, venha a intervir em nome próprio, em termos que poderão irremediavelmente comprometer a sua defesa».
Sendo assim no caso dos autos, visto o disposto nos artigos 32º, n.º 1, al. b), 678º, n.º 3, al. a), do Código de Processo Civil, e 57º, n.º 1, do R.A.U., a citação devia ser efectuada com a indicação da necessidade de patrocínio judiciário.
Sucede, como se vê do duplicado constante de fls. 50 da carta expedida para citação do recorrente, como também se vê do duplicado constante de fls. 51 da carta expedida para citação da Ré, que a citação deles não foi feita com a aludida indicação, mas antes com a indicação de não ser obrigatória a constituição de mandatário judicial
Esta indicação não integra qualquer das irregularidades previstas no n.º 1 do artigo 195º do Código de Processo Civil.
Sendo assim não há falta de citação nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 194º, al. a), do Código de Processo Civil.
No n.º 1 do artigo 198º do Código de Processo Civil estão previstas outras irregularidades da citação.
Nele se estabelece que é nula a citação quando não hajam sido, na sua realização, observadas formalidades prescritas na lei distintas das previstas no n.º 1 do artigo 195º do Código de Processo Civil.
No caso em questão na realização da citação, mais do que a omissão da formalidade de indicação da necessidade de patrocínio judiciário, foi feita ao recorrente a indicação precisamente contrária, a errada indicação de não ser obrigatória a constituição de mandatário judicial.
A propósito cabe referir que do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 183/2006, de 8/3/2006
, que decidiu julgar inconstitucional, por violação do artigo 20º, n.º
s
1 e 4, da Constituição, a norma do artigo 198º, n.º 2, do Código de Processo Civil quando interpretado no sentido de considerar sanada a nulidade da citação no prazo para apresentar a contestação, quando a secretaria informa a ré, erradamente, de que não é obrigatória a constituição de advogado e esta somente reage quando é notificada da sentença condenatória, consta, além do mais, o seguinte: «a ré, após a citação, reagiu quando foi confrontada com o acto processual imediato que lhe foi notificado, ou seja, a decisão condenatória.
O direito de acesso aos tribunais pressupõe, naturalmente, uma actuação transparente e, dir-se-ia, de boa fé quer das partes quer dos agentes do sistema judicial. Pressupõe, ainda, um acesso informado e esclarecido por parte dos sujeitos que pretendem fazer valer os seus direitos em juízo.
Os erros das partes têm consequências que se repercutem nas respectivas esferas. Os erros dos agentes do sistema judicial não podem repercutir-se na esfera das partes.
Se, através de uma actuação contrária à lei, um funcionário judicial inviabiliza o acesso do particular a uma informação relevante para a sua estratégia de defesa, é natural que se reconheça ao sujeito erradamente informado a possibilidade de reagir assim que se apercebe da situação processual em que se encontra e dos efeitos que entretanto se produziram, sem que tivesse a possibilidade de a eles aceder.».
Nele também se considerou que a sanação dessa nulidade «só deverá, na verdade, ocorrer quando a recorrente tiver as condições indispensáveis para se aperceber que a nulidade teve lugar. É esta a solução adequada ao princípio de um processo justo e equitativo. E é esta a solução que concretiza o direito de acesso aos tribunais exercido num contexto de transparência e de lealdade entre todos os agentes implicados no funcionamento do sistema judicial.».
De todo o modo, ponderando o disposto no n.º 1 do artigo 198º do Código de Processo Civil, não há duvida que com a errada indicação de não ser obrigatória a constituição de mandatário judicial se produziu uma nulidade da citação.
Com efeito no caso dos autos a lei de modo nenhum admite a indicação de não ser obrigatória a constituição de mandatário judicial e é evidente, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 4 do artigo 198º do Código de Processo Civil, que a aludida omissão prejudica a defesa.
Basta ponderar, visto o disposto nos artigos 32º, 33º e 34º do Código de Processo Civil, que por princípio não é admissível que a parte pleiteie por si, que por princípio não é admissível que o recorrente intervenha nos autos, desde logo, para apresentar a sua defesa.
Estabelece o n.º 2 do artigo 198º do Código de Processo Civil, que o prazo para a arguição da nulidade da citação é o que tiver sido indicado para a contestação, porém sendo a citação edital, ou não tendo sido indicado prazo para defesa, a nulidade da citação pode ser arguida quando da primeira intervenção do citado no processo.
No caso dos autos, ponderando por identidade de razão o disposto no artigo 254º, n.º 3, e o disposto nos artigos 144º, n.º 2, e 252º-A, n.º 1, al. a), do Código de Processo Civil, terminou em 3/7/2006 o prazo para apresentação da contestação, sem que o recorrente tivesse o seu patrocínio assegurado.
O recorrente foi citado com a errada indicação de não ser obrigatória a constituição de mandatário judicial e no decurso do prazo da contestação não constituiu advogado e assim não se pode exigir que, no prazo da contestação, o recorrente tivesse reclamado por si da citação com a errada indicação de não ser obrigatória a constituição de mandatário judicial.
Com efeito, se por princípio não é admissível que a parte pleiteie por si, que apresente por si a sua defesa, não é aceitável que precisamente se exija do recorrente que tivesse reclamado da nulidade no prazo da contestação, não lhe pode ser exigível, contra o disposto no artigo 32º, n.º 2, do Código de Processo Civil, que resolva essa questão de direito no prazo da contestação.
(…)
Transcorrido o prazo da contestação, ponderando o disposto nos artigos 161º, n.º 6, 228º, n.º 1, 1ª parte, e 234º, n.º 1, do Código de Processo Civil, não é possível concluir que por erro de secretaria o recorrente tenha irremediavelmente comprometida a sua defesa, tenha irremediavelmente comprometida a possibilidade de arguir a nulidade da citação para assim, com a procedência da nulidade em consequência da repetição da citação, obter prazo para a defesa.
Sendo assim não se podendo exigir do recorrente que tivesse reclamado da nulidade no prazo da contestação, como aliás não lhe foi permitido, ficou o recorrente em situação idêntica àquela em que ao citado nem sequer é dado prazo para contestar.
Deste modo, no caso dos autos, não é possível coincidir o prazo de arguição da nulidade com o prazo da contestação, mas antes, por identidade de razão, deve aplicar-se o regime da nulidade da citação por falta de indicação de prazo para a defesa.
Efectivamente, visto o disposto nos artigos 202º e 206º, n.º 1, do Código de Processo Civil, neste regime a nulidade deve ser conhecida oficiosamente logo que dela o tribunal se aperceba, podendo ser suscitada em qualquer estado do processo enquanto não deva ser considerada sanada.
Este regime é «coincidente com o da arguição da falta de citação (artigo 196º).»
. (…)”.
A fundamentação acabada de transcrever é transponível,
mutatis
mutandis, para o caso dos presentes autos.
Os artigos 227.º, n.º 2, 196.º, e 191.º, n.º 2, 2.ª parte, do CPC/2013, devem ser interpretados no sentido de que a nulidade da citação fundada na preterição da formalidade da indicação da necessidade de patrocínio judiciário fica necessariamente sujeita ao regime da nulidade da citação por falta de indicação de prazo para a defesa.
Por força da interpretação das referidas normas segundo o
princípio da tutela jurisdicional efectiva consagrado no art. 20.º, n.º 2, da Constituição
, a nulidade da citação em apreço não pode deixar de ser conhecida oficiosamente com todas as consequências em virtude de não se mostrar sanada.
3.
As
consequências desta nulidade da citação são óbvias à luz da tramitação processual concretamente verificada.
Desde logo, importa eliminar o acto nulo praticado nos autos e proceder à citação regular da habilitanda no incidente de habilitação.
Para tanto, impõe-se declarar a nulidade da citação da requerida no incidente de habilitação e anular todos os actos subsequentes, incluindo a sentença de habilitação, o despacho que considerou cessada a suspensão da instância e a remessa destes autos à Relação (art. 195.º, n.º 2, do CPC).
Dito isto, os autos devem baixar de imediato à 1ª instância para a regularização do processado em conformidade com o ora decidido.
Por tal razão, o presente recurso não pode ser imediatamente conhecido por este Tribunal da Relação (art. 417.º, n.º 6, al. a), do CPP).
III –
Decisão
Pelos fundamentos expostos:
a)
Declaro nula a citação realizada no incidente de habilitação;
b) Anulo esta citação e todos os actos subsequentes, incluindo a sentença de habilitação, o despacho que considerou cessada a suspensão da instância e a remessa destes autos à Relação;
c) Julgo prejudicado o conhecimento imediato do recurso;
d)
E determino a baixa dos autos à 1.ª instância para aí prosseguir os termos adequados.
Sem tributação.
*
1. Notifique (incluindo a Ilustre Defensora nomeada nos autos que cessou funções em virtude do arquivamento do procedimento na parte criminal com fundamento no falecimento do arguido).
2. Oportunamente, após a pertinente baixa definitiva na distribuição, remeta os autos à 1.ª instância.
*
Guimarães, 23 de Maio de 2025
(elaborado em computador, revisto e assinado electronicamente)
Juiz Desembargador
Paulo Almeida Cunha
|
TRG
|
https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/c86580738f281a6880258cb6003e6a32?OpenDocument
|
1,759,795,200,000
|
REVOGADA A DECISÃO
|
3263/23.0T8VLG-A.P1
|
3263/23.0T8VLG-A.P1
|
ANABELA MIRANDA
|
I - Para que seja admissível o recurso a uma acção executiva, exige-se a apresentação de um
título
, pelo qual se determina o fim e os respectivos limites.
II - A
acta da assembleia de condóminos
é considerada
título executivo
se dela constarem deliberações que aprovem as despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns do edifício e o valor dos serviços de interesse comum, a quantia devida por cada condómino, calculada com base na proporção do valor das suas fracções, e o prazo de vencimento.
III - Tendo a deliberação que incidiu sobre a
comparticipação
dos condóminos no pagamento da despesa extraordinária para realização de obras sido anulada judicialmente por desrespeito da regra da permilagem, a deliberação posterior, tomada na assembleia de condóminos sobre esse assunto, destinada a sanar a anterior irregularidade, constitui título executivo referente à exigência, na execução, da satisfação da quota-parte do condómino em falta, a esse título.
|
[
"ATA DE ASSEMBLEIA DE CONDÓMINOS",
"TÍTULO EXECUTIVO",
"REQUISITOS"
] |
Processo n.º 3263/23.0T8VLG-A.P1
Relatora: Anabela Andrade Miranda
Adjunta: Alexandra Pelayo
Adjunta: Lina Castro Baptista
*
Sumário
………………………………
………………………………
………………………………
*
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I—RELATÓRIO
AA
deduziu os presentes embargos de executado e oposição à penhora contra o exequente,
Condomínio ..., ...
, formulando o seguinte pedido: “… que seja declarado que as Atas em questão não constituem títulos executivos, por falta de requisitos essenciais para o efeito, bem como ordenado o imediato cancelamento de todas as penhoras no âmbito dos presentes autos”.
Alega, em síntese, que em relação à ata da assembleia geral de condóminos de 19/02/2023, não foi notificado para essa assembleia geral e que os condóminos presentes e ausentes não foram devidamente identificados, nem que frações representava, sendo nulas as decisões aí tomadas.
Em relação à ata da assembleia geral de condóminos de 20/02/2023, alega que o imóvel é um bem comum e a sua mulher não foi notificada para essa assembleia, existindo irregularidades na aprovação do ponto 4 dos trabalhos, já que não houve orçamentos comparativos, não foi indicado a permilagem/percentagem concreta da votação, não constando da ata que o aqui executado não aprovou a deliberação, além de que, os condomínios que aprovaram não constituem ¾ do capital do prédio.
Por fim, em relação à deliberação de 29/06/2023, alega o Embargante que não recebeu qualquer convocatória, nem lhe foi remetida a inerente ata. Referindo ainda que a ata não indica concretamente quem foram os condóminos presentes e que frações representavam, não permitindo aferir a existência de quórum para a realização da Assembleia e as condições para a aprovação das deliberações ali descritas, não quantificam os resultados na aprovação e foi aprovada uma deliberação quanto às modalidades de pagamento das contribuições que não estava na ordem dos trabalhos.
O Embargado apresentou contestação, invocando, além do mais, a exceção de caducidade para impugnação deliberações.
*
Proferiu-se sentença que julgou parcialmente procedentes os embargos e determinou a extinção da execução quanto ao valor de € 8.098,52 reclamado nos autos principais a título de quota extraordinária.
*
Inconformado com a sentença, o Embargado recorreu finalizando com a s seguintes
CONCLUSÕES:
a)- O presente Recurso de Apelação vem interposto da douta sentença, proferida em 30 de janeiro de 2025, que julgou a oposição à execução mediante embargos parcialmente procedente e, em consequência,
b)- A questão a analisar circunscreve-se à necessidade de se aquilatar se, no caso sub judice, a Ata n.º ... da assembleia geral de condóminos realizada no dia 29 de junho de 2023 constitui título executivo válido no que concerne à reclamação coerciva das quotas extraordinárias vencidas e não pagas pelo recorrido;
c)- No caso concreto, apurou-se que:
- O recorrido AA e a Executada, BB são donos e legítimos possuidores das frações autónomas designadas pelas letras "C" e "K", destinadas, respetivamente, a habitação no primeiro andar direito e garagem, sito na Rua ..., em ..., descritos na conservatória dos Registos Civil, Predial, Comercial e Automóveis de Valongo sob o n.º ...;
-Em 25/09/2023 o recorrente deu entrada de uma ação executiva contra o recorrido e a Executada BB, peticionado o valor global de €8.376,41,dando à execução três atas de condomínio, concretamente, a ata n.º ... da assembleia geral de condomínio no dia 19 de fevereiro de 2022, a ata n.º ... da assembleia geral de condomínio no dia 20 de fevereiro de 2023 e a Ata n.º ... realizada em assembleia geral de condomínio no dia 29 de junho de 2023, cuja ordem dos trabalhos encontra-se designada por “Aprovação de orçamento para as obras no edifício e distribuição das despesas pelos condóminos e outros assuntos de interesse comum”;
- Na referida Ata n.º ... foi deliberado o seguinte “(…) considerando a deliberação do 4.º ponto da ordem dos trabalhos da assembleia de condóminos de 20/02/2023, constante da ata n.º ..., em foi aprovado o pagamento de uma quota-extra, no montante total de € 78.050,00, para fazer face às obras de reabilitação das fachadas e cobertura do edifício a liquidar em seis prestações mensais e sucessivas com início no passado mês março de 2023 como intuito de facilitar o pagamento aos senhores condóminos (…). Esta contribuição terá de ser paga em três prestações iguais e sucessivas, iniciando-se a primeira até ao dia 8 de julho de 2023 e as restantes até ao dia 8 dos meses subsequentes”;
- Por sentença datada de 26/09/2024, transitada em julgado em 30/10/2024, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo Local Cível de Valongo - Juiz 2, sob o número n.º1493/23.3T8VLG, foi declarada a anulabilidade de duas deliberações tomadas na assembleia de condóminos de 20 de Fevereiro de 2023, concretamente: a deliberação respeitante ao ponto quatro da ordem de trabalhos constante da convocatória quanto à comparticipação relativamente à aprovação do orçamento no valor de € 78.050,00 e forma de pagamento e a deliberação de aprovação de uma penalização no valor mínimo de € 400,00, acrescido de Iva à taxa legal.”;
d)- No caso concreto, a sentença proferida nos autos que sob 1493/23.3T8VLG pendem pelo Juízo Local Cível de Valongo – Juiz 2, já transitada em julgado, julgou anuláveis as deliberações tomadas na assembleia de condóminos realizada a 20 de fevereiro de 2023 no que concerne ao ponto quatro da ordem de trabalhos [“Aprovação de orçamento para obras no edifício”] constante da convocatória quanto à comparticipação respeitante à aprovação do orçamento no valor de € 78.050,00 e respetiva forma de pagamento;
e) O recorrente juntou como títulos executivos três atas de outras tantas assembleias de condóminos, pelas quais se determinam o fim e os limites da ação executiva;
f- Decorre do conteúdo do texto exarado no requerimento executivo inicial que o título executivo que serve de base à reclamação coerciva das quotas extraordinárias aprovadas para as obras no edifício é a ata número ... da assembleia de condóminos realizada no dia 29 de junho de 2023;
g- A alínea d) do n.º 1 do Artigo 703º do C.P.C prevê que à execução podem servir de base os “documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva”;
h- É o que sucede com a previsão do Artigo 6º do DL 268/94 de 25/10 que estatui que a ata da assembleia de condóminos, cumpridos que estejam os requisitos legais, constitui título executivo contra o proprietário que deixe de pagar;
i) Da Ata n.º ... dada à execução fazem parte integrante os respetivos orçamentos aprovados;
j) Dos aludidos orçamentos constam as diversas frações (designadas pela letra), o piso a que correspondem, a permilagem correspondente e os montantes anuais e mensais das quotas de cada fração;
l) No requerimento executivo indicam-se as frações propriedade do ora recorrido, que este não impugnou, bem como as quotas vencidas e não pagas;
k) As deliberações tomadas na assembleia geral de condóminos de 29 de junho de 2023 não foram tempestivamente impugnadas, pelo recorrido ou por qualquer outro condómino, pelo que se tornaram juridicamente inatacáveis, sendo vinculativas para todos os condóminos;
m) Encontram-se, assim, preenchidos todos os requisitos legais exigíveis para que a Ata n.º ... da assembleia geral de condóminos de 29 de junho de 2023 constitua título executivo válido contra o recorrido;
SEM PRESCINDIR:
n) Deverá aplicar-se às deliberações da assembleia de condóminos, com as indispensáveis adaptações, o princípio da renovação das deliberações, consagrado no artigo 62º, n.º2, do Código das Sociedades Comerciais;
o) Ao deliberarem na assembleia geral de condóminos realizada no dia 29 de junho de 2023 a forma de pagamento do montante aprovado a título de quota extra para obras os condóminos ratificaram a deliberação declarada anulável.
*
O Embargante apresentou resposta:
1. A discordância do Recorrente incide em manifesto equívoco, claramente detetável na sustentação adiante vertida.
2. Nesse sentido, as Alegações deduzidas pela Apelante encontram-se desprovidas de qualquer fundamento aceitável, pois o cerne da sua argumentação assenta apenas numa sentença judicial já transitada em julgado no processo adiante mencionado.
3. Com efeito, a decisão ora em crise salienta que “por sentença datada de 26/09/2024, transitada em julgado em 30/10/2024, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo Local Cível de Valongo -Juiz 2, sob o número n.º1493/23.3T8VLG, foi declarada a anulabilidade de duas deliberações tomadas nesta assembleia de condóminos de 20 de Fevereiro de 2023, concretamente: a deliberação respeitante ao ponto quatro da ordem de trabalhos constante da convocatória quanto à comparticipação relativamente à aprovação do orçamento no valor de € 78.050,00 e forma de pagamento e a deliberação de aprovação de uma penalização no valor mínimo de € 400,00, acrescido de Iva à taxa legal”.
4. Ora, o Apelante afirma que, além da ata n.º ... da Assembleia Geral de 20/2/2023, juntou igualmente ao Requerimento Executivo a Ata n.º ... da Assembleia Geral de 29/06/2023, concluindo conter esta todos os requisitos legais exigíveis para se constituir como título executivo válido.
5. Ocorre que a dita Ata n.º ..., nomeadamente as deliberações quanto ao orçamento para obras no edifício e distribuição das despesas pelos condóminos, inerentes ao ponto 1 da respetiva ordem de trabalhos, encontram-se irremediavelmente prejudicadas pelo determinado na supracitada sentença proferida em 26/9/2024 no processo nº 1493/23.3T8VLG,
6. uma vez que o aprovado a respeito daquelas matérias na Assembleia Geral de 29/06/2023 está objetivamente dependente do decidido na Assembleia Geral de 20/02/2023.
7. Assim sendo, a mencionada Ata n.º ... não constitui título executivo válido no que concerne à questão das referidas obras, ou seja, não possui a força jurídica pretendida pelo Recorrente, como expressa e lapidarmente se colhe do entendimento anteriormente vertido em 2.
8. Face ao que precede, não merece nenhuma censura a douta sentença em causa, a qual deverá manter-se inalterada em conformidade com os fundamentos ora expendidos.
*
II—
Delimitação do Objecto do Recurso
A questão principal
decidenda
, delimitada pelas conclusões do recurso, consiste em saber se o Exequente apresentou título executivo válido no que concerne às quotas extraordinárias devidas para pagamento das obras.
*
III—FUNDAMENTAÇÃO
FACTOS PROVADOS
(elencados na sentença)
Por força dos documentos juntos aos autos, mostra-se provados os seguintes factos:
1. O Embargante AA e a Executada, BB são donos e legítimos possuidores das frações autónomas designadas pelas letras "C" e "K", destinadas, respetivamente, a habitação no primeiro andar direito e garagem, sito na Rua ..., em ..., descritos na conservatória dos Registos Civil, Predial, Comercial e Automóveis de Valongo sob o n.º ....
2. Em 25/09/2023 a Embargada deu entrada de uma ação executiva contra o Embargante e Executada BB, peticionado o valor global de € 8.376,41, dando à execução três atas de condomínio, concretamente:
3. A ata n.º ... realizada em assembleia geral de condomínio no dia 19 de fevereiro de 2022, na qual foi deliberado o seguinte “(…) foi aprovado por unanimidade dos condóminos presentes, o orçamento com a despesa global de € 2.210,00 e € 220, 98 para o Fundo Comum de Reserva, perfazendo aquelas duas importâncias € 2.430,98, tudo como melhor se alcança do documento n.º 1, anexo à presente ata (…)
Cabe às frações pagarem as quotas mensais constantes do documento n.º 2, com a epígrafe “Simulação do Exercício Orçamento 2022/2023” anexo à presente ata, que terão de ser liquidadas até ao dia 8 de casa mês (…)”
4. Na simulação de exercício orçamento 2022/2023 anexo à ata n.º ..., referente ao período de 01/02/2022 a 31/01/2023, a quota de cada condómino vem discriminadas da seguinte forma:
5. A ata n.º ... realizada em assembleia geral de condomínio no dia 20 de fevereiro de 2023, na qual foi deliberado o seguinte “(…) a proposta de orçamento para 2023/2024 foi aprovado por unanimidade dos condóminos presentes, (…) o orçamento foi aprovado com a despesa global de € 2.670,00 e € 266,98 para o Fundo Comum de Reserva, perfazendo aquelas duas importâncias € 2.936,98, (…) As frações pagarão as quotas mensais constantes do documento n.º 8, anexo à presente ata, com a epígrafe Simulação do Exercício Orçamento 2023/2024 (…) As quotas são pagas até aos dia 8 de cada mês.
Seguindo para o quarto ponto da ordem de trabalhos, a assembleia deliberou por maioria, com o voto contra das frações A, B e C, e os restantes a favor aprovar uma quota para obras no valor de € 78.050,00”
6. Na simulação de exercício orçamento 2023/2024 anexo à ata n.º ..., referente ao período de 01/02/2023 a 31/01/2024, consta:
7. A Ata n.º ... realizada em assembleia geral de condomínio no dia 29 de junho de 2023, cuja ordem dos trabalhos encontra-se designada por “
Aprovação de orçamento para as obras no edifício e distribuição das despesas pelos condóminos e outros assuntos de interesse comum
”.
8. Na referida ata, identificada no ponto anterior, foi deliberado o seguinte “(…) considerando a deliberação do 4.º ponto da ordem dos trabalhos da assembleia de condóminos de 20/02/2023, constante da ata n.º ..., em foi aprovado o pagamento de uma quota-extra, no montante total de € 78.050,00, para fazer face às obras de reabilitação das fachadas e cobertura do edifício a liquidar em seis prestações mensais e sucessivas com início no passado mês março de 2023 com o intuito de facilitar o pagamento aos senhores condóminos a assembleia vai deliberar a adjudicação das obras a um dos empreiteiros concorrentes
(…).
Face aos orçamentos ora aprovados cada fracção contribui com as quotas constantes do documento n.º 1 cujo conteúdo aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais.
Esta contribuição
terá de ser paga em três prestações iguais e sucessivas,
iniciando-se a primeira até ao dia 8 de julho de 2023 e as restantes até ao dia 8 dos meses subsequentes”.
9. As quotas das obras identificadas no ponto 8 foram distribuídas da seguinte forma:
10. Por sentença datada de 26/09/2024, transitada em julgado em 30/10/2024, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo Local Cível de Valongo - Juiz 2, sob o número n.º1493/23.3T8VLG, foi declarada a anulabilidade de duas deliberações tomadas na assembleia de condóminos de 20 de Fevereiro de 2023, concretamente: a deliberação respeitante ao
ponto quatro da ordem de trabalhos constante da convocatória quanto à comparticipação relativamente à aprovação do orçamento no valor de € 78.050,00 e forma de pagamento
e a deliberação de aprovação de uma penalização no valor mínimo de € 400,00, acrescido de Iva à taxa legal.
*
IV-DIREITO
Na acção executiva apensa, o Condomínio apresentou três actas de assembleias de condóminos, como títulos executivos, destinados a fundamentar a exigibilidade coerciva das quantias monetárias que contabilizou.
Concretamente sobre as quotas
extraordinárias
em falta alegou, no requerimento executivo, que:
“-
Por deliberação da Assembleia de Condóminos realizada no dia 29 de junho de 2023 foi aprovado o orçamento para a execução de obras no edifício, tendo ficado a cargo dos Executados AA e BB o pagamento, a título de quota extra, da quantia de € 7.352,60 relativamente à fração "C" e da quantia de € 745,92 relativamente à fração "K"
.”
Analisando os argumentos deduzidos na oposição por embargos, o tribunal sustentou que as actas datadas de 19 de Fevereiro de 2022 e de 20 de fevereiro de 2023-actas n.ºs 1 e 2-têm força executiva, conferida pelo artigo 6.º, nº 1, do Decreto - Lei 268/94, de 25 de Outubro, embora em relação a
esta última apenas na parte respeitante
às quotas ordinárias e quotizações do fundo de reserva
.
Com efeito, a deliberação da assembleia de 20 de Fevereiro de 2023 (acta n.º ...) incidente sobre as quotas
extra
para realização de obras, a comparticipação dos condóminos e a forma de pagamento foi anulada judicialmente. Por esse motivo, com base na acta n.º ..., não existia título executivo para o Exequente reclamar as quotas-parte sobre as despesas das obras.
Acontece, porém, que o título executivo apresentado pelo Exequente para justificar o pagamento dessa dívida não foi a acta n.º ..., cuja deliberação foi objecto de anulação, mas sim a n.º 3, da assembleia de condóminos realizada em 29 de Junho de 2023, como rsulta do alegado no requerimento executivo.
Por ter sido anulada essa deliberação, o tribunal concluiu que a deliberação
posterior
sobre esse assunto, tomada na assembleia de 29/06/2023-acta n.º ...-carece de validade, não constituindo, por isso, título executivo sobre essa dívida.
No recurso interposto no que tange ao mencionado segmento desta decisão cumpre exactamente saber se a deliberação posterior que aprovou
novamente
as quotas
extraordinárias
dos condóminos para pagamento do orçamento aprovado para realização das obras nas partes comuns também está
abrangida
pelo dispositivo da sentença anulatória da deliberação de 20 de Fevereiro de 2023.
O inconformismo do Recorrente fundamenta-se essencialmente em duas ordens de razões:
-a cobrança coerciva dos valores em dívida referente à quotização extra
baseia-se na acta n.º ...
que não foi anulada pelo tribunal nem impugnada pelos condóminos nomeadamente pelo Executado no prazo legal (sublinhado nosso)
- e obedece aos requisitos de exequibilidade previstos no art. 6.º nº. 1 do D.L. 268/94 de 25 de outubro.
Por seu turno, o Recorrido defende que a acta n.º ...
depende
da deliberação anterior (anulada) sobre o mesmo assunto, pelo que também é inválida.
Do Quadro Legal
A lei distingue duas espécies de acções, classificando-as como
declarativas
ou
executivas
, sendo que estas últimas podem ser utilizadas pelo credor para requerer as providências adequadas à realização coactiva de uma obrigação que lhe é devida-cfr. art.º 10.º, n.º 1 e 4 do C.P.Civil.
No entanto, para que seja admissível o recurso a uma acção executiva, exige-se a apresentação de um
título
, pelo qual se determina o fim e os respectivos limites-cfr. n.º 5 do citado preceito legal.
Como ensinava Alberto dos Reis
[1]
o título executivo é, pois, a base da execução:
nulla executio sine titulo
. Promover uma execução sem título equivale a promover uma execução sem base.
E acrescentava, com muita clareza, que é o título que autoriza o credor a mover a acção executiva; é o título que define o fim da execução; é o título que marca os limites do procedimento executivo.
Os títulos executivos estão elencados no artigo 703.º, n.º 1, als. a) a d) do C.P.Civil e obedecem ao
princípio da tipicidade
, ou seja, não são admitidos quaisquer outros documentos, mesmo que as partes lhes confiram essa força coerciva.
O artº. 6º. nº. 1 do D.L. 268/94 de 25 de outubro, com a redação introduzida pela Lei n.º 8/2022, de 10 de janeiro (
ex vi
art.º 703.º, n.º 1. al.d) do CPC) estabelece o seguinte:
“ (n.º 1) a ata da reunião da assembleia de condóminos que tiver deliberado o montante das contribuições a pagar ao condomínio menciona o montante anual a pagar por cada condómino e a data de vencimento das respetivas obrigações.
(n.º 2) a ata da reunião da assembleia de condóminos que reúna os requisitos indicados no n.º 1 constitui título executivo contra o proprietário que deixar de pagar, no prazo estabelecido, a sua quota-parte.
(n.º 3) Consideram-se abrangidos pelo título executivo os juros de mora, à taxa legal, da obrigação dele constante, bem como as sanções pecuniárias, desde que aprovadas em assembleia de condóminos ou previstas no regulamento do condomínio”
(n.º 5) A ação judicial referida no número anterior deve ser instaurada no prazo de 90 dias a contar da data do primeiro incumprimento do condómino, salvo deliberação em contrário da assembleia de condóminos e desde que o valor em dívida seja igual ou superior ao valor do indexante dos apoios sociais do respetivo ano civil”.
Este preceito legal articula-se com o disposto no artigo 1424.º, n.º1 do C.Civil nos termos do qual as despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns do edifício e ao pagamento de serviços de interesse comum são pagas pelos condóminos em proporção dos valores das suas fracções.
Assim, são condições de exequibilidade da acta, nas palavras de Rui Pinto
[2]
, (i) aprovar o
montante
daquelas despesas e valores, (ii) estabelecer o
prazo de vencimento
e a
quota-parte
de cada condómino (iii) devidamente identificado.
Naturalmente que caso a deliberação tenha sido impugnada ao abrigo do artigo 1433.º, do Código Civil e declarada inválida pelo tribunal também não pode servir de título executivo.
Na ata n.º ..., datada de
20 de fevereiro de 2023
, foi deliberado que “(…) a proposta de orçamento para 2023/2024 foi aprovado por unanimidade dos condóminos presentes, (…) o orçamento foi aprovado com a despesa global de € 2.670,00 e € 266,98 para o Fundo Comum de Reserva, perfazendo aquelas duas importâncias € 2.936,98, (…) As frações pagarão as quotas mensais constantes do documento n.º 8, anexo à presente ata, com a epígrafe Simulação do Exercício Orçamento 2023/2024 (…) As quotas são pagas até aos dia 8 de cada mês.
No
quarto ponto
da ordem de trabalhos, que contém o segmento relevante em discussão, a assembleia deliberou por maioria, com o voto contra das frações A, B e C, e os restantes a favor aprovar uma quota para obras no valor de € 78.050,00.
Na acção judicial destinada a obter a anulabilidade desse ponto quatro, o tribunal verificou que “…na assembleia de 20-02-2023, os condóminos deliberaram que a despesa aprovada para obras seria distribuída por todos os condóminos, mas nada consta quanto às fracções “I” a “M”,
relativamente às garagens
.”
Acrescentando-se que “Resulta da acta que apenas foram consideradas as votações das fracções e
excluídas as garagens
, como o próprio Réu reconhece na contestação, sem que se alcance qual o motivo de ter sido subdividido dessa forma e sem se compreender a alteração do critério das permilagens, tendo sido proporcionalmente repartido o valor a pagar, não em função da permilagem, não se alcançando como foi feita tal subdivisão relativamente às habitações e às lojas, assim aumentando substancialmente a quota devida por cada uma destas fracções.”
Ou seja, o tribunal anulou a deliberação respeitante ao
ponto quatro
da ordem de trabalhos quanto à
comparticipação
do orçamento no valor de € 78.050,00 e à forma de pagamento, por ter sido desrespeitada a regra de repartição dos encargos comuns de acordo com o
princípio da proporcionalidade
.
E esclareceu que “Além disso, também não se encontra especificado nem justificado o critério que determinou a imputação aí mencionada quanto ao orçamento aprovado para obras, de forma diversa da proporção do valor de cada uma das fracções.”
Ora, na acta n.º ..., a assembleia de condóminos, realizada em 29 de Junho de 2023, sanou essa irregularidade, como se pode confirmar no ponto 9 da matéria de facto, incluindo na aplicação da regra da permilagem as
quotizações
referentes às garagens, para além das lojas e das habitações.
Assim, não é de acolher a argumentação dos Recorridos quando afirmam que a deliberação aprovada a respeito daquelas matérias na assembleia geral de 29/06/2023
está objetivamente dependente do decidido na Assembleia Geral de 20/02/2023
.
Pelo contrário, a deliberação dessa assembleia de condóminos
renovou
a aprovação dessa despesa extraordinária, incluindo a aprovação de um orçamento de valor inferior ao orçamento anterior, expurgando o vício de que enfermava a precedente deliberação.
Por conseguinte, salvo o devido respeito, a anulação da deliberação da assembleia de condóminos do dia 20 de Fevereiro de 2023, com fundamento no desrespeito da regra da permilagem no cálculo da quota-parte extraordinária, devida por cada condómino, não é extensível à deliberação da assembleia do dia 29 de Junho de 2023 pela simples razão de que não subsistem nesta deliberação as razões que conduziram à declaração de anulabilidade da deliberação tomada naquela assembleia de 20 de Fevereiro.
Numa palavra, a acta n.º ... que constitui o título executivo no qual o Exequente fundamentou a coercibilidade da satisfação das quantias em falta pelos Executados referentes à
quota extraordinária
para pagamento das obras que é necessário realizar nas zonas comuns, obedece aos mencionados requisitos de exequibilidade, não se verificando a mencionada situação irregular que foi sanada.
Nesta conformidade, assiste razão ao Recorrente atendendo à improcedência deste fundamento dos embargos, devendo os autos prosseguir para conhecimento das questões que ficaram prejudicadas.
*
V-DECISÃO
Pelo exposto, acordam as Juízas que constituem este Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente o recurso, e em consequência, revogam a sentença na parte que considerou os embargos procedentes com o fundamento acima assinalado, mantendo-a no mais decidido, devendo ainda prosseguirem os autos para conhecimento das questões suscitadas pelos Embargantes que ainda não foram decididas.
Custas pelos Apelados.
Notifique.
Porto, 10/7/2025
Anabela Miranda
Alexandra Pelayo
Lina Baptista
____________
[1]
Processo de Execução
, vol I, 3.ª edição, Coimbra Editora, pág. 68.
[2]
A Acção Executiva, AAFDL, pág. 227.
|
TRP
|
https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/0e4856f47e392f0780258cdc0031a9b6?OpenDocument
|
1,739,836,800,000
|
IMPROCEDENTE
|
6012/22.6T8PRT.L1-7
|
6012/22.6T8PRT.L1-7
|
EDGAR TABORDA LOPES
|
I – O artigo 20.º do
Regulamento (EU) 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de Maio de 2015
, relativo aos processos de insolvência,
prevê que a decisão de abertura de um processo de insolvência
referido no artigo 3.º, n.º 1 - um processo principal de insolvência, aberto no Estado-membro em que se situe o centro dos interesses principais do devedor - fazendo o Regulamento presumir que esse lugar é o da sede estatutária da sociedade comercial -
produz,
sem mais formalidades
,
em qualquer dos demais Estados-Membros
,
os efeitos que lhe são atribuídos pela lei do Estado de abertura do processo
.
II – Tendo um Tribunal francês aberto um “procédure de redressement judiciaire” contra a Requerida num Processo de Injunção europeia em Portugal, abrindo um período de observação, fixado a data de cessação dos pagamentos, e ordenado a adopção de um plano de recuperação e designado um comissário de execução desse plano, uma vez que tal corresponde a uma das espécies processuais que integram a lista de processos franceses constantes do Anexo A do citado Regulamento (não se suscitando dúvidas sobre a circunstância de se tratar de um “processo de insolvência”, para efeitos da aplicação do Regulamento, por força do seu artigo 2.º, n.º 4), o processo em Portugal deve terminar por inutilidade superveniente (uma vez que a lei francesa impede a sua instauração e obriga os credores a reclamar os seus créditos na insolvência).
|
[
"PROCESSO DE INJUNÇÃO EUROPEU",
"REGULAMENTO (EU) 2015/848",
"PROCESSO DE INJUNÇÃO",
"PROCÉDURE DE REDRESSEMENT JIDICIAIRE",
"INUTILIDADE SUPERVENIENTE"
] |
Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
Relatório
C
E ASSOCIADOS, SOCIEDADE DE ADVOGADOS, RL
intentou a 29 de Março de 2022, o presente procedimento de injunção de pagamento europeia contra a sociedade
H SAS
, indicando ser titular de um crédito (emergente de um contrato de prestação de serviços de assistência jurídica, consultoria fiscal e técnica) no valor de € 63.750, invocando o seu não pagamento, reclamando ainda juros vincendos sobre o capital indicado, à taxa de 8%, desde 28.03.2022 e até integral pagamento.
O Requerente refere que:
- a Requerida a contactou por email por pretender assessoria jurídica para a eventual aquisição das quotas de uma sociedade que se dedica à atividade de exploração de ostras;
- a Requerida aceitou a proposta de serviços e honorários formulada pela Requerente, assinando documento enviado por esta enviado a 14/03/2019;
- os serviços foram prestados, ao longo de vários meses, por vários advogados da sociedade, tendo a requerida celebrado contrato de cessão de quotas subordinado à verificação de determinadas condições;
- essas condições não chegaram a verificar-se e a cessão de quotas foi adiada;
- o pagamento dos serviços prestados pela Requerente não dependiam da verificação dessas condições, pelo que esta emitiu factura a eles referente, datada de 28/05/2020, que a Requerida não pagou, tendo passado a estar incomunicável.
Foi ordenada a emissão de injunção e a
Citação
da Requerida.
Citada, a Requerida apresentou declaração de
Oposição
.
Determinada a remessa do processo para os Juízos Centrais Cíveis de Lisboa, foi dispensada a realização de
Audiência Prévia
, foi proferido Despacho Saneador, fixado o
objecto do litígio
e enunciados os
temas da prova
.
Posteriormente veio a Requerida apresentar articulado de defesa, por excepção e por impugnação, articulado esse que veio a ser rejeitado, por intempestivo (decisão que – em sede de recurso - veio a ser confirmada pela Relação de Lisboa.
O Administrador judicial X veio requerer a junção aos autos de cópias certificadas de certidões apostiladas de decisão de insolvência da requerida H, SAS, datada de 13/04/2021, concluindo que a presente acção deve ser extinta.
Notificadas para se pronunciar:
- a Autora veio defender que a acção deva prosseguir, não se extinguindo o seu crédito; e
- a Ré veio dizer que a acção deve ser extinta por inutilidade.
A 25 de Outubro de 2024 o Tribunal
a quo
proferiu a seguinte
Decisão
:
“
(…)
Cumpre apreciar e decidir.
*
O Tribunal de Comércio de La Rochelle (França) tomou as seguintes decisões:
- Em 13.04.2021 pronunciou a abertura de um processo de recuperação judicial contra a “H” sob o número 4117270, designou-lhe um mandatário judiciário, abriu um período de observação por uma duração de 6 meses e fixou a data de cessação dos pagamentos em 25.09.2019;
- Em 19.10.2021 ordenou a renovação do prazo de observação por uma duração de 6 meses, com termo em 13.04.2022;
- Em 10.05.2022 ordenou a adoção de um plano de recuperação por um período de 8 anos e designou um comissário de execução do plano.
*
O Regulamento (EU) 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de maio de 2015, relativo aos processos de insolvência prevê, no seu artigo 20º, que a decisão de abertura de um processo de insolvência referido no artigo 3.º, n.º 1 (ou seja, um processo principal de insolvência, aberto no Estado-membro em que se situe o centro dos interesses principais do devedor, fazendo o Regulamento presumir que esse lugar é o da sede estatutária da sociedade comercial), produz, sem mais formalidades, em qualquer dos demais Estados-Membros, os efeitos que lhe são atribuídos pela lei do Estado de abertura do processo.
Por conseguinte, as decisões judiciais francesas cujas certidões foram juntas aos autos produzem, nos presentes autos, os efeitos que a lei determinar, sem necessidade de qualquer outra diligência.
Quanto ao efeito das decisões de insolvência sobre ações judiciais em que o insolvente é demandado, resulta do artigo 7º, n.º 2, alínea f) do referido Regulamento da União que é a lei do Estado-membro no qual foi aberto o processo de insolvência que define tais efeitos.
O processo judicial francês do qual foram juntas certidões é, na língua originária, uma “procédure de redressement judiciaire”, espécie processual que integra a lista de processos franceses do Anexo A do Regulamento citado, ou seja, constitui um “processo de insolvência” para efeitos de aplicação do Regulamento, por força do seu artigo 2º, n.º 4.
Nos termos do disposto no artigo 86º, n.º 1 do Regulamento acima identificado, os Estados-Membros fornecem, no âmbito da Rede Judiciária Europeia em matéria civil e comercial, com vista a colocar as informações à disposição do público, uma breve descrição da respetiva lei e dos procedimentos aplicáveis no domínio da insolvência, em especial no que se refere aos aspetos indicados no artigo 7.º, n.º 2.
De acordo com as informações publicadas na Rede Judiciária Europeia em matéria civil e comercial relativas aos processos de insolvência franceses (
https://e-justice.europa.eu/447/PT/insolvencybankruptcy?FRANCE&member=1
), à semelhança do direito português, os credores - por créditos constituídos antes da abertura do processo de insolvência – têm de os reclamar no processo de insolvência: “7. Quais são os efeitos do processo de insolvência relativamente aos processos instaurados por credores singulares (com exceção dos processos pendentes)? Em caso de processo de insolvência, os credores são obrigados a fazer valer os seus direitos contra o devedor exclusivamente no âmbito do processo de insolvência, não podendo intentar ações individuais para reclamar o pagamento pelo devedor.”
Indo diretamente à fonte, é o que resulta do artigo L622-21 do “Code de commerce” (“I.-Le jugement d'ouverture interrompt ou interdit toute action en justice de la part.º de tous les créanciers dont la créance n'est pas mentionnée au I de l'article
L. 622-17
et tendant: 1° A la condamnation du débiteur au paiement d'une somme d'argent; 2° A la résolution d'un contrat pour défaut de paiement d'une somme d'argent.” in
https://www.legifrance.gouv.fr/codes/section_lc/LEGITEXT000005634379/LEGISCTA000006146193
), que proíbe a instauração de ações ou execuções contra a empresa em recuperação, excluindo apenas os créditos previstos no n.º 1 do artigo L622-17 (“I.-Les créances nées régulièrement après le jugement d'ouverture pour les besoins du déroulement de la procédure ou de la période d'observation, ou en contrepartie d'une prestation fournie au débiteur pendant cette période, sont payées à leur échéance.”-
in
https://www.legifrance.gouv.fr/codes/section_lc/LEGITEXT000005634379/LEGISCTA000006146193
), ou seja, os constituídos regularmente após o julgamento de abertura do processo de recuperação ou redressement.
Assim sendo, é possível concluir que os efeitos, sendo similares aos da lei portuguesa (artigo do 90º CIRE), acarretam as mesmas consequências quanto às ações declarativas que visam o reconhecimento da existência de um crédito sobre o insolvente, que é o da sua inutilidade, na medida em que a lei francesa impede a sua instauração e obriga os credores a reclamar os seus créditos na insolvência.
Face a isto, é forçoso concluir que não existe qualquer utilidade para a autora na presente ação, cuja sentença não poderia executar.
Importa ainda referir que é integralmente aplicável à situação sub judice a fundamentação expendida pelo Supremo Tribunal de Justiça no acórdão que fixou a seguinte jurisprudência: “Transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a ação declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art.º 287.º do C.P.C.” – acórdão n.º 1/2014 publicado no D.R., I série de 25/2/2014.
Face à verificada inutilidade, resta-nos julgar extinta a instância, sem que se tenha de apreciar nesta sede se o direito de crédito se extingue ou não em virtude de não ter sido reclamado na insolvência francesa.
Não é igualmente possível concluir que alguma das partes tenha litigado de má fé, na medida em que esgrimiram de forma aceitável argumentação jurídica de sentido oposto, não se verificando qualquer das situações previstas no artigo 542º, n.º 2 do CPC.
*
Assim, nos termos do disposto no art.º 277º, alínea e) do Código de Processo Civil, julgo extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide.
Custas pela ré (art.º 536º, n.º 3, in fine do Código de Processo Civil).
Registe e Notifique”.
É desta
Decisão
que vem interposto
Recurso de Apelação
por parte da Requerente
, a qual apresentou as suas
Alegações
, onde lavrou as seguintes
Conclusões
:
“I - Os presentes autos tiveram início em 29.3.2022, como procedimento europeu de injunção de pagamento, nos termos do artigo 7.º, n.º 1 do Regulamento (CE) n.º 1896/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, e para cobrança de uma dívida da Recorrida à Recorrente, expressamente reconhecida por aquela e que até à data de hoje não foi paga.
II - A Recorrida deduziu oposição, através da apresentação do Formulário F do referido Regulamento, com carimbo de 13.05.2022, pelo que o processo seguiu os termos do processo comum declarativo.
III - Já depois de proferido despacho saneador, a Recorrida, em 02.11.2022 veio apresentar articulado, contendo a sua defesa por excepção e por impugnação, alegando, entre outros, o facto de se encontrar numa situação de recuperação judicial, e juntando, designadamente, os seguintes documentos já existentes à data em que havia apresentado a sua oposição:
- decisão de abertura de processo de recuperação, datada de 13.04.2021;
- decisão que aprova o plano de recuperação, datada de 05.04.2022 (cf. Doc. 5 do requerimento), com a aprovação da continuação da empresa e com a previsão de um plano de pagamento de dívidas contemplando, nomeadamente, o pagamento de 100% das dívidas de credores que não tenham participado na votação do plano.
IV - O referido articulado de defesa foi rejeitado, por intempestivo, por despacho de 20.03.2023 (confirmado por este Tribunal ad quem como referido nas páginas 3 e 4 da sentença recorrida); concomitantemente, a totalidade da factualidade e documentação objecto da presente acção são as que constam do requerimento inicial, que é o único articulado do processo.
V - Por despacho de 16.06.2023, o Tribunal a quo, pronunciando-se sobre a prova requerida pelas partes, e relativamente às declarações de parte do administrador judicial provisório X, requeridas pela Recorrida, chamou a atenção para o facto de este não ser representante legal da Recorrida, instando-a a pronunciar-se “sobre as razões pelas quais pretende as suas próprias declarações de parte por intermédio de X, e/ou se mantém o requerimento em apreço mas noutros moldes e em relação a que matéria fáctica do requerimento inicial”.
VI - Por despacho de 14.11.2023, já com novo titular do processo, veio o Tribunal a quo determinar a notificação da Recorrida para esclarecer se mantinha interesse na inquirição de X, face à descida do acórdão que mostrando-se a matéria ali alegada, e que iria ser objecto do depoimento, fora do objecto do processo, não podendo ser inquirida às testemunhas” (sublinhado e negrito da Recorrente)
VII - Através de cartas com carimbo de entrada de 12.03.2024 e de 04.06.2024, o referido X, através de um verdadeiro depoimento escrito, veio juntar ao processo o que já havia sido junto pela Recorrida em 02.11.2022 (e também por requerimento desta de 21.2.2024) e desconsiderado pelo Tribunal a 20.03.2023, desta feita através de cópias certificadas elaboradas pelo próprio mandatário da Recorrida!
VIII - Notificada para se pronunciar sobre a referida intervenção, a Recorrente chamou a atenção que se tratava de mais uma tentativa de introduzir no processo factos e documentos anteriormente excluídos, sublinhando, além do mais, que nunca foi citada para o processo de recuperação da Recorrida, em completa violação do artigo 54.º do Regulamento (CE) n.º 1896/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, o que, aliás, a Recorrente repetiu por quatro vezes ao longo do processo e a Recorrida nunca contestou.
IX - Todavia, a sentença recorrida, fazendo expressa referência à “insolvência francesa” e à “decisão de insolvência da requerida H” e apelo à disciplina prevista no artigo 90.º do Código de Insolvência e Recuperação de Empresa, julgou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, dando sem efeito a audiência de julgamento agendada por considerar aplicável o disposto no artigo 277.º, alínea e) do Código de Processo Civil.
X - Sucede que, ao contrário do assumido na sentença recorrida, a Recorrida não foi declarada insolvente, mas apenas, objecto de um processo de recuperação judicial, já findo, com aprovação de um plano de pagamentos aos credores e encontrando-se, assim, em plena actividade.
XI - Acresce que, ao considerar os factos e os documentos trazidos pelo referido X os quais haviam sido considerados fora do objecto deste processo, a sentença recorrida incorreu numa violação do caso julgado formal, nos termos do artigo 620.º, n.º 1 do Código de Processo Civil: a defesa que não admitira, por intempestiva, veio agora admitir através de cartas de alguém que não é sequer parte no processo.
XII - O que é tanto mais insólito quando o próprio Tribunal a quo concluiu, na sequência de uma das cartas dirigidas aos autos pela mesma testemunha H: “Não sendo parte no processo, não tem direito a nele intervir, a não ser nessa qualidade de testemunha.” (cf. despacho proferido a 08.02.2024).
XIII - Além do mais, ainda que se considere o processo de “Redressement Judiciaire” e respectivo plano de que a Recorrida terá sido alvo, a Recorrente não recebeu qualquer notificação no âmbito do respectivo processo de recuperação que terá corrido em França, designadamente para reclamar o seu crédito, em violação do disposto no artigo 54.º do Regulamento (UE) 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho.
XIV - Este facto central, repetido por quatro vezes pela Recorrente, nos requerimentos de 17.11.2023, 07.03.2024 e 30.09.2024 e 10.10.2024, e não contestado pela Recorrida, foi totalmente ignorado pela sentença do Tribunal a quo.
XV - Não tendo esta comunicação ocorrido, facto que a Recorrida nunca negou nem poderia negar, é inexigível que a Recorrente tivesse a obrigação de conhecer o referido processo de recuperação da Recorrida, que caso tivesse actuado de boa-fé teria informado a Recorrente, ainda que informalmente, do processo de “Redressement Judiciaire” em curso.
XVI - Desta forma, não pode o incumprimento flagrante do artigo 54.º do Regulamento (UE) 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho por parte da Recorrida beneficiá-la, resultando na extinção da presente instância.
XVII - De resto, a falta de reclamação de créditos num processo de recuperação nunca teria por consequência a extinção do crédito, mas quando muito a impossibilidade de o credor participar e votar no âmbito desse processo.
XVIII - Com efeito, se assim fosse, bastaria a qualquer devedor estrangeiro não notificar credores de outros Estados-Membros de planos de recuperação de que seja objecto para, facilmente, conseguir assim furtar-se ao pagamento das dívidas que estes credores legitimamente lhe exijam, beneficiando-se o infractor, numa solução que seria manifestamente atentatória do Direito.
XIX - Assim, o crédito da Recorrente não se extinguiu, sem prejuízo de o respectivo pagamento dever ser feito nos termos aprovados no processo de recuperação
XX - De resto, resulta do próprio plano de recuperação da Recorrida que os Credores que não intervieram no processo de recuperação judicial não teriam perdido o direito a reclamar o seu crédito ou a agir contra a Recorrida, mas antes teriam direito a um reembolso de 100% (!) da dívida, a ser pago em oito prestações ao longo de oito anos (cf. pp. 10 e 11 do Doc. 5 junto com a oposição não admitida, de 02.11.2022, e pp. 22, 23 e 24 do Doc. 3 junto com o requerimento da Recorrida de 07.02.2023).
XXI - Ou seja, quer se considere que o plano de recuperação da Recorrida é aplicável à Recorrente, quer se considere que não é, por a Recorrida ter incumprido o dever constante do artigo 54.º do Regulamento mencionado assim impossibilitando a Recorrente de reclamar o seu crédito, a presente acção reveste-se de utilidade, sendo necessário que o Tribunal competente decida sobre a existência do crédito peticionado, resultante de contrato de prestação de serviços celebrado ao abrigo de lei portuguesa.
XXII - Não cabe ao Tribunal a quo entrar em linha de conta com as condições em que o vencedor conseguirá executar a decisão a proferir, sendo que a sentença a proferir nestes autos pode ser executada em qualquer país da União Europeia em que a Recorrida tenha bens susceptíveis de penhora.
XXIII - Por tudo o exposto, fica claro que não há de forma alguma, no presente caso, qualquer inutilidade da lide e muito menos superveniente.
XXIV - Com efeito, a decisão de abertura do processo de “Redressement Judiciaire” é de 13.04.2021, anterior, por isso, ao procedimento europeu de injunção de pagamento iniciado pela Recorrente a 29.03.2022 e a própria aprovação do plano de recuperação, de 5.4.2022, é anterior à oposição apresentada pela Recorrida em 13.5.2022.
XXV - Ao escudar-se em julgar extinta a instância “sem que se tenha de apreciar nesta sede se o direito de crédito se extingue ou não em virtude de não ter sido reclamado na insolvência francesa”, a sentença recorrida acaba por, na prática, extingui-lo, uma vez que tendo o processo de recuperação sido encerrado, os Tribunais portugueses são os competentes para apreciação destes litigio.
XXVI - Assim, a sentença recorrida fez uma errada aplicação do disposto no artigo 277.º do Código de Processo Civil e no artigo 54.º do Regulamento (UE) 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, pelo que deve ser revogada e substituída por outra que determine o prosseguimento dos autos, com o que V. Exas. farão a habitual JUSTIÇA!”.
A Recorrida apresentou
Contra-Alegações
, culminadas com as seguintes
Conclusões
:
“A.
O Tribunal a quo julgou, e bem, a extinção da ação por inutilidade.
B.
Isto porque, ficou provado que:
i) a Requerida foi declarada como estando em processo de Redressement judiciaire; que é equiparado para efeitos do Regulamento (UE) 2015/848 ao processo de insolvência
ii) esse processo foi iniciado e declarado nos tribunais franceses, competentes para o efeito;
iii) os credores têm de reclamar os seus créditos para que vejam o seu direito reconhecido;
iv) o efeito da declaração do procedimento é a suspensão das ações pendentes, se iniciadas antes da
declaração, ou a proibição e consequente imediata extinção das ações se iniciadas após a declaração;
v) a presente ação, decorrente de um procedimento de injunção europeu, iniciou-se após a declaração de recuperação judicial da Requerida.
C.
Em obediência da legislação em vigor, designadamente do Regulamento (UE) supra citado, não podia o Tribunal a quo decidir de forma diferente.
D.
Veio a Recorrente apresentar uma “cronologia” do presente processo judicial, mas não se limita a apresentar essa cronologia, tecendo comentários e formulando conclusões quanto à enunciada cronologia.
E.
E, na prática, para tentar pôr em causa um despacho judicial datado de 08.02.2024, que a Recorrente entende ter sido proferido pelo Tribunal a quo em contradição com um outro anterior.
F.
Importa referir que a Recorrente poderia ter reagido a esse despacho com recurso aos mecanismos judiciais que tinha ao dispor, de forma a contestar efetivamente essa decisão e procurar uma outra, o que não sucedeu, motivo pelo qual, ao agir assim, aceitou a decisão em causa, mais, nem sequer é esse despacho objeto devidamente identificado do presente recurso e, assim sendo, não pode ser afetado.
G.
De todo o modo, a cronologia que a Recorrida entende ser de relevar, é aquela elencada pelo Tribunal a quo, na sentença recorrida, quando enuncia as decisões do Tribunal de Comércio de La Rochell (França), e, posteriormente, no âmbito do presente processo, o ofício do Sr. X, Administrador Judicial francês, datado de 04-06-2024, com a referência Citius 39551347, a remeter aos presente autos documentação (cópias certificadas de certidões apostiladas de decisões judiciais proferidas por tribunal francês) das quais resulta que a Recorrida foi declarada em recuperação judicial “Redressement judiciaire”, pelos tribunais franceses em 13 de abril de 2021.
H.
Note-se que o Sr. X foi indicado como testemunha porque tinha e tem um conhecimento profundo sobre a atividade da Recorrida, histórico dessa mesma atividade, relações comerciais e detalhes das mesmas e sobre a existência de credores da Recorrida e identificação dos mesmos.
I.
Claro está que, tem conhecimento desses elementos, por ser o Administrador Judicial no processo de “Redressement judiciaire” da Recorrida, que não é facto menor e que possa ser desvalorizável, como se não existisse e que se percebe que é a pretensão da Recorrente, afirmando que o Administrador Judicial francês juntou ao presente processo um “verdadeiro depoimento escrito”, quando juntou um ofício, datado de 04-06-2024, com a referência Citius 39551347, na qualidade de Administrador Judicial em França, no âmbito de um processo classificado como sendo de insolvência para efeitos de aplicação do Regulamento (UE), como adiante veremos.
J.
Ora, não se aceita tal alegação por razões óbvias e claramente identificadas na sentença proferida pelo Tribunal a quo, que a Recorrida subscreve, quando sustenta o Tribunal, como não poderia deixar de ser, que:
K.
i)
os administradores judiciários são auxiliares da justiça, conforme Anexo B do Regulamento (UE) 2015/848;
ii)
o Sr. Ceésar Hubben interveio no processo judicial nessa qualidade;
iii)
as ações judiciais são destino normal de comunicações de outros agentes e órgãos de justiça, nacionais e estrangeiros;
iv)
o Código de Processo Civil (CPC) não só não proíbe estas intervenções, como elas são usuais, designadamente as de Administradores de Insolvência, precisamente, comunicando a existência de processo de insolvência envolvendo alguma das partes, com as necessárias consequências legais;
v)
além do mais, rejeitar um ofício desta natureza pelo facto de o Sr. X estar indicado como testemunha, seria mesmo uma forma de alguma das partes no processo “(…) impedir esse agente auxiliar da justiça cumprir cabalmente as suas obrigações, de interesse público”.
L.
Acrescenta ainda a Recorrente, nesta parte das suas alegações, que nunca foi citada para o processo francês de “Redressement judiciaire”, e que alegou isso mesmo quatro vezes ao longo deste processo e que a Recorrida nunca contestou, o que não é verdade, importando referir que a Recorrida não sabe sequer se isso aconteceu ou não, nem tem de saber conforme resulta do artigo 54.º do Regulamento (UE)e, além do mais, e acima de tudo,
M.
se a Recorrente não foi citada e/ou se existiu a preterição de alguma formalidade legal em cumprimento da legislação francesa e Regulamento (UE), então é precisamente no ordenamento francês que terá de discutir o cumprimento ou incumprimento das formalidades legais alegadamente preteridas.
N. Não pode é, salvo melhor entendimento, querer fazê-lo no nosso ordenamento, que não tem competência para o efeito, apenas por lhe ser mais fácil e causar menos transtorno.
O.
Vem a Recorrente também afirmar que o processo francês de “Redressement judiciaire”, não é um processo de insolvência.
P.
A Recorrente está no seu direito de transmitir a sua opinião, no entanto, salvo o devido respeito, não se pode concordar com a mesma porque não é isso que decorre do Regulamento (UE).
Q. E, julga-se, mais claro o Regulamento (EU) não podia ser!
R.
Essa classificação não vem da imaginação da Recorrida nem do Tribunal a quo, mas, de forma expressa e que não suscita qualquer dúvida de interpretação, do Regulamento (UE) 2015/848, onde o processo de Redressement judiciaire” é considerando processo de insolvência, cfr. n.º 4 do artigo 2.º do Regulamento e
Anexo A:
S. E também não existe qualquer dúvida sobre a aplicação do Regulamento ao caso em apreço, nem a Recorrente argumenta e defende que não o seja, e, não existindo assim qualquer dúvida sobre a aplicação do Regulamento ao caso em apreço, mporta apelar à cronologia dos factos, e, para esse efeito,
T.
refira-se que a sentença judicial proferida por Tribunal Francês que declarou o “Redressement judiciaire” da Ré foi proferida em 13 de abril de 2021 e o procedimento de injunção europeu iniciado pela Recorrente contra a Recorrida iniciou-se em 29 de março de 2022, portanto, após aquela declaração.
U.
Consequentemente, estava a Recorrente impedida de iniciar procedimento para recuperação de valores em dívida, tendo, ao invés, de reclamar créditos no processo de insolvência estrangeiro, nos termos do Regulamento.
V.
Isto porque, nos termos e para os efeitos do artigo 19.º do Regulamento, qualquer decisão de abertura de processo de insolvência, como já vimos ser o caso,
“(…) é reconhecida em todos os outros Estados-Membros (…)”,
produzindo efeitos que lhe são atribuídos pela lei Estado de abertura do processo, cfr. artigo 20.º do Regulamento.
W.
E, desde logo, o diploma legal francês regulatório destas matérias, o Código Comercial Francês, estipula que os credores são obrigados a fazer valer os seus direitos contra o devedor exclusivamente no âmbito do processo de recuperação judicial, não podendo intentar ações individuais.
X.
E, como é habitual neste tipo de processos, que encontram similitudes nos diferentes Estados-Membro, a declaração de insolvência ou de recuperação judicial, implicam a proibição de pagamento no âmbito de qualquer procedimento ou processo, cfr. artigo L622-7 do Código Comercial Francês,
bem como, proíbe a instauração de ações ou execuções conta a empresa em recuperação, artigo L622-21 deste diploma legal francês, conforme explanado pelo Administrador Judicial francês no ofício, e também sustentado pelo Tribunal a quo.
Y.
E, assim sendo, ao contrário da Recorrente, a Recorrida limitou-se e limita-se a enunciar e citar os diplomas legais em vigor, aplicáveis ao caso em apreço, tendo o mesmo sido feito pelo Tribunal a quo na sentença proferida.
Z.
A título de curiosidade, o sistema francês e o regime da insolvência francês, encontrando algumas semelhanças com o nosso, não é igual.
AA.
Veja-se que, em França, existe um regime designado por “Procédure Collective”, equiparado a um regime de insolvência abrangente, tendo por sua vez esse regime diversos tipologias, entre os quais a “sauvegarde judiciaire”, o “redressement judiciaire” e a “liquidation judiciaire”.
BB.
Mas, apesar do regime francês, como vemos, ser diferente do nosso, podemos equiparar o processo de “redressement judiciaire” a um processo de insolvência nde é possível a continuidade da empresa através da apresentação de um plano de insolvência aos credores, que aprovaram, sendo a “liquidation judiciaire” a situação em que o plano e a manutenção da atividade da devedora não são possíveis e, consequentemente, é liquidada.
CC.
Essa informação está disponível em várias páginas de internet oficiais, designadamente do Governo francês e no Portal Europeu da Justiça, entre outros.
DD.
Certo é que, reafirma-se, nem sequer é necessária esta interpretação e caracterização / equiparação, porque o Regulamento (UE) não deixa qualquer margem para dúvidas ao classificar este processo como sendo de insolvência, com as necessárias consequências legais.
EE.
Classifica a Recorrente o ponto 3. das suas alegações de recurso, como “Objeto do Processo”, identificando o referido objeto como constando da sua totalidade do requerimento inicial, e, como tal, parece defender que, sendo esse o objeto do processo, ele é imutável, inatacável e que nada pode “desviar” as atenções do tribunal, designadamente eventos que cheguem ao conhecimento do tribunal.
FF.
Alegando que o ofício do Sr. Administrador Judicial francês constitui “depoimento escrito” e “defesas encapotadas”, o que não se pode aceitar.
GG.
Isto porque, o que fez o Sr. X, na sua qualidade de Administrador Judicial francês, foi intervir num processo judicial português, onde a Recorrida é Ré e através do qual uma entidade que alega ser credora, a Recorrente, pretende fazer valer o seu alegado direito de crédito sobre aquela.
HH.
E fê-lo assim que teve conhecimento deste processo judicial a correr os seus termos em Portugal, porque, até ao momento em que teve a primeira intervenção no processo, sempre nessa qualidade de Administrador Judicial, desconhecia o mesmo nem tinha forma de conhecer, visto que, não lhe foi comunicado.
II.
E, portanto, facilmente se conclui que as comunicações do Sr. X não são, nem “depoimentos escritos”, nem “defesas encapotadas”.
JJ.
De resto, em parte alguma do processo ou das alegações, a Recorrente põe em causa a qualidade do Sr. X como administrador judicial nomeado em França ou põe em causa o conteúdo dos documentos juntos pelo mesmo, tal como não põe em causa que a Recorrida é alvo de um processo de “Redressement
judiciaire” e da aplicação do Regulamento.
KK.
E, sendo tudo isto uma evidência, sendo factual e estando provado, à Recorrente apenas resta utilizar argumentos acessórios, como, por exemplo, referindo-se constantemente ao Sr. X, exclusivamente, como testemunha, como se fosse nessa invocada qualidade que este interveio no processo.
LL.
Olvidando e omitindo propositadamente a sua qualidade de Administrador Judicial e que foi nessa qualidade que interveio no processo, esquecendo também que, como refere o Tribunal a quo na sentença proferida, é um auxiliar da justiça e parecendo também esquecer-se que o Sr. X, não é um funcionário ou colaborador da Recorrida, não é um mandatado da Recorrida, é um Administrador Judicial independente e com funções e poderes atribuídos na lei.
MM.
Tal como, usa estes argumentos acessórios e desprovidos de sustentação legal quando se refere à certificação da tradução dos documentos juntos pelo Administrador Judicial, sem que aponte vícios ou erros na certificação ou na tradução.
NN.
Até porque, quando a Recorrente também pretende fazer crer quando menciona o despacho judicial de 08.02.2024, quando menciona que o Tribunal a quo decidiu que a testemunha não teria direito a intervir no processo,
omite que esse mesmo despacho refere de seguida que o requerimento apresentado pelo Sr. X, que o tribunal reconhecia como sendo testemunha no processo, não estava redigido na língua portuguesa, “desconhecendo-se a sua relevância para os autos”,
negrito e sublinhado nossos.
OO.
Ou seja, e concorda-se, o tribunal a quo nem sequer valorizou o que foi junto pelo Sr. X, desde logo por nem sequer estava redigido na língua portuguesa e, portanto, não se pronunciou o Tribunal a quo sobre o conteúdo da mesma.
PP.
Mais, veja-se, além do requerimento não estar sequer traduzido para a língua portuguesa, nesse momento apenas foi junta uma carta com uma descrição por parte do Sr. X, não juntado qualquer documento e, muito menos, como o fez posteriormente, decisões judiciais estrangeiras devidamente apostiladas, que sempre seria necessário para que o tribunal pudesse efetivamente pronunciar-se sobre o conteúdo, tal como, pudesse confirmar a invocada qualidade do Sr. X, Administrador Judicial francês em processo judicial francês, em que é parte a Recorrida.
QQ.
De resto, é precisamente o posterior ofício do Sr. X através do qual este envia comunicação traduzida e os documentos também traduzidos e apostilados, que o tribunal a quo considera para a ponderação e formulação da sentença proferida, como se analisa, “Posteriormente veio o administrador judicial X requerer a junção aos autos de cópias certificadas de certidões apostiladas de decisão de insolvência da requerida (…) concluindo que a presente ação deve ser extinta”.
RR.
Quanto a este ponto identificado pela Recorrente, concretamente do ponto 4.1. das suas alegações sob a epigrafe “Omissão de notificação da Recorrente”, desde já se reitera tudo o que já foi dito a este respeito, sem necessidade de o repetir por uma questão de economia.
SS.
Dizendo-se apenas, adicionalmente ao que já foi dito, que bem se vê pela análise do normativo citado pela Recorrente, que, desde logo, reconhece a existência de um processo de insolvência, porque é disso que trata o artigo 54.º do Regulamento (EU).
TT.
Mais, também fica evidente que não cabe certamente à Recorrida comunicar à Recorrente a existência de um processo de insolvência, mas, quando muito, a existir esse dever, que se desconhece nem se tem obrigação de conhecer, caberia ao órgão jurisdicional do Estado de insolvência ou ao administrador de insolvência por ele nomeado.
UU. Independentemente disso, o que a Recorrida tem como certo é que, considerando os efeitos da sentença que declarou a insolvência (“Redressement judiciaire”) da Recorrida, ou seja, a produção de efeitos, sem mais formalidades, em qualquer um dos demais Estados-Membros, cfr. artigo 20.º do Regulamento (EU), e, por consequência, como bem explanado na sentença do Tribunal a quo, a extinção de ações ou execuções contra a devedora, salvo as relativas a créditos constituídos regularmente após o julgamento da abertura do processo de “redressement”, cfr. L622-21 do “Code de commerce”, o que encontra similitudes com o processo de insolvência e recuperação de empresas em Portugal, sempre teria e terá a Recorrente, se assim entender, de discutir a eventual preterição de formalidades legais no ordenamento jurídico francês.
VV.
refere a Recorrente que “(…) bastaria a qualquer devedor estrangeiro não notificar credores de outros Estados-membros de plano de recuperação de que seja objeto, para, facilmente, conseguir furtar-se ao pagamento das dívidas (…)”.
WW.
Para se perceber que tal afirmação é desprovida de sentido, tendo por exemplo o nosso regime do CIRE, veja-se que no nosso ordenamento não existe qualquer obrigação por parte da devedora, do Administrador de Insolvência ou do Tribunal, de avisar os eventuais credores da devedora da declaração de insolvência, tão só existe a obrigação de citar os 5 maiores credores, e, quanto aos outros, terão de ter conhecimento pelos seus próprios meios, através da consulta das publicações, sendo que, em França também existe uma página de internet oficial para consulta onde são publicadas as declarações de insolvência.
XX. De qualquer forma, insiste-se, nem sequer isso é ou pode ser objeto da presente ação e recurso, devendo a Recorrida discutir essa alegada omissão de citação, se assim entender, no ordenamento jurídico francês.
YY.
Note-se que, pelo menos desde 02.11.2022 tem a Recorrente conhecimento que a Recorrida foi declarada como estando num processo de “Redressement judiciaire”, desconhecendo-se, sem obrigação de conhecer, se tomou algum tipo de providência no processo em questão ou através de outro tipo de ação no ordenamento jurídico francês.
ZZ.
E continua ainda a Recorrente no ponto 4.2. das suas alegações para vir trazer ao presente processo considerações sobre o conteúdo do plano aprovado, afirmando que a Recorrente teria direito ao pagamento de 100% do seu crédito, ao abrigo do plano.
AAA.
Além de, uma vez mais, a Recorrida sustentar que essa discussão não pode ter lugar aqui, mas no ordenamento jurídico francês, importa deixar claro que a Recorrente parte deste raciocínio esquecendo que, antes de ser ressarcida ao abrigo do plano, terá de ser credora reconhecida no processo a decorrer em França e, não o sendo, terá de reagir no referido processo, seja reclamando créditos se ainda em tempo, seja através de qualquer outro mecanismo que possa existir similar à verificação ulterior de créditos, seja invocando preterições de formalidades legais, se for o caso, ou qualquer outro mecanismo que possa usar e onde invocar o que entender, e que tenha respaldo na lei aplicável, a francesa.
BBB.
E, por fim, vem a Recorrente tecer considerações sobre a alegada inexistência de uma inutilidade superveniente da lide.
CCC.
Mais uma vez, não se pode concordar com a Recorrente, porquanto decidiu bem o Tribunal a quo na sentença proferida, em declarar a inutilidade da lide por força do processo de Redressement judiciaire.
DDD.
O diploma legal francês regulatório destas matérias, o Código Comercial Francês, estipula que os credores são obrigados a fazer valer os seus direitos contra o devedor, exclusivamente no âmbito do processo de recuperação judicial, não podendo intentar ações individuais.
EEE.
E, como é habitual neste tipo de processos, que encontram similitudes nos diferentes Estados-Membro, a declaração de insolvência ou de recuperação judicial, implicam a proibição de pagamento no âmbito de qualquer procedimento ou processo, cfr. artigo L622-7 do Código Comercial Francês, documento n.º 1 e cujo teor se dá por integralmente e reproduzido para os devidos efeitos legais, junto com o requerimento da Recorrida de 30.09.2024, com a referência Citius 40556989.
FFF. Mais, na verdade, independentemente do Direito utilizado para a análise relativamente aos efeitos da sentença de insolvência sobre ações judiciais,
GGG. o resultado sempre seria o mesmo, ou seja, a impossibilidade de o Credor iniciar ou manter procedimentos legais contra o Devedor, para recuperação de dívidas.
HHH.
E, a este respeito, a título meramente exemplificativo, importa salientar que é interpretação dos nossos tribunais, declarada por Acórdão de uniformização de jurisprudência, datado de 08-05-2013, no âmbito do processo 70/08.0TTALM.L1.S1, disponível em
www.dgsi.pt
, que o tipo de ação legal em discussão nos presentes autos é abrangida por aquelas normas, transcrevendo-se o Sumário da mesma: “Transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art.º 287.º do C.P.C. “
III.
Motivo pelo qual é forçoso concluir, salvo melhor entendimento, que o Tribunal a quo decidiu bem ao declarar a extinção por inutilidade.
JJJ.
Entendendo mesmo a Recorrida que a presente ação sempre teria de ser extinta, independentemente de se considerar a verificação de uma inutilidade superveniente da lide, cfr. artigo 287.º do CPC, em resultado da junção aos autos pelo Sr. Administrador Judicial e verificação, após o início da presente ação, da existência de declaração anterior de insolvência estrangeira da Recorrida, ou de se constatar a verificação de uma exceção dilatória de conhecimento oficioso, que obsta ao prosseguimento da ação, cfr. artigo 577.º do CPC.
Nestes termos e nos mais de Direito, deve o presente recurso ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se a douta Sentença recorrida e ordenada a extinção da ação.
**
Questões a Decidir
São as Conclusões da Recorrente que, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, delimitam objectivamente a esfera de actuação do Tribunal
ad quem
(exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial, como refere,
Abrantes Geraldes
[1]
), sendo certo que, tal limitação, já não abarca o que concerne às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil), aqui se incluindo qualificação jurídica e/ou a apreciação de questões de conhecimento oficioso.
In casu
, e na decorrência das Conclusões da Recorrente, importará verificar se o Tribunal
a quo
procedeu de forma correcta ao julgar a acção extinta por inutilidade.
**
Dispensados que foram os Vistos, cumpre decidir.
*
**
Fundamentação de Facto
A Factualidade a relevar é a que resulta descrita no Relatório, em especial a que consta da Sentença ora sob recurso.
****
Fundamentação de Direito
A bem estruturada escorreita, pragmática e sem “ruído”, e juridicamente bem fundamentado Sentença sob recurso, assenta o decidido num claríssimo processo de raciocínio, atrás linearmente descrito.
E é dele que sublinhamos o seguinte:
I – O Tribunal de Comércio de La Rochelle (França):
- a 13 de Abril de 2021 abriu um processo de recuperação judicial contra a “H” (ora Requerida-Recorrida) sob o número 4117270, designou-lhe um mandatário judiciário, abriu um período de observação por uma duração de 6 meses e fixou a data de cessação dos pagamentos a 25 de Setembro de 2019;
- a 19 de Outubro de 2021 ordenou a renovação do prazo de observação por uma duração de 6 meses (com termo a 13 de Abril de 2022);
- a 10 de Maio de 2022 ordenou a adopção de um plano de recuperação por um período de 8 anos e designou um comissário de execução do plano.
2 - Neste contexto, não é possível escapar à aplicação do
Regulamento (EU) 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de Maio de 2015
, relativo aos processos de insolvência, o qual prevê, no seu artigo 20.º, que a decisão de abertura de um processo de insolvência referido no artigo 3.º, n.º 1 (ou seja, um processo principal de insolvência, aberto no Estado-membro em que se situe o centro dos interesses principais do devedor, fazendo o Regulamento presumir que esse lugar é o da sede estatutária da sociedade comercial), produz,
sem mais formalidades
,
em qualquer dos demais Estados-Membros
, os efeitos que lhe são atribuídos pela lei do Estado de abertura do processo.
3 – Estas decisões – que se mostram comprovadas nos autos, sem que tal mereça dúvida – constituem decisões judiciais prolatadas num Estado pertencente à União Europeia (França), pelo que produzem em Portugal (e, portanto, nestes autos), os efeitos que a lei determina (no caso, a lei do Estado-membro no qual foi aberto o processo de insolvência, como resulta do artigo 7.º (Lei aplicável), n.º 2, alínea f,
[2]
do referido Regulamento), sem necessidade de qualquer outra diligência.
4 – A “procédure de redressement judiciaire” é uma das espécies processuais que integram a lista de processos franceses constantes do Anexo A do citado Regulamento, não se suscitando quaisquer dúvidas
[3]
sobre a circunstância de se tratar de um “processo de insolvência”, para efeitos da aplicação do Regulamento, por força do seu artigo 2º (Definições), n.º 4
[4]
.
5 – Tal como ocorre com o artigo 90.º do CIRE
[5]
, em face do artigo
L622-21 do Code de commerce
, as acções declarativas que visam o reconhecimento de um crédito sobre o insolvente estão condenadas à inutilidade
(“na medida em que a lei francesa impede a sua instauração e obriga os credores a reclamar os seus créditos na insolvência”
, como se assinala na Sentença sob recurso).
6 – O caso dos autos é precisamente este: a Requerida – sociedade francesa – foi declarada insolvente em França, em 2021, sendo que a Autora, só em Março de 2022 e nos Tribunais portugueses veio – através dos presentes autos – procurar cobrar o seu crédito sobre aquela.
Esta é, efectivamente, a matéria relevante e insofismável, e implica que se lhe extraiam consequências processuais, que só podem ser as que o Tribunal extraiu e que acabam por corresponder às que o Supremo Tribunal de Justiça também extrai à face da legislação nacional (“Transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a ação declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art.º 287.º do C.P.C.” – AUJ n.º 1/2014, Diário da República, I série de 25 de Fevereiro de 2014).
Os processos em Tribunal não servem para perder tempo ou para praticar actos inúteis (aliás, proibidos – artigo 130.º do Código de Processo Civil), sendo que a extinção ou não do crédito da Autora é matéria que só os Tribunais franceses poderão caber apreciar, em face da insolvência decretada e de nesse processo ele não ter sido reclamado.
A argumentação da Autora não faz qualquer sentido e escamoteia o que acaba de se sublinhar.
Falar em caso julgado raia mesmo o absurdo, uma vez que a decisão de não admissão da oposição da Requerida, confirmada pela Relação (em Acórdão também relatado pelo ora Relator), apenas estava em causa a forma de “reagir ao procedimento intentado”, pois que se limitou a “a dizer que se opõe e preenchendo, sem mais, o formulário (com o que ficam impugnados os factos alegados) - e tal basta para o processo prosseguir e ter de ser remetido para o Tribunal competente - ou acrescentando-lhe o que entender para consubstanciar o fundamento dessa oposição (como aliás a Requerente-Autora fez, acrescentando um documento articulado ao formulário inicial)”.
Em momento algum, o Tribunal se pronunciou sobre qualquer parte da matéria fizesse parte da extemporânea oposição da Requerida.
Sucede que, por via da documentação apresentada por um elemento externo com especiais funções (Administrador Judicial francês da Requerida), a documentação junta (aliás, devidamente apostilada) permitiu ao Tribunal
a quo
fazer a sua apreciação e extrair as certeiras conclusões que tirou.
Por outro lado, o que terá ou não sido feito no processo francês (se a Requerente-Recorrente recebeu ou não alguma notificação), apenas nesse processo, ou nessa ordem jurídica poderá ser apreciado. Não nos presentes autos.
O que aqui, em Portugal e nestes autos, releva é a decisão transitada quanto à insolvência da Requerida (era isso – e apenas isso – que o Tribunal
a quo
tinha de apreciar e apreciou).
Repete-se: perante a insolvência da Requerida, e na linha do que o já citado AUJ determina, os presentes autos sempre teriam de ser julgados supervenientemente inúteis. Tudo o mais é secundário e irrelevante.
Por todo o exposto, o recurso será julgado improcedente e a Decisão – correcta, pragmática e bem fundamentada – terá de ser confirmada.
***
Nas palavras de
Eric Voegelin
as “sociedades dependem para a sua génese, a sua existência harmoniosa continuada e a sobrevivência, das acções dos seres humanos componentes. A natureza do homem e a liberdade da sua acção para o bem e para o mal, são factores essenciais na estrutura da sociedade"
[6]
.
Recorrente e Recorrida escolheram o seu caminho de actuação.
Ao Tribunal resta, no "acto de julgar", não dar razão a Autora, considerando improcedente o seu recurso (tendo, na linha de
Paul Ricoeur
, como "horizonte um equilíbrio frágil entre os dois componentes da partilha" - "demasiado próximos no conflito e demasiado afastados um do outro na ignorância, no ódio, ou no desprezo" - mas impondo-se, "por um lado, pôr fim à incerteza, separar as partes; por outro, fazer reconhecer a cada um a parte que o outro ocupa na mesma sociedade, em virtude do que o ganhador e o perdedor do processo seriam reputados ter cada qual a justa parte no esquema de cooperação que é a sociedade"
[7]
).
***
DECISÃO
Com o poder fundado no artigo 202.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, e nos termos do artigo 663.º do Código de Processo Civil,
acorda-se
, nesta 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, face à argumentação expendida e tendo em conta as disposições legais citadas, em
julgar
improcedente
a apelação apresentada pela Requerente e, em consequência,
confirmar a Sentença
sob recurso.
*
Custas do Recurso a cargo da Recorrente.
*
Notifique e, oportunamente, remeta à 1.ª Instância (artigo 669.º do Código de Processo Civil).
***
Lisboa, 18 de Fevereiro de 2025
Edgar Taborda Lopes
Micaela Sousa
João Novais
[8]
_______________________________________________________
[1]
António Abrantes Geraldes,
Recursos no Novo Código de Processo Civil, 6.ª edição Atualizada, Almedina, 2020, página 183.
[2]
“
A lei do Estado de abertura do processo determina as condições de abertura, tramitação e encerramento do processo de insolvência. A lei do Estado de abertura do processo determina, nomeadamente
:(…) f) “
Os efeitos do processo de insolvência nas ações instauradas por credores singulares, com exceção das ações pendentes;
”.
[3]
Cfr. o artigo 86.º, n.º 1, do Regulamento dispõe que
“Os Estados-Membros fornecem, no âmbito da Rede Judiciária Europeia em matéria civil e comercial criada pela Decisão 2001/470/CE do Conselho
, com vista a colocar as informações à disposição do público, uma breve descrição da respetiva lei e dos procedimentos aplicáveis no domínio da insolvência, em especial no que se refere aos aspetos indicados no artigo 7.
o
, n.
o
2”
.
Assim, no site
https://e-justice.europa.eu/447/PT/insolvencybankruptcy?FRANCE&member
=,
consta, quanto aos
“efeitos do processo de insolvência relativamente aos processos instaurados por credores singulares (com exceção dos processos pendentes”,
que em
“caso de processo de insolvência, os credores são obrigados a fazer valer os seus direitos contra o devedor exclusivamente no âmbito do processo de insolvência, não podendo intentar ações individuais para reclamar o pagamento pelo devedor”
(num regime, portanto, muito semelhante ao vigente em Portugal – artigo 90.º CIRE).
Assim, o artigo
L622-21 do “Code de commerce
”
(“I.-Le jugement d'ouverture interrompt ou interdit toute action en justice de la part.º de tous les créanciers dont la créance n'est pas mentionnée au I de l'article
L. 622-17
et tendant: 1° A la condamnation du débiteur au paiement d'une somme d'argent ; 2° A la résolution d'un contrat pour défaut de paiement d'une somme d'argent
”), proíbe a instauração de acções ou execuções contra a empresa em recuperação, excluindo apenas os créditos previstos no
n.º 1 do artigo L622-17
(
“I.-Les créances nées régulièrement après le jugement d'ouverture pour les besoins du déroulement de la procédure ou de la période d'observation, ou en contrepartie d'une prestation fournie au débiteur pendant cette période, sont payées à leur échéance
”)
ou seja, os constituídos regularmente após o julgamento de abertura do processo de recuperação ou
redressement
.
[4]
“
Para efeitos do presente regulamento, entende-se por: (…) 4) «Processo de insolvência», os processos enumerados no anexo A;”.
[5]
Vd., também o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 1/2014 (Diário da República I série, de 25 de Fevereiro de 2014):
“Transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a ação declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art.º 287.º do C.P.C.”.
[6]
Eric Voegelin,
A Natureza do Direito e outros textos jurídicos, Vega, 1998, página 95.
[7]
Paul Ricoeur,
O Justo ou a Essência da Justiça, Instituto Piaget, 1997, páginas 168-169; cfr., também, com interesse,
François Ost,
A Natureza à Margem da Lei - A Ecologia à Prova do Direito, Instituto Piaget, 1997, páginas 19 a 24.
[8]
Assinaturas digitais, cujos certificados estão visíveis no canto superior esquerdo da primeira página (
artigos 132.º, n.º 2 e 153.º, n.º 1, do Código de Processo Civil e 19.º, n.ºs 1 e 2, e 20.º, alínea b), da Portaria n.º 280/2013, de 26 de Agosto).
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TRL
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https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/e799ec244b6c723380258c3d004b1da3?OpenDocument
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1,747,267,200,000
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DIRIMIDO
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30/24.7PTBRR-B.L1-5
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30/24.7PTBRR-B.L1-5
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MARIA JOSÉ MACHADO
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I - É ao juiz natural, isto é, àquele a quem o processo é distribuído, nos termos dos artigos 203.º a 212.º do Código de Processo Civil, que compete a realização do julgamento, só podendo essa competência ser deslocada para outro tribunal ou juízo nos casos especialmente previstos na lei (artigo 39.º da LOSJ - Lei n.º62/2013 de 26/08, que proíbe o desaforamento).
II - A competência por conexão, cujos pressupostos e condições estão previstos nos artigos 24.º a 31.º do Código de Processo Penal constitui um desvio às regras normais de competência e uma excepção ao princípio de que a cada crime corresponde um processo, determinando a consequente modificação da competência material ou territorial ou de ambas e permitindo que a competência possa ser deslocada para outro tribunal ou juízo, que não aquele onde o processo foi distribuído.
III - Quando exista, a conexão de processos só opera relativamente aos processos que se encontrarem simultaneamente na fase processual de inquérito, de instrução ou de julgamento (n.º2 do artigo 24.º do Código de Processo Penal) e a decisão que a determina é susceptível de recurso, segundo a regra geral do artigo 399.º do Código de Processo Penal, por a irrecorribilidade não estar prevista na lei, só produzindo efeitos após esse trânsito em julgado.
IV - Não é de aplicar o regime previsto nos artigos 30.º e 31.º, alínea b) do Código de Processo Penal, respeitante à prorrogação da competência do tribunal titular do processo principal, quando haja separação de algum processo com ele conexo, pois o mesmo pressupõe que tenha havido uma conexão reconhecida com trânsito em julgado, o que não aconteceu no caso dos autos.
|
[
"JUIZ NATURAL",
"DISTRIBUIÇÃO",
"AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO",
"CONEXÃO DE PROCESSOS",
"SEPARAÇÃO DE PROCESSOS"
] |
I –Relatório:
1. No âmbito do processo especial abreviado n.º 30/24.7PTBRR do Juízo Local Criminal do Barreiro, juiz 2, veio o Exmo. juiz suscitar a resolução do conflito negativo de competência que o opõe ao Exmo. juiz 1 do mesmo tribunal, para o julgamento do processo n.º 112/24.5PTBRR, mandado apensar àquele, com fundamento na conexão de processos.
2. Cumprido que foi o disposto no artigo 36.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, apenas a Exma. Procuradora-Geral Adjunta se pronunciou no sentido de “não estarmos perante um verdadeiro conflito negativo de competência que, em todo o caso, deve ser dirimido com a atribuição da competência para o julgamento no P. 112/24.5PTBRR ao Juiz 1 do Juízo Local Criminal do Barreiro”.
3. Sendo este o tribunal competente para conhecer do conflito, nos termos do artigo 12.º, n.º 5, alínea a) do Código de Processo Penal, cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentação
1. Elementos relevantes para a decisão:
a) Por despacho de 05/11/2024, a senhora juíza titular do Juiz 1 do Juízo Local Criminal do Barreiro, determinou a apensação do processo n.º 112/24.5PTBRR, ao processo n.º30/24.7PTBRR, a correr termos no mesmo Juízo Local Criminal, Juiz 2, com fundamento na conexão de ambos os processos, ao abrigo do disposto nos artigos 25.º, 26.º a contrario, 28.º, al. c) e 29.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
b) Na sequência desse despacho, na mesma data, foi o processo n.º 112/24.5PTBRR remetido ao juiz 2 para apensação ao processo n.º 30/24.7PTBRR.
c) A 11/11/2024, realizou-se a audiência de julgamento no processo n.º 30/24.7PTBRR, que apenas recaiu sobre os factos imputados neste processo, tendo sido proferida sentença condenatória, cujo dispositivo ficou a constar da acta.
d) A 4/02/2025, o senhor Juiz 2, do Juízo Local Criminal do Barreiro proferiu despacho no processo n.º 30/24.7PTBRR mediante o qual ordenou a desapensação do processo n.º 112/24.5PTBRR e a sua remessa ao Juiz 1 do mesmo Juízo Local Criminal, nos seguintes termos: (transcrição do despacho):
«Nos presentes autos, foi a arguida condenada por sentença na pena de 40 (quarenta) dias de multa à razão diária de € 5,00 (cinco euros), perfazendo a multa global de € 200,00 (duzentos euros).
A sentença foi pessoalmente notificada à arguida em 19-11-2024 (cf. teor da certidão de notificação positiva – ofício de 20-11-2024, ref.ª 41109106).
Até ao momento, arguida não interpôs recurso da referida sentença, pelo que a mesma já transitou em julgado, pelo decurso do respetivo prazo (cf. artigo 411.º, n.º 1, al. a) do CPP).
Constata-se que, em momento anterior, foram os autos com o n.º de processo 112/24.5PTBRR remetidos a estes autos para apensação na sequência de despacho proferido em 05-11-2024.
Sucede que, conforme referido na promoção que antecede, não se tendo verificado atempadamente que o processo n.º 112/24.5PTBRR havia sido remetido aos presentes autos para apensação, não foi dada sem efeito a data para a realização da audiência de julgamento no âmbito dos presentes autos (dia 11-11-2024), tendo os mesmos prosseguido e, conforme referido supra, já houve lugar à prolação de sentença, já transitada em julgado.
Notificada da promoção que antecede, nada veio a arguida comunicar aos autos.
Deste modo, fica assim prejudicada a utilidade da apensação determinada pelo despacho proferido em 05-11-2024, a qual, na presente data, não se afigura mais possível.
Nestes termos, determina-se a desapensação dos autos de processo n.º 112/24.5PTBRR e que sejam os mesmos, em consequência, remetidos ao Juízo Local Criminal do Barreiro – Juiz 1.
Notifique.»
e) Recebido o processo n.º 112/24.5PTBRR no Juiz 1 do Juízo Local Criminal do Barreiro, por despacho de 18/02/2025, a senhora juíza determinou a devolução dos autos ao Juiz 2 do mesmo Juízo Local, nos seguintes termos: (transcrição do despacho)
«Nos presentes autos, por despacho de 05-11-2024, determinou-se a apensação dos mesmos aos autos n.º 30/24.7PTBRR que corriam os seus termos neste Juízo Local Criminal do Barreiro – J2 (apensação esta que não foi posta em causa, não tendo sido suscitado qualquer conflito negativo de competência).
Acontece que, tendo sido realizada audiência de julgamento a 11-11-2024, não foi considerado na mesma o processo apenso (os nossos autos), tendo sido efetuado o julgamento e proferida sentença como se não tivesse sido previamente determinada a referida apensação e desatendendo à conexão processual verificada.
O despacho proferido a 04.02.2025 veio, então, determinar a desapensação dos nossos autos, invocando que teria ficado “prejudicada a utilidade da apensação” – pese embora não se alcance, exatamente, em qual das alíneas do n.º 1 do art.º 30.º do Código do Processo Penal se pretende enquadrar a presente separação de processos, a verdade é que as regras de prorrogação da competência previstas no art.º 31.º do Código do Processo Penal se deverão ter como aplicáveis (dado que estamos perante uma separação de processos), ou seja, tendo sido determinada a competência por conexão, esta dever-se-á manter após a separação de processos.
Pelo exposto, nos termos do disposto no art.º 31.º, al. b) do Código do Processo Penal e das regras de prorrogação da competência determinada por conexão, determina-se a devolução dos autos ao Juízo Local Criminal do Barreiro – Juiz 2.»
f) No juiz 2 do Juízo Local Criminal do Barreiro, o senhor juiz proferiu despacho no processo n.º 30/24.7PTBRR, no qual se declarou incompetente para o julgamento do processo n.º 112/24.5PTBRR, por entender que o despacho que determinou a sua apensação não havia transitado em julgado na data em foi realizada a audiência de julgamento, daquele outro, o que impedia a apontada conexão de processos, pois que quando transitou já os dois processos se encontravam em distintas fases processuais.
2. Apreciação
Estabelece o artigo 34.º do Código de Processo Penal:
«1. Há conflito, positivo ou negativo, de competência quando, em qualquer estado do processo, dois ou mais tribunais, de diferente ou da mesma espécie, se considerarem competentes ou incompetentes para conhecer do mesmo crime imputado ao mesmo arguido».
2. O conflito cessa logo que um dos tribunais se declarar, mesmo oficiosamente, incompetente ou competente, segundo o caso.»
A lei é clara quanto aos pressupostos legais do conflito. Traduz-se numa divergência entre dois ou mais tribunais em relação ao conhecimento de um feito jurídico-criminal, e surge quando mais do que um tribunal da mesma espécie (v.g. tribunal judicial) ou de espécie diversa (v.g. tribunal judicial e tribunal não judicial) se reconhecem ou não se reconhecem competentes para conhecer quanto à existência de um crime cuja prática é atribuída ao mesmo arguido.
Se todos os tribunais em oposição se arrogam competentes estamos perante conflito positivo; se declinam a competência ocorre conflito negativo.
No caso dos autos, não estamos propriamente perante um conflito de competência para o julgamento do processo n.º 112/24.5PTBRR pois, na realidade, o tribunal em causa detém competência material e territorial para a sua realização, nem, aliás, os senhores juízes colocam em causa essa competência do tribunal.
A questão é que só um dos juízes pode realizar o julgamento e ambos recusam fazê-lo, o que acaba por se traduzir num conflito “improprio” ou “atípico”, que importa resolver.
É ao juiz natural, isto é, àquele a quem o processo é distribuído, nos termos dos artigos 203.º a 212.º do Código de Processo Civil, que compete a realização do julgamento, só podendo essa competência ser deslocada para outro tribunal ou juízo nos casos especialmente previstos na lei (artigo 39.º da LOSJ - Lei n.º62/2013 de 26/08, que proíbe o desaforamento).
A competência por conexão, cujos pressupostos e condições estão previstos nos artigos 24.º a 31.º do Código de Processo Penal constitui precisamente um desvio às regras normais de competência e uma excepção ao princípio de que a cada crime corresponde um processo, determinando a consequente modificação da competência material ou territorial ou de ambas e permitindo que a competência possa ser deslocada para outro tribunal ou juízo, que não aquele onde o processo foi distribuído.
Quando exista, a conexão de processos só opera relativamente aos processos que se encontrarem simultaneamente na fase processual de inquérito, de instrução ou de julgamento (n.º 2 do artigo 24.º do Código de Processo Penal) e a decisão que a determinar é susceptível de recurso, segundo a regra geral do artigo 399.º do Código de Processo Penal, por a irrecorribilidade não estar prevista na lei (cf. Henriques Gaspar, ponto 7 da anotação ao artigo 24.º do Código de Processo Penal , in Código de Processo Penal Comentado, 2014, Almedina, p. 98).
Quando estejam em causa processos distintos relativamente aos quais existe conexão procede-se à apensação de todos àquele que respeitar ao crime determinante da competência por conexão e a partir desse momento a continuidade processual e os actos de sequência passam a ser tramitados num só processo, que é o processo principal que respeitar ao crime que determinou a competência por conexão, mantendo-se este competente mesmo no caso de posteriormente ocorrer a separação dos processos nos termos do artigo 30.º.
Porém, essa apensação só pode ser feita quando tiver transitado em julgado a decisão que determinou a conexão.
No caso em apreciação, foi determinado, pela senhora juiz 1, a conexão do processo n.º 112/24.5PTBRR com o processo n.º 30/24.7PTBRR do mesmo tribunal, mas distribuído ao juiz 2, ambos, então, na fase do julgamento e relativamente à mesma arguida, tendo, em consequência, remetido o processo para apensação a este último, a fim de ambos serem julgados conjuntamente.
A remessa para essa apensação terá ocorrido imediatamente após ter sido proferido o despacho que determinou a conexão, sem que o mesmo tivesse transitado em julgado e a seis dias da data designada para o julgamento no processo n.º 30/24.7PTBRR, o qual foi realizado pelo senhor juiz 2, sem que se tenha pronunciado sobre o processo apensado, por nem sequer ter havido, segundo o mesmo, a percepção da sua apensação.
Tendo sido realizado o julgamento no processo n.º 30/24.7PTBRR, quando a decisão que determinou a apensação ao mesmo do processo n.º 112/24.5PTBRR para julgamento conjunto, não havia ainda transitado em julgado, deixou de poder operar a conexão, nos termos do n.º 2 do artigo 24.º do Código de Processo Penal.
Efectivamente, como é realçado pelo Ministério Público no seu parecer os processos deixaram de estar na mesma fase processual, uma vez que já fora realizado o julgamento num deles, não sendo legítima a apensação em causa.
Não é de aplicar o regime previsto nos artigos 30.º e 31.º, alínea b) do Código de Processo Penal, respeitante à prorrogação da competência do tribunal titular do processo principal, quando haja separação de algum processo com ele conexo, pois o mesmo pressupõe que tenha havido uma conexão reconhecida com trânsito em julgado e a conexão determinada pela senhora juiz 1 não chegou a operar por ter sido inoportuna a ordem de apensação do seu processo n.º112/24.5PTBRR ao processo n.º 30/24.7PTBRR, entretanto julgado.
Como tal, e sem necessidade de mais argumentação, se conclui no sentido de a competência para a tramitação e julgamento do processo n.º112/24.5PTBRR pertencer ao Juiz 1 do Juízo Local Criminal do Barreiro.
III - Decisão
Termos em que, decidindo o presente conflito negativo “impróprio”, atribui-se a competência para a tramitação e julgamento do processo em referência ao Exmo. juiz 1 do Juízo Local Criminal do Barreiro.
Sem tributação.
Cumpra-se o artigo 36.º, n.º 3 do Código de Processo Penal.
Lisboa, 15/05/2025
(processei e revi – art.º 94, n.º 2 do C.P.P.)
Maria José Machado
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TRL
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https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/1260cf7a3c34260380258c930051c48b?OpenDocument
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1,746,489,600,000
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APELAÇÃO PROCEDENTE
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1516/23.6T8VRL-F.G1
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1516/23.6T8VRL-F.G1
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ROSÁLIA CUNHA
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I - Nos termos do art. 613º, nº 1, do CPC, proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa.
II - Da “
extinção do poder jurisdicional consequente ao proferimento da decisão decorrem dois efeitos: um positivo, que se traduz na vinculação do tribunal à decisão que proferiu; outro negativo, consistente na insusceptibilidade de o tribunal que proferiu a decisão tomar a iniciativa de a modificar ou revogar
”.
III - Se o tribunal, em desrespeito do comando ínsito no art. 613º, nº 1 (e fora dos ressalvados casos de retificação, reforma ou suprimento de nulidades) proferir outra decisão que incida sobre a mesma matéria que já foi anteriormente apreciada, a nova decisão que padeça de tal vício é juridicamente ineficaz.
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[
"IMPUGNAÇÃO DE CRÉDITOS",
"ESGOTAMENTO DO PODER JURISDICIONAL",
"CONSEQUÊNCIAS"
] |
Acordam, em conferência, na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães:
RELATÓRIO
AA
apresentou-se à insolvência em 22.6.2023, tendo a insolvência sido declarada por sentença proferida em 26.6.2023.
Em 18.9.2023, a Sr.ª Administradora da Insolvência (AI) juntou a lista de credores reconhecidos e não reconhecidos e proposta de graduação de créditos no âmbito do apenso A.
A lista foi objeto de várias impugnações, nomeadamente:
- Em 3.10.2023 BB e outros impugnaram o crédito de CC;
- Em 3.10.2023 DD impugnou o crédito de BB;
- Em 3.10.2023 BB e outros impugnaram o crédito de EMP01... SARL;
- Em 3.10.2023 BB e outros impugnaram os créditos de DD e de EMP02..., Lda.;
- Em 4.10.2023 BB e outros impugnaram o crédito de EMP03..., S.A.
Em 17.10.2023, BB respondeu à impugnação de DD.
Em 18.10.2023, o insolvente veio pedir que o requerimento apresentado por DD, em 3.10.2023, não seja considerado e seja desentranhado, por a mesma não ter a qualidade de credora.
Em 5.2.2024 foi lavrada cota no processo, cujo teor qui se dá por integralmente reproduzido, no qual se considerou que as impugnações de 3.10.2023 foram apresentadas no 3º dia útil após o termo do prazo sem que tenha sido efetuado o pagamento da multa prevista no art. 139º, nº 5, do CPC, pelo que foram emitidas guias para pagamento das multas as quais foram remetidas aos mandatários dos impugnantes.
Na sequência dessas notificações, DD, em 6.2.2023, apresentou reclamação quanto às guias emitidas.
Em 28.2.2024 foi proferido despacho que indeferiu a reclamação apresentada em 6.2.2023 por DD e determinou a emissão de novas guias.
Em cumprimento do aludido despacho, em 29.2.2023 foi emitida nova guia, a qual foi notificada na mesma data, tendo como data limite de pagamento 14.3.2024.
Em 4.3.2024, EMP03..., S.A. apresentou resposta à impugnação de créditos deduzida por BB e outros.
Em 5.3.2024, EMP02..., Lda apresentou resposta à impugnação de créditos deduzida por BB e outros.
Em 5.3.2024, DD apresentou resposta à impugnação de créditos deduzida por BB e outros.
Em 7.3.2024, CC apresentou resposta à impugnação de créditos deduzida por BB e outros.
Em 15.3.2024, EMP01... SARL apresentou resposta à impugnação de créditos deduzida por BB e outros.
Em 20.3.2024, DD veio requerer a emissão de nova guia de pagamento porque se esqueceu de concretizar o pagamento dentro do período indicado.
Em
28.3.2024
, BB e outros vieram responder à resposta apresentada por EMP01... SARL em 15.3.2024 e pediram a condenação desta como litigante de má-fé.
Em
11.4.2024
, EMP01... SARL respondeu ao requerimento de 28.3.2024, apresentado por BB e outros, nomeadamente no que toca ao pedido de condenação como litigante de má-fé.
Em 5.6.2024 foi lavrada cota com o seguinte teor:
“
compulsados os autos verifica-se que, por requerimento apresentado em 20-3-2024, a credora DD requereu a emissão de novas guias para pagamento da multa prevista no art. 139º nºs 5 e 6 do CPC, pela apresentação do requerimento de impugnação de créditos em 3-10-2023, refª ...04.
Conforme já determinado no despacho proferido em 28-2-2024, nesta data, remete-se nova guia para pagamento da multa em falta
.”
Na sequência desta cota, em 5.6.2024 foi emitida guia para pagamento da multa, tendo como prazo limite 21.6.2024, a qual foi notificada à mandatária respetiva.
Em
13.6.2024
, BB apresentou requerimento no qual invocou a existência de diversas nulidades processuais com vista a que não se atendesse à impugnação do seu crédito apresentada em 3.10.2023, por DD, por esta não ter efetuado tempestivamente o pagamento da multa devida pela prática do ato fora de prazo.
Em
12.9.2024
, foi proferido despacho (ref. Citius 39983094) que, na parte que aqui releva tem o seguinte teor:
“
Nos termos do disposto nos arts. 130º e segs. do CIRE, apenas se revela admissível articulado de impugnação da lista de créditos e de resposta à impugnação, o que, in casu, não ocorre, com os requerimentos juntos aos 28.03.2024, 11.04.2024 e 13.06.2024.
Assim e por forma a evitar um uso anormal do processo que se rege por regras próprias e especiais, que os requerimentos em referência não respeitam, consideram-se os mesmos como não escritos
.”
Em
4.10.2024
, BB interpôs recurso do despacho de
12.9.2024
(ref. Citius 39983094).
*
Em
23.10.2024
, foi proferido despacho (ref. Citius 40177558) que, na parte que aqui releva tem o seguinte teor:
“
Compulsados os autos, verifica-se, agora, que o requerimento apresentado aos 13.06.2024, pelo credor BB, surge na sequência da impugnação apresentada ao seu crédito pela credora DD, após a liquidação por esta da guia emitida pela secção, decorrente da sua apresentação extemporânea.
Assim vai admitida a resposta do referido credor à junção aos autos da impugnação em causa, dando-se, nesta parte, sem efeito o despacho que o considerou como não escrito.
Apreciando o invocado pelo credor BB que se debate contra a apresentação de tal impugnação, importa referir que sobre tal questão o Tribunal já se pronunciou por despacho datado de 28.02.2024, tendo nessa sequência a secção emitido nova guia e a credora DD a liquidado, tornando admissível a impugnação por si apresentada.
Note-se que o credor BB apresenta o requerimento de 13.06.2024, logo após a liquidação da guia pela credora DD, dispensando assim a notificação da impugnação a ela referente, por dela ter tomado conhecimento e sobre a sua admissibilidade se ter pronunciado nos autos.
Do exposto, não resulta verificada quaisquer das irregularidades ou nulidades apontadas, considerando-se válida tanto a apresentação da impugnação em referência quanto a resposta à sua apresentação, pelo credor BB
.”
O aludido despacho declarou ainda verificado provisoriamente o crédito de BB, na sequência de o ter considerado validamente impugnado por DD, tendo-o graduado provisoriamente, e incluiu esse crédito no objeto do litígio e nos temas da prova (cf. pontos V e VI, al. c) do despacho em questão cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
*
BB
não se conformou e, em 15.11.2024, interpôs recurso do despacho de
23.10.2024
(ref. Citius 40177558) na parte em que este deu sem efeito
o despacho de 12.9.2024 (o qual considerou como não escrito o requerimento de 13.6.2024) e considerou tempestiva a impugnação do seu crédito apresentada em 3.10.2023, por DD e na parte em que, consequentemente, considerou que o crédito do recorrente integrava o objeto do litígio e os temas da prova enunciados em V e VI, al. c).
Formulou as seguintes conclusões.
“PRIMEIRA CONCLUSÃO
Constitui o fundamento específico de recorribilidade do despacho de 23 de outubro de 2024, despacho esse que está, aqui e agora, a atacar (artigos 637.º-2, do CPC e 17.º, do CIRE), os erros de julgamento que, muito embora com a devida vénia, foram cometidos em tal despacho.
SEGUNDA CONCLUSÃO
Traduzindo-se tais erros de julgamento na violação, de diversas normas legais, designadamente os artigos 3.º-3, 132.º-2, 139.º-5 e 6.º, 152.º, 157.º, 162.º-1, 186.º, 195.º- 1, 220.º-2, 221.º-1, 255.º, 613.º, 620.º e 625.º, todos do CPC, 9.º, 17.º, 128.º, todos do CIRE e 25.º e 26.º, ambos da Portaria n.º 280/2013.
TERCEIRA CONCLUSÃO
Devendo, por isso, ou seja, por tais erros de julgamento, com a consequente violação das normas legais atrás referidas, e muito embora sem que isso posso constituir, nem constitua, qualquer demérito, por pequeno, ou mínimo até, que seja, para com a Meritíssima Senhora Doutora Juíza que proferiu em 23 de outubro de 2024, o despacho sob recurso, pois que, como é por demais sabido, aliquando dormitat bonus Homerus, Homerus qui Homerus erat, ser esse despacho, apesar de, não existe disso qualquer dúvida, ele ser mui douto, e face aos vícios genéticos que ele padece, anulado (artigos 639.º-1, in fine, do CPC e 17.º, do CIRE).
QUARTA CONCLUSÃO
Prolatando-se, para isso, não menos douto acórdão, que, considerando que o despacho recorrido incorreu nos atrás referidos erros de julgamento, traduzidos na violação das normas legais atrás mencionadas, e utilizando a vertente cassatória do nosso sistema de recursos, anule tal despacho (artigos 639.º-1, in fine, do CPC e 17.º, do CIRE), e lançando mão da vertente de substituição, do mesmo sistema recursório, prevista aliás no artigo 665.º, do CPC e 17.º, do CIRE, aprecie as questões, constantes do requerimento do dia 13 de junho de 2024, do aqui recorrente, determinando a invalidade da impugnação da aqui recorrida DD, relativamente ao crédito reclamado pelo recorrente BB, com a consequente verificação de tal crédito, o que tudo se requere a V. Exas.”
*
Não foram apresentadas contra-alegações.
*
O recurso interposto em 15.11.2024 foi admitido na 1ª instância como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito devolutivo (despacho de 9.1.2025, ref. Citius 40475621), não tendo sido objeto de alteração neste Tribunal da Relação.
*
Determinou-se a baixa dos autos à 1ª instância a fim de ser fixado valor à causa e ser proferido despacho sobre o recurso interposto em 4.10.2024 por BB.
Na 1ª instância foi proferido despacho em 3.3.2025 (ref. Citius 40731569) que fixou à causa o valor de € 51 391,37 e admitiu o recurso interposto em
4.10.2024
relativo ao despacho proferido em
12.9.2024
(ref. Citius 39983094).
*
O recurso interposto em
4.10.2024
do despacho de
12.9.2024
(ref. Citius 39983094) deu origem ao apenso G.
*
No presente apenso F foi proferida decisão determinando que os autos aguardassem a prolação de decisão no âmbito do apenso G, por esta poder prejudicar/influenciar o conhecimento do presente recurso.
*
No apenso G veio a ser proferida decisão, já transitada em julgado, com o seguinte dispositivo:
“
Termos em que se revoga o despacho de 12/09/2024, o qual se substitui por outro que admite os requerimentos de 28/03/2024, 11/04/2024 e 13/06/2024, os quais deverão ser objecto de apreciação pelo tribunal a quo, ao qual caberá também, eventualmente, no que respeita ao requerimento de 13/06/2024, determinar os actos que nos termos do n.º 2 do art.º 196º do CPC devem ser anulados
.”
*
Foram colhidos os vistos legais.
*
OBJETO DO RECURSO
Nos termos dos artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC, o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações do recorrente, estando vedado ao Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso, sendo que o Tribunal apenas está adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para o conhecimento do objeto do recurso.
Nessa apreciação o Tribunal de recurso não tem que responder ou rebater todos os argumentos invocados, tendo apenas de analisar as “questões” suscitadas que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Por outro lado, o Tribunal não pode conhecer de questões novas, uma vez que os recursos visam reapreciar decisões proferidas e não analisar questões que não foram anteriormente colocadas pelas partes.
Neste enquadramento, as questões relevantes a decidir, elencadas por ordem de precedência lógico-jurídica, são as seguintes:
I - saber se o despacho recorrido, na parte em que deu sem efeito o despacho de 12.9.2024 que considerou como não escrito o requerimento de 13.6.2024, foi proferido numa altura em que se encontrava esgotado o poder jurisdicional e, na afirmativa, quais as consequências que daí advêm.
II - saber se ocorrem as nulidades processuais invocadas no requerimento de 13.6.2024 e, na afirmativa, quais as consequências que daí advêm.
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Os factos relevantes para a questão a decidir são os que se encontram descritos no relatório supra, resultando os mesmos do
iter
processual.
FUNDAMENTOS DE DIREITO
I – Prolação do despacho recorrido após esgotamento do poder jurisdicional e respetivas as consequências
Conforme se enunciou, a primeira questão que se coloca nos autos consiste em saber se o despacho recorrido, na parte em que deu sem efeito o despacho de 12.9.2024 que considerou como não escrito o requerimento de 13.6.2024, foi proferido numa altura em que se encontrava esgotado o poder jurisdicional e, na afirmativa, quais as consequências que daí advêm.
Dispõe o art. 613º, nº 1 do CPC (diploma ao qual pertencem todas as normas subsequentemente citadas sem menção de diferente proveniência o qual é aplicável aos autos por força do disposto no art. 17º, nº1 do CIRE) que, proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa.
Esta norma é aplicável aos despachos, com as necessárias adaptações, por força do estatuído no nº 3 do art. 613º.
O princípio do esgotamento do poder jurisdicional justifica-se pela necessidade de evitar a insegurança e incerteza que adviriam da possibilidade de a decisão ser alterada pelo próprio tribunal que a proferiu, funcionando como um obstáculo ou travão à possibilidade de serem proferidas decisões discricionárias e arbitrárias.
Assim, uma vez prolatada uma decisão, “
o tribunal não a pode revogar, por perda de poder jurisdicional. Trata-se, pois, de uma regra de proibição do livre arbítrio e discricionariedade na estabilidade das decisões judiciais. (...) Graças a esta regra, antes mesmo do trânsito em julgado, uma decisão adquire com o seu proferimento um primeiro nível de estabilidade interna ou restrita, perante o próprio autor da decisão
” (Rui Pinto in CPC Anotado, Vol. II, pág. 174).
Como já referia Alberto dos Reis em anotação ao anterior art. 666º, correspondente ao atual 613º, o princípio do esgotamento do poder jurisdicional justifica-se por uma razão de ordem doutrinal e por uma razão de ordem pragmática.
“
Razão doutrinal: o juiz, quando decide, cumpre um dever – o dever jurisdicional – que é a contrapartida do direito de acção e de defesa. Cumprido o dever, o magistrado fica em posição jurídica semelhante à do devedor que satisfaz a obrigação. Assim como o pagamento e as outras formas de cumprimento da obrigação exoneram o devedor, também o julgamento exonera o juiz; a obrigação que este tinha de resolver a questão proposta, extinguiu-se pela decisão. E como o poder jurisdicional só existe como instrumento destinado a habilitar o juiz a cumprir o dever que sobre ele impende, segue-se lògicamente que, uma vez extinto o dever pelo respectivo cumprimento, o poder extingue-se e esgota-se.
A razão pragmática consiste na necessidade de assegurar a estabilidade da decisão jurisdicional. Que o tribunal superior possa, por via do recurso, alterar ou revogar a sentença ou despacho, é perfeitamente compreensível; que seja lícito ao próprio juiz reconsiderar e dar o dito por não dito, é de todo intolerável, sob pena de se criar a desordem, a incerteza, a confusão
” (Alberto dos Reis in CPC Anotado, Vol. V, pág. 127).
Portanto, da extinção do poder jurisdicional decorre esta consequência irrecusável: o juiz não pode,
motu proprio
, voltar a pronunciar-se sobre a matéria apreciada (cf. Acórdão da Relação de Coimbra, de 17.4.2012, Relator Henrique Antunes, in www.dgsi.pt).
Prolatada a decisão, e ressalvados os casos de retificação, reforma ou suprimento de nulidades, por força do esgotamento do poder jurisdicional fica vedada a possibilidade de essa decisão ser alterada pelo próprio tribunal que a proferiu, apenas sendo possível obter a sua alteração através de recurso que dela venha ser interposto.
Como tal, podemos afirmar que da “
extinção do poder jurisdicional consequente ao proferimento da decisão decorrem dois efeitos: um positivo, que se traduz na vinculação do tribunal à decisão que proferiu; outro negativo, consistente na insusceptibilidade de o tribunal que proferiu a decisão tomar a iniciativa de a modificar ou revogar
” (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa in CPC Anotado, 2ª ed., Vol. I, pág. 762).
A intangibilidade da decisão proferida é, naturalmente, limitada pelo respetivo objeto no sentido de que a extinção do poder jurisdicional só se verifica relativamente às concretas questões sobre que incidiu a decisão.
Se o tribunal, em desrespeito do comando ínsito no art. 613º, nº 1 (e fora dos ressalvados casos de retificação, reforma ou suprimento de nulidades) proferir outra decisão que incida sobre a mesma matéria que já foi anteriormente apreciada, a nova decisão que padeça de tal vício é juridicamente ineficaz.
Assentes nestas premissas e aplicando-as ao caso concreto, vejamos, então, se o despacho recorrido, na parte em que deu sem efeito o despacho de 12.9.2024 que considerou como não escrito o requerimento de 13.6.2024, foi proferido numa altura em que se encontrava esgotado o poder jurisdicional.
Relembramos que o despacho de 12.9.2024 considerou não escritos os requerimentos de 28.03.2024, 11.04.2024 e 13.06.2024.
Por sua vez, o despacho de 23.10.2024, objeto do presente recurso, deu sem efeito o despacho de 12.9.2024, que considerou não escrito o requerimento de 13.06.2024, apreciou-o e indeferiu-o e, de seguida, declarou ainda verificado provisoriamente o crédito de BB, na sequência de o ter considerado validamente impugnado por DD, tendo-o graduado provisoriamente, e incluiu esse crédito no objeto do litígio e nos temas da prova.
Ora, como acima explanámos, uma vez proferido despacho, em 12.9.2024, a considerar não escritos os requerimentos de 28.03.2024, 11.04.2024 e 13.06.2024, extinguiu-se o poder jurisdicional quanto a esta matéria, o que impede que o próprio tribunal que proferiu a decisão a altere, dando-a sem efeito.
Uma vez proferida, a decisão é inalterável pelo autor da decisão e só pode vir a ser revogada ou modificada em sede de recurso contra ela interposto.
Tal significa que o despacho recorrido é juridicamente ineficaz nessa parte. Esta ineficácia acarreta, necessariamente, a ineficácia das restantes decisões que tiveram como pressuposto a possibilidade de dar sem efeito o despacho de 12.9.2024. De onde resulta que o despacho recorrido é igualmente ineficaz na parte em que apreciou o requerimento de 13.6.2024, em que declarou verificado provisoriamente o crédito de BB, na sequência de o ter considerado validamente impugnado por DD, e na parte em que o graduou provisoriamente e o incluiu no objeto do litígio e nos temas da prova.
Em suma, o tribunal recorrido não podia ter proferido o despacho recorrido de 23.10.2024, alterando o despacho de 12.9.2024, por já se encontrar esgotado o poder jurisdicional, e a alteração do despacho de 12.9.2024 só podia ocorrer na sequência de recurso contra ele interposto, o que já sucedeu, havendo unicamente que cumprir a decisão proferida no apenso G.
*
II - (In)existência das nulidades processuais invocadas no requerimento de 13.6.2024 respetivas consequências jurídicas
A apreciação das nulidades processuais invocadas no requerimento de 13.6.2024 pressupõe a existência do despacho proferido pela 1ª instância que o apreciou.
Porém, tendo-se concluído que esse despacho é juridicamente ineficaz, por ter sido proferido quando já se encontrava esgotado o poder jurisdicional, tal conclusão prejudica a apreciação desta questão.
*
Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º, do CPC, a decisão que julgue o recurso condena em custas a parte que a elas houver dado causa, entendendo-se que lhes deu causa a parte vencida, na respetiva proporção, ou, não havendo vencimento, quem do processo tirou proveito.
Não obstante o recurso tenha sido julgado procedente, o recorrente é responsável pelo pagamento das custas, de acordo com o critério do proveito, em conformidade com a disposição legal citada, posto que a parte contrária não apresentou contra-alegações nem sustentou posição nos autos que tenha dado origem à decisão recorrida, não podendo ser considerada vencida no recurso.
DECISÃO
Face ao exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar o presente recurso procedente e, em consequência, declaram
juridicamente ineficaz
o despacho proferido em 23.10.2024, na parte em que deu sem efeito o despacho de 12.9.2024, que considerou não escrito o requerimento de 13.06.2024, e, como decorrência necessária, na parte em que apreciou o requerimento de 13.6.2024, em que declarou verificado provisoriamente o crédito de BB, na sequência de o ter considerado validamente impugnado por DD, e na parte em que o graduou provisoriamente e o incluiu no objeto do litígio e nos temas da prova.
Custas do recurso pelo recorrente.
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Guimarães, 5 de junho de 2025
(Relatora) Rosália Cunha
(1º/ª Adjunto/a) Susana Raquel Sousa Pereira
(2º/ª Adjunto/a) Maria Gorete Morais
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TRG
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https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/01785a4ebae755c580258cbb00530f98?OpenDocument
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1,756,944,000,000
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PROVIDO PARCIALMENTE O RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO.
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632/22.6PAPVZ.P1
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632/22.6PAPVZ.P1
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MARIA DO ROSÁRIO MARTINS
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I - Se as razões apontadas pelo Tribunal a quo para fundamentar a factualidade dada como provada carecerem de razoabilidade, lógica e racionalidade pode-se concluir que a decisão recorrida padece do vício do erro notório na apreciação da prova previsto no artigo 410º, n.º 2, al. c) do CPP.
II - Dispondo este Tribunal de todos os elementos para corrigir o detectado vício decisório a matéria de facto deve ser modificada nos termos do disposto no artigo 431º, al. a) do CPP.
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[
"ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA",
"CORREÇÃO OFICIOSA DA MATÉRIA DE FACTO"
] |
Processo 632/22.6PAPVZ.P1
Comarca do Porto
Juízo Central de… – Juiz 1
Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto:
I -
RELATÓRIO
I.1
Por acórdão proferido em 10.01.2025 foi decidido:
“-
Absolve-se
o
arguido AA
da prática de
um crime de violência doméstica,
do art. 152.°, n.°1, al. a), do Código Penal, com a agravação do n.° 2, al. a) e ainda 4, 5 e 6, do mesmo normativo.
- Condena-se o arguido AA pela prática de um crime de violação p. e p. pelo art° 164°, n°2, a), do C.P. na pena de 3 (três) anos e 10 (dez) meses de prisão.
Nos termos do disposto no art° 50°, n°1 e n°5, do C.P. suspende-se a execução da pena de 3 (três) anos e 10 (dez) meses de prisão por 3 (três) anos e 10 (dez) meses.
-Condena-se o arguido AA a pagar à ofendida BB a quantia de € 7.500 (sete mil e quinhentos euros), a título de indemnização pelos danos não patrimoniais por ela sofridos (n° 2 do art. 16° do Estatuto da Vítima, anexo à Lei 130/15 de 4/9 e artigo 82.°-A do Código de Processo Penal).”
*
I.2.
O
Ministério Público
interpôs recurso do acórdão, terminando a sua motivação com as seguintes conclusões (que se transcrevem integralmente):
“1. O arguido AA
foi absolvido do crime de violência de doméstica do artigo 152.
0
n.° 1 al. a), com a agravação do n.° 2 al a) e n.° 4 todos do Código Penal
2. Houve por parte do Tribunal recorrido, na parte que diz respeito ao ilícito de violência doméstica, uma hipervalorização do depoimento do arguido e desconsideração antagónica com a desvalorização do depoimento da ofendida e dos seus progenitores, que, no entanto foram considerados credíveis, isentos e sem ressentimentos para com o arguido e que foram essenciais para condenar o arguido no crime de violação.
3. Mas já não o foram para os factos consubstanciadores do crime de violência doméstica.
4. O Tribunal recorrido afirma que a ofendida bem como os progenitores desta tiveram um depoimento sincero e isento
5. Mas apenas considerou tal isenção e sinceridade nos factos respeitantes à violação e por motivos que, salvo enorme e devido respeito, não alcançamos,
6. Uma vez que a postura isenta e credível da ofendida não mudou entre os dois acontecimento factuais nem o depoimento credível e isento dos seus progenitores também não se alterou.
7. Esta dicotomia valorativa da prova produzida (dos depoimento da ofendida e dos seus progenitores) é insondável e incompreensível.
8. A valoração dicotómica da mesma prova para dois acontecimentos factuais distintos para duas decisão de apreciação de prova perfeitamente antagónica, resulta quanto a nós com o devido respeito por opinião contrária, numa clara contradição insanável da fundamentação e um erro notório na apreciação da prova do artigo 410.
0
n.° 2 als. b) e c) do Código de Processo Penal.
9. Assim, e numa valoração escorreita, consistente e coerente, deve ser dado como provados os factos n.° 7, 8, 9 e 10 e 16 do libelo acusatório, a acrescer aos factos já dados como provados pelo Tribunal recorrido e consequentemente…”.
Pugna pela condenação do arguido
AA
pela prática, em co-autoria, do crime de violência doméstica do artigo 152.° n.° 1 al. a)do Código Penal, com a agravação do n.° 2, al. a), 4, 5 e 6, do mesmo diploma legal.
*
I.3.
O
arguido AA
, na resposta ao recurso, pronunciou-se pela sua improcedência e manutenção da decisão recorrida, concluindo nos seguintes termos (transcrição integral):
“A. O Recorrente insurge-se contra a decisão de absolvição do arguido crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152.°, n.° 1, alínea a), com a agravação da alínea a), n.° 2 e n.° 4, do Código Penal, defendendo que o Tribunal
a quo
fez uma qualquer valoração dicotômica da mesma prova.
B. Ao contrário do que pugna o Recorrente, o Tribunal
a quo
efetuou uma apreciação criteriosa de toda a prova produzida em audiência de julgamento, não se cingindo unicamente às declarações prestadas pela ofendida, antes apreciando conjuntamente a prova testemunhal e documental produzida.
C. No que concerne aos factos do crime de violação, que foram dados como provados, pese embora o Tribunal
a quo
tenha valorado o depoimento da ofendida para tais factos, a convicção não assentou exclusivamente no depoimento da ofendida, porquanto, conforme decorre da motivação da decisão recorrida, a convicção positiva do Tribunal para esses factos foi firmada com a apreciação conjunta do depoimento da ofendida com a prova testemunhal (depoimentos dos pais) e prova documental (relatório pericial e fotogramas.
D. O Recorrente não pode pretender que o Tribunal dê como provado tudo o que a ofendida relatou no seu depoimento, sem qualquer outro elemento de prova que corrobore a sua versão dos factos.
E. Aliás, note-se que, em relação aos factos descritos no ponto 7 a 10 da acusação, que foram dados como não provados, existem dissonâncias entre o depoimento da ofendida com o depoimento da testemunha CC.
Gravação do dia 02/12/2024, das 16:20 às 16:32 (CC)
Minutos:
6:22 a 6:28
7:02 a 7:40
7:54 a 8:19
8:40 a 8:48
8:54 a 9:41
Gravação do dia 02/12/2024, das 14:51 às 16:14 (ofendida BB)
Minutos:
15:22 a 16:42
17:29 a 17:45
18:40 a 18:56
21:11 a 21:15
01:00:44 a 01:01:59
01:02:25 a 01:02:55
01:04:14 a 01:04:29
01:04:51 a 01:04:58
F. No que tange aos factos descritos no ponto 16 do libelo acusatória, importar salientar que as testemunhas CC e DD não presenciaram nenhum dos factos, nem a versão da ofendida foi corroborada por qualquer outro elemento de prova.
G. De assinalar que a testemunha CC não referiu que viu a ofendida com marcas, nem tampouco fez qualquer referência ao facto de a filha lhe ter dito que tinha sido agredida pelo arguido, nem a testemunha DD declarou que viu a ofendida com nódoas negras.
Gravação do dia 02/12/2024, das 16:20 às 16:32
Minuto: 4:58 a 5:00
Gravação do dia 16/12/2024, das 09:50 às 10:24 Minuto: 06:02 a 06:08
Por conseguinte, impunha-se a aplicação do princípio
in dubio pro reo,
dando como não provados os factos descritos nos pontos 7, 8, 9, 10 e 16 do libelo acusatório.
I. Perante a resposta negativa aos factos descritos na acusação pública, impunha-se a absolvição do arguido quanto ao crime de violência doméstica, pois, nem toda a ofensa à integridade física ou injúria, ocorrida no seio de uma relação integrará, necessária e forçosamente, um crime de violência doméstica.
J
.
Conforme se escreveu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/10/2019, processo n.° 39/16.4TRGMR.S2 "Em primeiro lugar, haverá que ponderar se é lesado o bem jurídico protegido pelo crime de violência doméstica, e, em segundo lugar, se a conduta integra a noção de maus tratos. Os maus tratos, como se espelha na jurisprudência do STJ e da doutrina, hão-de assumir-se, ou traduzir-se, em lesões graves, intoleráveis, brutais, pesadas
.".
K. Destarte, devem improceder, in totum, as alegações do recurso interposto pelo Recorrente.”
*
I.4.
O Ministério Publico desta Relação consignou ter visto o recurso.
*
I.5.
Foram colhidos os vistos e realizada a conferência.
****
II-
FUNDAMENTAÇÃO
II.1.
Objecto do recurso
Conforme jurisprudência constante e assente, é pelas conclusões apresentadas pelo recorrente que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior (cfr. Acórdão do STJ, de 15/04/2010, acessível em www.dgsi.pt).
Assim, face às conclusões extraídas pelo recorrente as questões a apreciar e decidir são as seguintes:
1ª Saber se a decisão recorrida padece dos vícios decisórios previstos no artigo 410º, n.º 2, als. b) e c) do Código de Processo Penal (doravante CPP);
2ª Saber se o arguido deve ser condenado como autor de um crime de violência doméstica previsto no artigo 152º n.º 1, al. a) do Código Penal (doravante CP), com a agravação dos n.ºs 2, al. a), 4, 5 e 6 do CP.
***
II.2.
Acórdão recorrido
(que se transcreve parcialmente nas partes relevantes, mantendo a numeração dos factos provados que não está devidamente ordenada)
“II-
Fundamentação
(não se pronunciando o tribunal sobre a factualidade conclusiva constante da acusação "controle exagerado"- ponto 3; jogo sádico- ponto 5; ou genérica " relações sexuais, ponto 25):
1- Feito o julgamento e com relevância para a decisão da causa, resultou provada a seguinte factualidade:
1. O arguido AA iniciou uma relação amorosa com a ofendida BB em data não concretamente apurada do ano de 2016, a qual teve inúmeras interrupções e terminou definitivamente em Setembro de 2022.
2. Dessa união nasceu EE a ../../2017.
3. Durante o relacionamento o arguido chegou a pegar no telemóvel da ofendida sem o consentimento desta e aceder ao seu conteúdo, o que sucedeu em número de vezes não apurado, o que a ofendida chegou também a fazer pelo menos por uma vez.
5. Durante o relacionamento, também em número de vezes que não foi possível apurar e no interior da residência do casal, o arguido quando tinha alguma garrafa perto, fazia uma espécie de jogo: Lançava a garrafa ao ar e se ela caísse de pé significava que a vítima dizia a verdade se ela tombasse significava que mentia isto, no que toca à existência de um relacionamento extra conjugal.
6. Em datas não concretamente apuradas, mas durante o período de namoro, arguido e vítima frequentavam um apartamento, propriedade da mãe daquele, sito na ....
7. Em data não concretamente apurada do ano de 2017, encontrando- se a vítima grávida, no interior do seu quarto, na casa onde vivia com os seus pais, na Rua ..., ... ... ..., o arguido iniciou uma discussão porque teimava que aquela mantinha relações sexuais com outros homens e não o desejava e nesse contexto o arguido apanhou a roupa interior da vítima e cheirou-a com o objetivo de perceber se esta havia estado com outro homem.
8. Nesse contexto de discussão a ofendida tirou ao arguido os óculos que este tinha colocados e partiu-os.
9. Em data não concretamente apurada do ano de 2018 a ofendida BB deslocou-se com a filha a ..., ..., regressando depois para vir buscar o arguido, após contacto telefónico entre ambos.
10. Já na ..., enquanto a vítima preparava o jantar, o arguido disse, referindo-se à roupa interior daquela, dizendo que parecia: "Uma brasileira da beira de estrada."
11. Em data não concretamente apurada, do mês de Setembro de 2022, depois de terem terminado a relação há cerca de uma semana, e pretendendo reverter essa situação, o arguido ligou à ofendida, dizendo que necessitava de ajuda, por se estar a sentir doente.
12. Assim, a ofendida deslocou-se à residência do arguido, sita na Rua ..., ..., na ....
13. Nessas circunstâncias de tempo modo e lugar o arguido abriu a porta da residência, envergando apenas uns boxers. Logo levou a vítima, contra a sua vontade, para o quarto. Seguidamente o arguido empurrou a vítima para a cama, rasgou-lhe o vestido, virou-a de barriga para baixo, introduziu o pénis na vagina daquela, enquanto lhe segurava os braços, mantendo dessa forma relações de cópula.
14. A vítima gritou para que o arguido parasse, ao que o arguido não obedeceu.
15. Quando saiu de cima da ofendida, esta aproveitou para fugir do local.
16. A conduta do arguido causou na ofendida:
No pescoço: contractura cervical a nível paravertebral e dos trapézios, com movimentos preservados.
Abdómen: doloroso à palpação dos quadrantes inferiores e do quadrante superior direito, sem sinais de irritação peritoneal.
No Membro superior esquerdo: equimose castanha ténue, na face anterior do ombro, com maior diâmetro 3 cm. No membro inferior direito: conjunto de 3 equimoses ovaladas, cinzentas, com sensivelmente 1,5 cm de maior diâmetro, localizadas na face interna da perna, no terço inferior, e duas equimoses pericentimétricas localizadas junto ao bordo inferomedial da rótula.
No membro inferior esquerdo: equimose cinzenta pericentimétrica na face interna do terço médio da coxa; equimose cinzenta pericentimétrica na face interna do terço médio da perna.
Tais lesões determinaram oito dias para cura, sem afetação da capacidade de trabalho.
25. Ao actuar da forma descrita em 13. e segs. o arguido quis através do seu ascendente físico e do uso de violência, obrigar a vítima a manter consigo relações de cópula, o quis e conseguiu, com o propósito concretizado de assim satisfazer os seus impulsos sexuais.
26. Agiu livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
27. O arguido tem antecedentes criminais, tendo sido julgado e condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, praticado em 2017 em pena de multa, que veio a ser extinta.
28. Órfão de pai desde os nove anos, no período de tempo relativo aos factos, AA residia junto da sua progenitora, FF, no endereço indicado nos autos, sendo atualmente idêntica a sua situação familiar e habitacional. Por motivos de trabalho, entre finais de 2018 e meados de 2021, durante cerca de três anos, AA coabitou junto da sua irmã, de nível etário superior ao seu e com residência na área de Lisboa. Nestas circunstâncias deslocava-se à ..., nos fins-de-semana, com uma periodicidade quinzenal.
29. Arguido e progenitora habitam um apartamento de tipologia 3 que faz parte do legado da família materna. As despesas mensais relativas ao alojamento totalizam agora cerca de 100 euros e referem-se ao fornecimento de energia elétrica, gás, água e saneamento. Estas despesas são da responsabilidade da progenitora.
30. A progenitora, que tem agora 63 anos, permanece inativa, mas dispõe de rendimentos próprios, que totalizam cerca de 900 euros/ mês e que são provenientes do arrendamento de imóveis herdados.
31. No período de tempo relativo aos factos, AA estava integrado no mercado de trabalho, desde os 17 anos. Até cerca dos 21 anos, laborou no setor da restauração, com funções de serviço de mesa. Seguiu-se o exercício de funções de operador de armazém, que mantém até agora, com registo de alguma mobilidade laboral. Assim, em 2017, e durante cerca de um ano, trabalhou numa empresa de distribuição de alimentos refrigerados. Entre finais de 2018 e meados de 2021, AA trabalhou nos armazéns da empresa de distribuição A..., situada em Sintra. Mantendo funções de operador de armazém, integrou depois, até abril-2024, uma empresa de produção de geradores e purificadores de gases, situada na ... - B..., SA.
32. Neste momento, AA continua integrado no mercado de trabalho e a exercer funções de operador de armazém, tendo agora como enquadramento uma empresa de logística de produtos alimentares de temperatura controlada, situada em ..., ... - C..., onde foi admitido em agosto-2024. AA trabalha no turno da noite, cumprindo um horário diário das 24h às 09h. O seu vencimento base situa- se na ordem dos 820 euros/mês, atingindo habitualmente valores na ordem dos 1000 euros, porque acrescido de horas extraordinárias, suplemento noturno e subsídio de frio.
33. Sobre as despesas regulares com maior impacto no orçamento pessoal, menciona a pensão de alimentos relativa à descendente, com o valor mensal de 200 euros e as despesas relativas às telecomunicações e à amortização de um crédito pessoal, que totalizam cerca de 150 euros.
34. AA tinha cerca de 17 anos quando interrompeu a escolarização. Frequentava então o último de três anos de um curso de educação e formação profissional em padaria e pastelaria, que lhe teria permitido obter equivalência ao 12° ano de escolaridade e que não concluiu. Nestas circunstâncias, as suas habilitações não ultrapassam o 9° ano, correspondendo à escolaridade obrigatória, à época.
35. No período de tempo relativo aos factos, AA mantinha consumos regulares de haxixe, prática associada aos momentos de lazer e descontração pessoal, que iniciou sensivelmente aos 16/ 17 anos de idade e que esteve na origem do seu primeiro confronto com o sistema de administração da justiça penal. As suas experiências psicoativas estão circunscritas às drogas canabinóides, não tendo evoluído para outras substâncias estupefacientes.
36. No quotidiano de AA são preponderantes as exigências de trabalho e os compromissos familiares, que incluem os momentos de visita com a descendente, que, de acordo com a regulação do exercício das responsabilidades parentais, decorre habitualmente aos domingos. Dedica grande parte dos seus tempos livres à relação com a namorada, que persiste há cerca de 18 meses. De nível etário superior ao seu, a namorada tem agora 39 anos e tem dois descendentes, de menoridade. Sempre que possível, dedica-se também à prática de surf.
37. AA não identifica alterações significativas no seu quotidiano e condições de inserção sociofamiliar, decorrentes da situação jurídico-penal. Destaca o impacto psicológico, nomeadamente a inquietação e preocupação pessoal vivenciadas. Manifesta sentimentos de pudor e indignação face ao seu estatuto de arguido nos presentes autos, aguardando um desfecho favorável.
38. AA continua a beneficiar da aceitação, confiança e suporte do seu contexto sociofamiliar.
39. Após os factos supra id. em 11. e ss arguido e ofendida terminaram definitivamente o relacionamento.
40. Após terem terminado o relacionamento a ofendida enviou várias mensagens de texto e de voz para o arguido e em mensagens áudio a ofendida referiu "Eu ainda confio em ti" e "Se precisares de ajuda estou cá para te ajudar", tendo ainda em mensagem escrita pedido ao arguido para ir a sua casa.
41. A ofendida, que trabalha como auxiliar de acção médica, padece de transtorno de personalidade borderline, já foi acompanhada em psicologia e sofreu intoxicação medicamentosa e episódios de auto mutilação.
2- Com relevância para a decisão da causa, não se provou que:
1. Que a relação amorosa entre o arguido e a ofendida BB iniciou-se em data não apurada do ano de 2019, tendo iniciado uma convivência como se de marido e mulher se tratassem, partilhando leito, mesa e habitação.
2. Que o arguido sempre exerceu controle sobre a vítima relativamente ao que vestia e com quem se comunicava, o que levou ao isolamento social desta.
3. Que quando se encontravam, mesmo antes de a cumprimentar o arguido pegava no telemóvel da vítima e vasculhava conversas e interações que imaginava que aquela mantinha.
4. Que nas circunstâncias de tempo e local supra id. em 6. quando discutiam, o arguido trancava a vítima por dentro, obrigando-a a ficar naquele local.
5. Que quando sucederam os factos supra id. em 7. e 8. a ofendida estava grávida de 6 meses.
6. Que nessa altura, o arguido chegou a casa e tocou à campainha. Quando a vítima se dirigiu para abrir a porta, viu o arguido a correr vindo das traseiras.
7. Que quando o questionou o arguido referiu que foi verificar se não estava outra pessoa a sair, pela porta das traseiras.
8. Que o arguido empurrou a vítima e desferiu-lhe uma bofetada na face, o que lhe causou dor.
9. Que entretanto, os pais da vítima vieram ao encontro de ambos; o pai da vítima expulsou o arguido de casa e, na presença deste, o arguido desferiu um outro estalo na face daquela, o que lhe causou novamente dor.
10. Que os factos supra identificados ocorridos em 2018 tiveram lugar em ..., ....
11. Que foi o arguido que ligou à ofendida quando esta já estava em ....
12. Que a ofendida foi então dormir com a filha, no quarto desta e como a filha acordou, a meio da noite, vítima levantou-se para preparar algo para aquela comer. Nessa altura, o arguido levantou-se dirigiu-se à vítima, enquanto esta tinha a filha nos braços e empurrou-a contra a parede. De seguida, o arguido desferiu um murro na face da vítima, o que lhe causou dor. A vítima viu-se obrigada a fugir para o exterior. Quando a arguido a procurou, a vítima conseguiu voltar para casa, deixando, então, o arguido no exterior. Aí, o arguido exigiu que a vítima abrisse a porta, apelidando-a de "Badalhoca" e de "Puta."
13. Que nas circunstâncias supra id. em 11. da factualidade provada o arguido disse à ofendida que necessitava de ajuda para se deslocar às urgências.
14. Que nas circunstâncias de tempo e local supra id. em 13. da factualidade provada o arguido arrancou a roupa interior da ofendida.
15. Que o arguido quis agir da forma descrita, ofendendo o bom nome e o físico da sua companheira, bem sabendo que desse modo lhe provocava profundo receio, humilhação e dor, com indiferença à relação que mantinham, agindo com o propósito de subjugar a sua companheira à sua vontade, bem sabendo que a sua conduta lhe provocava danos na sua saúde física e psíquica, o que quis e conseguiu.
16. Que nas circunstâncias de tempo e local supra id. em 7. e 8. da factualidade provada durante a discussão verbal, a ofendida desferiu no arguido cerca de 20 bofetadas e o arguido apenas se tentou afastar da vítima.
17. Que nas circunstâncias de tempo e local supra id. em 9. e 10. da factualidade provada a ofendida empurrou o arguido.
18. Que nas circunstâncias de tempo e local supra id. em 11. e ss da factualidade provada foi a ofendida quem teve a iniciativa de tirar a roupa, mostrando desejo em ter relações sexuais com o arguido, sendo a relação sexual plenamente consentida por esta.
19. Que quando a ofendida se queixou de que estava a sentir uma dor o arguido parou de imediato, a ofendida vestiu-se conversaram e só depois é que saiu.
20. Que durante o período em que mantiveram a relação a ofendida e o arguido não costumavam sair juntos nem conviver com os amigos porque a ofendida tinha medo das pessoas, não gostava de multidões e achava que toda a gente falava dela.
21. Que a ofendida já esteve internada por intoxicação medicamentosa e automutilação.
Motivação:
A convicção do tribunal sobre a factualidade provada e não provada formou-se na análise crítica e conjugada da prova produzida em audiência de julgamento, conjugada com as regras de experiência comum e do normal acontecer, atendendo-se à prova documental, pericial e pessoal.
Assim, o tribunal atendeu a:
Auto de notícia de fls. 35 e ss;
Certidões de fls. 22 e ss. e de fls. 103;
Reportagem fotográfica de fls. 62 e ss
Relatório de exame de avaliação de dano corporal, a fls. 13 e ss.
-
às declarações do arguido
, o qual confrontado com a acusação, começou por referir que a relação começou em 2016. Nunca moraram juntos. Dormiu algumas vezes em casa da ofendida, enquanto namoravam.
Desse relacionamento nasceu uma filha (ponto 2 da acusação). Negando a factualidade constante do ponto 3 do libelo acusatório contrapôs que a ofendida é que tinha muitos problemas em sair à rua, frequentar cafés, tinha a "mania da perseguição". Isolava-se socialmente, sofria do síndrome borderline.
No que se refere ao controle de telemóvel (ponto 4) afirmou que ambos tiveram atitudes toxicas, pode ter acontecido uma vez ou outra. De parte a parte. Por ciúmes.
Já quanto ao jogo que nominou de "bottle flip" afirmou ser uma brincadeira. A BB também chegou a fazer. Admitiu ser imaturidade de ambos (ele tinha 19 anos, ela 20).
Negou trancar a ofendida dentro do apartamento (ponto 6). Já aconteceu foi o contrário, na casa dela. Em 2022 ela tentou uma reaproximação e trancou-o lá.
Confrontado com a factualidade id. em 7. referiu que tinha dormido em casa da namorada. Discutiram. Ela deu-lhe algumas bofetadas. Os óculos caíram, ela apanhou-os e partiu-os com a mão. Os pais assistiram. Não lhe deu uma bofetada; no máximo empurrou-a (ela não caiu). No final da discussão abandonou a casa, não foi expulso (como se refere em 11.).
Sobre a situação ocorrida nos ... referiu que ela ligou-lhe, quando já estava lá. A insistir para ele ir. Veio buscá-lo. Disse a expressão "brasileira na berma"; foi uma piada infeliz. Ela acordou de manhã e começou aos berros "não sei o que estás aqui a fazer ". Ele queria sair e ela não o deixava sair. Conseguiu sair, mas esqueceu-se do telemóvel. Ficou no exterior à espera dos pais dela. Ele não a empurrou, agrediu etc.
Produzida a prova, reafirmou que a relação foi tóxica de parte a parte e que as agressões não aconteceram.
Sobre a factualidade imputada em 17. e ss da acusação referiu que tinham terminado há uma semana. Ligou à ofendida a pedir para ir ter com ele, disse que estava a sentir-se mal (o que não era verdade) e ela foi. Conversaram. Tiveram relações sexuais consentidas. Durante a relação ela sentiu dor e terminaram ali. Não tinha estas lesões. Não reataram a relação amorosa. A relação amorosa terminou aqui.
Achava que ela era bipolar.
Ela tinha bastantes conflitos com os pais.
Depois da situação dos óculos continuou a entrar em casa dos pais.
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ao depoimento de BB
, que relatou ao tribunal que começou a namorar com o arguido aos 19 anos.
Foi uma relação doentia.
Antes de conhecer o arguido não conseguia entrar em zonas públicas, ficava nervosa. Encontrou protecção e apoio no arguido. Ele estava sempre com ela. Ia comprar-lhe tabaco, agarrava-lhe na mão.
Depois começou a ser acompanhada por psicologia e voltou ao normal.
Acha que ele não lidou bem com ela "voltar à vida normal". Aconteceu 1 mês ou 2 depois.
Pegava no telemóvel dela quando ela estava a dormir. Usava uma garrafa de água cheia, fazia um jogo. Com perguntas. Todos os dias. Levava a sério e era massacre psicológico.
Quando ela ia para a faculdade mandava sms a dizer que se ela não voltasse para trás que ia acabar com ela ou suicidar-se. Controlava os movimentos, a roupa (tinha que andar de sweats e calças). Já não tem o telemóvel com essas sms.
Quando chegava no metro à ... e ele agarrava-a e não a deixava ir embora. Antes da filha ter nascido.
A gravidez foi planeada por causa da mãe estar muito doente. Por muito tóxica que a relação fosse decidiu ter um filho e o arguido concordou.
Na gravidez ele frequentava a casa dela com mais regularidade. Tentava saber se estava alguém dentro de casa, dava a volta à casa para saber se tinha alguém. Se ela demorasse dizia que ela estava com alguém. Ela não sentia desejo sexual. Ele dizia que ela o traia. Chegou a cheirar as cuecas dela. Aqui não houve bofetada. Ele partiu o espelho. Ela arrancou-lhe os óculos da cara e esmagou-os.
Depois quando ela ia a descer as escadas dentro da casa ele ia a sair e chamou-lhe de puta, vadia. Ela pegou num objecto e insinuou que ia atirar e ele deu-lhe uma chapada, os pais viram. Em 2017, estava grávida. Foi uma só bofetada. O pai pediu-lhe para ir embora e ele foi. A relação acabou quando ela tinha 6 meses de gravidez.
Quando já tinha a filha decidiu ir um fim de semana para ir com a filha para ... para casa de uns tios. Ele ligou a dizer que tinha saudades dela. Pediu-lhe que ela o fosse buscar e ela veio para trás buscá-lo. Ele tinha estado a consumir estupefacientes. E foi com ela para .... Lá foi fazer o jantar. A determinada altura agachou-se, viam-se as cuecas e o arguido disse-lhe que parecia a prostituta, uma brasileira de beira de estrada. Ficou perturbadíssima. Ela ficou com a filha num quarto e ele noutro. Não acordaram a meio da noite. No dia seguinte ela ligou ao psicólogo. A filha acordou. Ela disse para ele se levantar e dar o leite à filha. Ele encostou-a contra a parede, bateu-lhe com a cabeça contra a parede, ferrou-lhe, ia-lhe dar um soco e acertou na filha. A filha estava no colo dela. Deu-lhe uma chapada e agarrou- a pelo cabelo, correu para tentar sair. Pegou nos óculos ou no líquido das lentes (ou nos dois) e atirou-os para o lado de fora. Trancou a porta e ele ficou lá fora. Chamou-lhe "puta", "vadia". Ligou aos pais. Os pais foram lá. Ele ainda lá estava da parte de fora.
Quando aconteceu estes factos não tinham reatado a relação; era para ver como corria. Fez pela filha.
Depois quando a filha tinha 5 anos estava na casa dos pais e recebeu uma sms do arguido a pedir para ela ligar. Ela ligou. Pediu para ir ter com ela a casa da mãe dele. Estava a sentir-se mal. Dias antes tinham estado juntos e feito sexo. Mas não havia relação amorosa. Houve no entretanto uma discussão. Ele abriu-lhe a porta de boxers. Ela disse que não ia entrar. Amarrou-a pelos braços e meteu-a dentro de casa e foi empurrando-a até ao quarto. Ela estava de vestido. Rasgou o vestido e atirou-a para a cama. Mas não retirou o vestido. Virou-a de barriga para baixo. Penetrou-a. ela disse que ele a estava a magoar. Não se recorda se mantinha a roupa interior. Foi agarrada pelos cabelos, pernas e braços. Disse para ele parar. Magoou-a "no útero" por 2 vezes, penetrou-a. Disse que não queria, mesmo antes de a penetrar. Penetrou-a 2 vezes. Saiu de cima dela e começou a masturbar-se e foi para a casa de banho "acabar o que tinha começado". Ela agarrou nas coisas dela e fugiu. A mãe dele tinha chegado, passou por ela na sala. Resguardou-se nas escadas do prédio e ele passou por ela (ele iria atrás dela). Depois agarrou-a e disse que queria fazer uma vida com ela, para se acalmar. Pediu-lhe desculpa. Conseguiu sair do local.
Passado um dia ou 2 contou à polícia. Já tinha contado aos pais.
Ter uma perturbação de personalidade, é borderline. O que lhe causa ansiedade, medo do abandono.
Ela não controlava o telemóvel do arguido. Uma altura ele emprestou o telemóvel à filha, discutiu com ela, esqueceu-se do tel. e ela viu o que tinha no telem.
Quando ela a insultou respondeu-lhe aos insultos.
Ela não lhe batia.
Em ... a filha ficou com marcas.
Disse ao médico que não se sentia à vontade para fazer o exame físico e ele disse que não era preciso por já terem passados vários dias.
É verdade que já se auto mutilou. Tomou excesso de medicação e já consumiu drogas.
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ao depoimento da testemunha CC
, mãe da ofendida que referiu que eles discutiam muito. Não era uma relação saudável. Começavam e acabavam. Foi uma gravidez muito agitada. Ele provocava-a. não assistiu presencialmente mas a filha punha o telemóvel em alta voz e ela ouvia. Ouviu chamar puta, muitas vezes.
Sobre a situação ocorrida em ... referiu que a filha foi com a neta e depois foi buscar o arguido. Os pais não sabiam que ele estava lá. Pediu para a ir buscar. Contou que baixou-se para ir buscar qualquer coisa e o arguido disse "pareces uma mulher da via norte".
Quando chegaram lá o AA já não estaria, não recorda. Terá havido sapatada de parte a parte. A neta terá apanhado também. A partir dali não podia ver homens com barba. O padrinho até cortou a barba.
Depois desse episódio recorda outro quando a menina teria 2 anos. O arguido dormiu lá. Começaram a discutir. Ele foi cheirar as cuecas da filha. Partiu um espelho. Estava fora de si. Ela foi ao quarto e mandou-o embora. Não viu agressões. O marido não entrou no quarto.
Noutra situação a filha disse-lhes que o arguido lhe pediu para a levar ao hospital porque estava doente. Eles disseram-lhe para ir e ela foi. Quando regressou disse que o arguido abriu a porta e arrastou-a e empurrou para cima da cama e a partir daí penetrou-a contra a vontade dela. Não se recorda da roupa dela. Reparou que tinha braço pisado e a perna. Ficou em choque. Não queria que a filha expusesse a situação. Estava chorosa, chocada.
Não queria falar. Mostrou as marcas; ainda estavam vermelhas. Ficou muito mal. Nunca mais foi a mesma. Passou a ir ao psiquiatra.
Sabe que depois continuaram a contactar-se por telefone e sms.
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ao depoimento da testemunha DD
, reformado, pai da ofendida, que referiu ao tribunal que conhece o arguido de ter sido companheiro da filha. Começou por referir que "pouco assistiu ou quase nada". Sabia que de vez em quando havia mau relacionamento entre eles; ouvia a filha queixar-se à esposa. Nunca ouviu insultos entre eles. Ferimentos chegou a ver na filha, nos braços, nódoas negras (no início da relação). Ela foi questionada pela mãe. Recorda-se de a filha ir passar um fim de semana a ... e entrou em contacto a dizer que o arguido estava aos murros à porta, a trata-la de puta. Ele e a esposa decidiram ir lá. Lá chegados falou com o arguido que disse que um amigo o iria buscar. A filha estava desorientada. Não reparou em nódoas negras na filha. A última situação foi quando a filha disse que ia ter com o arguido porque ele estava doente e estava sozinho. A filha foi lá ter com ele. Depois quando a filha regressou a casa ele estava num aposento ao lado e ouviu a filha a choramingar e contar à mãe que ele a forçou a entrar e que sem ela querer que a violou. Ele ficou desorientado, foi junto delas e disse que isso era caso de polícia. Não viu se tinha a roupa rasgada.
Ele é muito nervoso e a filha falava mais com a mãe.
A filha foi diagnosticada com borderline ou dupla personalidade; a partir daí passou a tomar medicação.
Sobre a personalidade da filha referiu que é uma pessoa calma se não a provocarem.
Ás vezes ouvia algum burburinho. Havia confusões. Não se recorda concretamente de nenhuma situação em casa dele.
Uma vez ele ouviu o arguido chamar-lhe "chavala" ao telefone, não gostou e retirou-se. Terá sido há menos de 1 ano.
Actualmente o arguido vai a casa dele buscar a neta e cumprimenta-o.
A filha era normalmente sociável, antes de começar a andar com o arguido.
A filha era ciumenta, gostava de ser paparicada. Sabe que uma vez ouviu a filha a dizer à mãe que ele até lhe cheirava as cuecas.
Não sabe se controlavam o telemóvel um do outro.
Sendo esta a prova produzida dir-se-á desde logo que o que resultou ostensivamente e de forma cabal da prova pessoal produzida foi a ocorrência uma relação de namoro disfuncional (que a ofendida qualificou como doente, tóxica), que se iniciou em 2016 (e não em 2019, como se refere na acusação) e se prolongou ao longo de vários anos, sem coabitação (para além de ocasional- e assim sem partilha de leito, mesa e habitação, como reza a acusação) e com interrupções (as quais decorreram sem o normal/expectável afastamento face ao tipo de relação), relação de namoro que cessou definitivamente em Setembro de 2022, após os factos apurados (e em consequência dos mesmos).
Na caracterização dessa relação ao longo do tempo foram consideradas as declarações do arguido, na parte em que admitiu alguns dos factos, o depoimento sincero da ofendida (admitindo mesmo factos que lhe eram desfavoráveis, como ter partido os óculos do arguido) e bem assim os depoimentos dos seus pais, todos revelando ausência de ressentimento (o que foi particularmente notório no caso do pai da ofendida) que mercê da relação familiar e de proximidade vivencial com a ofendida mostraram conhecimento da factualidade sobre que depuseram, contribuindo para a formação da convicção positiva do tribunal, nomeadamente quanto ao episódio ocorrido em 2017 na residência da família, em ..., por se terem deslocado ao local, e por último, quanto ao ocorrido em casa do arguido em Setembro de 2022 que não presenciaram mas ouviram contar à filha, logo após os factos, credibilizando o seu relato (pormenorizado e emotivo), tendo a mãe daofendida visualizado as lesões que esta apresentava, as quais são visíveis nos fotogramas juntos a fls. 62 a 65 e das quais dá conta ainda o relatório pericial de fls. 13 e ss, sendo as mesmas compatíveis com o relato da ofendida (agressão física; imobilização e afastamento forçado dos membros inferiores- cfr. conclusões do relatório pericial), assim se sobrepondo a versão da ofendida à do arguido, que admitiu a ocorrência da relação sexual, mas que referiu ter sido consensual, o que nos termos expostos se apurou não ter sucedido, sendo que as regras de experiência comum e do normal acontecer reforçam a convicção do tribunal, porquanto o arguido queria "reatar" a "intermitente relação" e foi com esse acontecimento que a relação amorosa terminou definitivamente (e isso sem prejuízo das mensagens enviadas posteriormente pela ofendida ao arguido, no contexto da relação que mantêm por causa da filha, ainda que a ofendida aborde outros assuntos e peça ajuda ao arguido e que corroboram o acima referido quanto a ausência de ressentimento e desejo de vingança).
Tomou-se em consideração relatório social quanto à factualidade apurada no que se refere à situação pessoal, familiar, profissional e social do arguido e bem assim o certificado de registo criminal junto aos autos.
A factualidade não provada decorreu da ausência de prova segura e credível, para além de qualquer dúvida razoável da sua verificação e com a certeza e segurança necessárias em sede de julgamento para uma condenação, considerando a ausência de corroboração probatória do depoimento da ofendida (mesmo em relação a factos dos quais seria expectável que os pais tivessem conhecimento ou até de acordo com a acusação teriam tido conhecimento directo), a negação do arguido e o contexto de personalidade da ofendida e de relação disfuncional apurado, de onde em obediência ao princípio do
in dubio pro reo
o tribunal respondeu negativamente à mesma.”
***
II.3.
Apreciação do recurso
II.3.1. Dos vícios decisórios – Artigo 410º/2 do CPP
§1.
O recorrente invoca expressamente a contradição insanável da fundamentação e o erro notório na apreciação da prova, indicando como norma violada o artigo 410º, n.º 2, als. b) e c) do CPP.
**
§2.
Nos termos do artigo 410º, n.º 2 do CPP o recurso interposto sobre a matéria de facto de uma sentença proferida em processo crime pode ter um de três fundamentos: a) a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; e c) o erro notório na apreciação da prova.
Em qualquer um dos apontados fundamentos, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos para o fundamentar, como por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10ª ed., pág. 279; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed. Pág. 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª ed., págs. 77 e ss.), tratando-se assim de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser autossuficiente.
Sendo do conhecimento oficioso (cfr. acórdão nº 7/95, do STJ, in DR, I Série-A, de 28/12/95), percorrido o acórdão recorrido teremos que concluir que o mesmo não evidencia, por si e no seu texto, o vício previsto na al. a) do n.º 2 do artigo 410º do CPP.
**
§3.
Comecemos por analisar o vício decisório invocado pelo recorrente previsto no artigo 410º, n.º 2, al. b) do CPP.
Conforme supra explanado este vício tem que necessariamente decorrer do texto da decisão recorrida e traduz-se numa “
incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão, entre os factos provados, entes este e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão
” (Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., pág. 63), podendo configurar-se de três modos distintos:
- “(…)
contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados;
- “(…) contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada;
- “(…) contradição entre os factos quando os factos provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente”
(Simas Santos e Leal Henriques, ob. cit., pág. 64).
“
Por contradição, entende-se o facto de se afirmar ou negar ao mesmo tempo uma coisa ou a emissão de duas proposições contraditórias que não podem ser simultaneamente verdadeiras e falsas, entendendo-se por proposições contraditórias as que tendo o mesmo sujeito e o mesmo atributo diferem na qualidade ou na quantidade.
Para os fins do preceito (…) constitui contradição apenas e tão só aquela que, como expressamente se postula, se apresente como insanável, irredutível, que não possa ser ultrapassada como o recurso à decisão recorrida no seu todo, por si ou com o auxílio das regras da experiência.
Só existe, pois, contradição insanável da fundamentação quando, de acordo com um raciocínio lógico, seja de concluir que essa fundamentação justifica uma decisão precisamente oposta ou quando, segundo o mesmo tipo de raciocínio, se possa concluir que a decisão não fica esclarecida de forma suficiente, dada a colisão entre os fundamentos invocados” (
Leal Henriques e Simas Santos, CPP Anotado, 2ª ed., pág. 739).
No caso vertente, o recorrente invocou a contradição insanável da fundamentação alegando não ser compreensível a valoração dicotómica da mesma prova (depoimentos da ofendida e dos seus progenitores) para dois acontecimentos factuais distintos.
Tendo presente o que supra se escreveu sobre a natureza do vício da contradição insanável previsto no artigo 410º, n.º 2, al. b) do CPP constata-se que aquilo que o recorrente faz é afirmar a sua discordância sobre apreciação da prova efectuada pelo tribunal recorrido, divergência essa que será conhecida por este Tribunal por consusbtanciar o vício a que se reporta a al. c) do n.º 2, do artigo 410º do CPP, expressamente invocado pelo recorrente e cuja apreciação se imporia por ser do conhecimento oficioso.
Sempre se dirá que lido o acórdão recorrido não vislumbramos qualquer contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão.
Improcede, nesta parte, o recurso.
**
§4.
Passemos agora a analisar o vício decisório invocado pelo recorrente previsto no artigo 410º, n.º 2, al. c) do CPP.
*
§4.1.
Conforme já referimos, este vício tem que necessariamente decorrer do texto da decisão recorrida e verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis. Esse vicio do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar (cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed. Pág. 341).
Trata-se de um erro de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cf. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª ed., pág. 74). Não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não conduz ao referido vício (a propósito deste vício, veja-se, entre outros, o acórdão do TRP de 15.11.2018 e o acórdão do STJ de 18.05.2011, ambos acessíveis in
www.dgsi.pt
).
Quanto a este vício –
erro notório na apreciação da prova
– importa ainda referir que o tribunal decide, salvo no caso de prova vinculada, de acordo com as regras da experiência e a livre convicção.
Na verdade, dispõe o artigo 127º do C.P.P. que
“salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
Rege, pois, o princípio da livre apreciação da prova, significando este principio, por um lado, a ausência de critérios legais predeterminados de valor a atribuir à prova (salvo excepções legalmente previstas, como sucede com a prova pericial) e, por outro lado, que o tribunal aprecia toda a prova produzida e examinada com base exclusivamente na livre convicção da prova e na sua convicção pessoal.
O que sempre se impõe é que explique e fundamente a sua decisão, pois só assim é possível saber se fez a apreciação da prova de harmonia com as regras comuns da lógica, da razão e da experiência acumulada.
Contudo, a liberdade conferida ao julgador na apreciação da prova não visa criar um poder arbitrário e incontrolável.
A este propósito refere Germano Marques da Silva que
“a livre valoração da prova não deve ser entendida como uma operação puramente subjectiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de impressões ou conjecturas de difícil ou impossível objectivação, mas como uma valoração racional e critica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão”. (
in Curso de Processo Penal, Verbo, Vol. II, pág. 111).
Tal liberdade está intimamente ligada quer ao dever de tal apreciação assentar em critérios objectivos de motivação, quer ao dever de perseguir a verdade material.
Por isso, quando se refere que a valoração da prova é segundo a livre convicção da entidade competente (in casu, o juiz), a convicção há de ser pessoal, objectivável e motivável, logo, vinculada e, assim, capaz de conseguir a adesão razoável da comunidade pública. Donde resulta que tal existirá quando e só quando o Tribunal se tenha convencido, com base em regras técnicas e de experiência, da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável (cf. Figueiredo Dias in Direito Processual Penal, Vol. I, Coimbra Editora, 1981, págs. 198-207).
Do exposto resulta que o juiz deve apreciar a prova testemunhal segundo os critérios de valoração racional e lógica, tendo em conta as regras normais de experiência, julgando segundo a sua consciência e convicção.
*
§4.2.
Revertendo ao caso dos autos, o recorrente, aceitando as declarações de todas as testemunhas e do arguido tal e qual foram narradas na fundamentação do acórdão recorrido, invoca o vício do erro notório na apreciação da prova.
Para o efeito alega, sucintamente, as seguintes razões: o Tribunal a quo hipervalorizou o depoimento do arguido e desvalorizou o depoimento da ofendida e seus progenitores, apesar de terem sido considerados credíveis, isentos e sem ressentimentos para com o arguido e essenciais para condenara o arguido no crime de violação; não obstante o Tribunal a quo ter afirmado que a ofendido e os seus progenitores tiveram um depoimento sincero e isento, apenas considerou tal isenção e sinceridade nos factos respeitantes ao crime de violação e por motivos incompreensíveis; a postura isenta e credível da ofendida não mudou entre os dois acontecimentos factuais e o depoimento credíveis e isento dos seus progenitores também não se alterou.
Conclui que os
factos n.ºs 7, 8, 9, 10 (situação reportada ao ano de 2017) e 16 (situação referente ao ano de 2018) do libelo acusatório
devem ser dados como provados, a acrescer aos factos já dados como provados pelo Tribunal a quo.
Antes de mais importa fazer a adequada correspondência dos factos narrados no despacho de acusação invocados pelo recorrente com os factos dados como provados e não provados elencados na decisão recorrida acima transcrita.
Assim, comparando a acusação
(junta aos autos com a referência 413872841)
com a decisão recorrida temos que concluir que o recorrente discorda dos
factos não provados sob os pontos 5, 6, 7, 8 e 12
nos moldes infra explicitados:
i) O
ponto 7 da acusação
–
em data não concretamente apurada do ano de 2017, encontrando-se a vítima grávida de 6 meses e no interior do seu quarto, na casa onde vivia com os seus pais, na Rua ..., ... ... ..., o arguido iniciou uma discussão porque teimava que aquela mantinha relações sexuais com outros homens e não o desejava
–
corresponde
à
primeira
parte do facto provado sob o ponto 7
–
em data não concretamente apurada do ano de 2017, encontrando- se a vítima grávida, no interior do seu quarto, na casa onde vivia com os seus pais, na Rua ..., ... ... ..., o arguido iniciou uma discussão porque teimava que aquela mantinha relações sexuais com outros homens e não o desejava
– e ao
facto não provado sob o ponto 5
–
Que quando sucederam os factos supra id. em 7. e 8. a ofendida estava grávida de 6 meses;
ii) O
ponto 8 da acusação
–
nessa altura, o arguido chegou a casa e tocou à campainha. Quando a vítima se dirigiu para abrir a porta, viu o arguido a correr vindo das traseiras. Quando o questionou o arguido referiu que foi verificar se não estava outra pessoa a sair, pela porta das traseiras
– corresponde ao
facto não provado sob o ponto 6
–
Que nessa altura, o arguido chegou a casa e tocou à campainha. Quando a vítima se dirigiu para abrir a porta, viu o arguido a correr vindo das traseiras
– e ao
facto não provado sob o ponto 7
–
Que quando o questionou o arguido referiu que foi verificar se não estava outra pessoa a sair, pela porta das traseiras;
iii) O
ponto 9 da acusação
–
já no interior do quarto o arguido apanhou a roupa interior da vítima e cheirou-a com o objetivo de perceber se esta havia estado estado com outro homem
– corresponde
à
segunda
parte do facto provado sob o ponto 7
–
e nesse contexto o arguido apanhou a roupa interior da vítima e cheirou-a com o objetivo de perceber se esta havia estado com outro homem;
iv) O
ponto 10 da acusação –
nessa sequência gerou-se mais uma discussão entre o casal e o arguido empurrou a vítima e desferiu-lhe uma bofetada na face, o que lhe causou dor
– corresponde ao
facto não provado sob o ponto 8
–
que o arguido empurrou a vítima e desferiu-lhe uma bofetada na face, o que lhe causou dor;
v)
O ponto 16 da acusação
–
a vítima foi então dormir com a filha, no quarto desta. Como a filha acordou, a meio da noite, vítima levantou-se para preparar algo para aquela comer. Nessa altura, o arguido levantou-se dirigiu-se à vítima, enquanto esta tinha a filha nos braços e empurrou-a contra a parede. De seguida, o arguido desferiu um murro na face da vítima, o que lhe causou dor. A vítima viu-se obrigada a fugir para o exterior. Quando a arguido a procurou, a vítima conseguiu voltar para casa, deixando, então, o arguido no exterior. Aí, o arguido exigiu que a vítima abrisse a porta, apelidando-a de “Badalhoca” e de “Puta.”
– corresponde ao
facto não provado sob o ponto 12
–
que a ofendida foi então dormir com a filha, no quarto desta e como a filha acordou, a meio da noite, vítima levantou-se para preparar algo para aquela comer. Nessa altura, o arguido levantou-se dirigiu-se à vítima, enquanto esta tinha a filha nos braços e empurrou-a contra a parede. De seguida, o arguido desferiu um murro na face da vítima, o que lhe causou dor. A vítima viu-se obrigada a fugir para o exterior. Quando a arguido a procurou, a vítima conseguiu voltar para casa, deixando, então, o arguido no exterior. Aí, o arguido exigiu que a vítima abrisse a porta, apelidando-a de "Badalhoca" e de "Puta."
*
§4.3.
Feita esta correspondência factual passemos a analisar se a decisão recorrida padece do vício decisório apontado pelo recorrente.
Como se sabe, a livre valoração da prova não pode ser entendida como uma operação puramente subjectiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de impressões ou conjecturas de difícil ou impossível objectivação, mas sim valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão.
Ao tribunal de recurso cabe verificar, controlar, se o Tribunal a quo, ao formar a sua convicção, fez um bom uso do princípio de livre apreciação da prova, aferindo da legalidade do caminho que prosseguiu para chegar à matéria fáctica dada como provada e não provada, sendo certo que tal apreciação deverá ser feita com base na motivação elaborada pelo tribunal de primeira instância, na fundamentação da sua escolha – ou seja, no cumprimento do disposto no artigo 374º, nº 2 do Código de Processo Penal.
Lido o acórdão recorrido verificamos que consta da motivação da decisão de facto a propósito da factualidade dada como provada o seguinte (com sublinhado da nossa autoria):
“A factualidade não provada decorreu da
ausência de prova segura e credível,
para além de qualquer dúvida razoável da sua verificação e com a certeza e segurança necessárias em sede de julgamento para uma condenação,
considerando a ausência de corroboração probatória do depoimento da ofendida
(mesmo em relação a factos dos quais seria expectável que os pais tivessem conhecimento ou até de acordo com a acusação teriam tido conhecimento directo), a
negação do arguido
e o
contexto de personalidade da ofendida e de relação disfuncional apurado,
de onde em obediência ao princípio do
in dubio pro reo
o tribunal respondeu negativamente à mesma.”
É certo que o julgador não está obrigado a aceitar ou a rejeitar acriticamente e em bloco as declarações prestadas (seja pelo arguido, pelo assistente ou por qualquer testemunha), podendo delas respigar aquilo que lhe pareça credível.
Porém, o que sempre se impõe é que justifique a sua decisão, fundamentando devidamente as opções efectuadas.
Ora, como resulta claramente da motivação da matéria de facto ora transcrita, as razões invocadas pelo Tribunal a quo para considerar não ter sido produzida prova segura e credível são as seguintes:
i) O depoimento da ofendida não ter sido corroborado por outro meio de prova (designadamente, os seus progenitores);
ii) O arguido ter negado os factos em causa;
iii) A personalidade da ofendida;
iv) A relação disfuncional entre o arguido e a ofendida.
Sucede que, analisando na sua globalidade a fundamentação da decisão sobre a matéria de facto consideramos que as razões apontadas pelo Tribunal a quo carecem de lógica, racionalidade, razoabilidade e coerência.
Senão vejamos.
Quanto à primeira razão apontada pelo Tribunal a quo importa desde logo esclarecer que a circunstância de o depoimento da ofendida não ter sido corroborado por outro meio de prova não tem fundamento legal, pois nada impede que a convicção do julgador se possa alicerçar num único depoimento, desde que a motivação da decisão de facto explicite as razões desse convencimento.
Ora, tendo o Tribunal a quo considerado o depoimento da ofendida sincero (fazendo expressa referência que admitiu factos que lhe eram desfavoráveis), não revelando qualquer ressentimento para com o arguido, nem desejo de vingança, não se compreende a exigência de corroboração probatória para conferir-lhe, nesta parte, credibilidade.
Aliás, se atentarmos à fundamentação da decisão sobre a matéria de facto constatamos que o Tribunal a quo decidiu valorar os depoimentos dos progenitores da ofendida para a formação da sua convicção quer no respeita ao episódio ocorrido em 2018 por os mesmos se terem deslocado ao local, quer no que concerne ao episódio ocorrido em Setembro de 2022, sendo certo que, em ambas as situações, os progenitores não presenciaram os factos, tendo designadamente a progenitora narrado aquilo que a sua filha lhe contou e, se esse relato serviu para credibilizar o depoimento da ofendida no que tange ao episódio ocorrido em 2022, não tem cabimento também não ter sido valorado nos mesmos termos para o episódio ocorrido em 2018.
Acresce que, tendo o Tribunal a quo considerado credível o depoimento da ofendida para dar como provados factos que lhe eram desfavoráveis (designadamente, o ponto 8 dos factos provados respeitante ao episódio ocorrido em 2017), não se descortina o motivo pelo qual não considerou credível na parte em que relata as agressões físicas de que foi vítima por parte do arguido no âmbito dessa mesma situação.
No que respeita à segunda razão apontada pelo Tribunal a quo não podemos olvidar que, por um lado, o arguido negou os factos respeitantes ao imputado crime de violação (e mesmo assim o Tribunal a quo não valorizou as suas declarações) e, por outro lado, em relação ao episódio ocorrido em 2017 o arguido pese embora tenha negado ter dado uma bofetada à ofendida, acaba por admitir como possível ter empurrado a ofendida conforme decorre das suas declarações descritas na fundamentação exarada na decisão recorrida.
No tocante à terceira razão apontada pelo Tribunal a quo não se compreende por que motivo a personalidade da ofendida
(padece de transtorno de personalidade boderline, já foi acompanhada em psicologia e sofreu intoxicação medicamentosa e episódios de auto mutilação)
foi apenas preponderante para afastar a sua credibilidade no que concerne aos episódios ocorridos em 2017 e 2018 e já não quanto ao episódio ocorrido em Setembro de 2022.
Em relação
à quarta razão apontada pelo Tribunal a quo a relação disfuncional existente entre o arguido e a ofendida (que se traduziu numa relação de namoro com imensas discussões e reatamentos) não tem a virtualidade de, sem mais, descredibilizar o depoimento da ofendida, que inclusivamente admitiu ter mantido com o arguido “uma relação doentia”.
Por todo o exposto, examinada a fundamentação da decisão recorrida na sua globalidade, concluímos que não tendo o Tribunal a quo considerado o depoimento da ofendida como meio de prova dúbio, fraco ou desconfiável, o raciocínio vertido no seu texto relativamente à motivação respeitante à factualidade dada como não provada traduz-se numa apreciação desprovida de lógica, razoabilidade e consistência.
Dito de outro modo.
Não havendo razões plausíveis para suspeitar da veracidade do depoimento da ofendida,
entendemos ser a prova produzida bastante para que o Tribunal a quo concluísse, com a segurança que se impõe e para além da dúvida razoável, pela verificação dos factos adiante descriminados.
Nesta conformidade,
a decisão recorrida padece, pois, do invocado vício de erro notório na apreciação da provada previsto no artigo 410º, n.º 2, al. c) do CPP
, o que implica nulidade passível de suprimento e que se corrigirá nos termos infra expostos.
*
§4.4.
Por conseguinte, atenta a estrutura da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, dispomos de todos os elementos para corrigir o detectado vício decisório e, como tal, nos termos do artigo 431º, al. a) do CPP,
determina-se a modificação da matéria de facto nos termos seguintes:
i)
Alteração do facto provado sob o ponto 8
que passa a ter a seguinte redacção;
“Nesse contexto de discussão o arguido empurrou a vítima e desferiu-lhe uma bofetada na face, o que lhe causou dor e a ofendida tirou ao arguido os óculos que este tinha colocados e partiu-os.”
ii)
Aditamento aos factos provados dos seguintes factos
:
“4. O arguido exerceu controle sobre a vítima relativamente ao que vestia.”
“10-A.
Que a ofendida foi então dormir com a filha, no quarto desta e como a filha acordou, a meio da noite, a vítima levantou-se para preparar algo para aquela comer. Nessa altura, o arguido levantou-se dirigiu-se à vítima, enquanto esta tinha a filha nos braços e encostou-a contra a parede. De seguida, o arguido desferiu um murro na face da vítima, o que lhe causou dor. A vítima viu-se obrigada a fugir para o exterior. Quando a arguido a procurou, a vítima conseguiu voltar para casa, deixando, então, o arguido no exterior. Aí, o arguido exigiu que a vítima abrisse a porta, apelidando-a de "Puta”.”
iii)
Alteração do facto não provado sob o ponto 2
que passa a ter a seguinte redacção:
“Que o arguido exerceu controle sobre a vítima relativamente com quem se comunicava, o que levou ao isolamento social desta.”
iv)
Alteração do facto não provado sob o ponto 12
que passa a ter a seguinte redacção:
“Que o arguido empurrou a ofendida contra a parede e apelidou-a de "Badalhoca”.”
v)
Eliminação do facto dado como não provado sob o ponto 8
.
*
§4.5.
Sendo o detectado vício de erro notório na apreciação da prova de conhecimento oficioso este Tribunal não está, pois, limitado apenas aos factos impugnados pelo recorrente.
Assim, analisada toda a matéria de facto dada como provada (designadamente, os pontos 3, 4, 5, 7, 8, 9, 10 e 10-A), à luz das regras da experiência comum e do normal suceder dos acontecimentos da vida, tendo o arguido praticado os factos nos termos dados como provados, não se pode deixar de considerar demonstrado o facto dado como não provado sob o ponto 15 atinente ao elemento subjectivo nos moldes infra descritos.
Deste modo, nos termos do artigo 431º, al. a) do CPP,
determina-se ainda a modificação da matéria de facto nos termos seguintes:
i)
Aditamento aos factos provados do seguinte facto
:
“25-A O arguido quis agir da forma descrita, ofendendo o bom nome e o físico da sua então namorada, bem sabendo que desse modo lhe provocava profundo receio, humilhação e dor, com indiferença à relação que mantinham, agindo por vezes com o propósito de subjugar a ofendida à sua vontade, bem sabendo que a sua conduta lhe provocava danos na sua saúde física e psíquica, o que quis e conseguiu.”
ii)
Eliminação
do facto não provado sob o ponto 15.
*
§4.6.
As referidas modificações serão tidas em consideração aquando da apreciação da questão do enquadramento jurídico dos factos provados suscitada no recurso interposto pelo Ministério Público para aferirmos se estamos ou não perante um crime de violência doméstica.
***
II.3.2. Do crime de violência doméstica
§1.
O recorrente pugna pela condenação do arguido pela prática do crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152º, n.º 1, al. a) CP, com a agravação dos n.ºs 2, al. a), 4, 5 e 6 do CP.
*
§2.
Antes de mais importa referir que certamente por manifesto lapso o recorrente pugna pela condenação do arguido pelo crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, n.º 1, al. a) CP em vez da al. b), já que a relação amorosa narrada na acusação naturalmente se só se poderá enquadrar nesta alínea, lapso esse que se impõe rectificar em conformidade.
*
§3.
De acordo com o preceituado no artigo 152º do CP, na versão vigente à data dos factos, na parte que aqui particularmente importa, comete um crime de violência doméstica:
“1 –
Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
b)
A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;(…)”
Nos termos do disposto no n.º 2 do mesmo artigo (coma redacção em vigor à data dos factos), o crime é agravado, “
se o agente
praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima”
.
São conhecidas as divergências existentes quanto ao bem jurídico tutelado pela incriminação. Mas podemos dizer que, no entendimento dominante da doutrina e jurisprudência, e que seguimos, o crime tutela a
saúde física, psíquica, mental e moral.
A propósito do bem jurídico protegido pelo crime de violência doméstica transcrevemos o seguinte excerto do acórdão do STJ de 30.10.2019, relatado por Vinício Ribeiro (disponível em www.dgsi.pt):
“
Igual sinal da complexidade do crime violência doméstica está na determinação do bem jurídico protegido pelo mesmo.
O Ebook do CEJ, intitulado Violência Doméstica implicações sociológicas, psicológicas e jurídicas do fenómeno, contém diversos estudos elaborados por Magistrados Judiciais e do Ministério Público, nomeadamente a págs. 84-106, um trabalho acerca da Violência Doméstica elaborado pela Procuradora da República e Docente do CEJ, Catarina Fernandes, onde se faz uma síntese sobre o bem jurídico protegido pela incriminação, que, pela sua clareza e fontes informativas, a seguir se reproduz:
«1) Saúde
A posição dominante tem sido e continua ainda a ser a sufragada por Américo Taipa de Carvalho, na sua anotação ao artigo 152º, do Código Penal (Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, artigos 131º a 201º, 2ª Edição, Coimbra: Coimbra Editora, 2012, p. 511 e 512): “O art. 152º está, sistematicamente, integrado no Título I, dedicado aos “crimes contra as pessoas”, e, dentro deste, no Capítulo III, epigrafado de “crimes contra a integridade física”. A ratio do tipo não está, pois, na protecção da comunidade familiar, conjugal, educacional ou laboral, mas sim na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana”. (…) Portanto, deve entender-se que o bem jurídico protegido por este tipo de crime é a saúde – bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental; e bem jurídico este que pode ser afectado por toda a multiplicidade de comportamentos que impeçam ou dificultem o normal e saudável desenvolvimento da personalidade da criança ou do adolescente, agravem as deficiências destes, afectem a dignidade pessoal do cônjuge (ex-cônjuge, ou pessoa com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges), ou prejudiquem o possível bem-estar dos idosos ou doentes que, mesmo que não sejam familiares do agente, com este coabitem”.
(…)
2) Dignidade da pessoa humana
Encontram-se na Doutrina e na Jurisprudência algumas posições que, alargando amplamente o objeto de tutela do crime de violência doméstica, o reconduzem à dignidade da pessoa humana. Neste sentido, Augusto Silva Dias defende que este crime visa proteger a integridade corporal, a saúde física e psíquica e dignidade da pessoa humana (Materiais para o estudo da Parte Especial do Direito Penal, Crimes contra a vida e a integridade física, 2.ª edição, Lisboa: AAFDL, 2007, p. 110). Também Sandra Inês Feitor defende esta tese (Análise crítica do crime de violência doméstica [Em linha], 2012, disponível na Internet em:URL
http://www.fd.unl.pt/Anexos/5951.pdf
).
(…)
3) Integridade pessoal
José Francisco Moreira das Neves (Violência Doméstica – Bem jurídico e boas práticas, Revista do CEJ, XIII, 2010, p. 43-62), recordando que o tipo objetivo do ilícito de violência doméstica inclui condutas que se consubstanciam em violência ou agressividade física, psicológica, verbal e sexual, conclui que o bem jurídico é a integridade pessoal, uma vez que a tutela da saúde, abrangendo a saúde física, psíquica e mental, “ficará aquém da dimensão que a Constituição dá aos direitos que este tipo de ilícito visa tutelar”.
4) Integridade física e psíquica, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual e a honra
Também Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Lisboa: Universidade Católica Portuguesa, 2008, p. 404) discorda da posição maioritária na doutrina e jurisprudência nacionais, entendendo que “os bens jurídicos protegidos pela incriminação são a integridade física e psíquica, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual e até a honra”.
(…)
5) Integridade pessoal e livre desenvolvimento da personalidade
André Lamas Leite tem um posicionamento diferente do tradicional e dominantes [A violência relacional íntima: reflexões cruzadas entre o direito e a criminologia, Julgar, nº 12 (especial), 2010, p. 25-66, e Penas Acessórias, questões de género, de violência doméstica e o tratamento jurídico-criminal dos “shoplifters”, in As alterações de 2013 aos Código Penal e de Processo Penal: uma reforma “cirúrgica?”, Organização André Lamas Leite, Coimbra Editora, Coimbra, 2014].
Para este autor, o bem jurídico protegido por esta incriminação é, por natureza, multímodo, reconduzindo-se à integridade pessoal e o livre desenvolvimento da personalidade: (…) »
E mais à frente podemos ler:
“Perscrutando, além da doutrina, a jurisprudência deste STJ podemos concluir que o bem jurídico protegido é a saúde, nas suas várias vertentes, também como emanação da própria dignidade da pessoa humana.
Alinhavando e arrumando ideias fundamentais informadoras do crime em análise, podemos dizer que:
--estamos perante um
crime de relação
, dado que existe um traço de união entre a vítima e o arguido, derivada do casamento, ou relação análoga, de namoro, ou de coabitação;
--um crime em que o
bem jurídico
protegido é
plural e complexo
;
--e que tem na sua base (cfr. a redacção do n.º 1 do art. 152.º) o conceito nuclear de
maus tratos
(físicos ou não físicos), que verdadeiramente o distingue de outras infracções (à integridade física, ameaça, perseguição, injúria, difamação).”
O CP não define o conceito de
maus tratos
, físicos ou psíquicos, limitando-se a dizer que nele se devem incluir os castigos corporais, as privações da liberdade e as ofensas sexuais e impedimento do acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios.
Quanto às condutas que devem ser incluídas no conceito de maus tratos físicos refere o acórdão do TRC de 21.06.2023, relatado por Vasques Osório (acessível em www.dgsi.pt) que devem ser
“todas as condutas agressivas que visem atingir directamente o corpo da vítima, v.g., bofetadas, murros, pontapés, joelhadas, puxões de cabelos, empurrões, apertões de partes do corpo e pancadas ou golpes desferidos com objectos, portanto, acções normalmente preenchedoras do tipo do crime de ofensa à integridade física.
E quanto às acções que devem incluir-se no conceito de
maus tratos
psíquicos
o mesmo aresto consigna que devem incluir-se
“entre outras acções, as injúrias, as críticas destrutivas e/ou vexatórias, as ameaças, as privações da liberdade, as restrições, as perseguições e as esperas não consentidas.”
O preenchimento do conceito de
mau trato
não exige que a concreta conduta tenha que traduzir-se numa lesão grave, num tratamento cruel ou brutal, embora, não raras vezes, assim seja.
“Como resulta do texto da norma, o crime de violência doméstica não exige reiteração. Ainda assim, pelas suas características é usualmente um crime que se comete de forma reiterada e, neste sentido, podemos distinguir dois vectores: o da habitualidade e o da intensidade dos actos. Seja um acto isolado ou reiterado, se se verificar que apreciado à luz da intimidade do lar, coloca em sério risco a vida em comum, por reconduzirem a pessoa ofendida a vítima, de forma permanente, ou não, a um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, encontramos preenchido o tipo de violência doméstica.”
(cfr. Inês Fonseca Mendes, A natureza jurídica do crime de violência doméstica conjugal: uma perspectiva crítica).
Em suma: a
violência doméstica
não deve ser entendida como o mero somatório das acções, típicas ou atípicas, praticadas pelo agente contra a vítima, mas antes, o que desse conjunto de acções, globalmente considerado, resulta, e a sua aptidão para afectar de forma significativa a saúde física, psíquica e moral da vítima e, por essa via, a sua dignidade.
*
§3.
À luz das considerações que se deixam expendidas, revertendo ao caso dos autos, em face da matéria de facto provada (com a alteração decidida neste recurso), é manifesto que se encontram preenchidos todos os elementos objectivos e subjectivos que integram o tipo de crime de violência doméstica imputado ao arguido na acusação.
Na verdade, dos factos provados resulta que os actos intrusivos, persecutórios e perturbadores levados a cabo pelo arguido durante o relacionamento afectivo que manteve com a ofendida traduzem um quadro de assinalável violência psicológica, que teve como efeito a degradação da dignidade humana da ofendida, lesando a sua integridade física e psíquica.
Note-se que não ocorre aqui qualquer reciprocidade nas agressões físicas e/ou verbais perpetradas pelo arguido na pessoa da ofendida, porquanto, a conduta apurada da ofendida –
designadamente, ter tirado os óculos ao arguidos e os ter partido
– deve ser entendida no contexto em que foi perpetrada pela ofendida, ou seja, no âmbito de uma discussão em que a mesma foi alvo de agressões físicas por parte do arguido, não assumindo a sua conduta qualquer controle na violência psicológica e física de que foi vítima.
É assim manifesto que o arguido ao praticar os apurados actos ofensivos da dignidade pessoal e humana da ofendida atingiu o bem jurídico protegido pela norma incriminadora em causa.
Por isso, deve o arguido ser condenado pela prática de um crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152º, n.º 1, al. b) do CP.
E tendo parte das condutas do arguido sido praticadas na residência da ofendida mostra-se preenchida a circunstância qualificativa prevista no n.º 2, do artigo 152º do CP (na redacção vigente a data dos factos).
Procede, nesta parte, o recurso.
*
§3.
Perante o novo enquadramento jurídico-penal dos factos, importa proceder à determinação da pena que deve corresponder ao crime de violência doméstica de acordo com o AUJ do STJ nº 4/2016 de 21.02.2016 (publicado no DR n.º 36/2016, Série I, de 22.02.2016
C:\Users\fj50445\Downloads\086Recurso nº 168-22.5GFVNG.P1 (VD, art. 410º nº 2 b) e c) do CPP_ filhos menores presenciaram a VD sobre a sua mãe) (1)-generated (1).docx - _ftn36
) que decidiu: “
Em julgamento de recurso interposto de decisão absolutória da 1ª instância, se a relação concluir pela condenação do arguido deve proceder à determinação da espécie e medida da pena, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374.º, n.º 3, alínea b), 368.º, 369º, 371º, 379º, nº 1, alíneas a) e c), primeiro segmento, 424º nº 2 e 425º nº 4, todos do Código de Processo Penal
”.
De acordo com os quadros normativos relativos à finalidade das penas (a aplicação das penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade e em caso algum poderá ultrapassar a medida da culpa -artigo 40º, nºs 1e 2, do CP) e determinação da sua medida (em função da culpa e das exigências de prevenção – artigo 71º, nº1, do CP) deve à pena (destinada a proteger o mínimo ético-jurídico fundamental) ser imputada uma dinâmica para que cumpra o seu especial dever de prevenção.
Entre aquele limite mínimo de garantia da prevenção e máximo da culpa do agente, a pena é determinada em concreto por todos os factores do caso, previstos nomeadamente no nº 2 do referido artigo 71º, que relevem para a adequar tanto quanto possível à ilicitude da acção e culpa do agente.
Neste sentido, a culpa (pressuposto-fundamento da pena que constitui o princípio ético-retributivo), a prevenção geral (negativa, de intimidação ou dissuasão, e positiva, de integração ou interiorização) e a prevenção especial (de ressocialização, reinserção social, reeducação mas que também apresenta uma dimensão negativa, de dissuasão individual) representam três exigências atendíveis na escolha da pena.
*
§4.
A moldura abstracta penal prevista para o crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, al. b) e n.º 2 do CP é de 2 a 5 anos de prisão.
Atendendo aos critérios estabelecidos pelo citado artigo 71.º, n.º 2
em desfavor
do arguido militam as seguintes circunstâncias:
– o grau de ilicitude dos factos considerando o modo de execução, o período de tempo em que os mesmos ocorreram e os danos causados à vítima situa-se num patamar mediano;
- o facto de o arguido ter actuado com dolo directo.
Por seu turno, em
favor do arguido
há que considerar o seguinte:
– a inserção social, profissional e familiar do arguido.
As
exigências de prevenção especial
não se mostram prementes atenta a natureza distinta do seu único antecedente criminal (condução de veículo sem habilitação legal).
Por sua vez, são evidentes e muito elevadas as
exigências de prevenção geral
desde logo atenta a persistência e a disseminação deste tipo de criminalidade na sociedade portuguesa actual, que não dá mostras de retrocesso, mau grado todas as medidas de ordem preventiva e repressiva adoptadas, com clara perturbação comunitária e, por vezes, com graves consequências para as vítimas.
Assim, ponderando as circunstâncias supra
enumeradas, afigura-se-nos adequada, proporcional e ajustada uma
pena de 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão.
*
§5.
Tendo o arguido sido condenado na 1ª instância pelo crime de violação, p. e p. pelo artigo 164º, n.º 2, a), do CP, na pena de 3 (três) anos e 10 (dez) meses de prisão importa agora fixar a respectiva pena única compreendida entre o mínimo de 3 (três) anos e 10 (dez) meses e o máximo de 6 (seis) anos e 1 (um) mês de prisão em face do disposto no artigo 77º, n.º 2 do CP.
Dispõe o artigo 77º, n.º 1 do CP que “
Na medida da pena são considerado, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”.
Atendendo aos já explicitados factores concretos de determinação da pena, considerando em conjunto a gravidade dos factos praticados, o período de tempo em que ocorreram, avaliando a interconexão entre os crimes do concurso e a personalidade do arguido revelada nos factos, entendemos justo e proporcional aplicar-lhe a
pena única de 4 (quatro) anos e 10 (dez) meses de prisão.
*
§6.
O Tribunal de 1ª Instância aplicou ao arguido a pena substitutiva da suspensão da execução da pena de prisão.
Mantêm-se os pressupostos formais e materiais para a manutenção da referida pena de substituição previstos no artigo 50º do CP face à medida da pena única aplicada ao arguido (não superior a 5 anos de prisão),
ficando a execução dessa pena suspensa por igual período de tempo (quatro anos e 10 meses).
Não se discute que as exigências de prevenção geral são importantes, em face da danosidade social do crime, da sua frequência e da intenção preventiva que o legislador pôs na previsão autónoma e agravada deste crime.
No entanto, as exigências de prevenção especial continuam a não reclamar o cumprimento efectivo da pena única de prisão fixada por este Tribunal dada a ausência de antecedentes criminais pela prática de crime da mesma natureza e atenta a inserção social, familiar e profissional do arguido.
Assim, em face da factualidade apurada, entende-se que ainda é possível formular um juízo de prognose favorável sobre a possibilidade de a ameaça de pena única ser bastante para evitar que o arguido volte a cometer crimes.
*
§7.
O
recorrente requer ainda a aplicação das penas acessórias previstas nos n.ºs 4, 5 e 6 do artigo 152º do CP (vigente à data dos factos).
Na aplicação das penas acessórias, o julgador está vinculado aos mesmos critérios e elementos de ponderação utilizados aquando da determinação concreta da sanção penal principal, designadamente tal sanção acessória terá de se conformar em função da gravidade da infracção (censurabilidade do facto) e da culpa (censurabilidade do agente), fazendo com que a sua aplicação não seja automática, mas sim gizada por critérios legais de necessidade, adequação e proporcionalidade.
A finalidade da pena acessória
“reside na censura da perigosidade, embora a ela não seja estranha a finalidade de prevenção geral.”
(cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Editorial Notícias, pág.165).
“Trata-se de uma censura adicional pelo facto que ele praticou
(cfr. acta n.º 8 da Comissão de Revisão do Código Penal).”
(cfr. acórdão do TRG de 02.11.2015, relatado por Luís Coimbra, acessível in
www.dgsi.pt
.).
É
“uma função preventiva adjuvante da pena principal, que se dirige, ao menos nalguma medida, à perigosidade do agente, reforçando e diversificando o conteúdo penal sancionatório da condenação”
(cfr. acórdão do TRP de 17.01.2018, relatado por Jorge Langweg, acessível in www.dgsi.pt).
Revertendo ao caso presente, considerando a factualidade provada supra exarada –
designadamente, a natureza dos actos perpetrados pelo arguido, o relacionamento amoroso com a ofendida ter terminado definitivamente após os factos ocorridos em Setembro de 2022, o arguido ter assumido os compromissos familiares, visitando habitualmente aos domingos a descendente de ambos de acordo com a regulação do exercício das responsabilidade parentais, o arguido manter há cerca de 18 meses uma nova relação amorosa, dedicando grande parte dos seus tempos livres à relação com a namorada
– consideramos não se mostrar necessário a aplicação ao arguido de qualquer pena acessória.
Improcede, nesta parte, o recurso.
*
§8.
Por último, perante a condenação do arguido pela prática do crime de violência doméstica importa arbitrar uma quantia a título de reparação dos prejuízos sofridos resultantes da conduta do arguido nos termos do disposto no 82º-A do CP e no artigo 21º, n.º 2 da Lei 112/2009, de 16.09 para além da quantia que já foi fixada pelo Tribunal a quo relativamente à condenação do arguido pelo crime de violação.
Assim, atento o intervalo de tempo em que o crime foi praticado, a natureza dos actos cometidos pelo arguido, o grau intenso da culpa com que o arguido actuou (dolo directo), a natureza dos danos gerados na vítima e a situação económico-financeira do arguido, nos termos dos artigos 483º e 496º nºs 1 e 3, primeira parte, 562º e 566º todos do Código Civil, tem-se por adequado fixar o valor da indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos em € 800,00 (oitocentos euros).
A esta quantia acrescerão juros de mora calculados à taxa legal em vigor, a contabilizar desde a data da notificação da presente decisão e até efectivo e integral pagamento.
****
III -
DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes que compõem a 1ª Secção deste Tribunal da Relação do Porto em
conceder provimento parcial
ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, decidem:
a)
Julgar verificado
o vício decisório do erro notório na apreciação da prova previsto no artigo 410º, nº 2, al. c) do CPP e, nessa conformidade,
modificar
a matéria de facto provada e não provada nos termos sobreditos no ponto II.3.1.§4.4. e §4.5.;
b)
Revogar
o acórdão recorrido na parte em que absolveu o arguido AA do crime de violência doméstica e, em consequência:
-
Condenar
o arguido
AA
como autor material da prática de um
crime de violência doméstica na forma agravada,
p. e p. pelo artigo 152º, n.º 1, al. b) e n.º 2 do CP (vigente à data dos factos),
na pena de 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão;
-
em cúmulo jurídico
das concretas penas aplicadas ao arguido pela prática do crime de violação, p. e p. pelo artigo 164º, n.º 2, a) do C.P. e do crime de violência doméstica na forma agravada, p. e p. pelo artigo 152º n.º 1, al. b) e n.º 2 do CP,
condenar
o arguido
AA
na
pena única de 4 (quatro) anos e 10 (dez) meses de prisão,
suspensa na execução por igual período de tempo
;
-
Condenar
o arguido
AA
a pagar à ofendida BB
a quantia de € 800,00 (oitocentos euros),
a título de compensação pelos danos não patrimoniais sofridos pelo crime de violência doméstica, à qual acrescerão juros à taxa legal em vigor a contar da data da notificação da presente decisão e até efectivo e integral pagamento.
*
Sem custas criminais.
Porto, 09.04.2025
Maria do Rosário Martins
(relatora)
Nuno Pires Salpico
(1º Adjunto)
Paula Natércia Rocha
(2ª Adjunto)
|
TRP
|
https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/127cf6122e39f60680258c7e0066f2ff?OpenDocument
|
1,747,872,000,000
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APELAÇÃO IMPROCEDENTE
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1700/24.5T8VRL-A.G1
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1700/24.5T8VRL-A.G1
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ROSÁLIA CUNHA
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Para efeitos de cálculo da retribuição variável devida ao AJP no âmbito do PER, prevista no art. 23º, nº 4, al. a) e nº 5 do EAJ, a situação líquida corresponde à diferença entre o valor total dos créditos reconhecidos e o valor de tais créditos resultante da execução do plano de recuperação.
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[
"PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO",
"ADMINISTRADOR JUDICIAL",
"REMUNERAÇÃO VARIÁVEL"
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Acordam, em conferência, na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães:
RELATÓRIO
EMP01..., LDA.
instaurou processo de revitalização comunicando a intenção de iniciar negociações com os seus credores conducentes à sua revitalização, mediante aprovação de um plano de recuperação.
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Em 20.9.2024, foi proferido despacho (ref. Citius 39961704) que admitiu liminarmente o processo e nomeou como Administrador Judicial Provisório o Dr. AA.
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Em 28.9.2024, foi apresentada a lista provisória de credores, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, na qual consta que foram reclamados créditos no valor total de € 173 413,70 e foram reconhecidos créditos no valor total de € 301 973,47 (€ 282 860,74 de capital e € 19 112,73 de juros).
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Em 11.12.2024, foi proferido despacho (ref. Citius 40398061) que declarou convertida em definitiva a lista provisória de credores.
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Em 6.1.2025, foi junta aos autos a proposta do plano de recuperação, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, para todos os efeitos legais, na qual consta, designadamente, que, do total de créditos de € 286 616,42, será perdoado o valor de € 174 018,69, recebendo os credores o valor global de € 112 597,72.
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Concluídas as negociações, em 2.2.2025, o Administrador Judicial Provisório apresentou o resultado da votação do plano, no qual considerou que o plano foi aprovado.
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Em 4.2.2025, foi proferida sentença (ref. Citius 40610588) que homologou o plano de revitalização da devedora EMP01..., Lda.
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Em 6.3.2025 foi proferido despacho (ref. Citius 40735762) com o seguinte dispositivo:
“Por conseguinte, fixo a remuneração variável devida ao administrador judicial provisório no valor de €17.401,86 que, com IVA incluído, totaliza € 21 404,28, a liquidar em duas prestações no valor de €10.702,14 cada, acrescidas de IVA, sendo que a primeira prestação venceu-se no momento da aprovação do plano e a segunda vencer-se-á dois anos após a aprovação do plano, caso a devedora continue a cumprir regularmente o plano aprovado, não sendo cumprido o plano aprovado, o valor da segunda prestação é reduzido para um quinto, o que corresponde ao montante de €2.140,42, acrescido de IVA.”
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A devedora não se conformou e interpôs o presente recurso de apelação, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:
“1 – Face a uma situação de tesouraria, gravíssima, no quadro de pagamentos imediatos, a Recorrente constava uma crescente dificuldade para satisfazer os seus pagamentos correntes, e, em consequência disso mesmo, viu obrigada a recorrer ao Processo Especial de Revitalização.
2 – A Recorrente considerou a empresa ser viável, desde que fossem implementadas as medidas necessárias para obter o reequilíbrio das contas, conjugadas com uma moratória a conceder pela generalidade dos credores que permita o reequilíbrio da tesouraria.
3 – Em consequência disso mesmo, apresentou aos credores um plano de recuperação, que veio este a ser aprovado, por uma expressiva maioria de votos favoráveis (69,30%).
4 – Apresentou o AJP, sem que tivesse havido acordo prévio com a Recorrente, a remuneração variável, nos termos do número 4 artigo 23º do EAJ.
5 – Remuneração essa, cujos valores usados para o cálculo, estão errados, contrariando, inclusive, o entendimento do Tribunal da Relação de Guimarães, em acórdão de 25/05/2023, em que foi relator, José Carlos Pereira Duarte, onde se diz que “a “situação líquida” a que se refere a alínea a) do nº4 do artigo 23 do Estatuto do Administrador Judicial, é a diferença entre o montante dos créditos reclamados (cfr. art.º 222º D nº 2 do CIRE) e o montante dos créditos a satisfazer aos credores integrados no plano.”
Ora,
6 - Do exposto impõe-se, salvo melhor opinião, a alteração dos valores usados par cálculo aritmético da remuneração variável do AJP, nomeadamente; (i) o valor dos créditos reclamados de 286,616,42 EUR para 173.413,70 EUR, (ii), o montante de créditos a satisfazer, através da inclusão dos juros a pagar aos credores, passando o montante usado de 112.597,72 EUR para 128.899,42 EUR,
7 – Alteração esta que resultará na correta aferição da (iii) situação líquida para 44.514,28 EUR e consequentemente, a alteração do (iv) valor da remuneração variável do AJP para 4.451,42 EUR (acrescido de IVA).
8 – Alterada que seja, como se espera, os dados de cálculo aritméticos, usados para efeito de aferição da remuneração variável do AJP, nos termos supra expostos, deverá, consequentemente, ser alterada a parte dispositiva do douto despacho, no que toca à fixação do montante devido pela Recorrente ao AJP, a título de remuneração variável, passando assim, esta obrigação, para o valor de 4.451,42 EUR (acrescido de IVA).”
*
Não foram apresentadas contra-alegações.
*
Foi fixado à causa o valor de € 21 404,28 (despacho 23.4.2025, ref. Citius 40929171).
O recurso foi admitido na 1ª instância como de apelação, a subir imediatamente em separado, com efeito devolutivo, não tendo sido objeto de alteração neste Tribunal da Relação.
*
Foram colhidos os vistos legais.
OBJETO DO RECURSO
Nos termos dos artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC, o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações do recorrente, estando vedado ao Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso, sendo que o Tribunal apenas está adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para o conhecimento do objeto do recurso.
Nessa apreciação o Tribunal de recurso não tem que responder ou rebater todos os argumentos invocados, tendo apenas de analisar as “questões” suscitadas que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Por outro lado, o Tribunal não pode conhecer de questões novas, uma vez que os recursos visam reapreciar decisões proferidas e não analisar questões que não foram anteriormente colocadas pelas partes.
Neste enquadramento, a questão a decidir consiste em saber quais os valores a considerar no cálculo da remuneração variável devida ao Administrador Judicial Provisório.
FUNDAMENTAÇÃO
FUNDAMENTOS DE FACTO
Os factos relevantes para a decisão encontram-se descritos no relatório e resultam do iter processual.
FUNDAMENTOS DE DIREITO
A questão a decidir no presente recurso consiste em saber quais os valores a considerar no cálculo da remuneração variável devida ao Administrador Judicial Provisório.
A decisão recorrida fixou a remuneração variável no valor de € 17 401,86, acrescido de IVA, ou seja, no valor total de
€ 21 404,28
.
Para o efeito considerou que os créditos reconhecidos totalizam
€ 286 616,42
e que o valor dos créditos resultantes da execução do plano totaliza
€ 112 597,92
.
Os créditos perdoados totalizam o valor de
€ 174 018,69
, pelo que o valor da remuneração variável é de
€ 17 401,86
, ou seja, 10% de € 174 018,69, a que acresce IVA.
A recorrente diverge deste entendimento e entende que a remuneração variável deve ser fixada em
€ 4 451,42
, acrescidos de IVA.
Para o efeito defende que deve haver
”alteração dos valores usados par cálculo aritmético da remuneração variável do AJP, nomeadamente; (i) o valor dos créditos reclamados de 286,616,42 EUR para
173.413,70 EUR
, (ii), o montante de créditos a satisfazer, através da inclusão dos juros a pagar aos credores, passando o montante usado de 112.597,72 EUR para
128.899,42 EUR
”
( € 112 597,92 de capital + € 16 301,70 de juros) e que, desta alteração resultará
“a correta aferição da (iii) situação líquida para
44.514,28 EUR
e consequentemente, a alteração do (iv) valor da remuneração variável do AJP para
4.451,42 EUR
(acrescido de IVA)”
(sublinhados nossos).
Por conseguinte, a discordância radica nos valores a considerar no cálculo da remuneração variável.
Analisemos, então, como deve ser calculada a remuneração variável do Administrador Judicial Provisório (AJP).
O processo especial de revitalização encontra-se regulado nos arts. 17º-A a 17º-J, do CIRE.
Trata-se de um processo que se destina a permitir à empresa que, comprovadamente, se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja suscetível de recuperação, estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes acordo conducente à sua revitalização (art. 17º-A, nº 1, do CIRE).
Recebido o requerimento inicial de instauração de processo de revitalização, o juiz nomeia de imediato administrador judicial provisório (art. 17º-C, nº 5 do CIRE).
A remuneração do administrador judicial provisório é fixada pelo juiz, na própria decisão de nomeação ou posteriormente, e constitui, juntamente com as despesas em que aquele incorra no exercício das suas funções, um encargo compreendido nas custas do processo, suportado pela empresa, sendo o organismo responsável pela gestão financeira e patrimonial do Ministério da Justiça responsável pelo seu pagamento apenas no caso de a empresa beneficiar de proteção jurídica na modalidade da dispensa do pagamento da taxa de justiça e demais encargos do processo (art. 17º- C, nº 6 do CIRE).
De acordo com o art. 22º do Estatuto do Administrador Judicial (aprovado pela Lei n.º 22/2013, de 26 de fevereiro e ao qual pertencem as normas subsequentemente citadas sem menção de diferente origem), o administrador judicial tem direito a ser remunerado pelo exercício das funções que lhe são cometidas, bem como ao reembolso das despesas necessárias ao cumprimento das mesmas.
Essa remuneração encontra-se prevista no art. 23ºe abrange três tipos de situações:
1) o administrador judicial provisório em processo especial de revitalização;
2) o administrador judicial provisório em processo especial para acordo de pagamento;
3) o administrador da insolvência em processo de insolvência.
Por outro lado, de acordo com o mesmo normativo, a remuneração é integrada:
a) por uma
componente fixa
, no valor de € 2.000,00, paga em duas prestações (arts. 23º, nº 1 e 29º, nº 2);
b) por uma
componente variável
, a qual se decompõe em duas subcomponentes:
i) a remuneração variável em função do resultado da recuperação do devedor ou da liquidação da massa insolvente (art. 23º, n.ºs 4, 5, 6 e 10);
ii) a remuneração variável majorada (art. 23º, nº 7).
No presente recurso apenas está em causa a remuneração variável em função do resultado devida ao AJP, pelo que só esta componente remuneratória será analisada de forma detalhada e apenas no âmbito do processo de revitalização.
De acordo com o art. 23º, nº 4, al. a), o valor da remuneração variável dos administradores judiciais em função do resultado da recuperação do devedor insolvente é calculado em 10 /prct. da situação líquida, calculada 30 dias após a homologação do plano de recuperação do devedor, nos termos do n.º 5.
Para os efeitos deste cálculo, e de acordo com o nº 5 do art. 23º, em processo especial de revitalização, em processo especial para acordo de pagamento ou em processo de insolvência em que seja aprovado um plano de recuperação,
considera-se resultado da recuperação o valor determinado com base no montante dos créditos a satisfazer aos credores integrados no plano
.
Por conseguinte, da conjugação destes normativos, resulta que o cálculo da remuneração variável se baseia em dois conceitos: o “resultado da recuperação” e a “situação líquida”.
O resultado da recuperação é legalmente definido como o valor determinado com base no montante dos créditos a satisfazer aos credores integrados no plano.
Já a situação líquida não se encontra legalmente definida, mas está subordinada ou dependente do resultado da recuperação e a sua densificação conceptual tem de ser feita numa dupla vertente: por via interpretativa do art. 23º e em conformidade, quer com a finalidade do processo de revitalização, quer com o fundamento de atribuição da remuneração variável ao AJP.
Quanto à vertente interpretativa importa ter presente que, de acordo com os critérios constantes do artigo 9º do Código Civil, a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas deverá reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
Todavia, não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
Quanto à finalidade do processo de revitalização, e como acima se assinalou, o mesmo destina-se a permitir à empresa que, comprovadamente, se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja suscetível de recuperação, estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes acordo conducente à sua revitalização. Portanto, o escopo do processo consiste em evitar ou prevenir que sobrevenha a insolvência do devedor e permitir a sua recuperação, possibilitando que prossiga a sua atividade, no pressuposto da sua viabilidade económica e financeira, apenas alcançável por via do plano de revitalização.
Essa recuperação implicará restrições dos direitos dos credores por via das quais o devedor obterá o necessário desafogo económico e financeiro que lhe permitirá alcançar a sua recuperação.
Este objetivo é tanto mais fácil de atingir quanto maior for a diminuição do passivo conseguida no plano de revitalização, sendo esse o critério a ter subjacente na interpretação da al. a) do nº 4 e do nº 5 do artigo 23º.
No que concerne ao fundamento de atribuição de remuneração variável, o mesmo radica no propósito de incentivar o empenho do administrador nas negociações e na concretização do plano, pretendendo compensá-lo na proporção da recuperação, e esta recuperação é tanto maior quanto maior for a diminuição do passivo do devedor, nomeadamente por via do perdão de créditos.
Assim, conclui-se que a situação líquida corresponde
à diferença entre o valor total dos créditos reconhecidos
, incluindo os que não foram reclamados,
e o valor de tais créditos resultante da execução do plano de recuperação.
Este entendimento foi perfilhado nos Acórdãos deste Tribunal da Relação de Guimarães, de 17.11.2022 (3529/21.3T8GMR.G1 in
www.dgsi.pt)
, relatado pelo aqui 1º adjunto, em cujo sumário consta que “
[a] situação líquida do devedor terá por medida a diferença entre o valor total dos créditos reconhecidos e o valor de tais créditos resultantes da execução do plano de recuperação, sem que a referência à situação líquida se reporte a qualquer conceito contabilístico ou se procure através dele refletir a diferença entre o ativo e o passivo
” e de 25.5.2023 (P 601/22.6T8VRL-A.G1 in
www.dgsi.pt)
, onde se afirma que “
resulta da leitura conjugada pelos nºs 4 e 5, do artigo 23º do Estatuto do Administrador Judicial, levando em consideração a unidade do sistema jurídico, que o valor correspondente a 10% da situação líquida do devedor, terá por medida precisamente a diferença entre o valor total dos créditos reconhecidos e o valor de tais créditos resultante da execução do plano de recuperação
”.
O mesmo entendimento foi igualmente sufragado nos acórdãos da Relação de Lisboa, de 28.11.2023 (P 73/23.8T8FNC-B.L1-1 in
www.dgsi.pt)
, em cujo sumário se refere que
“[a] remuneração variável corresponderá a 10% do resultado da recuperação, entendendo-se este como sendo a diferença entre o valor total dos créditos reconhecidos e aquele que resulta da execução do plano de pagamento aprovado (diferença essa que equivale ao montante dos créditos perdoados)”
e de 24.1.2023 (P 26107/20.0T8LSB.L1-1) referindo-se no sumário que
“[p]ara efeitos do cálculo da remuneração variável do administrador judicial provisório, nos termos do artigo 23º, nº 4, alínea a) do Estatuto do Administrador Judicial, o montante do valor da recuperação é o valor do perdão dos créditos.”
No caso em apreço, a decisão recorrida teve por base o valor de € 286 616,42 relativo aos créditos reconhecidos.
A recorrente entende que esse valor não deve ser considerado, mas antes o dos créditos reclamados, que se cifra em € 174 018,69.
Cremos que não lhe assiste razão, pois, abrangendo a lista de créditos e o plano de recuperação outros créditos para além dos que foram reclamados, o valor a ter em conta tem de ser o dos créditos reconhecidos, pois são estes que irão ser considerados no processo visto que, apesar de não terem sido objeto de reclamação, o plano homologado prevê o valor do seu perdão e o modo de pagamento do valor subsistente.
Assim, o valor a utilizar no cálculo é o de
€ 286 616,42
, conforme consta da decisão recorrida.
De acordo com o plano aprovado e homologado, do conjunto de créditos reconhecidos será pago o valor global de € 112 597,72.
No mesmo não consta o valor do pagamento de juros de € 16 301,70, como alega a recorrente.
Embora no plano haja menção a juros vincendos relativamente a créditos garantidos, os mesmos não se encontram quantificados e nem o podem ser atualmente porquanto o plano prevê que o pagamento desses créditos é feito em 60 prestações mensais, com juros vincendos calculados à taxa Euribor a 12 meses + 3,5% de spread, vencendo-se a primeira 30 dias após ao trânsito em julgado da sentença de homologação do plano de recuperação. Desconhecendo-se qual será a taxa Euribor no período de 60 meses, não se pode quantificar o valor devido a título de juros vincendos.
Por conseguinte, apenas se poderá ter em consideração o valor global de
€ 112 597,72
que será satisfeito aos credores integrados no plano, tal como consta da decisão recorrida.
Subtraindo ao valor global dos créditos reconhecidos (€ 286 616,42) o valor a satisfazer aos credores no âmbito do plano (€ 112 597,72), obtém-se o valor de
€ 174 018,69
(€ 286 616,42 - € 112 597,72 = € 174 018,69), correspondente ao valor que foi objeto de perdão. É este valor que integra a situação líquida, pois é ele que constitui a medida da recuperação do devedor, e, por conseguinte, a remuneração variável corresponde a 10% do mesmo, ou seja, a
€ 17 401,86
, (€ 174 018,69 x 10%), a que acresce IVA.
Por conseguinte, não existe qualquer reparo a fazer à decisão recorrida, a qual fixou corretamente a remuneração variável devida ao AJP, de acordo com os critérios legais e com os valores constantes dos autos.
Nestes termos, improcede o recurso.
*
Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º, do CPC, a decisão que julgue o recurso condena em custas a parte que a elas houver dado causa, entendendo-se que lhes deu causa a parte vencida, na respetiva proporção, ou, não havendo vencimento, quem do processo tirou proveito.
Tendo o recurso sido julgado improcedente, é a recorrente responsável pelo pagamento das custas, em conformidade com a disposição legal citada.
DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando a decisão recorrida.
Custas da apelação pela recorrente.
Notifique.
*
Guimarães, 22 de maio de 2025
(Relatora) Rosália Cunha
(1º/ª Adjunto/a) Fernando Manuel Barroso Cabanelas
(2º/ª Adjunto/a) Maria Gorete Morais
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TRG
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https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/18adf525424640e580258c9a003cf4c1?OpenDocument
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1,743,120,000,000
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CONFIRMADA
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1002/24.7T8CTB.C1
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1002/24.7T8CTB.C1
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PAULA MARIA ROBERTO
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I – Nem todas as situações de inatividade de trabalhadores constituem uma violação do dever de ocupação efetiva, só assim sendo quando não forem justificadas e constituam violação do princípio da boa-fé ou integrem uma situação de abuso de direito, devendo, pois, distinguir-se os casos em que a situação de inocupação visa causar prejuízos ao trabalhador ou pressioná-lo em termos inaceitáveis, daqueles em que se justifica por resultar de um facto não imputável ao empregador, meramente esporádico e/ou inultrapassável.
II – No caso, a entidade empregadora (uma associação humanitária de bombeiros voluntários) tinha fundamento para obstar à prestação de funções por parte dos bombeiros voluntários em causa, dado que estes trabalhadores, ao transitarem para o quadro de reserva, deixaram de poder executar missões de socorro/serviços operacionais, apesar do vínculo laboral – só poderiam exercer funções e cumprir missões de proteção e socorro, se fossem bombeiros voluntários do quadro ativo.
|
[
"CONTRAORDENAÇÃO MUITO GRAVE",
"ASSOCIAÇÃO HUMANITÁRIA DE BOMBEIROS",
"BOMBEIRO VOLUNTÁRIO",
"DEVER DE OCUPAÇÃO EFETIVA",
"IMPEDIMENTO INJUSTIFICADO À PRESTAÇÃO DE TRABALHO",
"QUADRO ATIVO",
"PASSAGEM AO QUADRO DE RESERVA"
] |
Acordam
[1]
na Secção Social (6ª secção) do Tribunal da Relação de Coimbra:
I –
Relatório
A arguida
Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários ...,
com sede em Lisboa,
veio impugnar a decisão administrativa que lhe aplicou uma coima de € 8.260,00 pela prática de uma contraordenação muito grave p. e p. pelo artigo 129.º, n.º 1, b) e n.º 2, do CT.
*
Recebido o recurso, procedeu-se a audiência de julgamento.
*
De seguida, foi proferida a
sentença
de fls. 237 e segs. que julgou “
procedente o recurso de impugnação judicial apresentado pela arguida “Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários ...”, revogando, assim, a decisão recorrida
.”
*
O
Ministério Público
, notificado desta sentença, veio
interpor o presente recurso
que concluiu da forma seguinte:
(…).
*
A
arguida
veio apresentar
resposta
concluindo nos seguintes termos:
(…).
*
O Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu o douto
parecer
de fls. 279 e segs., concluindo no sentido de que “
os factos não integram a contraordenação imputada à arguida
”.
*
Colhidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.
*
II – Saneamento
A instância mantém inteira regularidade por nada ter entretanto sobrevindo que a invalidasse.
*
III – Questões a decidir
O
Ministério Público
recorrente suscita a seguinte
questão
:
–
Se a arguida se encontra incursa na prática da contraordenação que lhe foi imputada
.
*
*
IV – Fundamentação
a)
Matéria de facto provada e não provada constante da sentença recorrida
:
1. A Inspetora autuante verificou de forma pessoal e direta no dia 18/01/2024, pelas 14h30, que os trabalhadores AA, BB, CC e DD, por ordem da arguida, se encontravam impedidos de prestar qualquer atividade, o que já vinha a ocorrer, pelo menos, desde o dia 14/01/2024.
2. À referida data os bombeiros AA, BB, CC e DD estavam no Quadro de Reserva.
Factos não provados:
1. A arguida não apresentou qualquer justificação idónea para a situação de inocupação verificada.
2. A arguida tinha conhecimento de que a sua conduta era proibida e punida por lei.
*
*
b) - Discussão
- Se a arguida se encontra incursa na prática da contraordenação que lhe foi imputada
.
Alega o recorrente que:
- A atividade de transporte de doentes não urgentes não pode ser, como foi, considerada atividade operacional e consequentemente não podiam, os bombeiros referenciados, ter sido ser impedidos de exercer a mesma, como foram;
- A arguida agiu de má fé, ao não atribuir, aos bombeiros ocupação efetiva nomeadamente ao vedar a estes o exercício de condução de veículos de transporte de doentes não urgentes.
Por outro lado, a este propósito consta da decisão recorrida o seguinte:
“
No caso, sustenta a autoridade administrativa que a Associação arguida obstou injustificadamente, à prestação efetiva de trabalho dos trabalhadores AA, BB, CC e DD (o que nos termos do artigo 129º, n.º1, al. b) e nº 2 do Código de Trabalho, aprovado pela Lei 7/2009, de 12 de Fevereiro, consubstancia a prática de uma contraordenação muito grave).
Com efeito, nos termos do artigo 129.º, n.º 1, alínea b), do Código do Trabalho, «é proibido ao empregador obstar injustificadamente à prestação efetiva de trabalho», sendo que a violação desta norma implica a prática de uma contraordenação muito grave – n.º 2.
O dever resultante daquele normativo, a que se tem chamado dever de ocupação efetiva, está relacionado com o artigo 127.º, n.º 1, alínea c), do mesmo diploma, na medida em que deste resulta que o empregador deve proporcionar boas condições de trabalho ao trabalhador, do ponto de vista físico e moral, sendo certo que tal dever tem subjacente o princípio da igualdade dos trabalhadores da mesma empresa, a tutela da profissionalidade e a valorização e realização profissional e pessoal do trabalhador através da prestação de trabalho, impondo-o também o princípio geral da boa-fé que deverá presidir à execução contratual conforme previsto no n.º 1 do artigo 126º do Código de Trabalho.
Neste sentido, aponta também o disposto no nº 2 do mesmo artigo e nos termos do qual na execução do contrato de trabalho, devem as partes colaborar na obtenção da maior produtividade, bem como na promoção humana, profissional e social do trabalhador, sendo que no cumprimento daquele dever, cabe ao empregador ocupar efetivamente os seus trabalhadores, atribuindo-lhes as funções para as quais foram contratados, dando-lhes a oportunidade de exercer efetivamente o seu trabalho de forma produtiva e proporcionar-lhes boas condições de trabalho do ponto de vista físico e moral.
Naturalmente, nem todas as situações de inatividade de trabalhadores constituem uma violação do dever de ocupação efetiva pois só assim será quando não forem justificadas e constituam uma violação do aludido princípio da boa-fé ou integrem uma situação de abuso de direito, tendo assim que se distinguir os casos em que a situação de inocupação visa causar prejuízos ao trabalhador ou pressioná-lo em termos inaceitáveis, daqueles em que se justifica por resultar de um facto não imputável ao empregador, meramente esporádico e/ou inultrapassável.
No fundo e posto que aqui jogam também, como possível justificação, razões de ordem económico-empresarial, o problema do dever de ocupação efetiva do trabalhador tem sempre de ser encarado do ponto de vista da boa-fé. Ou, dito de outro modo, “o dever de ocupação efetiva deriva do princípio geral da boa-fé na execução do contrato, existindo violação deste dever quando o empregador atue de má-fé” – Cfr., neste sentido, Pedro Romano Martinez, Direito do Trabalho, 7.ª Edição, 2015, Almedina, Coimbra, página 524.
Sucede que no caso, a arguida recorrente sustenta que não permitiu que os identificados bombeiros no dia dos fatos prestassem funções, uma vez que os mesmo tinham passado ao quadro de reserva e por essa razão não podiam desempenhar qualquer serviço operacional.
Impõe-se assim apurar se a arguida recorrente obstou efetivamente de forma injustificada a que os aludidos trabalhadores prestassem funções, ou se tinha uma justificação válida para o fazer
.
Ora, adiantando desde já conclusões, entende-se que a entidade empregadora tinha efetivamente fundamento para obstar à prestação de funções por parte dos referidos bombeiros, concordando-se com a associação arguida quando sustenta que o trabalhadores ao transitarem para o Quadro de Reserva deixaram de poder executar missões de socorro/ serviços operacionais, apesar do vínculo laboral à Associação Humanitária de Bombeiros ..., porque, na qualidade de Bombeiros Voluntários e assalariados da ré, os seus trabalhadores só poderão exercer funções e cumprir missões de proteção e socorro, se forem também Bombeiros Voluntários do Quadro Ativo.
(…)
Senão vejamos:
De acordo com o Decreto-Lei 247/2007, de 27 de junho, que define o regime jurídico aplicável à constituição, organização, funcionamento e extinção dos corpos de bombeiros, no território continental, bombeiro é o indivíduo que, integrado de forma profissional ou voluntária num corpo de bombeiros, tem por atividade cumprir as missões do corpo de bombeiros, nomeadamente a proteção de vidas humanas e bens em perigo, mediante a prevenção e extinção de incêndios, o socorro de feridos, doentes ou náufragos e a prestação de outros serviços previstos nos regulamentos internos e demais legislação aplicável, sendo o corpo de bombeiros a unidade operacional, oficialmente homologada e tecnicamente organizada, preparada e equipada para o cabal exercício das missões atribuídas pelo presente decreto-lei e demais legislação aplicável – Cfr. artigo 2º, als. b) e c) do referido diploma.
Ora, nos termos do artigo 3º do mesmo Decreto-Lei 247/2007, de 27 de junho, constitui missão dos corpos de bombeiros:
“a) A prevenção e o combate a incêndios;
b) O socorro às populações, em caso de incêndios, inundações, desabamentos e, de um modo geral, em todos os acidentes;
c) O socorro a náufragos e buscas subaquáticas;
d) O socorro e transporte de acidentados e doentes, incluindo a urgência pré-hospitalar, no âmbito do sistema integrado de emergência médica;
e) A emissão, nos termos da lei, de pareceres técnicos em matéria de prevenção e segurança contra riscos de incêndio e outros sinistros;
f) A participação em outras atividades de proteção civil, no âmbito do exercício das funções específicas que lhes forem cometidas;
g) O exercício de atividades de formação e sensibilização, com especial incidência para a prevenção do risco de incêndio e acidentes junto das populações;
h) A participação em outras ações e o exercício de outras atividades, para as quais estejam tecnicamente preparados e se enquadrem nos seus fins específicos e nos fins das respetivas entidades detentoras;
i) A prestação de outros serviços previstos nos regulamentos internos e demais legislação aplicável.”
Já o artigo 7º, sob a epígrafe “Espécies de corpos de bombeiros” dispõe que:
“1 - Nos municípios podem existir os seguintes corpos de bombeiros:
a) Corpos de bombeiros profissionais;
b) Corpos de bombeiros mistos;
c) Corpos de bombeiros voluntários;
d) Corpos privativos de bombeiros.
(…)
3 - Os corpos de bombeiros mistos têm as características seguintes:
a) São dependentes de uma câmara municipal ou de uma associação humanitária de bombeiros;
b) São constituídos por bombeiros profissionais e por bombeiros voluntários, sujeitos aos respetivos regimes jurídicos;
c) Estão organizados, de acordo com o modelo próprio, definido pela respetiva câmara municipal ou pela associação humanitária de bombeiros, nos termos de regulamento aprovado pela ANPC, ouvido o Conselho Nacional de Bombeiros.”
Mais dispõe o artigo 9º, sob a epígrafe Quadros de pessoal que:
“1 - Os quadros dos corpos de bombeiros profissionais e mistos detidos pelos municípios, bem como dos corpos privativos de bombeiros, estruturam-se de acordo com o regime a definir em diploma próprio.
2 - Os bombeiros que compõem os corpos de bombeiros voluntários ou mistos detidos por associações humanitárias de bombeiros, integram os seguintes quadros de pessoal:
a) Quadro de comando;
b) Quadro ativo;
c) Quadro de reserva;
d) Quadro de honra.
3 - O quadro de comando é constituído pelos elementos do corpo de bombeiros a quem é conferida a autoridade para organizar, comandar e coordenar as atividades exercidas pelo respetivo corpo, incluindo, a nível operacional, a definição estratégica dos objetivos e das missões a desempenhar.
4 -
O quadro ativo é constituído pelos elementos pertencentes às respetivas carreiras e aptos para a execução das missões a que se refere o artigo 3.º
, normalmente integrados em equipas, em cumprimento das ordens que lhes são determinadas pela hierarquia, bem como das normas e procedimentos estabelecidos.
5 - O quadro de reserva é constituído pelos elementos que atinjam o limite de idade para permanecer na sua categoria ou que, não podendo permanecer no quadro ativo por motivos profissionais ou pessoais, o requeiram e obtenham aprovação do comandante do corpo de bombeiros, e ainda pelos elementos, que nos últimos 12 meses, não tenham cumprido o serviço operacional previsto no artigo 17.º
6 - O quadro de honra é constituído pelos elementos com 40 ou mais anos de idade que, com zelo, dedicação, disponibilidade e abnegação, exerceram funções ou prestaram serviço efetivo durante 15 ou mais anos, sem qualquer punição disciplinar, nos últimos três anos, nos quadros de comando ou ativo de um corpo de bombeiros, e ainda aqueles que, independentemente da idade e do tempo de serviço prestado, adquiriram incapacidade por doença ou acidente ocorrido em serviço ou tenham prestado serviços de caráter relevante à causa dos bombeiros.”
Por sua vez, com pertinência para o caso de que nos ocupamos, dispõe o artigo 17º, com referência ao serviço operacional, o seguinte:
“1 - A atividade operacional desenvolvida pelo pessoal dos corpos de bombeiros tem natureza interna ou externa.
2 - A atividade interna é prestada no perímetro interior das instalações do corpo de bombeiros, de acordo com os regulamentos.
3 - A atividade externa é prestada fora das instalações, no cumprimento das missões previstas no artigo 3.º do presente decreto-lei.
4 - Na sua área de atuação, cada corpo de bombeiros assegura a atividade operacional em todos os serviços para os quais for solicitado e seja considerado apto ou, fora dela, em todos aqueles que, nos termos legais, lhe forem requisitados.
5 - Nos municípios em que se justifique, os corpos de bombeiros voluntários ou mistos detidos pelas associações humanitárias de bombeiros podem dispor de equipas de intervenção permanente, cuja composição e funcionamento é definida por portaria do membro do Governo responsável pela área da proteção civil.
6 - Os municípios em cuja área territorial atuem as equipas de intervenção permanente podem apoiar o funcionamento das mesmas, designadamente comparticipando nos custos com seguros de acidentes de trabalho dos elementos que integram as equipas de intervenção permanente e nos custos com a aquisição de equipamentos a elas afetos.
7 - O serviço operacional dos bombeiros voluntários, designadamente no que concerne ao número de horas de atividade, tipologia de serviço a prestar e obrigações no âmbito da formação que devem ser cumpridas para obtenção dos direitos, benefícios e regalias previstos no regime jurídico dos bombeiros portugueses, é aprovado por portaria do membro do Governo responsável pela área da proteção civil, ouvido o Conselho Nacional de Bombeiros.”
Sendo que, nos termos do artigo 14º integram o quadro de reserva “(…) d) os elementos do quadro ativo que não tenham cumprido, durante o ano anterior, o serviço operacional previsto no artigo 17.º do presente decreto-lei”.
Ora, quanto ao serviço operacional das várias carreiras de bombeiro voluntário do quadro ativo, aludido no n-º6 do artigo 17º, rege a Portaria n.º 32-A/2014, de 7 de fevereiro, que logo no seu artigo 2º estabelece que:
“1 - O serviço operacional consiste na execução das atividades decorrentes da missão do corpo de bombeiros, nos termos especificamente definidos para cada carreira na presente portaria.
2 - A permanência dos bombeiros no quadro ativo, bem como o gozo dos direitos, benefícios e regalias previstos no respetivo regime jurídico, dependem do cumprimento do tempo mínimo obrigatório de serviço operacional previsto na presente portaria.”
Mais estabelecem os artigos 3º e 4º da referida portaria que o oficial bombeiro está obrigado a cumprir um mínimo de 200 horas de serviço operacional por ano, das quais, no mínimo, 160 horas correspondem às atividades de socorro, piquete, simulacro e exercício e, no mínimo, 40 horas correspondem à atividade de instrução, devendo o oficial bombeiro ministrar e receber instrução.
Por fim, releva ainda para o nosso caso o teor do artigo 12º da Portaria n.º 32-A/2014, de 7 de fevereiro, nos termos do qual:
1 – Os elementos do quadro ativo que não tenham, durante o ciclo anterior, efetuado o tempo mínimo de serviço operacional previsto no presente diploma transitam para o quadro de reserva, nos termos do disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 247/2007, de 27 de junho, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 248/2013, de 21 de novembro.
2 – Os elementos que transitarem para o quadro de reserva por incumprimento o serviço operacional perdem os direitos, benefícios e regalias para os elementos do quadro ativo, estabelecidos no Regime Jurídico dos Bombeiros Portugueses.”
Aqui chegados, e face a este quadro legal, conclui-se, pois, como já anunciado, que os trabalhadores da arguida com a categoria de bombeiros só poderão exercer funções e cumprir missões de proteção e socorro, se estiverem no Quadro Ativo, tudo o que deflui das normas supra citadas.
Não se desconhece a jurisprudência (designadamente os acórdão do Tribunal da Relação do Porto datados de 15.07.2009 e 11.10.2018, ambos disponíveis em
www.dgsi.pt
), no sentido de que a lei não impõe que “a perda da qualidade de bombeiro possa implicar a impossibilidade de prestar trabalhos nas Associações Humanitárias respectivas ou de estas receberem o trabalho”, mas a verdade é que os casos aí retratados não respeitam a trabalhadores com a categoria profissional de bombeiro, reportando-se o acórdão do Tribunal da Relação do Porto datado de 15.07.2009 a um telefonista e o acórdão do Tribunal da Relação do Porto datado de 11.10.2018 a um maqueiro, ainda com a particularidade de que na Associação de Bombeiros empregadora, conforme resulta dos respetivos fatos provados “por Ordem de serviço nº 2/2016 de 23 de maio, o Comandante dos Bombeiros Voluntários C... autorizou que o pessoal no Quadro de Reserva prestasse todo o tipo de serviço interno e o serviço externo não considerado operacional, caso do transporte de doentes, transporte de doentes entre unidades de saúde, abastecimento de água a entidades privadas e aberturas de portas sem socorro” – exceção que no caso dos autos se não verifica.
O que no caso dos autos resulta provado é que os trabalhadores em causa tinham a categoria profissional de bombeiros e, nos termos da legislação aplicável, só poderão exercer as funções para as quais foram contratados se pertencerem ao quadro ativo dos Bombeiros Voluntários, nos termos já explanados, sendo este um daqueles casos em que relações externas à relação jus-laboral impeditivas do trabalhador realizar a sua prestação se refletem naquela – o que nem sequer configura uma questão nova, já que a mesma se tem evidenciado em vários outros contextos, como por exemplo, nos casos da inibição de conduzir veículos automóveis aplicada ao trabalhador motorista ou na prisão preventiva do trabalhador em geral.
E por isso se reitera que os trabalhadores em causa só poderão exercer funções e cumprir missões de proteção e socorro se estiverem no Quadro Ativo, pelo que tendo passado ao quadro de reserva se colocaram voluntariamente em posição de não poderem cumprir com as funções para as quais foram contratados.
Entende-se assim que esta é uma daquelas situações de inatividade de trabalhadores em que não há uma violação do dever de ocupação efetiva, pois que a mesma se encontra justificada, não constituindo por isso uma violação do aludido princípio da boa-fé ou uma situação de abuso de direito, antes resultando de um facto não imputável ao empregador, já que foram os trabalhadores que se colocaram numa situação que os levou a transitarem para o quadro de reserva, ficando por isso impedidos de exercer qualquer atividade operacional.
Donde, se conclui, sem necessidade de outras considerações, que a arguida não incorreu na prática da contraordenação a que se vem referindo, devendo da mesma ser absolvida, revogando-se assim a decisão administrativa – o que se decidirá – tornando-se inútil o conhecimento das demais questões colocadas, designadamente, da responsabilidade solidária dos legais representantes da arguida
.
”
– fim de transcrição.
Apreciando
a pretensão do recorrente:
Acompanhamos a decisão recorrida, pouco mais se impondo dizer.
Na verdade, conforme resulta do artigo 129.º, n.º 1, b), do CT, é proibido ao empregador obstar injustificadamente à prestação efetiva do trabalho.
Resulta da matéria de facto provada que os bombeiros em causa estavam no quadro de reserva.
Por outro lado, certo é que o artigo 5.º da Portaria n.º 32-A/2024, de 07/02 (serviço operacional do bombeiro voluntário) não inclui o transporte de doentes não urgentes no serviço operacional da atividade de socorro, no entanto, do seu artigo 2.º resulta que “
o serviço operacional consiste na execução das atividades decorrentes da missão do corpo de bombeiros, nos termos especificamente definidos para cada carreira na presente portaria
.”
Acresce que, por força do disposto no artigo 3.º, d), do DL 247/2007, de 27/06, dúvidas não existem que o transporte de doentes constitui uma missão dos corpos de bombeiros e, por isso, tem de ser executada por bombeiros que integrem o quadro ativo, sendo certo que aos elementos que integram o quadro de reserva está vedado o exercício de qualquer atividade operacional/missão (n.º 10 do artigo 14.º do DL n.º 247/2007, de 27/06).
Na verdade, como se refere no n.º 3 do artigo 17.º deste DL, sob a epígrafe “serviço operacional”, “
a atividade externa é prestada fora das instalações, no cumprimento das missões previstas no artigo 3.º do presente decreto-lei
.”
Assim sendo, tendo em conta tudo o que ficou dito, impõe-se concluir que não se encontram preenchidos os elementos objetivo e subjetivo do tipo legal de contraordenação imputado à arguida, desde logo, porque a mesma obstou justificadamente à prestação efetiva do trabalho e, consequentemente,
a arguida não se encontra incursa na prática de tal infração, tal como consta da sentença recorrida
.
Improcedem, assim, as conclusões do recorrente.
*
Na improcedência do recurso, impõe-se a manutenção da sentença recorrida.
*
*
V – DECISÃO
Nestes termos, sem outras considerações,
acorda-se, em conferência, na improcedência do recurso, em manter a sentença recorrida
.
*
*
Sem custas por delas estar isento o recorrente.
* Coimbra, 2025/03/28
______________________
(Paula Maria Roberto)
______________________
(Mário Rodrigues da Silva)
______________________
(Jorge Loureiro)
[1]
Relatora – Paula Maria Roberto
Adjuntos – Mário Rodrigues da Silva
- Jorge Loureiro
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TRC
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https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/ba7337f6d38c1d7980258c680031d8ed?OpenDocument
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1,736,726,400,000
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CONFIRMAÇÃO
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1805/15.3T8AVR.P2
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1805/15.3T8AVR.P2
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NUNO MARCELO DE NÓBREGA DOS SANTOS DE FREITAS ARAÚJO
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I - Observados os requisitos da impugnação da matéria de facto previstos no art. 640.º do CPC, a Relação passa a ter autonomia decisória, competindo-lhe formar a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes e demais que julgue pertinentes, sem prejuízo da observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia.
II - No entanto, em caso de ausência de elementos probatórios que conduzam com segurança a uma convicção diversa na sequência de tal reapreciação, deverá prevalecer a decisão proferida em 1.ª instância, em observância dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nessa parte.
III - O art. 570.º/2 do Código Civil tem o seu campo de intervenção no caso de culpa do lesado na produção dos danos, e não apenas no seu agravamento, pois não faria sentido excluir na totalidade o dever de indemnizar quando o lesado fosse alheio à produção dos danos e apenas tivesse contribuído para o seu aumento.
IV - Não configura culpa do lesado susceptível sequer de justificar a atenuação da indemnização, ao abrigo do art. 570.º do CC, a exigência de uma máquina nova na sequência de um acidente que, mercê da deterioração parcial daquela, impede o seu funcionamento adequado para o fim a que se destinava, sem que o lesante tenha manifestado ao credor a pretensão de o indemnizar por forma legalmente consentida e que este, injustificadamente, tenha rejeitado.
V - Constitui ainda modalidade admissível da reparação natural, no âmbito do dever de indemnizar, nos termos do art. 562.º do Código Civil, a condenação do lesante à antecipação ou ao reembolso das despesas com a aquisição de um bem idêntico ao danificado.
VI - Enquanto na responsabilidade contratual a constituição do devedor em mora depende em regra da liquidez do crédito, na indemnização por reconstituição natural em conformidade com a factualidade existente à data do facto danoso, em caso de responsabilidade por factos ilícitos e pelo risco, mesmo em concurso com a primeira, o devedor fica constituído em mora na data da citação, salvo se o crédito se tornar líquido em data anterior.
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[
"REAPRECIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO",
"DEVER DE INDEMNIZAR",
"CULPA DO LESADO",
"REPARAÇÃO NATURAL",
"CONSTITUIÇÃO EM MORA"
] |
Acção Comum nº1805/15.3T8AVR.P2
ACORDAM OS JUÍZES QUE INTEGRAM O
TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO
(3.ª SECÇÃO CÍVEL):
Relator: Nuno Marcelo Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo
1.º Adjunto: Ana Paula Amorim
2.º Adjunto: Teresa Pinto da Silva
RELATÓRIO.
A..., S.A., contribuinte nº ...88, com sede na Rua ..., ..., instaurou a presente acção declarativa de condenação, com forma de processo comum, contra B..., Lda., NIF ...05..., com sede no Lugar ..., ... e C..., Unipessoal, Lda., contribuinte nº...42, com sede na Urbanização ..., Avenida ..., ....
Pediu a condenação da 1.ª ré a pagar à autora uma indemnização sob a forma de reconstituição natural através da entrega à A., em prazo não superior a 30 dias, de uma máquina de injecção nova, e paga, da marca Negri Bossi, modelo Canbio V800/8000 H – 6700 FUSO 90mm, com os componentes alegados no artigo 4º deste articulado, ou a pagar à A. uma indemnização de valor igual ao preço desta máquina, num mínimo de 300.000€, acrescidos dos respectivos impostos e dos juros de mora vencidos desde a data da citação.
Em caso de improcedência do pedido anterior, a condenação daquela ré a pagar à autora o valor correspondente à reparação da máquina acidentada, referida no artigo 4º deste articulado, e demais custos envolvidos, que se calculam num mínimo de 197.144,40€, e uma indemnização no valor mínimo de 70.000€, a titulo de ressarcimento pela desvalorização comercial da referida máquina acidentada máquina, com o acréscimo dos referidos juros de mora.
E a entender-se que a 2.ª ré também é responsável pelos danos emergentes do acidente descrito neste articulado, a condenação solidária de ambas as rés nos pagamentos acima indicados.
Para tanto e em síntese, alegou que no âmbito da sua actividade industrial de fabricação de moldes de aço para injecçção de termoplásticos comprou em, Maio de 2014, à fornecedora italiana, uma máquina de injecção, pelo preço de € 300.000,00, e que para descarregar a máquina do camião e colocá-la no interior do seu pavilhão fabril, contratou os serviços da 1ª ré.
Neste enquadramento, no dia 22 de Maio de 2014, depois de a 1.ª ré iniciar a execução dos seus serviços, colocando os cabos à volta da máquina para proceder à sua elevação e retirada do camião, sucedeu que quando a máquina estava já erguida, a cerca de 2 metros de altura, o cabo da grua partiu-se, levando à queda da máquina ao chão, nela provocando graves e avultados danos.
Na sua contestação e em suma, a 1.ª ré afirmou que, nas condições gerais do contrato outorgado com a autora, consta que a ré não se responsabiliza por eventuais danos causados nos objectos manuseados, o que foi explicado à autora e tem validade, por não ter intervindo dolo ou culpa grave da sua parte.
Para além disso, impugnou parte da factualidade invocada na petição inicial, defendeu que o acidente ocorreu por defeitos no fabrico do aço usado no serviço, não perceptíveis externamente, cuja responsabilidade cabe apenas à 2.ª ré, como produtora e fornecedora do cabo, pelo que, não agiu com culpa, e suscitou a intervenção principal de Companhia de Seguros D... S. A., com quem celebrou um contrato de seguro de responsabilidade civil para a sua actividade.
Também a 2.ª ré deduziu contestação, na qual, resumidamente, impugnou parte dos factos alegados pela contraparte, afirmou que não manteve qualquer relacionamento comercial com a autora, que forneceu à 1ª ré o cabo identificado, que tinha certificado de inspecção e não padecia de qualquer defeito, sendo totalmente alheia ao uso que a 1ª ré lhe tenha dado e que, após o acidente, procedeu à análise do cabo em causa, da qual resultou que o cabo não era o adequado para a carga a que foi submetido porque a tonelagem da máquina levantada excedia em muito a capacidade máxima de carga suportada pelo cabo.
Deduziu igualmente incidente de intervenção da Companhia de Seguros D... S. A., com quem havia celebrado contrato de seguro de transferência da responsabilidade civil.
Os incidentes foram admitidos, ambos como intervenção principal provocada, e, devidamente citada, a Companhia de Seguros D... SA ofereceu contestação, explicando os termos dos contratos que celebrou e as exclusões de cobertura da responsabilidade civil e impugnando matéria da petição inicial.
Observado o contraditório sobre as excepções, a autora declarou que as condições gerais do contrato celebrado com a 1.ª ré não foram objeto de qualquer negociação entre as partes, nem foram explicadas, e como aquele clausulado se destinava a contratos de aluguer, quando celebrara um contrato de prestação de serviços, pensou que o envio destas folhas se tratava de mero lapso.
E sobre as exclusões invocadas pela interveniente principal, sendo matéria com maior relevância nas relações internas entre tomador do seguro e segurador, discordou da alegação de que estão em causa apenas danos resultantes de responsabilidade contratual, porque também se incluem danos resultantes da responsabilidade extracontratual que se traduziram na violação de um direito absoluto, que é o seu direito de propriedade.
Por fusão, ocorrida na pendência do processo, a 2.ª ré foi incorporada na sociedade E..., S. A., que passou a assumir a qualidade de segunda ré.
Findos os articulados, foram proferidos vários despachos para a junção de documentos por parte da autora, que levaram à sua condenação em multa, e foi designada a audiência prévia, na qual as rés e a interveniente exerceram o contraditório sobre a resposta às excepções e que culminou, como requerido pelas partes, com decisão de realização imediata da peritagem antes do saneador.
Por despacho de 23/2/2017, a autora foi novamente notificada para, no prazo de 10 dias, indicar o objecto da perícia, o que ela não fez, seguindo-se despacho, datado de 10/10/2017, a julgar deserta a instância.
Interposto recurso, este Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 21/2/2018, revogou a decisão recorrida e ordenou o prosseguimento dos autos, os quais seguiram com a prolação de despacho de saneamento, selecção dos temas de prova e admissão dos meios probatórios.
De seguida, foram proferidos vários despachos para obtenção de documentos e para cumprimento do contraditório.
Nas primeiras datas designadas para o efeito, a 8/7/2021 e 13/7/2021, a audiência de julgamento não se iniciou por ter sido deferido o pedido de suspensão da instância formulado pelas partes; em consequência, a produção de prova teve início na audiência de 31/3/2022 e prosseguiu a 21/4/2022, até que na sessão de 27/6/2022 foi decidido ser necessário concluir os autos para apreciar as várias questões suscitadas pelas partes desde 01/06/2022.
Na sequência, com base em acordo das partes e da interveniente, foi determinada a realização de prova pericial tendo por finalidade apurar os concretos danos sofridos pela máquina, assim como os custos da sua reparação e/ou substituição das peças danificadas (despacho de 20/10/2022).
Concluída a peritagem, com relatório junto aos autos a 3/4/2023, a audiência de julgamento prosseguiu a 8/9/2023, com os esclarecimentos periciais, aos quais se seguiu novo pedido de suspensão da instância, o qual foi deferido, sem que as partes obtivessem o acordo.
Na sequência, foi proferida sentença que, julgando parcialmente provada e procedente a acção, condenou a primeira ré, B... Lda., a pagar à autora a quantia de € 244.628,00, a título de danos patrimoniais, a que acresce o valor do IVA à taxa em vigor, e os juros de mora vencidos e vincendos, calculados à taxa de 4%, desde a citação, até efectivo e integral pagamento, e ao qual deve ser descontado o valor do salvado no montante de € 38.000,00.
A primeira ré foi absolvida dos demais pedidos formulados, ao passo que a segunda ré e a interveniente foram absolvidas de todos os pedidos formulados pela autora nesta acção.
E de tal sentença, inconformada, a 1.ª ré interpôs recurso, admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.
Rematou com as seguintes principais conclusões (de que as restantes, no essencial, constituem repetição e que nessa parte nos abstemos de reproduzir):
1) Entende a Ré, ora Recorrente, que da Douta Sentença em crise resultam erros na apreciação e decisão da matéria de facto e de Direito.
2) Quanto à matéria de facto, a Recorrente discorda daquela decisão, designadamente quanto a parte da factualidade dada como provada e não provada, conforme infra detalhadamente enunciado.
3) Concluiu a Douta Sentença pela parcial procedência da ação. Ressalta, porém, à evidência que, da prova produzida em julgamento, não poderá chegar-se a tal conclusão.
4) Entende também a Recorrente que a Mm.ª Juiz a quo fez, igualmente, uma incorreta interpretação e aplicação do direito ao caso decidendo. Realçando-se que, mesmo que o recurso da matéria de facto improceda, entende a Recorrente que os próprios factos provados na Douta Sentença reclamavam solução diferente para o caso concreto.
5) Quanto aos factos dados como Provados com o números 50º, 56º, 86º e 87º e do facto dado como não provado correspondente ao artigo 68º da Contestação da Recorrente, relativamente à classe de residência do cabo, a Douta Sentença concluiu, de forma manifestamente incorreta, que o cabo fornecido pela 2ªRé (E... à recorrente era da classe/resistência 1960 N/mm², quanto na verdade era classe/resistência 1770 N/mm².
6) Para sustentar dar como provado a classe de resistência a douta sentença socorreu-se dos relatórios apresentados pela E... e sua seguradora, nos quais é referido, num e noutro, ter existido tão-somente um erro/lapso na emissão do certificado.
7) Se o cabo fosse da classe 1960, como defende a 2.º Ré, que conseguiu iludir com a sua argumentação tanto a sua seguradora, como a Meritíssima Juiz A quo, teríamos que ter valores de rutura mínimos e medidos muito superiores aos efetivamente apurados.
8) Isto porque, à semelhança do que faz para os cabos com a classe de resistência 1770 N/mm2, também para os cabos que vende com a classe 1960 N/mm2, a 2ª Ré anuncia valores eles superiores aos mínimos definidos pela norma.
9) Na elaboração do parecer técnico de engenharia e como dele se colhe - junto com as presentes alegações (Doc 1) – por se estranhar o referido nos relatório da 2ªRé e no da F... (da 3ªRé D...), houve o cuidado de se verificar o catálogo da 2ª Ré (que é público) tendo se descoberto que tudo o quanto é referido a este respeito pela 2ªRé era e é manifestamente falso, donde também depois se dá o erro nos factos provados da Douta Sentença. (…)
14) Temos, claramente, que a 2ªR entregou à recorrente um cabo que não correspondia ao produto que foi vendido, o qual não tinha as especificações por si anunciadas, prometidas e garantidas.
15) O facto dado como provado 50º deve ser alterado, passando a constar que: 50.º A 2ª ré forneceu um cabo de 13mm com uma classe de resistência do cordão inferior ao contratado com a 1ªR e ao constante na fatura que lhe emitiu.
16) O facto dado como provado 56º deve ser dado como NÃO PROVADO, particularmente quando refere que “o que ocorreu no caso em apreço”.
17) Do mesmo modo, deve ser dado como NÃO PROVADO o facto n.º 87 dos factos provados.
18) Por seu turno, atendendo às especificações indicadas no certificado entregue pela 2ª Ré, mormente a capacidade mínima de ruptura e a medida, teria, necessariamente que SER DADO COMO PROVADO o artigo 68º da contestação da aqui recorrente, devendo aditar-se aos factos provados o seguinte facto: “Sendo que, mesmo o cabo com as especificações constantes do certificado (que tem uma carga mínima de rutura inferior ao faturado e pago), teria sempre que aguentar, de acordo com as normas aplicáveis (EN), em condições normais - sem defeito - o equivalente a, pelo menos, 11,11 toneladas por cada queda de cabo (carga de rutura mínima).”;
19) Quanto aos factos dados como Provados com os números 62º, 63º, 64º, 66º, 67º, 68º, 69º, 71º, 72º, 89º, 90º, 91º, 92º, 93º e dos factos constantes dos artigos 53º, 65º e 74º (dados como não provados) da contestação da aqui recorrente, relativamente às causas da rutura do cabo de aço, a Recorrente não se conforma, nem se pode conformar, com o não se ter dado como provado que o cabo tinha um defeito gritante e que este defeito deu causa exclusiva à respetiva rutura (do cabo) e, portanto, ao queda do módulo e danos assim originados.
20) De facto, logo após o sinistro a aqui recorrente solicitou ao laboratório ISQ – Instituto de Soldadura e Qualidade – a análise do cabo, que detetou logo a existência de mossas nos arames que compõem a parte interna do cabo.
21) Atente-se que se deu como provado, na parte primeira parte do facto 64º: “Os esmagamentos (“mossas”) na camada interna do cabo, que se encontram ao longo de toda a sua extensão (…)”
22) A discussão centra-se, assim, se estas mossas constituem ou não um defeito de fabrico e, em caso afirmativo, se existe o necessário nexo de causalidade entre o defeito e a rutura abrupta do cabo (e subsequente queda do módulo e por aí em diante…).
23) Partindo dos antecedentes, primeiramente existiam duas versões que se contrariavam, a saber, as conclusões a que chegou o ISQ - na investigação independente que lhe foi solicitada pela aqui recorrente - e a do relatório junto pela 2ªR, da própria autoria desta.
24) O relatório do ISQ conclui, em suma, que “Efectivamente os esmagamentos (“mossas”) verificados nos fios acarretam uma diminuição da sua secção útil elevando as tensões a que estão sujeitos. Este desequilíbrio de forças induz esforços de corte sobre alguns fios que acabam por fracturar a 45º ficando os restantes em sobrecarga resultando na ruptura do cabo.”.
25) Por seu turno o relatório da 2ª Ré, conclui, em suma, que, “a) Não foram detectados quaisquer defeitos de fabrico na amostra recebida do cliente.” e que “d) O facto do cabo ter sido danificado durante a sua utilização contribuiu ainda mais para que este tivesse ainda menos capacidade de resistência às forças de tracção a que foi sujeito.”
26) Após, chegou aos autos um terceiro relatório da F... – Consultores de Engenharia e Gestão, junto pela 3ªRe D..., cujas investigações foram efetuadas na sequência da participação do sinistro pela 2ªRé, que conclui, no que respeita às mossas que “é do parecer que não está demonstrado, pelo contrário, que a rotura do cabo se deveu a uma alegada falta de qualidade do mesmo, concluindo desse modo estar por demonstrar a responsabilidade da C... pelo sucedido que por esse motivo lhe está a ser imputada pela B....”
27) No seu relatório a 2ªR E..., não se pronuncia, sequer, quanto à existência daquelas “mossas”.
28) Todavia, consultores da F..., questionaram a E... relativamente à sua posição quanto à existência das ditas mossas, tendo a E... referido (conforme página 13 do Relatório): (…) Durante o Processo de Fabrico de um cabo de aço e durante a Operação de Cocha (Fecho do cabo / enrolamento dos cordões exteriores à volta da madre ou alma), ocorrem alguns pontos de deformação plástica ou permanente nas zonas de contacto entre arames de cordões exteriores adjacentes e entre os cordões exteriores e os cordões da alma ou madre. Estas pequenas deformações devem-se à pressão exercida pelos cordões exteriores sobre a alma durante a sua passagem pelo tubo de bitola, pelos rolos de aperto e pelos pósformadores. A camada exterior do cabo e a alma não têm o mesmo sentido de torção nem têm passos iguais, portanto estes pontos de contacto existem. Durante a utilização do cabo e devido aos movimentos a que os arames são sujeitos quando o cabo passa por roldanas e/ou é colhido num tambor, as deformações podem-se tornar mais acentuadas. Estas pequenas “mossas” (deformações plásticas ou permanentes) são normais ocorrerem durante a produção de um cabo de aço (…)”
29) Esta foi a surpreendente tese a que o Tribunal A Quo deu como provada! (…).
38) Ora, em linguagem mais simples, o que explica o INEGI é que a existência destas indentações nos arames - em toda a sua extensão, algumas de dimensões que atingem o raio do arame – determinará que o cabo e em especial os arames, com esses danos, acabem por quebrar, aquando da sua utilização, em especial quando o cabo rolar/dobrar pela polia. Ou, citando o relatório: “tendo a rotura final acontecido por perda de secção resistente dos fios que se mantiveram ligados.” (página 9 do parecer INEGI).
39) Porque a Meritíssima Juiz entendeu que o cabo não tinha defeito, concluiu, erradamente e a par do relatório de que se socorre (F...), que: 63º. O cabo partiu porque foi danificado antes ou durante a sua utilização, por isso é que os arames se encontravam muito esmagados e partiram na zona de ruptura;
40) Todavia, da análise do cabo efetuado pelas três entidades (ISQ, E... e F...) em nenhuma delas foi verificado qualquer vestígio de que o cabo tenha sido “danificado antes ou durante a sua utilização”, referindo o ISQ expressamente que nas duas amostras revelaram que “Na camada externa, as superfícies dos cordões não apresentam defeitos relevantes apenas uma ligeira oxidação resultante do normal funcionamento do cabo”;
41) Neste relatório, como nos demais, não resultou a existência de qualquer dano externo, mormente que evidenciasse mau ou imprudente uso, pelo contrário.
42) Provou-se, ademais, em 46º e 47º dos factos provados que, o cabo foi fornecido no mês anterior ao sinistro e que tinha poucas horas de uso.
43) Ou seja, a conclusão de que teria sido danificado, resultou para o douto tribunal unicamente por este ter concluído que o cabo não tinha defeito, sem qualquer tipo de sustentação factual, porquanto, cuidamos de um cabo novo, com pouca horas de uso, que não apresentava quaisquer danos na sua camada externa! (…)
48) Face às declarações prestadas pela Engenheiras do INEGI, que se transcreveram, não se consegue perceber em que parte é que estas testemunhas não foram consistentes, sendo que referiram sempre a existência do defeito - os esmagamentos - e que estes são a causa da rutura, “por diminuição da secção dos fios”.
49) Erra a douta sentença quando refere que a que as engenheiras admitiram que a causa pode estar relacionada com o manuseamento do cabo e/ou da grua, porquanto o que referiram foi quando questionadas, foi que “O que nós vimos é que na parte externa do cabo, que era a parte visível, não detetamos danos que o pudessem indicar”.
50) Ou seja, o que referiram e explicaram estas testemunhas que nada aponta para a existência de um dano anterior do lado externo do cabo!!
51) Mais grave mostra-se, sempre com o devido e merecido respeito, é a conclusão tecnicamente errada a que chega a Meritíssima Juiz A Quo quando refere “No entanto, quando foi submetido a testes com forças superiores, aguentou a pressão. Ou seja, o problema não é do cabo, mas da forma como foi usado e manuseado durante os trabalhos de remoção da máquina”, porquanto, para chegar a esta conclusão parte do princípio errado que os esmagamentos, que nas palavras do INEGI chegam a atingir o raio do arame – eram uniformes, ou seja, que estavam presentes, com a mesma intensidade, em toda extensão do cabo.
52) Todavia, como explica do INEGI “Estas roturas podem não ter ocorrido simultaneamente, tendo a rotura final acontecido por perda de secção resistente dos fios que se mantiveram ligados. Isto é, a rotura de alguns fios durante o mês de utilização do cabo comprometeu a sua resistência em determinados locais onde depois ocorreu a rotura final por sobrecarga.”
53) Mais, quanto à parte em que a douta Sentença refere “O problema não é do cabo, mas da forma como foi usado e manuseado durante os trabalhos de remoção da máquina”, permitam-nos recordar o relatório do INEGI que refere (página 15): “Os danos encontrados nos cordões interiores do cabo surgem de forma repetida alinhados longitudinalmente e, em alguns casos, com alguma profundidade. Assim sendo o INEGI não os atribui à utilização do cabo, mas sim ao processo de fabrico. Assim sendo, e uma vez que estas indentações, debilitam a resistência dos arames, não devem ser consideradas normais uma vez que comprometem a resistência do cabo e existem cabos onde elas estão ausentes.”
54) Pelo que a conclusão a que chega o douta Sentença está, também nesta parte, errada!
55) Pelo exposto e sempre com o maior e sincero respeito: O facto 63º dado como provado na Douta Sentença deverá ser dado como NÃO PROVADO; O facto 64.º dos factos provados da Douta Sentença deverá ser corrigido, passando a dar-se como provado o seguinte: “Os “esmagamentos (“mossas”) na camada interna do cabo, que se encontram ao longo de toda a sua extensão, resultam do anormal processo de fabrico do cabo e constituem defeitos do cabo”; Os factos 66º, 67º e 68º dados como provados na Douta Sentença deverão ser dados como NÃO PROVADOS; O facto 69º dos factos provados da Douta Sentença deverá ser corrigido, passando a dar-se como provado o seguinte: “Esses esmagamentos debilitam severamente a resistência do cabo;”; O facto 71º dos factos provados da Douta Sentença deverá ser corrigido, passando a dar-se como provado o seguinte: Numa situação somente de sobrecarga apenas se iriam observar superfícies de fractura do tipo cone-taça com estricção. Tal não se verifica, observando-se várias superfícies de fractura a 45º. Efectivamente os esmagamentos (“mossas”) verificados nos fios acarretam uma diminuição da sua secção útil elevando as tensões a que estão sujeitos. Este desequilíbrio de forças induz esforços de corte sobre alguns fios que acabam por fracturar a 45º ficando os restantes em sobrecarga resultando na ruptura do cabo.”; O facto 72º dos factos provados da Douta Sentença deverá ser corrigido, passando a dar-se como provado o seguinte: “Os esmagamentos/mossas da parte interna dos cordões que constituem o cabo, contribuíram para a fraqueza do cabo, que não manteve todas as suas propriedades.”; Os factos 89º, 90º, 91º, 92º, 93º dados como provados na Douta Sentença deverão ser dados como NÃO PROVADOS, em consonância com as efetivas causa de rutura do cabo;
56) Deve, ainda, ser DADO COMO PROVADO e aditado à matéria de facto, o facto constante do artigo 74º da contestação da aqui recorrente, a saber: É, pois, mister que se conclua - face aos tipos de rutura - que aqueles defeitos (mossas) diminuíram a resistência dos cordões, pela diminuição da sua secção útil, que por essa razão fraturaram a 45º e acarretaram, consequentemente, a sobrecarga dos demais que acabaram por fraturar em cone-taça.
57) Deve, ainda, ser DADO COMO PROVADO e aditado à matéria de facto, o facto constante do artigo 65º da contestação da aqui recorrente, por referência aos relatórios do ISQ e do INEGI, a saber: Tais defeitos nunca seriam aparentes e percetíveis pela 1.ª Ré, porquanto na camada externa – a visível – as superfícies dos cordões não apresentavam defeitos relevantes, apenas uma ligeira oxidação resultante do normal funcionamento do cabo.
58) Deve, ainda, ser DADO COMO PROVADO e aditado à matéria de facto, o facto constante do artigo 53º da contestação da aqui recorrente: o cabo não tinha qualquer defeito aparente.
59) Quanto aos factos dados como Provados com os números 26º, 27º e 29º, relativos à questão “da reparação vs substituição do módulo sinistrado”, entende a recorrente apenas que existem pequenas, mas importantes, imprecisões na redação dos factos provados, mormente quando se refere a “reparação da máquina”.
60) De facto, ao longo do julgamento, percebeu-se que em momento algum a Autora equacionou proceder a qualquer reparação, mas antes, quanto muito, a substituição integral do módulo “grupo fecho” sinistrado.
61) Destas declarações prestadas por AA percebe-se, claramente, que nunca foi equacionado pela Autora qualquer reparação.
62) E, mais, que se cuida de uma máquina constituída por dois módulos/grupo, podendo um deles ser referido como o módulo/grupo de injeção, que já tinha sido descarregado, e outro como o módulo prensa (grupo fecho), que acabou por cair aquando da rutura do cabo.
63) Aquele orçamento, no valor de 148.000 Eur, ou mais precisamente 148.280 Eur (cfr. documento n.º 5 da Petição Inicial) corresponde à substituição integral do módulo sinistrado e não a reparação ou substituição parcial de peças do mesmo.
64) Com efeito, o facto provado 26º dos factos provados da Douta Sentença deverá ser corrigido, na parte que refere “reparação”, passando a dar-se como provado o seguinte: 26.º O custo das peças/componentes indicadas no orçamento de fls. 22, que constitui a substituição integral do módulo “grupo fecho” sinistrado, era, à data de11-06-2014 (…)”;
65) Ademais, tratando-se de uma substituição integral do módulo, salvo o devido respeito, não era necessário desmontar e montar peças como sucedia se tratássemos de uma reparação. Evidência disso mesmo é que, que aquando do sinistro, a Recorrente estava a descarregar os módulos completos já perfeitamente montados e completos, daí que o módulo sinistrado tenha caído completo… Doutra forma, teria caído uma das suas peças/componentes, que depois seriam montadas, e não o módulo completo!
66) Destarte, no facto 27º dos factos provados, não deveria ter sido levado em conta o custo com o serviço de desmontagem/montagem do material que, segundo orçamento, ascendia ao montante de 6.130€.
67) Portanto, o facto provado 27º dos factos provados da Douta Sentença deverá ser corrigido, passando a ter a seguinte redação: Na avaliação de fls. 22 e 23 foram também orçamentados custos do transporte do módulo de substituição, que ascendiam a 12.000€.
68) Já quanto ao facto 29º quando refere que “Na mesma avaliação foi atribuído o valor de 38.000,00€ ao salvado, integrando este não apenas o módulo que caiu, mas também o outro módulo que não sofreu qualquer dano” está manifestamente incorreto por duas razões: A primeira porque existe nos autos um documento que expressa claramente que os 38.000,00€ reportam unicamente às peças danificadas, que percebemos corresponde ao módulo integral “grupo fecho”, porquanto De facto, o documento n.º 6 junto com a petição inicial, precisamente um email do representante da marca, de 17 de junho de 2014, a referir que “O valor atribuído ao material danificado é de 38.000.00€”
69) E, repare-se, que este email seguido do email com o orçamento da reparação (que percebemos que é substituição do módulo) constante do mesmo documento n.º 6 da petição inicial, isto é no mesmo documento constam dois emails, um que envia o orçamento de reparação e outro, imediatamente seguinte, que refere o valor do salvado das peças danificadas.
70) Ou seja, se seria para reparar/substituir o módulo “grupo fecho”, não fazia sentido “salvar” o outro módulo (não sinistrado), que se manteria na posse, propriedade e em funcionamento pela Autora.
71) Por outro lado, fácil é de perceber que, tratando-se de uma máquina nova, em que o grupo de injeção anteriormente descarregado e que não sofreu qualquer sinistro tinha um valor comercial, como expressamente refere supra o representante da Marca, correspondente a metade do valor da máquina, isto é 300/2 = 150.000,00 Eur., pelo que não é, pois, possível que um módulo (de injunção), novo, intacto e sem qualquer utilização, no valor de 150.000 Eur, acrescido do módulo prensa, de igual valor mas sinistrado, pudessem, no seu conjunto, valer apenas 38.000 Eur.
72) Portanto, o facto provado 29º dos factos provados da Douta Sentença deverá ser corrigido, passando a ter a seguinte redação: Na mesma avaliação foi atribuído o valor de 38.000,00€ relativa e exclusivamente ao salvado do módulo que caiu.
73) Em relação aos factos dados como Provados com os números 96º, 97º, 98º, relativos aos do valor da reparação/substituição do módulo sinistrado, entende a recorrente que nunca poderia ter sido dado como provado o facto 96º quanto ao preço da máquina, com a “ressalva” dada como provada em 97º.
74) Ora, o que temos, com toda a clareza, é que a Autora terá pedido ao representante, ou este juntou por autoria própria um orçamento de uma máquina com equipamento acessório caríssimo, que a máquina sinistrada não dispunha, para fazer empolar o preço da mesma.
75) Assim, o orçamento a que se alude em 96º engloba um “ROBOT euromap 67 FO” que não integrava a compra realizada pela autora em 2014, conforme resulta expressamente em 97º dos factos provados.
76) E não obstante tratar-se de um acessório, em tal orçamento não se discrimina – quiçá por algo mais que mera e casual coincidência - o preço do dito acessório/robot.
77) Todavia, existe nos autos outro orçamento de uma máquina igual à daquele orçamento, com o mesmo exato modelo e referência de produto, senão vejamos: (1) A fls 549 a 554 – é junto o orçamento (o tal com Robot) com relatório pericial, de 21/03/2023, onde consta que a máquina cotada é uma NEGRI BOSSI VECTOR ST 800/7460 com a referência DTM0161005, com o preço 530.000,00 Eur.; (2) Com requerimento da recorrente, de 17/04/2023, refª citius 14446754 é junto um orçamento (sem Robot), de 7/05/2022, onde consta que a máquina cotada é uma NEGRI BOSSI VECTOR ST 800/7460 com a referência DTM0161005, com o preço de 333.500 Eur. (está máquina é a constante do facto 99º dos factos provados).
78) Ademais, ouvidos os senhores peritos, estes referiram que se trata da mesma máquina, com a mesma referência, com as mesmas exatas características;
79) Assim, percebemos, sem margem para quaisquer dúvidas, que a única diferença entre uma máquina que foi cotada por 530.000,00 Eur e outra que foi cotada por 333.5000,00 Eur é a existência, na primeira, de um robot, que a segunda não tem.
80) Robot que é um acessório que a máquina sinistrada, adquirida em 2014, não dispunha (facto provado n.º 97º)
81) E não se diga, como parece transparecer da douta sentença, que a diferença está na data em que foi cotada uma e outra, porquanto: Distam apenas 10 meses entre as duas cotações (maio 22 vs março 23); Tratamos de máquinas novas; Não é verosímil que uma máquina suba de preço, em apenas 10 meses, em 196,000,00 Eur, isto é 333 mil euros para 530 mil euros, o que correspondente 59%.
82) Ademais, veja-se que a máquina equivalente (em 2014) custou 300.000 Eur e, em 2022, o seu preço é de 333.500 Eur, ou seja, apenas teve uma atualização de 33.500 Eur, ou seja, cerca de 10% em 8 (oito) anos, o correspondente a 1.25/1.5% por ano, daí que, se em 8 (oito) anos o preço é atualizado em 10%, cerca de 1,5% ao ano, não é possível que em 10 (dez) meses, a mesma máquina tenha um aumento de preço de 59%.
83) E, também não se diga, que a diferença está no local onde se compra, bem assim se em Itália ou ao representante da marca em Portugal, porquanto, como decorre do testemunho do representante da Marca - AA, a Autora comprou a máquina sinistrada diretamente em Itália (minutos 03.36 – 03.45);
84) Por tudo isto, tratando-se da mesma exata máquina, a única diferença que influiu no preço foi a existência, no orçamento junto pelo representante, de um ROBOT euromap 67 FO.
85) Portanto, os facto 96º e 97º dos factos provados da Douta Sentença deverão ser corrigidos e unificados, passando a ter a seguinte redação: “O preço de venda de uma máquina nova, com funções semelhantes à adquirida pela autora em 2014, em Março de 2023, com um robot, denominado “interface robô euromap 67 FO” que não integrava a compra realizada pela autora em 2014, corresponde pelo menos ao valor de 530.000,00€, ao qual acrescerá o IVA à taxa legal, preço no qual está incluído o serviço de desmontagem e montagem de material, deslocação e estadia ao qual acrescerá o IVA à taxa legal, orçamento constante de fls. 626 e seguintes, conjugado com o orçamento, da mesma empresa, mas de 2022, onde estão descriminadas as despesas (fls. 549 a 554).
86) Sendo que o facto 99º dos factos provados da Douta Sentença deverá ser corrigido, passando a ter a seguinte redação: Por sua vez, o preço de uma máquina nova semelhante à adquirida pela autora em 2014 e com as mesmas funções, ficaria em Maio de 2022, pelo preço orçamentado de € 333.500,00 sem IVA, preço que inclui entrega e descarga, sem o robot (…).
90) Por outro lado, atendendo que se provou a possibilidade de aquisição da máquina – composta por dois módulos de valor semelhante – por 333.500,00 Eur. – mostra-se completamente inverosímil e irrazoável que apenas um dos módulos, em 2022, na mesma data (março de 2022), tivesse um custo de 244.628,00 Eur.
91) Ora, como vimos supra, o orçamento não reflete qualquer substituição de peças, mas antes o preço de substituição do módulo completo.
92) Com efeito, o orçamento a que se refere o facto provado 98º, que soma (244 628 Eur), padece do mesmo mal do orçamento a que se alude em 96º dos factos provados, está completamente empolado, tendo ambos sido ambos entregues pela mesma pessoa, a saber: O Sr. AA.
93) De facto, provou-se, que para a mesma máquina foram juntos orçamentos que diferem, gritantemente, em quase 200.000,00 Eur!! Pela mão, precisamente, daquele representante…
94) Se é possível adquirir a mesmíssima máquina por preço menos oneroso, é por referência ao respetivo orçamento que devemos chegar ao valor do módulo sinistrado e não através do orçamento prestado pela mesma pessoa (Sr AA) que apresentou um orçamento em que lhe fez acrescer 196.000,00 Eur (o valor de um bom apartamento) ao valor real da máquina.
95) Voltando às declaração do refere Sr. AA, prestada sob juramento, refere que o módulo sinistrado ascende, praticamente a 50% do valor da máquina, explicando que a mesma custou 300.000 Eur e aquele módulo foi orçamentado, em 2014, por 148.000,00 Eur., Efetivamente tratamos, de cerca de 50% do valor, o que nos indica que um módulo e outro terão, como explica o representante da marca, valor muito semelhantes, uma ligeira diferença para o módulo de injeção, que é ligeiramente mais dispendioso.
96) Por outro lado, temos que o único orçamento válido, real, sem truques ou “robots”, é o que ascende a 333.500,00 Eur. (facto provado 99º);
97) Assim, para se chegar ao valor atualizado do módulo novo “grupo fecho” deveremos dividir por dois, nos termos explicados pelos representantes da marca sob juramento, o valor da máquina completa.
98) Fazendo esta simples operação aritmética, temos que o módulo novo “grupo fecho” ascende a um valor nunca superior a 166.750,00 Eur. (valor que já contempla custos de entrega em Portugal).
99) Portanto, o facto 98º dos factos provados da Douta Sentença deverá ser corrigido, passando a ter a seguinte redação: O preço das peças/componentes, identificados no ponto 24º, em março de 2022, corresponde a um valor correspondente a 50% do preço orçamentado para a máquina nova, indicado no ponto 99º.
100) A Douta Sentença considerou existir culpa do lesado, neste caso da Autora, na medida em que esta, “desde o início que não quis a reconstrução natural e que passaria pela reparação do módulo danificado (reparação possível), mas exigiu sempre uma máquina nova, integrando na sua exigência, no valor a indemnizar, um dos componentes da máquina totalmente novo e sem qualquer dano (…)” concluindo, então, que “o nexo causal entre o evento lesivo e a impossibilidade de no momento actual não ser possível a substituição do módulo danificado não é imputável à ré” e, bem assim, que “a conduta da autora agravou os danos, porque impediu a substituição e reparação do módulo danificado e provocou que, no momento actual, essa substituição seja impraticável.”
101) Considera, também, a Douta Sentença Recorrida que a culpa da Recorrente foi (e é) presumida, em qualquer um dos enquadramentos ali efetuados – responsabilidade (pelo incumprimento) contratual, a que aplica, e responsabilidade extracontratual/objetiva que diz que poderia ser aplicável na falta daquela, o que, no entender da Recorrente, releva e deveria ter relevado para efeitos do previsto no artigo 570.º, n.º 2 do Código Civil.
102) No entanto, a Douta Sentença conclui – e disso se discorda, com o devido e merecido respeito - pela condenação da Recorrente no valor da reparação, tal como orçamentado em 2022 e não em 2014 (data do sinistro e da tomada de posição da Autora), valor esse de 2022 ao qual faz, depois, acrescer juros moratórios, calculados desde 2015 (citação).
103) Recordando-se que “[é] vedado ao lesado fazer exigências irrazoáveis que revelam a adopção de um comportamento abusivo que desvie as normas de tutela do seu objectivo principal que consiste no ressarcimento de danos efectivos e não no agravamento da posição do responsável”, em homenagem, até, ao vertido no artigo 762º, n.º 2, do Código Civil;
104) Que “a partir do momento em que o acto do lesado deixa ter conexação ou relação adequada com a lesão inicial, integrando uma decisão não provocada ou tornada necessária pelo facto do lesante (…) ou revestindo uma tonalidade de tal forma grosseira (a «unreasonable conduct» de que fala a literatura anglo-saxónica) que acaba por «absorver» a condição inicial é razoável deslocar esse maior dano para a esfera do próprio lesado, dado apresentar-se como efeito inadequado do facto responsabilizante.”
105) Que o denominado princípio valorativo de autorresponsabilidade (do lesado), incindivelmente ligado à autonomia privada dos sujeitos, donde se se extrai, a propósito da culpa do lesado, um “ónus jurídico de cuidarmos com prudência, zelo, e diligência dos nossos próprios interesses, salvaguardando-os contra potenciais eventos danoso”
106) E que a culpa do lesado “é uma expressão particular do princípio da boa fé, pretendendo estimular-se cada um a velar pela sua própria segurança e evitar-se que quem causa culposamente um dano a si mesmo venha exigir de outrem a sua indemnização, num claro venire contra factum proprium (…)”
107) A atual impossibilidade da reparação ou de substituição, ou no limite a inflação do custo associado a qualquer uma delas, é consequência daquela posição da Autora - que as impediu (de forma não negociável) quando ainda eram possíveis, exigindo algo a que não tinha direito – devendo, pois, ser a Autora a suportá-la, correndo por conta desta o “risco” de que tal impossibilidade se viesse a verificar mercê da sua conduta.
108) Entende-se que tal será o que resulta da conjugação desta culpa do lesado, com a presunção de culpa que recaiu sobre a Recorrente e o previsto no artigo 570.º, n.º 2 do C.C., entende-se que a responsabilidade desta deveria ter sido excluída: “há casos de presunção legal de culpa (…). Nestes casos, a presunção cede, nos termos do n.º 2, provando-se que houve culpa do lesado.”.
109) Estabelecendo-se um paralelismo à figura próxima da mora do credor teríamos que: a partir da mora, o devedor apenas responde, quanto ao objecto da prestação, pelo seu dolo (artigo 814.º, n.º 1, do C.C.); durante a mora, a dívida deixa de vencer juros, quer legais, quer convencionados (artigo 814.º, n.º 2, do C.C.); e ainda que a mora faz recair sobre o credor o risco da impossibilidade superveniente da prestação, que resulte de facto não imputável a dolo do devedor (artigo 815.º, n.º 1 do C.C.).
110) Se é assim nos casos de (mera) mora do credor (para a qual até se prescinde da verificação de um acto culposo do credor, ao invés do que sucede neste caso), por maioria de razão, nos casos em que se conclua que há culpa do lesado, deveremos extrair a consequência de que o risco da impossibilidade superveniente da prestação – logicamente, a reparação do dano – corria por conta desta mesma Autora.
111) Verificada que é a impossibilidade superveniente da prestação, ocorrida durante o decurso dos autos, não deveria a Recorrente ter sido condenada, tout court, precisamente porque foi a Autora quem “arriscou” querer mais do que lhe era devido e, necessariamente, terá de ser ela a “arcar” com o risco de tal ousadia!
112) In extremis, teria a indemnização da Recorrente de se limitar ao valor que a reparação custaria em 2014. No mínimo, a posterior inflação de tal custo corresponde a um agravamento do dano a que deu causa a Autora e que se deverá repercutir na esfera desta.
113) O mesmo vale, diga-se, relativamente aos juros. Data venia, parece-nos não ter sentido ou arrimo legal, condenar-se a Recorrente a pagar juros desde 2015, quando a posição da Autora exclui a possibilidade de cumprimento/reparação. E, mais, condenar-se a pagar juros contados de 2015 para um valor apurado/atualizado em 2022, ou seja em que o valor do capital é atualizado ao valor de 2022, mas os juros retroagem (por referência a esse valor) cerca de oito anos, remontando a 2015 em que o custo real era muito inferior.
114) Seria, salvo o devido e muito respeito, penalizar três vezes a Ré: por um lado, a suportar o agravamento do dano a que a Autora deu causa; por outro, a suportar também a atualização dos preços; e, por fim, a suportar juros calculados tomando como referência o valor atualizado, mas contados desde momento muito anterior.
115) Sem prescindir, lê-se na Douta Sentença que “tratando-se de quantias pecuniárias, aos montantes referidos acrescem juros de mora, calculados à taxa de 4%, desde a citação até efectivo e integral pagamento – artigos 805º, n.º 3 e 806º do CPC e Portaria n.º 291/2003, de 8-4”.
116) Mais se lê – e de novo se cita pela pertinência – naquela sentença que “a primeira ré responde perante a autora em termos de responsabilidade civil contratual (e é a que se aplica) (…)”
117) Ora, salvo o devido e merecido respeito, ao responsabilizar-se a Recorrente por semelhante via, fica arredada a aplicação ao caso sub judice do vertido no artigo 805.º, n.º 3 e no artigo 806.º, ambos do C.C.
118) A este propósito, socorremo-nos da Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça: “não são devidos juros desde a citação, uma vez que tal responsabilidade, sendo contratual, está fora do âmbito da previsão do n. 3 do artigo 805, do C.Civil, pelo que os juros moratórios só são devidos a partir do trânsito em julgado da decisão condenatória.”
119) Ou ainda a Jurisprudência daquele Tribunal, vertida noutro seu Douto Acórdão, que: “estamos no domínio da responsabilidade contratual. Se o crédito for ilíquido, não há mora enquanto se não tornar líquido, salvo se a falta de liquidez for imputável ao devedor - art. 805, nº3, 1ª parte, do C.C. Para que haja mora, consideram os autores necessário que a prestação seja ou se tenha tornado certa, líquida e exigível. Diz-se ilíquida a obrigação cuja existência é certa, mas cujo montante não está ainda fixado. Se "a obrigação é ilíquida (por não estar ainda apurado o montante da prestação), também a mora não se verifica, por não haver culpa do devedor no atraso do cumprimento" (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 5ª ed., pág. 114/115). É o que se verifica no caso dos autos, em que os réus foram condenados em montante inferior ao valor do pedido formulado. Equitativo, em tais situações, é que os juros moratórios só se contem após a decisão que defina o valor da prestação a satisfazer, pois até então desconhece-se a importância exacta da dívida. O simples facto de o credor pedir o pagamento de um determinado montante não significa que a dívida se torne líquida com a petição, pois ela só se tornará líquida com a decisão. Para haver mora, não basta que o devedor seja interpelado. É preciso haver culpa do devedor. Líquido ou específico será apenas o pedido formulado, mas não a obrigação (Ac. S.T.J. de 21-285, Bol. 344-427). Consequentemente, os juros moratórios são devidos apenas desde a data da sentença da 1ª instância que fixou o valor da obrigação.”
120) Donde resulta que, por força da culpa do lesado, deverá a Douta Decisão ser revista, excluindo-se totalmente a condenação da Recorrente, ou, in extremis, limitando-a à quantia correspondente ao somatório dos valores constantes do artigo 24.º a 27.º dos factos provados.
121) Cujos juros apenas devem ser calculados a partir da data do trânsito em julgado da decisão final ou, no limite, da data em que foi proferida a Douta Sentença Recorrida.
122) Sendo que o valor da reparação/substituição do módulo, atualizado à data mais recente, nunca poderia corresponder ao empolado do orçamento de que se socorre a douta Sentença, porquanto mostrou-se, até pela testemunha arrolada pela Autora – representante da marca – que o valor corresponde a 50% da máquina nova, sendo que, por referência ao único orçamento isento, prestado pela própria marca (cada mãe), ascende a 166,750,00 Eur, já com entrega em Portugal.
123) Concluindo-se, por fim, que a Douta Sentença violou, entre o mais, os artigos 570.º, 483.º, 487.º, 493.º, 762º, 798.º e 799.º e 805º, todos do Código Civil.
Finalizou pedindo que, sendo revogada a mui douta sentença, se decida pela absolvição da ré da totalidade dos pedidos ou, in extremis, pela redução da condenação da Recorrente nos termos expostos.
A 2.ª ré ofereceu resposta, mediante requerimento que culminou com as seguintes conclusões:
I. No entender da ora Alegante, a douta Sentença Recorrida fez uma ponderada e correcta apreciação dos factos, da documentação junta aos autos e dos depoimentos de todas as testemunhas ouvidas em sede de audiência julgamento, com a consequente aplicação do Direito, não merecendo qualquer censura.
II. A ora Contra-Alegante E..., foi absolvida do pedido, no entanto, a 1ª R. B..., nas suas Alegações, pretende ver alterada a matéria de facto dada como provada e não provada, situação que, a ocorrer, o que se aduz por mera cautela de patrocínio, colocaria em causa a sentença proferida e eventualmente a absolvição da ora Alegante E....
III. De facto, a 1ª R. B... pretende alterar a matéria de facto dada como provada relativamente aos temas a) - Da classe de resistência do cabo de aço e b) - Das causas de ruptura do cabo de aço, para depois tentar extrair daí consequências no sentido de imputar responsabilidades à aqui Alegante pelo acidente dos autos. Não tem razão.
IV. A douta Sentença Recorrida foi proferida depois de devidamente ponderados os diversos relatórios juntos aos autos pelas partes, a saber: a) Relatório do ISQ – Instituto de Soldadura e Qualidade, que a 1ª R. B... facultou à A. e que esta juntou aos autos, a fls. 98 e sgts; b) Relatório emitido pelo Departamento de Qualidade da 2ª R. E... junto a fls. 134 e sgts; c) Relatório elaborado pelos peritos nomeados pela 3ª R. D... que investigaram o sinistro participado – F... – Consultores em Engenharia e Gestão, junto a fls. 266; acresce que os subscritores dos relatórios foram ouvidos, em sede de audiência de julgamento, confrontados com o conteúdo do seu relatório e com os elementos constantes dos outros relatórios juntos aos autos.
V. Perante toda a documentação junta aos autos não faz qualquer sentido vir agora a 1ª R., em sede de Alegações de recurso, juntar mais um relatório, tanto mais que em 2014, logo a seguir ao acidente solicitou a elaboração de um relatório por parte do ISQ – Instituto de Soldadura e Qualidade (junto aos autos a fls. 98).
VI. Note-se que o Relatório/Parecer agora junto com as Alegações da 1ª R. B..., foi elaborado em Junho de 2024, quando já decorreram 10 (dez) anos sobre a ocorrência dos factos, sem que os subscritores tenham analisado o cabo em questão, limitando-se estes a fazer a análise dos relatórios juntos aos autos, os quais foram já devidamente escrutinados pelas partes, e pelo douto Tribunal, conforme consta da douta Sentença proferida.
VII. Nada acrescenta, pois, o Relatório/Parecer agora junto em sede de Alegações de recurso à análise da situação que foi feita, no processo em sede de audiência de julgamento, pelas partes e pelo Meritíssimo Juiz a quo, bem pelo contrário, apresenta uma visão parcelar e que não tem em conta toda a prova produzida.
VIII. O cabo fornecido pela 2ª R. E... à 1ª R. B..., sempre correspondeu ao tipo de cabo solicitado pela 1ªR. B..., constante da encomenda e factura emitidas, a saber, cabo anti-giratório de 13mm com classe de resistência 1960 N/mm2, apenas o certificado de inspecção emitido e que acompanhava o cabo tinha um erro na identificação da classe de resistência do cabo, mas tal erro (lapso de escrita) foi prontamente corrigido quando detectado.
IX. Todas as demais menções do certificado emitido pela 2ª R., incluindo a referência à carga mínima de ruptura de 109 kN estavam correctas e correspondiam às especificações que constam da Norma EN 12385-4 aplicável e que justificou a emissão do certificado.
X. Nunca houve qualquer dúvida sobre a classe de resistência do cabo fornecido e, por isso, os resultados dos testes obtidos pelo ISQ e pela 2ª R. respeitam exactamente os parâmetros da Norma EN 12385-4 para um cabo de classe de resistência 1960 N/mm2.
XI. A afirmação constante do Facto 50º dos Factos Provados resulta, apenas e só, da análise dos documentos juntos aos autos, por parte do Meritíssimo juiz a quo, conforme consta da fundamentação da douta Sentença Recorrida.
XII. Nada há a alterar neste facto dado como provado, pois o que está aqui em causa é, factualmente, as menções que constam do certificado de inspecção emitido inicialmente pela 2ª R. E..., e depois prontamente corrigido, quando o lapso foi detectado,
XIII. As considerações da 1ª R. B... nas suas doutas Alegações sobre alegada informação disponível no catálogo da 2ª R. e características do cabo - em data não identificada, tendo em conta que o Relatório/Parecer está a ser elaborado 10 (dez) anos após o acidente - não se encontra alegada nos autos nem constitui matéria dada como provada, pelo que não são relevantes.
XIV. O Facto 56º dos Factos provados decorre da documentação junta aos autos – pedido de cotação, orçamento, factura e certificado de inspecção; o cabo fornecido correspondia exactamente ao solicitado, orçamentado, fornecido e facturado – um cabo de 13 mm, com a classe de resistência de 1960 N/mm2 e características associadas constantes da Norma EN 12385-4, sendo que a força de ruptura do cabo, de acordo com os testes efectuados, quer pelo ISQ, quer pela 2ª R., é superior ao indicado no certificado emitido.
XV. Não se vislumbra por que razão o Facto 87º dos Factos Provados deveria ter sido considerado como não provado, pois o que consta do texto deste facto é exactamente o relato do que aconteceu, constante da averiguação levada a cabo pelos peritos independentes nomeados pela 3ª R. D..., a F..., correspondendo igualmente ao que foi referido em sede de audiência de julgamento.
XVI. O Facto 88º dos Factos Provados continua transcrevendo o conteúdo do Relatório do F..., o que permite evidenciar a importância destes Factos dados como provados para se entender o tipo de cabo fornecido e justificar que está em causa apenas um lapso de escrita na emissão do primeiro certificado de inspecção, que em nada afecta as características reais do cabo fornecido.
XVII. Não existe, pois, qualquer razão para se alterar os factos dados como Provados sob nºs 50º, 56º, 86º e 87º.
XVIII. Quanto ao Artigo 68º da Contestação da 1ª R. dado como não provado, o que a 1ª R. pretende é extrapolar conclusões teóricas a partir de um certificado que foi posteriormente corrigido; as características do cabo fornecido sempre corresponderam ao que era expectável e era do conhecimento da 1ª R. atento, aliás, o relacionamento existente entre ambas, há muitos anos, conforme consta do Facto Provado nº 48º.
XIX. Nada há a acrescentar à matéria de Facto dada como provada relativamente a este tema.
XX. Relativamente ao tema das causas de ruptura do cabo de aço, convém ter presente que está em causa um cabo anti-giratório que é composto por uma madre, no centro e 18 cordões com 7 fios cada um à volta, dispostos em duas camadas sobrepostas, uma com 6 cordões e outra com 12 cordões (Facto Provado 65), sendo que as figuras 16 e 17 constantes do Relatório do ISQ, a fls. 98 e seguintes permitem uma melhor percepção do cabo e respectivas características.
XXI. Os esmagamentos (“mossas”) ao longo de todo o cabo, precisamente porque existem ao longo de todo o cabo, resultam do processo contínuo de produção e do entrelaçar dos diversos cabos que compõem o cabo anti-giratório. Em cabos de cordões não compactados e com camadas cruzadas, como é o caso do presente cabo, estes esmagamentos são perfeitamente normais.
XXII. O responsável da qualidade da 2ª R., ouvido como testemunha – BB (gravação dia 21/4/2022, 14.55–15.54), descreveu de forma pormenorizada e isenta (“coerente e convincente” na opinião do Meritíssimo Juiz a quo) o processo de fabrico do cabo, permitindo ao Tribunal esclarecer todas as dúvidas que foram surgindo ao longo da inquirição dos diversos técnicos.
XXIII. Releva particularmente a fundamentação dos Factos Provados nºs 63º a 69º, 71º e 72º, onde o Meritissimo Juiz a quo compara os depoimentos prestados pelos diferentes técnicos e evidencia a fundamentação da sua convicção.
XXIV. O cabo fornecido não tinha defeito, e o facto de se ter partido apenas pode resultar da utilização que do mesmo foi feita pela 1ª R..
XXV. Em apoio desta afirmação, refira-se o facto de que, quer o ISQ, quer a 2ª R., terem feito diversos testes de carga de ruptura, tendo obtido, sempre, valores de carga de ruptura superiores ao que consta do certificado – carga de ruptura de 109,0 Kn (cfr. Relatórios de fls. 98 e 134 e seguintes).
XXVI. Se o cabo tivesse algum defeito, consubstanciado nas “mossas” esmagamentos, ao longo de todo o seu comprimentos, como a 1ª R. pretende, o cabo não teria cumprido os critérios mínimos de ruptura obtidos pelo ISQ e pela 2ª R..
XXVII. Bem andou, pois, o Meritíssimo Juiz a quo ao considerar provados os Factos nºs 62º, 63º a 69º, 71º e 72º, 89 a 93º dos Factos Provados.
XXVIII. Os factos que a 1ª R. pretende sejam dados como provados constantes dos artigos 53º, 65º e 74º da sua Contestação não foram sequer considerados relevantes pela douta Sentença proferida, não constando dos Factos Não Provados. De qualquer modo,
XXIX. Não se apurou que o cabo tivesse qualquer defeito, pelo que a referência a defeitos aparentes não tem cabimento; do mesmo modo, as “mossas” ao longo do cabo resultam do processo de fabrico, não pondo em causa a resistência do cabo, conforme resulta dos diversos testes efectuados, quer pelo ISQ, quer pela 2ª R., pelo que não se justifica o aditamento de qualquer um dos factos indicados pela 1ª R. nas suas alegações.
XXX. Bem andou o Meritíssimo Juiz a quo absolvendo a aqui 2ª R. E... do pedido, tudo com todas as demais consequências legais, não merecendo a douta Decisão Recorrida qualquer reparo.
XXXI. No entanto, caso assim se não entenda, o que se aduz apenas por mera cautela de patrocínio, a ora Contra-alegante sempre faz suas as alegações da 1ª R. relativamente aos pontos: Da reparação vs substituição do módulo sinistrado; - Do valor da reparação /substituição do módulo sinistrado; - Do pressuposto do dever de indemnizar; - Da culpa do lesado e dos juros moratórios; - Do valor dos danos.
Finalizou com a indicação de que deve ser negado provimento ao recurso.
Por último, a autora apresentou as suas contra-alegações, sem conclusões, referindo, em síntese, que tem urgência em ver esta situação concluída. Por esta razão, isto é, por uma razão de ordem prática, a A. aceita a sentença recorrida, embora não concorde com aquilo que foi decidido em relação à alegada conculpabilidade da A., uma vez que em nada contribuiu para o surgimento dos danos e/ou para o seu agravamento, sendo certo que a questão da concausalidade só surge, tal como é referido na sentença, em alegações finais, e que para a R., a única questão era, e ainda é, a determinação da entidade responsável pelo ressarcimento dos danos sofridos pela A..
Nesse conspecto, defendeu que os danos sofridos pela máquina não tiveram qualquer agravamento, são os mesmo desde o momento da queda, aquilo que foi aumentando, e continuará naturalmente a aumentar, são os custos de reparação desses danos, em resultado do aumento dos preços, decorrente da passagem do tempo e que não pode ser imputado à A., acrescentando que se é verdade que o processo tem-se arrastado devido à atitude irresponsável e relapsa da R., também é igualmente verdade que se verifica um atraso inaceitável da atuação do Tribunal.
Mais, ao contrário daquilo que sustenta a R., não devem ser considerados os valores indicados diretamente pela marca italiana porque a máquina não pode ser consertada em Itália; existindo um concessionário da marca em Portugal, que estabelece os preços em território português, são os preços apresentados pela empresa concessionária que devem ser tidos em consideração.
Por fim, pugnou pela não admissão dos documentos apresentados com o recurso da R., porque poderiam ter sido apresentados antes do encerramento da audiência de julgamento e só não o foram porque a R. não diligenciou nesse sentido.
Nada obsta ao conhecimento do recurso, o qual foi admitido na forma e com os efeitos legalmente previstos.
*
OBJECTO DO RECURSO.
Sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer das questões que constem nas conclusões, as quais, assim, definem e delimitam o objeto do recurso (arts. 635º/4 e 639º/1 do CPC).
Assim sendo, importa em especial apreciar:
a) se foi validamente deduzida, é justificada e procede a impugnação da matéria de facto, quanto aos pontos 50, 56, 86 e 87 dos factos provados e ao facto dado como não provado do artigo 68º da contestação da recorrente, referentes à
classe de resistência
do cabo fornecido pela 2.ª à 1.ª ré, de modo a que a primeiro seja alterado, os quatro seguintes sejam julgados não provados e o último passe a ter a resposta proposta no recurso ou aquela que resultar da análise dos meios probatórios (conclusões 1 a 3, 5 a 18);
b) se foi validamente deduzida, é justificada e procede a impugnação da matéria de facto, quanto aos pontos 62, 63, 64, 66, 67, 68, 69, 71, 72, 89, 90, 91, 92, 93 e aos factos dados como não provados dos artigos 53º, 65º e 74º da contestação da recorrente, em especial, quanto a não ter sido julgado provado que o cabo tinha um
defeito de fabrico
e que ele deu
causa exclusiva à respetiva rutura
e quanto a ter sido julgado provado que o cabo partiu porque foi danificado antes ou durante a sua utilização (conclusões 1 a 3, 19 a 58);
c) se foi validamente deduzida, é justificada e procede a impugnação da matéria de facto, quanto aos pontos 26, 27 e 29 da matéria provada, relativos à questão da “
reparação vs substituição do módulo sinistrado
”, e aos pontos 96, 97, 98 e 99, relativos ao tema “
valor da reparação/substituição do módulo sinistrado
”, de modo a que sejam alterados no sentido proposto pela recorrente ou que resultar da análise da prova (conclusões 1 a 3, 59 a 99);
d) se a responsabilidade civil (contratual e/ou aquilina) da recorrente deve ser excluída, mercê de culpa da autora no agravamento dos autos, e na negativa se a sua quantificação na sentença é errada ou excessiva, incluindo na questão dos juros de mora, fixando-se neste caso a sua medida (conclusões 1, 4, 100 e seguintes).
Para além do exposto, importa determinar se o parecer técnico junto pela recorrente com as alegações do recurso deve ser considerado na análise da impugnação da matéria de facto.
*
MATÉRIA DE FACTO.
Em sede de factos julgados provados em primeira instância, vários foram colocados em crise no recurso, na impugnação da matéria de facto, cuja apreciação deverá fazer-se mais adiante.
Assim, sem prejuízo da subsequente consideração dessa impugnação, estão provados os seguintes factos, de acordo com a decisão recorrida:
1)
A A. é uma empresa de fabricação de moldes de aço de grande dimensão para injecção de termoplásticos (certidão comercial de fls. 536 a 540 verso).
2)
A A. tem as suas instalações fabris situadas no ....
3)
A 1.ª R. é uma empresa de prestação de serviços e aluguer de auto gruas telescópicas todo terreno, especializada em meios de elevação.
4)
Em Maio de 2014, a A. adquiriu à firma italiana G..., S.C., através do representante da marca em Portugal, pelo preço de 300.000€, uma máquina de injecção da marca Negri Bossi, modelo Cambio V800/8000 H – 6700 FUSO 90mm, com os seguintes equipamentos opcionais:
- Antivibradores
- 2 extratores pneumáticos PM
- 2 extratores pneumáticos PF
- 1 martineto pneumático PM
- 1 martineto pneumático PF
- 1 Inteface Robot Euromap 67
- 12 vinte e quatro vias fluxómetros
- 8 zonas termorregulação molde 16ª
- 1fuso barreira L/D=22 Negri Bossi
- 8 injecção sequencial pneumática
- 3 martineto hidráulico PM
- 3 Martineto hidráulico PF;
5)
A máquina é constituída por dois módulos fisicamente separáveis entre si, um, designado pelos Sr.s Peritos como: um o “grupo de fecho” e o outro, o “grupo de injecção”;
6)
Para conseguir comprar a máquina a A. teve de obter um financiamento bancário, junto do banco Banco 1..., no valor de 300.000€, à taxa de juro de 4,555%, a ser pago em prestações mensais de 7.727,67€, com inicio em 29.04.2014 e termo em 29.04.2018, o que implica um encargo total de 370.928,16€. (fls. 467 a 475).
7)
Como garantia da quantia mutuada foi constituído em favor da entidade mutuante um penhor mercantil sobre a máquina adquirida: “Prensa para Injecção de Matérias Plásticas” identificada no anexo I do contrato (cláusula 10º do contrato de fls. 467 a 475 e - Sobre a mesma máquina incide um penhor mercantil de que é beneficiária a Banco 1... (fls. 328).
8)
A autora quando adquiriu a máquina de injeção, outorgou com a Companhia de Seguros H... um contrato de seguro titulado pela apólice n.º ...06, constante de fls. 316- 318 e condições gerais de fls. 318 a 321 e cujo conteúdo aqui se dá por reproduzido, contrato com início em 20-06-2014, seguro tendo por objecto a máquina “Prensa Injecção de Plásticos Negri Bossi M161 2013 pelo valor de €300.000,00;
9)
De acordo com as condições particulares da apólice estavam excluídos:
“
Danos resultantes da continuação em uso do bem seguro, depois do mesmo ter sofrido danos, sem que tenha sido feita a sua reparação definitiva e garantido o seu normal funcionamento.
Danos pelos quais os fornecedores ou fabricantes sejam legalmente responsáveis.
”.
10)
Foi acordado entre autora e vendedor que a máquina seria transportada por este para a instalações da A., situadas no Rua ..., ..., ..., ficando a A. com a obrigação de a descarregar do camião e colocá-la no interior do seu pavilhão fabril.
11)
Como não dispunha, nem dispõe, de equipamento adequado para efectuar a descarga da referida máquina, a A. decidiu contratar os serviços da 1ª R. para efectuar esse serviço e que envolvia a utilização de uma das gruas da 1ª ré, manobrada por um funcionário da mesma;
12)
Dando execução a tal decisão, no dia 20.05.2014, a A. entrou em contacto com a 1ª R. explicou que pretendia contratar os serviços desta para descarregar a referida máquina do cimo de um camião e colocá-la no interior das suas instalações. Explicou à R. as características e peso da referida máquina, bem como as demais informações que lhe foram solicitadas por esta;
13)
A 1ª R. deslocou-se às instalações fabris da A., a fim de avaliar o espaço e de decidir qual o equipamento mais adequado à execução da tarefa pretendida pela A.;
14)
Depois disso, no dia 21.05.2014, as partes acordaram que a 1ªR. efectuaria o serviço de descarga da referida máquina do camião para as instalações da A., utilizando a grua que entendeu ser mais adequada, conduzida e manobrada pelo seu operador, cabendo-lhe a execução de todas as operações de descarga da máquina do camião e colocação da mesma no interior das instalações fabris da A.;
15)
As partes calcularam que seriam necessárias 4 horas para execução do referido serviço de descarga e acordaram um preço mínimo no valor de 450€ (quatrocentos e cinquenta euros) para a realização de tal serviço, ao que acresceria 55€ por cada hora que ultrapassasse o período de 04 horas ajustado.
16)
Foi ainda acordado pelas partes que o serviço seria prestado pela 1ªR. durante o dia 22 de Maio de 2014, nas instalações da A., a partir das 14h00.
17)
No dia 22 de Maio de 2014, pelas 15h00, dando execução ao acordado, a 1ª R. colocou a sua grua junto ao camião onde estava a máquina e o operador da grua (funcionário da 1ª R.) iniciou as operações adequadas à descarga da máquina, designadamente a amarração e a fixação da máquina com os cabos da grua.
18)
No entanto, depois de a máquina ter sido erguida pela grua, pelo operador da 1ª R., a cerca de dois metros de altura, o cabo da grua partiu-se e a referida máquina caiu ao chão, com grande estrondo, e o gancho da grua ainda lhe caiu em cima;
19)
Perante a quebra do cabo da grua, a 1ªR. decidiu ir buscar uma outra grua para poder colocar a máquina no interior das instalações fabris da A.
20)
Passado pouco tempo, a 1ª R. disponibilizou uma outra grua e levantou a máquina do sítio onde ela se encontrava, após o cabo da 1ª grua ter partido, e colocou-a no interior das instalações fabris da A.
21)
A A. pagou o preço do serviço que contratou à 1ª R.
22)
A testemunha AA, representante da marca em Portugal, perante o sucedido, entrou de imediato em contacto com a empresa fornecedora italiana acerca do sinistro.
23)
Autora e 1ª ré fizeram uma análise ao módulo da máquina que caiu –módulo de fecho -, tendo a autora solicitado ao representante da marca – AA – uma avaliação dos danos e a 1ª ré uma análise às causas do sinistro;
24)
Segundo a avaliação a pedido da autora, considerou-se que, como consequência da queda sofrida, a módulo que caiu ficou danificado, com empenas e deformações nas seguintes peças/componentes, nas seguintes peças e componentes:
- nas protecções do grupo de fecho /abertura molde e controlo B&R2007.
- no armário eléctrico da zona traseira
- no grupo bancada, grupo fecho/abertura molde
- no grupo molde joelheiras e pratos/colunas
25)
Os danos sofridos provocaram um desequilíbrio estrutural na máquina, que impede o seu correto funcionamento, impossibilitando que a mesma máquina trabalhe de forma contínua, assinalando, uma vez ligada, vários erros de funcionamento, que interferem com a precisão que a máquina deveria ter;
26)
O custo das peças/componentes indicadas no orçamento de fls. 22 e que devido aos danos deveriam ser substituídas para a reparação do módulo, era, à data de 11-06-2014, o seguinte:
- protecções do grupo de fecho /abertura molde e controlo B&R2007 … 12.400€;
- armário eléctrico da zona traseira … 4.950€;
- grupo bancada, grupo fecho/abertura molde … 13.900€;
- grupo molde joelheiras e pratos/colunas … 110.900€;
27)
Na avaliação de fls. 22 e 23 foram também orçamentados custos com o serviço de desmontagem/montagem do material e que na mesma data ascendiam ao montante de 6.130€, e custos do transporte do material de substituição, que ascendiam a 12.000€.
28.º
Aos valores indicados, acresceria o IVA à taxa legal;
29)
Na mesma avaliação foi atribuído o valor de 38.000,00€ ao salvado, integrando este não apenas o módulo que caiu, mas também o outro módulo que não sofreu qualquer dano;
30)
Sem a substituição das peças do módulo de fecho (o que caiu) a fornecedora italiana da máquina e da marca Negri Bossi, não aceitaria conceder qualquer garantia, tendo, por comunicação enviada para autora através do seu representante em Portugal, em 16 de Junho de 2014, informado o seguinte (doc. de fls. 24-25 e tradução de fls. 425-427):
“(…)
Assunto: Prensa V 800 matrc. 161-152 (…)
Comunicamos-vos que a garantia contratual de 12 meses seguintes à data da entrega está caducada.
Esta garantia deixou de ser válida para todos os componentes concebidos pela Negri Bossi e para as peças sobresselentes do comércio.
As novas condições de garantia relativamente a essas componentes poderão ser redefinidas de acordo com as condições contratuais mencionadas na nossa confirmação da encomenda de peças sobresselentes só para os componentes que aceitarem substituir (6 meses a partir da montagem real).
(…)
As operações de substituição das peças, a recolocação em função e o teste da prensa apenas podem ser efectuados por nosso técnico autorizado. (…)
Agradecemos uma resposta
(…)”
31)
No dia 11.06.2014, a A. deu a conhecer à 1ªR. os resultados da peritagem que fez à máquina, isto é, a enumeração das peças que tinham ficado danificadas, a necessidade da sua substituição e os respetivos custos de substituição, que lhe foram indicados e reclamou-lhe o respetivo pagamento.
32)
No dia 17.06.2014, a A. deu a conhecer à 1ªR. os custos de transporte das peças que tinham de ser substituídas, que lhe foram indicados e reclamou da R. o respetivo pagamento.
33)
A 1ª ré respondeu e referiu à autora que a 2ªR. lhe tinha vendido o cabo da grua com um defeito e que isso é que tinha causado a rutura do mesmo.
34)
E que estava a tentar que a 2ªR. participasse no ressarcimento dos prejuízos sofridos, referindo que o ressarcimento dos danos resultantes da ruptura do cabo estaria coberto por um contrato de seguro de responsabilidade civil que a 2ªR. teria outorgado com a seguradora D..., com a apólice nº ...59, solicitando que a autora também reclamasse os prejuízos sofridos à essa companhia de seguros, para agilização da resolução do problema.
35)
Com esse contexto a autora enviou à Companhia de Seguros D... S. A., em 19-06-2014, a carta constante de fls. 26, cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido, comunicando os valores da substituição das peças danificadas, do transporte dos materiais e em alternativa o valor de uma máquina nova. Mais referiu que não aceitariam a reparação da máquina, mas apenas uma máquina nova no valor de € 315.000,00, acrescida de uma indemnização diária de € 800,00 pela paralisação, alegando que tinha encomendas para a laboração da máquina em causa, assim como os custos financeiros resultantes do recurso ao crédito bancário;
36)
Também no dia 19.06.2014, a A. enviou uma carta à 1ªR., por esta recebida no dia seguinte, com teor igual à carta enviada à interveniente principal (fls. 46)
37)
A Companhia de Seguros não assumiu o ressarcimento dos danos sofridos pela A.
38)
Entretanto, a 1ªR. comunicou à A. que tinha submetido o cabo danificado a uma peritagem e entregou à A. o relatório, constante de fls. 98 a 116, cujo conteúdo aqui se dá por reproduzido;
39)
Do relatório referido no artigo anterior e no seu resumo, consta:
“
Apresentam-se os resultados da análise das causas de fratura de cabo de aço, que apontam para a existência de esmagamentos (“mossas”) nos fios da camada interna do cabo, como causa da ruptura individual dos fios e consequentemente a ruptura extemporânea do cabo.
”
40)
Na parte relativa aos comentários e conclusões, consta (fls. 102):
COMENTÁRIOS
Da análise dos resultados obtidos foi possível concluir o seguinte:
·
De acordo com os ensaios realizados, o troço de cabo de aço analisado encontra--se de acordo com a especificação.
·
A análise visual ao cabo revelou a presença de esmagamentos (“mossas”) e fios fracturados nos cordões da camada interna do cabo.
·
As superfícies de fractura apresentam modos de fractura típicos de esforços de tracção nomeadamente em forma de cone-taça com estricção e a 45º.
·
A análise através de microscopia electrónica de varrimento realizada às superfícies de factura dos fios revelou a presença de dimples, característicos de uma ruptura dúctil.
·
O esforço de tracção a que os fios estão submetidos induz tensões de tracção e corte tal como os verificados. Numa situação somente de sobrecarga apenas se iriam observar superfícies de fractura do tipo cone-taça com estricção. Tal não se verifica, observando-se várias superfícies de fractura a 45º. Efectivamente, os esmagamentos (“mossas”) verificados nos fios acarretam uma diminuição da sua secção útil elevando as tensões a que estão sujeitos. Este desequilíbrio de forças induz esforços de corte sobre alguns fios que acabam por fracturar a 45º ficando os restantes em sobrecarga resultando na ruptura do cabo.
41)
Juntamente com o orçamento a 1ª ré enviou à autora as condições gerais com o conteúdo constante de fls. 71-72;
42.º Dessas condições gerais consta, no ponto 3.6 o seguinte, impresso em letra muito pequena e compacta:
“Responsabilidade do 2º Outorgante (Aluguer com e/ou sem operador da B...)
A B... não assume qualquer responsabilidade pelos danos directos e ou consequenciais ocasionados pela actividade do equipamento (…), causado por avarias provocadas por erro de indicação de manobra ou por o local de trabalho não ter condições de operacionalidade
. (…)
43)
E do Ponto 3.7, relativo a: Perdas e Danos:
“(…)
A B... não se responsabiliza por danos causados nas cargas movimentadas e/ou transportadas.
”
44)
Na resposta ao orçamento enviado e referindo-se a autora apenas ao orçamento, refere: “
Confirmado. CC aponte para as 15h de amanhã.
” (fls. 73).
45)
A máquina movimentada pela auto-grua da ré e pelo seu funcionário, logo após a sua elevação, a cerca de 1,20m/1,5m de altura, caiu por se ter fracturado o cabo de aço anti giratório que a suportava.
46)
O cabo de aço foi fornecido pela 2ª ré à 1ª ré no mês anterior à execução dos trabalhos em causa, concretamente no dia 4 de Abril de 2014;
47)
Tinha poucas horas de uso.
48)
A 2ª ré é fornecedora de cabos de aço anti giratórios à 1ª ré há muitos anos.
49)
A 1ª ré solicitou por email enviado à 2ª ré em 3-4-2014 preços para: 170mts Cabo aço anti giratório diam. 16mm e 165 mts Cabo aço anti giratório diam. 13mm (fls. 75);
50)
A 2ª ré forneceu um cabo de 13mm com uma classe de resistência do cordão superior à que consta do respectivo certificado (aceite e fls. 74 e 76)
51)
A grua escolhida pela 1ª ré para o serviço contratado pela autora era a indicada para o efeito;
52)
Cada queda de cabo na grua faz multiplicar a carga máxima admissível a que o cabo pode ser sujeito;
53)
Após a queda do módulo de fecho a autora utilizou a máquina de forma ocasional. A máquina foi projectada para trabalhar 24 h por dia num processo de aproveitamento e rentabilidade e até à data da realização da prova pericial, em Março de 2023, tinha laborado 3200 horas;
54)
À data do sinistro o módulo que caiu era reparável pela substituição das peças danificadas;
55)
Com o prolongar da situação e o decurso do tempo, à data em que foi realizada a prova pericial, em Março de 2023, a reparação do módulo não é viável. O modelo da máquina em causa é outro (com as mesmas funções) e algumas peças necessárias para a reparação foram descontinuadas. Não é possível a substituição de apenas o módulo afectado, por inexistência de garantias de que o novo modelo funcionaria com o módulo não afectado, constituindo os dois módulos, apesar de separáveis, duas peças de uma única máquina;
56)
A 2ª R. fornece os cabos que lhe são solicitados pelos seus clientes, com as especificações técnicas por estes requeridas, acompanhados do respectivo certificado de inspecção, de acordo com a Norma EN 10204:2004, o que ocorreu no caso em apreço (fls. 74, 76 e fls. 133)
57)
A 2ª R. desconhece qual a utilização que será feita pelo cliente, do cabo fornecido, ou seja, em que máquinas será utilizado, de que modo, durante quanto tempo ou quais as condições em que permanecerá armazenado;
58)
A 2ª R. desconhece em que equipamentos a 1ª R. pretendia utilizar o cabo comprado, não tendo recebido qualquer informação sobre a capacidade máxima de elevação da grua onde o cabo seria usado;
59)
Após a ocorrência do sinistro, a 2ª R. procedeu, através do seu serviço de controlo de qualidade, à análise do cabo em causa, tendo elaborado o Relatório de Investigação Laboratorial constante de fls. 134 a 138, com data de 27-08-2014;
60)
Do relatório referido no ponto anterior consta, de entre outras menções que: “(…)
o cabo apresenta uma carga de rotura real média de 112,9 kN a qual é 3,58% superior à carga de rotura mínima de 109,0 kN (especificada na norma EN 12385-4:2002 tabela 14 classe 18x7)
” (página 4 do relatório)
61)
O relatório do ISQ, junto pela 1ª ré, obtém valores de força de ruptura até superiores aos obtidos pela 2ª R, ou seja 117,65 e 114, 89 kN, (página 6 do relatório junto de fls. 98 e seguintes)
62)
Do relatório da 2ª ré constam as seguintes conclusões:
“
4. Discussão e Conclusão:
(…)
Da inspecção visual, metalúrgica e mecânica do cabo podemos tirar as seguintes conclusões:
a) Não foram detectados quaisquer defeitos de fabrico na amostra recebida do cliente. O cabo apresenta uma carga de rotura real média de 112,9 kN a qual é 3,58 % superior á carga de rotura mínima de 109,0 kN (especificada na Norma EN 12385-4:2002 tabela 14 classe 18x7). O diâmetro real do cabo respeita também as tolerâncias especificadas na mesma norma;
b) Da análise das fracturas dos arames podemos concluir que elas são do tipo “cup and cone” e que o cabo partiu em tracção. As fracturas dos arames ocorreram de um modo geral em zonas de deformação plástica (i.e., zonas em que os arames estão demasiado marcados e deslocados das suas posições originais, devido a pressões laterais) o que indicia a ocorrência de um incidente (provavelmente esmagamento), durante a utilização do cabo, que o tenha danificado na e junto da zona de rotura. É evidente a existência de arames danificados mecanicamente na zona de rotura (tal como pode ser visto na Fotografia nº 4);
c) Tendo o cabo uma carga de rotura mínima (MBL) de 109 kN (11115 kgf) e tendo sido o cabo utilizado numa grua com um factor de segurança de 5 para 1 isto significa que a carga útil de trabalho (SWL) é de 21,8 kN (2223 kgf). Tendo sido elevada uma carga de 23 toneladas (226,0 kN) e tendo sido usado um cadernal com 7 quedas de cabo, isto significa que a carga a que o cabo foi sujeito foi de 32,3 kN (3294 kgf) que é muito superior á carga útil de trabalho do cabo (SWL). Durante a utilização do cabo nas condições acima descritas, o mesmo esteve sujeito a um factor de segurança de 1 para 3,4.
Sendo o SWL do cabo igual a 21,8 kN (2223 kgf) e tendo sido usado um cadernal com 7 quedas, a carga máxima admissível a que o cabo deveria ter sido sujeito é de 15,54 toneladas, o que significa que 23 toneladas ultrapassa largamente este valor;
d) O facto do cabo ter sido danificado durante a sua utilização contribuiu ainda mais para que este tivesse ainda menos capacidade de resistência às forças de tracção a que foi sujeito.
”
63)
O cabo partiu porque foi danificado antes ou durante a sua utilização, por isso é que os arames se encontravam muito esmagados e partiram na zona de ruptura;
64)
Os “esmagamentos (“mossas”) na camada interna do cabo, que se encontram ao longo de toda a sua extensão, resultam do processo de fabrico do cabo e não constituem defeitos do cabo.
65)
O cabo é composto por uma madre, no centro e 18 cordões com 7 fios cada um à volta, dispostos em duas camadas sobrepostas, uma com 6 cordões e outra com 12 cordões;
66)
Durante o processo de fabrico de um cabo de aço e durante a operação de cocha (fecho do cabo), ocorrem alguns pontos de deformação plástica ou permanente nas zonas de contacto entre arames de cordões exteriores adjacentes e entre cordões exteriores e os cordões da alma ou madre.
67)
Estas deformações devem-se à pressão exercida pelos cordões exteriores sobre a alma durante a sua passagem pelo tubo de bitola, pelos rolos de aperto e pelos pós-formadores.
68)
A camada exterior do cabo e a alma não têm o mesmo sentido de torção nem têm passos iguais, portanto estes pontos de contacto existem;
69)
Esses esmagamentos não diminuem a capacidade do cabo;
70)
No Relatório do ISQ pode ler-se que “as superfícies de fractura de diferentes fios foram analisadas tendo-se observado essencialmente fracturas a 45º e fracturas do tipo cone com estricção evidente” (página 4/19 do relatório de fls. 98 e seguintes).
71)
As fracturas por corte a 45º são características e frequentemente observadas em casos de mera sobrecarga do cabo resultando de combinações de cargas axiais elevadas com a compressão perpendicular dos cordões que surge quando o cabo diminui de diâmetro ao ser esticado devido à sobrecarga axial.
72)
Os esmagamentos/mossas da parte interna dos cordões que constituem o cabo, não contribui para a fraqueza do cabo, que manteve todas as suas propriedades.
73)
Com data de 26/06/2012, a Interveniente D... celebrou com a B..., Lda., 1ª Ré, o contrato de seguro titulado pela apólice nº ...27 e destinado a cobrir o risco decorrente da actividade de aluguer de equipamento de construção e demolição com operador/condutor para trabalhos ou obras de construção civil, garantindo a responsabilidade civil extracontratual por danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes de lesões corporais e/ou materiais que sejam causados a terceiros, pelos legítimos representantes ou pessoas ao serviço e pelas quais o Segurado seja civilmente responsável de harmonia com o Capitulo I e II das Condições Particulares e com as Condições Gerais, durante a laboração, montagem ou desmontagem das máquinas identificadas na Parte I das Condições Particulares da Apólice, ou seja, dos equipamentos de construção civil (contrato de fls. 215 a 238)
74)
Consta da cláusula 1ª das condições especiais, sob a epígrafe: “Âmbito de Cobertura que:
1. A seguradora garante as indemnizações por danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes de lesões corporais e/ou materiais que sejam causados a terceiros e a clientes, pelos legítimos representantes ou pessoas ao serviço e pelas quais o Segurado seja civilmente responsável de harmonia com o Capitulo I e II das Condições Particulares e com as Condições Gerais.
Este contrato tem por objecto a garantia da responsabilidade extracontratual que ao abrigo da lei civil seja imputável ao Segurado durante a laboração, montagem ou desmontagem das máquinas identificadas na Parte I das Condições Particulares da Apólice
” (fls. 220)
75)
De acordo com o Capitulo I das condições particulares o risco seguro consista na: “Actividade: Aluguer de maquinaria com pessoal. Declara-se que a alínea c) da cláusula 2 Exclusões, fica derrogada e sem nenhuma aplicação na presente apólice” (fls. 217):
RISCO SEGURO Actividade:
Aluguer de maquinaria com pessoal
Declara-se que a alínea c) do nº7, da Cláusula 2EXCLUSÕES fica
derrogada e sem nenhuma aplicabilidade na presente apólice
76)
A cláusula 2 das exclusões, n.º 7, al. c) tem o seguinte conteúdo:
“
Não se encontram abrangidos pelas coberturas deste contrato os danos: Causados a trabalhos e bens de Empreiteiros e/ou Subempreiteiros que se encontrem a trabalhar no mesmo local e para o mesmo Dono de Obra.
”
77)
“Características sobre o risco”:
“
Actividade da empresa: empresa de aluguer de equipamentos de construção e demolição com operador/condutor; efectuam trabalhos em obras de construção civil, obras públicas e privadas.
” (fls. 218)
78)
Franquia: 10% por sinistro com um mínimo de € 500,00 (fls. 218).
79)
Nos termos da Cláusula 2ª das Condições Especiais do contrato de seguro outorgado com a 1ª ré, estão excluídos das garantias (da cobertura do contrato), entre outros:
“
Cláusula 2.ª Exclusões
1. Ficam absolutamente excluídos das garantias deste contrato os danos:
a) Decorrentes de actos ou omissões dolosas do Segurado ou de pessoas por quem este seja civilmente responsável ou das pessoas cuja responsabilidade seja garantida por estaApólice, bem como os actos ou omissões que constituem violação dolosa de normas ou regulamentos e quaisquer multas ou coimas.
Entende- se por acto doloso, todo o acto intencional praticado com o intuito de produzir dano ou com representação da possibilidade desse resultado;
b) Decorrentes de acidentes provocados por veículos que, nos termos da legislação em vigor, sejam obrigados a seguro;
(…)
2. Ficam excluídos das garantias deste contrato os danos:
(…)
h) Decorrentes de reclamações baseadas em perdas financeiras, nomeadamente, lucros cessantes, impossibilidade do exercício normal da actividade, suspensão e/ou interrupção, não cumprimento de prazos estabelecidos, redução do volume de vendas, perdas de imagem e/ou quotas de mercado de terceiros;
(…)
j) Decorrentes do não cumprimento de normas legais ou regulamentares, ou dos usos próprios da actividade bem como da não adopção das medidas de segurança aconselháveis;
(…)
l) Perdas financeiras puras entendendo-se como tal as perdas económicas ou financeiras sem concorrência de danos materiais e/ou corporais, nomeadamente paralisação total ou parcial da actividade, causados a terceiros;
(…)
n) Que sejam imputáveis a entidades alheias ao Segurado.
(…)
t) Resultantes de defeitos ou ineficácia de produtos utilizados pelo Segurado no exercício da sua actividade.
(…)
7. Não se encontram abrangidos pelas coberturas deste contrato os danos:
a) Causados a quaisquer bens ou objectos de terceiros que estejam confiados ao Segurado para guarda, utilização, trabalho ou outro fim;
(…)
15. Não se garante neste contrato os danos resultantes de Responsabilidade Civil Profissional
” (fls. 221 a 225)
80)
Em 22 de Maio de 2014, o contrato encontrava-se em vigor;
81)
Em 30/06/2013, a Interveniente D... celebrou com a 2ª ré um contrato de seguro de responsabilidade civil titulado pela apólice nº ...59, destinado a cobrir o risco decorrente da actividade de fabricação de cordoaria, tendo por objecto a garantia da responsabilidade extracontratual que ao abrigo da lei civil seja imputável ao Segurado em consequência da actividade de fabrico, identificada na Parte I das Condições Particulares da Apólice, garantindo, assim, as indemnizações por danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes de lesões corporais e/ou materiais que sejam causados a terceiros e a clientes, pelos legítimos representantes ou pessoas ao serviço e pelas quais o Segurado seja civilmente responsável de harmonia com o Capitulo I e II das Condições Particulares e com as Condições Gerais constantes do contrato junto aos autos de fls. 244 a 262
82)
Em 22 de Maio de 2014, o contrato encontrava-se em vigor;
83)
Nos termos da Cláusula 1ª do Capítulo II – Condições Especiais -, o contrato de seguro titulado pela apólice nº ...59, outorgado com a 2ª ré, tem por objecto a responsabilidade civil do SEGURADO, também tomador do seguro, com garantias de exploração e de produtos, decorrente de “fabricação de cordoaria” (fls. 244 a 263)
84)
De acordo com o disposto na Cláusula 2ª das condições Especiais da Apólice, “(…)
2. Ficam excluídos das garantias deste contrato os danos:
a) Causados pelas obras, trabalhos, prestação de serviços, produtos e suas embalagens produzidos e/ou armazenados e/ou fornecidos pelo Segurado, se as reclamações forem motivadas por erro, omissão ou vício oculto que se revelem somente após a recepção expressa ou tácita dos referidos bens, produtos ou serviços;
(…)
h) Decorrentes do não cumprimento de normas legais ou regulamentares, ou dos usos próprios da actividade bem como da não adopção das medidas de segurança aconselháveis;
(…)
j) Perdas financeiras puras entendendo-se como tal as perdas económicas ou financeiras sem concorrência de danos materiais e/ou corporais, nomeadamente paralisação total ou parcial da actividade, causados a terceiros;
(…)
q) Resultantes de defeitos ou ineficácia de produtos utilizados pelo Segurado no exercício da sua actividade;
(…)
11. Ficam excluídos os custos ocasionados a terceiros e clientes pela substituição de produtos defeituosos do Segurado incorporados ou montados em outros bens.
” (fls. 250 a 252)
85)
Nos termos da Cláusula 6ª das Condições Especiais da apólice, exclusões específicas da cobertura de responsabilidade civil produtos, em que:
“
Não ficam garantidos, em caso algum, mesmo que se tenha verificado a ocorrência de qualquer risco coberto pelo presente contrato, os prejuízos que derivem directa ou indirectamente de:
a) Os produtos não se adequarem à função ou ao propósito enunciado pelo Segurado.
b) Inobservância das instruções de consumo ou utilização dos produtos;
(…)
f) Causados por produtos cujo defeito não era possível detectar quando da sua colocação em circulação, atendendo ao estado dos conhecimentos científicos e técnicos nesse momento;
” (fls. 253)
86)
Após a participação do sinistro pela 2.ª Ré, a Interveniente solicitou a uma entidade terceira - “F... – Consultores de Engenharia e Gestão” – a averiguação das causas do sinistro relatado nos autos e dos danos invocados, tendo-lhe sido entregue o relatório constante autos de fls. 266 a 290, com data de Junho de 2024, empresa que na sua análise, teve acesso aos dois relatórios elaborados pelas 2ª e 3ª rés;
87)
De acordo com o referido relatório e no ponto 5.1.1 com a identificação de “Antecedentes” (páginas 274 e 275), é mencionado:
“(…)
Em 03/04/2014 o SEGURADO recebeu do seu cliente B... uma consulta por email (…) com pedido de preço para os seguintes dois tipos de cabos sem mais qualquer especificação:
- 170 m de cabo antigiratório de aço diâmetro 16 mm
- 165 m de cabo antigiratório de aço diâmetro 13 mm
O SEGURADO respondeu nesse mesmo dia e forneceu preço para os ditos cabos seleccionando os do tipo 18x7-CWS em aço galvanizado da classe/resistência 1960 N/mm² por, segundo informou a F..., ser o que fornece com maior frequência (…)
A nota de confirmação de venda refere:
170m de cabo antigiratório em aço galvanizado (GB) de 16,0 mm de diâmetro nominal, 18x7 CWS, da classe de resistência 1960 N/mm², ao preço de 474,30€ + IVA
165m de cabo antigiratório em aço galvanizado (GB) de 13,0 mm de diâmetro nominal, 18x7 CWS, da classe de resistência 1960 N/mm², ao preço de 460,35€ + IVA
(…) a B... aceitou e enviou ao SEGURADO uma nota de encomenda com as mesmas especificações que indicara inicialmente mas acrescentando o preço e a referência interna (referência B...) da grua a que cada cabo se destinava:
170 m de cabo antigiratório de aço diâmetro 16 mm – grua 17, ao preço de 474,30€ + IVA
165 m de cabo antigiratório de aço diâmetro 13 mm – grua 21, ao preço de 460,35€ + IVA
(…)
O fornecimento aconteceu no dia seguinte 04/04/2014 e foi facturado na mesma altura pelo SEGURADO com a factura a referir as mesmas especificações que a nota de confirmação de venda anteriormente enviada.
De salientar contudo que o certificado de inspecção do cabo de 13,0 mm de diâmetro fornecido inicialmente pelo SEGURADO (…) e por lapso deste, não correspondia à qualidade do aço do cabo fornecido já que referia a classe de resistência 1770 N/mm² ao invés de 1960 N/mm² conforme tinha sido proposto e facturado (esta situação foi detectada aquando da análise do cabo realizada posteriormente pelo ISQ após o incidente).
O SEGURADO veio a corrigir posteriormente essa situação emitindo outro certificado onde a classe de resistência era 1960 N/mm² (posteriormente comprovou-se que esta era de facto a classe de resistência do cabo, designadamente aquando dos testes de rotura a amostras desse cabo realizados pelo ISQ após o incidente)
88)
Do mesmo relatório e após ter procedido a uma análise dos dois relatórios efectuados a pedido das duas rés, e no segmento com o título “Conclusões da F...” (páginas 284 e seguintes), consta, de entre outras menções, que:
“(…)
O SEGURADO vendeu à B... cabo de aço 18x7 CWS, sZ, GB, 13 mm de diâmetro, da classe de resistência 1960 (…) apesar de inicialmente ter enviado um certificado de inspecção do cabo que o dava erradamente como sendo da classe 1770.
Esta situação foi detectada pelo ISQ aquando da investigação que realizou. O SEGURADO substituiu o certificado fornecido inicialmente alterando apenas a classe de 1770 para 1960.
Os diversos ensaios de rotura à tracção realizados pelo ISQ sobre amostras desse cabo, assim como os ensaios semelhantes realizados pela 2ª Ré sobre as amostras da bobine original de onde o cabo foi retirado (bobine também com certificado da classe 1960), vieram a comprovar que a carga de ruptura do cabo fornecido à 1ª Ré estava (…) de acordo com o especificado para a classe 1960. (…)
• A inspecção das diversas amostras do cabo, quer as realizadas pelo ISQ, quer as realizadas pela 2ª Ré, com o intuito de verificar a sua composição, geometria e dimensões, deram como resultado que o mesmo cabo estava de acordo com o especificado na norma aplicável EN12385 e em conformidade com o certificado fornecido pela 2ª Ré;
• (…) todos os ensaios de rotura à tracção que foram realizados, quer aqueles levados a cabo pelo ISQ sobre amostras retiradas do cabo fornecido à B..., quer aqueles levados a cabo pelo SEGURADO sobre amostras retiradas da bobine proveniente do fabricante onde foi cortado o cabo fornecido à B..., deram que a carga de rotura do cabo à tracção estava conforme o especificado para a classe 1960 de acordo com a norma aplicável EN12385 ou seja, e no caso deste cabo em concreto com 13 mm de diâmetro, que a carga de rotura mínima (MBL) obtida foi sempre superior a 112kN e portanto superior ao mínimo que a norma dita de 109kN.
“
89)
Mais consta:
“(…) o cabo em questão é constituído por 18 cordões distribuídos por duas camadas, uma exterior com 12 cordões e outra interior com 6 cordões e ainda por um cordão adicional a servir de alma no centro do cabo. (…) cada cordão da camada exterior e da interior é por sua vez constituído por 7 arames. (…) para efeito de mera estimativa da avaliação do referido impacto das mossas/esmagamentos considere-se por mera hipótese e por excesso que 25% dos 7 arames de cada um dos 6 cordões da camada interna tinham essas mossas/esmagamentos e que cada mossa/esmagamento não reduzia, mas anulava por completo a resistência do respectivo fio como se este estivesse já cortado. Desprezando a contribuição da alma, restava um cabo com cerca de 115 arames intactos ao invés dos 126 originais. Sendo todos os arames idênticos, admite-se para efeito desta estimativa que a hipótese acima acarretaria uma redução de cerca de 9% na força mínima de rotura do cabo que nessa condição danificado passaria dos cerca de 112kN para cerca de 102kN (…)
Ora, e sem contar com o obrigatório factor de segurança de 5 na utilização do cabo, estando a grua a operar com 7 quedas no cabo, a capacidade de carga proporcionada pelo cabo à grua mesmo com o cabo na condição danificado seria ainda de cerca de 70 toneladas (ao invés das cerca de 77 toneladas na condição de não danificado) muito superior à capacidade da própria grua (40 toneladas) e ao peso da carga que estava a ser movimentada de cerca de 24 toneladas.
Deste modo não se considera que a causa na origem do sucedido tenham sido as ditas mossas/esmagamentos, tendo necessariamente de ter havido outros factores a causar o sucedido os quais são certamente externos ao cabo tal como este foi fornecido pelo SEGURADO à B....
A estimativa ou simulação acima não retira contudo a necessidade de na utilização de auto grua com cabos para movimentar cargas se ter em devida conta os factores de segurança de acordo
com a legislação
(…)
Para o caso em análise e relativamente à carga de rotura (MBL) do cabo que é 109kN é especificado um factor de segurança de 5 ou seja a carga útil de trabalho (SWL) desse cabo e portanto a força máxima a que deve ser sujeito durante a utilização é de 21,8kN. Relativamente a esta situação, à qual o relatório do ISQ é omisso, confirma-se o descrito pelo SEGURADO de que tendo sido usado pela B... um cadernal com 7 quedas de cabo a carga útil de trabalho e portanto o máximo a que em condições de segurança o cabo deveria ter sido sujeito era de 15,54 toneladas o que significa que ao movimentar uma carga com 23,7 toneladas estava a exceder em cerca de 52% aquele limite de segurança.
(…)embora não seja este incumprimento das normas de segurança pela B... que explique cabalmente o motivo pelo qual o cabo rompeu (…) é pertinente concluir que a probabilidade do cabo romper era inferior se o factor de segurança preconizado tivesse sido assegurado até porque o objectivo da utilização deste tipo de factores de segurança é precisamente lidar com a incerteza e o risco associados a este tipo de trabalho.
“
90)
Conclui-se no relatório que as mossas/esmagamentos na parte que originalmente estivessem presentes quando o cabo foi fornecido, não correspondem a defeitos ou pelo menos a situações com impacto na segurança do produto final, acrescentando que tal conclusão é atestado pelos resultados dos ensaios realizados de acordo com as normas aplicáveis, e já mesmo os realizados após o incidente, que atestam por completo a conformidade desse produto em matéria de resistência.
91)
As fracturas do cabo não resultam do seu processo de fabrico e/ou a uma alegada falta de qualidade do cabo, mas resultaram das condições em que o mesmo foi utilizado e do que ocorreu durante a sua utilização (relatório de fls. 266 e seguintes)
92)
Na sequência dos ensaios e seus resultados, refere-se no relatório que: “
pelos resultados dos ensaios de rotura do cabo à tracção que acompanham o mesmo quando este é fornecido na condição de novo (e que forneceram valores idênticos aos dos ensaios realizados já após o incidente), as (…)mossas/esmagamentos na parte que originalmente pudesse logo estar presente quando o cabo foi fornecido não podem ser consideradas defeitos nem situações com impacto na segurança do produto tal como fornecido/vendido pois são os próprios resultados dos ensaios realizados de acordo com as normas aplicáveis, e já mesmo os realizados após o incidente, que atestam por completo a conformidade desse produto em matéria de resistência.
Por todos os motivos acima, é-se também do mesmo parecer que o SEGURADO quanto às patologias observadas no cabo precisamente na zona onde este rompeu e mais precisamente às deformações plásticas mais pronunciadas incluindo fracturas, ou seja, de que nada indica que estas estejam associadas ao processo de fabrico e/ou a uma alegada falta de qualidade do cabo mas sim, pelo contrário, a situações resultantes das condições em que foi utilizado e do que possa ter acontecido durante essa utilização e relativamente às quais não se dispõe de informação para conseguir precisar a não ser a já conhecida e referida utilização que estava a ser feita no momento do incidente onde não estava a ser respeitado o factor de segurança para limitação da carga útil de trabalho, situação que em qualquer dos casos não é suficiente para explicar a rotura do cabo porque mesmo nessas condições a força a que esta estaria sujeito sem se terem registado quaisquer outros imprevistos era inferior à necessária para romper o cabo
.
93)
Para concluir e no ponto 5.22 (Segmento: Responsabilidades):
“(…)
relativas às causas do sucedido (…) não está demonstrado (…) que a ruptura do cabo se deveu a uma alegada falta de qualidade do mesmo (…)
94)
Em relação a contrato de seguro outorgado pela autora e a Companhia de Seguros H..., não foi participado qualquer sinistro ao abrigo do referido contrato (fls. 479 a 489);
95)
O contrato de mútuo outorgado entre a autora e a Banco 1... foi integralmente cumprido pela autora (informação do banco de fls. 497 a 506);
96)
O preço de venda de uma máquina nova, com funções semelhantes à adquirida pela autora em 2014, em Março de 2023, se for adquirida ao representante da marca em Portugal, corresponde pelo menos ao valor de 530.000,00€, ao qual acrescerá o IVA à taxa legal, preço no qual está incluído o serviço de desmontagem e montagem de material, deslocação e estadia ao qual acrescerá o IVA à taxa legal, orçamento constante de fls. 626 e seguintes, conjugado com o orçamento, da mesma empresa, mas de 2022, onde estão descriminadas as despesas (fls. 549 a 554)
97)
No preço mencionado no ponto anterior está incluída a venda de um robot, denominado “interface robô euromap 67 FO”, que não integrava a compra realizada pela autora em 2014;
98)
O preço de venda das peças/componentes, identificada no ponto 24º, em Março de 2022, corresponderia a um valor de pelo menos:
- protecções do grupo de fecho /abertura molde e controlo B&R2007, 21.169€, ao qual acrescerá o IVA à taxa legal;
- armário eléctrico da zona traseira, 11.925€, ao qual acrescerá o IVA à taxa legal;
- grupo bancada, grupo fecho/abertura molde, 21.324€, ao qual acrescerá o IVA à taxa legal;
- grupo molde joelheiras e pratos/colunas, 177.100€, ao qual acrescerá o IVA à taxa legal;
- serviço de estadia, desmontagem e montagem e deslocações, € 13.110,00 (fls. 594)
99)
Por sua vez, o preço de uma máquina nova semelhante à adquirida pela autora em 2014 e com as mesmas funções, mas fornecida directamente pelo fabricante em Itália, ficaria, em 2022, pelo preço orçamentado de € 333.500,00 sem IVA, preço que inclui entrega e descarga, sem o robot;
100)
Para além dos danos já mencionados, como consequência da queda do módulo e fecho, este ficou com os seguintes danos:
(relatório pericial de fls. 588 e seguintes)
101)
Em 2023 não é possível a reparação desse módulo na medida em que:
(relatório pericial de fls. 588 e seguintes)
102)
Após a queda em 2014 foram efecuados pequenos arranjos e substituídas pequenas peças para permitir um funcionamento residual (depoimento das testemunhas AA e DD);
103)
No entanto, devido aos vários problemas que apresenta não garante a precisão que lhe era exigida nem é fiável;
(relatório de fls. 588 e seguintes)
104)
Apesar dessas pequenas reparações, a máquina apresenta um mau funcionamento, não fiável e sem precisão na medida em que:
(relatório de fls. 588 e seguintes)
105)
O uso da máquina, ainda que residual, não agravou os danos:
(relatório de fls. 588 e seguintes)
*
Por outro lado, a primeira instância julgou não provados os seguintes factos:
Da Petição Inicial
34º
36º: provado apenas que consta do documento de fls. 23.
Da contestação da 1ª ré B...
5.º
14º
74º:
37º
49.º Não provado que: a auto grua foi manobrada pelo funcionário da 1ª ré sob orientação efectiva da autora.
56.º e 57º
63º
68.º De acordo com o certificado de fls. 76 o cabo deveria aguentar, em condições normais a 11,11 toneladas por cada queda de cabo (carga de ruptura mínima)
83.º
84:
86º
Da contestação da 2ª ré, E..., S. A.
7. A máquina em causa nestes autos foi objecto de reparação, sob a supervisão do fornecedor;
*
FUNDAMENTAÇÃO.
1) Sobre a apreciação do parecer técnico apresentado com o recurso.
Juntamente com o recurso, veio a recorrente proceder à junção de parecer técnico, que designou como parecer INEGI, elaborado pelo Professor Doutor EE e pelo Engenheiro FF, invocando o disposto no art. 426.º do CPC.
Nas respostas, pugnou-se pela desconsideração de tal documento.
Na primeira instância, foi decidida a admissão do documento.
A este Tribunal da Relação do Porto cumpre, muito naturalmente, decidir sobre se tal documento deve ou não ser apreciado em sede de impugnação.
Nos termos daquele preceito legal,
os pareceres de advogados, professores ou técnicos podem ser juntos, nos tribunais de 1.ª instância, em qualquer estado do processo
.
Todavia, como salienta a doutrina, a referida junção de pareceres em qualquer estado do processo e em primeira instância “tem como limite a prolação da sentença, a não ser, quanto aos pareceres de jurisconsultos, que seja interposto recurso, caso em que a junção pode ser feita dentro do limite fixado no art. 651.º, nº2” (cfr. A. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e L. Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, p. 502).
De modo que, quando se refere à possibilidade de junção em
qualquer estado do processo
, a referida norma legal pretende referir-se ao pressuposto essencial de não ter sido concluída ainda a discussão da causa em primeira instância.
Na verdade, a questão da atendibilidade dos pareceres juntos com o recurso é regida, não pela regra do art. 426.º do CPC, mas pela disposição especial prevista para a fase recursiva no art. 651.º daquele diploma.
E que, a título excepcional, apenas admite os documentos cuja apresentação não tenha sido possível em momento anterior (primeira parte do art. 651.º/1), ou cuja junção se tenha tornado necessária por força do julgamento (segunda parte do art. 651.º/1), ou quando se trate de pareceres de jurisconsultos (art. 651.º/2).
Ora, nenhuma dessas circunstâncias está presente ou foi sequer alegada pela recorrente no que toca ao parecer técnico em questão.
Acresce, no mesmo sentido, que o tribunal de segunda instância não é a sede própria para a apresentação pela primeira vez de meios de prova.
Com efeito, como resulta lapidar do disposto no art. 410.º e segs. do Código de Processo Civil, é na primeira instância que a fase da instrução do processo, com a inerente produção de prova, tem lugar. À Relação, como emerge das disposições conjugadas dos arts. 640.º e 662.º do mesmo diploma, compete apenas, se for caso disso, reapreciar e modificar a decisão de facto.
As expressões relativas à
impugnação
da decisão sobre a matéria de facto, à
alteração
dessa decisão ou à
renovação
da prova são empregues, nos citados preceitos legais, com o sentido comum e pressupõem, como parece evidente, que o local próprio para a produção de prova é a primeira instância.
Não basta, por isso, como sucede no caso dos autos, que o documento tenha sido elaborado depois do encerramento da discussão em primeira instância; é necessário que a sua elaboração não tenha sido possível em momento anterior.
O que, no caso dos autos, está claramente inviabilizado, já que durante a instrução do processo prévia à sentença recorrida foram produzidos três pareceres técnicos relativos à causa da quebra do cabo, pelo que, para além de a questão ter sido amplamente debatida em primeira instância, não faltaram oportunidades para que a 1.ª ré ali tivesse diligenciado pela elaboração de tal parecer.
Como não o fez, impediu que na fase própria da instrução e julgamento da matéria de facto, o documento agora apresentado fosse objecto de análise, discussão e contradição com outros meios de prova.
Da mesma forma, em face da intensa discussão em primeira instância sobre a origem da ruptura do cabo, tem de recusar-se ao parecer o epíteto de documento cuja necessidade se revelou “em função da sentença proferida, o que pode justificar-se pela imprevisibilidade do resultado (
v. g.
quando a sentença se baseia em meio probatório não oferecido pelas partes ou quando se funde em regra de direito com cuja aplicação ou interpretação as partes não contavam)” (cfr. A. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e L. Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Ob. loc. cit.).
Não ocorreu, pois, qualquer resultado surpreendente na decisão do pleito.
E porque, em último lugar, não está em causa um parecer de jurisconsulto, deve concluir-se pela falta de verificação de qualquer das hipóteses que, previstas no art. 651.º/1 e 2 do CPC, poderiam legitimar a apreciação do documento em segunda instância.
Donde resulta que o parecer em causa terá de ser desconsiderado nesta fase, o que se decide.
*
2) Sobre os requisitos da impugnação da matéria de facto.
Como se sabe, a admissibilidade do recurso em matéria de facto depende do cumprimento de alguns ónus.
De acordo com o disposto no artigo 640.º/1 do Código de Processo Civil, é imposto ao recorrente que especifique:
a
) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas
Enquanto o número 2 prevê que
quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes
.
Por outro lado, nos termos do art. 663.º/2 do CPC,
o acórdão principia pelo relatório, em que se enunciam sucintamente as questões a decidir no recurso, expõe de seguida os fundamentos e conclui pela decisão, observando-se, na parte aplicável, o preceituado nos artigos 607.º a 612.º
.
Ao passo que, segundo o disposto no art. 607.º do mesmo diploma legal, deve
o juiz discriminar os factos que considera provados
(nº3), toma ainda
em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito,
compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência
(nº4), de acordo com o princípio geral de que
aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto
, sem prejuízo dos casos em que a lei submete a prova dos factos a exigências especiais e dos factos que estão já assentes
(nº5).
Finalmente, dispõe o art. 662º/1 que
a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa
.
Relativamente às exigências previstas no art. 640.º do Código de Processo Civil, para a admissibilidade da impugnação factual, a análise do recurso evidencia, segundo entendemos, face às conclusões e demais alegações, que a recorrente cumpriu satisfatoriamente o regime legal.
Desde logo, descreveu os concretos pontos de facto que, a seu ver, foram incorretamente julgados provados e não provados, acima identificados nas alíneas a), b) e c) do objecto do recurso.
Para além disso, a recorrente indicou suficientemente os concretos meios probatórios que, na sua óptica, justificam outra decisão para a factualidade cuja resposta censurou: os relatórios técnicos que apresentou (com a contestação e com o recurso), em oposição aos pareceres oferecidos pela 2.ª ré (E... e pela interveniente (Companhia de Seguros D...), os depoimentos das testemunhas do ISQ (GG e HH), as declarações prestadas por AA e o documento n.º 6 da petição inicial.
Aos quais cumpre aditar, em atenção à resposta ao recurso da 2.ª ré, a inquirição de BB e, face à estreita conexão com parte dos factos questionados e com os meios probatórios indicados, o relatório e os esclarecimentos periciais prestados na última sessão do julgamento.
Acresce a demais prova documental referida nas conclusões do recurso (o orçamento com relatório pericial, de 21/03/2023, onde consta que a máquina cotada é uma NEGRI BOSSI VECTOR ST 800/7460 com a referência DTM0161005, com o preço 530.000,00 Eur, e, com requerimento da recorrente, de 17/04/2023, refª citius 14446754, o orçamento de 7/05/2022, onde consta que a máquina cotada é uma NEGRI BOSSI VECTOR ST 800/7460 com a referência DTM0161005, com o preço de 333.500 Eur.), bem assim, as máximas de experiência comum.
Por fim, a recorrente mencionou a resposta que considera adequada, em face da forma como analisou a prova, para aquela factualidade.
É certo que a impugnação incidiu em bloco sobre quatro conjuntos de pontos de facto, relativos a: i) classe de resistência do cabo fornecido pela 2.ª à 1.ª ré; ii) defeito de fabrico como causa da rutura do cabo; iii) reparação vs substituição do módulo sinistrado e iv) valor da reparação/substituição do módulo sinistrado.
Todavia, não obstante a impugnação conjunta, a verdade é que a matéria impugnada está indissociavelmente ligada entre si e a sua apreciação global tem respaldo nos mesmos meios de prova, o que satisfaz à exigência legal para a admissibilidade da impugnação factual deduzida.
Neste sentido, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça que “tendo em conta os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade ínsitos no conceito de processo equitativo (artigo 20.º, n.º 4, da CRP), nada obsta a que a impugnação da matéria de facto seja efetuada por “blocos de factos”, quando os pontos integrantes de cada um desses blocos apresentem entre si evidente conexão e, para além disso - tendo em conta as circunstâncias do caso concreto, nomeadamente, o número de factos impugnados e a extensão e conexão dos meios de prova - o conteúdo da impugnação seja perfeitamente compreensível pela parte contrária e pelo tribunal” (cfr. Acórdão de 1/6/2022, relatado por Mário Belo Morgado, no processo nº1104/18.9T8LMG, e disponível na base de dados da Dgsi em linha).
Deve concluir-se, assim, que foi validamente deduzida, em conformidade com o disposto no art. 640.º do CPC, a impugnação à matéria de facto.
Como refere a melhor doutrina, importa apreciar os requisitos formais da impugnação da matéria de facto, de modo a passar à apreciação do respectivo mérito, de acordo com os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, tendo presente “a atribuição à Relação de efetivos poderes de sindicância da decisão da matéria de facto, como instrumento de realização da justiça” e a circunstância de constituir “um Tribunal de 2.ª instância, a quem incumbe a reapreciação da decisão da matéria de facto proferida pela instância hierarquicamente inferior” (A. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7.ª ed., pp. 202-3).
Devendo ainda destacar-se que a exigência da especificação dos pontos de facto concretos impugnados tem por função delimitar o objecto do recurso, em conformidade com o princípio do dispositivo e como garantia de cumprimento do contraditório, para o qual contribui ainda a indicação dos meios probatórios convocados, nesta incluindo as passagens de gravação dos depoimentos.
Ao mesmo tempo, esta menção serve ainda para definir inicialmente a amplitude com que o tribunal de recurso deve reapreciar a prova, sem prejuízo do seu poder inquisitório sobre todos os meios probatórios disponíveis e que possa julgar relevantes para o efeito.
Estão em causa, paralelamente, exigências que constituem manifestação da ideia de que a impugnação traduz um pedido de reapreciação dos factos que deve transmitir de imediato algum nível de viabilidade, suficiente para justificar uma análise de mérito em segunda instância e que, como se disse, pode inclusivamente abranger toda a prova.
De maneira que o cumprimento das exigências impostas pelo legislador a este respeito tem como propósito o de esclarecer devidamente, ao tribunal e à contraparte, o âmbito da impugnação, não a dificultando excessivamente, por um lado e, por outro, escapar a um juízo de indeferimento liminar.
Segundo entendemos, tais requisitos formais mostram-se preenchidos no presente recurso, do mesmo modo que as conclusões da recorrente, conjugadas com as restantes alegações, cumpriram as exigências indispensáveis para, em observância do dispositivo e do contraditório, delimitar claramente o objecto do recurso e esclarecer bem, ao juiz e à contraparte, os motivos da discordância face à decisão proferida em primeira instância.
Em consequência, passa a recair sobre este Tribunal da Relação o dever de, na apreciação dos factos, analisar
criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais
, bem assim, compatibilizar
toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência
(nº4 do art. 607.º do CPC).
Subordinando a sua actuação ao princípio da livre apreciação da prova
segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto
, sem prejuízo dos casos em que a lei submete a prova dos factos a exigências especiais e dos factos que estão já assentes
(nº5 do art. 607.º do CPC).
No dizer da doutrina, observados os referidos ónus, como no caso foram, do art. 662.º do Código do Processo Civil, através dos nº1 e 2, als. a) e b), “fica claro que a Relação tem
autonomia decisória
, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia” (A. Abrantes Geraldes, Ob. cit., p. 334).
Ou, de acordo com a jurisprudência, “o reforço dos poderes conferidos ao Tribunal da Relação na reapreciação da decisão sobre a matéria de facto pelo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, tem a virtualidade de colocar os juízes desembargadores num plano decisório que, tanto quanto possível e pese embora a falta de imediação, é equivalente ao do juiz da 1ª instância”.
Desse modo, “em sede de reapreciação da prova, tratando-se de meios de prova sujeitos à livre apreciação, o que importa é que a Relação forme a sua própria convicção com base nos indicados pelas partes ou oficiosamente investigados (art. 640º, nº 1, al. b) e nº 2, al. b) do CPC), devendo fundamentar a decisão tomada” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25/9/2019, tirado no processo 1555/17.6T8LSB.L1.S1, relatado por Ribeiro Cardoso e disponível na base de dados da Dgsi em linha).
No mesmo sentido, tem decidido este Tribunal da Relação do Porto que “ambas as instâncias estão sujeitas às mesmas normas e regras atinentes à valoração da prova que, exceptuados os casos previstos na lei, se rege pelo princípio da livre apreciação” (cfr. Acórdão de 6/5/2024, relatado por Jorge Martins Ribeiro, no âmbito do processo 6227/21.4T8VNG.P1 e acessível no mesmo sítio).
*
3) Sobre as regras mais relevantes na apreciação da prova.
A apreciação da questão do fundo da impugnação factual implica que, previamente, se convoquem algumas regras e princípios com importância para o efeito.
Em primeiro lugar, relativamente ao nível da exigência necessária à decisão sobre se um facto deve ser julgado provado ou não provado, para destacar que também aqui é imposto um critério de razoabilidade.
Como refere a doutrina tradicional, a demonstração da realidade dos factos “não pode visar um estado de certeza lógica, absoluta, sob pena de o Direito falhar clamorosamente na sua função essencial de instrumento de paz social”, assentando, diversamente, “na certeza subjectiva da realidade do facto, ou seja, no (alto) grau de probabilidade de verificação do facto, suficiente para as necessidades práticas da vida” (cfr. Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª ed., pp. 435-6).
No mesmo sentido, salienta a jurisprudência que “a prova não visa a certeza absoluta, a irrefragável exclusão da possibilidade de o facto não ter ocorrido ou ter ocorrido de modo diferente, mas tão só, de acordo com os critérios de razoabilidade essenciais à prática do Direito, criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto, sendo a certeza a que conduz a prova suficiente, assim, uma certeza jurídica e não uma certeza material, absoluta” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 16/3/2021, tirado no processo 231/19.0T8CNF, da autoria de António Carvalho Martins e disponível na citada base de dados).
Em segundo lugar, a regra, acima já aflorada, de que, na ausência de factos que careçam de exigências probatórias especiais, o tribunal, seja em primeira, seja em segunda instância (arts. 607.º/5 e 663.º/2 do CPC), aprecia livremente os meios de prova segundo a sua prudente convicção.
No caso dos autos, é evidente que para a demonstração dos factos relevantes não são exigíveis especiais requisitos probatórios.
Por outro lado, estão em causa elementos de prova que, constituídos por depoimentos de testemunhas, pareceres técnicos, documentos particulares e relatórios periciais, estão submetidos, mercê do disposto nos arts. 607.º/5 do CPC, 376.º, 389.º e 396.º do CC, à livre apreciação e convicção do julgador.
Todavia, cumpre ter presente que a prevalência da livre convicção tem como reverso ou contrapartida, para além do aumento das exigências quanto à fundamentação da decisão de facto, a maior necessidade de recurso a regras de experiência e a critérios lógicos ou objectivos na apreciação da prova.
Como refere a jurisprudência, o que está na base do princípio da livre apreciação “é a libertação do juiz das regras severas e inexoráveis da prova legal sem que entretanto se queira atribuir-lhe o poder arbitrário de julgar os factos sem prova ou contra a prova”, de modo que “o sistema da prova livre não exclui, antes pressupõe a observância das regras de experiência e critérios da lógica” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11/3/2010, referente ao processo 949/05.4TBOVR-A.L1-8, relatado por Bruto da Costa, e disponível na já mencionada base de dados em linha).
No mesmo sentido, depõe a falibilidade que tem de ser apontada aos referidos meios probatórios, sobretudo nos depoimentos das testemunhas, mas também verificável na prova documental particular, desde logo porque “há que contar com o perigo de erro na percepção e do desgaste na memória da testemunha”.
Acrescendo que “mesmo em relação às testemunhas presenciais de um facto, muitas vezes ocorre, especialmente quanto aos aspectos secundários da ocorrência, que cada pessoa viu a coisa a seu modo, com versões diferentes da mesma realidade” (cfr. Antunes Varela e Outros, Ob. cit., pp. 614-5).
Em qualquer caso, porém, estes motivos, a par da circunstância de os documentos particulares servirem, as mais das vezes, para a transmissão de ideias, pensamentos ou factos que o seu autor elaborou de modo unilateral, levam a concluir pela enorme importância que, na apreciação da prova, deve ser reconhecida à análise crítica da prova feita de acordo com as regras da experiência e da lógica.
Na verdade, trata-se, desde logo, de um critério legalmente imposto na avaliação dos factos relevantes, na decisão sobre a sua demonstração ou não e, igualmente, na valoração de todos os meios probatórios, segundo o nº4 do art. 607.º do CPC.
Para além disso, como refere a doutrina, na “conformidade com as regras de experiência e a normalidade do acontecer está em causa a verosimilhança ou congruência da versão apresentada ou que resulta de determinado meio de prova” (cfr. Helena Cabrita, A Fundamentação de Facto e de Direito na Decisão Cível, Coimbra Editora, p. 191).
Ou, nas palavras da jurisprudência, que as regras de experiência traduzem “raciocínios, juízos hipotéticos do conteúdo genérico, assentes na experiência comum, independentes dos casos individuais em que se alicerçam, com validade, muitas vezes, para além do caso a que respeitem, adquiridas, em parte, mediante observação do mundo exterior e da conduta humana, e, noutra parte, mediante investigação ou exercício científico de uma profissão ou indústria, permitindo fundar as presunções naturais, mas sem abdicar da explicitação de um processo cognitivo, lógico, sem espaços ocos e vazios”.
De modo que “o uso, pelas instâncias, em processo civil, de regras de experiência comum é um critério de julgamento, aplicável na resolução de questões de facto, não na interpretação e aplicação de normas legais, que fortalece o princípio da livre apreciação da prova, como meio de descoberta da verdade, apenas subordinado à razão e à lógica, que, consequentemente, não pode ser sindicado pelo STJ” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6/7/2011, relatado por Hélder Roque, no processo nº 3612/07.6TBLRA e disponível na citada base de dados em linha).
Algo que também este Tribunal da Relação do Porto já destacou, sentenciando que é à “valoração da prova” que cumpre recorrer “de acordo com as regras da ciência, da experiência e da interacção social visando obter um juízo de certeza provável, seguro e racionalmente demonstrável” (Acórdão de 24/9/2020, da autoria de Paulo Duarte Teixeira, tirado no processo 2188/14.4TBVNG.1.P1 e acessível em dgsi.pt).
Em último lugar, impõe-se tomar em consideração que, não obstante a autonomia decisória da Relação na apreciação da matéria de facto e a exigência de criação da própria convicção sobre a factualidade relevante, a sua intervenção neste domínio, tal como sucede em geral nos recursos, visa sobretudo a correcção de erros no julgamento realizado pela instância recorrida.
Trata-se, desde logo, de uma regra que encontra consagração legal expressa no art. 640.º/1, al. b), do CPC, quando exige a existência e indicação de concretos meios probatórios que imponham – e não apenas permitam – decisão diversa da recorrida.
Para além disso, nos poderes de reapreciação da decisão da matéria de facto confiados à Relação está implícita a devida consideração dos juízos, presunções e harmonizações dos factos que, fundamentadamente e ao abrigo do art. 607.º/4 do CPC, tenham sido realizadas em primeira instância.
Reconhecendo e respeitando, por isso, a validade de alguma margem de liberdade de apreciação da prova em primeira instância, desde que devidamente fundamentada, sobretudo em domínios onde as máximas de experiência comum não intervenham de modo significativo e que dependam em maior medida do contacto imediato que apenas aquela tem com os meios probatórios.
Está em causa, pois, a importância e o respeito aos princípios da imediação e da oralidade vigentes na primeira instância e menos intensamente na segunda.
Como refere a doutrina, a propósito da possibilidade da alteração da matéria de facto, ela “deve ser efectuada com segurança e rodeada das necessárias precauções, centrando-se nas desconformidades encontradas entre a prova produzida em audiência – após efectiva audição dos respectivos depoimentos – e os fundamentos indicados pelo julgador da 1.ª instância”.
Razões pelas quais, “em caso de dúvida”, nomeadamente “face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida em 1.ª instância, em observância dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nessa parte” (cfr. Ana Luísa Geraldes, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, Vol. I, p. 609).
Identicamente, a jurisprudência salienta que “mantendo-se em vigor, em sede de Recurso, os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova, e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pelo Tribunal da Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser efectuado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados”
Em consequência, “a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação, quando este Tribunal, depois de proceder à audição efectiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência final, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direcção diversa, e delimitaram uma conclusão diferente daquela que vingou na primeira Instância” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21/6/2021, proferido no processo 2479/18.5T8VLG.P1, da autoria de Pedro Damião e Cunha e disponível no já identificado sítio em linha).
Muito sinteticamente, pode dizer-se, pois, que a terceira regra a que importa especialmente dar relevo neste campo determina que, “não resultando da reapreciação da prova no Tribunal da Relação qualquer erro de julgamento pelo tribunal a quo, nem sendo criada uma convicção diferente após a reapreciação de toda a prova, não há lugar à alteração da decisão da matéria de facto dada como provada e como não provada” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 6/5/2024, acima citado).
É à luz destas orientações, pois, que cumpre decidir a impugnação factual que o presente recurso coloca à atenção deste Tribunal da Relação do Porto.
*
4) Sobre a procedência da impugnação.
Para formar a nossa convicção sobre a referida matéria de facto, procedemos à audição, através do sistema
media-studio
, da seguinte prova pessoal produzida em audiência de julgamento:
· Depoimento prestado na sessão de 31/3/2022 por AA, indicado pela autora, a quem vende máquinas e presta assistência técnica há mais de dez anos;
· Audição, na sessão de 21/4/2022, da testemunha GG, arrolada pela 1.ª ré e que, sendo engenheira de materiais, presta funções como técnica de laboratório no Instituto de Soldadura e Qualidade e que, nesse âmbito, participou na elaboração do parecer técnico que acompanhou a petição inicial;
· Depoimento prestado na mesma sessão da audiência pela testemunha HH, também oferecida pela ré, que igualmente presta funções como técnica de laboratório no Instituto de Soldadura e Qualidade e a quem incumbiu a aprovação do referido parecer técnico;
· Audição da testemunha BB, que depôs na mesma sessão e que, tendo sido indicado pela 2.ª ré, para esta trabalha como responsável pelo departamento de qualidade e que participou na elaboração do relatório técnico que aquela ré juntou na sua contestação;
· Esclarecimentos periciais prestados por II, JJ e KK na sessão de 8/9/2023.
Para além disso, atendeu-se à prova documental apresentada com os articulados ou em requerimentos posteriores, destacando-se a seguinte:
· O orçamento nº...001/2014, de 11/6/2014, relativo à substituição de componentes danificados da máquina de injecção a que se referem os autos, a que atribuiu o custo de € 148.200,00, acrescido de IVA, junto como documento nº5 da petição inicial e elaborado pela sociedade de que é responsável a identificada testemunha AA;
· A comunicação a que se refere o documento nº6 junto com esse articulado e que, entre o mais, inclui a informação de que o valor do transporte é de cerca de € 12.000 + IVA e que o valor atribuído ao material danificado é de € 38.000,00;
· O parecer técnico que constitui o documento nº9 da petição inicial, elaborado pelo ISQ mediante solicitação da 1.ª ré, referente às causas da fractura do cabo de aço em causa nos autos, elaborado por GG e aprovado por HH, testemunhas acima identificadas;
· O certificado de inspecção tipo 3.1, relativo ao cabo fornecido pela 2.ª ré à 1.ª e que esta juntou como documento nº5 da sua contestação;
· O designado relatório de investigação laboratorial oferecido pela 2.ª ré como documento nº4 da respectiva contestação, por ela elaborado, através do seu serviço de controlo de qualidade com a participação da testemunha BB;
· O relatório de peritagem elaborado por F... Lda. para a interveniente (Companhia de Seguros D...) e que esta juntou por requerimento de 23/11/2015, em simultâneo com a sua contestação;
· O orçamento actualizado, datado de 31/3/2022, relativo ao custo da substituição dos componentes danificados da máquina de injecção a que se referem os autos, agora com o valor de € 244.628,00 + IVA, junto mediante requerimento de 21/4/2022;
Finalmente, tomou-se em consideração o relatório pericial junto aos autos mediante requerimento de 31/3/2023 e os documentos que o acompanharam.
*
Importando analisar os meios de prova referidos tendo em vista as pretensões da recorrente relativas à factualidade provada, verifica-se que estas incidem sobre quatro pontos essenciais:
1) A primeira respeita à designada
classe de resistência
do cabo fornecido pela 2.ª à 1.ª ré, pretendendo esta que se julgue provado que a 2.ª ré lhe entregou um cabo que não correspondia ao produto que foi vendido, que não tinha as especificações por si anunciadas e garantidas; em consequência, o facto dado como provado 50º deve ser alterado, passando a constar que a 2ª ré forneceu um cabo de 13mm com uma classe de resistência do cordão inferior ao contratado com a 1ªR e ao constante na fatura que lhe emitiu.
2) A segunda questão factual incluída no objecto do recurso é a atinente à alegada existência de um
defeito de fabrico
no referido cabo e que tenha constituído a causa da sua ruptura, sendo a pretensão da recorrente, no essencial, no sentido de se julgar demonstrado que, embora não aparentes, “os esmagamentos ou mossas, na camada interna do cabo, que se encontram ao longo de toda a sua extensão, resultam do anormal processo de fabrico do cabo”, debilitando-o severamente, não mantendo todas as suas propriedades e que os cordões, “por essa razão, fraturaram a 45º e acarretaram, consequentemente, a sobrecarga dos demais que acabaram por fraturar em cone-taça”.
3) A terceira pretensão factual em análise está relacionada com a designada pela recorrente questão da “
reparação vs substituição do módulo sinistrado
”, destinando-se a corrigir os pontos 26, 27 e 29 da matéria provada, por entender aquela, em suma, que as peças/componentes indicadas no orçamento de fls. 22 constituem a substituição integral do módulo “grupo fecho” sinistrado, que não é de considerar o custo com o serviço de desmontagem/montagem, por não ser necessário desmontar e montar peças, como sucederia se tratássemos de uma reparação e que o valor de 38.000,00€, atribuído na sentença a todo o salvado, diz respeito, na verdade, apenas ao “grupo fecho” danificado no acidente.
4) Por fim, a quarta parte da impugnação factual recai sobre o tema do
valor da reparação/substituição do módulo sinistrado
”, dirigindo-se aos pontos 96 a 99 da matéria provada, pretendendo a recorrente que se julgue demonstrado que o preço de 530.000,00€, ao qual acrescerá o IVA à taxa legal, corresponde à venda de uma máquina nova dotada de um robot que não integrava a compra realizada pela autora em 2014, que o preço de uma máquina nova semelhante à adquirida pela autora em 2014 seria, em Maio de 2022, de € 333.500,00 sem IVA (sem o robot) e que o módulo novo “grupo fecho” ascende a valor nunca superior a € 166.750,00, em março de 2022, correspondente a cerca de 50% do preço orçamentado para a máquina nova.
Relativamente à primeira questão, constatou-se que todos os elementos probatórios produzidos nos autos e acima mencionados referem, exactamente nos termos consignados na sentença recorrida, que o certificado primitivamente
emitido pela 2.ª ré
não era o correcto, não correspondia ao cabo efectivamente fornecido
, resultando
do relatório da ré e da interveniente que o certificado foi posteriormente substituído e desse erro inicial não resultou qualquer interferência quanto às causas do sinistro
.
Neste sentido, mesmo as testemunhas indicadas pela 1.ª ré, GG e HH, acima devidamente identificadas, foram claras e explícitas em afirmar que o cabo fornecido, que analisaram, cumpria os requisitos de especificação técnica, evidenciando inclusivamente resistência superior à exigida para qualquer uma das variantes solicitadas pela recorrente, e não manifestaram qualquer dúvida sobre eventuais divergências entre o que havia sido encomendado e o material fornecido pela 2.ª ré.
A primeira das referidas testemunhas foi até expressamente questionada a este respeito, tendo declarado que, nos testes de resistência realizados ao cabo, após o acidente, a carga máxima por ele suportada em condições normais era superior, quer à indicada no certificado emitido inicialmente, quer na sua versão posterior e considerada correspondente ao cabo fornecido.
Da mesma forma, não existiu qualquer meio de prova susceptível de lograr o convencimento de que o sinistro poderia ter resultado do fornecimento de um cabo com uma classe de resistência inferior àquela que a recorrente solicitou à outra demandada e que optou por utilizar no serviço a que se reportam os autos.
Finalmente, também a testemunha BB explicou com detalhe e convincentemente as características do cabo, resistência e
carga de rotura real máxima de 112,9 kN
, superior à especificação a que respeita o pedido da 1.ª ré (109 kN), sem que qualquer reparo ou objecção tivesse sido suscitado com pertinência perante tal depoimento.
Quanto à segunda questão, da maior importância na economia do litígio e referente sobretudo à causa da quebra do cabo de aço utilizado pela 1.ª ré nas operações de levantamento e colocação da máquina sinistrada, também não se vislumbram motivos válidos para divergir da decisão recorrida.
Nesta sede, a recorrente sustenta a sua impugnação, essencialmente, no parecer técnico que constitui o documento nº9 da petição inicial, emanado do ISQ mediante solicitação da 1.ª ré, e nos depoimentos de GG e HH, responsáveis, respectivamente, pela autoria e aprovação de tal parecer.
E é certo que, numa primeira análise, daquele documento, para além da descrição da existência de
esmagamentos
ou
mossas
nos cordões que integravam a camada interna cabo em questão, resulta uma associação entre eles e a ruptura do cabo, pois os esmagamentos ou "mossas" nos fios
acarretam uma diminuição da sua secção útil elevando as tensões a que estão sujeitos. Este desequilíbrio de forças induz esforços de corte sobre alguns fios que acabam por fracturar a 45° ficando os restantes em sobrecarga resultando na ruptura do cabo
.
A verdade, porém, é que em ponto algum do referido parecer técnico é dito que foram os referidos esmagamentos ou mossas que causaram a quebra do cabo, para além de que, ouvido o depoimento prestado por GG, é manifesta a conclusão de que a autora do documento não consegue, como expressamente declarou, identificar a causa das referidas mossas, ficando por esclarecer, se se tiver apenas em conta esses meios de prova, se foram as mossas que causaram a quebra ou se foi esta que determinou as mossas, tanto mais que, segundo observou aquela testemunha, os esmagamentos estão associados à zona de ruptura do cabo.
Acresce ainda que, directamente questionada a esse respeito, GG referiu que as mossas não constituíam defeito de fabrico do cabo, embora depois tenha declarado que não sabia responder a tal questão.
Ainda mais importante, para além do exposto, é que os meios probatórios indicados, caso fossem interpretados no sentido preconizado pela recorrente, não teriam a virtude de explicar o motivo pelo qual o cabo em questão, evidenciando as ditas mossas em toda a sua extensão, tivesse apesar disso suportado todos os testes de resistência a que foi submetido.
Em nossa convicção, tal explicação apenas é passível de ser localizada no relatório de investigação laboratorial oferecido pela 2.ª ré como documento nº4 da respectiva contestação, elaborado através do seu serviço de controlo de qualidade e com a participação BB, em conjugação com o depoimento que ele, como testemunha, prestou em audiência.
Com efeito, tal relatório evidencia completude e coerência na análise das origens da quebra do cabo, concluindo que
as fracturas dos arames ocorreram de um modo geral em zonas de deformação plástica (i.e., zonas em que os arames estão demasiado marcados e deslocados das suas posições originais, devido a pressões laterais) o que indicia a ocorrência de um incidente (provavelmente esmagamento), durante a utilização do cabo, que o tenha danificado na e junto da zona de rotura
.
E nenhum meio de prova, aqui incluindo os depoimentos de GG e HH, mostrou-se susceptível de desmentir ou sequer suscitar a dúvida fundada sobre a veracidade de tal explicação.
Ao invés, a exactidão do relatório e a sua conformidade com as exigências técnicas aplicáveis na sua elaboração foram coerente e convictamente defendidas em audiência pela testemunha BB, que salientou a presença de um técnico da 1.ª ré na análise feita e na produção do documento e que concluiu, muito simplesmente, no sentido de o cabo mercê da forma como era usado ter ficado estrangulado quando segurava a máquina danificada.
E que, quanto às marcas ou mossas na camada interior, explicou de modo detalhado e credível constituírem resultado natural do processo de produção de qualquer cabo, não se confundindo com os esmagamentos de muito maior dimensão verificados na zona onde ocorreu a ruptura.
No mesmo sentido, e com marcada relevância, apontou ainda o relatório de peritagem elaborado por F... Lda. para a interveniente, Companhia de Seguros D..., junto com a sua contestação, e no qual foi realizada uma apreciação particularmente exaustiva e de intocável coerência sobre todas as circunstâncias relevantes do cabo de aço em apreço, desde a consulta prévia à encomenda que, a 3/4/2014, a 1.ª ré procedeu junto da 2.ª, para obtenção de preços para dois tipos de cabo, até às conclusões gerais sobre a causa do acidente ocorrido no carregamento da máquina sinistrada no dia 22/5/2014.
Destacando-se desse relatório, por um lado, a asserção de que “os diversos ensaios de rotura à tracção realizados pelo ISQ sobre amostras desse cabo, assim como os ensaios semelhantes realizados pelo SEGURADO em amostras da bobine original de onde o cabo foi retirado (bobine também com certificado da classe 1960), vieram a comprovar que a carga de rotura do cabo fornecido à B... estava de facto de acordo com o especificado para a classe 1960”.
Por outro lado, a ideia, que a análise de toda a prova conduz-nos também a subscrever, que “as patologias observadas no cabo precisamente na zona onde este rompeu e mais precisamente às deformações plásticas mais pronunciadas incluindo fracturas, ou seja de que nada indica que estas estejam associadas ao processo de fabrico e/ou a uma alegada falta de qualidade do cabo mas sim, pelo contrário, a situações resultantes das condições em que foi utilizado e do que possa ter acontecido durante essa utilização e relativamente às quais não se dispõe de informação para conseguir precisar a não ser a já conhecida e referida utilização que estava a ser feita no momento do incidente onde não estava a ser respeitado o factor de segurança para limitação da carga útil de trabalho”.
Concordamos, pois, com a sentença recorrida quando refere que
o relatório apresentado pela segunda ré e o relatório junto pela interveniente a fls. 266 e seguintes, sendo este o relatório que apresenta uma análise mais profunda, mais abrangente e mais completa das causas, procedendo a uma analise crítica e rigorosa dos relatórios apresentados pelas duas rés,
sendo esse relatório
consistente com as explicações, que igualmente nos mereceram credibilidade, dadas pela testemunha arrolada pela ré, BB, do departamento de qualidade, que foi igualmente coerente e convincente, depoimento que também explicou o processo de fabrico e a composição dos cabos anti-giratórios, que são os que estão em causa nestes autos
.
Em relação à terceira questão factual suscitada pela recorrente, relativa aos pontos 26, 27 e 29 da matéria provada, não vislumbramos qualquer respaldo nos meios de prova escrutinados e acima identificados para a sua pretensão.
Com efeito, a audição do depoimento da testemunha AA vem desmentir claramente que as peças indicadas no orçamento de fls. 22 constituam a substituição integral do módulo “grupo fecho” sinistrado, que não seja necessário desmontar e montar peças e que o valor de € 38.000,00, atribuído na sentença a todo o salvado, diga apenas respeito ao “grupo fecho” danificado no acidente.
Este ponto, aliás, é sintomático no sentido de evidenciar que, através da impugnação da matéria de facto, a recorrente pretende, afinal, que o tribunal de recurso apresente uma resposta diametralmente contrária ao teor daquele depoimento, no qual se destacou, por mais que uma vez, que o valor de € 38.000,00 foi calculado para o salvado de toda a máquina, com os seus dois módulos, e não apenas para o designado “grupo fecho”.
O que, aliás, bem se compreende face à circunstância, salientada desde logo no relatório pericial, de a produtora italiana da máquina em causa não admitir o fornecimento autónomo de cada um dos seus dois módulos.
De modo que, embora o teor do documento nº6 junto com a petição inicial fosse susceptível de suscitar alguma dúvida a esse respeito, o referido depoimento evidenciou-se totalmente esclarecedor no sentido oposto ao defendido no recurso sobre o alcance da expressão “material danificado” que ali foi usada.
No que tange à última questão factual questionada no recurso, relativa ao tema do
valor da reparação/substituição do módulo sinistrado
” e dirigida aos pontos 96 a 99 da matéria provada, pensamos que as precisões e especificações pretendidas pela recorrente já resultam suficientemente clarificadas na sentença, numa parte, e são injustificadas, na outra.
Assim, a demonstração de que o preço de 530.000,00€, ao qual acrescerá o IVA à taxa legal, corresponde à venda de uma máquina nova dotada de um robot que não integrava a compra realizada pela autora em 2014, é questão factual que já foi respondida, no sentido preconizado no recurso, no ponto 97 da matéria julgada demonstrada em primeira instância.
Identicamente, o facto de o preço de uma máquina nova semelhante à adquirida pela autora em 2014 corresponder, em Maio de 2022, a € 333.500,00 sem IVA (e sem o robot), também já decorre, com a clareza bastante, do facto provado nº99, segundo o qual, textualmente,
o preço de uma máquina nova semelhante à adquirida pela autora em 2014 e com as mesmas funções, mas fornecida directamente pelo fabricante em Itália, ficaria, em 2022, pelo preço orçamentado de € 333.500,00 sem IVA, preço que inclui entrega e descarga, sem o robot
.
De modo que, no confronto com a redacção proposta pela recorrente, a única diferença que se detecta, residindo no fornecimento directo pela fabricante italiana, é manifestamente irrelevante para o mérito da acção, certo que, como resulta dos demais factos provados, e é salientado nas próprias conclusões do recurso, a autora comprou a máquina sinistrada diretamente em Itália.
Já na parte restante deste ponto, porém, atinente ao facto de o módulo novo “grupo fecho” ascender a valor não superior a € 166.750,00, em Março de 2022, a pretensão da recorrente, se bem pensamos, não tem arrimo em qualquer meio de prova, resultando, salvo o devido respeito, de uma operação simplista de divisão do preço da máquina por dois que desconsidera sem fundamento a ligação umbilical que, como vimos, existe entre as suas duas partes integrantes.
Em suma, não se vislumbra qualquer erro na apreciação dos factos em primeira instância que justifique correcção ou alteração da parte deste tribunal.
O que, de acordo com o princípio acima abordado, adoptado na doutrina e na jurisprudência, que manda dar prevalência, na ausência de elementos seguros que alicercem convicção distinta, à decisão factual da primeira instância, determina a integral manutenção dos factos apurados.
Improcede, pois, quanto ao seu mérito, a impugnação à matéria de facto deduzida pela recorrente.
*
5) Sobre a existência e a medida do dever de indemnizar e dos juros.
A respeito da obrigação de indemnização, dispõe o art. 562.º do Código Civil que “quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”.
Trata-se do princípio geral da reconstituição natural, que visa colocar o lesado em posição idêntica àquela em que estaria sem o facto danoso, e que apenas cede perante a indemnização em dinheiro, nos termos do art. 566.º/1 daquele diploma, quando a reconstituição em espécie “não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor”.
Por outro lado, segundo prescreve o art. 570.º daquele código, “quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída” (nº1); todavia, “se a responsabilidade se basear numa simples presunção de culpa, a culpa do lesado, na falta de disposição em contrário, exclui o dever de indemnizar” (nº2).
Para além disso, ainda a propósito da obrigação de indemnizar, determina o art. 804.º/1 do CC que “a simples mora constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor”, sendo certo que “na obrigação pecuniária a indemnização corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora” (art. 806.º/1 do CC).
E, completando esse quadro normativo, prevê o art. 805.º/3 do CC que “se o crédito for ilíquido, não há mora enquanto se não tornar líquido, salvo se a falta de liquidez for imputável ao devedor; tratando-se, porém, de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, o devedor constitui-se em mora desde a citação, a menos que já haja então mora, nos termos da primeira parte deste número”.
Neste enquadramento, procurando afastar ou atenuar o dever de indemnizar, defende a recorrente, em primeiro lugar, que em face da culpa do lesado, reconhecida na sentença de primeira instância, no agravamento dos danos, mercê da sua pretensão infundada de obter uma máquina nova após o sinistro, e da mera presunção de culpa atribuída à autora da lesão, deve resultar, nos termos do art. 570.º/2 do CC, a exclusão da indemnização.
Se bem pensamos, todavia, este preceito legal tem por objecto a culpa do lesado na produção dos danos, e não apenas no seu agravamento, pois não faria sentido excluir na totalidade o dever de indemnizar quando o lesado fosse alheio à produção dos danos e apenas tivesse contribuído para o seu aumento.
Em sentido próximo, salienta a doutrina “que a responsabilidade apenas se deve considerar inteiramente afastada quando o presumível lesante prove que o lesado foi o único responsável, não restando, assim, qualquer margem de incerteza sobre a origem da imputação danosa” (cfr. Rui Mascarenhas Ataíde, Direito da Responsabilidade Civil, 2023, p. 543).
Por outro lado, e decisivamente, não vislumbramos nos factos provados qualquer vestígio de culpa da autora, seja na produção, seja no agravamento dos danos, certo que isso não pode ser assacado ao facto de ter reclamado, como aliás fez desde o início da acção, encontrando-se tal reflectido na sua petição inicial, nos termos acima descritos no relatório, a condenação das demandadas na entrega, em prazo certo, de uma máquina nova.
Com efeito, a pretensão de entrega de uma máquina nova, à face do princípio geral quanto ao dever de indemnizar, por reconstituição natural, constituiria sem dúvida uma forma legalmente admissível, e inclusivamente preferível, nos termos do art. 562.º do CC, para reparar o dano sofrido pela autora.
Embora se reconheça que apenas um dos módulos foi danificado no acidente apreciado nos autos, sendo eles fisicamente separáveis entre si, a verdade é que ambos constituem parte integrante de uma só e mesma máquina, e assim se explica que, sem a integridade de um dos módulos, a fornecedora italiana considere caducada a garantia de toda a máquina, para além de, como foi referido consensualmente pelos peritos, não comercializar os módulos de forma autónoma.
Não se verificando, pois, na referida pretensão da autora, que está espelhada inclusivamente na petição inicial, uma conduta ilícita ou culposa e muito menos causadora do surgimento ou do incremento dos danos.
Acresce que para afirmar a existência de culpa da autora no agravamento dos prejuízos seria imprescindível, a nosso ver, que a lesante estivesse disposta a indemnizá-la por uma das formas legalmente consentida, manifestando-o à lesada e que esta, injustificadamente, tivesse rejeitado.
Algo que os factos provados estão longe de demonstrar, uma vez que não evidenciam qualquer acção empreendida pela recorrente (nem pela 2.ª ré) no sentido de, efectivamente, poder compensar a autora pelos danos sofridos com a quebra da máquina.
Na realidade, a esse respeito, ficou apenas demonstrado que, em Junho de 2014, a A. deu a conhecer à 1.ª ré a enumeração das peças danificadas, a necessidade de substituição e os seus custos, reclamando o respetivo pagamento (facto 31), tal como fez em relação aos custos de transporte das peças que tinham de ser substituídas (facto 32).
E que, na sequência, a recorrente respondeu e referiu à autora que a 2ªR. lhe tinha vendido o cabo da grua com um defeito e que isso é que tinha causado a rutura do mesmo (facto 33), encontrando-se a diligenciar para que a 2ªR. participasse no ressarcimento dos prejuízos sofridos (facto 34).
Nenhum facto existe, assim, susceptível de justificar o argumento que no recurso se procura estabelecer por paralelismo com a mora do credor, o que se torna manifesto, a nosso ver, atenta a completa ausência de uma acção do devedor tendente ao ressarcimento do dano.
É certo que, a dado passo da sua fundamentação, a sentença recorrida reporta-se à “culpa que a autora tem, devido à exigência que fez, por aplicação do disposto no artigo 570º do C. Civil, assistindo razão às rés nas alegações finais que fizeram em apelar ao normativo em causa”, apontando para tanto “a intransigência da autora manifestada nas cartas que enviou à primeira ré e interveniente, logo no início do litígio, em exigir a substituição integral de uma máquina composta por um módulo novo e sem qualquer dano, agravou os danos que o arrastar na obtenção de uma solução provocou”.
Todavia, dessa circunstância, a decisão de primeira instância não extraiu particulares consequências, apenas com a ressalva da “exclusão do dever da ré em indemnizar a autora pela substituição integral da máquina composta pelos dois módulos”.
Semelhante exclusão, porém, ali também foi imputada às regras gerais do dever de indemnizar, na medida em que “a reconstrução natural (…) passaria pela reparação do módulo danificado (reparação possível)”, sendo certo que foi o custo desta reparação que, afinal, serviu precisamente para fixar o valor indemnizatório.
Tratou-se, pois, de uma referência da sentença sem respaldo na factualidade provada e que para a decisão final teve como única repercussão a recusa de uma substituição integral que, em rigor, já resultaria de mera aplicação das regras gerais da indemnização, designadamente, da preferência concedida à reparação do bem danificado, desde que suficiente para compensar o dano e em coerência com a regra da limitação possível da onerosidade do encargo a impor ao lesante.
Acontece, porém, que na fixação da indemnização por referência à reparação do módulo danificado, a sentença recorrida não atentou na circunstância de, como nela própria se destacou e resulta dos factos provados, neste momento e volvidos todos estes anos, já não ser possível reparar o módulo danificado, mercê desde logo da descontinuidade das peças.
Acresce que também não é possível garantir uma substituição de um módulo apenas ou assegurar o seu funcionamento com um módulo de outra marca.
O que significa, se bem pensamos, que a fixação do valor indemnizatório com base no custo de reparação do módulo afectado, para além de desajustada à actual realidade dos factos, não serve para compensar devidamente o prejuízo sofrido pela autora mercê da danificação da máquina e em função da qual ela deixou de ter o funcionamento adequado para o fim a que se destinava.
A reconstituição natural a que os arts. 562.º e 566.º do Código Civil dão preferência, em sede de remoção do dano, exigiria, pois, que a indemnização fosse fixada por referência ao custo da substituição integral da máquina.
Deve salientar-se, a este respeito, que o pagamento em valor monetário do custo da substituição do bem danificado constitui ainda uma modalidade admissível da reparação natural e que não se confunde com a indemnização em dinheiro prevista no art. 566.º do CC.
Como refere a doutrina, por força da “incompatibilidade da duração de um processo judicial com a urgência das medidas de reposição da situação” e da “falta de confiança do lesado na reparação do dano efetuada pela ação do devedor”, “nada obsta a que a intervenção do lesante seja substituída pela antecipação ou o reembolso das despesas necessárias à restauração”, considerando, assim, nas “variantes da restauração em espécie”, entre outras e por exemplo, “a condenação do lesante à antecipação ou ao reembolso das despesas com a aquisição de um veículo equivalente ao automóvel danificado” (cfr. Henrique Sousa Antunes, Um Ensaio Sobre a Reconstituição Natural, 2022, pp. 117-121).
Deste modo, para colocar a autora na situação que existiria sem o facto danoso, exclusivamente imputável à 1.ª ré, e tendo em conta que ao lesado não pode ser imposta a intervenção do lesante na própria reparação, necessário seria, face às referidas circunstâncias, colocar à sua disposição o valor monetário que servisse para a aquisição de uma máquina nova.
Ou seja, a reconstituição em espécie ou reposição da situação anterior, na reparação do dano sofrido pela autoria, implicaria a condenação da 1.ª ré no pagamento da quantia de € 333.500,00, se tivéssemos em conta as características da máquina à data do sinistro e o facto provado 99, ou de € 530.000,00, caso se considerassem as circunstâncias actuais de mercado e o facto provado 96.
Sendo certo que, na primeira das referidas opções, que nos parece a mais curial, na medida em que a reposição ou reconstituição natural deve ser feita em conformidade com a factualidade existente à data do facto danoso, ao montante da indemnização devem acrescer juros moratórios desde a data da citação, em conformidade com o disposto na segunda parte do art. 805.º/3 do CC.
Com efeito, embora no âmbito da responsabilidade contratual os juros sejam contados após a liquidação do valor devido (salvo se a iliquidez for imputável ao devedor), nos termos da primeira parte daquele preceito legal, já em sede de responsabilidade extra-contratual ou pelo risco, que os autos também versam, como a recorrente reconhece, a referida norma impõe que o devedor fica constituído em mora
após a citação
.
O que, aliás, constitui corolário do princípio de que “o lesante tem o dever de indemnizar imediatamente o dano causado ao lesado” (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. II, 4.ª ed., p. 64).
Considerando-se justificada, por outro lado, a orientação que no concurso de várias formas de responsabilidade entende que “deve ser permitido ao lesado/credor optar, num único pleito, entre as regras mais favoráveis da responsabilidade obrigacional e extra-obrigacional” (cfr. Rui Ataíde, Ob. cit., p. 18).
Em qualquer caso, pois, a condenação inerente à reparação natural do dano sofrido é superior ao valor indemnizatório fixado em primeira instância.
Como a autora, todavia, conformou-se com essa decisão, da qual não interpôs recurso, impõe-se a manutenção do montante da condenação.
Improcedem também, assim sendo, as conclusões jurídicas do recurso.
*
DECISÃO:
Com os fundamentos expostos, decide-se julgar improcedente a apelação e confirma-se integralmente a decisão recorrida.
Custas do recurso pela 1.ª ré, atento o seu decaimento (art. 527.º do CPC).
*
SUMÁRIO
……………………………….
……………………………….
……………………………….
(o texto desta decisão não segue o Novo Acordo Ortográfico)
Porto, d. s. (13/01/2025)
Nuno Marcelo Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo
Ana Paula Amorim
Teresa Pinto da Silva
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TRP
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https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/ef8c552b8369dc5080258c1800582a46?OpenDocument
|
1,747,785,600,000
|
NÃO PROVIDO
|
269/20.4KRLSB-A.L1-3
|
269/20.4KRLSB-A.L1-3
|
FRANCISCO HENRIQUES
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I - A aplicação de medida de coacção de obrigação de prestação de caução no montante de 100.000,00 euros é da necessidade, adequação e proporcionalidade no caso de se encontrar fortemente indiciada a prática de um crime de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção, na forma agravada, previsto pelo artigo 36.º n.º 1 alíneas a), b) e c), n.º 2 e n.º 5 alínea a), do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20/01, e com a finalidade de acautelar perigos de grau médio de fuga e de perturbação grave da ordem e da tranquilidade públicas.
II - A situação económica e financeira dos arguidos, as ligações que mantém com países estrangeiros, são factores que tornam desadequada a substituição da medida de coacção de prestação de caução pela a medida de coacção de obrigação de apresentações periódica perante o OPC competente para prevenir o perigo de fuga. Essa medida não permitir uma reacção tempestiva a uma manifestação de fuga dos arguidos.
|
[
"MEDIDA DE COAÇÃO",
"CAUÇÃO",
"FRAUDE NA OBTENÇÃO DE SUBSÍDIO OU SUBVENÇÃO",
"PERIGO DE FUGA",
"PERTURBAÇÃO DA ORDEM E TRANQUILIDADE PÚBLICAS"
] |
Acordam, em conferência, na 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
1. Relatório
:
No processo de inquérito com n.º 269/20.4KRLSB, foi proferido despacho a 16/12/2024 pelo Juiz 1 do Tribunal Central de Instrução Criminal que
determinou que, cada um dos arguidos, AA e BB, aguarde os ulteriores termos do processo em liberdade, sujeito à aplicação cumulativa das seguintes medidas de coacção
:
-
termo de identidade e residência, já prestado
;
-
prestação de caução, por depósito autónomo à ordem dos presentes autos, no valor de € 100.000,00 (cem mil euros), no prazo de 30 (trinta dias) dias a contar da presente data
;
-
proibição de, por qualquer meio, seja directamente ou por interposta pessoa, contactarem entre si e/ou com os arguidos CC e DD e/ou com a suspeita EE
;
-
proibição se ausentar para o estrangeiro sem autorização, devendo o arguido BB, no prazo máximo de 2 dias úteis, proceder à entrega, neste tribunal, do seu passaporte
.
Inconformado o arguido
AA
apresentou as seguintes conclusões:
"
1ª- As medidas de coacção são medidas que restringem direitos fundamentais do Arguido, e consequentemente, estão sujeitas a uma série de princípios gerais de aplicação, cfr. disposto nos artigos 191º e 193º, nºs 1 e 4 todos do CPP.
2ª- A aplicação e escolha das medidas de coacção deve ter sempre em consideração o facto que estas sejam comunitariamente suportáveis face à possibilidade de estarem a ser aplicadas a um inocente.
3ª- A prestação de caução, por depósito autónomo à ordem dos presentes autos, no valor de € 100.000,00 (cem mil euros), por via de depósito autónomo, aplicada ao Arguido, viola os princípios da proporcionalidade, adequação e necessidade.
4ª- Não se encontram reunidos os pressupostos de aplicação das medidas de coacção, nos termos do disposto no artigo artigo 204º do CPP, pois, no preciso momento da sua aplicação não existe Fuga ou perigo de fuga; Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.
5ª- A aplicação da medida de coacção de prestação de caução, deve ser revogada, na medida em que se mostra manifestamente excessiva e onerosa, sem qualquer proporcionalidade, adequação e tempestividade de ser aplicada ao Arguido.
6ª- Não subsiste qualquer perigo de fuga, na medida em que ao mesmo foram apreendidos os passaportes e proibido de se ausentar do território nacional sem autorização prévia.
7ª- As buscas e apreensões ocorridas nos Autos, nomeadamente todo o acervo documental presente na habitação do Arguido, todos os computadores e suporte digital apreendido, telemóveis, acesso dossiers empresariais e tudo o quanto consta no Auto de Buscas e Apreensão, não há qualquer elemento, que possa concorrer para o perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova.
8ª- Não há perigo de continuação da actividade criminosa, pois balizou o JIC que os factos pelos quais vem indiciado o Arguido, se compreendem entre ...de 2018 a ... de 2020, decorridos que já estão cerca de mais de 4 anos.
9ª- Não há qualquer perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, pois já foi aprovado e homologado por Sentença transitada em julgado o plano de insolvência respeitante à sociedade ..., prevendo o pagamento do crédito privilegiado do IAPMEI na sua globalidade de investimento feito e crédito reclamado, mais ainda não contemplando o pagamento de qualquer crédito subordinado, que totalizam 10.290.002,57 € e dos quais 10.289.997,26€ correspondem a créditos dos sócios da empresa.
10ª- A recuperação da ... reúne, consenso entre todos os credores, na sua maioria, pretendendo que a fábrica volte a laborar, pois na região em que se integra é um investimento de responsabilidade, de enorme peso social e financeiro, para além da inerente mais-valia para o tecido empresarial local, regional e nacional.
11ª- As exigências cautelares já se encontram devidamente acauteladas de forma a impedir que o Arguido se frustre à acção da Justiça e à sua comparência em todos os actos processuais e de seu interesse e de necessidade da sua intervenção.
12ª- Não estão preenchidos os pressupostos de aplicação prescritos no artigo 204º do CPP, não podendo ser aplicada ao Arguido a medida de coacção de prestação de caução, mormente e no valor de €100.000,00 (cem mil euros) por via de depósito autónomo, violando a decisão o disposto nos artigos 193º, nºs1 e 4 e 204, nº1 alíneas a), b) e c) todos do CPP, e nessa consequência deve ser REVOGADA.
13ª- Sem prescindir, caso assim se não entenda, deve ser a mesma substituída pela obrigação de apresentação periódica quinzenal, em dia e hora a definir, por forma a permitir ao Arguido cumprir com as suas obrigações perante as Autoridades Judiciárias, manter a sua vida profissional e pessoal direitos pessoais e constitucionalmente consagrados e poder levar a bom porto a recuperação da empresa ....
14ª- Face ao disposto nos artigos 191º, 193º, nºs1 e 4, 198º, nºs 1 e 2 e 200º do CPP, reitera-se serem adequadas as medidas de coacção já aplicadas ao Arguido nesta fase inicial e cautelar, aplicando, caso assim se entenda e não proceda a total eliminação de caução, sem mais, a substituição da prestação de caução pela obrigação de apresentação periódica quinzenal, em dia e hora a definir.
15ª- O despacho recorrido fez uma exígua e manifestamente incorrecta apreciação dos factos indiciários, tendo violado o disposto nos arts. 193º, 197º, 198º e 204º, nºs 1 alíneas a) e c) todos do CPP e ainda o 28º, nº 2 da CRP, nesta consequência deverá a medida de coacção da prestação de caução no montante de € 100.000,00 por via de depósito autónomo aplicada ao arguido/recorrente ser REVOGADA e substituída por outra que respeite os princípios da necessidade, adequação, proporcionalidade e menor intervenção, designadamente, a obrigação de apresentação periódica, cumulada com a proibição de se ausentar para o estrangeiro sem autorização e ainda proibição de contactos com os demais arguidos, estas já determinadas
".
O Ministério Público apresentou resposta ao recurso do arguido
AA
, tendo concluído pela improcedência do recurso e para tal formulou as seguintes conclusões:
"
1. São condições gerais de aplicação das medidas de coacção:
- A existência de um processo criminal, comum ou especial, já instaurado, no decurso do qual a pessoa que vai ser sujeita a uma medida de coacção foi constituída arguida (artigo 192.º, n.º 1, do Código de Processo Penal);
- A inexistência de causas de isenção da responsabilidade ou da extinção do procedimento criminal (artigo 192.º, n.º 2, do Código de Processo Penal);
- O fumus comissi delicti (artigos 192.º, n.º 2, e 202.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código de Processo Penal);
- A verificação de indícios fortes da prática de um crime por parte do arguido;
- O pericula libertatis – artigo 204.º do Código de Processo Penal.
2. Verificando-se tais condições gerais e pressupostos para aplicar ao arguido uma medida de coacção, deve em concreto ser-lhe aplicada, de entre as previstas na lei, aquela que se revelar mais adequada a salvaguardar e realizar naquele caso as finalidades da sua aplicação (acautelar determinada exigência processual) e se mostrar proporcional à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas (artigo 193.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).
3. No caso concreto, indiciam os autos a prática pelo arguido ora recorrente da prática de crime de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção, na forma agravada, previstos e punidos pelo artigo 36.º, n.ºs 1, alíneas a), b) e c), 2 e 5, alínea a), do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, e eventuais crimes de branqueamento, previstos e punidos pelo 368.º-A do Código Penal, e de fraude fiscal, eventualmente qualificada, previstos e punidos pelos artigo 103.º e 104.º do Regime Geral das Infracções Tributárias.
4. Em resumo, lograram os arguidos BB e AA, no seguimento do plano por si delineado, prestar falsas informações, quer respeitantes à própria natureza da candidatura e valor do investimento a realizar e a co-financiar, quer na ocultação de situações de conflito de interesses, e, bem assim, no fabrico e utilização de documentos falsos (contratos, facturas e transferências bancárias), provocando um prejuízo ao Estado Português no valor de € 6.732.650,00, que terá que devolver à Comunidade Europeia.
5. Considera o arguido que "não há efectivo perigo de fuga, na medida em que não é por ter residência fiscal no ..., que o Arguido iria em virtude dos presentes Autos para lá retirar-se na medida em que é em Portugal que tem o seu agregado familiar, vida pessoal e profissional. Não existem nos Autos, nenhum outro elemento capaz de enformar este perigo de fuga, cujo blindado estaria pela apreensão dos passaportes do Arguido, no dia em que viu a sua habitação ser alvo de buscas e apreensões, no âmbito dos presentes Autos. Sem documentos que lhe permitam sair país, com a comunicação ao SIS e demais medidas tomadas, como se constituirá este perigo de fuga?"
6. Discordamos desta conclusão do arguido recorrente, atenta a realidade que nos rodeia.
Além da possibilidade de o arguido se ausentar do país por outro meio que não através de transporte aéreo, designadamente mediante transporte terrestre, a circunstância de lhe ter sido aprendido, no âmbito das buscas realizadas, o seu passaporte, tal não o impediria de solicitar a emissão de um outro passaporte.
7. Estamos perante um indivíduo que dispõe de título que lhe permite residir no ..., onde tem registado o seu domicílio fiscal, com contas bancárias por si tituladas em instituições bancárias de tal país, com todos os instrumentos e capacidade financeira que lhes permite garantir ali a sua mobilidade e subsistência, e logo num país não cooperante, como o ..., receando-se, assim, que se furte à acção da justiça, optando por se deslocar para tal país.
8. Acresce que a aplicação das outras medidas de coacção não são suficientes para garantir que o arguido não se ausente de território nacional, pelas razões acima enunciadas. Basta ao arguido deslocar-se para ... de carro.
9. Não é, ao contrário do que o recorrente invoca, "manifestamente impossível ao Arguido, pretender frustrar-se à acção da justiça e logo e assim a medida de coacção de prestação de caução, encontra-se manifestamente desadequada, desproporcional e excessiva, por não haver qualquer causa justificativa para a sua aplicação, na medida em que outras medidas de coacção aplicadas ao arguido acautelam a sua permanência no país e a sua presença nos actos judiciais e que seja tida por oportuna e necessária."
10. Atento o exposto, entendemos que se revela adequada e eficaz a aplicação da caução, de forma a que os arguidos se sintam inibidos de prosseguir na descrita actividade, sabendo que se assim suceder, perdem o valor da caução.
11. Quanto ao valor da caução, apesar de o arguido recorrente considerar que o mesmo se revela desfasado de qualquer realidade, entendemos que se mostra adequado ao montante do fundo obtido e aqui em causa – quase 7 milhões de euros – e aos rendimentos do arguido e ao seu património (a título de exemplo, a moradia onde o arguido reside com a sua família foi avaliada, em avaliação junta pelo próprio, em cerca de três milhões e quinhentos mil euros).
12. Assim, a medida de coacção em causa não deve ser revogada nem tão pouco substituída por outra, nomeadamente a obrigação de apresentação periódica, uma vez que tal medida não permite garantir que o arguido não se frustre à acção da Justiça.
13. Por outro lado, considera o arguido que não se verifica perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova, face às buscas e apreensões realizadas no inquérito, nomeadamente todo o acervo documental presente na habitação do arguido, todos os computadores e suporte digital apreendido, telemóveis, acesso dossiers empresariais e tudo o quanto consta no auto de busca e a apreensão.
14. E que não se verifica qualquer perigo de continuação da actividade criminosa uma vez que o crime se mostra já executado, consumado e sem qualquer possibilidade de ser praticado pelo arguido recorrente qualquer outro acto de execução. Nesta perspectiva, considera que será manifestamente esbatido, para não dizer inexistente, qualquer possibilidade de continuação da actividade criminosa, porque, supostamente já consumada, logo inexiste qualquer perigosidade de continuação da prática de actos.
15. A extensão dos factos protagonizados pelos arguidos, quer no que se reporta ao período em que protagonizaram os factos ilícitos, quer pelos montantes pecuniários públicos que conseguiram que lhes viessem a ser atribuídos de forma fraudulenta, provenientes da UE e do Orçamento de Estado, bem como a complexidade e sofisticação das suas acções fraudulentas, constituem factos demonstrativos de personalidades que apontam para uma evidente persistência no prosseguimento da actividade criminosa, manifestam grande dano social, impõem uma especial censurabilidade e, sobretudo, não deixam quaisquer dúvidas de que, tal como até aqui, prosseguirão agindo pela mesma forma a não ser que interiorizem o grande desvalor das suas acções.
16. Por outro lado, os autores dos factos ora em causa não evidenciam qualquer autocensura para o seu comportamento, ademais porque os mesmos lhes permitem auferir avultadas vantagens patrimoniais, o que denota um forte perigo de continuação da actividade criminosa.
17. Conhecedores da factualidade que lhes é imputada e das diligências de investigação já realizadas, ficaram os arguidos cientes do estado da investigação e das consequências que dela previsivelmente lhes advirão.
18. Esta circunstância, analisada à luz das precauções e cautelas de que os arguidos BB e AA se rodeiam na sua actuação, designadamente, recorrendo ao registo de bens e utilização de contas bancárias em nome de terceiros, de modo a evitar deixar traços dos seus actos, faz surgir um forte perigo de perturbação do inquérito, designadamente no que respeita à aquisição da prova ainda não recolhida, sendo expectável que os arguidos procurem fazer desaparecer as provas da sua conduta e manipular depoimentos/declarações daqueles que devam vir a ser ouvidos como testemunhas e/ou arguidos no processo.
19. Assim, existe o fundado receio que os arguidos BB e AA, ficando a saber, aquando da realização das buscas, que se encontram a ser investigados e tendo consciência da gravidade dos factos que lhes são imputados, possam perturbar o decurso do inquérito, informando outros elementos da existência da investigação, combinando com os mesmos a versão dos factos que deva ser apresentada, bem como a destruição de elementos de prova que possam estar na sua posse, impedindo desse modo a aquisição de prova essencial à demonstração dos factos em investigação.
20. Esta realidade faz-nos concluir pela fortíssima presença dos perigos de perturbação do inquérito como ainda de continuação de actividade criminosa, de actuações destinadas a ocultar, a viciar e também a impossibilitar a recolha de prova.
21. Os perigos de continuação da actividade criminosa, de perturbação do inquérito e de fuga que se fazem sentir carecem de ser acautelados, o que apenas poderá ser feito mantendo as medidas de coacção aplicadas ao arguido AA em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido
".
Inconformado o arguido
BB
apresentou as seguintes conclusões:
"
1ª - O artigo 193º, nº 1 do CPP consagra que as medidas de coacção devem ser necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requerer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.
2ª - A medida de coacção aplicada da prestação de caução no montante de € 100.000,00 (cem mil euros) por via de depósito autónomo, viola os princípios da proporcionalidade, necessidade e adequação.
3ª - A decisão de aplicação da referida medida de coacção deve ser revogada, uma vez que não se encontram preenchidos os pressupostos da sua aplicação previstos no art.º 204º do CPP, sendo a mesma manifestamente desadequada, desproporcional, excessiva e onerosa para o Arguido, em face das demais medidas de coacção cumulativamente aplicadas.
4ª - Não existe perigo de fuga (204º, al. a) do CPP), ou pelo menos o mesmo está bastante mitigado atento a que, por um lado, foi aplicado cumulativamente ao Arguido as medidas de proibição de se ausentar para o estrangeiro e de entrega do passaporte e, por outro lado, tendo o Arguido já sido alvo de busca e apreensão domiciliária a .../.../2022 e, possuindo nessa data já residência fiscal no ..., jamais decidiu por residir no local, apenas se deslocando ao exterior por necessidades inerentes às suas responsabilidades profissionais, pelo que não se verifica em concreto, qualquer perigo de fuga, que resulta assim afastado;
5º - Quanto ao perigo de continuação de actividade criminosa previsto na al. c) do art.º 204º do CPP, entendemos igualmente não se verificar, pois, em concreto, não existem quaisquer elementos probatórios que o sustentem;
6ª - Não existe qualquer indício de que o arguido Recorrente se continue a dedicar à actividade ilícita indiciada que fundamentou a aplicação das medidas de coacção, sendo certo que os factos/indícios que fundamentam a imputação ao Arguido do crime de fraude na obtenção de subsídio na forma agravada, estão perfeitamente balizados e circunscritos ao período temporal de ... de 2018 a ... de 2020, tendo já decorrido mais de 4 anos após a prática dos alegados factos ilícitos imputados ao Arguido;
7ª – De igual modo, ficou demonstrado qualquer perigo d perturbação da ordem e tranquilidade públicas, porquanto, por um lado, foi aprovado e homologado por sentença o plano de insolvência de recuperação da sociedade ... contemplando o pagamento na íntegra do valor co-financiado pelo IAPMEI, inexistindo assim ao presente qualquer prejuízo para o erário público, uma vez que o plano está em curso e em vigor e, por outro lado, não se verificou qualquer alarme social ou sentimento de revolta popular, como ficou amplamente demonstrado pela circunstância do mesmo ter sido aprovado pela maioria dos credores sociais e ainda do reconhecimento no plano de insolvência do crédito subordinado dos sócios em valor superior a € 10.000.000,00, cuja restituição não foi prevista no plano aprovado, o que contraria qualquer argumentação no sentido da apropriação em proveito próprio dos arguidos dos fundos comunitários obtidos;
8ª – As exigências cautelares visadas com a medida de coacção aplicada da prestação de caução no valor de € 100.000,00 por via de depósito autónomo, por forma a impedir que o arguido se frustre à acção da justiça e a garantir a sua comparência aos actos processuais, encontram-se já plenamente asseguradas com as demais medidas de coacção aplicadas cumulativamente.
9º - Não obstante, ainda que assim se não entenda, a substituição da prestação de caução pela obrigação de apresentação periódica quinzenal ou semanal prevista no artigo 198º do CPP, conjugadas com as demais medidas aplicadas cumulativamente, como a apreensão do passaporte e proibição de ausentar para o estrangeiro, de resto já determinadas, acautelam plenamente as finalidades cautelares, compatibilizando-se de forma mais proporcional e adequada ao exercício dos direitos fundamentais do Arguido como o direito ao trabalho, no caso ao exercício da sua profissão de ... que constitui o seu único meio de sustento e, bem assim, o direito de assistência familiar aos seus Pais e filhos.
10ª - O despacho recorrido fez uma incorrecta apreciação dos factos e violou, entre outros, os arts. 193º, 197º, 198º e 204º, nºs 1 alíneas a) e c) todos do CPP e ainda o 28º, nº2 da CRP, e em face, deverá a medida de coacção da prestação de caução no montante de € 100.000,00 por via de depósito autónomo aplicada ao arguido/recorrente ser REVOGADA e substituída por outra que respeite os princípios da necessidade, adequação, proporcionalidade e menor intervenção, designadamente, a obrigação de apresentação periódica, cumulada com a proibição de se ausentar para o estrangeiro sem autorização e a entrega do respectivo passaporte e ainda proibição de contactos com os demais arguidos, estas já concretamente determinadas
".
O Ministério Público apresentou resposta ao recurso do arguido
BB
, tendo concluído pela improcedência do recurso e para tal formulou as seguintes conclusões:
"
1. São condições gerais de aplicação das medidas de coacção:
- A existência de um processo criminal, comum ou especial, já instaurado, no decurso do qual a pessoa que vai ser sujeita a uma medida de coacção foi constituída arguida (artigo 192.º, n.º 1, do Código de Processo Penal);
- A inexistência de causas de isenção da responsabilidade ou da extinção do procedimento criminal (artigo 192.º, n.º 2, do Código de Processo Penal);
- O fumus comissi delicti (artigos 192.º, n.º 2, e 202.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código de Processo Penal);
- A verificação de indícios fortes da prática de um crime por parte do arguido;
- O pericula libertatis – artigo 204.º do Código de Processo Penal.
2. Verificando-se tais condições gerais e pressupostos para aplicar ao arguido uma medida de coacção, deve em concreto ser-lhe aplicada, de entre as previstas na lei, aquela que se revelar mais adequada a salvaguardar e realizar naquele caso as finalidades da sua aplicação (acautelar determinada exigência processual) e se mostrar proporcional à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas (artigo 193.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).
3. No caso concreto, indiciam os autos a prática pelo arguido ora recorrente da prática de crime de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção, na forma agravada, previstos e punidos pelo artigo 36.º, n.ºs 1, alíneas a), b) e c), 2 e 5, alínea a), do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, e eventuais crimes de branqueamento, previstos e punidos pelo 368.º-A do Código Penal, e de fraude fiscal, eventualmente qualificada, previstos e punidos pelos artigo 103.º e 104.º do Regime Geral das Infracções Tributárias.
4. Em resumo, lograram os arguidos BB e AA, no seguimento do plano por si delineado, prestar falsas informações, quer respeitantes à própria natureza da candidatura e valor do investimento a realizar e a co-financiar, quer na ocultação de situações de conflito de interesses, e, bem assim, no fabrico e utilização de documentos falsos (contratos, facturas e transferências bancárias), provocando um prejuízo ao Estado Português no valor de € 6.732.650,00, que terá que devolver à Comunidade Europeia.
5. Refere o arguido que "tem a firme intenção de demonstrar no presente processo que os factos-indícios que lhe são concretamente imputados e que determinaram a aplicação das medidas de coacção, são perfeitamente infundados e descontextualizados da sua dinâmica negocial e, consequentemente, a final, não merecerão qualquer juízo de censurabilidade, razão pela qual falece o argumento vertido no douto despacho ora em crise quanto ao alegado perigo de fuga. Não se olvide que o perigo de fuga foi já significativamente mitigado com a apreensão do passaporte do Arguido e a proibição de se ausentar para o estrangeiro sem autorização do tribunal, pelo que a possibilidade de se frustrar à acção da justiça é inexistente, mostrando-se tal medida objectivamente suficiente, idónea, necessária e adequada à finalidade de assegurar que o Arguido não se furte aos compromissos da justiça e compareça nos actos processuais para os quais seja notificado."
6. Ora, discordamos desta conclusão do arguido recorrente, atenta a realidade que nos rodeia, tendo sido, por essa razão, requerida pelo Ministério Público a aplicação das várias medidas de coacção ora em causa.
7. Além da possibilidade de o arguido se ausentar do país por outro meio que não através de transporte aéreo, designadamente mediante transporte terrestre, a circunstância de lhe ter sido aprendido o seu passaporte mitiga, mas não tem a virtualidade de invalida, a possibilidade de fuga.
8. Estamos perante um indivíduo que dispõe de título que lhe permite residir no ..., onde tem registado o seu domicílio fiscal, com contas bancárias por si tituladas em instituições bancárias de tal país, com todos os instrumentos e capacidade financeira que lhes permite garantir ali a sua mobilidade e subsistência, e logo num país não cooperante, como o ..., receando-se, assim, que se furte à acção da justiça, optando por se deslocar para tal país.
9. Acresce que a aplicação das outras medidas de coacção não são suficientes para garantir que o arguido não se ausente de território nacional, pelas razões acima enunciadas. Basta ao arguido deslocar-se para ... de carro.
10. Atento o exposto, entendemos que se revela adequada e eficaz a aplicação da caução, de forma a que o arguido se sinta inibido de prosseguir na descrita actividade, sabendo que se assim suceder, perde o valor da caução.
11. Por outro lado, considera o arguido que não se verifica perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova e, bem assim, que não se verifica qualquer perigo de continuação da actividade criminosa.
12. Assenta a sua fundamentação na existência de um plano de insolvência, no âmbito do processo especial de insolvência que correu termos sob o nº 6740/23.9T8LSB, que foi aprovado e no que ali se prevê relativamente ao plano de pagamentos.
13. Mais conclui o recorrente que "não se pode afirmar nesta fase um prejuízo efectivo para o erário público, dada a aprovação e homologação do plano de pagamentos no âmbito do processo especial de insolvência".
14. Ora, a circunstância de ter existido um plano de pagamentos não significa que o mesmo esteja a ser cumprido, nada referindo o recorrente a este respeito.
15. Por outro lado, tal não implica que não se verifique um prejuízo para o Estado Português, que existe, uma vez que o subsídio ora em causa foi fraudulentamente obtido e terá de ser devolvido às instâncias europeias. E terá, igualmente, de ser devolvido pelos arguidos, porque indevidamente concedido, nos termos da factualidade imputada aos arguidos, que não é posta em crise nos recursos apresentados.
16. Acresce que, quando o recorrente se refere às prestações suplementares, o facto de tal ter sido declarado não significa que tenha efectivamente tido lugar.
17. A extensão dos factos protagonizados pelos arguidos, quer no que se reporta ao período em que protagonizaram os factos ilícitos, quer pelos montantes pecuniários públicos que conseguiram que lhes viessem a ser atribuídos de forma fraudulenta, provenientes da UE e do Orçamento de Estado, bem como a complexidade e sofisticação das suas acções fraudulentas, constituem factos demonstrativos de personalidades que apontam para uma evidente persistência no prosseguimento da actividade criminosa, manifestam grande dano social, impõem uma especial censurabilidade e, sobretudo, não deixam quaisquer dúvidas de que, tal como até aqui, prosseguirão agindo pela mesma forma a não ser que interiorizem o grande desvalor das suas acções.
18. Por outro lado, os autores dos factos ora em causa não evidenciam qualquer autocensura para o seu comportamento, ademais porque os mesmos lhes permitem auferir avultadas vantagens patrimoniais, o que denota um forte perigo de continuação da actividade criminosa.
19. Conhecedores da factualidade que lhes é imputada e das diligências de investigação já realizadas, ficaram os arguidos cientes do estado da investigação e das consequências que dela previsivelmente lhes advirão.
20. Esta circunstância, analisada à luz das precauções e cautelas de que os arguidos BB e AA se rodeiam na sua actuação, designadamente, recorrendo ao registo de bens e utilização de contas bancárias em nome de terceiros, de modo a evitar deixar traços dos seus actos, faz surgir um forte perigo de perturbação do inquérito, designadamente no que respeita à aquisição da prova ainda não recolhida, sendo expectável que os arguidos procurem fazer desaparecer as provas da sua conduta e manipular depoimentos/declarações daqueles que devam vir a ser ouvidos como testemunhas e/ou arguidos no processo.
21. Assim, existe o fundado receio que os arguidos BB e AA, ficando a saber, aquando da realização das buscas, que se encontram a ser investigados e tendo consciência da gravidade dos factos que lhes são imputados, possam perturbar o decurso do inquérito, informando outros elementos da existência da investigação, combinando com os mesmos a versão dos factos que deva ser apresentada, bem como a destruição de elementos de prova que possam estar na sua posse, impedindo desse modo a aquisição de prova essencial à demonstração dos factos em investigação.
22. Esta realidade faz-nos concluir pela fortíssima presença dos perigos de perturbação do inquérito como ainda de continuação de actividade criminosa, de actuações destinadas a ocultar, a viciar e também a impossibilitar a recolha de prova.
23. Os perigos de continuação da actividade criminosa, de perturbação do inquérito e de fuga que se fazem sentir carecem de ser acautelados, o que apenas poderá ser feito mantendo as medidas de coacção aplicadas ao arguido AA em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido
".
Os autos subiram a este Tribunal e nos mesmos o Ministério Público elaborou parecer em que conclui pela improcedência do recurso.
Tendo alegado que:
"
Subscrevemos na íntegra a posição do Ministério Público em 1ª. Instância, atenta a completude, pertinência, correcção jurídica e clareza da sua fundamentação, a realçar, com total acerto, os fundamentos de facto e de direito determinantes do entendimento de que não devem ser procedentes os recursos, aqui sopesando não só as circunstâncias de cometimento dos ilícitos, também ponderadas na decisão sob recurso – que se apresenta correctamente fundamentada- como a verificação dos perigos previstos no artº. 204º nº-1 a) e c) do CPP que, fundada, proporcional e adequadamente alicerçam a aplicação da medida de coacção de prestação de caução aplicada a cada recorrente
Em seu reforço, e não deixando de ter presente que às medidas de coacção correspondem a finalidades estritamente cautelares, socorremo-nos ainda da jurisprudência expressa no Acórdão da Relação de Lisboa de 11-1-2024, proferido no processo 123/23.8GGSNT-A.L1-9 que, debruçando-se sobre os pressupostos do artº. 204º do CPP, refere:
"Conforme pertinentemente salientado no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 19/06/2019, (Processo nº 207/18.4PDBRR.L1-3, relator João Lee Ferreira, in
www.dgsi.pt
) «A medida de coacção escolhida deverá manter uma relação directa com a gravidade dos crimes e da sanção previsível, cabendo ponderar elementos como o juízo de censurabilidade da conduta, o modo de execução, e a importância dos bens jurídicos atingidos.»
E ainda, da mesma Relação, acórdão de 7-02-2023, Processo nº 600/22.8XLSB, da relatora Carla Francisca (in
www.dgsi.pt
) «Assim, no que respeita ao princípio da proporcionalidade, exige-se que, em cada fase do processo exista uma relação de idoneidade entre a medida de privação da liberdade individual aplicada, a gravidade do crime praticado e a natureza e medida da pena em que, previsivelmente, o arguido virá a ser condenado.
Tal gravidade deverá ser ponderada em função do modo de execução do crime, dos bens jurídicos violados, da culpabilidade do agente e, em geral, de todas as circunstâncias que devam ser consideradas em sede de determinação da medida concreta da pena.»
Em consonância com o exposto e os fundamentes expressos nas respostas a recurso apresentadas pelo Ministério Público em 1ª. Instância, emitimos assim parecer no sentido da improcedência de ambos os recursos"
.
Os autos foram a vistos e a conferência.
2. Âmbito do recurso e identificação das questões a decidir
O âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, só sendo lícito ao Tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º n.º 2 do Código Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr., Acórdão do Plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça de 19/10/1995, Diário da República, Série I-A, de 28/12/1995 e artigos 403.º n.º 1 e 412.º n.º 1 e n.º 2, ambos do Código Processo Penal).
Inexistindo questões de conhecimento oficioso que importe decidir e face ao teor das conclusões da motivação apresentadas, nos presentes autos as questões a apreciar respeitam: à verificação dos pressupostos da aplicação da medida de coacção de prestação de caução e à substituição da medida de coacção de prestação de caução pela medida de coacção de obrigação de apresentações periódica perante o OPC competente.
3. Fundamentação
1. O despacho recorrido tem o seguinte teor:
"
A detenção dos arguidos AA e BB foi legal, porquanto efectuada fora de flagrante delito, ao abrigo de mandados de detenção emitidos pelo Ministério Público (fls. 4335 e 4335v. e fls. 4447 e 4447v.), nos termos dos arts. 257.º, n.º 1, als. a) e b) e 258.º, ambos do Cód. Processo Penal.
Foi respeitado o prazo de apresentação a que se referem os artigos 141.º, n.º 1 e 254.º, n.º 1, al. a) do mesmo diploma.
*
Tendo em conta a globalidade dos elementos probatórios já carreados para os autos, concretamente os elencados na promoção do Ministério Público de apresentação dos arguidos, a fls. 4522 e 4522v. dos autos, e a certidão electrónica e respectivo código de acesso "OJQJ-YGE2-JSXM-5AX7", junta aos autos, pela Defesa do arguido AA no decurso da diligência de 1.º interrogatório judicial, considero fortemente indiciada a seguinte factualidade:
- factos constantes dos arts. 1.º a 77.º da promoção do Ministério Público de apresentação dos arguidos;
- contudo, não consta nenhuma ordem de transferência bancária da conta da sociedade ... para a ..., precisamente por se tratar de um contrato simulado;
- factos constantes dos arts. 79.º a 135.º da promoção do Ministério Público de apresentação dos arguidos.
**
Mais ficou indiciado, relativamente à sociedade "..., declarada insolvente por sentença de .../.../2023, transitada em julgado, e à condição pessoal de cada um dos arguidos, o seguinte:
- por sentença proferida em .../.../2024, transitada em julgado em .../.../2024, no âmbito do processo de Insolvência de pessoa colectiva n.º … a correr termos no Juízo de …, Juiz …, do Tribunal Judicial da Comarca …, foi aprovado e homologado o plano de insolvência da devedora "..., onde, de entre as medidas aprovadas, temos a de, ao longo de um prazo de 10 anos, a insolvente proceder ao pagamento do crédito, no valor de € 6.747.633,99, reconhecido ao IAPMEI.
*
- o arguido AA possui, como habilitações literárias, a licenciatura em …;
- integrou, durante dezasseis anos, e até ao ano de 1998, o ..., após o que se dedicou, durante alguns anos, à actividade de ... designadamente ...;
- actualmente, exerce a actividade profissional de ..., auferindo um rendimento médio mensal de cerca de € 2.500,00;
- vive na companhia da esposa, ... na ..., e das duas filhas comuns do casal;
- o agregado familiar vive em casa própria, pagando uma prestação mensal de € 3.000,00, relativa ao crédito contraído para compra de casa;
- não lhe são conhecidos antecedentes criminais.
*
– o arguido BB possui, como habilitações literárias, a licenciatura em ..., na especialidade de …, que concluiu na ..., tendo, durante o período da licenciatura, trabalhado nos ...;
- após o cumprimento do serviço militar obrigatório, de um ano e seis meses, que cumpriu no …, iniciou a actividade profissional de ..., em regime de profissional liberal, que mantém até hoje, sendo também membro da ...;
- divorciou-se há cerca de dois anos, tendo dois filhos, com as idades de 19 anos e de 25 anos, respectivamente;
- no decurso da sua actividade profissional auferiu, no decurso do ano de 2023, um rendimento médio mensal de cerca de € 5.000,00 a € 10.000,00, e, no decurso do corrente ano de 2024, um rendimento médio mensal de cerca de € 5.000,00;
- não lhe são conhecidos antecedentes criminais.
*
Os arguidos AA e BB remeteram-se ao silêncio, relativamente à factualidade enunciada no requerimento do Ministério Público de apresentação dos arguidos, direito que processualmente lhes é conferido, de maneira que não contribuíram, em nada, para o apuramento dos factos.
Os factos indiciados resultam, assim, da apreciação global de todos os elementos probatórios, de natureza pericial, documental e testemunhal, carreados para os autos, elencados na promoção do Ministério Público de apresentação dos arguidos, a fls. 4522 e 4522v. dos autos, bem como no documento junto aos autos, no decurso da diligência de 1.º interrogatório judicial, pela Defesa do arguido AA, com especial enfoque para os seguintes:
- certidão permanente da sociedade "...", junta a fls. 61 a 64 dos autos principais (arts. 2., 3., 7., 8. e 9.);
- candidatura apresentada pela sociedade "..." ao Programa Operacional Competitividade e Internacionalização, apoiada pelo FEDER, visando a obtenção de uma comparticipação financeira para execução de um projecto de investimento industrial, traduzido na criação de uma ..., no concelho da ..., que integra fls. 2 a 22 do Apenso A ("Informações remetidas pelo IAPMEI") e Termo de Aceitação, que integra fls. 5 a 11, e informação do IAPMEI, que integra fls. 1193 e 1194, dos autos principais (arts. 4. a 6., 10. a 12., 50., 73., 120. e 121.);
- contrato de mútuo, junto, por cópia, a fls. 23 a 25 dos autos principais (arts. 13. a 18.);
- extracto bancário, de fls. 25v. a 26v., e documento comprovativo da transferência a crédito de fls. 27 dos autos principais (art. 19.);
- contratos de mútuo, juntos a fls. 90 a 94, 213 a 217 e 221 a 225, e comunicações do ..., de fls. 86 e 89 dos autos principais (arts. 20. a 23.);
- comunicação de operações suspeitas de fls. 226 a 229 e extractos bancários de fls. 230 a 239 dos autos principais (arts. 24. e 25.);
- certidão permanente da sociedade "...", junta a fls. 65 a 67, documentos de fls. 22v., 30 a 36 e auto de diligência de fls. 260 a 265 dos autos principais (arts. 26. a 31.);
- documentação bancária que integra fls. 91, 109, 98, 113 e 117 do Apenso 2 – Informações Bancárias (2.14 – Interveniente/Suspeito ...) e Informação/Cota da Polícia Judiciária de fls. 996 e 997 dos autos principais (arts. 32. a 34. e 37. a 40.);
- documentos de fls. 998 a 1019 (arts. 35. e 36.);
- documentação bancária de fls. 4, 34, 34v. e 35 do Apenso 2 – Informações Bancárias (2.14 – Interveniente/Suspeito ...), de fls. 51 do Apenso 2 – Informações Bancárias (2.7 – Interveniente/Suspeito ...) e de fls. 27 dos autos principais (arts. 41. a 47.);
- certidão permanente da sociedade "...", junta a fls. 6 e 6v. do Apenso 2 – Informações Bancárias (2.22 – Interveniente/Suspeito ...) - (arts. 48. e 49.);
- documento intitulado "Processo de Aquisição da Linha de Produção – Unidade Industrial de produção de Pellets", que integra fls. 93 a 140 do Apenso A ("Informações remetidas pelo IAPMEI"), contrato de compra e venda outorgado entre as empresas "..." e "...", junto, por cópia, a fls. 3911 a 3914 dos autos principais, facturas juntas a fls. 148, 181, 230 e 234 do referido Apenso A, extractos bancários juntos a fls. 43 do Apenso 2 – Informações Bancárias (2.7.1.1. – Interveniente/Suspeito ...) e a fls. 83, 109 e 246 do Apenso 2 – Informações Bancárias (2.7.9. – Interveniente/Suspeito ...) e informação que integra a última folha do Apenso 2 – Informações Bancárias (2.7.1.1. – Interveniente/Suspeito ...), folha esta que se segue à fls. 54 e que não se encontra numerada (arts. 51. a 60.);
- contrato de compra e venda outorgado entre as empresas "..." e "...", junto, por cópia, a fls. 3907 a 3910 dos autos principais (tradução a fls. 3919 a 3923) – (arts. 61. a 79. e 82. a 87);
- Relatório Técnico de Visita, junto a fls. 3191 a 3202 dos autos principais, realizado pela Agência para o Desenvolvimento e Coesão, e anexos de fls. 3203 a 3208 (arts. 88. a 90. e 122.), cujo teor foi corroborado e complementado pelo depoimento testemunhal de FF, …do IAPMEI, a quem incumbiu elaborar o referido Relatório Técnico de Visita, que confirmou o respectivo teor, tendo, ainda, salientado que por decisão definitiva da Autoridade de Gestão (COMPETE), de .../.../2024, com base nas irregularidades detectadas, o contrato de concessão de incentivos, outorgado com a ..., foi revogado, tendo o depoimento desta testemunha sido determinante para considerarmos como fortemente indiciada a factualidade enunciada nos arts. 91., 92. e 123.;
- no que respeita aos factos enunciados nos arts. 93. a 116. e 124., o tribunal sedimentou a sua convicção na análise conjugada do Relatório Intercalar elaborado pelo Gabinete de Recuperação de Ativos, que integra fls. 191 a 233 do Apenso I (Apenso de Investigação Patrimonial e Financeira), no Relatório Adicional de fls. 4 a 12 e no Relatório IRN de fls. 23 a 25 do Apenso GRA – NAI 3905859, no Relatório Preliminar, que integra fls. 1 a 29 do Apenso Relatório Preliminar Exame Pericial n.º 612/2022-EP, elaborado pela Unidade de Perícia Financeira e Contabilística da Polícia Judiciária e na documentação bancária que integra os Apensos de Informações Bancárias a que acima se fez menção;
- cota de fls. 2024, certidão permanente da sociedade "...", de fls. 2025 e 2026 e fichas de registo automóvel de fls. 2027 a 2032 (arts. 117. e 118.);
- do auto de busca e apreensão, que integra fls. 4316 a 4329 dos autos principais, resulta que, no dia 10/12/2024, na sequência da busca domiciliária efectuada à residência sita na ..., residência do arguido AA, fora apreendida, designadamente, documentação bancária diversa, de entidades nacionais e estrangeiras, endereçadas a GG, HH e AA, e documentação relativa ás sociedades "...", "..." e "..." (art. 126.);
- autos de busca e apreensão de fls. 4347 a 4349 e de fls. 4402 e 4403 (arts. 127. e 128.).
Atendeu-se, igualmente, à análise do Auto de Leitura de Análise de Conteúdo de Telemóvel de fls. 4035 a 4047, que incidiu sobre o conteúdo do telemóvel da marca Apple, modelo iPhone 13 Pro Max, utilizado pelo arguido BB, e que, entre outras, documenta inúmeras conversações telefónicas e envio de mensagens de voz e mensagens escritas, entre o arguido BB e EE, sócia da "...", no período compreendido entre o mês de ... de 2021 e o mês de ... de 2022.
O tribunal socorreu-se de uma presunção natural para considerar como fortemente indiciados os factos subjectivos, designadamente os constantes dos artigos 129. a 135., porquanto os factos objectivos provados, de acordo com as regras da experiência comum, permitem inferir estes factos subjectivos. Que cada um dos arguidos, AA e BB, agiu com vontade livre e consciente corresponde ao normal do agir humano, nada tendo sido alegado que ponha em causa essa liberdade de decisão.
No que respeita à factualidade atinente às condições pessoais de cada um dos arguidos, considerada como indiciada, atendeu-se às declarações dos próprios, não tendo o Ministério Público indicado o certificado de registo criminal de cada um dos arguidos no acervo probatório de fls. 4522 e 4522v..
Atendeu-se, ainda, à certidão electrónica e respectivo código de acesso "…", junta aos autos, pela Defesa do arguido AA, no que respeita à factualidade atinente à declaração de insolvência da sociedade "... e à subsequente aprovação e homologação do plano de insolvência.
*
Atentos os factos fortemente indiciados supra referidos, consideramos indiciarem fortemente os autos a prática pelos arguidos BB e AA, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção, na forma agravada, p.p. pelo art.º 36.º, n.ºs 1, alíneas a), b) e c), 2 e 5, alínea a), com referência ao art.º 21.º, ambos do D.L. 28/84, de 20 de Janeiro, e ao art.º 202.º, al. b) do Cód. Penal, a que corresponde a moldura abstracta de 2 a 8 anos de prisão.
Atentos os elementos probatórios supra referidos, indiciam fortemente os autos a verificação, por parte dos arguidos BB e AA, de um plano criminoso, congregador de esforços e de vontades, no sentido de, mediante a prestação de falsas informações, quer respeitantes à própria natureza da candidatura e valor do investimento a realizar e a co-financiar, quer na ocultação de situações de conflito de interesses, e, bem assim, no fabrico e utilização de documentos falsos (contratos, facturas e transferências bancárias), ludibriarem a Autoridade de Gestão do Programa Operacional Competitividade e Internacionalização (Agência para o Desenvolvimento e Coesão), apoiado pelo FEDER, tendo, em consequência desta actuação dos arguidos, a "..., no âmbito da candidatura/projecto de investimento em causa, obtido subsídios a que não tinha direito, no montante global de € 6.732.650,00, por se fundarem no fornecimento à entidade competente de informações inexactas e documentos falsos relativos a factos importantes para a respectiva concessão, e que, por isso, a "... não podia obter validamente. Com a referida prestação de falsas informações, respeitantes à própria natureza da candidatura e valor do investimento a realizar e a co-financiar, a ocultação de situações de conflito de interesses, e o fabrico, utilização e entrega de documentos falsos ao Programa Operacional Competitividade e Internacionalização, sabendo que dos mesmos dependia a concessão do montante do subsídio, os arguidos demonstraram querer obter, para a sociedade "..., capital em condições privilegiadas, prejudicando a economia nacional e a correcta aplicação dos dinheiros públicos nas actividades produtivas e no campo económico. O facto de se tratar de fundos comunitários em nada altera esta situação: os fundos em causa foram concedidos pela EU (União Europeia) ao Estado Português, e, a haver fraude na obtenção dos subsídios, óbvia é que por essa via se defrauda o erário público, sendo também certo que se prejudica a economia nacional.
Tais montantes, indevidamente recebidos pela "..., configuram-se como subsídios, de acordo com a noção do art.º 21.º, n.º 1 do D.L. n.º 28/84, de 20/01, já que concedidos através de dinheiros públicos e desacompanhados de qualquer prestação segundo os termos normais do mercado.
Em suma, encontra-se fortemente indiciado o nexo de causalidade entre a prestação de falsas informações, respeitantes à própria natureza da candidatura e valor do investimento a realizar e a co-financiar, a ocultação de situações de conflito de interesses, e o fabrico, utilização e entrega de documentos falsos junto do Programa Operacional Competitividade e Internacionalização, e a posterior concessão dos subsídios, bem como o preenchimento, pelos arguidos BB e AA dos elementos constitutivos do crime de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção, na forma agravada, p.p. pelo art.º 36.º, n.ºs 1, alíneas a), b) e c), 2 e 5, alínea a), com referência ao art.º 21.º, ambos do D.L. 28/84, de 20 de Janeiro, e ao art.º 202.º, al. b) do Cód. Penal, uma vez que estes, ao agirem como descrito, fizeram-no consciente e voluntariamente, com o propósito de obter para a "... vantagem patrimonial que não era devida à sociedade, sabendo proibida tal conduta.
No que respeita a qualquer um dos dois arguidos, BB e AA, atentas as circunstâncias em que os arguidos cometeram o ilícito criminal indiciado, o tipo de actos/acções praticados, o grau de violação dos interesses protegidos, postos em causa pela actuação dos arguidos, suas consequências e eficácia dos meios utilizados, bem patente na forma como, ao longo de um período de cerca de dois anos, compreendido entre o mês de ... de 2018 e o mês de ... de 2020, foi planeada e executada a acção criminosa, e o valor, consideravelmente elevado, dos subsídios que, dessa forma, a "... logrou obter, faz-se sentir um manifesto perigo de continuação da actividade criminosa, com a inerente perturbação da tranquilidade pública, porquanto condutas como aquelas que se mostram fortemente indiciadas nos autos, são geradoras de grande reprovação comunitária e correspondente intranquilidade pública, pelo que significam enquanto forma de obter vantagens e benefícios individuais, em prejuízo do erário público e da economia nacional.
No entanto, sopesando que tanto ao arguido BB, como ao arguido AA, que contam as idades de 58 anos e de 60 anos, respectivamente, e se encontram familiar, profissional e socialmente inseridos, não são conhecidos antecedentes criminais, não havendo notícia de, desde o momento em que cessaram a actividade criminosa, objecto dos presentes autos, e decorrido que se encontra um período de cerca de quatro anos, terem voltado a incorrer na prática de qualquer outro crime, consideramos que tanto o perigo de continuação da actividade criminosa, como também o perigo de perturbação da tranquilidade pública se encontram ligeiramente esbatidos.
Uma vez que qualquer um dos arguidos tem fortes ligações a países estrangeiros, designadamente no ..., com residência aí declarada, dispondo, por isso, de facilidades para se ausentar para o estrangeiro, atento possuírem capacidade financeira para tal, e sendo o arguido AA titular de passaporte emitido pela ..., válido até .../.../2037 (que se encontra apreendido à ordem dos presentes autos), consideramos fazer-se, igualmente, sentir, relativamente a cada um dos arguidos, um concreto perigo de fuga, uma vez que sabendo-se os arguidos indiciados da prática de um crime desta gravidade e da previsibilidade de, em audiência de julgamento, provando-se os factos pelos quais se encontram, por ora, fortemente indiciados, virem a ser condenados em pena de prisão efectiva, existe um forte perigo de qualquer um dos arguidos fugir do país, na tentativa de se eximir à acção da justiça.
Pelo que, por a aplicação cumulativa destas medidas de coacção se mostrar necessária, adequada e proporcional às exigências cautelares que se fazem sentir no caso em apreço e ás sanções que previsivelmente serão aplicadas a cada um dos arguidos, sopesando, igualmente, a gravidade do crime indiciado, o dano por este causado e a condição sócio-económica de cada um dos arguidos, determino que, cada um dos arguidos, AA e BB, aguarde os ulteriores termos do processo em liberdade, sujeito à aplicação cumulativa das seguintes medidas de coacção:
- termo de identidade e residência, já prestado;
- prestação de caução, por depósito autónomo à ordem dos presentes autos, no valor de € 100.000,00 (cem mil euros), no prazo de 30 (trinta dias) dias a contar da presente data;
- proibição de, por qualquer meio, seja directamente ou por interposta pessoa, contactarem entre si e/ou com os arguidos CC e DD e/ou com a suspeita EE;
- proibição se ausentar para o estrangeiro sem autorização, devendo o arguido BB, no prazo máximo de 2 dias úteis, proceder à entrega, neste tribunal, do seu passaporte.
O que se determina em conformidade com os princípios constantes dos arts. 191.º, 192.º, 193.º, 195.º, 196.º, 197.º, n.ºs 1 e 3 e 206.º, n.º 1, 200.º, ns.º 1, als. b) e d) e 3 e 204.º, n.º 1, als. a) e c), todos do Cód. Processo Penal.
Comunique ao SIS (sistema de informação Shengen) e ao OPC competente a medida de coacção aplicada aos arguidos AA e BB – art. 200.º, n.º 3 do Cód. Processo Penal
".
2. O despacho de apresentação tem o seguinte teor:
"
Dos motivos da detenção e das provas que a fundamentam:
Das diligências de investigação realizadas até ao presente momento mostra-se fortemente indiciada a seguinte factualidade:
A. Da candidatura/projecto de investimento e do fundo europeu concedido
1. A Autoridade de Gestão do Programa Operacional COMPETE 2020 publicou, em 24/11/2017 e no âmbito do Sistema de Incentivos Inovação Produtiva, o Aviso n.º 26/SI/2017, que visava a apresentação de candidaturas a um incentivo de natureza reembolsável, que pretendia atrair novo investimento empresarial e emprego para os territórios afectados pelos incêndios que deflagraram a 15/10/2017, nas regiões ... e ...
2
.
2. Os suspeitos BB (doravante BB) e AA (doravante AA) constituíram, em .../.../2018, a sociedade ... (doravante ...), com o capital de € 5.000,00, dividido em duas quotas de € 2.500,00, ficando cada uma a pertencer a cada um e assumindo AA as funções de gerente
3
.
3. O objecto social da ... era …, e a sociedade tinha o CAE Principal … e o CAE Secundário ….
4. A ... apresentou, em .../.../2018, candidatura no âmbito do referido Aviso, visando uma comparticipação financeira para a execução de um projecto de investimento industrial na cidade da …
4
.
5. O projecto de investimento, a que foi atribuído o n.º 039657, tinha como objectivo a criação de uma unidade de …, no concelho da ..., com um investimento total de € 14.311.500,00, e início a .../.../2018 e data de fim a .../.../2019
5
.
6. E teve por objecto a concessão de um incentivo financeiro da União Europeia, no montante de € 7.087.00,00, com a designação "..." e o código ...
6
.
7. Em .../.../2018, AA e BB cederam as suas quotas às suspeitas GG (doravante GG) e a HH (doravante HH), filhas de AA.
8. Mais renunciou AA à gerência, tendo BB assumido as funções de gerente da ....
9. Assim, a partir de .../.../2018, o capital social da ... passou a ser integralmente detido pelas filhas do primeiro gerente, AA - GG e HH
7
.
10. Após a aprovação da candidatura, foi celebrado, em .../.../2018, o respectivo contrato de concessão de incentivos, designado por "Termo de Aceitação", assinado por BB
8
.
11. A decisão de aprovação do incentivo encontrava-se condicionada:
a) À apresentação, até ao primeiro pedido de pagamento, da comprovação da realização mínima de 25% dos capitais próprios do projecto,
b) À identificação da localização exacta do estabelecimento industrial da empresa e apresentação de título que legitimasse a instalação da empresa no local, e
c) À demonstração de que tinha sido dado início ao processo de licenciamento do estabelecimento junto da entidade licenciadora.
12. A primeira condição foi validada aquando a apresentação do primeiro pedido de pagamento, e as segunda e terceira condições foram comprovadas em sede de avaliação do termo de aceitação.
13. Com o objectivo de cumprir a primeira condição, foi celebrado, em .../.../2019, um contrato de mútuo entre a sociedade ... (...), como mutuante, e GG e HH, como beneficiárias e considerando serem sócias da ..., na qual aquela sociedade emprestou às segundas o valor de € 2.414.452,36 "destinado a apoio financeiro das beneficiárias, para que o possam investir na sociedade supra referida"
9
.
14. O referido contrato de mútuo foi outorgado por AA, enquanto gerente da ..., e GG e HH, enquanto sócias da ....
15. Ao abrigo deste contrato, a ... comprometeu-se a conceder um empréstimo a GG e a HH no valor de € 2.414.452,36, em três parcelas, nos seguintes valores: € 260.000,00, € 310.000,00 e € 1.844.452,36.
16. Mútuo foi celebrado por 20 anos, tendo sido estipulado que nos primeiros cinco anos não se verificaria amortização de capital, que seria efectuado nos restantes 15 anos de vigência o contrato em prestações mensais (180) ou semestrais (30).
17. Mais ficou estipulado que o pagamento de juros só ocorreria a partir do 6º ano, vencendo-se à taxa anual de 0,3%.
18. Não obstante o contrato ter sido celebrado com GG e HH, as partes acordaram que as prestações seriam creditadas directamente em contas da sociedade ..., nomeadamente, em contas bancárias por esta tituladas junto do ... e do ....
19. Nos termos contratados, a ... transferiu os referidos montantes para as contas bancárias tituladas pela ... nos moldes que seguem:
a) Para a conta junto do ..., com o ..., nas seguintes montantes e datas
10
:
- € 310.000,00 em .../.../2019,
- € 1.844.452,36 em .../.../2019.
b) Para a conta junto do ..., com o ..., no montante de € 260.000,00, em .../.../2019
.
20. Embora não tenham sido datados, foram ainda celebrados três contratos de mútuo entre as duas sociedades, ... e .... Num destes contratos, a ... comprometeu-se a conceder um empréstimo no valor de € 310.000,00€, noutro contrato o valor de € 1.844.452,36 e noutro contrato o valor de € 260.000,00.
21. Estes três contratos de mútuo foram sendo disponibilizados pela ... ao ..., no âmbito de cada transferência, para efeitos de obtenção de enquadramento das referidas operações, nunca tendo sido apresentado o contrato de mútuo celebrado em .../.../2019 entre a ... e GG e HH.
22. Assim, foi apresentada ao ..., para justificar as transferências bancárias efectuadas, respectivamente em .../.../2019 e em .../.../2019, nos valores de € 310.000,00 e de € 1.844,452,36, da conta bancária da ... para a conta bancária da ... junto do ..., supra referida, e da transferência bancária da referida conta da ... junto do ..., para conta bancária da ... , junto do ..., no valor de € 2.050,000,00, contrato de mútuo entre a ... (representada por AA) e a ... (representada por BB), no qual aquela sociedade emprestou à segunda os valores de € 1.844.452,36 e de 310.000,00 (e não já contrato entre a ... e GG e HH), movimento bancário que originou o PAP …
12
.
23. E foi apresentada ao ..., para justificar a transferência bancária solicitada em .../.../2019, no valor de € 260.000,00, da conta bancária da ... para a conta bancária da ... junto do …, supra referida, contrato de mútuo entre a ... (representada por AA) e a ... (representada por BB), no qual aquela sociedade emprestou à segunda o valor referido de € 260.000,00 (e não já contrato entre a ... e GG e HH), movimento bancário que originou o ...
13
.
24. Mais foram comunicadas operações bancárias suspeitas, que deram origem ao ..., que tiveram por base os seguintes movimentos na conta bancária de BB, junto do ... com o n.º ...: recebeu seis transferências a crédito, no montante total de € 1.125.490,00, a partir de conta do próprio junto do ..., e efectuou cinco transferências, no montante de € 562.790,00, para conta titulada por GG (com o n.º ....) e cinco transferências, de igual montante, para conta titulada por HH (com o n.º ....); estas transferiram os referidos montantes para conta bancária titulada pela ... (com o n.º ....)
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25. O valor global das transferências, desajustado do perfil transacional da conta, a ausência de justificação contratual que comprovasse os créditos recebidos e a rápida rotação dos fundos, levou à comunicação das operações.
26. A sociedade ... foi constituída em .../.../2013, com sede na ..., e tinha como única sócia EE, filha de II, ...
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27. A partir de .../.../2019, AA assumiu as funções de gerente da ....
28. A ... só teve actividade nos anos de 2014 e 2015 e em 2015 apresentava um activo total de € 9.190.440,63
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29. Na morada indicada como sede da ... – ..., não se encontrava qualquer referência a esta sociedade, apenas um corredor vazio e uma porta sem qualquer informação ou indicação, sendo que na caixa de correio correspondente encontrava-se afixada a designação da empresa "…"
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30. A sociedade que efectuou o empréstimo que permitiu às sócias da ... realizar as prestações suplementares era detida por cidadã oriunda da ..., e não possuía actividade permanente que justificasse os elevados montantes de dinheiro que foram objecto de mútuo.
31. Este esquema, utilizado pelos suspeitos BB, AA, GG e HH permitiu que, através de montantes provenientes de uma sociedade que não tinha actividade permanente, sita na ... e cuja sócia era filha do … da ..., EE, a ... conseguisse ser beneficiária de cerca de sete milhões de euros proveniente de fundos europeus.
32. Da análise ao extracto bancário da conta titulada pela ..., no ..., foram apuradas cinco transferências, provenientes de três contas estrangeiras, nas datas e valores de:
1. € 800.357,34, em .../.../2014 (da conta ordenante ......),
2. € 166.631,00, em .../.../2014 (da conta ordenante ... ...),
3. € 499.913,00, em .../.../2014 (da conta ordenante ... ...),
4. € 499.963,00, em .../.../2014 (da conta ordenante ... ...), e
5. € 544.954,39, em .../.../2015 (da conta ordenante ......).
33. De entre estes movimentos a crédito, resulta que a ... recebeu, na conta em apreço, em .../.../2014 e em .../.../2015, o montante global de € 1.345.311,73, repartido em duas transferências, nos valores de € 800.357,34 e de € 544.954,39, ambas provenientes da sociedade ...., através da conta ordenante ..., cujo código país pertence à ...
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34. A sociedade ... era uma empresa sediada em ..., com presença no ..., na ..., na ..., no ... e em ..., que se dedicava à construção de obras públicas. Esta empresa actuava na ... desde 2007 e tinha como principal actividade a execução de obras rodoviárias
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35. O ... deduziu uma acusação contra o ..., JJ, por branqueamento de capitais e tráfico de influência, por este favorecer negócios da sociedade .... na ....
36. Em causa estava uma doação feita em ... de ... de 2012, por esta sociedade ao ..., no valor de R$ 1.000.000 (um milhão de reais), que teria sido feita após o ... influenciar o ..., KK, a beneficiar a sociedade ....
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37. No espaço de um ano, uma sociedade sediada no ... - envolvida em processos judiciais ligados ao Presidente da ... por branqueamento de capitais e tráfico de influência - transferiu, através de uma conta bancária equato-guineense, num banco sito em território francês, mais de um milhão de euros para a conta bancária de um banco português, sediado no ..., conta esta que era titulada por uma sociedade portuguesa, sedeada na ..., que tinha como única sócia a filha do ....
38. No que concerne às outras três transferências creditadas na conta da ..., tiveram como proveniência duas contas bancárias alemãs, junto do ...) associadas à empresa ....
39. O ... tinha como empresa subsidiária a empresa de aviação ... que, por sua vez, tinha como subsidiária a empresa ... (...). Esta última assegurava o transporte aéreo entre ... e a ....
40. Como daqui resulta, a empresa ... (...) transferiu para uma conta bancária sediada no ... e titulada por uma sociedade portuguesa (...), o valor global de 1.166.507,00€, no ano de 2014.
41. A ... transferiu, em .../.../2019, todo o dinheiro depositado na conta em causa, através de uma transferência, no valor de € 1.844.487,36, para a conta titulada pela ...
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42. Após a ocorrência destes factos, a conta bancária da ... foi encerrada, em .../.../2019, por decisão do banco
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43. O montante creditado na conta bancária da ..., do ..., teve como origem a ..., através da empresa ...e a sociedade ... (...),
44. Tendo, posteriormente, sido transferido o montante de € 1.844.487,36 para a conta bancária da sociedade ....
45. Através da conta bancária titulada junto no banco ..., a ... transferiu ainda o montante de € 310.000,00 a favor da ...,
46. E através da conta bancária titulada junto do banco ..., transferiu o montante de € 260.000,00 para conta bancária titulada pela ....
47. A ... recebeu, assim e nos termos descritos, nas suas contas bancárias, o montante global de 2.414.452,36€, proveniente de contas tituladas pela ..., com o que conseguiu beneficiar de um incentivo de cerca de 7 milhões de euros proveniente de fundos europeus.
*
48. São evidentes as relações negociais entre as pessoas singulares e colectivas aqui em investigação, em concreto:
- A ... foi fundada pelos sócios AA e BB, posteriormente substituídos pelas actuais sócias, GG e HH, e tinha como gerente BB,
- GG e HH receberam, nas suas contas bancárias, transferências provenientes de BB que serviam, posteriormente, para capitalizar a ...,
- A ... tinha como única socia EE e como gerente AA,
- A ... celebrou um contrato de mútuo com as sócias da ..., nomeadamente GG e HH, e três contratos de mútuo com a ...,
- O ... de EE era BB, entretanto nomeado gerente da sociedade ..., de que foi sócio fundador,
- BB e AA constituíram em .../.../2022 uma nova sociedade, ..., assumindo a qualidade de sócios e sendo nomeados gerentes.
49. Relativamente a às coincidências de morada dos sujeitos singulares e colectivos ora em causa constata-se que:
- AA e BB declararam, para efeitos fiscais, a mesma morada, sita no ...,
- GG e HH declararam ambas residir na ..., bem como a sua mãe e cônjuge de AA,
- AA declarou, no acto de constituição da sociedade ..., como sua residência a ...,
- A morada registada como sendo a da ... – ... -, encontrava-se também registada como sendo a sede de três outras sociedades das quais AA e BB eram sócios: ... (...), ... (...) e ... (...),
- A morada profissional de BB registada na ... era a mesma, a sita no ....
*
50. A ... recebeu, no âmbito da candidatura/projecto de investimento ora em causa, na conta por si titulada junto do ... com o n.º ..., o montante global de € 6.732.650,00 de fundos europeus, correspondente a 95% do valor de incentivo reembolsável aprovado, nos seguintes valores e datas:
i. Em .../.../2020, € 936.000,00,
ii. Em .../.../2020, € 1.886.700,00,
iii. Em .../.../2020, € 2.886.700,00, e
iv. Em .../.../2020, € 1.023.250,00.
B. Da adjudicação do contrato à ... e pedidos de reembolso
51. No âmbito da concessão do incentivo financeiro, a ... apresentou uma análise comparativa das propostas apresentadas para o fornecimento de equipamentos para a unidade industrial de produção de pellets
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, onde constavam as propostas das empresas ..., ..., ..., ... e ....
52. Em .../.../2019, a ... elegeu a proposta apresentada pela ..., justificando ser a "mais equilibrada tendo em atenção as soluções técnicas e o preço para as mesmas (proposta com valor global mais baixo das que nos foram apresentadas)"
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53. Dois dias após a escolha da empresa a ser adjudicada, em .../.../2019, a ... outorgou um contrato de Compra e Venda com a empresa ... (doravante ...), sedeada em ..., onde aquela se comprometia a comprar uma planta de pellets de madeira a esta sociedade, pelo montante de € 14.433.500,00, de acordo com a "... " (cfr. artigo 2.2 do referido contrato), devendo o pagamento ser parcelado nos seguintes montantes: € 2.000.000,00, € 3.773.400,00, € 5.773.400,00 e € 721.675,00
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.
54. Para além de o contrato ter sido celebrado em língua inglesa e apresentado ao IAPMEI sem qualquer tradução, o mesmo apresentava várias incongruências, como segue
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:
i. O canto superior esquerdo da primeira página do contrato indicava que se tratava do contrato n.º …; O seu artigo 1.1 dispunha que o objecto de compra e venda era uma planta/fábrica de pellets de madeira de acordo com a especificação contida na folha de cotação n.º …, que se referia constar anexada ao contrato. No entanto, não se encontrava qualquer folha anexada, não se vislumbrando que folha de cotação seria,
ii. O artigo 2 fazia referência a uma folha de cotação n.º … para a planta de pellets de madeira pelo montante de € 14.433.500,00. Ora, a folha de cotação aqui referida era o n.º do contrato, não se alcançando a que folha é que se reportavam. A única folha de cotação que se encontrava junto do projecto de investimento era a n.º …
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, que foi junta aquando as propostas das empresas consultadas.
55. Em .../.../2019, a ... procedeu a uma transferência, no valor de € 2.000.000,00, para conta bancária titulada pela ..., junto do banco espanhol ..., tendo como descritivo do movimento "…"
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56. Esta transferência bancária foi o resultado do pagamento da primeira prestação deste contrato de adjudicação.
57. No que concerne ao pagamento das restantes prestações, acordadas no contrato de adjudicação, foram efectuadas três transferências da conta n.º ..., do ..., titulada pela ..., para uma conta bancária titulada pela ... nas seguintes datas e montantes:
a) de € 3.773.436,40 em .../.../2020,
b) de € 5.773.436,40 em .../.../2020, e
c) de € 2.165.061,40 em .../.../2020.
58. Dos documentos apresentados pela sociedade ... ao IAPMEI, com vista ao pagamento das despesas celebradas ao abrigo do projecto ora em causa, encontravam-se três facturas que visavam comprovar o pagamento das segunda, terceira e quarta prestações do contrato de adjudicação à ....
59. Contudo, surgem incoerências entre estas e os extractos bancários da conta titulada pela ..., junto do ..., uma vez que das facturas constam pagamentos nos montantes de 3.773.400,00€ e de 5.773.400,00€, tendo sido estes os valores previamente acordados no referido contrato.
60. Não obstante, a ... pagou à ... o montante global de € 14.000.640,60, nas seguintes datas e valores:
Data
Titular
Origem
Destino
Valor
…/2019
…
…
…
€ 2.000.000,00
…/2020
…
…
…
€ 3.773.436,40
…/2020
…
…
…
€ 5.773.436,40
…/2020
…
…
…
€ 2.165.061,40
…/2021
…
…
…
€ 288.706,40
€ 14.000.640,60
C. O Contrato da ... com a ...
61. A sociedade ... (doravante ...) é uma sociedade detida pelos suspeitos BB e AA, sediada em ..., com uma conta bancária em ..., em concreto, no ....
62. Estes suspeitos detêm outras contas neste banco, a título pessoal, procedendo a diversas transferências de/para outras contas suas ou de/para empresas detidas por si, como é exemplo da sociedade ..., sediada no ....
63. Na sequência do plano entre si gizado, os suspeitos BB e AA celebraram, em nome da ..., sedeada no ..., um suposto contrato de compra e venda entre esta sociedade e a ..., datado de .../.../2019, no âmbito do qual a ... vendia à ... uma planta/fábrica/maquinaria de pellets de madeira, pelo montante global de € 13.433.500,00, de acordo com a "... " (cfr. artigo 2.2 do referido contrato)
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64. À semelhança do contrato apresentado ao IAPMEI celebrado entre a ... e a ..., este contrato foi também elaborado em língua inglesa.
65. Os contratos entre a ... e a ... e entre a ... e a ... apresentam significativas semelhanças, não só estruturalmente como também formalmente, estando em causa a compra e venda da mesma planta de pellets de madeira.
66. Neste contrato, a ... surge na qualidade de compradora, comprometendo-se a comprar a planta de pellets pelo montante global de € 13.433.500,00 à ....
67. Este contrato não tinha número, mas remetia para duas folhas de cotação, a n.º … e a ….
68. Todavia, à semelhança do contrato com a ..., não existia qualquer anexo ou folha de cotação no referido contrato.
69. Enquanto que neste contrato as folhas são … e a …, no contrato com a ... as folhas são as … e …, alterando apenas as duas primeiras letras, indiciando-se ser o mesmo documento, na hipótese de este existir, ou que se tratam de contratos artificialmente criados.
70. Perante este contrato, BB e AA, através de uma empresa sediada em ..., declararam vender à ... uma planta de pellets pelo montante de € 13.433.500,00.
71. No entanto, um mês depois, BB e AA, através de uma empresa sediada em Portugal, declararam comprar à ... a mesma planta de pellets por um valor de € 14.433.500,00, ou seja, adquiriram o mesmo produto por um milhão de euros acima do valor pelo qual haviam vendido.
72. Tratou-se de um negócio inexistente, tendo sido simulada a venda de maquinaria à ... e a posterior compra pela ..., para os suspeitos apresentarem facturação em nome da ... e fazerem constar preço superior ao real, não só para a obtenção de fundos, mas ainda para empolarem o respectivo valor.
73. Ora, com base no contrato entre a ... e a ..., a ... candidatou-se a um incentivo de apoio financeiro da União Europeia com um projecto com um investimento global de € 14.311.500,00.
74. Esta inflação de um milhão de euros permitiu aos suspeitos BB e AA apresentarem um projecto com custos acrescidos e, por isso, aumentar a possibilidade de beneficiarem de um incentivo mais elevado.
75. O contrato entre a ... e a ... foi assinado, respectivamente, por BB e AA, e por LL.
76. Já no contrato celebrado entre a ... e a ..., os signatários foram, respectivamente, BB e LL, apenas não tendo sido assinado também por AA por este já ter vendido a sua quota às suas filhas e não ser o gerente, tendo a gerência sido já assumida por BB.
77. Foram efectuadas várias transferências da conta bancária titulada pela ... para contas bancárias pessoais de BB, de AA, de GG e de HH.
78. Contudo, não consta nenhuma ordem de transferência bancária da conta da sociedade ... para a ..., precisamente por se tratar de um contrato simulado.
79. Com este estratagema, estes suspeitos conseguiram adquirir maquinaria proveniente da ..., através de uma sociedade sua, sediada em ..., e vendê-la a uma sociedade espanhola, para assim aparentarem a aquisição de uma linha de produção de pellets a uma empresa europeia e alavancarem um incentivo de cerca de € 7.000.000,00 de fundos europeus ao apresentarem um alegado investimento de € 14.433.500,00.
80. Ora, as despesas elegíveis não podem respeitar a bens adquiridos a empresas sediadas em países, territórios e regiões com regimes de tributação privilegiadas, conforme lista da Portaria n.º 150/2004, de 13 de Fevereiro, actualizada pela Portaria n.º 292/2011, de 8 de Novembro
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81. O ... é um país com regime de tributação privilegiada
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82. Assim, aquilo que aparentava ser dois contratos de compra e venda (da ... à ... e da ... à ...) traduz-se apenas num contrato, com a ... a agir apenas como intermediária, tendo em vista a ocultação da verdadeira origem da maquinaria/fábrica de pellets.
83. Como a maquinaria foi, na prática, adquirida a uma empresa sedeada num país com tributação privilegiada, as despesas não eram elegíveis e, consequentemente, não podia ter sido atribuído o incentivo financeiro.
84. Considerando ainda que a ... e a ... tinham os mesmos sócios e que foram estes que submeteram a sua candidatura ao incentivo de apoio financeiro da União Europeia, BB e AA obtiveram o referido subsídio fornecendo ao IAPMEI informações inexactas ou incompletas relativas a factos importantes para a respectiva concessão do subsídio.
85. Assim encobriram os suspeitos, de acordo e em execução do plano prévio e comum, junto do IAPMEI, o evidente conflito de interesses existente, já que o suposto fornecedor dos equipamentos dos projectos, BB e AA, através da ... faziam parte do corpo das empresas Promotoras beneficiárias a ....
86. É deste modo o próprio fornecedor que impõe o preço, inflacionando-o em conluio com o promotor, violando todas as regras comunitárias e nacionais sobre concorrência e transparência na formação dos preços; facto essencial à aprovação do projecto e elegibilidade das despesas, facto ocultado ao IAPMEI e conforme ao plano ilícito formulado pelos suspeitos.
87. Este contrato entre a ... e a ... foi, ainda, utilizado por BB para justificar transferências bancárias realizadas da conta bancária titulada por esta sociedade junto do ..., assinadas por BB e/ou AA.
D. Das irregularidades detectadas
88. Realizada pela Autoridade da Concorrência inspecção às instalações da fábrica da ..., na ..., foi concluído no dia .../.../2024, o Relatório Técnico de Visita, que identificou as seguintes situações irregulares
32
:
i. "a Entidade Beneficiária disponibilizou uma Informação técnica/Requerimento n.º … de ...-...-2020, emitida(o) pela ... comprovando a instrução do pedido de licenciamento, contudo à data da elaboração do presente relatório, a entidade beneficiária não se encontra licenciada, inviabilizando assim, a aferição do cumprimento das condições legais necessárias ao exercício da actividade, em conformidade com o disposto na alínea e) do n.º 1 do art.º 24.º do Decreto-Lei n.º 159/2014, na sua actual redacção". Questionada sobre esta irregularidade explica que a única licença que a ... tem é a licença para construção. Relativamente à licença de utilização e à licença da actividade não apresenta qualquer documento. Mais explica que uma das condicionantes para atribuição do incentivo (cfr. cláusula segunda, n.º 1, alínea c) do Termo de Aceitação) era demonstrar que tinha sido dado início ao pedido de licenciamento e que foi nesse âmbito que a ... apresentou uma comunicação prévia de licenciamento da actividade, em .../.../2022, nunca tendo sido submetido um pedido oficial. Mais acrescenta que, por via telefónica, foi confirmado pela ... e confirmado por AA que a ... não tem licença industrial.
ii. "Tendo em consideração o ano de fabrico dos grupos hidráulicos (2001) conforme foto da chapa, constante nos comprovantes n.ºs 1, 2 e 3 com o n.º de Ordem … (Facturas n.º … de ...-...-2019, no valor de 21.000,00 euros, nº …. de ...-...-2019 no valor de 80.000,00 euros e n.º … de ...-...-2020 no valor de 39.000,00 euros), relativas a "…", num total de despesa elegível de 140.000,00 euros e face à ausência de Certificados de Conformidade e Guias de Transporte com referência do equipamento transportado, consideramos que a escassez de informação inviabiliza a aferição da primeira colocação no mercado e por conseguinte confirmar que não se trata da aquisição de bens em estado de uso, em conformidade com o disposto na alínea i) do n.º 1 do art.º 7º do RECI". Sobre esta irregularidade explica que, apesar de nenhuma máquina ter os Certificados de Conformidade e Guias de Transporte com referência do equipamento transportado (como referido na irregularidade 6), esta era a única máquina que tinha chapa, tendo a Inquirida achado estranho que uma máquina com a chapa de 2001 estar a ser posta no mercado pela primeira vez apenas 20 anos depois.
iii. "- Comprovantes n.ºs 1, 2, 3 e 4 – Facturas n.º s Factura n.º … de ...-...-2019, Factura n.º …. de ...-...-2019, Factura n.º … de ...-...-2020 e Factura n.º … de ...-...-2020 com o n.º de Ordem … – relativo a "…" no valor de 90.000,00 euros; - Comprovantes n.ºs 1, 2, 3 e 4 – Facturas n.º s … de ...-...-2019, … de ...-...-2019, … de ...-...-2020 e … de ...-...-2020 com o n.º de Ordem … - relativo a "…)" no valor de 30.000,00 euros. Na verificação no local não foi evidenciada a existência física, das componentes acima referidas. Questionada a Entidade Beneficiária, a mesma informou-nos que o administrador da insolvência as tinha retirado por questões de segurança. De acordo com o disposto no nº 1 do art.º 10º do Decreto-Lei nº 159/2014 consideramos a despesa associada a estes itens de investimento como não elegíveis, totalizando uma correcção financeira de 120.000,00 euros. Cumulativamente, consideramos que a despesa com o nº de ordem … "…" submetida nas listagens dos pedidos de pagamentos não se encontra justificada através de factura, uma vez que a despesa não está incluída no contrato nº … que suportou os comprovantes de investimento apresentados. Perante a ausência de documentos justificativos de despesa, conforme o exigido na alínea c) do n.º 1 da Cláusula décima terceira do Termo de Aceitação, consideramos a despesa não elegível. De referir ainda, que não foi disponibilizado o licenciamento do Software, o que contraria o disposto na Cláusula oitava do Termo de Aceitação, nomeadamente as alíneas k) e i) bem como a alínea i) do n.º 1 do art.º 24.º do Decreto-Lei nº 159/2014 de 27 de Outubro e alínea a) do n.º 1 do art.º 12.º da Portaria n.º 137/2022 de 8 de Abril, 11.ª Alteração ao RECI". Relativamente a esta irregularidade explica que não conseguiram confirmar a existência das duas máquinas de afiar lâminas nem a existência do referido software, uma vez que AA terá dito que o administrador de insolvência teria levado ambos (máquinas e software) por questões de segurança, desconhecendo para que local. Mais refere que AA não conseguiu apresentar qualquer licença relativamente a este software.
iv. "- Comprovantes n.ºs 1, 2, 3 e 4 – … de ...-...-2019, FAC 2019-0179 de ...-...-2019, … de ...-...-2020 e … de ...-...-2020 com o n.º de Ordem … – relativas a "…" no valor de 600.000,00 euros. De referir que no contrato de fornecimento nº …, esta rúbrica está classificada com o nº … – "…". Atenta a sua natureza, estas despesas não têm enquadramento no âmbito da elegibilidade normativa tal como definida na alínea a) do n.º 1 do Art.º 32 - Despesas elegíveis do RECI, dando origem a uma correcção Unidade Nacional de Combate à Corrupção financeira à despesa certificada no montante de 600.000,00 euros". Relativamente a esta irregularidade explica que por se tratarem de despesas de manutenção e substituição não podem ser consideradas como despesas elegíveis, de acordo com o artigo 7.º, n.º 1, alínea a), do RECI".
v. "Não foi criado um sistema contabilístico separado que individualize os investimentos do projecto, o que contraria o disposto na Cláusula Oitava do Termo de Aceitação, nomeadamente a alínea i) do nº 1 do art.º 24 do Decreto-Lei nº 159/2014 de 27 de Outubro".
vi. "Ao abrigo do Decreto-Lei nº 103/2008 de 24 de Junho, foram solicitadas em 9 e 17 de Outubro, por email, as Declarações CE de Conformidade, referentes às máquinas que constam do projecto de investimento. Os dois certificados remetidos pela entidade beneficiária não contêm a informação de acordo com o previsto no nº 1 do Anexo II do Decreto-Lei nº 103/2008 de 24 de Junho, nomeadamente a ausência do número de série do equipamento. Para além desta inconformidade, a informação constante nesses documentos, nomeadamente a referência ao modelo do equipamento, não permite associá-los a nenhum equipamento do investimento. A ausência das Declarações CE de Conformidade bem como a ausência da marcação CE nos equipamentos do investimento, conforme o exigido no ponto 1.7.3 do Anexo I do Decreto-Lei nº 103/2008 de 24 de Junho, inviabiliza a aferição da origem dos equipamentos (fornecedores/mandatários) bem como a primeira colocação no mercado destes equipamentos. A inexistência destes documentos não permite confirmar que não se trata da aquisição de bens em estado de uso, em conformidade com o disposto na alínea i) do n.º 1 do art.º 7.º do RECI."
Relativamente esta irregularidade detectada, por se ter suspeitado que a ... não era a fabricante da maquinaria, mas sim uma empresa intermediária, mostrava-se de grande importância confirmar a origem da maquinaria comprada. No entanto, não foi possível verificar as Declarações CE de Conformidade de nenhuma das máquinas objecto do projecto de investimento, não tendo sido possível descobrir qual a sua verdadeira origem. O certificado apresentado por AA foi enviado em .../.../2023, e dizia respeito a uma Certificação de Conformidade datada de .../.../2014, no entanto não foi possível associar a nenhum equipamento adquirido.
89. As irregularidades detectadas respeitavam, assim, à falta de licenciamento desta sociedade candidata, à ausência do número de série de equipamentos, à ausência das Declarações CE de Conformidade, à ausência da marcação CE nos equipamentos do investimento e à ausência da criação de um sistema contabilístico separado, a individualizar os investimentos do projecto.
90. As irregularidades detectadas configuram incumprimentos da legislação aplicável e constituem fundamento para a revogação da decisão de concessão de apoio financeiro deste projecto, estando a ... sujeita à devolução da percentagem devida do incentivo recebido.
91. Com base nas irregularidades detectadas, foi decidida pela Autoridade de Gestão (COMPETE), em .../.../2024, a anulação pós contrato do financiamento em causa, com revogação do incentivo e necessária devolução do financiamento recebido, no montante total de € 6.732.650,00.
92. Não obstante e até à data, não foi devolvido qualquer montante.
E. Da movimentação bancária
93. BB recebeu proventos de contas estrangeiras tituladas pelo próprio, no montante global de € 3.473.361,00, nomeadamente, dos ..., de ... e de ....
94. Os valores provenientes de ... (€ 595.000,00) tiveram como principal destino o provisionamento da conta para pagamento de despesas correntes, transferências para a sociedade de advogados MM, para NN (cunhada de BB) e para DD.
95. Os valores provenientes de ... (€ 2.845.361,00) tiveram como primeiro destino outras contas de BB e como segundo destino, entre outros indivíduos, HH, GG e DD e, por fim, como destino final a ... por intermédio destas.
96. Já os fluxos provenientes dos ... (€ 33.000,00) tiveram como destino outras contas de BB.
97. Relativamente à sociedade de advogados MM apurou-se que recebeu proventos de contas estrangeiras tituladas pela ... (...) e por uma conta titulada por BB do ..., no montante total de € 142.250,00 e € 20.000,00, respectivamente. Estes montantes tiveram como destino principal o aprovisionamento da conta, tendo sido efectuadas algumas transferências para DD e outros indivíduos.
98. GG e HH receberam proventos de contas estrangeiras (...) tituladas pelas próprias, no montante de € 55.950,00 cada, através das contas por estas tituladas junto do ..., que transferiam em seguida para a conta do … da sociedade de …MM, tendo como destino final uma conta do ... de AA, pai de GG e HH.
(…).
99. BB efectuava, com regularidade, transferências no valor de € 100.000,00 para as contas bancárias de GG e HH que, por sua vez, transferiam tais montantes para as contas da ....
100. No que respeita à conta da ..., constatou-se que recebeu proventos de várias contas estrangeiras, tendo também sido transferidos fluxos para outras contas sediadas no estrangeiro.
101. Para além das transferências a legítimos fornecedores, desta conta constam transferências no valor de € 402.000,00 para a sociedade ..., sedeada no ... e detida pelos suspeitos.
102. Das contas da ... apurou-se que recebeu proventos de contas do estrangeiro, tituladas pela ..., no valor de € 1.345.311,73, e pela ... (...), no montante de € 1.166.507,00, ambas sediadas na ..., tendo posteriormente como destino OO, EE, ... e PP.
103. Em síntese, foram recebidos fluxos de contas sediadas no estrangeiro como ...e ..., que entraram no sistema bancário português e tiveram como destino não só contas sediadas em Portugal como também no estrangeiro.
104. Em concreto, de uma conta de ... titulada por BB foram efectuadas transferências para contas portuguesas de BB que, posteriormente, transferiu para contas de HH e GG que tiveram como destino final a ....
105. Por outro lado, da conta da … das empresas ... e ... foram realizadas transferências para contas da ... em ... e ..., montantes que foram depois transferidos para a conta da ... em Portugal.
106. Foi devido a estes mecanismos que esta sociedade conseguiu cumprir os requisitos impostos e, assim, beneficiar de fundos europeus, nos moldes descritos, no valor de quase € 7.000.0000,00.
*
107. A ... recebeu, entre 2019 e 2022, nas suas contas bancárias, os seguintes valores:
108. No ano de 2019 recebeu € 2.254.382,36, assim discriminados:
- € 1.844.452,36, no dia .../.../2019, na conta ..., provenientes do ..., conta ..., ordenante ...,
- € 260.000,00 na conta ..., provenientes do banco ..., conta …, ordenante ....
109. No ano de 2022, recebeu € 149.930,00 euros na conta ..., assim discriminados:
- € 74.965,00 provenientes de ..., swift …, conta …, ordenante GG, e
- € 74.965,00 provenientes de ..., swift BMC…, conta …219611, ordenante HH.
110. Da análise a estas contas bancárias da ..., constata-se que a Conta ... teve, entre outras, as entradas:
- € 15.456.905,14 entre contas da ... (€ 15.311.905,00 – contas por apurar; conta ... – € 138.000,00; conta n.º ... – € 7.000,00), entre .../.../2019 e .../.../2022,
- € 7.500.000,00, entre .../.../2021 e .../.../2021, referentes a utilização do financiamento n.º ...;
- € 2.409.140,00, em depósitos em numerário (em montantes que variavam entre € 500,00 euros e € 261.000,00), entre .../.../2019 e .../.../2022,
- € 2.154.452,36 euros, provenientes da ... (€ 310.000,00 da conta ..., em .../.../2019; € 1.844 452,36 da conta ..., em .../.../2019),
- € 1.207.536,00, provenientes de ..., banco ..., conta …, em cinco transferências, entre .../.../2021 e .../.../2021,
- € 103.777,77, provenientes do IGCP, conta n.º ... a título de reembolsos a residentes, IVA., em .../.../2022,
- € 74.965,00, provenientes de GG, banco ..., conta …, em transferência de .../.../2022, com o descritivo "prestações suplementares de capital.",
- € 74.965,00, provenientes de HH, banco ..., conta ...9611, em transferência de .../.../2022, com o descritivo "prestações suplementares de capital.",
- € 50.000,00, provenientes de HH, banco CGD, conta ... em transferência de .../.../2022, e
- € 50.000,00, provenientes de GG, banco CGD, conta ... em transferência de .../.../2022.
111. E tem, entre outras, as saídas:
- € 12.640.000,00 para ..., banco ... conta/…, entre .../.../2020 e .../.../2021,
- € 9.030.207,31, para contas da ... (€ 6.000.000,00, em .../.../2021, conta a apurar; € 979.277,31, em .../.../2021, conta a apurar; € 2.050.930,00, para a conta ... ...),
- € 1.340.373,72, para ..., banco ..., …, conta …88843, entre .../.../2021 e .../.../2022,
- € 887.277,71, para ..., banco …, conta ... entre .../.../2020 e .../.../2021,
- € 722.134,69, para ..., banco ..., entre .../.../2021 e .../.../2021,
- € 554.053,50, para ..., banco ..., entre .../.../2021 e .../.../2021,
- € 402.000,00, para ..., para o banco ..., nos ..., conta …, em duas transferências, de € 320.000,00 em .../.../2021, e de € 82.000,00, em .../.../2022, com referência a pagamento de factura …,
- € 332.660,14, para ..., banco alemão ..., conta …,
- € 214.853,79, para ..., contas do banco ... e do banco ..., entre .../.../2021 e .../.../2021,
- € 19.055,00, para ..., Banco ..., conta ... entre .../.../2019 e .../.../2019, e
- € 3.484,00, para DD, banco …, conta ... em transferência de .../.../2019.
112. Tratava-se de conta bancária utilizada para movimentar fluxos provenientes, entre outros, da ..., de GG e HH, de depósitos em numerário, com saídas para, além de pagamentos presumivelmente relacionados com fornecedores da fábrica de produção de pellets da ..., a entidade designada por ..., com conta bancária nos ....
113. A conta ... teve, entre outras, as entradas:
- € 260.000,00, provenientes de ..., em transferência de .../.../2019, da conta do banco espanhol ... rural, conta ..., titulada por ...,
- € 480.000,00, provenientes do descritivo "tranf GG, entre .../.../2019 e .../.../2021,
- € 480.000,00, provenientes do descritivo "tranf HH, entre .../.../2019 e .../.../2021,
- € 975.547,64, provenientes de 12 movimentos com a descrição "P Suplementares" ou "P Suplementos", entre .../.../2020 e .../.../2021,
- € 9.400,00, em depósitos em numerário, entre .../.../2019 e .../.../2021.
114. E teve, entre outras, as saídas:
- € 200.000,00, para a ..., em transferência datada de .../.../2021;
- € 141.500,00, com o descritivo "Provisão honorários", entre .../.../2019 e .../.../2019,
- € 100.000,00, para ..., em transferência de .../.../2020;
- € 20.237,87, em levantamentos em numerário, entre .../.../2019 e .../.../2022;
115. Tratava-se de conta bancária que recebia fluxos provenientes da sociedade ..., de HH e GG. As saídas referiam-se a transferências para outras contas da ..., e pagamentos diversos.
116. Foram efectuados, na conta titulada pela ... junto do ..., com o n.º ..., diversos depósitos em numerário que, entre ... de 2019 e ... de 2022, ascenderam a € 2.409.140,00 euros (dois milhões, quatrocentos e nove, cento e quarenta euros), depositados em agências diferentes do ..., e que não correspondem a pagamentos de clientes pelos serviços prestados pela ..., uma vez que a fábrica de pellets ainda não estava em funcionamento:
(…).
*
F. Da dissipação do património
117. Em .../.../2023, AA, GG e HH, com a colaboração de QQ, constituíram a empresa ... (NIPC ...), com o capital social de € 52.000,00 e cujo objecto social era "Consultoria económica, financeira, contabilidade e serviços de gestão, formação e desenvolvimento de empresas a nível doméstico e internacional, estudos de mercado e publicidade, serviços de publicidade e serviços de marketing. Projectos, estudos e auditorias às empresas. Gestão de patrimónios"
33
.
118. A criação desta empresa teve como finalidade proteger o património automóvel desta família, tendo sido transferida a propriedade de todas as viaturas para o nome desta sociedade, em concreto, dos seguintes veículos
34
:
i. Da marca ..., com a matrícula RR,
ii. Da marca ..., modelo Patrol, com a matrícula ..-..-NE,
iii. Da marca ..., com a matrícula ..-LR-..,
iv. Da marca ..., com a matrícula ..-..-EF,
v. Da marca ..., com a matrícula ..-FI-.., e
vi. Da marca ..., com a matrícula ..-TP-...
*
119. A ... recebeu um incentivo de natureza reembolsável, que tinha por finalidade apoiar projectos de investimento produtivo localizados em territórios afectados pelos incêndios de ... de ... de 2017, através da tipologia "Inovação Empresarial" (Aviso nº 26/SI/2017).
120. O projecto (...-...53) teve como objecto a criação de uma unidade de produção e comercialização de pellets, produzidas através da biomassa florestal no concelho da ..., tendo um investimento global de € 14.311.500,00, sendo o investimento elegível € 14.174.000,00 e o incentivo de apoio financeiro da União Europeia de € 7.087.000,00.
121. Esta sociedade recebeu o montante global de € 6.732.650,00, correspondente a 95% do valor de incentivo reembolsável aprovado.
122. Apesar da construção da unidade fabril, com maquinaria e outros materiais que cumpre examinar, esta sociedade incorreu em múltiplas irregularidades, quer aquando da candidatura apresentada, quer no âmbito do Relatório Técnico de Visita do IAPMEI e apresentou documentos forjados para obtenção de apoio.
123. As situações identificadas pelo IAPMEI colocaram em causa os objectivos do projecto e, consequentemente, levaram à revogação total do apoio concedido, no valor de € 6.732.650,00, que a ... tem de devolver.
124. Além disso, para fazerem face aos 25% de capitais próprios exigíveis pelo IAPMEI, os suspeitos recorreram ao descrito esquema, através do qual os montantes circularam por vários países e contas bancárias, com a intervenção de uma ..., EE, cujo montante "emprestado" indicia ter sido obtido de forma ilícita, sendo proveniente de uma empresa da ... e de outra empresa de construção brasileira com obras naquele país.
125. Contudo, a sociedade ..., declarada insolvente em .../.../2023, já não tem disponibilidade financeira, ficando assim o Estado Português prejudicado em € 6.732.650,00.
126. No dia ... de ... de 2024, pelas 7h00m, o arguido AA tinha na sua posse, na residência sita na ..., entre outros, o seguinte:
- Documentação bancária diversa de entidades nacionais e estrangeiras, endereçadas a GG, HH e a AA, que se encontrava dispersa pela habitação,
- Documentação de diversas entidades bancárias relativa a várias das sociedades visadas no presente inquérito, que se encontrava dispersa pela habitação,
- Documentação relativa à sociedade ..., que se encontrava dispersa pela habitação,
- Documentação relativa às sociedades ... e ..., que se encontrava dispersa pela habitação,
- Documentação relativa à entidade/marca ..., que se encontrava dispersa pela habitação,
- Demonstração da liquidação de IRC do ano de 2022 da sociedade com o NIPC ... e uma declaração de venda de um relógio …, pelo valor de € 7.000,00,
- Conjunto de 10 (dez) cartões de visita, nomeadamente:
. 1 (um) cartão de visita de cor verde claro e branco com os dizeres, entre outros, "… - AA (CFO)",
. 1 (um) cartão de visita de cores verde escuro e branco com os dizeres, entre outros, "… - AA (CFO)",
. 1 (um) cartão de visita de cor preta com os dizeres, entre outros, "AA - …- ... - …- ...",
. 1 (um) cartão de visita de cor branca com os dizeres, entre outros, "... - AA",
. 1 (um) cartão de visita de cor castanho e bege com os dizeres, entre outros, "... - AA - …- ... - …- ...",
. 1 (um) cartão de visita cor branca com os dizeres, entre outros, "…,
. 1 (um) cartão de visita de cor branca com os dizeres, entre outros, "…".
. 1 (um) cartão de visita de cor branca do ... com os dizeres, entre outros, "SS - ...",
. 1 (um) Cartão de visita branco, com os dizeres "..." e inscrição manuscrita "TT",
. 1 (um) Cartão de visita branco, com os dizeres "…" e os dados de "UU".
- Conjunto de 16 (dezasseis) cartões bancários:
. 1 (um) Cartão bancário ..., em nome de AA, com o número ...,
. 1 (um) Cartão bancário ADCB, em nome de AA, com o número ...,
. 1 (um) Cartão de débito ..., em nome de AA, com o número ...,
. 1 (um) Cartão de débito ..., em nome da sociedade ... e DR AA, com o número ...,
. 1 (um) Cartão de crédito ..., em nome de VV, com o número ...,
. 1 (um) Cartão de crédito ..., em nome de VV, com o número ...,
. 1 (um) Cartão de débito WISE de cor branca, em nome de AA, sem número,
. 1 (um) Cartão de débito ..., em nome de AA, com o número ...,
. 1 (um) Cartão de débito ..., em nome de AA, com o número ...,
. 1 (um) Cartão bancário RAKBANK, em nome de AA, com o número ...,
. 1 (um) Cartão de débito, em nome da sociedade ... e DR BB, com o número ...,
. 1 (um) Cartão de débito, em nome da sociedade ... e DR BB, com o número ...,
. 1 (um) Cartão de débito, em nome da sociedade ... e DR BB, com o número ...,
. 1 (um) Cartão de débito, em nome da sociedade ... e DR AA, com o número ...,
. 1 (um) Cartão de débito ..., em nome de DR BB e da sociedade ..., com o número ...,
. 1 (um) Cartão bancário ..., em nome de GG, com o número ....
- 1 (uma) Carta de condução dos ..., pertencente a AA, com o número …,
- 1 (um) Passaporte, emitido pela ... em .../.../2022, figurando como seu titular AA e válido até ...-...-2037
- 1 (um) Passaporte, emitido pela República Portuguesa em .../.../2023, figurando como seu titular AA e válido até ...-...-2028;
- 1 (um) Passaporte, emitido pela República Portuguesa em .../.../2018, figurando como seu titular AA e válido até .../.../2023;
- 1 (uma) factura datada de .../.../2023, emitida por "...", sedeada no ... nela constando o nome AA e apresentando como descrição do objecto adquirido "...", no montante total de 2.550,00 AED (dois mil e quinhentos dirhams dos ...), constando assinatura do cliente,
- 3 (três) facturas emitidas pela "...", especificamente:
. 1 (uma) factura com número 3899 e com data .../.../2020, contendo o nome e assinatura do cliente, nomeadamente, AA, e relativa a um item com a descrição "…", com o valor total de 3.100 (três mil e cem dirhams dos ...),
. 1 (uma) factura com número 5074 e com data .../.../2021, relativa a um item com a descrição " ...", a um item com a descrição "…" e a um item com a descrição "…", com o valor total 2.800 (dois mil e oitocentos dirhams dos ...),
. 1 (uma) factura com número 5080 e com data .../.../2021, relativa a um item com a descrição "…", e "…", com o valor total 3.000 (três mil dirhams dos ...),
- 2 (duas) facturas emitidas pela "...", com a assinatura de cliente, nomeadamente:
. 1 (uma) factura com o número …, com data de ... de ... de 2021, com o nome de cliente GG, perfazendo o total de 5,880.00 dirhams dos ... e com a descrição com os seguintes itens:
- "22K Ring", peso de 3,90, no montante de 968,00 (novecentos e sessenta e oito dirhams dos ...),
- "22k Earring", peso 8,90, no valor de 2.208,00 (dois mil e duzentos e oito dirhams dos ...),
- "22K Ring", com peso 20,90, no montante de 2.704,00 (dois mil e setecentos e quatro dirhams dos ...).
. 1 (uma) factura com o número …, com data de ... de ... de 2021, com o nome de cliente AA, perfazendo o total de 6.300,00 dirhams dos ... e com a descrição com os seguintes itens:
- "22k Bangle", com peso 24,20, no montante de 5.800,00 (cinco mil e oitocentos dirhams dos ...),
- "22k Earring", com peso 1,.80, no montante de 500,00 (quinhentos dirhams dos ...).
- 2 (dois) certificados de joalharia, cor de rosa, com a descrição “…” ..., datados de ...-...-2020, nomeadamente, um certificado relativo a um “…” e um certificado relativo a "…" e respetiva factura com o número …, datado de .../.../2020,
- 1 (um) envelope cinzento com a inscrição "…" "...", contendo um documento com a mesma inscrição e cartão de acesso ao quarto, relacionado com estadia no resort "…" "…", no ..., com data de chegada de ... de ... de 2023 e data de partida em ... de ... de 2023,
- Caixa com os dizeres "... ", contendo um colar de diamantes e rubis, o respectivo certificado de autenticidade e qualidade e uma factura em nome de AA, pelo valor de 22.000,00 dirhams dos …,
- 1 (uma) caixa preta, com motivo dourado à sua volta, contendo uma pulseira com brilhantes de cor branca,
- 1 (uma) caixa, de cor bordeaux, contendo dois brincos com brilhantes de cor branca e dourada,
- 1 (uma) caixa, de cor branca, contendo no seu interior uma caixa verde, com símbolo e designação da marca "...", nele se encontrando um cartão atestando a garantia internacional do … com número de série … e com data de compra de .../.../2021, e um relógio da marca "...", modelo "…" "…", de cor dourada e brilhantes de cor branca com mostrador de cor dourada e ponteiros brancos,
- 1 (uma) caixa, cor de laranja, com a designação "..." em cor azul, nela contendo uma caixa azul com a designação "...", encontrando-se no seu interior 1 (um) relógio smartwatch da marca "...", com bracelete de cor azul com a inscrição "..." em cor vermelha e caixa em cor prateada, com m modelo de referência … e número de série ….
127. No dia ... de ... de 2024, pelas 7h00m, DD tinha na sua posse, na residência sita na ..., entre outras coisas, o seguinte:
- Um talão datado de .../.../2024, relativo à conta bancária da buscada com o n.º ..., com o saldo contabilístico de € 70.162,76 (setenta mil, cento e sessenta e dois euros e setenta e seis cêntimos),
- Um conjunto de documentos agrafados relativos a um Auto de Contraordenação datado do ano de 2019, emitida em nome de WW,
- Na sua mala, a quantia de € 460,00 (quatrocentos e sessenta euros),
- Numa caixa de roupa no seu quarto:
. Num envelope de papel sem qualquer inscrição, o montante de € 2,350.00 (dois mil, trezentos e cinquenta euros),
. Numa bolsa para óculos da marca ..., o montante de € 1,320.00 (mil, trezentos e vinte euros),
. No interior de uma folha quadriculada, sem qualquer inscrição, o montante de € 1,000.00€ (mil euros),
. No interior de um envelope fechado, que possui no seu exterior escrito o nome do seu companheiro, "XX" e no seu interior "… – ........2024 10.000€", a quantia monetária de € 5.000,00 (cinco mil euros), e um outro envelope com a seguinte inscrição no seu interior: "Há ........23 5.000€" assim como uma rúbrica, contendo no seu interior o montante de € 5.000,00 (cinco mil euros).
128. No dia ... de ... de 2024, pelas 7h00m, QQ tinha na sua posse, na residência sita na ..., entre outras coisas, o seguinte:
- Documentação diversa referente às sociedades ... e ...,
- Comprovativo de transferência bancária, datado de .../.../2024, da conta com o n.° ... para o beneficiário DD, com o NIB de destino ..., no valor de € 1.720,00 (mil setecentos e vinte euros),
- E-mail, datado de .../.../2022, o qual tem como remetente YY e como destinatários AA e BB, tendo como assunto "Desempenho do ZZ",
- No interior da primeira gaveta da mesinha da cabeceira, a quantia de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros), dividida em quatro notas de valor facial de € 100,00 (cem euros) e vinte e duas notas de valor facial de € 50,00 (cinquenta euros).
129. Agiram os arguidos BB e AA, da forma descrita, em execução de plano previamente traçado por ambos com o propósito, concretizado, de se organizarem no sentido de ludibriar a Autoridade de Gestão deste Programa Operacional Competitividade e Internacionalização (Agência para o Desenvolvimento e Coesão), apoiado pelo FEDER, com um projecto que tinha como objectivo a criação de uma unidade de produção e comercialização de pellets, produzidas através da biomassa florestal na cidade da ..., no exclusivo propósito de obtenção de proveitos económicos ilegítimos para as empresas que administravam e em proveito próprio.
130. Mais defraudaram os organismos públicos afectos à tomada de decisões, respeitantes quer à aprovação de candidaturas, quer ao acompanhamento dos projectos, nomeadamente, por via da certificação das despesas, quer ao pagamento dos incentivos, com o que lograram obter o pagamento de incentivos comunitários no montante global de € 6.732.650,00.
131. Com a descrita conduta, lograram os arguidos BB e AA, no seguimento do plano por si delineado, prestar falsas informações, quer respeitantes à própria natureza da candidatura e valor do investimento a realizar e a co-financiar, quer na ocultação de situações de conflito de interesses, e, bem assim, no fabrico e utilização de documentos falsos (contratos, facturas e transferências bancárias), provocando um prejuízo ao Estado Português no valor de € 6.732.650,00, que terá que devolver à Comunidade Europeia.
132. Os arguidos BB e AA fizeram seu e da sociedade ... o montante de € 6.732.650,00, pago pela Autoridade de Gestão a título de apoio concedido à sociedade, bem sabendo que tal quantia monetária tinha sido atribuída indevidamente, com base em informação e documentação não verdadeira e em elementos que, a serem conhecidos pela Autoridade de Gestão, nunca dariam lugar à atribuição do incentivo ora em causa.
133. A sua actuação teve sempre subjacente esse conhecimento e foi motivada pela vontade de virem a beneficiar de montantes de subsídio, como beneficiaram, que sabiam não lhes ser devido.
134. Agiram, ainda, os arguidos BB e AA com intenção de dissimular a proveniência dos montantes obtidos de forma ilegítima e usados para simular o investimento de capitais próprios, convertendo, assim, tais vantagens, em património de natureza diversa.
135. Os arguidos BB e AA agiram sempre de forma livre, voluntária e consciente, de comum acordo e em comunhão de esforços, bem sabendo que todas as suas condutas eram punidas e proibidas por lei penal.
Tal factualidade integra a prática pelos arguidos BB e AA, em co-autoria e na forma consumada, de um crime de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção, na forma agravada, previstos e punidos pelo artigo 36.º, n.ºs 1, alíneas a), b) e c), 2 e 5, alínea a), do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro.
Provas que fundamentam a detenção:
- Doc. de fls. 5-11 – Termo de Aceitação / contrato de concessão de incentivos
- Docs. de fls. 14verso-16 e 19verso-20 – Contratos de sociedade por quotas – ....
- Doc. de fls. 22 verso – Informação económico financeira de empresas NIPC: ...
- Doc. de fls. 23-25 – Contrato de mútuo entre ... e GG e HH
- Doc. de fls. 25 verso-26 verso – Extracto bancário da conta da ... no ...
- Doc. fls. 27 – Comprovativo de transferência a crédito na conta da ... no ..., proveniente de conta da ...
- Doc. de fls. 61-64 – Certidão permanente da ...
- Doc. de fls. 65-67 – Certidão permanente da ...
- Doc. de fls. 73 – Informação do IAPMEI, Agência para a Competitividade e Inovação
- Doc. de fls. 85-88, 90-94, 95, 210-239 – Elementos dos PAP’s ---, ---, --- e ---
- Doc. de fls. 260-265 – Auto de diligência (sede ...)
- Doc. de fls. 285 – Fluxos de movimentação bancária entre contas da ..., ... e ...
- Doc. de fls. 541 – cota (depósitos em numerário na conta do ... da ..., feitos por DD)
- Doc. de fls. 996-997 – Informação / Cota
- Doc. de fls. 998-1019 – Acusação de AAA e BBB, no ..., pelos crimes de tráfico de influência em transacção comercial e lavagem de dinheiro
- Doc. de fls. 1193-1194 – Informação do ...
- Doc. de fls. 2024-2032 – Cota, certidão permanente da ...
- Doc. de fls. 2436-2438 – Informação da Agência para o Desenvolvimento e Coesão
- Doc. de fls. 3188-3212 – Informação da Agência para o Desenvolvimento e Coesão e Relatório Técnico de Visita
- Doc. de fls. 3907-3910 (com tradução a fls. 3919-3923) – Contrato entre a ... e a ...
- Doc. de fls. 3911-3918 (Tradução do contrato a fls. 3924-3930) – Contrato entre a ... e a …
- Doc. de fls. 3971-3979 – Aviso n.º …/2017
- Inquirição de FF a fls. 4000-4003
- Inquirição de CCC a fls. 4004-4005
- Auto de leitura e análise de conteúdo de telemóvel de fls. 4035-4047
- Certidão permanente ora junta.
- Processo apensado com o n.º 1439/23.9... – Doc. de fls. 7-8, 17-45 e 590-598 e Doc. de fls. 3-13 do Apenso II a este inquérito
- Apenso A – Informações remetidas pelo IAPMEI
- Apenso de Investigação Patrimonial e Financeira – Relatório Intercalar de fls. 191-234
- Apenso GRA – Relatório Adicional e Relatório IRN
- Apenso Relatório Preliminar Exame Pericial n.º 612/2022-EP-UPFC sede – Relatório de fls. 1-29
- Doc. de fls. 51 do Apenso 1-A
- Doc. de fls. 2 do Apenso bancário 3
- Doc. de fls. 43 do Apenso Bancário 1-B
- Apensos de transcrições de intercepções telefónicas
- Alvo ... (AA)
- Alvo ... (IMEI AA)
- Alvo ... (BB)
- Alvo ... (BB)
- Alvo ... (DDD)
- Alvo EMAIL366 (AA)
- Apensos buscas:
- Auto de busca e apreensão - Apenso de busca – Busca Domiciliária – Equipa 3
- Auto de busca e apreensão - Apenso de busca – Busca Domiciliária – Equipa 5
".
3.1. Do mérito do recurso
.
Da verificação dos pressupostos da aplicação da medida de coacção de prestação de caução
.
Os factos fortemente indiciados permitem imputar aos recorrentes a prática, em co-autoria material, de um crime de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção, na forma agravada, previsto pelo artigo 36.º n.º 1 alíneas a), b) e c), n.º 2 e n.º 5 alínea a), do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20/01, punível com pena de prisão de 2 a 8 anos.
Deste modo, em concreto, a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva é admissível nos termos do artigo 202.º n.º 1 alínea a) do Código Processo Penal.
Por outro lado, o caso concreto impõe exigências que tenham por finalidade acautelar o perigo de fuga, o perigo de continuação da actividade criminosa e o perigo de perturbação grave da ordem e da tranquilidade públicas, os quais foram assinalados no despacho recorrido.
Os recorrentes não têm antecedentes criminais, os factos fortemente indiciados foram praticados ao longo de um período de cerca de dois anos, compreendido entre o mês de ... de 2018 e o mês de ... de 2020, não se encontrando indiciada a prática de qualquer outro ilícito criminal durante o período posterior a esta última data.
Pelo que, como bem assinala o despacho recorrido o perigo de continuação da actividade criminosa se encontra esbatido – pela ausência de comportamento desviante nos últimos quase cinco anos –, assim como, se encontra esbatido o perigo de perturbação da tranquilidade pública, por decurso desse prazo – sabido que a memória colectiva se esfuma com o passar do tempo.
O perigo de fuga é mais exigente em termos cautelares que os anteriores.
Como se afirma correctamente no despacho recorrido "
um dos arguidos tem fortes ligações a países estrangeiros, designadamente no ..., com residência aí declarada, dispondo, por isso, de facilidades para se ausentar para o estrangeiro, atento possuírem capacidade financeira para tal, e sendo o arguido AA titular de passaporte emitido pela ..., válido até .../.../2037 (que se encontra apreendido à ordem dos presentes autos), consideramos fazer-se, igualmente, sentir, relativamente a cada um dos arguidos, um concreto perigo de fuga, uma vez que sabendo-se os arguidos indiciados da prática de um crime desta gravidade e da previsibilidade de, em audiência de julgamento, provando-se os factos pelos quais se encontram, por ora, fortemente indiciados, virem a ser condenados em pena de prisão efectiva, existe um forte perigo de qualquer um dos arguidos fugir do país, na tentativa de se eximir à acção da justiça
".
Com efeito, o arguido AA tem ligações a países da península arábica (autorização de residência e contas bancárias) e passaporte emitido pela .... Por seu turno, o arguido BB exerce a actividade profissional de ..., em regime de profissional liberal, sendo membro da ....
Desta forma, manifestando-se os perigos acima referidos com as exigência cautelar enunciadas, afigura-se, como bem fundamenta o despacho recorrido, a conjugação de aplicação de medidas de coacção não privadoras da liberdade dos arguidos.
Em suma, encontram-se preenchidos todos os requisitos processual que possibilitam a aplicação, para além de outras, da medida de coacção de obrigação de prestação de caução.
E, em concreto a aplicação desta medida de coacção é necessária, adequada e proporcional às exigências cautelares que o caso requer.
Conforme definição alcança pelo Senhor Juiz Desembargador EEE no acórdão do Tribunal da Relação de 04/05/2022, proferido no processo 68/22.9JAPDL-A.L1:
"
Os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade previstos no n.º 1 do artigo 193.º do Código Processo Penal devem considerar-se conceptualizados da seguinte forma:
a. Necessidade: "consiste em que o fim visado pela concreta medida de coacção (…) decretada não pode ser obtido por outro meio menos oneroso para os direitos do arguido", estando essas medidas previstas, em consonância, numa escala de crescente gravidade a partir do TIR, passando por outras não privativas da liberdade até às duas mais graves - a obrigação de permanência na residência e a prisão preventiva -, que "só podem ser aplicadas quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coacção" (cfr. nº 2 daquele preceito), devendo, ainda assim, ser dada preferência à primeira sempre que ela se revele suficiente para satisfazer as exigências cautelares" (cfr. nº 3 do mesmo preceito).
b. Adequação: "consiste em que as medidas de coacção (…) devem ser adequadas às exigências cautelares que o caso requerer".
c. Proporcionalidade: "consiste em que as medidas de coacção devem ser proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas
"
35
.
Ora, a imposição da medida de coacção de obrigação de prestação de caução é adequada à exigência cautelar que visa minimizar o perigo de fuga.
A medida de coacção de obrigação de prestação de caução é proporcional à gravidade da conduta criminosa dos recorrentes (crime de fraude na obtenção de subsídio agravado) e, igualmente, à sanção que previsivelmente lhe será aplicada dentro das molduras penais de 2 a 8 anos de prisão.
Finalmente, é necessária a aplicação da medida de coacção de obrigação de prestação de caução, por não existe outra medida de coacção não privadora de liberdade que, em concreto, permita alcançar o mesmo nível de cautelas face ao perigo de fuga.
Desta forma, é de confirmar a imposição pelo tribunal
a quo
da medida de obrigação de prestação de caução e no montante fixado, tendo em consideração a capacidade económica dos arguidos.
Da substituição da medida de coacção de prestação de caução pela medida de coacção de obrigação de apresentações periódica perante o OPC competente
.
Os recorrentes pugnaram pela aplicação de medida de coacção menos gravosa que a medida de coacção de obrigação de prestação de caução no montante de € 100.000,00, designadamente, medida de coacção de obrigação de apresentações periódica perante o OPC competente.
Tendo em consideração a intensidade do perigo de fuga manifestado no processo, a medida de coacção de obrigação de apresentações periódica perante o OPC competente é manifestamente insuficiente e desadequada para acautelar a intensidade do perigo em causa.
Com efeito, perante a situação económica e financeira dos arguidos, as ligações que mantém com países estrangeiros, a medida de coacção de obrigação de apresentações periódica perante o OPC competente não é eficaz para prevenir o perigo de fuga, por não permitir uma reacção tempestiva a uma manifestação de fuga dos arguidos. Ou seja, perante a prática de crimes de índole económico-financeira a medida de coacção de obrigação prestação de caução é a medida que melhor serve o propósito de impedir a fuga de agentes de prática dos denominados "
crimes de colarinho branco
".
Pelo que, não se vislumbra qualquer possibilidade de adequação ou suficiência a substituição pugnada pelos arguidos.
4. Dispositivo
Por todo o exposto,
acordam os juízes que compõem a 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar não provido o recurso e, consequentemente, manter o despacho proferido
.
Custas pelos recorrentes, fixando a taxa de justiça em 3 UC, cada um – artigo 513.º do Código Processo Penal.
Notifique.
Lisboa, 21 de Maio de 2025
Francisco Henriques
Rosa Vasconcelos
Cristina Isabel Henriques
_______________________________________________________
1. Cfr. Doc. de fls. 3971-3979.
2. Cfr. Resolução do Conselho de Ministros n.º 167-B/2017, publicada no Diário da República, 2º Suplemento, Série I, de 02/11/2017, que veio determinar a adopção de medidas de apoio à actividade empresarial nos territórios afectados pelos incêndios 15/10/2017, prevendo a alínea c) do n.º 2, a abertura de concursos específicos, no âmbito do Programa Qualifica, de apoios a projectos de investimento produtivo empresarial localizados em territórios afectados pelos incêndios.
3. Cfr. Certidão permanente de fls. 61-64.
4. Cfr. Doc. de fls. 2-22 do Apenso A – Informações remetidas pelo IAPMEI.
5. Cfr. Apenso A – Informações remetidas pelo IAPMEI.
6. Cfr. Doc. de fls. 73 e Apenso A – Informações remetidas pelo IAPMEI.
7. Cfr. Certidão permanente de fls. 61-64 e contrato de sociedade de fls. 14 verso - 20
8. Cfr. Doc. de fls. 5-11.
9. Cfr. Doc. de fls. 23-25.
10. Cfr. Doc. de fls. 25 verso – 26 verso.
11. Cfr. Doc. fls. 27.
12. Cfr. Docs. de fls. 85-88, 213-217 e 221-225
13. Cfr. Docs. de fls. 85 e 90-94.
14. Cfr. Doc. de fls. 226-239.
15. Cfr. certidão permanente de fls. 65-67.
16. Cfr. Doc. de fls. 22 verso.
17. Cfr. Doc. de fls. 260-265.
18. Cfr. Informação de fls. 996-997.
19. Cfr. Informação de fls. 996-997.
20. Cfr. Doc. de fls. 998-1008
21. Cfr. Doc. de fls. 51 do Apenso 1-A.
22. Cfr. Doc. de fls. 2 do Apenso bancário 3.
23. Cfr. Doc. de fls. 93-118 do Apenso Informações Remetidas pelo IAPMEI
24. Cfr. Decisão constante a fls. 96 verso do documento de análise comparativa das propostas apresentadas a fls. 93-140 do Apenso Informações Remetidas pelo IAPMEI.
25. Cfs. Doc. de fls. 174-179 do Apenso Informações Remetidas pelo IAPMEI.
26. Cfr. Tradução do contrato, constante de fls. 3924-3930.
27. Folha elaborada pela ... para o cliente ..., junta a fls. 135-138 do Apenso Informações Remetidas pelo IAPMEI.
28. Cfr. Doc. de fls. 43 do Apenso Bancário 1-B.
29. Cfr. Documento de fls. 3907-3910, com tradução a fls. 3919-3923.
30. Cfr. artigo 32.º, n.º 2, alínea c), do RECI.
31. Cfr. artigo 1.º, ponto 10, da Portaria n.º 292/2011, de 8 de Novembro.
32. Cfr. Doc. de fls. 3191-3205.
33. Cfr. Doc. de fls. 2025-2026.
34. Cfr. Doc. de fls. 2024-2032.
35. In,
https://www.dgsi.pt/Jtrl.nsf/e6e1f17fa82712ff80257583004e3ddc/75e299bb16030a688025886e0050256e?OpenDocument
.
|
TRL
|
https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/8070ea6728a727e180258c970049ec31?OpenDocument
|
1,736,899,200,000
|
IMPROCEDENTE O RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
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1082/22.0T9PRD.P1
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1082/22.0T9PRD.P1
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MARIA JOANA GRÁCIO
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I - O Código de Processo Penal não prevê segundas chances para acusar.
II - O regime da alteração substancial dos factos não autonomizáveis em sede de instrução conduz-nos à impossibilidade de dedução pelo Ministério Público de uma segunda acusação num segundo processo autónomo sobre matéria que constituiu em termos materiais e probatórios o objecto da investigação de um outro processo precedente, respeitante ao mesmo pedaço de vida da arguida, e onde foi deduzida acusação pública e posteriormente decisão de não pronúncia por nulidade da acusação, de que não foi interposto recurso.
III - A admissão de uma segunda acusação no contexto descrito tornaria a decisão de não pronúncia mencionada numa encapotada absolvição da instância, actualmente proibida pelo processo penal.
IV - Mais, nenhuma norma processual penal alberga o entendimento de que possa ser deduzida uma segunda acusação nas circunstâncias apontadas, prejudicando-se a arguida por ter requerida a abertura da instrução – pois em julgamento pela acusação antecedente beneficiaria de uma absolvição certa por falta de imputação de factos –, ao arrepio dos mais básicos direitos de defesa e princípios constitucionais.
V - Ao nível dos princípios constitucionais conformadores do processo penal, há que reconhecer que os efeitos do ne bis in idem começam muito antes da fase de julgamento, apesar de numa primeira e apressada leitura parecer ser o que decorre de uma análise literal do n.º 5 do art. 29.º da Constituição da República Portuguesa, sendo que o momento paradigmático, a partir do qual se inicia a proteção do ne bis in idem no processo penal, é o da acusação, embora possa ocorrer antes com a aplicação de medidas de coacção.
|
[
"ART. 29.º N.º 5 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA",
"PRINCÍPIO NE BIS IDEM"
] |
Proc. n.º 1082/22.0T9PRD.P1
Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este – Juízo de Instrução Criminal de Penafiel – Juiz 2
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto
I. Relatório
No âmbito do Inquérito n.º 1082/22.0T9PRD, a correr termos na Comarca do Porto Este, 1.ª Secção do DIAP de Paredes, pelo Ministério Público, por despacho de 18-09-2023, foi deduzida acusação, com intervenção do Tribunal Colectivo, contra a arguida
A..., S.A.
, representada pelo seu actual administrador único AA, anteriormente denominada B..., Lda./C..., Unipessoal Lda./D..., Lda., imputando-lhe a prática, por força do estatuído no artigo 11.º do CPenal, em autoria material e na forma consumada, conjuntamente com os demais arguidos pronunciados no âmbito do Proc. Comum Colectivo n.º 12512/13.1TDPRT, de um crime de associação criminosa, p. e p. pelo art. 299.º, n.ºs 2 e 5, do CPenal, e de um crime de branqueamento, p. e p. pelo art. 386.º-A, do mesmo diploma legal.
*
Perante este despacho, a arguida A..., S.A. requereu a abertura da instrução, solicitando que, a final, fosse proferido despacho de não pronúncia relativamente aos crimes por que foi acusada.
Por despacho de 11-01-2024 foi declara aberta a fase de instrução.
Foi realizado debate instrutório, tendo sido proferida, a 07-03-2024, decisão instrutória de não pronúncia da arguida A..., S.A. pela prática dos crimes de associação criminosa e branqueamento de capitais por que vinha acusada.
*
Inconformado com esta decisão, o
Ministério Público
interpôs recurso, solicitando que fosse revogado o despacho recorrido e o mesmo substituído por outro que pronunciasse a arguida por todos os factos descritos na acusação pública contra si deduzida, com as correspondentes incriminações legais imputadas.
Apresenta em apoio da sua posição as seguintes conclusões da motivação (transcrição):
«
1º
Entende o Ministério Público que dos indícios recolhidos nos autos se impunha a prolação de despacho de pronúncia, versando, em síntese, o recurso sobre os seguintes pontos:
- insuficiência de fundamentação, por não serem elencados os meios de prova que sustentam a decisão de insuficiente indiciação;
- contradição entre os factos dados como indiciados e não indiciados, em termos tais que tornam ininteligível a decisão;
- suficiência dos indícios para pronúncia pelos crimes de associação criminosa e branqueamento de capitais (sendo, alias, suficientes os factos que o Tribunal recorrido considerou indiciados).
Tendo a decisão recorrida violado o disposto nos art. 97.º, n.º 5, alínea b) do n.º 2 do artigo 410º, arts. 308.º, n.º 2, e 283.º, n.º 3, b), todos do C.P.P. e 299.º, nº2 e 5 e 368.º-A do C.P.
2º
O Mmo. Juiz
a quo
tece considerações genéricas acerca da (não) existência de indícios suficientes para considerar provável a condenação da Arguida, descrever factos considerados, ou não considerados, suficientemente indiciados, mas não explicita de forma lógica o raciocínio que conduziu a tais conclusões.
3º
O art. 308.º, n.º 2, do CPP estabelece que à decisão instrutória é aplicável o disposto no art. 283.º do mesmo Código, cujo n.º 3, al. b), que estatui que a acusação contém, sob pena de nulidade, a indicação, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança.
4º
Poder-se-ia entender que esta exigência, relativa à acusação, seria aplicável ao despacho de pronúncia e já não ao despacho de não pronúncia, mas a verdade é que a doutrina e a jurisprudência sobre a questão afirmam a necessidade de especificar os factos suficientemente indiciados ou não, sob pena de nulidade.
5º
Isto porque o despacho de não pronúncia configura uma decisão de mérito, que tem força vinculativa dentro e fora do processo em que foi proferida, constituindo caso julgado, cujo alcance só é fixado pela fixação dos factos que em concreto não se consideram suficientemente indiciados.
6º
Desta feita, qualquer decisão que coloque termo ao processo deve ser naturalmente fundamentada, enumerando os
factos provados e não provados, bem como de uma exposição dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão,
com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
7º
Consagrada no artigo 205.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, a fundamentação constitui uma garantia integrante do conceito de Estado de direito democrático, funcionando como condição de legitimação externa das decisões dos tribunais, ao permitir a verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor e motivos que as determinaram.
8º
Para além disso, a fundamentação de qualquer decisão, assume no processo penal uma função estruturante na medida em que assegura o conhecimento das razões de facto e de direito por que foi tomada uma decisão e não outra, revelando-se, essencial para o exercício do direito ao recurso.
9º
No âmbito da decisão sobre a matéria de facto, a exigida fundamentação tem em vista a explicitação do processo de formação da convicção do julgador e isso pressupõe, naturalmente, a referência ao
exame crítico
da prova que serviu para formar a convicção, dando a conhecer de modo conciso, mas com suficiência bastante, o percurso lógico e racional efetuado em sede de apreciação e valoração da prova que conduziu à demonstração (ou não) da factualidade objeto da decisão recorrida.
10º
A fundamentação supõe, pois, a enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas produzidas, dos motivos que sustentam determinada opção por um ou outro dos meios de prova, dos fundamentos da credibilidade reconhecida às declarações e depoimentos e do valor de documentos e exames, ou seja, de tudo o que o julgador privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio que seguiu e das razões da sua convicção.
11º
Com efeito, e tal como supra se referiu no Ponto III (DA INSTRUÇÃO) a decisão recorrida elenca os factos que entende indiciados e não indiciados.
12º
No entanto, e no que respeita à fundamentação lógica para dar tais factos como assentes, limita-se o Mmo. Juiz
a quo
a estribar a sua convicção no princípio da livre apreciação da prova e referindo que quanto aos factos dados como não indiciados, os mesmos resultam da ausência de prova e da própria narrativa da acusação.
13º
Sucede, porém, que tal não é apto a dar como não indiciada a factualidade constante da acusação (o que mais adiante explicitaremos), a qual aliás é contraditória de forma clara com a parte da factualidade dada como indiciada (o que em seguida de igual modo abordaremos).
14º
Neste sentido, vejam-se, entre outros disponíveis em www.dgsi.pt. os
Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 01-07-2015
(Proc. n.º 3321/12.6TDPRT.Pl)
e de 22-09-2021
(Proc. 84/20.SGAVNG.Pl), bem como o
Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 26- 06-2019
(Proc. 303/18.SJALRA.Cl), E na doutrina, destaca-se neste sentido o entendimento de PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE ("Comentário do Código de Processo Penal", 2.ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, p. 779), EDUARDO MAIA COSTA ("Código de Processo Penal Comentado Almedina", 3.ª ed., p.988) e FREDERICO LACERDA DA COSTA PINTO, ("Direito Processual Penal", edição AAFDL, 1998, p. 164).
15º
Todos estes autores comungam do entendimento de que o despacho de não pronúncia, como decisão jurisdicional que é, deverá fixar expressamente quais os factos considerados não suficientemente indiciados, pois é sobre estes que se formará caso julgado, em benefício da segurança jurídica do arguido, sendo desde logo inadmissível quanto a eles inadmissível a reabertura do processo.
16º
Tal vício deve ser qualificado como nulidade insanável, que aqui expressamente se argui, em decorrência do disposto no art. 283.º, n.º 3, b), do CPP (para que remete o art. 308.º, n.º 2, do mesmo Código), à luz relevância sistémica do princípio do caso julgado material, não podendo ficar dependente de arguição - neste sentido, veja-se desde logo o já citado acórdão dessa Relação de 22-09-2021.
17º
Da Contradição Insanável da Factualidade dada como Indiciada e Não Indiciada e respetiva Fundamentação: A al.b) do n.º 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal, abrange dois vícios distintos, a saber: a contradição insanável da fundamentação:
as situações em que a fundamentação levada a cabo pelo Mmo. Juiz evidencia premissas antagónicas ou manifestamente inconciliáveis. Por exemplo, quando se dá o mesmo facto como provado e não provado;
a contradição insanável entre a fundamentação e a decisão
: abrange as circunstâncias em que os factos provados ou não provados colidem com a fundamentação da decisão. Por exemplo quando a decisão assenta em premissas diferentes das que se tiveram como provadas ou não provadas.
18º
No caso dos autos verificam-se ambas as situações, uma vez que a factualidade dada como indiciada e não indiciada pelo Mmo. Juiz
a quo
é clamorosamente contraditória entre si.
19º
O Mmo. Juiz
a quo
, deu como indiciados para além de todos os demais factos já descritos no Ponto III do presente recurso, os seguintes factos de igual modo aí constantes:
19.1º
Com efeito, assim que recebessem o dinheiro das entidades financeiras, aqueles trataram de o transferir para os demais arguidos e para as empresas detidas e dominadas pelos mesmos ou seus familiares, nomeadamente a A... S.A.
(factos dados como indiciados no artigo 7º, do Ponto VI, sob o título O PLANO CRIMINOSO DEVIDAMENTE DESCRITO E EXPLANADO NOS AUTOS DE PROCESSO 12512/13.1TDPRT, da decisão Instrutória):
19.2º
As financeiras levaram a cabo os financiamentos descritos na acusação, e procederam á transferência do respetivo capital do seguinte modo e nas seguintes datas
(factos dados como indiciados nos artigos 2º, 3º, 4º e 5º, do Ponto VII, sob o título OS RESULTADOS/VANTAGENS OBTIDOS PELOS ARGUIDOS, DEVIDAMENTE DESCRITO E EXPLANADO NOS AUTOS DE PROCESSO 12152/13.1TDPRT, da decisão Instrutória):
Locador Banco 1...:
Beneficiário E... de BB.
Datas dos contratos e respetivo financiamento:
07.08.2008 – 623.073,80€
07.08.2008 – 540.652,44€
14.11.2008 – 569.442,68€
11.05.2008 – 3.859.306,20€
Locador Banco 2...:
Beneficiário F..., UNIPESSOAL LDA.
02.02.2011 – 5.372.525,35€
01.08.2011 – 3.013.302,72€
06.03.2012 – 2.496.900,00€
Locador Banco 3...:
Beneficiário F..., UNIPESSOAL LDA.
14.11.2011 – 3.862.904,18€
13.02.2012 – 2.496.900,00€
19.3º
Adquiriu ainda a arguida A... S.A., com recurso ao capital que os arguidos no âmbito do processo Comum Coletivo 12512/13.1TDPRT, receberam das financeiras, do modo supra descrito nomeadamente através da sua então Administradora única CC o seguinte património imobiliário
(factos dados como indiciados nos artigos 16º, 16º, 17º e 18º, do Ponto VIII, sob o titulo A CONCRETA ATUAÇÃO DA ARGUIDA A... S.A., da decisão Instrutória):
(…) [tabelas constantes de fls. 230 a 237 do recurso]
19.4º
Alcançando deste modo um Património imobiliário, no valor total de 1.803.292,32€.
19º5
A arguida A... S.A. nas datas dos referidos negócios, não tinha condições financeiras para adquirir tantos imóveis, não fosse o dinheiro proveniente das financeiras, para si canalizado através dos arguidos acusados e pronunciados nos autos de processo 12512/13.1TDPRT, o que resulta nomeadamente das declarações apresentadas junto da AT, das quais resulta:
Ano
Total de rendimentos do Período
Lucro
Tributável
2009
0,00
-523,21
2010
2.700,00
- 1.931,11
2011
2.563,52
1.830,63
2012
39.400,00
14.583,61
2013
35.697,86
22.818,75
2014
24.520,00
10.695,27
2015
526.905,72
226.035,95
19.6º
Não obstante os bens estarem na titularidade da arguida A... S.A. a verdade é que os mesmos pertencem, efetivamente, aos demais arguidos acusados e pronunciados nos autos de processo 12512/13.1TDPRT, pois podem dispor deles quando quiserem, face às relações familiares existentes.
20º
E simultaneamente, o Mmo. Juiz
a quo
, dá como
não indiciado
que:
20.1º
A... S.A., à data através da sua Administradora Única CC aceitaram participar nele, por forma a que o dinheiro obtido das entidades financeiras fosse canalizado através das suas contas bancárias e das empresas nas quais aceitaram figurar como gerentes nomeadamente a aqui arguida A... S.A, por forma a evitar a responsabilização da G.../H....
20.2º
Por sua vez, a aqui arguida A... S.A. desde a data da sua constituição 16.11.2009 (em tal data denominada B... LDA.) até à presente data, por vontade da sua Gerente (entre 16.11.2009 e 07.04.2014) e. Administradora única (entre 07.04.2014 e 15.03.2018) CC, serviu apenas para que os montantes obtidos das empresas financeiras mediante a burla descrita supra, e levada a cabo pelos arguidos no processo no âmbito do processo 12512/13.1TDPRT, fossem para aí, parcialmente, canalizados, não diretamente, mas através da transmissão de imóveis adquiridos com o dinheiro entregue pelas financeiras aos
arguidos do processo 12512/13.1TDPRT.
20.3º
A arguida A... S.A., foi criada e serviu apenas, para dissimular as quantias monetárias obtidas das financeiras, pelos arguidos no processo 12512/13.1TDPRT, através da aquisição de imóveis diversos.”
21º
Refere-se pois simultaneamente estar indiciado que:
“com efeito, assim que recebessem o dinheiro das entidades financeiras, aqueles trataram de o transferir para os demais arguidos e para as empresas detidas e dominadas pelos mesmos ou seus familiares, nomeadamente a A... S.A.”,
que
“adquiriu ainda a arguida A... S.A., com recurso ao capital que os arguidos no âmbito do processo Comum Coletivo 12512/13.1TDPRT, receberam das financeiras, do modo supra descrito nomeadamente através da sua então Administradora única CC o seguinte património imobiliário”
(e elencar o património que supra se aludiu no ponto 2.3 do presente recurso) e
“a arguida A... S.A. nas datas dos referidos negócios, condições financeiras para adquirir tantos imóveis, não fosse o dinheiro proveniente das financeiras, para si canalizado através dos arguidos acusados e pronunciados nos autos de processo 12512/13.1TDPRT, o que resulta nomeadamente das declarações apresentadas junto da AT”
e fixar-se não estar indiciado que
“por sua vez, a aqui arguida A... S.A. desde a data da sua constituição 16.11.2009 (em tal data denominada B... LDA.) até à presente data, por vontade da sua Gerente (entre 16.11.2009 e 07.04.2014) e. Administradora única (entre 07.04.2014 e 15.03.2018) CC, serviu apenas para que os montantes obtidos das empresas financeiras mediante a burla descrita supra, e levada a cabo pelos arguidos no processo no âmbito do processo 12512/13.1TDPRT, fossem para aí, parcialmente, canalizados, não diretamente, mas através da transmissão de imóveis adquiridos com o dinheiro entregue pelas financeiras aos arguidos do processo12512/13.1TDPRT.”
22º
Ou seja, o Mmo. Juiz
a quo
dá como indiciado, que:
Os arguidos no âmbito do processo 12512/13.1TDPRT, assim que recebesse o dinheiro das entidades financeiras, o iriam transferir para as empresas detidas por si e pelos demais familiares, nomeadamente a A... S.A.”,
23º
Na data em que a arguida adquiriu um património no valor total de 1.031.500,00€;
24º
Que o fez com recurso ao capital que os arguidos no âmbito do processo Comum Coletivo 12512/13.1TDPRT, receberam das financeiras, do modo supra descrito nomeadamente através da sua então Administradora única CC; porquanto nas datas dos referidos negócios não tinha condições financeiras para levar a cabo tais aquisições não fosse o dinheiro proveniente das financeiras, para si canalizado através dos arguidos acusados e pronunciados nos autos de processo 12512/13.1TDPRT, o que resulta nomeadamente das declarações apresentadas junto da AT.
25º
Mas conclui de igual modo, não estar indiciado:
25.1º
Que ao grupo inicial juntaram-se as empresas arguidas no referido processo 12512/13.1TDPRT e a aqui arguida A... S.A. que, porque lideradas, de facto e/ou de direito, pelos arguidos supra identificados foi posta ao serviço do interesse criminoso de todos os demais, passando a atuar concertadamente e em conjugação de esforços com aqueles outros.
25.2º
Conhecedores daqueles planos, os demais arguidos, nomeadamente a arguida A... S.A., à data através da sua Administradora Única CC aceitaram participar nele, por forma a que o dinheiro obtido das entidades financeiras fosse canalizado através das suas contas bancárias e das empresas nas quais aceitaram figurar como gerentes nomeadamente a aqui arguida A... S.A, por forma a evitar a responsabilização da G.../H....
25.3º
Que a arguida desde a data da sua constituição 16.11.2009 (em tal data denominada B... LDA.) até à presente data, por vontade da sua Gerente (entre 16.11.2009 e 07.04.2014) e Administradora única (entre 07.04.2014 e 15.03.2018) CC, serviu apenas para que os montantes obtidos das empresas financeiras mediante a burla descrita supra, e levada a cabo pelos arguidos no processo no âmbito do processo 12512/13.1TDPRT, fossem para aí, parcialmente, canalizados,
não diretamente, mas através da transmissão de imóveis adquiridos com o dinheiro entregue pelas financeiras aos arguidos do processo 12512/13.1TDPRT!!!
25.4º
E, diga-se a tal respeito, que bem andou o Mmo. Juiz
a quo
no que tange a dar tal factualidade como indiciada, porque efetivamente a arguida A... S.A., a título exemplificativo, nas datas das aquisições levadas a cabo nos anos de 2009 a 2011, aquisições de imoveis no valor de 1.078.500,00€, tem como total de rendimentos do período:
o rendimento é 0, e 2010: 2.700,00 e 2011:
5.263,52€, sendo que no ano de 2009 o rendimento é 0, e 2010: 2.700,00 e 2011: 2.563,52€, e Lucro tributável 1.830,63 no ano de 2011 e (-) 1.931,11€ no ano de 2010 e (-)523,21 no ano de 2009.
26º
Mas mais:
O Mmo. Juiz
a quo
dá como indiciado, que para além do mais (existem outras quantias em outras datas), os arguidos no processo 12512/13.1TDPRT, recebem das locadoras os seguintes valores, nas seguintes datas:
Locador Banco 1...:
Beneficiário E... de BB.
Datas dos contratos e respetivo financiamento:
07.08.2008 – 623.073,80€
07.08.2008 – 540.652,44€
14.11.2008 – 569.442,68€
11.05.2008 – 3.859.306€
Locador Banco 2...:
Beneficiário F..., UNIPESSOAL LDA.
02.02.2011 – 5.372.525,35€
01.08.2011 – 3.013.302,72€
27º
Todas elas, datas anteriores à aquisições do património ora referido.
Para depois fundamentar a factualidade dada como não indiciada com base no facto de resultar dos autos (nomeadamente da narrativa da acusação)
“que os bens foram adquiridos em momento anterior à data em que ocorreram as transferências do dinheiro por parte das financeiras, pelo que, claramente, o dinheiro obtido para aquisição não é o aqui retratado.”
28º
Ora perante tal, outra solução não haverá, que não seja concluir pela existência do vicio de Contradição insanável da fundamentação prevista na
al.b) do n.º 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal,
29º
Existem nos autos, de elementos de prova suficientes para a pronuncia da arguida, não tendo os mesmos sido infirmados em fase de instrução
30º
Do pouco que se alcança da fundamentação dada pelo Mmo. Juiz
(contraditória e ininteligível como supra explanado, exigindo a qualquer recorrente um exercício hercúleo de interpretação),
terá o mesmo muito resumidamente, feito
“tábua rasa”
de todo o acervo documental existente nos autos
(pese embora elenque o mesmo relativamente á factualidade indiciada, na sua parca fundamentação)
o que conjugado com a própria factualidade que o próprio dá como indiciada (
que o património adquirido pela aqui arguida A... S.A. diretamente aos arguidos do Processo Comum Coletivo 12512/13.1TDPRT, ter por estes últimos, sido adquirido em momento anterior à entrega de capital por parte das financeiras)
excluir a pratica do 31º Tal raciocínio, a ter sido este o que efetivamente foi levado a cabo, enferma de dois inultrapassáveis problemas.
32º
Primeira questão:
Entendemos que a factualidade vertida na acusação, é toda ela suportada por elementos de prova, quer prova testemunhal, quer documental, quer pericial, não contraditada em sede de instrução, e aliás valorada positivamente como credível pelo Mmo. Juiz de Instrução, e que nunca poderia levara tal conclusão.
33º
Vejamos:
Se atentarmos no Despacho de Não Pronuncia, e tal como já referimos, supomos que terão sido os factos dados como indiciados pelo Mmo. Juiz, constante do pedido de abertura de instrução, que aparentemente serviram para que a arguida não fosse pronunciada.
34º
No entanto, dos mesmos resulta que todas as compras por parte da arguida A... S.A. (levadas a cabo aos arguidos no processo e/ou a terceiros), foram concretizadas em momento posterior à primeira quantia recebida por parte da financeira Banco 1..., em 11.05.2008.
35º
Concretizando:
O prédio urbano descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Cascais sob o número ... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... foi comprado ao arguido DD em
20/01/2010.
***
A fração F do prédio urbano descrito na Conservatória dos Registos Civil, Predial, Comercial e Automóveis de Valongo sob o número ... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... foi comprada pela arguida A..., S.A. ao arguido DD em
26/03/2010.
***
As frações B e C do prédio urbano descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o número ... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... foram compradas pela arguida A..., S.A. à "I..., Lda." (de que era gerente a arguida EE) em
27/01/2010.
***
A fração AC do prédio urbano descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o número ... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... foi comprada pela arguida A..., S.A. à arguida EE e marido FF em
18/12/2009.
***
As frações AN e BW do prédio urbano descrito na 1a Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o número ... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... foram compradas pela arguida A..., S.A. à arguida EE e marido FF em
18/12/2009.
***
O prédio urbano descrito na Conservatória dos Registos Predial, Comercial e Automóveis da Figueira da Foz sob o número ...'e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... foi comprado pela arguida A..., S.A. à arguida CC em
11/03/2016.
***
A fração B do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Silves sob o número ... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... foi comprada pela arguida A..., S.A. em
26/01/2012.
***
A fração BL do prédio urbano descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Sintra sob o número ... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... foi comprada pela arguida A..., S.A. em
26/01/2012
.
***
A fração B do prédio urbano descrito na Conservatória dos Registos Civil, Predial, Comercial e Automóveis de Felgueiras sob o número ... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... foi comprada pela arguida A..., S.A. em
12/01/2017.
***
O prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Lousada sob o número ... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... foi comprado pela arguida A..., S.A. em
18/05/2010.
***
O prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Lousada sob o número ... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...... foi comprado pela arguida A..., S.A. a GG e HH em
13/01/2016.
***
36º
Ou seja, as aquisições em causa (porque existem outras, não elencadas nesse ponto, mas dadas como indiciadas em sede de matéria da acusação), foram levadas a cabo entre 18.12.2009 e 12.01.2017, datas posteriores aos financiamentos dados como indiciados do seguinte modo:
(…) [tabelas constantes de fls. 230 a 237 do recurso]
37º
Tal como consta dos factos dados como indiciados pelo Mmo. Juiz
a quo
, constantes da acusação:
A arguida A... S.A. nas datas dos referidos negócios, não tinha condições financeiras para adquirir tantos imóveis, não fosse o dinheiro proveniente das financeiras, para si canalizado através dos arguidos acusados e pronunciados nos autos de processo 12512/13.1TDPRT, o que resulta nomeadamente das declarações apresentadas junto da AT, das quais resulta:
Ano
Total de rendimentos do Período
Lucro Tributável
2009
0,00
-523,21
2010
2.700,00
- 1.931,11
2011
2.563,52
1.830,63
2012
39.400,00
14.583,61
2013
35.697,86
22.818,75
2014
24.520,00
10.695,27
2015
526.905,72
226.035,95
Não obstante os bens estarem na titularidade da arguida A... S.A. a verdade é que os mesmos pertencem, efetivamente, aos demais arguidos acusados e pronunciados nos autos de processo 12512/13.1TDPRT, pois podem dispor deles quando quiserem, face às relações familiares existentes.
38º
Ora o que, para além do mais (e que naturalmente aqui não reproduziremos porque seria no mínimo fastidioso) se refere na acusação, é que:
A arguida,
pessoa coletiva A... S.A., à data dos factos, por decisão da sua Administradora Única, CC, ao juntar-se aos demais arguidos pronunciados no âmbito do processo Comum Coletivo 12512/13.1TDPRT, promovendo a formação de um grupo, sob a liderança de EE (pronunciada no âmbito do processo
Comum Coletivo 12512/13.1TDPRT)
, engendraram e edificarem o esquema de natureza empresarial, com atribuição de papeis e função específicos a cada um deles, a desenrolar, pelo menos, nos anos de 2008 a 2012, agindo com o propósito conseguido de obterem, para todos eles, as quantias acima indicadas, através dos atos acima descritos que sabiam ser ilícitos e que lhes permitiram a apropriação de avultadíssimas quantias monetárias, para si, e para terceiros consigo relacionados, à custa de entidades financeiras/bancos supra identificados causando-lhes prejuízo.
A arguida pessoa coletiva A... S.A., por decisão da sua então Administradora Única, CC
, agiu, em todas as circunstâncias descritas, com o objetivo conseguido de para si canalizar os montantes obtidos das empresas financeiras, mediante o esquema descrito e levado a cabo pelos arguidos pronunciados no âmbito do processo Comum Coletivo 12512/13.1TDPRT, não diretamente, mas através da transmissão de imóveis adquiridos com o dinheiro entregue por essas financeiras.
A arguida pessoa coletiva A... S.A., por decisão da sua, à data Administradora Única, CC
, bem sabia que fazia parte de um grupo de pessoas que agia concertadamente, sob liderança de EE (todos acusados e pronunciados no âmbito do processo Comum Coletivo 12512/13.1TDPRT), em prol da vontade ilícita e coletiva de todo o grupo criado com o objetivo de levar a cabo as supra descritas atividades, prestando a este grupo todo o apoio necessário para concretizar a sua vontade ilícita, seja fornecendo contas bancárias usadas para movimentar e canalizar o dinheiro recebido, adquirir imóveis com o dinheiro entregue por essas financeiras, ou qualquer outro ato que permitisse desenvolver o plano gizado e com o qual todos concordaram, acederam e ajudaram a montar, o que quiseram
e fizeram.
A arguida pessoa coletiva A... S.A., por decisão da sua, à data, Administradora única, a CC (acusada/pronunciada no âmbito do processo Comum Coletivo 12512/13.1TDPRT), em conjugação de esforços com os demais arguidos pronunciados no aludido processo Comum Coletivo 12512/13.1TDPRT)
, e no cumprimento do plano previamente delineado, a que todos deram contribuição, aderiu e aceitou, ao adquirir imóveis e moveis aos demais arguidos e a terceiros, comprados com o dinheiro entregue por essas financeiras, sendo que o fez, bem sabendo que essas quantias monetárias usadas para a aquisição de tais bens, eram provenientes da atuação ilícita fraudulenta e enganosa por todos combinada, engendrada e executada.
A arguida pessoa coletiva A... S.A., por decisão da sua à data, Administradora Única, a arguida CC (acusada/pronunciada no âmbito do processo Comum Coletivo 12512/13.1TDPRT)
, sabia que tais condutas visavam ocultar a proveniência ilícita daquelas quantias monetárias, impedindo localizar o seu rasto tendo, para tanto, introduzido aqueles valores transferidos no circuito económico-financeiro como se se tratassem de verbas obtidas de forma lícita, designadamente no que respeita à sua ilegítima proveniência, com o objetivo de obter um benefício ao qual sabia não ter direito, em prejuízo de terceiros, intentos que logrou alcançar.
39º
Pelo que tal factualidade bem como a demais vertida na acusação teria de ter sido dada como indiciada e em consequência a arguida A... S.A., pronunciada pela prática dos crimes de que vinha acusada.
39º
Segunda questão:
Ainda que se considera-se/interpretasse que o referido na acusação é que os arguidos no processo 12512/13.1TDPRT, com o dinheiro obtido através do esquema fraudulento levado a cabo junto das financeiras e pelo qual estão acusados e pronunciados no processo em causa, compraram imoveis que posteriormente venderam à arguida A... S.A.,
o que não se aceita
, sempre se dirá que os demais elementos de prova constantes dos autos, factos vertidos na acusação e os dados como indiciados pelo próprio Mmo. Juiz de Instrução, são aptos a preencher os crimes imputados à arguida.
40º
Vejamos:
Efetivamente, resulta de forma clamorosa da própria factualidade que o Mmo. Juiz
a quo
dá como indiciada, resultante do requerimento de abertura de instrução, que porquanto mal andou o Mmo. Juiz
a quo
, ao elencar como indiciados factos constantes do requerimento de abertura de instrução, que são contraditados pela documentação junta aos autos, nomeadamente pela arguida, a saber as certidões das Conservatórias de Registo Predial.
41º
A saber:
A fração F do prédio urbano descrito na Conservatória dos Registos Civil, Predial, Comercial e Automóveis de Valongo sob o número ... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... foi comprada pela arguida A..., S.A. ao arguido DD em 26/03/2010, que a tinha adquirido no ano 2008.
Sucede, porém, que a aquisição em causa por parte de DD, foi levada a cabo em 10.12.2008, ou seja, em data posterior aos primeiros financiamentos levados a cabo entre 11.05 e 11.11 de 2008 pela Financeira Banco 1....
As frações B e C do prédio urbano descrito na 2a Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o número ... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... foram compradas pela arguida A...,S.A. à "I..., Lda." (de que era gerente a arguida EE) em 27/01/2010, que as tinha adquirido com recurso ao crédito no ano 2004.
Sucede porém, que o que a “I..., Lda.", leva a cabo em 04.05.2005 (e não em 2004 como se refere na decisão instrutória), não é uma compra, mas sim uma Locação Financeira, levada a cabo com a Instituição de Crédito Banco 4.... Aliás, resulta da certidão da Conservatória do Registo Predial junta aos autos, no próprio requerimento de abertura de instrução, que na aludida data de 04.05.2005, J... UNIPESSOAL LDA, vende o referido bem ao Banco 4..., que na mesma data celebra com a “I..., Lda.", o referido contrato de Locação Financeira.
Locação Financeira que é definida como: Contrato de financiamento pelo qual uma das partes (locador) cede a outra (locatário) o gozo temporário de um bem, escolhido pelo locatário, em contrapartida do pagamento de renda por prazo determinado. No final do contrato, o locatário poderá adquirir o bem, mediante o pagamento do valor residual.
A compra efectiva por parte da “I..., Lda.", é levada a cabo em 29.02.2010,
ou seja, em data posterior aos primeiros financiamentos levados a cabo entre 11.05 e 11.11 de 2008 pela Financeira Banco 1....
Dando-se a venda à aqui arguida A... S.A., à data C..., LDA, em 29.01.2012.
A fração B do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Silves sob o número ... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... foi comprada pela arguida A..., S.A. em 26/01/2012 e tinha sido adquirida no ano 2009 pela "K..., Lda." à "L..., S.A., em resultado da cessão da posição contratual da "M... Unipessoal, Lda.", que havia prometido comprar em 2007.
Sucede, porém, que a aquisição em causa pela "K..., Lda." à "L..., S.A., foi levada a cabo em 2009, ou seja, em data posterior aos primeiros financiamentos levados a cabo entre 11.05 e 11.11 de 2008 pela Financeira Banco 1....
A fração BL do prédio urbano descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Sintra sob o número ... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... foi comprada pela arguida A..., S.A. em 26/01/2012 e tinha sido adquirida pela "I..., Lda." com recurso ao crédito no ano 2006.
Sucede, porém, que o que a “I..., Lda.", leva a cabo em 06.09.2006, não é uma compra, mas sim uma Locação Financeira, levada a cabo com a Instituição de Banco 5... SA.
Aliás, resulta da certidão da Conservatória do Registo Predial junta aos autos, no próprio requerimento de abertura de instrução, que na aludida data de 06.09.2006, H..., LDA, vende o referido bem ao Banco 5..., que na mesma data celebra com a “I..., Lda.", o referido contrato de Locação Financeira.
Locação Financeira que é definida como: Contrato de financiamento pelo qual uma das partes (locador) cede a outra (locatário) o gozo temporário de um bem, escolhido pelo locatário, em contrapartida do pagamento de renda por prazo determinado. No final do contrato, o locatário poderá adquirir o bem, mediante o pagamento do valor residual.
A compra efetiva, por parte da “I..., Lda.", é levada a cabo em 15.01.2010,
ou seja, em data posterior aos primeiros financiamentos levados a cabo entre 11.05 e 11.11 de 2008 pela Financeira Banco 1....
Por sua vez,
a “I..., Lda.", nessa mesma data, vende o prédio em causa à K... S.A., que a vem a vender
à aqui arguida A... S.A., à data C..., LDA, em 26.01.2012.
O prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Lousada sob o número ... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...... foi comprado pela arguida A..., S.A. a GG e HH em 13/01/2016.
A compra por parte da A... é levada a cabo em 29.02.2010,
ou seja, em data posterior aos primeiros financiamentos levados a cabo entre 11.05 e 11.11 de 2008 pela Financeira Banco 1....
42º
Ora bom está de ver, que pelo menos relativamente a estes imoveis, não foram os mesmos pelos arguidos adquiridos em momento anterior ao recebimento dos valores das financeiras.
43º
Pelo que tal factualidade bem como a demais vertida na acusação (aqui não referida porque seria fastidioso), teria de ter sido dada como indiciada e em consequência a arguida pronunciada pela prática dos crimes de que vinha acusada.
44º
Resta, assim, concluir pela indiciação dos factos relativos aos elementos objetivos e subjectivos do crime de “branqueamento de capitais”.
45º
Estando indiciados os factos relativos ao crime de “branqueamento de capitais”, cai por terra a única fundamentação utilizada pelo Mmo. Juiz
a quo
para considerar não estar verificado o crime de “associação criminosa”, ou seja, e como o próprio refere na sua decisão: “f
ace ao supra decidido quanto ao crime de branqueamento, não ficou demonstrado também o fim que caracteriza a associação, ou seja, a prática de crimes.”
46º
E sendo tais indícios suficientes da verificação dos pressupostos de aplicação à Arguida de uma pena, impõe-se a sua pronúncia pelos factos e crime imputados na acusação do Ministério Público, nos termos do art. 308.º, n.º 1, do CPP
47º
Sem prescindir, sempre se dirá que deveriam ter sido dados como claramente indiciados todos os factos constantes da acusação descritos nos seguintes segmentos (numeração constante da acusação):
“VI
O PLANO CRIMINOSO DEVIDAMENTE DESCRITO E EXPLANADO NOS AUTOS DE PROCESSO 12512/13.1TDPRT:
1º
Em data não concretamente apurada, mas anterior a 07 de agosto de 2008, os arguidos no âmbito do processo 12512/13.1TDPRT … a este grupoinicial juntaram-se as empresas arguidas no referido processo 12512/13.1TDPRT e a aqui arguida A... S.A., que, porque lideradas, de facto e/ou de direito, pelos arguidos supra identificados foram postas ao serviço do interesse criminoso de todos os demais, passando a atuar concertadamente e em conjugação de esforços com aqueles outros.
9- Conhecedores daqueles planos, os demais arguidos, nomeadamente a arguida A... S.A., à data através da sua Administradora Única CC aceitaram participar nele, por forma a que o dinheiro obtido das entidades financeiras fosse canalizado através das suas contas bancárias e das empresas nas quais aceitaram figurar como gerentes nomeadamente a aqui arguida A... S.A, por forma a evitar a responsabilização da G.../H....
VII
A CONCRETA ATUAÇÃO DA ARGUIDA A... S.A.:
1.
Por sua vez, a aqui arguida A... S.A. desde a data da sua constituição 16.11.2009 (em tal data denominada B... LDA.) até à presente data, por vontade da sua Gerente (entre 16.11.2009 e 07.04.2014) e. Administradora única (entre 07.04.2014 e 15.03.2018) CC, serviu apenas para que os montantes obtidos das empresas financeiras mediante a burla descrita supra, e levada a cabo pelos arguidos no processo no âmbito do processo 12512/13.1TDPRT, fossem para aí, parcialmente, canalizados, não diretamente, mas através da transmissão de imóveis adquiridos com o dinheiro entregue pelas financeiras aos arguidos do processo 12512/13.1TDPRT.
2.
A arguida A... S.A., inicialmente denominada B... LDA, era aquando da sua constituição, uma sociedade por quotas, com um capital de da II (pais de EE, do AA, DD, JJ), todos arguidos no processo Comum Coletivo 12512/13.1TDPRT, detendo cada um deles uma quota no valor de 2.500,00€.
12º
A arguida A... S.A., foi criada e serviu apenas, para dissimular as quantias monetárias obtidas das financeiras, pelos arguidos no processo 12512/13.1TDPRT, através da aquisição de imoveis diversos.
13º
3º
Estes, por sua vez, adquiriram imóveis, que posteriormente transferiram para aqui arguida A... S.A., a qual é, e foi sempre, titulada por alguém da confiança e relações familiares dos arguidos no processo Comum Coletivo 12512/13.1TDPRT, e das empresas por eles detidas, escriturando o pagamento de uma quantia monetária paga em troca dos bens em causa, quantia essa que, no entanto, nunca foi efetivamente paga pela arguida A... S.A.
18.
E depois de comprados, acabaram esses imóveis na titularidade da arguida A... S.A., tudo para dissimular a origem ilícita dos mesmos.
A arguida pessoa coletiva A... S.A., à data dos factos, por decisão da sua Administradora Única, CC, ao juntar-se aos demais arguidos pronunciados no âmbito do processo Comum Coletivo 12512/13.1TDPRT, promovendo a formação de um grupo, sob a liderança de EE (pronunciada no âmbito do processo Comum Coletivo 12512/13.1TDPRT), engendraram e edificarem o esquema de natureza empresarial, com atribuição de papeis e função específicos a cada um deles, a desenrolar, pelo menos, nos anos de 2008 a 2012, agindo com o propósito conseguido de obterem, para todos eles, as quantias acima indicadas, através dos atos acima descritos que sabiam ser ilícitos e que lhes permitiram a apropriação de avultadíssimas quantias monetárias, para si, e para terceiros consigo relacionados, à custa de entidades financeiras/bancos supra identificados causando-lhes prejuízo.
A arguida pessoa coletiva A... S.A., por decisão da sua então Administradora Única, CC, agiu, em todas as circunstâncias descritas, com o objetivo conseguido de para si canalizar os montantes obtidos das empresas financeiras, mediante o esquema descrito e levado a cabo pelos arguidos pronunciados no âmbito do processo Comum Coletivo 12512/13.1TDPRT, não diretamente, mas através da transmissão de imóveis adquiridos com o dinheiro entregue por essas financeiras.
A arguida pessoa coletiva A... S.A., por decisão da sua, à data Administradora Única, CC, bem sabia que fazia parte de um grupo de pessoas que agia concertadamente, sob liderança de EE (todos acusados e pronunciados no âmbito do processo Comum Coletivo 12512/13.1TDPRT), em prol da vontade ilícita e coletiva de todo o grupo criado com o objetivo de levar a cabo as supra descritas atividades, prestando a este grupo todo o apoio necessário para concretizar a sua vontade ilícita, seja fornecendo contas bancárias usadas para movimentar e canalizar o dinheiro recebido, adquirir imóveis com o dinheiro entregue por essas financeiras, ou qualquer outro ato que permitisse desenvolver o plano gizado e com o qual todos concordaram, acederam e ajudaram a montar, o que quiseram e fizeram.
A arguida pessoa coletiva A... S.A., por decisão da sua, à data, Administradora única, a CC (acusada/pronunciada no âmbito do processo Comum Coletivo 12512/13.1TDPRT), em conjugação de esforços com os demais arguidos pronunciados no aludido processo Comum Coletivo 12512/13.1TDPRT), e no cumprimento do plano previamente delineado, a que todos deram contribuição, aderiu e aceitou, ao adquirir imóveis e moveis aos demais arguidos e a terceiros, comprados com o dinheiro entregue por essas financeiras, sendo que o fez, bem sabendo que essas quantias monetárias usadas para a aquisição de tais bens, eram provenientes da atuação ilícita fraudulenta e enganosa por todos combinada, engendrada e executada.
A arguida pessoa coletiva A... S.A., por decisão da sua à data, Administradora Única, a arguida CC (acusada/pronunciada no âmbito do processo Comum Coletivo 12512/13.1TDPRT), sabia que tais condutas visavam ocultar a proveniência ilícita daquelas quantias monetárias, impedindo localizar o seu rasto tendo, para tanto, introduzido aqueles valores transferidos no circuito económico-financeiro como se se tratassem de verbas obtidas de forma lícita, designadamente no que respeita à sua ilegítima proveniência, com o objetivo de obter um benefício ao qual sabia não ter direito, em prejuízo de terceiros, intentos que logrou alcançar.”
47º
O que resulta de forma evidente dos elementos de prova constante dos autos, nomeadamente:
Documental:
Da qual se destaca:
(…)
Testemunhal:
(…)
48º
Restando assim, concluir pela indiciação dos factos relativos aos elementos objectivos e subjectivos do crime de “branqueamento de capitais” e “associação criminosa”, e sendo tais indícios suficientes da verificação dos pressupostos de aplicação à Arguida de uma pena, impõe-se a sua pronúncia pelos factos e crime imputados na acusação do Ministério Público, nos termos do art. 308.º, n.º 1, do CPP
Termos em que, nos melhores de Direito, e sempre com o mui douto suprimento desse Venerando Tribunal ad quem, deverá o presente recurso merecer provimento, e em consequência, deverá ser revogado o despacho de não pronúncia recorrido e substituído por outro que pronuncie a Arguida por todos os factos descritos na acusação pública contra si deduzida, bem como as correspondentes incriminações legais imputadas.
Fazendo-se desta forma a já acostumada Justiça.
V. Exas., Venerandos Desembargadores, farão como é habitual, a melhor Justiça»
*
A arguida A..., S.A. respondeu ao recurso, pugnando pelo seu não provimento e pela manutenção da decisão recorrida, aduzindo em apoio da sua posição as seguintes conclusões (transcrição):
«
I.
Vem interposto recurso pelo Ministério Público da decisão instrutória proferida nestes autos de não pronúncia da sociedade arguida A... pela prática dos crimes de associação criminosa e de branqueamento de que vinha acusada.
II.
A nulidade da acusação deduzida no processo n.º 12512/13.1TDPRT, na parte que dizia autónoma e individualmente respeito à sociedade arguida A..., foi declarada pelo M. mo Juiz de Instrução Criminal em 13/12/2021, através de decisão clara e categórica que recusou submetê-la a julgamento.
III.
No presente processo, a acusação (que pretendia ser) aperfeiçoada padece de estrutural insuficiência, por não conter os pressupostos - nomeadamente de facto - de que depende a aplicação a um arguido de uma pena.
IV.
Diante de tão inepta acusação, que confluiu numa imputação forçada e juridicamente ininteligível, só restou ao M. mo Juiz de Instrução Criminal a alternativa de proferir novo despacho de não pronúncia, o que fez através da douta decisão proferida em 07/03/2024.
V.
Deixa, contudo, bem claro o Ministério Público na minuta recursiva sob resposta que pretende, a todo o custo, sujeitar a sociedade arguida A... a julgamento, independentemente de se ter abstido de demonstrar o preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos dos crimes por que acusou, pretendendo em sede de recurso colmatar a insuficiência intrínseca e irreversível da acusação que deficientemente urdiu.
VI.
Perdeu, assim, o Ministério Público a oportunidade (que seria intelectualmente honesta) de acatar a decisão proferida, reconhecendo a sua precipitada e errada atuação.
VII.
Ao contrário do que pretende o Ministério Público, é perfeitamente percetível o raciocínio do M.mo Juiz de Instrução Criminal vertido na decisão impugnada de não pronúncia, na análise crítica que faz da prova, permitindo compreender as razões da decisão, que não sofre, por isso, de falta de fundamentação.
VIII.
Em todo o caso, sempre se diga que, à violação do dever de fundamentação dos despachos, não são aplicáveis as nulidades previstas no artigo 379.º do CPP, apenas reservadas às sentenças/acórdãos, pelo que alguma desconformidade, a verificar-se (o que não sucede), apenas consubstanciaria mera irregularidade, há muito sanada, dado que não foi invocada no prazo previsto no artigo 123.º do CPP.
IX.
Ao contrário do que pretende o Ministério Público, a decisão recorrida não o enferma de contradição insanável da factualidade dada como indiciada e não indiciada e respetiva fundamentação.
X.
Com efeito, não se afigura inconciliável dar como indiciada a factualidade investigada no processo n.º 12512/13.1TDPRT relativamente aos arguidos que nesses autos foram acusados pronunciados e, simultaneamente, dar como não indiciada a factualidade atinente ao concreto papel da sociedade arguida A... no
pedaço de vida
, historicamente delimitado, que constitui o objeto destes autos.
XI.
Dizer ou decidir coisa diferente na decisão instrutória é que seria processualmente contraditório, pois implicaria dar como indiciada ou não indiciada matéria de facto em termos contraditórios com o que ficou indiciado ou não indiciado naquele outro processo, por referência aos mesmos exatos factos.
XII.
Em todo o caso, sempre se diga que o apontado vício previsto na alínea b) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP é típico da sentença/acórdão, não sendo aplicável à decisão sob recurso, considerando que o que está em causa é a reavaliação total e ampla das provas (indiciárias).
XIII.
Na sua minuta recursiva, teve o Ministério Público a
ousadia
de afirmar que, afinal, não é pelo facto de ter adquirido os imóveis aos arguidos acusados e pronunciados no processo comum coletivo n.º 12512/13.1TDPRT (que os compraram
«com o dinheiro obtido através do esquema fraudulento levado a cabo juntas das financeiras»
) que a A... vem acusada no presente processo (p. 216).
XIV.
Portanto, de uma penada, o Ministério Público diz que, afinal, “não aceita” que se “considere/interprete” que a aquisição dos imóveis pela A... aos arguidos acusados e pronunciados naquele processo foi o comportamento referido na acusação como apto a preencher os crimes imputados à arguida.
XV.
Regressemos ao libelo acusatório (p. 86 e 88):
«(…)
VII
A CONCRETA ATUAÇÃO DA ARGUIDA A... S.A.:
l.
Por sua vez, a aqui arguida A... S.A. desde a data da sua constituição - 16.11.2009 (em tal data denominada B... LDA.) até á presente data
, por vontade da sua Gerente (entre 16.11.2009 e 07.04.2014) e Administradora única (entre 07.04.2014 e 15.03.2018) CC, serviu apenas para que os montantes obtidos das empresas financeiras mediante a burla descrita supra, e levada a cabo pelos arguidos no processo no âmbito do processo
12512/13.1TDPRT
, fossem para aí, parcialmente, canalizados, não diretamente, mas através da transmissão de imóveis adquiridos com o dinheiro entregue pelas financeiras aos arguidos do processo
12512/13.1TDPRT.
(…)
12º
A arguida A... S.A., foi criada e serviu apenas, para dissimular as quantias monetárias obtidas das financeiras, pelos arguidos no processo 12512/13.1TDPRT. através da aquisição de imoveis diversos.
13º
Imóveis esse. que se mantêm na posse dos arguidos, porquanto:
1º
As financeiras entregaram o dinheiro depois de enganadas:
2º
Quem recebeu esse dinheiro transferiu-o para os arguidos, pessoas coletivas e individuais, tal como resulta da acusação e pronúncia nos autos de processo 12512/13.1TDPRT.
3º
Estes. por sua vez, adquiriram imóveis, que posteriormente transferiram para aqui arguida
A... S.A.
, a qual é, e foi sempre. titulada por alguém da confiança e relações familiares dos arguidos no processo Comum Coletivo
12512/13.1TDPRT
, e das empresas por eles detidas, escriturando o pagamento de uma quantia monetária paga em troca dos bens em causa, quantia essa que, no entanto, nunca foi efetivamente paga pela arguida
A... S.A.
(…)»
XVI.
Tanto basta para concluir que o Ministério Público, das duas uma: ou não leu o que escreveu na acusação; ou mudou de ideias e pretende que o Tribunal
ad quem
proceda, por via de recurso, a uma diferente valoração da prova produzida relativamente a um texto acusatório que o Ministério Público ainda não escreveu e que seria porventura uma terceira acusação.
XVII.
Por outro lado, sustenta o Ministério Público que a decisão de não pronúncia proferida nos autos resulta de erro na perceção da realidade fáctica que, perante o M. mo Juiz de Instrução Criminal, foi exposta pela arguida através do requerimento de abertura de instrução.
XVIII.
É falso que os factos constantes do RAI são “contraditados” pela documentação junta aos autos, “nomeadamente pela arguida” (p. 217).
XIX.
Tivesse o Ministério Público lido o RAI e as certidões das Conservatórias de Registo Predial que foram juntas - com o cuidado que se impõe e teria poupado ao Tribunal
ad quem
a constrangedora argumentação que usa.
XX.
O afirmado pelo Ministério Público relativamente à
fração F do prédio urbano descrito na Conservatória dos Registos Civil. Predial, Comercial e Automóveis de Valongo sob o número ... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...
(no segmento inicial) corresponde exatamente ao alegado no artigo 29º do RAI e encontra suporte no
Doc. 2
que se juntou.
XXI.
O certo, porém, é que o Ministério Público não carreou factos na acusação aptos a sustentar que a fração em causa foi adquirida com dinheiro proveniente da Financeira Banco 1..., não identificou qualquer movimento bancário, nem a data, nem o seu montante e, sem factos, não pode afirmar o cometimento pela pessoa coletiva A... de um crime de branqueamento ou de associação criminosa.
XXII.
O afirmado pelo Ministério Público relativamente às
frações B e C do prédio urbano descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o número ... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...
(no segmento inicial) corresponde exatamente ao alegado no artigo 30º do RAI e encontra suporte nos
Docs. 3 e 4
que se juntaram.
XXIII.
Detetam-se, porém, três lapsos/erros no raciocínio do Ministério Público:
- O contrato de locação financeira não tem início em 04.05.2005, como diz o Ministério Público; tem início em 29.12.2004;
- A compra efetiva por parte da “I..., Lda.” não é levada a cabo em 29.02.2010, como diz o Ministério Público; é levada a cabo em 29.01.2010;
- A venda à sociedade arguida A... não se dá em 29.01.2012, como diz o Ministério Público; dá-se em 27.01.2010.
XXIV.
Como consta da p. 21 da acusação, a sociedade “J... UNIPESSOAL LDA” tinha como sócia-gerente EE, que é arguida no processo comum coletivo n.º 12512/13.1TDPRT.
XXV.
Na p. 218 da minuta recursiva, é afirmado pelo próprio Ministério Público que
«na aludida data de 04.05.2005, J... UNIPESSOAL LDA, vende o referido bem ao Banco 4..., que na mesma data celebra com a “I..., Lda.”, o referido contrato de Locação Financeira»
.
XXVI.
Daqui fui que, se a sociedade “J... UNIPESSOAL LDA” vende o referido bem ao Banco 4...
«na aludida data de 04.05.2005»
, é porque já o tinha na sua posse antes.
XXVII.
Ou seja: o referido bem foi adquirido por “J... UNIPESSOAL LDA” em data anterior ao do início da suposta atividade ilícita com origem nos contratos de locação financeira.
XXVIII.
Tanto basta para concluir que as frações em causa não foram adquiridas com dinheiro resultante dos financiamentos levados a cabo pela Financeira Banco 1....
XXIX.
O afirmado pelo Ministério Público relativamente à
fração B do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Silves sob o número ... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...
(no segmento inicial) corresponde exatamente ao alegado no artigo 34º do RAI e encontra suporte nos
Docs. 10 e 11
que se juntaram.
XXX.
Uma leitura atenta do Doc. 11 teria permitido concluir que a “M... Unipessoal, Lda.” (arguida no processo comum coletivo n.º 12512/13.1TDPRT) havia prometido comprar o imóvel em
2007
, isto é, em data anterior aos primeiros financiamentos levados a cabo pela Financeira Banco 1....
XXXI.
Para além disso, e com relevo decisivo, o Ministério Público não carreou factos na acusação aptos a sustentar que a fração em causa foi adquirida com dinheiro proveniente da Financeira Banco 1..., não identificou qualquer movimento bancário, nem a data, nem o seu montante e, sem factos, não pode afirmar o cometimento pela pessoa coletiva A... de um crime de branqueamento ou de associação criminosa.
XXXII.
O afirmado pelo Ministério Público relativamente à
fração BL do prédio urbano descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Sintra sob o número ... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...
(no segmento inicial) corresponde exatamente ao alegado no artigo 35º do RAI e encontra suporte no
Doc. 12
que se juntou.
XXXIII.
Na p. 220 da minuta recursiva, é afirmado pelo próprio Ministério Público que
«na aludida data de 06.09.2006, H..., LDA, vende o referido bem ao Banco 5..., que na mesma data celebra com a “I..., Lda.”, o referido contrato de Locação Financeira»
.
XXXIV.
Daqui fui que, se a sociedade “H..., LDA” vende o referido bem ao Banco 5...
«na aludida data de 06.09.2006»
, é porque já o tinha na sua posse antes.
XXXV.
Ou seja: o referido bem foi adquirido por “H..., LDA” (arguida no processo comum coletivo n.º 12512/13.1TDPRT) em data anterior ao do início da suposta atividade ilícita com origem nos contratos de locação financeira.
XXXVI.
Tanto basta para concluir que a fração em causa não foi adquirida com dinheiro resultante dos financiamentos levados a cabo pela Financeira Banco 1....
XXXVII.
O afirmado pelo Ministério Público relativamente ao
prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Lousada sob o número ... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ......
(no segmento inicial) corresponde exatamente ao alegado no artigo 38º do RAI e encontra suporte no
Doc. 15
que se juntou.
XXXVIII.
Sendo certo que não pertencia a nenhum dos arguidos acusados e pronunciados no processo comum coletivo n.º 12512/13.1TDPRT, pelo que, logicamente, nunca podia tal prédio ter sido adquirido com dinheiro resultante dos financiamentos levados a cabo pela Financeira Banco 1..., considerando até que, ademais, em lado nenhum da acusação se identifica um qualquer movimento bancário com origem nos contratos de locação financeira de que tenha sido beneficiária a própria A....
XXIX.
Relativamente à demais factualidade descrita no RAI (artigos 28º, 31º, 32º, 33º, 36º e 37º), dada como suficientemente indiciada pelo M.mo Juiz de Instrução Criminal, o Ministério Público remeteu-se ao
silêncio
, não a impugnando.
XL.
Analisadas as tabelas transcritas nas p. 78-80 da acusação, discerne-se que a A... não é destinatária de transferências a débito e/ou cheques emitidos pelos fornecedores (E... e F...).
XLI.
O mesmo é dizer que a A... não vem descrita na acusação como sendo beneficiária do produto do crime.
XLII.
Pelo que a única demonstração efetuada através da mera enunciação do património adquirido pela A... é a da efetiva constatação em si mesma, a não merecer qualquer juízo de censura pela ordem jurídica, concretamente não podendo ser considerado proveito de crimes de burla, nem, inerentemente, branqueamento da vantagem desses delitos.
XLIII.
Falhando igualmente a demonstração de uma qualquer confluência de vontades entre a A... e os demais arguidos com a finalidade de praticar crimes.
Nestes termos, deve ser negado provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, mantendo-se a decisão de não pronúncia da arguida A....
»
*
Neste Tribunal da Relação do Porto, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer onde acolheu a argumentação exposta no recurso interposto pelo Ministério Público junto do Tribunal recorrido, pugnando, assim, pelo seu provimento.
*
Cumprida a notificação a que alude o art. 417.º, n.º 2, do CPPenal, foi apresentada resposta pela arguida, aqui recorrida, que reiterou o teor das contra-alegações que apresentou ao recurso do Ministério Público.
*
Realizado o exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, nada obstando ao conhecimento do recurso.
*
II. Apreciando e decidindo:
Questões a decidir no recurso
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objecto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal
ad quem
circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso
[1]
.
As questões que o recorrente coloca à apreciação deste Tribunal de recurso são as seguintes:
«- Insuficiência de fundamentação, por não terem sido elencados os meios de prova que sustentam a decisão de insuficiente indiciação;
- Contradição entre os factos dados como indiciados e não indiciados, em termos tais que tornam ininteligível a decisão;
- Suficiência dos indícios para a pronúncia pelos crimes de associação criminosa e branqueamento de capitais (sendo, aliás, suficientes os factos que o Tribunal recorrido considerou indiciados)».
*
Existe, todavia, uma questão prévia que importa apreciar, já que susceptível de afectar a validade do processo e consequentemente da pretensão do recorrente, qual seja, a da violação do princípio constitucional do
ne bis in idem
.
Com efeito, o presente processo teve na sua génese o Proc. n.º 12512/13.1TDPRT, como resulta patente da leitura da acusação aqui deduzida.
Aliás, logo na abertura do despacho de encerramento do inquérito dos presentes autos, no segmento que determina o arquivamento dos autos quanto à arguida KK, o Ministério Público expõe que:
«
No âmbito do processo Comum Coletivo 12512/13.1TDPRT, o qual corre termos no Juízo Central Criminal de Penafiel, por despacho de 19.01.2021, foi proferida acusação contra os aí arguidos:
EE, AA, LL. gerente na sociedade F..., Unipessoal Lda., desde 11 de janeiro de 2011, aquando da celebração dos contratos de locação Financeira, MM, CC, II, NN, DD, KK, JJ, OO, “N..., LDA.“, "A..., SA.“, antes denominada “B..., Lda.] C..., Unipessoal Lda./A..., Unipessoal Lda.“, com o NIPC ... – “O..., S.A.”, antes denominada “P..., S.A.“, com o NIPC ..., “Q..., S.A.”, antes denominada, “H..., S.A./K.... Lda.", com o NIPC ..., “M..., UNIPESSOAL, LDA.", antes denominada, '“M..., Lda.”, com 0 NIPC: ..., “R..., UNIPESSOAL, LDA.”, antes denominada “R..., Lda.“, com o NIPC .... “F..., UNIPESSOAL LDA.“, com 0 NIPC: ..., “S..., LDA.", anteriormente denominada "Q..., Lda.", com o NIPC ..., “G..., LDA.", anteriormente denominada “H..., Lda./Q.... Lda.", com o NIPC ....
Na sequência de decisão Instrutória, proferida no supra aludido processo 12512/13.1TDPRT, datada de 13.12.2021, a arguida A..., SA (antes denominada B..., Lda), à data dos factos, tendo como Administradora única CC e KK, foram não pronunciadas, sendo proferida decisão de pronuncia relativamente aos, aí, demais arguidos, nos seguintes moldes:
EE
, como autora material, na forma consumada e em concurso efetivo de:
UM (1) crime de associação criminosa, previsto e punido nos termos dos arts. 26 e 299,
nºs 1,2, 3 e 5, ambos do C. Penal;
- NOVE (9) crimes de burla qualificada, previstos e punidos nos termos dos arts. 26, 217, nº 1, 218, nº 2, alínea a), este por referência ao art. 202, alínea b), todos do C. Penal;
UM (1) crime de branqueamento, previsto e punido nos termos dos arts. 2, nºs 1 e 4, 26, 368-A, nºs 1, 2 e 3 (este na redação dada pela Lei 59/2007, de 04 de setembro), todos do C.Penal.
AA
, como autor material, na forma consumada (: em concurso efetivo de:
UM (1) crime de associação criminosa, previsto e punido nos termos dos arts. 26 e 299, nºs 1, 2 e 5, ambos do C. Penal;
NOVE (9) crimes de burla qualificada, previstos e punidos nos termos dos arts. 26, 217, nº 1, 218, nº 2, alínea a), este por referência ao art. 202, alínea b), todos do C. Penal;
UM (1) crime de branqueamento, previsto e punido nos termos dos arts. 2, nºs 1 e 4, 26, 368-A, nºs 1, 2 e 3 (este na redação dada pela Lei 59/2007, de 04 de Setembro), todos do C.Penal.
LL
, como autor material na forma consumada e em concurso efetivo de:
UM (1) crime de associação criminosa, previsto e punido nos termos dos arts. 26 e 299, nºs 1, 2 e 5, ambos do C. Penal;
CINCO (5) crimes de burla qualificada, previstos e punidos nos termos dos arts. 26, 217, nº 1, 218, nº 2, alínea a), este por referência ao art. 202, alínea b), todos do C. Penal;
UM (1) crime de branqueamento, previsto e punido nos termos dos arts. 2, nºs 1 e 4, 26, 368-A, nºs 1, 2 e 3 (este na redação dada pela Lei 59/2007, de 04 de setembro), todos do C. Penal.
MM
, como autor material, na forma consumada e em concurso efetivo de:
UM (1) crime de associação criminosa, previsto e punido nos termos dos arts. 26 e 299, nºs 1,2 e 5, ambos do C. Penal;
UM (1) crime de branqueamento, previsto e punido nos termos dos arts. 2, nºs 1 e 4, 26, 368-A, nºs 1, 2 e 3 (este na redação dada pela Lei 59/2007, de 04 de setembro), todos do C. Penal.
CC
, como autora material, na forma consumada e em concurso efetivo de:
UM (1) crime de associação criminosa, previsto e punido nos termos dos arts. 26 e 299, nºs 1, 2 e 5, ambos do C. Penal;
UM (1) crime de branqueamento, previsto e punido nos termos dos arts. 2, nºs 1 e 4, 26, 368-A, nºs 1, 2 e 3 (este na redação dada pela Lei 59/2007, de 04 de setembro), todos do C. Penal.
II
, como autor material, na forma consumada e em concurso efetivo de:
UM (1) crime de associação criminosa, previsto e punido nos termos dos arts. 26 e 299, nºs 1, 2 e 5, ambos do C. Penal;
UM (1) crime de branqueamento, previsto e punido nos termos dos arts. 2, nºs 1 e 4, 26, 368-A, nºs 1, 2 e 3 (este na redação dada pela Lei 59/2007, de 04 de setembro), todos do C .Penal.
NN
, como autora material, na forma consumada e em concurso efetivo de:
UM (1) crime de associação criminosa, previsto e punido nos termos dos arts. 26 e 299, nºs 1, 2 e 5, ambos do C. Penal;
UM (1) crime de branqueamento, previsto e punido nos termos dos arts. 2, nºs 1 e 4, 26, 368–A, nºs 1, 2 e 3 (este na redação dada pela Lei 59/2007, de 04 de setembro), todos do C. Penal.
DD
, como autor material, na forma consumada e em concurso efetivo de:
UM (1) crime de associação criminosa, previsto e punido nos termos dos arts. 26 e 299, nºs 1, 2 e 5, ambos do C. Penal;
NOVE (9) crimes de burla qualificada, previstos (: punidos nos termos dos arts. 26, 217, nº 1, 218, nº 2, alínea a), este por referência ao art. 202, alínea b), todos do C. Penal;
UM (1) crime de branqueamento, previsto e punido nos termos dos arts. 2, nºs 1 e 4, 26, 368-A, nºs 1, 2 e 3 (este na redação dada pela Lei 59/2007, de 04 de setembro), todos do C. Penal.
KK
, como autora material, na forma consumada (: em concurso efetivo de:
UM (1) crime de associação criminosa, previsto e punido nos termos dos arts. 26 e 299, nºs 1,2 e 5, ambos do C. Penal;
UM (1) crime de branqueamento, previsto e punido nos termos dos arts. 2, nºs 1 e 4, 26, 368-A, nºs 1, 2 e 3 (este na redação dada pela Lei 59/2007, de 04 de setembro), todos do C. Penal.
JJ
, como autora material, na forma consumada e em concurso efetivo de:
UM (1) crime de associação criminosa, previsto e punido nos termos dos arts. 26 e 299, nºs 1,2 e 5, ambos do C. Penal;
UM (1) crime de branqueamento, previsto e punido nos termos dos arts. 2, nºs 1 e 4, 26, 368-A, nºs 1, 2 e 3 (este na redação dada pela Lei 59/2007, de 04 de setembro), todos do C. Penal.
OO
, como autor material, na forma consumada e em concurso efetivo de:
UM (1) crime de associação criminosa, previsto e punido nos termos dos arts. 26 e 299, nºs 1, 2 e 5, ambos do C. Penal;
UM (1) crime de branqueamento, previsto e punido nos termos dos arts. 2, nºs 1 e 4, 26, 368–A, nºs |, 2 e 3 (este na redação dada pela Lei 59/2007, de 04 de setembro), todos do C. Penal.
“N..., LDA.”
, como autora material, na forma consumada e em concurso efetivo de:
UM (1) crime de associação criminosa, previsto e punido nos termos dos arts. 11, 26 e 299, nºs 2 e 5, todos do C. Penal;
UM (1) crime de branqueamento, previsto (: punido nos termos dos arts. 2, nºs 1 e 4, 1 1, 26, 368–A, nºs 1, 2 e 3 (este na redação dada pela Lei 59/2007, de 04 de setembro), todos do C. Penal.
“O..., S.A.”
, como autora material, na forma consumada e em concurso efetivo de:
UM (1) crime de associação criminosa, previsto e punido nos termos dos arts. 11, 26 e 299, nºs 2 e 5, todos do C. Penal;
UM (1) crime de branqueamento, previsto e punido nos termos dos arts. 2, nºs 1 e 4, 11, 26, 368-A, nºs 1, 2 e 3 (este na redação dada pela Lei 59/2007, de 04 de setembro), todos do C. Penal.
“Q..., S.A.”
, como autora material, na forma consumada e em concurso efetivo de:
UM (1) crime de associação criminosa, previsto e punido nos termos dos arts. 11, 26 e 299, nºs 2 e 5, todos do C. Penal;
UM (1) crime de branqueamento, previsto e punido nos termos dos arts. 2, nºs 1 e 4, 11, 26, 368-A, nºs 1, 2 e 3 (este na redação dada pela Lei 59/2007, de 04 de setembro), todos do C. PenaL
“M..., UNIPESSOAL, LDA.”
, como autora material, na forma consumada e em concurso efetivo de:
UM (1) crime de associação criminosa, previsto e punido nos termos dos arts. 11, 26 e 299, nºs 2 e 5, todos do C. Penal;
UM (1) crime de branqueamento, previsto e punido nos termos dos arts. 2, nºs 1 e 4, 11, 26, 368-A, nºs 1, 2 e 3 (este na redação dada pela Lei 59/2007, de 04 de setembro), todos do C. Penal.
“R..., UNIPESSOAL, LDA.”
, como autora material, na forma consumada e em concurso efetivo de:
UM (1) crime de associação criminosa, previsto e punido nos termos dos arts. 11, 26 e 299, nºs 2 e 5, todos do C. Penal;
UM (1) crime de branqueamento, previsto e punido nos termos dos arts. 2, nºs 1 e 4, 11, 26, 368-A, nºs 1, 2 e 3 (este na redação dada pela Lei 59/2007, de 04 de setembro), todos do C. Penal.
“F..., UNIPESSOAL LDA.”, como autora material, na forma consumada
e em concurso efetivo de:
UM (1) crime de associação criminosa, previsto e punido nos termos dos arts. 11, 26 e 299, nºs 2 e 5, todos do C. Penal;
CINCO (5) crimes de burla qualificada, previstos e punidos nos termos dos arts. 11, 26, 217, nº 1, 218, nº 2, alínea a), este por referência ao art. 202, alínea b), todos do C. Penal;
UM (1) crime de branqueamento, previsto e punido nos termos dos arts. 2, nºs 1 e 4, 11, 26, 368-A, nºs 1, 2 e 3 (este na redação dada pela Lei 59/2007, de 04 de setembro), todos do C. Penal.
“S..., LDA.”
, como autora material, na forma consumada e em concurso efetivo de:
UM (1) crime de associação criminosa, previsto e punido nos termos dos arts. 11, 26 e 299, nºs 2 e 5, todos do C. Penal;
DOIS (2) crimes de burla qualificada, previstos e punidos nos termos dos arts. 11, 26, 217, nº 1, 218, nº 2, alínea a), este por referência ao art. 202, alínea b), todos do C. Penal;
UM (1) crime de branqueamento, previsto e punido nos termos dos arts. 2, nºs 1 e 4, 11, 26, 368-A, nºs 1, 2 e 3 (este na redação dada pela Lei 59/2007, de 04 de setembro), todos do C. Penal.
“G..., LDA.”
, como autora material, na forma consumada e em UM (1) crime de associação criminosa, previsto e punido nos termos dos arts. 11, 26 e 299, nºs 2 e 5, todos do C. Penal;
SETE (7) crimes de burla qualificada, previstos e punidos nos termos dos arts. 11, 26, 217, nº 1, 218, nº 2, alínea a), este por referência ao art. 202, alínea b), todos do C. Penal;
UM (1) crime de branqueamento, previsto e punido nos termos dos arts. 2, nºs 1 e 4, 11, 26, 368-A, nºs 1, 2 e 3 (este na redação dada pela Lei 59/2007, de 04 de setembro), todos do C. Penal.
***
Nesse seguimento, o Ministério Público requereu a extração de certidão integral dos autos de processo Comum Colctivo 12512/13.1TDPRT, a fim de instaurar novo inquérito contra a arguida A..., SA, e a arguida KK (esta última, no respeitante ao crime de burla, pelo qual fora acusada e não pronunciada), o que foi deferido, e deu origem aos presentes autos de processo de inquérito com o NUIPC 1082/22.0T9PRD, tal como já aludido.»
Mais, no âmbito desse Proc. n.º 12512/13.1TPRT, para além dos acima referidos, foi igualmente acusada a arguida, aqui recorrida, A..., S.A., antes denominada·”B... Lda./ C..., T... Lda./A..., Unipessoal Lda.”, com o NIPC ... – constituída a 16/11/2009 e com sede social na Rua .... .... ..., como, aliás, se dá nota no ponto 1. da acusação do presente processo, sendo-lhe ali
[no Proc. n.º 12512/13.1TPRT]
imputada a prática de um crime de associação criminosa, p. e p. pelos arts. 11º, 26.º e 299.º, n.ºs 2 e 5, todos do CPenal, e um crime de branqueamento, p. e p. pelos arts. 2.º, n.ºs 1 e 4, 11º, 26.º, 368.º-A, n.ºs 1, 2 e 3 (este na redacção dada pela Lei 59/2007, de 04-09), também todos do CPenal.
Ainda no âmbito desse Proc. n.º 12512/12.1TPRT, a arguida A..., S.A., entre outros, requereu a abertura da instrução, invocando a nulidade da acusação, tendo a final sido proferida decisão de não pronúncia da referida arguida pela prática, na forma consumada e em concurso efectivo, dos crimes de associação criminosa e de branqueamento por que vinha acusada.
Na apreciação que se fez nessa decisão instrutória é mencionado de forma mais genérica que «
[e]
m termos da
prova indiciária
recolhida, constata-se que não estamos perante um caso de simples comparticipação dos arguidos, pois resulta claro que a ação comum de todos eles
ultrapassa
em muito a
vontade
individual
de
cada um ou das sociedades
que formalmente representavam em certo momento.
Da prova recolhida (basta atentar aos registos comerciais e depoimentos dos trabalhadores) facilmente compreendemos que há uma clara
disseminação/alteração
de
denominações e sedes
das sociedades arguidas, com consequentes alterações dos seus alegados sócios e gerentes, mas que no fundo apenas serviam para ocultaram, em cada momento, o efetivos sócios e gerentes das sociedades arguidas, tal como
as contas veículos
a utilizar
para a transferência de dinheiro proveniente dos alegados financiamentos por via dos leasings.
Os indícios apontam ainda que os arguidos (com excepção da sociedade A..., S.A., face à nulidade que infra se apreciará), no âmbito deste esquema montado, durante vários anos, em conjugação de esforços e no cumprimento do plano previamente delineada, a que todos deram contribuição, aderiram e aceitaram, ao transferirem entre si, para contas detidas por eles ou pelas empresas arguidos por aqueles outros arguidos formalmente lideradas ou geridas ou materialmente controladas, ou seja, o dinheiro que as entidades bancários depositaram nos contas de BB, da E... e da arguida "F..." como pagamento das máquinas objecto dos contratos de locação mobiliária financeira, bem sabendo que aquelas quantias lhe tinham sido entregues na sequência da atuação fraudulenta e enganosa por todos combinada, engendrada e executada, e procederam ainda à movimentação dos mesmos, quer gastando-as em proveito próprio, quer entregando-as a terceiros, através do levantamento em numerário, emissão de cheques ou de transferência bancárias.»
E concretamente quanto à conduta da arguida A..., S.A., tendo presente o teor do RAI, foi realizada a seguinte análise:
«Na situação concreta, o tribunal concorda com a sociedade arguida.
Se analisarmos a acusação público, na parte referente a esta sociedade, constatamos que esta se apresenta identificado como sendo a sociedade A..., S.A, antes denominado "B..., Lda /C..., Unipessoal, Lda/ A..., Unipessoal, Lda, com o nº NIPC ..., constituída a 14/11/2011, com sede social na Avenida ..., ..., Porto.
Mais à frente, página 26 o 28 de própria numeração da acusação, faz-se referência que a sociedade esteve ligado a II, que deteve uma quota no valor de 2500 euros e que o transmitiu à sua ex-mulher.
Mais se diz que “CC foi administradora única para o quadriénio paro o quadriénio de 2014/2014”.
Posteriormente, como se refere no requerimento de abertura da instrução,
não há
uma
qualquer referência concreta
à citada sociedade arguida, nem qualquer referencia de que algum arguido, em sua representação, praticou qualquer ato descrito na acusação pública.
Não há, na parte referente ao processo negocial (ponto c. da acusação pública) e dos contratos de locação mobiliário (ponto d., da acusação público) e dos documentos entregues pelas empresas (ponto e.) uma única referencia a qualquer ato que ligue a arguida aos factos.
Por outro lado, na parte referente dos fluxos financeiros e dos movimentos registados nas contas bancárias (pontos f) e g)), não há também qualquer concretização de qualquer facto que ligue a sociedade arguida aos factos.
O que há na acusação pública, no seu ponto 418, é a descrição de um email remetido da arguida EE para o seu irmão, DD, fazendo referencia a um alegado plano de dinheiro existente, onde se incluem o nome das pessoas singulares e da B... (a anterior denominação desta sociedade), bem como o facto, de nas buscas realizadas ao TOC, PP, ter sido encontrado nos papeis que tinha “uma carta emitida pela “A..., S.A.”, remetida à Direção de Finanças do Porto, tendo anexada a escritura de compra e venda de imóvel, datada de 7 de maio de 2012”.
Contudo, discorrendo toda a acusação pública não se descortina qual a ligação desta sociedade aos factos em causa, pois não há qualquer referência desta sociedade aos factos em causa, pois não há qualquer referencia à sua participação, por intermédio de alguém, no processo negocial dos Leasings, entrega de documentação ou que tivesse sido beneficiária/destinatária de qualquer fluxo financeiro, pois a sua firma nem sequer aparece identificada em qualquer um dos quadros da acusação público nos eus pontos 413 a 415.
Por outro lado, na acusação pública, não há a descrição de qualquer facto ou consequência a retirar da circunstancia de surgir um email com a anterior denominação da empresa que origem à arguida.
(…)
Na situação concreta, não há a concretização de qualquer facto em relação a esta arguida (modo, tempo e lugar), nem sequer de que alguém terá agido,
em concreto
, em sua representação.
Ora, como supra se referiu, para preenchimento de um tipo legal de crime pressupõe a verificação de dois tipos de elementos: os elementos objetivos e os elementos subjetivos, também designados por tipo objetivo de ilícito e tipo subjetivo de ilícito.
(…)
Na situação destes autos, não há a descrição de qualquer um desses elementos
concretos
por referencia à sociedade arguida, A..., S.A, pelo que fica comprometido qualquer
tipo de defesa por parte desta arguida em relação aos ilícitos que lhe são imputados
.
Por seu lado, como supra se referiu, ao citar-se o douto acórdão, as mera considerações “genéricos e abstratos” não permitem a contradita por parte da arguida, inviabilizando o seu direito de defesa.
Em face do supra exposto, o tribunal considera que a acusação pública, no que a essa arguida diz respeito, é nula por violação do disposto na alínea b), do nº3 do artigo 283º do CPP, pelo que se impõe a sua não pronuncia dos crimes de que vem acusada (associação criminoso e branqueamento de capitais).
*
Nada mais se impõe apreciar.
*
Dos factos indiciados:
Os que infra se deixam plasmadas, por referencia a acusação público.
Não indiciado com interesse para a instrução
Nenhuns com interesse para a finalidade do objeto do instrução.
*
VI
-Decisão instrutória
Em face do supra exposto, e atento ao estatuído no artigo 308.º do CPP, decide-se pelo
não
pronúncia:
A)
da arguida,
KK
, pelo prática
de 9 (nove) crimes de burla qualificada
, previstos e punidos, pelos artigos 2óº, 217º, nº 1, 218º, nº2, alínea a), por referencia ao artigo 202º, alínea b), todos do Código Penal, de que vinha acusada.
B)
da arguida,
A..., S.A
– pela prática, na forma consumada e em concurso efetivo de:
- um 1) crime de associação criminoso, previsto e punido nos termos dos arts. 11, 26 e 299, nºs 2 e 5, Todos do C. Penal;
- um (1) crime de branqueamento, previsto e punido nos termos dos arts. 2, nºs 1 e 4, 11, 26, 368-A, nºs 1, 2 e 3 (este na redacção dada pela Lei 59/2007, de 04 de setembro), todos do C. Penal.»
Perante esta decisão de não pronúncia, o Ministério Público entendeu não dever apresentar recurso, o que reflecte que com ela se conformou, antes decidindo determinar a extracção de certidão integral dos autos principais do Proc. n.º 12512/13.1TDPRT e seus apensos, estes total ou parcialmente, tendo em vista a abertura de novo inquérito contra KK e “A..., S.A.” por crimes de burla qualificada, associação criminosa e branqueamento de capitais, conforme certidão que dá início ao inquérito deste Proc. Comum Colectivo n.º 1082/22.0TPRD.
No âmbito deste novo inquérito n.º 1082/22.0TPRD não foram realizadas diligências de prova que aportassem para os autos novos elementos de prova evidenciadores dos crimes imputados no Proc. n.º 12512/13.1TPRD, já que apenas foram ouvidos os legais representantes da A..., S.A., que não quiseram prestar declarações, e solicitada a junção de certidão do registo comercial da A..., S.A., de certidão de imóveis registados em seu nome e de CRC da mesma.
Podemos, assim, afirmar como ponto de partida da discussão do caso que o presente processo nasceu porque o Ministério Público entendeu que podia reparar a acusação declarada nula que havia proferido em relação às arguidas KK e A..., S.A., as únicas não pronunciadas no âmbito do Proc. n.º 12512/13.1 TDPRT, o que seria concretizado num novo processo formalmente constituído e numa nova acusação.
Tanto é assim que logo no início dos presentes autos, ao terceiro despacho proferido, o Ministério Público titular do inquérito afirma encontrar-se «em condições de proferir despacho final», pelo que determina «que previamente e por questões básicas de organização do processado, o qual resulta de certidão integral dos autos de processo 12512/13.1TDPRT, se organize o mesmo nos exatos moldes do processo original.»
A ideia nunca foi reforçar a prova coligida no Proc. n.º 12512/13.1TPRD através da obtenção de novos meios de prova, já que a que compunha aqueles autos foi considerada suficiente para deduzir uma acusação válida contra, para o que aqui importa, a arguida A..., S.A..
Mostra-se, assim, claro que a ideia de criar um novo processo (os presentes autos) surgiu apenas como forma de o Ministério Público regressar à fase de inquérito na investigação subjacente ao Proc. n.º 12512/13.1TDPRD e deduzir uma nova acusação contra a arguida A..., S.A., mas agora perspectivada como válida, permitindo, na óptica do Ministério Público, corrigir os erros detectados pelo Juiz de Instrução no âmbito daquele outro processo.
Contudo, salvo o devido respeito por posição diversa, esta opção não acolhe qualquer conforto na lei ordinária e mostra-se violadora do princípio fundamental do
ne bis in idem,
com tutela constitucional através do n.º 5 do art. 29.º da Constituição da República Portuguesa.
Na verdade, o processo penal português assenta, por imperativos constitucionais (art. 32.º, n.º 5, da CRP), numa estrutura acusatória, embora mitigada pelo
princípio da investigação
, como transparece, por exemplo, do art. 340.º do CPPenal.
O próprio preâmbulo do Código de Processo Penal o anuncia, esclarecendo que «o Código perspectivou um processo de estrutura basicamente acusatória. Contudo - e sem a mínima transigência no que às autênticas exigências do acusatório respeita -, procurou temperar o empenho na maximização da acusatoriedade com um princípio de investigação oficial, válido tanto para efeito de acusação como de julgamento; o que representa, além do mais, uma sintonia com a nossa tradição jurídico-processual penal.»
Significa isto que o desenho que o Legislador desenvolveu do processo penal distingue de forma muito clara a entidade a quem cabe investigar e acusar – o Ministério Público – e a entidade que decide – o Juiz –, assim procurando alcançar a máxima imparcialidade, objectividade e independência da decisão judicial.
No âmbito do processo penal, cabe, assim, ao Ministério Público delimitar a acusação, fixando o objecto de processo, o conjunto de factos que serão levados a julgamento (
princípio do acusatório
). E é dentro desses limites que o Julgador pode proferir uma decisão de condenação ou de absolvição.
Contudo, e para o que aqui importa, o regime instituído pelo CPPenal é omisso quanto à possibilidade de reparação de falhas formais (no sentido da sua completude) da acusação, sendo, em contrapartida, particularmente exigente no que concerne à possibilidade de alteração da acusação no âmbito das decisões judiciais.
Naturalmente que a omissão de regulamentação das consequências de, por exemplo, uma declaração de nulidade da acusação não impede teoricamente a respectiva reparação, mas a verdade é que também a não autoriza. A solução há-de ser encontrada nos princípios conformadores do processo penal e também em algumas normas processuais que, adiantando já a solução, nos conduzem à impossibilidade de dedução de uma segunda acusação num segundo processo autónomo sobre matéria que constituiu em termos materiais e probatórios o objecto da investigação de um outro processo precedente, onde foi deduzida acusação pública, já para não falar da existência de uma decisão instrutória de não pronúncia, a que oportunamente nos referiremos.
E começando pela análise das normas processuais que, em sede de instrução – fase a chegaram os autos quanto à arguida A..., S.A. no âmbito do Proc. n.º 12512/13.1TDPRT –, limitam a modificabilidade da acusação, verificamos que os arts. 303.º, n.º 3, e 309.º, n.º 1, do CPPenal impedem que o tribunal de instrução criminal tome em conta uma alteração substancial dos factos descritos na acusação
[ou no requerimento para abertura da instrução]
para o efeito de pronúncia no processo em curso, sob pena de se considerar nula a decisão instrutória que introduza uma tal alteração na descrição dos factos imputados aos arguidos.
Acresce que um tal processo também não pode terminar com a mera extinção da instância, por absolvição da instância, limitação expressamente introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29-08, e que nos transmite de forma muito clara a orientação de que
aquela
acusação e aquele pedaço de vida do arguido que está a ser escrutinado
tem de terminar com uma decisão judicial
naquele
processo.
Ora, uma vez que a acusação proferida no âmbito do Proc. n.º 12512/13.1TDPRT não descrevia factos integradores dos elementos objectivos dos crimes ali imputados à arguida A..., S.A. – como bem se apreciou na decisão instrutória naquele processo proferida –, não permitindo, com os contornos com que foi inicialmente concebida, a condenação daquela arguida pela prática dos crimes de associação criminosa e branqueamento ali indicados, há que concluir que qualquer alteração a essa factualidade referente aos elementos objectivos dos mencionados crimes que fosse ali introduzida, por exemplo, por iniciativa do JIC, com vista à reparação da omissão descritiva em causa e à possibilidade de condenação da A..., S.A. nos termos pretendidos pelo Ministério Público, redundaria em alteração substancial dos factos descritos na acusação – tendo presente a definição que consta da al. f) do art. 1.º do CPPenal –, posto que, chegando o processo a julgamento, no primeiro caso a arguida era necessariamente absolvida e no segundo, dependendo do rigor da nova descrição factual, poderia ser condenada nos termos requeridos na acusação.
No caso em apreço, não temos a menor dúvida de que estão em causa na nova formulação da acusação do Proc. n.º 12512/13.1TDPRT, ou seja, na acusação dos presentes autos, factos não autonomizáveis face ao objecto daquele processo uma vez que o
pedaço de vida
da arguida A..., S.A. apreciado em ambas as acusações é o mesmo.
Aliás, o Ministério Público transcreveu para a acusação deste processo o contexto factual referente aos outros arguidos acusados (e pronunciados) no Proc. n.º 12512/13.1TDPRT, pois só ele dá sentido ao demais que referiu quanto à conduta objectiva da arguida.
Por isso, quando o Ministério Público descreve nas acusações deduzidas nestes autos e no âmbito do Proc. n.º 12512/13.1TDPRT os elementos subjectivos que integram a prática dos crimes imputados à arguida A..., S.A. está a referir-se a uma única e mesma
situação de vida
que envolveu todos aos arguidos, incluindo a A..., S.A., e que foi verdadeiramente alvo de investigação naquele Proc. n.º 12512/13.1TDPRT.
No fundo, na hipótese aqui colocada, caso o JIC procurasse reparar oficiosamente, ou a requerimento, a omissão descritiva que detectou na acusação quanto aos elementos objectivos dos crimes imputados à arguida A..., S.A., teria que se resignar com a impossibilidade de alteração dos factos, sob pena de nulidade da decisão instrutória.
Igual solução seria a encontrada em fase de julgamento, tendo presente o disposto no art. 359.º do CPPenal e a natureza não autonomizável dos factos, redundando numa absolvição da arguida da prática dos crimes imputados.
Aqui chegados, há que reconhecer que as regras processuais em questão impedem que se admita, perante a omissão de previsão legal expressa, que a identificada declaração de nulidade da acusação em sede de instrução pudesse ser reparada pelo Ministério Público e menos ainda em processo autonomizado, decalcado do original.
Não desconhecemos a existência de jurisprudência que aceita o direito do Ministério Público ao
aperfeiçoamento da acusação pública deduzida
em caso de rejeição da mesma. Nesse sentido, vejam-se os acórdãos
[2]
do Tribunal da Relação de Coimbra de 08-05-2018, relatado por Elisa Sales no âmbito do Proc. n.º 542/16.6GCVIS.C1, do Tribunal da Relação de Évora, de 10-04-2018, relatado por Gomes de Sousa no âmbito do Proc. n.º 1559/16.6GBABF.E1, ou do Tribunal da Relação de Coimbra de 13-01-2021, relatado por Helena Bolieiro, no âmbito do Proc. n.º 99/19.6GASAT.C1
No mesmo sentido, veja-se o acórdão Tribunal Constitucional n.º 246/2017
[3]
, de 17-05, citado nos referidos arestos, onde se decidiu «não julgar inconstitucional a norma extraída da conjugação dos artigos 311.º, n.ºs 1, 2, alínea a), e 3, alínea d), e 283.º, todos do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual, tendo sido deduzida acusação contra um arguido, imputando-lhe a prática de um crime, e tendo esta acusação sido liminarmente rejeitada por insuficiente descrição de um elemento típico, poder vir a ser validamente deduzida nova acusação pela prática, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, do mesmo crime, suprindo a omissão da descrição do sobredito elemento típico, sujeitando-se a julgamento e condenando-se o arguido pelos factos e qualificação jurídica dela constantes.»
Porém, tais decisões decorrem, desde logo, em contexto processual diverso, pressupondo que não ocorreu fase de instrução (art. 311.º, n.º 2, do CPPenal), nem, consequentemente, prolação de decisão instrutória.
Por outro lado, e não pretendendo encontrar soluções no quadro deste diferente contexto, não podemos deixar de salientar que o próprio Tribunal Constitucional, no acórdão indicado, advoga uma análise casuística das situações em causa.
Nesse sentido, refere a dado passo:
«Assim, relativamente aos ditos “arquivamentos impróprios”
[4]
, poderá, então, afirmar-se que (Inês Ferreira Leite, ob. cit., vol. II, pp. 573/574):
“[…]
Nem o ne bis in idem, nem o acusatório, exigem que qualquer invalidade ou erro processual sejam fatais, exigindo apenas que se respeitem os limites do objeto do processo e que se mantenha a continuidade do processo.
Pelo que não seria contrária ao ne bis in idem uma interpretação do artigo 311.º, n.º 2,
[do CPP]
segundo a qual esta rejeição admitiria ainda a reformulação da acusação, quando lhe faltem os requisitos referidos no n.º 3
.
[…]” (sublinhado acrescentado).
Tal afirmação – como, de resto, a Autora ressalva de imediato (ob. cit., p. 575) – não pode ter, no limite, uma validade genérica e universal, porquanto a possibilidade de renovação da acusação não deixará, de certo modo, de ficar dependente da conjugação de circunstâncias do caso, que tornarão mais ou menos intensa a necessidade de tutela perante a continuação da perseguição criminal, designadamente: se foi respeitado o objeto decorrente da acusação reformulada; se a reformulação ocorre dentro de um prazo razoável; se ao arguido são facultados os mesmos meios de defesa de que poderia lançar mão perante a acusação primitiva (p. ex., a possibilidade de requerer a instrução); se os fundamentos da rejeição permitem correção; ou se o ato decisório de rejeição ocorre no início da fase de julgamento ou tardiamente (ob. cit., p. 575, nota 6202).
A conjugação de fatores como os descritos permite modelar a posição do arguido no processo, por forma a compreender se o risco que é inerente à sujeição ao processo penal é ainda “o primeiro” ou “o segundo” (na formulação atrás sugerida), sem perder de vista que a vertente processual do princípio
ne bis in idem
se destina a proteger aquele sujeito da repetição da perseguição criminal, mas a própria noção dessa “repetição” obriga a referir o risco à dinâmica do processo e às respetivas vicissitudes.»
Note-se que a Autora
[5]
, em explicação à frase citada no acórdão de que «não seria contrária ao
ne bis in idem
uma interpretação do artigo 311.º, n.º 2, segundo a qual esta rejeição admitiria ainda a reformulação da acusação, quando lhe faltem os requisitos referidos no n.º 3.», afirma que «
[s]
ó não se sustenta esta interpretação como a mais correta, porque se entende que o legislador deveria ter sido inequívoco ao prever as consequências da rejeição, estabelecendo o regime de reformulação - designadamente, um prazo curto para o exercício deste poder-dever- e a possibilidade de ser conferida nova oportunidade ao arguido ou ao assistente de requererem a abertura da instrução. Sem este enquadramento global (e sendo amplamente admitido que as decisões referidas no art. 311.º possam ser proferidas já em fase final do julgamento), parece deveras duvidoso que se possa avançar para uma interpretação corretiva do preceito sem que a mesma seja necessária em virtude de uma interpretação conforme, o que só se manifestará num caso concreto.»
Cremos que lhe assiste razão.
Independente de qualquer posição sobre tal matéria, vemos assim, que a apontada jurisprudência não só remete para uma análise casuística como, verdadeiramente, não interfere na decisão do caso em apreço por ter contornos processuais distintos.
Mais, para a Autora
[6]
sobre cuja obra se debruçou o citado aresto do Tribunal Constitucional, com a qual concordamos, uma situação como a que se aprecia nos presentes autos tem uma evidente e única solução: o despacho de não pronúncia tem efeito de
ne bis in idem
.
Mais, a natureza da apreciação realizada através da decisão de não pronúncia – material ou formal – não interfere com o efeito preclusivo da mesma.
Nesse sentido explica que «
[n]
o que respeita à delimitação interna do julgamento em sentido material, importa apenas fazer uma breve referência ao efeito de
ne bis in idem
do despacho de não pronúncia. Trata-se apenas de aplicar os critérios longamente analisados no Capítulo 4 a esta forma de decisão definitiva. Tendo já sido deduzida acusação - ou, em alternativa, tendo havido requerimento de abertura de instrução pelo assistente -, iniciou-se o efeito de proteção do
ne bis in idem
, pelo que qualquer decisão definitiva sobre a validade da pretensão punitiva terá um pleno efeito consuntivo.
Consequentemente, o despacho de não pronúncia produz os mesmos efeitos de
ne bis in idem
da sentença de absolvição, podendo o processo ser reaberto, apenas nas condições referidas no art. 449.º do CPP. No entanto, uma dúvida pode legitimamente ser colocada: saber qual o efeito do despacho de não pronúncia proferido em termos semelhantes aos previstos no n.º 3 do art. 311.º do CPP; ou seja, quando a acusação esteja manifestamente infundada. Como se disse, o
ne bis in idem
não obriga a que uma tal decisão tenha efeito consuntivo, desde que estejam previstos mecanismos de reformulação e de continuidade do processo. Uma vez que tais mecanismos não se encontram previstos no Direito Processual Penal português, deverá concluir-se, face ao regime vigente, que também esta forma de despacho de pronúncia terá um pleno efeito de
ne bis in idem
.»
No mesmo sentido se posiciona José Damião da Cunha
[7]
ao afirmar que a «decisão instrutória (despacho de pronúncia ou de não pronúncia), que, naturalmente, desenvolve o efeito de
ne bis in idem
, no sentido de que, verificada a não pronúncia, não há possibilidade de se proceder pelos mesmos factos quanto ao arguido, seja esta não pronúncia consequência de um requerimento do próprio arguido, seja ela consequência de requerimento do assistente.»
Existe ainda um outro argumento apresentado Autora aqui referida
[8]
e que dá sentido à já descrita impossibilidade de alteração dos factos da acusação do Proc. n.º 12512/13.1TDPRT em sede de decisão instrutória, sob pena nulidade da mesma dentro do quadro do nosso ordenamento jurídico processual penal.
É que, defende, «
[u]
ma vez deduzida a acusação (e notificada esta ao arguido), inicia-se o efeito de proteção do
ne bis in idem
, pelo que o tribunal, enquanto órgão do Estado encarregue do exercício do poder punitivo, fica adstrito ao dever de proferir uma decisão final e definitiva sobre a validade da pretensão punitiva, à qual seja concedido pleno efeito consuntivo. É esta a racionalidade subjacente ao alegado princípio da irretratibilidade da acusação. Portanto, após a acusação, qualquer decisão que ponha termo ao processo deverá sempre exigir alguma forma de intervenção jurisdicional e deverá implicar um efeito de
ne bis in idem
. Isto porque não se pode advogar o fim das absolvições da instância e depois admiti-las largamente, sob outras designações ou circunstâncias. E tendo sido configurada a instrução como um “direito” – isto é uma fase facultativa de controlo judicial da decisão de submeter o arguido a julgamento –, não pode este ser prejudicado pela mera absolvição da instância, apenas por ter requerido a instrução, quando, em condições de igualdade, teria beneficiado de uma plena absolvição, se prosseguisse até ao julgamento.»
No caso dos autos, a extração de certidão
[quase]
integral do Proc. n.º 12512/13.1TDPRT para prolação de uma segunda acusação contra a arguida A..., S.A., tendo em conta a investigação a que se chegou naquele processo, depois de a acusação inicial ali deduzida ter sido declarada nula e proferido despacho de não pronúncia da arguida A..., S.A., que o Ministério Público não impugnou, torna esta última decisão judicial numa encapotada absolvição da instância, actualmente proibida pelo processo penal.
Assim, em termos que regras de direito processual penal, não vemos com que fundamento pode ser deduzida uma segunda acusação depois de um despacho de não pronúncia com base numa primeira que respeita ao
mesmo pedaço de vida
da arguida, prejudicando-se esta por ter requerida a abertura da instrução – pois em julgamento pela acusação do Proc. n.º 12512/13.1TDPRT beneficiaria de uma absolvição certa –, ao arrepio dos mais básicos direitos de defesa e princípios constitucionais.
E olhando agora para os princípios conformadores do processo penal e centrando-nos no
ne bis in idem
, a que nos vimos referindo, percebemos que a dimensão da respectiva violação no caso concreto não pode ter outra solução que não a não validação processual dos presentes autos, com o escopo que lhe foi atribuído, devendo manter-se, por isso, sem mais, embora por razões totalmente diferentes das nela aduzidas, a decisão de não pronúncia, aqui recorrida.
É verdade que a garantia constitucional do
ne bis in idem
, reflectiva na norma do n.º 5 do art. 29.º da Constituição da República Portuguesa, segundo a qual,
ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime
, surge associada, por regra, à fase do julgamento, por sua vez ligada aos limites dos poderes de cognição e decisão por parte do juiz, tendo por base o objecto do processo definido pela acusação deduzida no processo.
No entanto, acompanhamos aqueles que entendem que essa delimitação e os efeitos do
ne bis in idem
surgem em momentos anteriores ao julgamento propriamente dito.
O que já referimos a propósito da fase de instrução é disso exemplo.
José Damião da Cunha
[9]
sustenta que «o acto de acusação impõe também consequências de
ne bis in idem
– ao garantir-se a identidade da sustentação da acusação exclui-se que factos não acusados, mesmo que investigados, sejam submetidos a julgamento – ou, se se quiser, impõe positivamente que só aqueles factos devam ser julgados».
Entende o Autor que o
objecto do processo
respeita «aos limites dos poderes decisórios do MP e relaciona-se com a questão de saber se, após uma investigação realizada e após a decisão final (de arquivamento, resolução alternativa de conflito ou de acusação), o MP pode ou não reproceder quanto àquele arguido pelo conjunto de questões (de facto e de direito) que se colocaram na investigação (inquérito).»
E a resposta que avança é negativa.
Analisando a estrutura acusatória do nosso processo penal e o papel que nela cabe ao Ministério Público, defende o Autor que «de um ponto de vista de lógica processual e de Estado de Direito, a investigação sobre o “recorte ou pedaço de vida” não cabe a qualquer Tribunal; verdadeiramente, enquadra-se na fase de inquérito – na articulação entre MP e órgãos de polícia criminal; actividade de investigação que é realizada - é bom que não se esqueça – por uma polícia dotada de uma especial competência para essa investigação, assumindo carácter de polícia científica e, por isso, submetida à presunção, diríamos inilidível, de que os meios de que dispõe servem para realizar exaustivamente, e com toda a fiabilidade, a análise da problemática criminal que qualquer caso merece.
Não se pode, julgamos nós, continuar a acreditar num juiz "omnisciente" – no juiz Hércules, como o denomina HABERMAS (ou, mais prosaicamente, o juiz «Hercules Poirot») - que substitui a actuação "amadora" da polícia ou o do MP.
(…)
Por isso mesmo, qualquer acusação (
rectius
qualquer decisão final de inquérito - mesmo a de arquivamento) é já uma “elaboração” – ou seja, contém já opções de valoração jurídico-criminalmente relevantes – quanto ao “pedaço ou recorte de vida” previamente investigado e incorre sempre no risco de conter omissões expressas ou implícitas. Assim, na nossa perspectiva, nunca a acusação pode ser entendida como (ou reduzida a) envio-remessa para julgamento de factos naturalisticamente compreendidos - uma conclusão que nos parece indiscutível. (…)
A conclusão, a que acabámos de chegar, decorre do próprio sentido material, subjacente ao princípio da acusação - enquanto princípio que, no processo penal, concretiza o princípio da separação de poderes –, que impõe que o titular da acção penal seja responsável, não apenas pela (acto de) acusação, mas também por todo o procedimento (investigativo) que lhe está subjacente.
(…)
2.
Por outro lado, não se pode olvidar que, no processo penal, não estão apenas em causa “factos”; estão também em causa (meios de) provas. As provas para fundamentar uma acusação são recolhidas, em processo não contraditório, pelo MP e são essas provas que servem para fundamentar a afirmação dos factos juridicamente relevantes que constam da acusação.»
Nesse sentido, conclui o Autor, a acusação «não fixa apenas o
“thema decidendum”
, fixa também o
“thema probandum”
.»
E acrescenta, mais adiante, «o inquérito, por tudo quanto se disse, tem também um “objecto de discussão”», razão pela qual considera que «a decisão final do MP de acusar ou arquivar implica a presunção de que existiu uma investigação exaustiva, pelo que qualquer decisão final do MP precludirá qualquer conhecimento posterior quanto a aspectos que deviam ter sido conhecidos (no sentido de investigados) pelo MP, podendo, assim, existir uma espécie de arquivamento implícito quanto a todos aqueles factos que, não acusados, estejam lógica ou naturalisticamente associados aos factos sujeitos a investigação e que se encontram expressamente valorados na decisão final do MP.»
Este percurso lógico leva o Autor a entender que «o ponto de partida de toda a construção dogmática do
ne bis in idem
tem de assentar no princípio de que o poder punitivo do Estado está representado na e pela acção penal. (…) Neste sentido, o
ne bis in idem
implicaria, primariamente, a proibição de um cidadão/arguido ser sujeito a duas decisões (tomadas) definitivas sobre os mesmos factos», ou seja, «proibição de alguém ser constituído duas vezes “arguido” pelos mesmos factos (…). Por outras palavras: ninguém deve ser investigado - e sofrer as consequências que dessa investigação resultam - duas vezes pelos mesmo factos, abrangendo este impedimento os factos em toda a sua problematicidade jurídica.»
Acompanhamos no essencial a visão do Autor, embora não em toda a sua extensão preclusiva, mas, para o que aqui importa, perfilhamos o entendimento de que os efeitos do
ne bis in idem
se revelam em momentos anteriores à fase de julgamento propriamente dita, designadamente com a decisão de acusação.
Relembra-se que o CPPenal não estabelece segundas chances para o direito de acusar – solução que é pacífica e tenazmente defendida pela jurisprudência quando está em causa esse exercício pelo assistente – e concordamos com o Autor que vimos referindo que uma tal solução – que até admitimos
de iure constituendo
– não dignifica o papel do Ministério Público enquanto detentor da acção penal, de quem se espera uma actuação rigorosa, exemplar, protectora dos direitos do cidadão, e a gestão do exercício das suas funções com a menor lesão posição dos direitos fundamentais dos visados.
Perfilhando, igualmente, o entendimento de que os efeitos do
ne bis in idem
começam muito antes da fase de julgamento, apesar de numa primeira e apressada leitura parecer ser o que decorre de uma análise literal do n.º 5 do art. 29.º da Constituição da República Portuguesa, afirma Tiago Geraldo
[10]
que, «tendo o
ne bis in idem
uma evidente intenção política de garantia daquele que já foi perseguido pelo sistema penal (tipicamente o arguido), e visando aplacar a necessidade de certeza e segurança jurídicas, mesmo se com sacrifício da verdade material –
inexorável
num processo de matriz acusatória (…), então terá necessariamente de aplicar-se, em alguma medida, logo na fase de inquérito, pois a perturbação da
paz jurídica
do cidadão criminalmente indiciado e as ofensas (legítimas, é certo) contra os seus direitos, liberdades e garantias, começam precisamente nesse momento (basta pensar, a acrescer aos constrangimentos que a submissão a uma investigação penal por natureza acarreta, nas medidas de coação).
Neste sentido, mais do que proibição de duplo julgamento ou punição, o
ne bis in idem
, no quadro de um sistema acusatório como o que vigora entre nós, e ao contrário do que tradicionalmente se diz, deve ser entendido como um princípio aplicável e dirigido à própria acção penal.
Promovida essa deslocação sistemática, o
ne bis in idem
passa então a significar que o MP, tanto processualmente como institucionalmente, está em regra impossibilitado de
voltar atrás
para exercer uma vez mais os seus poderes de autoridade – que necessariamente perturbam a paz jurídica daquele que é (ou foi) perseguido pelo sistema penal (…). Do
ne bis in idem
assim entendido resulta, numa palavra, uma proibição, de carácter geral, de reiteração da ação penal já realizada ou, dito de outra maneira, uma proibição genérica (incidente sobre o MP) de voltar a resolver, em sentido contraditório, um conflito penal já previamente resolvido.»
A história e âmbito de protecção do princípio do
ne bis in idem
suscitou particular interesse a Inês Ferreira Leite, que desenvolveu a sua tese de doutoramento à volta dessa temática, reflectida na obra a que já se aludiu (
Ne (Idem) Bis in Idem
– Proibição de Dupla punição e de duplo julgamento: Contributos para a Racionalidade do Poder Punitivo Público, Vols. I e II, AAFDL Editora, 2016), a qual resumiu nos seguintes termos: «
[a]
presente tese reflete sobre o percurso histórico do
ne bis in idem
e sobre o atual âmbito de proteção da proibição constitucional de duplo julgamento e de dupla punição, à luz da proliferação e diversificação do poder punitivo público. Conclui-se que ainda é possível defender uma conceção ampla de
ne bis in idem
, aplicando-se a proibição constitucional a todas as manifestações do poder punitivo público, de acordo com critérios de racionalidade argumentativa, proibindo-se, assim, a redundância da cumulação.»
Segundo a Autora
[11]
, «
[d]
e uma forma geral, aceita-se que o
ne bis in idem
tenha dupla natureza – como direito subjetivo e como garantia objetiva da atividade do legislador ordinário – e uma dupla dimensão – como limite processual ao exercício da ação penal, por força do caso julgado, e como proibição de dupla punição pelo mesmo crime. Esta visão dualista tem sido igualmente acolhida pela jurisprudência nacional, seja pelos tribunais comuns, seja pelo Tribunal Constitucional.
No que respeita ao
ne bis in idem processual
, a doutrina portuguesa carateriza-se pela escassez da obra escrita, sendo o caso julgado penal uma espécie de verdade óbvia que tem dispensado uma especial fundamentação ou justificação. Embora a esmagadora maioria dos autores associe os efeitos do caso julgado penal ao princípio do
ne bis in idem
, são raros os que buscam os fundamentos do próprio princípio».
É essa tarefa que a Autora leva a cabo ao longo da sua tese, considerando, desde logo, que não se pode confundir o
ne bis in idem
com o caso julgado, caminho que encontra igualmente trilhado por José Damião da Cunha
[12]
e Henrique Salinas
[13]
.
Não cabe no âmbito desta decisão examinar na sua globalidade a interessante análise que os referidos Autores fazem do
ne bis idem
, por limitações várias que condicionam a decisão judicial e os Juízes que a proferem, mas tão-somente procurar nela os pontos de concordância que encontramos com a solução do caso concreto e a razão de ser das mesmas, como temos vindo a fazer ao longo da decisão.
E para o que agora importa, isto é, reforçar o entendimento de que os limites do
ne bis idem
se estendem muito além da fase de julgamento, começando logo na fase de inquérito, considera a Autora que na expressão
ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime
o termo
julgado
encontra a sua expressão mínima, permitindo concluir que
há
julgamento, «sempre que o infractor for sujeito a um processo material penal ou, em alternativa, alvo de um julgamento em sentido material. O processo materialmente penal é aquele que possui a características geralmente associadas ao julgamento formalmente penal: um processo público que coloque o agente do facto numa relação especial de sujeição, tenha por objetivo o esclarecimento de uma pretensão punitiva pública, materializada e formalizada por um “
pedido
”', do qual possa ser extraído um juízo de culpabilidade e do qual possa resultar a aplicação de uma sanção essencialmente punitiva. Porque o âmbito de proteção do
ne bis in idem
não se limita à garantia do caso julgado material, é necessário que se identifiquem dois momentos e níveis de proteção distintos: o início da proibição de
bis in idem
, a partir do qual ocorre a preclusão do poder punitivo; e a consolidação da proibição de
bis in idem
, a partir da qual ocorre a consunção do poder punitivo. O primeiro momento coincide com o início do processo materialmente penal, é decisivo para a verificação da litispendência proibida e determina a preclusão do poder punitivo (consunção do direito de ação): a mesma pretensão punitiva não poderá ser alvo de outros processos materialmente penais autónomos. O segundo momento depende da exaustão do poder punitivo no próprio processo em curso e não pode ser identificado com um momento fixo do processo, nem associado, rigidamente, ao trânsito em julgado.»
Neste seguimento, entende a Autora, com o que também concordamos, que «
[o]
momento paradigmático, a partir do qual se inicia a proteção do
ne bis in idem
no processo penal é o da acusação. É a este efeito que a doutrina se refere, quando afirma que a acusação é irretratável, querendo significar-se que, a partir desse momento, o processo deverá conduzir à prolação de uma decisão final e definitiva. É também através da dedução de acusação que a parte acusadora – que representa, mas não esgota, o interesse de realização de Justiça – exerce a sua
fair chance at trial
. O conceito de
fair chance at trial
, como paralelo ao
fair trial
(associado aos direitos do arguido a um processo justo e equitativo), permite garantir que a proibição de duplo julgamento não constituiu um obstáculo ao exercício racional do poder punitivo público. Só haverá processo materialmente penal, no âmbito do n.º 5 do art. 29.º da CRP, se neste tiver garantido o núcleo mínimo e essencial da
fair chance at trial
da parte acusadora; ou seja, a dedução da acusação e sustentação da mesma em julgamento, sem limites desrazoáveis. Tendo havido acusação, o processo deve terminar com uma decisão que possua efeito de
ne bis in idem
, pois, de outro modo - e podendo até ter sido produzida toda a prova em julgamento –, sempre o tribunal poderia invocar uma causa de ilegitimidade ou de nulidade processual para, sucessivamente, sujeitar o arguido a novos julgamentos penais. É este o sentido material e o fundamento para a eliminação das absolvições da instância, figurando como decorrência intrínseca do n.º 5 do art. 29.º da CRP.»
Mais, considera que «
[p]
ode, contudo, iniciar-se a proteção do
ne bis in idem
antes da dedução de acusação, quando o arguido tenha sido sujeito a medidas de coação de média ou longa duração, durante o inquérito, pois a decisão de aplicação destas medidas implica a identificação de um objeto, a formalização de um juízo, e um encargo excessivo sobre o arguido. Se assim for, e vier a ser arquivado o inquérito, o processo só poderá ser reaberto nos termos do art. 449.º do CPP.»
Na perspectiva da Autora
[14]
, «
[d]
o que se trata, no âmbito penal, é de garantir a proibição de vários processos (
bis
) sobre o mesmo objecto (
idem
). Pretende-se evitar táticas acusatórias de potenciação das oportunidades de condenação
[15]
e de esgotamento das capacidades de defesa do arguido que a vertente racionalizadora do
ne bis in idem
quer proibir.»
Em sintonia com o entendimento exposto sobre os efeitos do
ne bis in idem
em momento anterior à fase de julgamento, defende Henrique Salinas
[16]
que «no processo penal português, a definição do âmbito objectivo da proibição de renovação de um processo contra a mesma pessoa tem por mútua referência o princípio
ne bis in idem
e a estrutura acusatória».
Nessa perspectiva considera que
[17]
: «(i) a proibição inerente ao
ne bis in idem
tem lugar sempre que o processo termine com a prolação de sentença transitada em julgado, bem como mediante a prática ou na sequência da prática de um acto que traduza o exercício da acção penal, na medida em que, com base na comprovação objectiva da responsabilidade do arguido pela prática de um crime, proceda à delimitação originária do objecto do processo, traduzindo a afirmação pública e solene de que a comunidade chama um seu membro à responsabilidade; (ii) quanto aos seus limite objectivos, estes devem corresponder aos poderes de cognição do acto que procede à delimitação originária do objecto do processo. Como, no processo penal vigente, esse acto é a acusação em sentido material, não é possível a instauração de novo processo pelos factos conhecidos no processo anterior e ainda por aqueles que podiam ter sido conhecidos, tendo em conta os poderes de cognição que assistiam ao seu autor, para cada objecto processual unitário.»
E quanto à limitação respeitante aos factos que podiam ter sido conhecidos em processo anterior, esclarece o mesmo Autor
[18]
que «a questão não só assume grande complexidade como as soluções que tem sido e são adoptadas em cada legislação assumem contornos muito diversos, como revela a breve síntese de que demos conta. Ou seja, este excurso revelou-nos que, se é certo que a acusação procede à delimitação do objecto do processo são admissíveis, em maior ou menor medida, alterações a este objecto em fases posteriores da marcha do processo. Por outro lado, a medida e os termos da admissibilidade destas alterações são também diversos, o que nos obriga a recordar, em apertada síntese, o esquema fundamental da delimitação do objecto do processo no nosso Código
Deve ter-se presente, em primeiro lugar, que a adopção da estrutura acusatória implica que o objecto, delimitado no encerramento do inquérito pela acusação em sentido material, só poderá sofrer as alterações expressamente previstas nos preceitos que, em cada uma das fases posteriores, estabelecem os limites e os termos em que é admissível o conhecimento de factos novos. A consequência da violação destes limites é a invalidade da decisão final respectiva».
Em síntese conclusiva de tudo o que foi argumentado, entendemos que o Ministério Público não pode instaurar um novo processo pelos factos conhecidos num processo anterior e ainda por aqueles que podiam e deviam ter sido conhecidos e reflectidos na acusação desse processo inicial, tendo em conta os poderes de cognição que lhe assistem.
Como tal, não podia o Ministério Público criar, como criou, os presentes autos com o fito único de corrigir as suas falhas na elaboração da acusação deduzida no Proc. n.º 12512/13.1TDPRT, tanto mais que tal conduta procurou contornar, e contornou, as limitações legais à modificação factual da acusação inscritas no CPPenal e o efeito preclusivo de uma decisão de não pronúncia transitada em julgado, com o que feriu irremediavelmente a validade dos autos e da acusação nela deduzida, que violou frontalmente o princípio fundamental do
ne bis in idem
.
Deve, por isso, manter-se a decisão de não pronúncia da arguida A..., S.A., embora por razões totalmente diferentes das que constam da decisão recorrida, que conheceu do mérito do RAI por aquela apresentado.
*
III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar total provimento ao recurso do Ministério Público e, em consequência, embora por razões diferentes, manter nos seus precisos termos a decisão recorrida.
Sem tributação (art. 522.º, n.º 1, do CPPenal).
Notifique.
Porto, 15 de Janeiro de 2025
(
Texto elaborado e integralmente revisto pela relatora, sendo as assinaturas autógrafas substituídas pelas electrónicas apostas no topo esquerdo da primeira página)
Maria Joana Grácio
Pedro Afonso Lucas
Amélia Catarino
_________________
[1] É o que resulta do disposto nos arts. 412.º e 417.º do CPPenal. Neste sentido, entre muitos outros, acórdãos do STJ de 29-01-2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB.S1 - 5.ª Secção, e de 30-06-2016, Proc. n.º 370/13.0PEVFX.L1.S1 - 5.ª Secção.
[2] Todos acessíveis in www.dgsi.pt.
[3] Relatado por José Teles Pereira e consultável in www.tribunalconstitucional.pt.
[4] Nota da relatora: segundo a autora «existem duas grandes fontes de arquivamentos impróprios: o despacho de rejeição liminar do requerimento de abertura de instrução deduzido pelo assistente (art. 287.º, n.º 3, do CPP) e o despacho saneador (art. 311.º, do CPP)» - cf. in Ne (Idem) Bis in Idem – Proibição de Dupla punição e de duplo julgamento: Contributos para a Racionalidade do Poder Punitivo Público, Vol. II, AAFDL Editora, 2016, pág. 568.
[5] Cf. Inês Ferreira Leite, in Ne (Idem) Bis in Idem – Proibição de Dupla punição e de duplo julgamento: Contributos para a Racionalidade do Poder Punitivo Público, Vol. II, AAFDL Editora, 2016, pág. 575.
[6] Ob. cit. págs. 575 a 578.
[7] Ne bis in idem e exercício da acção penal, in Que Futuro para o Direito Processual Penal – Simpósio em homenagem a Jorge Figueiredo Dias, por ocasião dos 20 anos do Código de Processo Penal Português, Coimbra Editora, 2009, pág. 557.
[8] Cf. ob. cit. págs. 560 a 563.
[9] Ob. cit. págs. 552 a 581.
[10] A reabertura do inquérito (ou a proibição relativa de repetição da acção penal), in Revista do concorrência e regulação, ano IV, número 13, Janeiro - Março de 2013, págs. 189 a 230.
[11] Ob. cit. Vol. I, pág. 188 e 189.
[12] Na obra que já mencionámos.
[13] In Os limites objectivos do ne bis in idem e estrutura acusatória do Processo Penal Português, Universidade Católica Editora, 2014 – livro que corresponde, com alterações de pormenor, à dissertação de doutoramento do Autor.
[14] Cf. Inês Ferreira Leite, Breves apontamentos sobre o ne (idem) bis in idem e o caso julgado, in Estudos de Homenagem ao Professor Doutor Américo Taipa de Carvalho, Universidade Católica Editora, 2022, págs. 329 a 377.
[15] Nota da relatora: que podem ter na sua génese incompetência, incúria ou mesmo intenção própria.
[16] Ob. cit., pág. 673.
[17] Ob. cit., pág. 656.
[18] Ob. cit., pág. 663 a 664.
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TRP
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https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/049f20f5f0e6257e80258c230037fe15?OpenDocument
|
1,754,352,000,000
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PROCEDENTE
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3729/22.9T8CSC.L1-6
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3729/22.9T8CSC.L1-6
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JORGE ALMEIDA ESTEVES
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(da responsabilidade do relator)
I- No âmbito de um contrato de mediação imobiliária, o direito à remuneração prevista depende do efetivo exercício de uma atividade por parte do mediador tendente ao negócio visado pelo contrato e que essa atividade seja causa adequada da celebração do negócio que, a final, venha a ser celebrado entre os vendedores (contratantes naquele contrato) e o comprador com quem foi celebrado o negócio mediado.
II- Se o negócio foi celebrado com um comprador apresentado pela mediadora, em que existiram negociações promovidas por aquela, mas que no final se goraram por as partes não terem chegado a acordo, não existe o direito à remuneração se, sendo o contrato celebrado sem a cláusula de exclusividade, ocorrer a quebra do nexo de causalidade adequada entre a atividade da mediadora e o negócio concretamente efetuado.
III- Verifica-se a quebra dessa causalidade quando ocorrem circunstâncias que foram determinantes para o negócio, nomeadamente o facto de os interessados compradores terem tomado a iniciativa de contactar outra mediadora para retomarem as negociações e o preço final ter sido 1.220.000€ superior aquele que havia sido obtido pela autora.
IV- Nestas circunstâncias há que concluir que o negócio celebrado é exclusivamente imputável à atividade da segunda mediadora, a quem foi paga a comissão, não tendo a autora direito a qualquer remuneração.
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[
"CONTRATO DE MEDIAÇÃO IMOBILIÁRIA",
"REMUNERAÇÃO",
"EXCLUSIVIDADE"
] |
Acordam os Juízes que compõem este Coletivo da 6ª Secção do
Tribunal da Relação de Lisboa
RELATÓRIO
Ré recorrente:
SUBMARINO DO RIO, LDA.,
pessoa coletiva n.º ..., com sede na Avenida de ..., Cascais
Autora recorrida:
FCGM – SOCIEDADE DE MEDIAÇÃO IMOBILIÁRIA, S.A.,
pessoa coletiva n.º..., com sede na Alameda das ..., Lisboa.
A autora instaurou ação de condenação sob a forma comum de declaração peticionando a condenação da ré no pagamento da quantia de € 147.840,00 € (cento e quarenta e sete mil, oitocentos e quarenta euros), acrescida de juros de mora à taxa legal aplicável às transações comerciais, contados desde a citação até integral e efetivo pagamento.
Para fundamentar a pretensão a autora invocou que se dedica à mediação imobiliária. No âmbito dessa sua atividade celebrou com a ré, em 07.11.2018, um contrato de mediação imobiliária, sem exclusividade, tendo por objeto a venda de um imóvel de que a ré era proprietária, sito na freguesia de Alcabideche, concelho de Cascais, pelo preço de 3.950.000,00 €, tendo como contrapartida uma comissão de 5%
1
do valor final de venda, acrescida de IVA. Em cumprimento desse contrato a autora conseguiu angariar interessados na compra, nomeadamente AA e BB, que visitaram o imóvel pela primeira vez em 11.01.2022 e preencheram um documento de reserva, pagando nessa altura 10.000€. Após várias visitas e apresentação de propostas, a ré decidiu, em 28.02.2022, suspender a venda do imóvel. Em 18.07.2022 a autora tomou conhecimento de que em 03.06.2022 os referidos AA e BB celebraram com a ré a escritura pública de compra do imóvel pelo preço de 3.520.000,00 €. A autora entende que a sua atividade foi determinante para a conclusão do negócio, pelo que lhe é devida a comissão acordada no contrato de mediação.
A ré contestou, dizendo que celebrou efetivamente o contrato de mediação imobiliária com a autora em regime de não exclusividade, mas a remuneração acordada foi de 4%. As negociações com o casal AA e BB mediadas pela autora acabaram por se gorar, tendo a última proposta por eles apresentada, no valor de 2.300.000€, sido rejeitada. Acabaram por terminar a relação contratual com a autora. Em finais de abril de 2022, estando ainda por regularizar o processo documental do imóvel, a ré foi contactada por uma outra sociedade de mediação imobiliária, a JJ - Mediação Imobiliária, Lda., que usa a designação comercial “IMOJOY”, indicando que, em parceria com a Remax Collection Villa, de Cascais, representada por DD, tinham interessados na compra. Esses interessados eram exatamente os referidos AA e BB. No âmbito das negociações havidas com a nova empresa de mediação, acabou por ser acordado o preço de € 3.520.000,00 (três milhões quinhentos e vinte mil euros), pelo qual o imóvel, foi vendido. A ré pagou à Imojoy a comissão no valor de 181.843,20€, correspondente a 4,2% do valor da venda, mais IVA à taxa de 23%. A ré considera que, em face das circunstâncias que determinaram a conclusão do negócio, este não é imputável à atividade da autora, pelo que não lhe assiste o direito à pretendida remuneração.
Foi dispensada a realização da audiência prévia com fundamento na simplicidade da causa
2
e foi proferido despacho saneador tabelar que julgou verificados os pressupostos processuais.
Dispensou-se a enunciação do objeto do litígio e dos temas da prova
3
.
Realizou-se a audiência final tendo sido proferida sentença que terminou com o seguinte segmento decisório:
“
Pelo exposto, julgo a presente acção intentada parcialmente procedente e, consequentemente, condeno a ré SUBMARINO DO RIO, LDA., a pagar à autora FCGM – SOCIEDADE DE MEDIAÇÃO IMOBILIÁRIA, S.A., a quantia de 140.800,00 euros (cento e quarente mil e oitocentos euros), acrescida de juros de mora, à taxa de juros comerciais, contados desde a data da citação e até integral pagamento
”.
*
Inconformada com o decidido, apelou a ré, tendo apresentado alegações e as seguintes conclusões:
A.
O presente recurso vem interposto da Decisão recorrida, na qual o Tribunal a quo julgou a ação parcialmente procedente e, em consequência, condenou a Ré, ora Recorrente, a pagar à Autora, ora Recorrida, a título de comissão, a quantia de EUR 140.800,00, acrescida de juros de mora à taxa de juros comerciais, contados desde a data da citação e até integral pagamento.
B.
A decisão do Tribunal a quo de condenar a Ré, ora Recorrente, no pagamento da referida comissão, é manifestamente injusta e contrária ao Direito e padece de vários erros na apreciação da matéria de facto que carecem da devida correção.
C.
Assim, o que se pretende com as presentes alegações de recurso é que a Decisão recorrida seja revogada e substituída por outra que, apreciando globalmente a factualidade efetivamente subjacente ao presente caso, julgue a ação integralmente improcedente, e, consequentemente, absolva a Recorrente do pedido.
Da impugnação da matéria de facto
D.
Os erros na apreciação da matéria de facto consubstanciam-se (i) na omissão, no elenco de factos provados da Decisão recorrida, de um conjunto de factos relevantes que foram alegados e/ou resultaram da prova produzida em julgamento, (ii) na equivocada inserção no elenco de factos provados de factos que não têm qualquer sustentação na prova produzida em julgamento, ou resultam de depoimentos incongruentes e (iii) na omissão, quer do elenco de factos provados, quer do elenco de factos não provados, de um facto relacionado com a decisão dos compradores de cortar relações com EE que, atendendo à sua relevância e ao facto de sobre ele ter sido produzida prova abundante, deveria ter sido considerado pelo Tribunal a quo.
E.
Em primeiro lugar, o Tribunal a quo incorreu em erro ao dar como provado o facto n.º 35, desde logo porque não foi junto ao processo qualquer documento que corrobore a identidade dos participantes na segunda visita ao imóvel (dia 22.02.2022) e porque da prova produzida em sede de julgamento, resulta que nessa visita, apenas esteve presente, da parte dos compradores, AA.
F.
A própria testemunha BB confirmou que apenas esteve presente na primeira visita realizada ao imóvel, em 11.01.2022 (cfr. minutos 00:21:02 a 00:21:46 do seu depoimento).
G.
A inclusão do facto n.º 35 no elenco de factos provados incorre numa outra incongruência, na medida em que, a testemunha FF também não esteve presente na visita ao imóvel de 22.02.2022, tal como foi por este confirmado em sede de julgamento (cfr. minutos 00:07:00 a 00:07:10 do seu depoimento).
H.
Neste sentido, o facto n.º 35 não se deverá manter no elenco dos factos provados da Decisão Recorrida, devendo o mesmo ser eliminado ou, se assim não se entender, pelo menos alterado, passando a assumir a seguinte formulação:
No dia 22 de fevereiro de 2022, foi realizada nova visita aos imóveis, no âmbito da qual estiveram presentes AA, acompanhada da consultora imobiliária EE, bem como do funcionário da Ré, GG.
I.
Em segundo lugar, o Tribunal a quo incorreu em erro ao dar como provado o facto n.º 47, uma vez que não só não é verdade que tenha sido através da Recorrida que os compradores tomaram conhecimento de todas as características atinentes ao imóvel Casa..., como o mesmo é contraditório com o facto provado n.º 38.
J.
Como ficou refletido nos factos provados n.º 4 e 9 da Decisão recorrida, nos termos do Contrato de Mediação Imobiliária celebrado entre as Partes, a Recorrida estava obrigada a “diligenciar no sentido de conseguir interessado na Compra [da Casa...], pelo preço de 3.950.000,00 € (três milhões, novecentos e cinquenta mil euros), desenvolvendo, para o efeito, ações de promoção e recolha de informações sobre os negócios pretendidos e características dos respetivos imóveis” e a “prestar os serviços conducentes à obtenção da documentação necessária à concretização do(s) negocio(s) visado(s) pela mediação”.
K.
O Tribunal a quo deu como provado - facto provado n.º 38 - que os interessados na compra do imóvel apenas vieram a tomar conhecimento das irregularidades registais do imóvel na sequência da vistoria técnica realizada pela empresa ..Manutenção de Patrimónios, Lda.., contratada pelos compradores para o efeito.
L.
O depoimento de BB – um dos compradores – é inequívoco neste sentido (cfr. minutos 00:28:31 a 00:29:15 e 01:24:12 a 01:26:17 do seu depoimento).
M.
A Recorrente, aquando da angariação do imóvel, transmitiu à Recorrida, na pessoa de II, a situação registal do mesmo, tendo deixado bastante claro que o imóvel teria de ser vendido na exata situação registal e jurídica em que este se encontrava (razão pela qual a Recorrente não estava disposta a aceitar quaisquer reduções substanciais do preço), o que a Recorrida não cuidou de transmitir aos compradores AA e BB.
N.
O e-mail enviado pelo legal representante da Recorrente a EE, em 15.02.2022, com as condições inegociáveis da venda (junto como Documento n.º 8 com a petição inicial) e, novamente, o depoimento de BB (cfr. minutos 01:28:41 a 01:29:08 e 01:22:11 a 01:24:10 do seu depoimento) consubstanciam prova inequívoca do que acima se afirmou.
O.
Neste sentido, o facto provado n.º 47 não se poderá manter no elenco dos factos provados da Decisão Recorrida, devendo ser integralmente eliminado.
P.
Em terceiro lugar, o Tribunal a quo errou ao dar como provado o facto n.º 51, cuja inclusão no elenco de factos provados fundamentou nos depoimentos das testemunhas II, EE, FF, BB, AA, JJ, KK, DD e nas declarações de LL.
Q.
Nenhum dos referidos depoimentos permite confirmar que tenha sido numa visita a outra casa indicada pela EE que os compradores, AA e BB, conheceram DD.
R.
As testemunhas AA e BB – cujos depoimentos, por estarem em causa factos pessoais e do conhecimento direto das mesmas, deverão ser valorados preferencialmente sobre todos os outros que espelhem um conhecimento meramente indireto dos factos – confirmaram, de modo consistente, que contactaram DD na sequência de uma pesquisa online de outros imóveis realizada pelos próprios, motivada pela indisponibilidade da EE em continuar a acompanhá-los na busca de uma casa (cfr. minutos 00:23:53 a 00:25:31 do depoimento de AA e minutos 00:37:07 a 00:41:27 do depoimento de BB).
S.
A própria DD, quando questionada sobre como conheceu os compradores, respondeu que estes a contactaram via WhatsApp, no seguimento de uma pesquisa no Idealista (cfr. minutos 00:04:26 a 00:05:46 e 00:54:24 a 00:55:19 do seu depoimento).
T.
Neste sentido, não resta outra solução senão a de reformular o facto n.º 51, de modo a que do mesmo não continue a constar o trecho “numa visita a uma outra casa indicada pela EE, conheceram DD”.
U.
Em quarto lugar, o Tribunal a quo incorreu em erro ao dar como não provado o facto f., sendo que, quanto a este facto em específico, o Tribunal a quo não apresentou qualquer fundamentação para a sua exclusão do elenco de factos provados, limitando-se a apresentar a mesma justificação para a exclusão dos factos e. a g..
V.
Este facto foi, no entanto, corroborado quer por prova documental, quer por prova testemunhal.
W.
Desde logo, pelo Documento n.º 2 junto com a contestação, correspondente ao e-mail enviado pelo legal representante da Recorrente à Recorrida (na pessoa de II), em 29.03.2022, em resposta à proposta dos compradores de EUR 2.300.000,00 para a compra da Casa..., no qual aquele informa que “Dito isto e levando em conta o teor deste novo mail, reitero a não aceitação da mesma e informo que por claras razões de incompatibilidade comunicacional, vimos vedar à Remax a apresentação e comercialização da nossa propriedade”.
X.
Foi com esta proposta que a Recorrente dissipou quaisquer dúvidas de que a Recorrida não estava a cumprir diligentemente o acordado (e contratado) com a Recorrente, principalmente no que respeitava à transmissão de informação clara e exata aos compradores das condições quer do imóvel, quer da venda do mesmo.
Y.
A degradação e a quebra definitiva das relações entre a Recorrente e a Recorrida foi igualmente corroborada quer pelo legal representante da Recorrente (cfr. minutos 00:07:13 a 00:09:04, 00:21:24 a 00:23:24 e 00:31:45 a 00:33:16 das suas declarações), que pelas testemunhas KK (cfr. minutos 00:16:43 a 00:18:20 do seu depoimento), JJ (cfr. minutos 01:03:23 a 01:03:46 do seu depoimento) e DD (cfr. minutos 01:03:23 a 01:03:46 do seu depoimento).
Z.
Neste sentido, a Decisão recorrida deverá ser revogada e substituída por outra que inclua o facto f. no elenco de factos provados.
AA.
Em quinto lugar, o Tribunal a quo errou ao dar como não provado o facto g., dado que foi produzida prova substancial que permitia ao Tribunal ter incluído o facto em questão na matéria dada por provada.
BB.
Desde logo, este facto foi alegado pela Recorrente no artigo 18.º da contestação, no qual se fez referência e se remeteu para o Documento n.º 12 junto pela Recorrida com a sua petição inicial, o qual corresponde a um e-mail remetido pelo representante legal da Recorrente à Recorrida, na pessoa de II, em 28.02.2022, onde se lê “Venho comunicar que a venda deste nosso imóvel se encontra suspensa pelas razões que apontei no meu telefonema de há pouco.” – circunstância que foi, aliás, incluída na factualidade dada como provada na Decisão recorrida, nos factos n.º 40 e 42.
CC.
O envio deste e-mail, bem como o respetivo teor, foram confirmados por prova testemunhal, designadamente pelo depoimento de EE (cfr. minutos 00:39:48 e 00:40:29 do seu depoimento).
DD.
Por outro lado, o representante legal da Recorrente, em sede de declarações de parte, explicou que, depois de levantadas as questões sobre as desconformidades registais do imóvel, e na sua discricionariedade empresarial e comercial, a Recorrente decidiu avançar com o processo de legalização do imóvel (o que lhe permitiria vender o imóvel por um preço superior), razão pela qual, ao mesmo tempo que veda expressa e definitivamente a venda deste imóvel pela Recorrida, decide suspender a venda do imóvel com as demais agências imobiliárias em que o mesmo se encontrava anunciado (cfr. minutos 00:07:13 a 00:09:04 e 01:00:11 a 01:00:24).
EE.
Do supra exposto resulta, em termos claros, que a prova produzida nos autos aponta, precisamente, para que “a Ré decidiu que mais valia retirar a casa do mercado, suspendendo a sua venda até ter regularizado as questões pendentes, dando assim por concluída a sua relação com a Autora”, motivo pelo qual o facto g. da matéria de facto não provada deve antes ser incluído no elenco da matéria de facto provada.
FF.
Em sexto lugar, o Tribunal a quo incorreu em erro ao dar como não provados os factos h. e i., decisão que fundamentou na circunstância de “nenhuma prova a R. fez que tivesse esclarecido a A. sobre as irregularidades do imóvel, antes de terem sido detetadas na vistoria pelo engenheiro contratado pelos interessados”.
GG.
Desde logo, o representante legal da Recorrente, LL, afirmou em sede de julgamento não ter quaisquer dúvidas sobre ter informado a Recorrida sobre todas as características do imóvel, incluindo as desconformidades legais que de que o mesmo padecia (cfr. minutos 00:04:06 a 00:05:38 das suas declarações).
HH.
Por outro lado, a própria II, angariadora do imóvel em questão, encontrando-se sob juramento, não pôde confirmar em Tribunal que estas irregularidades não lhe foram comunicadas pela Recorrente (cfr. minutos 00:33:38 a 00:34:00 do seu depoimento).
II.
A referida prova era suficiente para que o Tribunal a quo tivesse dado por provado que a Recorrente transmitiu à Recorrida a circunstância de existirem desconformidades registais no imóvel, razão pela qual deveria ter incluído o facto i. no elenco de factos provados, e não no elenco de factos não provados.
JJ.
E tendo a Recorrente transmitido estas informações sobre as condições do imóvel à Recorrida, esta estava, naturalmente, obrigada a comunicá-las aos compradores, como imposto pelas Cláusulas 2.ª, n.º 1 e 6.ª, n.º 1 do Contrato (cujo conteúdo foi reproduzido na Decisão recorrida, nos factos provados n.º 4 e 9) – o que, evidentemente, não sucedeu.
KK.
Resulta claro do depoimento de BB que não foi a Recorrida ou EE a comunicar-lhe as irregularidades no imóvel (cfr. minutos 01:28:41 a 01:29:08 do seu depoimento).
LL.
Por outro lado, a Recorrente não pode concordar com a afirmação do Tribunal a quo de que “não se provou que a A. não tenha esclarecido os interessados do preço mínimo pelo qual a R. queria vender os imóveis (…) ou sequer que a proposta mais baixa referida no doc. 1 com a contestação tenha sido inibidora da concretização do negócio”.
MM.
Com efeito, a testemunha AA, compradora do imóvel Casa..., confirmou expressamente em julgamento que não lhes foi comunicado (a si e a BB) que o vendedor (a Recorrente) não estava disposto a aceitar uma tão substancial redução de preço (cfr. minutos 01:22:11 a 01:24:10 do seu depoimento).
NN.
Além disso, ficou também demonstrado que foi precisamente a apresentação desta proposta tão absurdamente reduzida (e tão díspar das condições inegociáveis estabelecidas pela Recorrente no seu email de 15.02.2022), que impeliu a Recorrente a decidir pôr fim à sua relação comercial com a Recorrida.
OO.
Neste sentido, impõe-se incluir os factos não provados i. e h. no elenco de factos provados.
PP.
Em sétimo lugar, o Tribunal a quo errou ao não incluir no elenco de factos provados a decisão, por parte de BB e AA, de cortar relações comerciais com a agente imobiliária EE – facto que não foi, de todo, considerado pelo Tribunal a quo, que não cuidou de o incluir quer no elenco de factos provados, quer no elenco de factos não provados.
QQ.
A ausência de análise de tal facto condicionou a justeza da solução alcançada.
RR.
O facto em questão reputa-se de absolutamente essencial para a demonstração da quebra do nexo de causalidade entre os alegados esforços de promoção da Casa... da Recorrida (através de EE) e a concretização da venda do mesmo aos referidos compradores e, consequentemente, da ausência de fundamento para o pagamento de uma comissão pela Recorrente à Recorrida.
SS.
Em sede de julgamento, as testemunhas AA e BB esclareceram que decidiram prescindir dos serviços de EE atenta a sua urgência em comprar casa e a indisponibilidade manifestada por esta última (cfr. minutos 00:16:03 a 00:17:32 e 00:25:05 do depoimento de AA e minutos 00:37:07 a 01:09:32 e 01:15:55 a 00:41:11 do depoimento de BB).
TT.
Por outro lado, AA referiu expressamente, em sede de julgamento, não ter sentido sequer necessidade de informar EE que iriam trabalhar com outros agentes imobiliários, uma vez que esta se revelava bastante indisponível (cfr. minutos 00:17:33 a 00:17:59 do seu depoimento).
UU.
A testemunha BB confessou, expressamente, que, com o envio da mensagem a EE, em 18.07.2022 (cujo printscreen e tradução foram juntos pela Recorrida em requerimento datado de 03.07.2023), apenas se quis desculpar por ter decidido avançar para a compra do imóvel com outra agente imobiliária, razão pela qual efabulou que a Recorrente exigira que a venda fosse privada, não passando por intermediação de uma imobiliária – muito embora tal não correspondesse à verdade.
VV.
Do exposto, resulta que o facto em causa é demonstrativo da ausência de qualquer papel da Recorrente na decisão, por parte dos compradores, de, também eles, porem término à sua relação com EE, pelo que o facto em questão é um facto complementar, ou concretizador, dos factos essenciais que fundamentam a licitude da conduta da Recorrente (e inexistência de qualquer responsabilidade civil por incumprimento contratual), revelando-se, por esse motivo, decisivo para a improcedência da presente ação e que devia, por inerência, ter sido considerado pelo Tribunal a quo, nos termos do disposto na alínea b), do n.º 2, do artigo 5.º do CPC.
WW.
A propósito dos factos que devem constar da sentença, designadamente sobre os factos complementares, importa atender aos ensinamentos de Abrantes Geraldes, Pimenta, Pires de Sousa e ainda ao Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 17.01.2017, proferido no proc. n.º 3161/12.2TBLRA-A.C1.
XX.
Impõe-se, assim, concluir que as regras processuais e a prova produzida na instrução da causa impunham ao Tribunal a quo que incluísse tal matéria no elenco dos factos provados, devendo este Tribunal alterar a Decisão recorrida quanto à matéria de facto, sob pena de violação do disposto na alínea a), do n.º 2, do artigo 5.º do CPC, acrescentando o seguinte facto à matéria de facto provada:
AA e BB começaram, por iniciativa própria, a consultar outros agentes imobiliários, tendo decidido terminar definitivamente a sua relação comercial com EE, atenta a indisponibilidade manifestada pela mesma.
YY.
Subsidiariamente, sempre se dirá que este facto deveria constar da motivação de facto da Decisão recorrida, sendo considerado na apreciação global da prova produzida, assumindo, nesse caso, a natureza de facto instrumental, nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 5.º do CPC.
ZZ.
Em suma, caso este Tribunal entenda não ser de incluir o facto acima formulado no elenco de factos provados – o que não se concede –, a Decisão recorrida sempre terá de ser revogada e substituída por outra que inclua a referida matéria na respetiva motivação, o que se requer.
AAA.
Em oitavo lugar, e em face de tudo quanto se expôs supra, o Tribunal a quo errou ao dar como provado o facto n.º 66, nos termos do qual “Os compradores que figuram na escritura pública de compra e venda foram angariados pela A., em parceria com a EE”.
BBB.
É que, embora os primeiros contactos com os compradores tenham sido promovidos pela Recorrida, em parceria com a EE, a venda da Casa... apenas se concluiu pelo trabalho de uma outra agência imobiliária (a IMOJOY), não tendo a Recorrida assumido qualquer papel no processo negocial que veio a culminar na concretização da venda do imóvel,
CCC.
O que justifica que, na escritura pública de compra e venda do imóvel, apenas tenha sido feita referência à mediação realizada pela IMOJOY, enquanto verdadeira intermediária do processo de comercialização do imóvel.
DDD.
Neste sentido, impõe-se que o facto n.º 66 seja reformulado, de forma a que do mesmo não se possa extrair o sentido de ter havido uma qualquer dispensa ilegítima e injustificada da presença da Recorrida na celebração da escritura pública, sugerindo-se a seguinte formulação: O contacto inicial com os compradores que figuram na escritura pública de compra e venda foi promovido pela A., em parceria com a EE.
Do Mérito do Recurso
EEE.
A Recorrida não cumpriu de forma diligente o contrato de mediação, nomeadamente na promoção do imóvel "Casa...".
FFF.
A Recorrida foi informada, desde o início, das desconformidades registais do imóvel e do seu respetivo impacto na determinação das condições de venda, nomeadamente do facto de que o preço já refletia essas desconformidades. Ainda que não tivesse sido informada, a Recorrida tinha o dever de realizar a devida "due diligence" para identificar eventuais problemas que pudessem impedir o negócio. Tal dever decorre não só do Contrato de Mediação, mas da própria lei e até da boa-fé. Seja como for, e tal como se demonstrou, a Recorrida estava na posse desta informação, que lhe foi cuidadosamente comunicada pela Recorrente.
GGG.
A falta de comunicação destas desconformidades aos potenciais compradores (AA e BB) resultou numa proposta de compra completamente desfasada da realidade negocial, mais de 1 milhão de euros abaixo do pretendido. Esta má assessoria da Recorrida gerou uma justificada perda de confiança na capacidade que a mesma teria para concluir a venda nas condições acordadas com a Recorrente.
HHH.
A factualidade que acima se descreveu não foi devidamente considerada pelo Tribunal a quo na Decisão recorrida, sendo certo que a mesma assume extrema relevância para a conclusão de que não assiste à Recorrida qualquer direito a receber uma comissão pela conclusão da venda da Casa...
III.
Após a apresentação de tal proposta, muito abaixo do preço pretendido, a Recorrente perdeu a confiança na Recorrida e vedou-lhe a comercialização do imóvel, comunicando essa decisão de forma clara a II em 29.03.2022 (cfr. Documento n.º 2 junto com a Contestação). A rutura foi confirmada pelo representante da Recorrente, LL, no depoimento prestado em sede de julgamento (cfr. minutos 00:07:13 e 00:08:40 do depoimento de LL), e pela recusa da Recorrente em negociar com membros da Remax.
JJJ.
O conteúdo do e-mail (cfr. Documento n.º 2 junto com a Contestação) que o representante da Recorrente remeteu à Recorrida não deixa quaisquer margens para dúvidas quanto à firme intenção da Recorrente de pôr término à relação comercial com a Recorrida, pelo menos no que dizia respeito à comercialização da Casa....
KKK.
Pese embora a linguagem utilizada possa não ser a mais rigorosa do ponto de vista técnico-jurídico, tal não era exigido ao representante da Recorrente, dado que se trata de uma pessoa que não tem formação na área do Direito.
LLL.
A Decisão do Tribunal a quo comete um equívoco nas considerações que faz acerca de uma eventual perda de interesse da Recorrente na comercialização do imóvel. O que ocorreu não foi a perda de interesse na comercialização do imóvel per se, mas apenas em que tal comercialização fosse realizada pela Recorrida, mantendo-se sempre o interesse em alienar o imóvel.
MMM.
Assim, mal andou o Tribunal a quo ao considerar não existirem elementos suficientes para demonstrar uma verdadeira rutura das relações comerciais entre a Recorrente e a Recorrida.
NNN.
Por outro lado, cumpre dizer que, em virtude de não existir um acordo de exclusividade com a Recorrida, a Recorrente era livre de contratar com outras mediadoras imobiliárias, como fez. Recorde-se, a este propósito, que essa possibilidade foi expressamente prevista no Contrato de Mediação, designadamente na sua cláusula 4.ª, n.º 1.
OOO.
Significa isto, por outro lado, que a Recorrente não estava dependente de um término contratual formal com a Recorrida para poder prosseguir a comercialização da Casa... com outra agência de mediação imobiliária.
PPP.
A Recorrente atuou sempre dentro dos limites das prerrogativas que lhe assistiam legal e contratualmente, o que deverá ser tido em devida conta pelo Tribunal ad quem na decisão que vier a produzir.
QQQ.
Não foram os esforços de promoção da Recorrida que conduziram à conclusão do negócio jurídico, não lhe sendo devido qualquer montante remuneratório.
RRR.
Nos termos da Lei da Mediação Imobiliária, o direito à remuneração da mediadora está subordinado à conclusão do negócio que decorra diretamente da sua intervenção, não bastando a simples apresentação de interessados para justificar o pagamento de uma comissão.
SSS.
No caso concreto, as negociações iniciadas pela Recorrida com os compradores BB e AA não resultaram na conclusão da venda da Casa..., tendo sido interrompidas pela Recorrente em virtude de reiterados incumprimentos por parte da Recorrida, culminando na proibição de continuação da comercialização do imóvel por parte desta.
TTT.
O trabalho da Recorrida revelou-se insuficiente para atingir o desiderato do contrato de mediação, o que se revelou em diversos sinais, nomeadamente ao não conseguir assegurar a celebração de um contrato-promessa de compra e venda, o que é comum e esperado em transações imobiliárias de grande dimensão como a presente.
UUU.
O único compromisso obtido pela Recorrida foi a assinatura de um acordo de reserva no valor de EUR 10.000,00, valor insignificante face ao montante total do negócio de EUR 3.520.000,00, e que foi devolvido após o término das negociações.
VVV.
A conclusão da venda foi realizada por outra mediadora, a IMOJOY, que intermediou um novo processo negocial, levando à celebração de um contrato-promessa de compra e venda e, posteriormente, à escritura pública.
WWW.
A identidade dos compradores não implica, por si só, a manutenção de um nexo causal entre o trabalho da Recorrida e a conclusão do negócio, uma vez que o primeiro processo negocial terminou sem sucesso, dando lugar a um novo processo, que foi iniciado e concluído pela IMOJOY e pela DD.
XXX.
Também o facto de o preço de venda ser já conhecido dos compradores não é suficiente para asseverar a existência de causalidade. É que, como ficou provado na Decisão recorrida, os compradores sabiam que o preço era inegociável, o que significava que este não se iria alterar.
YYY.
Ao que acresce o facto de a Recorrente não ter tido qualquer papel na decisão dos compradores de recorrerem aos serviços de outra agência imobiliária.
ZZZ.
Estes eram livres para reestabelecer ligações com a Recorrida e optaram por não o fazer. Assim como eram livres de recorrer aos serviços de outra mediadora imobiliária, como o fizeram, sem que a Recorrida (ou mesmo a Recorrente) tivesse qualquer palavra a dizer sobre isso.
AAAA.
A jurisprudência citada pelo Tribunal da Relação do Porto e pelo Supremo Tribunal de Justiça é clara ao afirmar que, em casos de interrupção das negociações e subsequente venda intermediada por outro mediador, não existe o direito à remuneração pela primeira mediadora.
BBBB.
A Recorrida não demonstrou a existência de um nexo causal entre o seu trabalho e a conclusão do negócio, como erroneamente considerado pelo Tribunal a quo, sendo determinante o papel desempenhado pela IMOJOY na concretização da venda, que foi responsável pela realização de novas visitas ao imóvel, bem como de nova due diligence aos respetivos documentos. Sem a intervenção desta, nunca o negócio jurídico teria sido concluído.
CCCC.
O pagamento de uma comissão foi efetuado pela Recorrente à IMOJOY, nos termos estabelecidos inicialmente com a Recorrida, o que demonstra não ter havido a mínima intenção da Recorrente de se furtar ao pagamento de comissões devidas pela atividade de intermediação.
DDDD.
Em todo o caso, ainda que qualquer montante remuneratório fosse efetivamente devido, o que não se concede, é prática do mercado imobiliário português que, caso o trabalho de várias mediadoras concorra para a conclusão do negócio, a comissão seja repartida equitativamente, nunca podendo ser devida a comissão integral à Recorrida.
Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão:
a)
Deve o presente recurso de apelação ser considerado totalmente procedente, por provado, e, por sua vez, ser revogada a Decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra que absolva a Recorrente do pagamento à Recorrida de uma qualquer comissão;
Subsidiariamente,
Deve a Decisão recorrida ser revogada por uma outra que reduza o montante da comissão devida pela Recorrente à Recorrida em função da repartição do trabalho de promoção e comercialização da Casa... entre a Recorrida e a IMOJOY.
b)
Deve ser alterada a decisão proferida quanto à matéria de facto provada, nos termos enunciados nas presentes alegações de recurso.
*
A autora recorrida contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso, concluindo da seguinte forma:
A)
Cumpre, em primeiro lugar, ressalvar que ao longo da prova produzida perante o Tribunal a quo, várias omissões e contradições foram sendo reveladas: desde logo, a Sr.ª KK e o Sr. JJ, que se tratavam mutuamente como “sócios”, quando na verdade são marido e mulher; por outro lado, o facto de a Sr.ª KK ser prima/muito amiga do legal representante da Recorrente – conforme perentoriamente referido pela testemunha DD -, o que foi por ambos omitido;
B)
Não deverá olvidar-se, para efeitos de apreciação de prova e subsequente decisão sobre a matéria de facto, da falta de fidedignidade de alguns dos depoimentos e declarações prestadas que, por isso, não merecem qualquer credibilidade;
C)
Não pode a Recorrida concordar com a cominação apelada pela Recorrente, a eliminação do facto provado n.º 35 com base em erro na apreciação da prova, pois que se verifica apenas um mero lapso de escrita por parte da Mma. Juiz a quo ao referir que o BB e o FF estiveram presentes na visita à Casa... realizada em 22 de fevereiro;
D)
Tanto assim é, que a Sentença recorrida menciona expressamente as passagens dos depoimentos de ambas as testemunhas supra referidas que fundamentaram a decisão quanto ao facto em apreço, em especial na parte em que referem que não estiveram presentes na 2.ª visita: o BB porque não se encontrava em Portugal e o FF porque sofreu uma avaria no seu automóvel (páginas 33 e 34 da decisão recorrida);
E)
Ora, atenta a divergência entre a vontade real da Mma. Juiz a quo e a redação do facto provado, afigura-se clarividente que este padece de erro material, e não de erro de julgamento, carecendo apenas de retificação, pelo que deve passar a ler-se: “No dia 22 de fevereiro de 2022, foi realizada nova visita aos imóveis, no âmbito da qual estiveram presentes a interessada angariada pela Autora, AA, acompanhada da consultora imobiliária EE, bem como do funcionário da Ré, GG.”
F)
A Recorrente alega que da prova produzida e junta aos autos, não é possível extrair-se a conclusão do facto provado n.º 47: antes pelo contrário, crê a Recorrida que os elementos probatórios se afiguram inequívocos no sentido adotado pelo Tribunal a quo.
G)
A Recorrida desconhecia as desconformidades registrais existentes na propriedade, as quais foram culposamente omitidas pela Recorrente aquando da angariação da Casa..., e só vieram a ser descobertas na sequência de uma vistoria técnica realizada por peritos, que, aliás, tinha por objetivo aferir da propensão para a existência de infiltrações, roturas de água, tendo sido exposta a ilegalidade das construções existentes, designadamente a piscina e a casa de hóspedes.
H)
Do facto de a testemunha II não se recordar se a documentação estaria em conformidade, não poderá extrair-se a conclusão perentória de que esta tinha conhecimento das desconformidades urbanísticas, pelo contrário – tanto assim é, que esta refere que, aquando da angariação, parecia estar “tudo como deve ser” - depoimento prestado em sede de audiência de julgamento na data de 03.07.2023 gravado entre os minutos 00:33:04 e 00:33:58.
I)
Da prova produzida revelou-se patente que foi a Recorrida quem publicitou e transmitiu as condições negociais de que os potenciais interessados BB e AA vieram a ter conhecimento (razão pela qual o Tribunal a quo bem andou ao dar como não provados os factos h. e i.)
J)
Em primeiro lugar, foi através do anúncio publicitado pela Recorrida, que a consultora imobiliária EE introduziu a Casa... aos Srs. BB e AA, apresentando-lhes toda a documentação facultada pela Recorrente - depoimento prestado em sede de audiência de julgamento na data de 03.07.2023 gravado entre os minutos 00:06:56 e 00:07:52 e entre os minutos 00:09:03 e 00:09:46;
K)
Neste sentido, deverão ressalvar-se as contradições verificadas no depoimento da Sr.ª KK, que, numa primeira instância referiu perentoriamente ter solicitado a documentação do imóvel junto das entidades competentes, mas depois não soube justificar o porquê de a documentação apresentada pela IMOJOY na escritura ser a mesma que a Recorrida, em parceria com a EE, remeteu para os compradores em fevereiro de 2022 - vide a escritura pública de compra e venda e os emails juntos sob os Documentos n.º 8 e 14 da petição e depoimento prestado em sede de audiência de julgamento na data de 13.09.2023, gravado entre os minutos 00:40:57 e 00:43:07;
L)
Dúvidas não poderão igualmente subsistir quanto ao facto de ter sido a Recorrida responsável por transmitir as condições negociais, encetar e mediar contactos entre as partes, mediar negociações de preço e timings para a celebração do negócio almejado, que veio a ser celebrado nesses mesmos exatos termos (vide Documento n.º 9 e 14 da PI) - resultou provado dos depoimentos prestados por II e Corta (depoimento prestado em sede de audiência de julgamento na data de 03.07.2023, gravado entre os minutos 00:13:51 e 00:14:14), EE (depoimento prestado em sede de audiência de julgamento na data de 03.07.2023 gravado entre os minutos 00:10:45 e 00:12:28), FF (depoimento prestado em sede de audiência de julgamento na data de 03.07.2023 gravado entre os minutos 00:04:52 e 00:06:13) e BB (depoimento da testemunha BB prestado em sede de audiência de julgamento na data de 08.09.2023, gravado entre os minutos 00:15:37 e 00:18:13);
M)
Ao supra exposto, devera ainda acrescer o facto de a comissão da Recorrida, contratualmente estipulada em 4% do preço final (Documento n.º 6 da petição) foi também negociada (para 4,2%) pela Recorrida, em parceria com a EE, a fim de harmonizar os interesses da todas as partes e alcançar o valor líquido que a Recorrente pretendia receber – pág. 7 Documento n.º 8 da petição);
N)
Não podendo a Recorrida deixar de se questionar como é que a Recorrente e a IMOJOY estipularam entre si, igualmente, a comissão de 4% (Documento 5 da contestação), mas coincidentemente veio a Recorrente a pagar uma comissão exatamente correspondente ao valor de 4,2% sobre o valor negócio, tal como havia sido fixado fora do contratualmente estipulado entre a Recorrente e a Recorrida…
O)
Aliás, a própria Recorrente confessa, no art.º 30.º da sua contestação, que aquando da reunião havida na Casa... na presença da legal representante da IMOJOY, já todos sabiam qual o preço pelo qual o negócio seria celebrado, uma vez que o mesmo havia já sido fixado pela Recorrida em sede de anteriores negociações;
P)
Ainda quanto à impugnação do facto provado n.º 47, adiantou-se que as desconformidades registrais foram apenas conhecidas pela Recorrida e pelos compradores na sequência de uma vistoria técnica contratada por estes últimos, que tinha por escopo a análise à propensão do terreno para infiltrações ou roturas de água, mas que veio a desvendar as construções ilegais que a Recorrente omitia: em momento algum, a Recorrente informou a Recorrida das sobreditas discrepâncias entre a realidade física e a realidade jurídica do imóvel;
Q)
Neste sentido, os depoimentos das testemunhas FF (depoimento prestado em sede de audiência de julgamento na data de 08.09.2023, gravado entre os minutos 00:07:50 e 00:09:18), EE (depoimento prestado em sede de audiência de julgamento na data de 03.07.2023 gravado entre os minutos 00:19:01 e 00:20:10) e BB (depoimento prestado em sede de audiência de julgamento na data de 08.09.2023, gravado entre os minutos 00:27:32 e 00:30:05; que descrevem com precisão o contexto em que vieram a tomar conhecimento da ausência de licenciamento das construções;
R)
Refira-se ainda que a proposta inferior apresentada pelos compradores à Recorrente na data de 29.03.2022 teve como pressuposto os encargos camarários e diversos processos de legalização por que os compradores teriam de diligenciar, e bem ainda o risco do indeferimento do licenciamento das referidas construções, razão pela qual o Tribunal a quo deu como provado o facto n.º 38, sem qualquer reparo;
S)
A Recorrente insurge-se ainda contra o facto provado n.º 51, argumentando, em suma, que decorre do depoimento da DD – consultora imobiliária com quem foi, a final, partilhada a comissão recebida (indevidamente) pela IMOJOY – que os compradores a contactaram via WhatsApp;
T)
Salvo o devido respeito, não deverá olvidar-se que a testemunha em causa tem interesse em defender que desempenhou bem o seu trabalho, ao invés de admitir que a comissão que lhe foi paga na sequência da concretização do negócio final adveio, na verdade, do trabalho desenvolvido pela Recorrida, conjuntamente com a EE;
U)
Neste sentido, veja-se como as testemunhas BB e AA admitiram que conheceram casualmente a consultora DD por ocasião da visita a uma casa na Ulgueira, em Sintra, que lhes havia sido indicada pela EE, e pior, que lhe pediram expressamente para ver se a Casa... estaria de novo à venda, uma vez que a tinham visitado com outra agente e estariam interessados (não podendo acolher a tese de que a DD “descobriu” o imóvel nas plataformas) - vide depoimento da testemunha BB prestado em sede de audiência de julgamento na data de 08.09.2023, gravado entre os minutos 00:43:14 e 00:45:12, entre os minutos 01:05:44 e 01:05:54, e entre os minutos 01:51:55 e 01:52:06 e depoimento da testemunha AA prestado em sede de audiência de julgamento na data de 24.10.2023, gravado entre os minutos 00:25:48 e 00:27:17;
V)
Parece-nos, aqui chegados, que BB e AA, por não se encontrarem vinculados por um contrato de mediação imobiliária, sem qualquer obrigação de pagar comissão, revelam-se testemunhas manifestamente mais credíveis do que a DD, pois que a bom rigor, aqueles nada têm a perder, pelo que não merce qualquer reparo a decisão de prova sobre o facto provado n.º 51;
W)
A Recorrente invoca que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento ao dar como não provado o facto f., escudando-se nas declarações de parte do legal representante da Recorrente, LL, bem como nos depoimentos prestados pelas testemunhas DD e KK;
X)
Esclareça-se, em primeiro lugar, as testemunhas em cujo depoimento se sustenta a Recorrente, não têm qualquer conhecimento direto sobre o facto supra, uma vez não colaboram com a Recorrida, nem tampouco tiveram qualquer intervenção na relação comercial e contratual existente entre Recorrida e Recorrente, baseando os seus depoimentos no “diz que disse”;
Y)
O efeito pretendido pela Recorrente, isto é, a prova do facto f., não é possível com base nos maldizeres e opiniões pessoais que o Sr. LL propalava, ou ainda no que a Sr.ª KK ouviu dizer;
Z)
O legal representante da Recorrente em momento algum referiu ter resolvido o contrato de mediação imobiliária celebrado com a Recorrida, ou sequer denunciado o mesmo nos termos contratualmente previstos, o que não resulta igualmente da prova que instrui os autos;
AA)
Tal como firmado na pág. 50 da decisão recorrida: (…) A resolução encontra-se prevista no art.º 432.º, n.º 1, do CC, e constitui um meio de extinção do vínculo contratual por declaração unilateral que depende da existência de um motivo previsto na lei ou convencionado entre as partes (…); ora, em face do exposto, não poderá merecer acolhimento uma resolução contratual baseada num simples email enviado pelo legal representante da Recorrente em que manifesta “vedar à Remax a apresentação e comercialização da nossa propriedade”, porque não operou nos termos legais;
BB)
Por outro lado, a Recorrente invoca a perda de interesse na concretização do negócio em virtude do incumprimento alegadamente imputável à Recorrida, mas é certo que, a final, a Recorrente celebrou o negócio nos mesmos termos exarados no acordo de reserva negociado pela Recorrida (Documento n.º 9 da PI), com os compradores apresentados pela Recorrida, pagando a mesma comissão a um terceiro que havia sido negociada com a Recorrida – o que não configura, nos termos legais, uma manifestação de perda de interesse na prestação, antes pelo contrário;
CC)
Ainda, no que respeita à proposta apresentada pelos compradores BB e AA no valor de 2.300.000,00 €, adiantou-se já que a mesma surgiu no seguimento da descoberta inesperada das ilegalidades registrais da propriedade por parte da Recorrida e das compradores e era uma proposta a pronto, sem necessidade de recurso a crédito bancário (depoimento da testemunha BB prestado em sede de audiência de julgamento na data de 08.09.2023, gravado entre os minutos 01:23:34 e 01:23:53), não relevando para o caso que ora se nos ocupa, considerando que os compradores avançaram com o negócio pelo preço anteriormente conseguido e fixado no acordo de reserva negociado pela Recorrida – 3.520.000,00;
DD)
Isto posto, em caso algum poderia o Tribunal a quo ter dado como provado o facto f., por manifesta ausência de elementos probatório, bem como fundamento legal;
EE)
Ora, o Tribunal a quo deu como não provado que a Ré tenha decidido retirar a casa do mercado, até ter regularizado as questões pendentes, e dessa forma cessar a relação contratual com a Recorrida, sendo que a Recorrente vem invocar o email da pág. 1 do Documento n.º 12 da petição como forma de subverter a decisão;
FF)
E ainda a passagem do depoimento prestado pela testemunha EE, em sede da qual esta refere que a II a informou que o negócio estaria suspenso, por comunicação enviada pela Recorrente – cumprindo referir que a II foi apenas mensageira da informação transmitida pela Recorrente, e que afinal era falsa, pois que esta não suspendeu, efetivamente, a venda;
GG)
Ora, em primeiro lugar, o Tribunal a quo não poderia dar como provada a cessação da relação contratual entre Recorrente e Recorrida, pelas razões supra aduzidas;
HH)
Pode ler-se no email remetido pelo legal representante da Recorrente para a II (Documento n.º 12 da petição):
“Bom dia II,
Venho comunicar que a venda deste nosso imóvel se encontra suspensa pelas razões que apontei no meu telefonema de há pouco.
Agradeço o seu empenho e profissionalismo na condução do processo de venda e espero poder continuar a contar consigo no futuro. (…)”
II)
Na verdade, contrariamente ao que a Recorrente pretendeu fazer valer, da prova produzida perante o Douto Tribunal a quo ficou demonstrado que do sobredito telefonema não resultou qualquer animosidade da Recorrente perante a Recorrida - depoimento da testemunha II prestado em sede de audiência de julgamento na data de 03.07.2023, gravado entre os minutos 00:37:25 e 00:38:32;
JJ)
Na verdade, do teor das declarações prestadas pelo Sr. LL, e bem ainda da linha cronológica preconizada pela Recorrente, é possível extrair a conclusão de que o alegado “descontentamento” da Recorrente com os serviços prestados pela Recorrida surgiu posteriormente à apresentação de uma proposta inferior pelos compradores (email enviado em 28 de março de 2022 – vide Documento 1 da contestação), não se compaginando com a data em que, alegadamente, a Recorrente decidiu retirar a casa do mercado, 28 de fevereiro de 2022;
KK)
Sem embargos, afigura-se clarividente que a Recorrente não concretizou a alegada decisão, pois que ficou demonstrado que, na prática, a Recorrente não suspendeu a venda nem tampouco regularizou as desconformidades registrais, inexistindo qualquer suporte documental para atestar a submissão do procedimento de licenciamento – foi apenas uma mera “desculpa” dirigida à Recorrida;
LL)
Aliás, volvidos pouco mais de 2 meses desde o sobredito email, a Recorrente vendeu a propriedade aos compradores apresentados pela Recorrida, pelo exato preço logrado em negociações mediadas pela Recorrida (vide escritura pública junta aos autos sob o Documento n.º 14 da petição), sem que as construções ilegais estivessem devidamente licenciadas;
MM)
Mais, a Recorrente declarou falsamente na escritura pública que o negócio exarado tinha tido intervenção da mediadora imobiliária JJ - Mediação Imobiliária, Lda., vulgarmente designada por IMOJOY, donde se extrai que a venda da casa não estava suspensa, como foi comunicado à Recorrida - Documento n.º 14 da petição;
NN)
Não merece qualquer reparo a decisão do Tribunal a quo ao dar como não provado que a Recorrente tenha efetivamente retirado a casa do mercado, pese embora todas as declarações de vontade, vãs, nesse sentido;
OO)
A Recorrente discorda do entendimento do Tribunal a quo ao dar como não provados os factos h. e i., referindo, em suma, que da prova produzida resulta que (i) a Recorrida tinha sido informada das desconformidades registrais aquando da angariação da Casa... e (ii) que a Recorrida não cuidou de alertar os compradores que uma proposta em valor inferior à pretensão da Recorrente não seria aceitável;
PP)
Quanto ao facto não provado h., ressalva-se, como já adiantado, que em momento algum foi a Recorrida informada da existência de irregularidades entre a documentação e a realidade física do imóvel, cumprindo recordar que tal levaria à desvalorização do valor líquido que a Recorrente pretendia receber em resultado da venda;
QQ)
Em segundo lugar, o facto de a testemunha II não ter confirmado que as irregularidades lhe haviam sido comunicadas pelo legal representante da Recorrente, não serve como elemento probatório para atestar o facto contrário, i. e. que, afinal, estas irregularidades lhe foram transmitidas;
RR)
Até porque, conforme já firmado, ficou demonstrado que a Recorrida não tinha conhecimento dos referidos vícios – vide depoimentos da testemunha II prestado em sede de audiência de julgamento na data de 03.07.2023, gravado entre os minutos 00:21:43 e 00:22:21 e da testemunha FF prestado em sede de audiência de julgamento na data de 08.09.2023, gravado entre os minutos 00:07:50 e 00:09:05;
SS)
Acresce ainda que a testemunha BB admitiu expressamente que, juntamente com a EE, chegou a dirigir-se à Câmara Municipal a fim de solicitar as plantas atualizadas da propriedade, uma vez que a documentação fornecida pela Recorrente estava incompleta - depoimento prestado em sede de audiência de julgamento na data de 08.09.2023, gravado entre os minutos 01:29:25 e 01:30:28;
TT)
Em terceiro lugar, no que respeita à 2.ª parte do facto não provado i., importa ter em consideração a seguinte cronologia factual:
- Por email datado de 15 de fevereiro de 2022, o representante legal da Recorrente, LL, informou a II e o FF quais seriam, de forma sucinta, as condições não negociáveis, como seja o valor líquido a receber pela Recorrente – cfr. Documento n.º 8 da petição;
- No dia 17 de fevereiro é assinado o acordo de reserva que estabelecia os termos e condições do negócio, a serem plasmadas em sede de contrato promessa e posterior escritura pública – vide Documento n.º 9 da petição;
- Posteriormente, já no final de fevereiro, em data anterior a 28 de fevereiro, foi realizada uma vistora técnica por engenheiros e arquitetos e desvendadas inúmeras desconformidades registrais entre o estado físico da propriedade e o licenciamento camarário;
- No dia 28 de fevereiro, a Recorrente informa a II da sua suposta de decisão de suspender temporariamente a venda, com vista à regularização da disparidade documental junto das entidades competentes – Documento 12 da petição;
- No dia 28 de março, os compradores apresentam uma proposta em valor inferior ao pretendido pela Recorrente, motivada pelos presumíveis custos que teriam de suportar com os procedimentos de legalização – cfr. Documento 1 da contestação;
UU)
Na sequência da alteração das circunstâncias negociais, i.e. a descoberta das disparidades documentais que enfermavam a propriedade, deveria a Recorrente ter informado a Recorrida da sua irredutibilidade quanto à variação do preço – o que não cuidou de fazer, nem tampouco de provar em sede própria;
VV)
Não resulta, por isso, que a Recorrida pudesse antever que o legal representante da Recorrente se viesse a sentir “pessoalmente ofendido” com uma proposta de valor inferior que continha outros elementos atrativos e que poderiam interessar à Recorrente, como seja a desnecessidade de recurso a crédito bancário e consequente pagamento a pronto – vide Documento n.º 1 da contestação;
WW)
Não podia, razoavelmente, a Recorrida antecipar que a proposta apresentada pelos compradores no valor de 2.300.000,00 € se revelaria um ultraje, pelo que bem andou o Tribunal a quo ao dar como provados os factos h. e i.;
XX)
A Recorrente pugna pela introdução do alegado corte de relações entre os compradores e a consultora imobiliária EE, o que não pode a Recorrida compreender, na medida em que (i) não resultou provado da prova produzida e (ii) afigura-se irrelevante para a boa decisão da causa, uma vez que está em causa a comissão devida à Recorrida – não à EE, que trabalhava para outra agência imobiliária;
YY)
Por seu turno, a relação comercial existente entre a EE e os compradores não se fundava em qualquer título contratual, pelo que aqueles não estavam vinculados a regime de exclusividade, motivo pelo qual chegaram a visitar outros imóveis com diferentes agentes imobiliários;
ZZ)
Dos depoimentos prestados pelo BB e AA, resulta inequívoco que apenas deixaram de trabalhar, em exclusivo, com a EE, porquanto não tinham qualquer obrigação legal ou contratual de o fazer, passando a usufruir igualmente dos serviços prestados por outras agências – não se vislumbrando qual o raciocínio lógico que subjaz à conclusão que a Recorrente pretende fazer valer;
AAA)
A testemunha BB admite, num depoimento isento e credível, que a EE continuou, após o seu regresso de período de férias, a partilhar inúmeros imóveis consigo e com a sua esposa AA, mesmo após terem comprado a casa apresentada pela Recorrida, à revelia desta - depoimento prestado em sede de audiência de julgamento na data de 08.09.2023, gravado entre os minutos 01:07:18 e 01:09:33;
BBB)
Do depoimento prestado pelo BB, qualquer que seja a sua interpretação, não resulta, em momento algum, que tenham sido prescindidos os serviços prestados pela EE, antes pelo contrário, assim como o mesmo não resulta igualmente do facto de o BB ter admitido dar uma desculpa à EE, bem sabendo que havia adquirido a casa por esta apresentada, à sua revelia;
CCC)
Revela-se ainda necessário esclarecer o Tribunal ad quem que, contrariamente ao que a Recorrente parece defender, a EE nunca representou, nem tampouco trabalhou para a Recorrida: esta celebrou um contrato de mediação com a Recorrente, mediante o qual se obrigou a desenvolver ações de promoção e a angariar interessados para a compra do imóvel – Documento n.º 6 da petição e factos provados n.º 4, 13 e 16;
DDD)
Por outro lado, a EE, que trabalhava para a sociedade de mediação imobiliária MM – Mediação Imobiliária, Lda., apresentou à Recorrida um casal que estaria interessado na aquisição da Casa... (BB e AA) – vide facto provado n.º 17 – tendo vindo, nessa sequência, a trabalhar em parceria negociando os termos e condições do contrato;
EEE)
O facto de BB e AA terem decidido deixar de trabalhar, em exclusivo, com a agente EE, em nada releva para efeitos de apuramento da responsabilidade civil, tendo ficado inequivocamente provado o cumprimento da obrigação a que a Recorrida se vinculou perante a Recorrente, sendo, por isso, devida a comissão acordada entre as partes, não assistindo razão à Recorrente;
FFF)
No que respeita ao facto provado n.º 66, cumpre atentar nos factos que permitiram ao Tribunal a quo formar a convicção no sentido de que o negócio se concretizou única e exclusivamente em virtude da atuação exímia da Recorrida, e não de qualquer outra agência imobiliária;
GGG)
Em primeiro lugar, a Recorrida angariou a Casa... em março de 2021 (vide contrato junto aos autos sob o Documento n.º 6) e desenvolveu ações de promoção sobre a Casa... – veja-se o Documento n.º 7 da petição e o depoimento prestado pela testemunha II, em sede de audiência de julgamento na data de 03.07.2023, gravado entre os minutos 00:05:41 e 00:06:28;
HHH)
Em segundo lugar, a Recorrida acompanhou as visitas realizadas ao imóvel com os interessados angariados e apresentados em parceria com EE, conforme melhor resulta dos depoimentos prestados por BB (depoimento prestado em sede de audiência de julgamento na data de 08.09.2023, gravado entre os minutos 00:12:31 e 00:13:29), EE (depoimento da prestado em sede de audiência de julgamento na data de 03.07.2023 gravado entre os minutos 00:07:52 e 00:08:31), II (depoimento prestado em sede de audiência de julgamento na data de 03.07.2023, gravado entre os minutos 00:12:21 e 00:12:45) e FF (depoimento prestado em sede de audiência de julgamento na data de 08.09.2023, gravado entre os minutos 00:03:29 e 00:04:15);
III)
Em terceiro lugar, a Recorrida mediou a negociação dos termos e condições do negócio concretizado entre a Recorrente e os compradores BB e AA, tendo logrado estabelecer o preço (3.520.000,00€) e a comissão da mediadora (4,2%), conforme o Tribunal a quo considerou ao dar como provado o facto n.º 48, aqui não impugnado;
JJJ)
Na verdade, a Recorrente não logrou provar a mais parca negociação mediada pela IMOJOY, ao contrário da Recorrida – vide Documentos n.º 8, 9 e 10 da petição, assim como os depoimentos das testemunhas EE (depoimento prestado em sede de audiência de julgamento na data de 03.07.2023 gravado entre os minutos 00:32:42 e 00:33:05, e ainda entre os minutos 00:56:39 e 00:57:17), FF (depoimento prestado em sede de audiência de julgamento na data de 08.09.2023, gravado entre os minutos 00:05:45 e 00:06:43), os quais não deixaram margem para dúvidas e corroboraram todo o processo negocial mediado pela Recorrida;
KKK)
Mais, quando questionado o BB sobre se, aquando da reunião havida na Casa..., à revelia da Recorrida e da EE, na presença dos legais representantes da Recorrente, e das Sr.ªs KK e DD, os presentes tinham conhecimento que os compradores já tinham visitado a casa com outra imobiliária e fixado o valor final, a resposta foi perentoriamente afirmativa (depoimento prestado por BB em sede de audiência de julgamento na data de 08.09.2023, gravado entre os minutos 01:09:33 e 01:10:26);
LLL)
A mesma testemunha esclareceu o Douto Tribunal a quo que, aquando da sobredita reunião, o preço não foi negociado – porque já havia sido fixado com o trabalho e esforço da Recorrida e da EE… - veja-se depoimento da testemunha BB prestado em sede de audiência de julgamento na data de 08.09.2023, gravado entre os minutos 01:11:30 e 00:12:41;
MMM)
Acresce ainda que a testemunha DD atestou também que a Recorrente foi irredutível e não estava aberta a negociações (depoimento prestado em sede de audiência de julgamento na data de 09.10.2023 gravado entre os minutos 00:16:12 e 00:16:41 e entre os minutos 00:27:15 e 00:28:09);
NNN)
Pior, a Recorrente não demonstrou que tenha sido negociada a comissão na percentagem de 4,2% a pagar à IMOJOY, por oposição aos 4% que vinham estipulados na Cláusula 5.ª, n.º 2 do contrato de mediação imobiliária junto aos autos sob o Documento n.º 5 da contestação, tendo no entanto a Recorrida demonstrado o processo negocial que culminou no valor atípico de 4,2% (Documento n.º 8 da petição);
OOO)
Aliás, tanto assim é, que a Sr.ª KK demonstrou desconhecer por completo a comissão que recebeu: se 4%, se 4,2%...não conseguindo sequer justificar o valor recebido (depoimento prestado em sede de audiência de julgamento na data de 13.09.2023, gravado entre os minutos 00:40:57 e 00:43:07), não podendo a Recorrida deixar de concluir que a IMOJOY limitou-se a aproveitar das diligências levadas a cabo pela Recorrida, para receber a comissão – neste sentido, veja-se o excerto do depoimento prestado por DD em sede de audiência de julgamento na data de 09.10.2023 gravado entre os minutos 01:16:46 e 01:16:52 e entre os minutos 00:19:27 e 00:19:48;
PPP)
Ora, a Recorrente, visando imputar à Recorrida um alegado incumprimento contratual, vem invocar o hiato temporal decorrido entre a data da celebração do contrato de mediação imobiliária entre a Recorrente e a Recorrida, e as visitas realizadas com os interessados apresentados pela Recorrida, tendo a II justificado a dificuldade associada à venda de um imóvel no valor de quase 4.000.000,00 €, na medida em que o público-alvo é redutor e limitado;
QQQ)
Sendo que, por essa ordem de razões, cumpre referir que a Casa... já se encontrava no mercado, noutras agências, muito antes de a Recorrida ter angariado o imóvel (depoimento da testemunha II, prestado em sede de audiência de julgamento na data de 03.07.2023, gravado entre os minutos 00:39:16 e 00:40:23);
RRR)
A Recorrente alega ainda que informou devidamente a Recorrida das desconformidades registrais existentes na propriedade, designadamente as construções ilegais que não se encontravam espelhadas na documentação, o que é manifestamente falso, conforme já se adiantou e demonstrou;
SSS)
A Recorrente violou a sua obrigação de fornecer a documentação atualizada à mediadora imobiliária, entregando informações incompletas, conforme evidenciado pela testemunha BB – se assim não tivesse sido, os compradores não teriam de diligenciar junto da Câmara Municipal a fim de apurar a verdadeira situação registral do imóvel (depoimento prestado em sede de audiência de julgamento na data de 08.09.2023, gravado entre os minutos 01:29:25 e 01:31:17);
TTT)
A Recorrente omitiu deliberadamente as referidas ilegalidades aquando da angariação da Casa..., motivo pelo qual, após ser confrontada pela Recorrente, simulou que iria “regularizar as situações pendentes”, e suspender temporariamente a venda do imóvel;
UUU)
Por outro lado, não pode a Recorrente alegar que o valor do imóvel já refletia as irregularidades, já que a avaliação feita, que se aproximou da proposta inicialmente apresentada pelos compradores, baseou-se no estado físico da propriedade, e não em aspetos documentais - depoimento da testemunha EE prestado em sede de audiência de julgamento na data de 03.07.2023 gravado entre os minutos 00:10:45 e 00:11:54;
VVV)
A descoberta das ilegalidades levou os compradores a fazer uma oferta inferior, considerando os custos de regularização e riscos de fiscalização, mantendo o interesse na aquisição do imóvel – cfr. facto provado n.º 51 - mas certo é que a Recorrente não provou a existência de justa causa para a suspensão da venda, já que concluiu a negociação nas mesmas condições com os mesmos compradores apresentados pela Recorrida, à sua revelia – Documentos n.º 9 e 14 da petição;
WWW)
Cumpre ainda ressalvar que o contrato de mediação imobiliária celebrado entre Recorrente e Recorrida (Documento n.º 6 da petição) renovou-se automaticamente por sucessivos períodos de seis meses, nos termos da cláusula 8.ª, permanecendo, por isso, válido na data da escritura de compra e venda, uma vez que nunca foi denunciado;
XXX)
A Recorrida agiu diligentemente e cumpriu as obrigações a que se vinculou, que, no final de contas, resultaram necessária e diretamente na concretização do negócio nos termos e condições fixados pela Recorrida – factos provados n.º 46, 47 e 48 da decisão recorrida, falecendo, como tal, a teoria pugnada pela Recorrente;
YYY)
Argumenta ainda a Recorrente que vedou a comercialização do imóvel à Recorrida na sequência de uma proposta no valor de 2.300.000,00 €; todavia, tal razão tão só seria válida caso a Recorrente tivesse denunciado formalmente o contrato de mediação, o que não ocorreu; aliás, a Recorrente acabou mesmo por celebrar o negócio com os mesmos compradores que a Recorrida havia apresentado, pagando uma comissão a outra mediadora (IMOJOY), superior em 0,2% àquela que havia sito estabelecida no contrato de mediação, sem no entanto demonstrar as negociações subjacentes;
ZZZ)
A proposta inferior dos compradores resultou diretamente da descoberta de irregularidades na propriedade e da intenção de uma venda rápida e sem recurso a crédito bancário, uma vez que estes mantinham o interesse no negócio, o que foi oportunamente comunicado à Recorrente;
AAAA)
Bem andou o Tribunal a quo ao esclarecer que a relação contratual apenas se extinguiria mediante resolução, revogação ou denúncia, não tendo a Recorrente formalizado qualquer uma destas;
BBBB)
Ainda que assim não se entendesse, o que não se concede, veja-se a decisão do Tribunal da Relação de Guimarães prolatada em 17.09.2020: “Salvo estipulação em contrário, o contrato de mediação imobiliária deve considerar-se revogável. Todavia, não podem valer os seus efeitos no sentido de a parte que interveio no contrato de mediação se querer eximir ao pagamento estipulado quando, pelas circunstâncias do caso, se verifique que a denúncia não constituiu senão um expediente, porventura grosseiro, destinado a dar ao denunciante a aparente liberdade negocial de contratar com a pessoa angariada sem qualquer responsabilização face ao mediador angariante.”
CCCC)
A Recorrente não tem razão ao afirmar que não seria exigível ao seu representante legal a utilização de uma linguagem formal para denunciar o contrato, porquanto a Cláusula 8ª do contrato é absolutamente clara, resultando dos elementos probatórios que instruem os presentes autos que as exigências formais não foram cumpridas;
DDDD)
Além disso, sendo a Recorrente uma empresa cujo objeto social integra, entre outros, a promoção imobiliária, não pode razoavelmente vir alegar desconhecimento das regras contratuais, ainda para mais tendo admitido que teria celebrado inúmeros contratos de mediação imobiliária sobre a propriedade - como se não bastasse a clarividência da literalidade do contrato…reitera-se o sentido do princípio “ignorantia legis neminem excusat”;
EEEE)
Por outro lado, inexistem evidências de que a Recorrente tenha perdido o interesse no negócio, pois acabou por fechar a venda com os mesmos compradores apresentados pela Recorrida, no mesmo valor acordado, pagando a mesma exata comissão negociada entre Recorrente e Recorrida;
FFFF)
A Recorrida foi responsável por apresentar os compradores à Recorrente, organizar visitas e negociar condições, fixando o preço final e o valor da comissão, pelo que se afigura inequívoco que a sua atuação foi crucial para a conclusão do negócio nos termos almejados;
GGGG)
Ao simular a suspensão da venda por ocasião do alegado licenciamento das construções ilegais, a Recorrente visava, na verdade, o pagamento da comissão a outra agência imobiliária, que não teve qualquer intervenção no negócio, e que curiosamente é gerida por uma prima/amiga do legal representante da Recorrente, a testemunha KK (que optou por omitir igualmente este facto, não merecendo qualquer credibilidade) - Vide depoimento da testemunha DD prestado em sede de audiência de julgamento na data de 09.10.2023 gravado entre os minutos 01:13:49 e 01:14:41;
HHHH)
Por outro lado, do depoimento prestado pela testemunha KK resultou que a mesma não tem qualquer conhecimento direito, baseando-se apenas no “diz que disse”, sem evidências concretas, porquanto não participou das negociações havidas entre Recorrente e Recorrida, não podendo atestar a relação contratual que as vinculava;
IIII)
Mais, a testemunha KK, legal representante da IMOJOY, não logrou esclarecer o Tribunal quanto à razão pela qual a Recorrente pagou 0,2% de comissão em excesso (tal como havia sido ficado entre esta e a Recorrida…), nem tampouco por que motivo o contrato de mediação imobiliária não estava assinado pela Recorrente;
JJJJ)
Ora, a Recorrente, ao afirmar ter perdido interesse na prestação da Recorrida, mas não na prestação realizada por qualquer outra entidade, admite uma prática que configura abuso de direito, já que concretizou o negócio com outra mediadora, aproveitando-se do trabalho exímio realizado pela Recorrida; por outro lado, da prova produzida perante o Tribunal a quo resultou provado o contrário, i.e., que a Recorrente não perdeu o interesse, uma vez que celebrou o mesmo negócio dois meses após alegar a suspensão da venda, o que refuta indubitavelmente qualquer alegação de desinteresse subjetivo;
KKKK)
Veja-se o no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido em 06.12.2011, no âmbito do 321/2002.C1: “A lei, porém, não se contenta, para facultar ao credor o remédio da resolução do contrato, com a simples perda subjectiva do interesse do credor na prestação em mora (…) E porque se exige, não simplesmente a diminuição ou redução do interesse do credor na realização da prestação, mas a perda absoluta, completa, desse interesse, esta só ocorrerá no caso de desaparecimento da necessidade do credor a que a prestação visava responder. Nestas condições, a perda do interesse do credor significa o desaparecimento objectivo da necessidade que a prestação visava satisfazer.”;
LLLL)
A Recorrente apenas poderia alegar perda de interesse caso tivesse vindo a celebrar o contrato definitivo com base em diferentes condições ou com compradores distintos dos apresentados pela Recorrida: no caso sub júdice, dúvidas não podem subsistir que o interesse na prestação se manteve;
MMMM)
Cumpre ainda esclarecer que o montante pago a título de reserva foi devolvido após a alegada “suspensão da venda”, sendo que tal devolução teria ocorrido independentemente do desfecho do negócio, pois não configurava sinal ou princípio de pagamento;
NNNN)
Ao concretizar o negócio com os mesmos compradores e pelo preço negociado pela Recorrida, a Recorrente demonstra que não houve rutura no processo negocial, contradizendo a argumentação patente nas suas alegações;
OOOO)
Ora, parece escapar à sensibilidade da Recorrente o objeto dos presentes autos, porquanto a Recorrida nunca alegou que a Recorrente estaria impedida de contratar outras mediadoras; pelo contrário, no contrato de mediação celebrado com a Recorrida vinha previsto o regime da não exclusividade, tanto que a Recorrida estava ciente de que a Casa... estava anunciada em várias agências, conforme atestado pela testemunha II;
PPPP)
A decisão recorrida não menciona a contratação indevida com outras mediadoras, sendo que a questão da não exclusividade não é controvertida;
QQQQ)
Importa, nos presentes autos, ter em consideração que a Recorrida cumpriu integralmente as suas obrigações, mediou negociações e apresentou os compradores, enquanto a Recorrente celebrou o negócio com esses mesmos compradores, alegando falsamente a intervenção da IMOJOY, a quem pagou a comissão que era devida à Recorrida;
RRRR)
Ademais, a Recorrente baseia-se num contrato de mediação supostamente celebrado com a IMOJOY que não está assinado nem tampouco identifica o angariador imobiliário, vicissitude que a lei comina expressamente com a nulidade - art.º 16.º, n.º 2, al. e) da Lei n.º 15/2013, de 8 de fevereiro;
SSSS)
A Recorrente insiste que o trabalho desenvolvido pela Recorrida foi insuficiente, todavia a Recorrida demonstrou que as suas ações de promoção foram cruciais para a concretização do negócio, não logrando demonstrar provar os supostos “reiterados incumprimentos” que alega – veja-se as comunicações do Documento n.º 8 e o acordo de reserva negociado pela Recorrida (Documentos n.º 9 e 10 da petição);
TTTT)
Além disso, questiona-se como pode a Recorrente considerar o trabalho da Recorrida insuficiente, se as visitas e negociações realizadas com o casal BB e AA, foram promovidas pela Recorrida, e culminaram na celebração do negócio, tendo sido provado que a IMOJOY não realizou qualquer visita, limitando-se a Sr.ª KK a estar presente numa reunião na Casa... em sede da qual os compradores não visitaram a propriedade (porque já a conheciam…) nem foi definido o preço (que estava já definido…);
UUUU)
A Recorrente afirma que não houve contrato-promessa, todavia, foi de facto celebrado um contrato-promessa baseado nas condições negociadas pela Recorrida, à sua revelia, pelo que a Recorrente optou por concretizar o negócio à margem da Recorrida, aproveitando-se do trabalho por esta realizado;
VVVV)
Cumpre ainda ressalvar que resultou cabalmente provado que, durante a reunião na Casa... na presença da Sr.ª KK, ficou claro que os compradores já conheciam bem a propriedade e não houve uma visita formal, contradizendo a alegação da Recorrente sobre a eficácia da IMOJOY, o que vem por demais confessado nos artigos 29.º e 30.º da contestação – vide depoimento da testemunha AA prestado em sede de audiência de julgamento na data de 24.10.2023, gravado entre os minutos 00:25:48 e 00:27:17, depoimento da testemunha BB prestado em sede de audiência de julgamento na data de 08.09.2023, gravado entre os minutos 01:09:33 e 01:10:24;
WWWW)
A prova apresentada deixa inequívoco que a IMOJOY não teve qualquer papel na fixação do preço da venda, e tanto assim é, que os depoimentos das testemunhas BB e DD confirmam que o preço foi estabelecido pela Recorrida, em colaboração com EE, e que não houve negociações posteriores ao valor previamente acordado (3.520.000,00 €) - depoimento da testemunha BB prestado em sede de audiência de julgamento na data de 08.09.2023, gravado entre os minutos 01:11:30 e 01:12:41 e depoimento da testemunha DD prestado em sede de audiência de julgamento na data de 09.10.2023 gravado entre os minutos 00:16:16 e 00:16:41;
XXXX)
O depoimento prestado pela Sr.ª KK deixou alguma margem para dúvidas, porquanto esta não se recordou de qualquer negociação sobre o preço e contradisse suas próprias afirmações anteriores, o que apenas vem reforçar a conclusão de que a IMOJOY não participou do processo de negociação dos termos negociais, ao contrário da Recorrida, que desempenhou um papel ativo e fundamental à celebração do contrato definitivo; Assim, fica evidente que a Recorrida foi a responsável pela fixação do preço, enquanto a IMOJOY não teve envolvimento significativo - depoimento da testemunha KK prestado em sede de audiência de julgamento na data de 13.09.2023, gravado entre os minutos 00:45:15 e 00:45:31;
YYYY)
Em relação à documentação necessária para a transação, a testemunha KK afirmou que havia solicitado as certidões prediais, mas quando confrontada com as evidências de que os documentos apresentados na escritura eram os mesmos recolhidos pela Recorrida e não outros, é certo que a testemunha não conseguiu justificar a discrepância: o que, novamente, sugere que a IMOJOY, assim como a Recorrente, se aproveitaram das diligências anteriormente levadas a cabo pela Recorrida (depoimento da testemunha KK prestado em sede de audiência de julgamento na data de 13.09.2023, gravado entre os minutos 00:40:57 e 00:43:00);
ZZZZ)
Quanto à questão da comissão, veja-se que ambos os contratos de mediação celebrados entre a Recorrente e a Recorrida e a Recorrente e a IMOJOY previam uma remuneração de 4% (+IVA) (Documento n.º 6 da petição e Documento n.º 5 da contestação), contudo, a IMOJOY recebeu 4,2% i.e. um valor superior ao acordado inicialmente (vide Documento n.º 4 da contestação), o que corresponde a 147.840,00 € + IVA;
AAAAA)
Ora, afigura-se manifestamente bizarro o valor da comissão paga pela Recorrente, quando no seu contrato de mediação vinha explicitamente previsto 4%, isto é, um valor inferior, sendo que a Recorrida logrou provar o raciocínio lógico que resultou no cálculo da comissão em 4,2% (pág. 7 do Documento n.º 8 da petição) – aliás a Sr.ª KK chegou a referir, de forma por demais peculiar, que a Recorrente “se ofereceu para pagar mais” (depoimento prestado em sede de audiência de julgamento na data de 13.09.2023, gravado entre os minutos 00:53:31 e 00:53:54);
BBBBB)
Assim, as evidências indicam que a Recorrente e a IMOJOY celebraram um negócio exatamente espelho ao que havia sido estabelecido entre a Recorrente e a Recorrida, com os compradores BB e AA, em face da indubitável intenção de desviar a comissão para outra entidade mediadora que bem sabem não ter tido qualquer intervenção no negócio;
CCCCC)
Compete destacar, assim, as inconsistências e contradições no depoimento da testemunha KK, especialmente em relação à comissão que a IMOJOY teria recebido, sendo que a confusão em torno do percentual de 4% e a revelação de que a comissão real era de 4,2% (contrariamente ao que fora transmitido à DD) suscitam sérias dúvidas sobre a transparência e a veracidade do depoimento prestado - depoimento prestado em sede de audiência de julgamento na data de 09.10.2023 gravado entre os minutos 01:16:46 e 01:17:20;
DDDDD)
No que concerne à questão da comissão em mediação imobiliária, cumpre esclarecer que a Recorrente, como parte contratante, tinha a responsabilidade de remunerar a mediadora que efetivamente contribuísse para a realização do negócio;
EEEEE)
A alegação de que a comissão deveria ser proporcionalmente faturada à participação de cada mediadora, demonstra um entendimento equivocado das práticas do setor: a comissão é quase sempre paga na totalidade à mediadora que angariou o imóvel, independentemente de haver outras partes envolvidas, podendo a mesma ser posteriormente partilhada com a mediadora que represente os compradores;
FFFFF)
Caso assim não fosse, inexistiria igualmente razão para a Recorrente ter pago a comissão, na íntegra, à IMOJOY, devendo apenas liquidar a proporção que a esta caberia, a final, sendo que a fatura é sempre emitida com a totalidade do valor, razão pela qual não assiste, de todo, razão à Recorrente;
GGGGG)
A Recorrente vem invocar igualmente que a identidade de compradores não permite, de forma linear, concluir pela existência de nexo de causalidade entre o trabalho da primeira mediadora e a concretização do negócio, mas na verdade trata-se de todas as ações de promoção e negociações, incluindo o preço acordado e a comissão resultante, não podendo a Recorrente ignorar a realidade de que as negociações, as visitas ao imóvel e a definição de condições ocorreram sob a mediação da Recorrida;
HHHHH)
A afirmação de que teria havido um "segundo processo negocial" não encontra suporte nas provas apresentadas, porquanto o que realmente ocorreu foi uma confirmação dos termos já acordados;
IIIII)
Atente-se na decisão prolatada pelo Tribunal da Relação de Guimarães, na data de 02.11.2023, no âmbito do processo n.º 5183/21.3T8VNF.G1: “Não obsta à existência do nexo causal terem os termos do contrato resultado, eventualmente, de negociações diretas entre os interessados que o mediador pôs em contacto; f) Assim como não se exige que a atividade do mediador, com vista à consecução do negócio, seja contínua e ininterrupta; g) Bastará, para esse efeito, ter o mediador posto em contacto as partes interessadas, desde que tal atividade tenha influído/contribuído decisivamente para o negócio.”
JJJJJ)
É indiscutível que a Recorrida (i) concretizou ações de promoção e publicitação do imóvel em causa; (ii) promoveu visitas com diversos interessados, entre os quais BB e AA, que vieram posteriormente a celebrar o negócio almejado pela Recorrente; (iii) mediou negociações entre os intervenientes, tendo logrado alcançar um acordo quanto aos termos e condições do negócio (designadamente o preço), o qual foi reduzido a escrito e assinado pela Recorrente e pelos compradores;
KKKKK)
Por fim, e conforme já adiantado, não merecem qualquer credibilidade as declarações prestadas pelo legal representante da Recorrente, em especial porque (i) ficou demonstrada a existência de uma relação de amizade (quiçá até de familiaridade!!) entre o Sr. LL e a Sr.ª KK, legal representante da IMOJOY, que ambos negaram e por outro lado (ii) referiu que a Recorrida “nunca apareceu, nunca fez uma proposta”, ignorando frontalmente o teor das comunicações trocadas entre Recorrente e Recorrida (Documento n.º 8 da petição), do qual constam as propostas (aceites pela Recorrente, note-se!!) e ajustes de condições, assim como o acordo de reserva celebrado entre a Recorrente e os compradores apresentados pela Recorrida (Documentos n.º 9 e 10 da petição);
LLLLL)
Diante do exposto, é notório que a decisão do Tribunal a quo deve ser mantida, inexistindo qualquer erro na apreciação das provas ou na aplicação da legislação vigente, pelo que não merece qualquer reparo.
FUNDAMENTAÇÃO
Colhidos os vistos cumpre decidir.
Objeto do Recurso
O objeto do recurso é balizado pelo teor do requerimento de interposição (art.º 635º nº 2 do CPC), pelas conclusões (artºs 635º nº 4, 639º nº 1 e 640º do CPC), pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas, ou por ampliação (art.º 636º CPC) e sem embargo de eventual recurso subordinado (art.º 633º CPC) e ainda pelas questões de conhecimento oficioso cuja apreciação ainda não se mostre precludida.
Assim, em face das conclusões apresentadas pela recorrente, as questões a decidir são as seguintes:
- apreciar da pretendida alteração da decisão relativa à matéria de facto;
- quanto ao direito, apurar se, em face da atuação da autora em cumprimento do contrato de mediação imobiliária, em regime de não exclusividade, celebrado com a ré, lhe assiste (como se entendeu na decisão recorrida) ou não (como pretende a recorrente) o direito à remuneração acordada por o imóvel ter sido vendido aos compradores cujas negociações foram inicialmente intermediadas pela autora, tendo a venda ocorrido por intermédio de outra imobiliária, a quem a ré pagou a comissão.
***
FUNDAMENTAÇÃO
Factualidade tida em consideração pela 1ª Instância
Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
1. A Autora FCGM – SOCIEDADE DE MEDIAÇÃO IMOBILIÁRIA, S.A., é uma sociedade comercial anónima que se dedica à mediação imobiliária e administração de imóveis por conta de outrem (Cfr. certidão permanente junta como Documento 1, com a PI).
2. A Ré SUBMARINO DO RIO, LDA., foi proprietária do prédio urbano, destinado a habitação, descrito na Conservatória do Registo Predial de Cascais-2 sob o número ... da freguesia de Alcabideche e inscrito na matriz da freguesia de Alcabideche sob o artigo ..., com área total de 5424 m2, área coberta de 292m2 e descoberta de 5132m2 composto por edifício de rés-do-chão – 108m2, arribas e currais-72 m2 – pátio-112m2 logradouro5132m2
3. Bem como do prédio urbano destinado a habitação, descrito na Conservatória do Registo Predial de Cascais-2 sob o número ... da freguesia de Alcabideche e inscrito na matriz da freguesia de Alcabideche sob o artigo ... com área total de 7060m2, área coberta de 202,2m2 e área descoberta de:6857,8m2, com posto por edifício de dois pisos-habitação-área coberta de 168,80m2 e anexo de 33,40m2 (Cfr. Documentos 2, 3, 4 e 5, juntos com a PI).
4. No âmbito da sua atividade comercial, a Autora, como mediadora, identificada no contrato como sendo FCGM – SOCIEDADE DE MEDIAÇÃO IMOBILIÁRIA, S.A. e com sede com sede na Alameda das Linhas de Torres, n.º 60-B, 1750-147 Lisboa, freguesia do Lumiar, concelho de Lisboa celebrou o contrato de mediação imobiliária, em regime de não exclusividade, junto como Documento 6 com a PI, com a Ré SUBMARINO DO RIO, LDA., na qualidade de proprietária dos imóveis referidos em 2. e 3., a 7 de novembro de 2018, mediante o qual aquela se obrigou a diligenciar no sentido de conseguir interessado na compra dos imóveis supra identificados pelo valor global de 3.950.000,00 € (três milhões, novecentos e cinquenta mil euros), desenvolvendo, para tanto, ações de promoção e recolha de informações sobre o negócio pretendido e as características dos prédios melhor descritos nos itens 2. e 3..
5. Foi acordado na clausula 4.ª que “1- O segundo contratante contrata a Remax Collection SLIMgroup em regime de não exclusividade, mas compromete-se a não contratar outra mediadora imobiliária pertencente à rede REMAX.
4.A concretização de negócio com interessados compradores angariados pela primeira Contratante, bem como pelo cônjuge, ascendentes, descendentes, irmãos ou sogros destes interessados, considera-se sempre e de forma inilidível, celebrados com intervenção da Primeira Contraente.”
6. Ficou acordado na clausula 5.ª do contrato que “1.A remuneração será devida se a mediadora conseguir interessado que concretize o negócio visado pelo presente contrato e também, nos casos em que o contrato tenha sido celebrado em regime de exclusividade, o negócio não se concretize por causa imputável ao cliente.…” (negrito nosso)
7. Como remuneração pelos serviços prestados, foi expressamente acordado o pagamento de 4% sobre o preço pelo qual o negócio fosse efetivamente concretizado, acrescido de IVA à taxa legal aplicável, tal como estipulado na Cláusula 5.ª, n.º2 do contrato de mediação imobiliária.
8. O referido valor remuneratório seria liquidado pela Ré 50% após a celebração do contrato-promessa e o remanescente de 50% na celebração da escritura ou conclusão do negócio (Cfr. n.º 3 da clausula 5.ª do contrato junto como Documento 6 com a PI).
9. Mais ficou acordado na clausula 6.ª n.º 1 que “No âmbito do presente contrato a Mediadora, na qualidade de mandatária e sem representação, obriga-se a prestar os serviços conducentes à obtenção da documentação necessária à concretização do(s) negocio(s) visado(s) pela mediação. (…)”
10. O referido contrato de mediação imobiliária foi celebrado pelo prazo de 6 meses, contados desde a data da celebração, renovando-se automaticamente por iguais e sucessivos períodos de tempo, caso não fosse denunciado por qualquer uma das partes, mediante o envio de carta registada com aviso de receção ou outro meio equivalente, com a antecedência mínima de 10 dias em relação ao seu termo (Cfr. Documento 6).
11. O contrato celebrado entre as partes foi registado sob o n.º BB-21.
12. Consta da clausula 10.ª do contrato como angariador imobiliário NN.
13. A angariação dos imóveis foi da responsabilidade dos comerciais/agentes da Autora, II e FF.
14. Do contrato junto como Doc. nº 6 da PI, contrato pré-impresso e fornecido pela Autora aos seus clientes, consta o timbre da marca “REMAX COLLECTION - Siimgroup”.
15. Em 17/03/2021 a R. também celebrou contrato de mediação imobiliária em regime não exclusividade com a JJ - Mediação Imobiliária, Lda. (“IMOJOY”) junto como doc. 5 com a contestação.
16. Os imóveis em causa foram fotografados e publicitados pela A. através de II e FF e anunciados e apresentados nos diversos meios de promoção da Autora com a colocação daqueles na rede de clientela e divulgação no site e promoção online da sua venda, tudo conforme resulta do Documento 7 junto com a PI.
17. Na sequência das ações de promoção imobiliária levadas a cabo pela Autora FCGM – SOCIEDADE DE MEDIAÇÃO IMOBILIÁRIA, S.A., (cfr. Documento 7, junto com a PI), esta logrou a obtenção de interessados para a compra dos imóveis em questão em parceria com a Remax Valor, designação social da sociedade MM - Mediação Imobiliária, na pessoa da sua colaboradora/agente EE.
18. Nessa sequência, a II e FF da Autora estabeleceram contactos com o legal representante da Ré LL apresentando ao mesmo os interessados e os potenciais compradores, AA e BB.
19. No dia 11 de janeiro de 2022 foi realizada uma primeira visita aos imóveis pelos referidos potenciais compradores, na qual estiveram presentes FF, um empregado da Ré, de nome GG, EE da MM - Mediação Imobiliária., Lda e os clientes desta última, AA e BB.
20. Após a realização da referida visita, tendo sido manifestado o interesse por parte dos interessados supra mencionados AA e BB na compra dos imóveis referidos em 2. e 3., encetaram-se negociações entre aqueles potenciais compradores, através de EE, II e com a Ré na pessoa de LL, à data proprietária dos prédios, tendo ocorrido várias trocas de emails no período ocorrido entre 8 e 16 de fevereiro de 2022, cfr. o Documento 8 junto com a PI.
21. No dia 08/02/2022 o interessado BB envia a EE uma proposta com o preço de 3.450.000,00 (cfr. doc. 8).
22. No dia 10 de Fevereiro 2022, a consultora imobiliária EE enviou uma comunicação para FF e II firmando o seguinte:
“Caros FF e II,
Com muito esforço mesmo, conseguimos chegar aos 3.520.000,00
Isto tem de nos garantir 5% de comissão acrescida de IVA – A comissão é paga pelo vendedor, que sendo empresa, vai se restituir do IVA e vai contabilizar a comissão total e deduzir das suas mais valias.
Valor – 3.520-000,00 €
Comissão 5% - 176.000,00 €
IVA 23% - 40.480,00 € Total Comissão – 216.480,00 €
Líquido p o Vendedor – 3.303.520,00 €
O Comprador está fora. Vamos começar já as due diligences dos documentos, mas a vistoria só poderá ser em 3 semanas.
Preciso de um acordo de reserva e que o imóvel seja retirado do mercado imediatamente de todas as imobiliárias, pois eles começarão já com despesas de advogados e peritos e financiamento e não seria justo de outra forma.
(…)” conforme melhor resulta do Documento 8.
23. No dia 11 de Fevereiro 2022, pelas 18h35m FF envia a II o email comunicando o seguinte: “…Boa tarde II, junto envio proposta
O valor final da proposta:
Comprador BB
Preço: 3.520.000,00€
Comissão:4,2%
Reserva 10.000€
Sinal 10.000€
Escritura máximo 90 dias sendo que a intenção é ser antes
O Comprador está fora. Vamos começar já as due dilligence dos documentos imediatamente e a vistoria técnica em breve. A vistoria final com o proprietário será em no máximo 3 semanas…
Preciso de um acordo de reserva e que o imóvel seja retirado do mercado imediatamente de todas as imobiliárias…
A intenção que o processo de compra seja o mais rápido possível, mas têm de contar com um prazo máximo de 90 dias para que o banco tenha o tempo necessário de organizar tudo o que a parte de capitais próprios sejam desaplicados e transferidos para Portugal…”
24. Em 14 de Fevereiro 2022, pelas 14h25, o legal representante da Ré LL, envia e-mail com o seguinte teor: “…A reserva ficará na posse da agência, pelo que nos é indiferente o valor.
A data do CPCV ficará desde já fixada no máximo até ao dia 7/3, não prorrogável e não aceitamos receber menos de 20% de sinal.
A escritura deverá ter prazo limite de 90 dias a contar da reserva e não do CPCV.
Comprometemo-nos a não aceitar visitas nem tão pouco propostas até ermos assinado o CPCV”.”
25. Em 14 de Fevereiro 2022, pelas 22h53m, o legal representante da Ré LL, envia e-mail para II ...” com o conhecimento de ... e EE com o endereço ... com o seguinte teor:
“Boa noite II
A reserva não é considerada princípio de pagamento e por isso não nos preocupa o montante da mesma.”.
26. Em 15 de Fevereiro 2022, pelas 23h18, o legal representante da Ré LL, envia e-mail para EE com o endereço ...”, com o conhecimento de ...; II ...”, ...”, em que refere quais as condições para aceitação do negócio, referindo serem as mesmas inegociáveis, designadamente:
- Preço € 3.372.000 líquido para os vendedores (com a remuneração da Autora acordada em 4,2%).
- Período de DD ate dia 7/03 data limite para assinatura do CPCV com 20% de sinal e reforço de mais 15% 45 dias após essa data;
- Escritura num prazo máximo de 90 dias a contar da data da reserva.
Cfr. Documento 8 junto com a PI.
27. As referidas condições propostas pela Ré foram transmitidas aos potenciais compradores.
28. No dia 16/02/2002, pelas 15:36h, o legal representante da Ré SUBMARINO DO RIO, LDA., LL endereçou um e-mail a II com os seguintes dizeres:
“Boa tarde,
Vamos acabar com esta never ending story.
Dos 13 dias para DD inicialmente pedidos, já passaram para praticamente o dobro.
Façam o que entenderem fazer, se até dia 15 de Março não tivermos o CPCV assinado com 20% de down payment, a propriedade ficará disponível.
Até lá o único compromisso que assumiremos é não aceitar qualquer proposta que possamos vir a receber.
Um ponto não discutível é que os 90 dias para escritura comecem a contar a partir da data da reserva.
Melhores Cumprimentos
LL
Submarino do Rio Lda.”
Conforme melhor resulta do Documento 8 junto com a PI.
29. Perante a comunicação acima referida e a aceitação da proposta por parte dos interessados angariados AA e BB, a Autora remeteu, o documento de reserva dos imóveis para LL da Ré, que foi devolvido pelos legais representantes da R., devidamente assinado, no dia 17 de fevereiro de 2022 (Cfr. Documentos 9 e 10, juntos com a PI).
30. O acordo de reserva foi igualmente assinado por AA e BB, tendo estes liquidado uma quantia de 10.000,00 € (dez mil euros) nos termos acordados, pelo que dúvidas não subsistem da intenção de compra e da intenção de venda firmadas (v. Documento 9)
31. O referido acordo previa:
- venda dos imóveis pelo preço final de 3.520.000,00 €
- valor de reserva de 10.000,00 €
- sinal a entregar aquando da celebração do contrato promessa de compra e venda no valor de 704.000,00 € (correspondente a 20% do preço global).
- valor a entregar aquando da celebração da escritura pública – 2.816.000,00 €
32. Consta do acordo de reserva que “Pelo presente Acordo de Reserva o Cliente declara à proprietária para os devidos efeitos que é sua intenção adquirir o prédio urbano infra melhor identificado, e, por sua vez, com a consequente aceitação do presente acordo de reserva a proprietária obriga-se a assinar o contrato promessa de compra e venda nos termos negociais abaixo identificados.
Caso, por motivo de inconformidade técnica ou legal do imóvel verificada durante o processo de due dilligence, o contrato promessa não se venha a concretizar até 15 de Março de 2022 (“período de reserva”), este deverá ser considerado nulo e o montante pago a título de reserva será devolvido na sua totalidade ao cliente sem que a esse valor seja acrescido qualquer montante a título de penalizações e/ou juros. Enquanto o presente acordo de reserva se mantiver em vigor, tanto a sociedade mediadora que detém a angariação do imóvel como a proprietária obrigam-se a não levar a cabo qualquer tipo de negociação com vista à venda da referida futura fração autónoma objecto do presente Acordo de Reserva a terceiro. A proprietária reconhece que, durante o período de reserva, serão realizadas diligências técnicas ao imóvel, bem como processo de pré aprovação de financiamento bancário, disponibilizando o acesso ao imóvel.”
33. Estando o acordo de reserva assinado, a Autora retirou os anúncios dos imóveis do site.
34. Decorre do ponto 2.2 do Acordo de Reserva, assinado pelos legais representantes da R. e pelos interessados AA e BB que o valor da reserva foi creditado na empresa “MM – Mediação Imobiliária, Lda”.
35.
No dia 22 de fevereiro de 2022, foi realizada nova visita aos imóveis, no âmbito da qual estiveram presentes os interessados angariados pela Autora, AA e BB, acompanhados dos consultores imobiliários FF e EE, bem como do funcionário da Ré, GG
– facto alterado nos termos que constam infra.
36. Em virtude do interesse demonstrado pelos potenciais compradores AA e BB, foi-lhes enviada toda a documentação actualizada e necessária à celebração do contrato-promessa de compra e venda fornecida pela R..
37. Os interessados AA e BB contrataram serviços de engenharia e manutenção de património da ..Manutenção de Patrimónios, Lda.., com o aconselhamento da Autora, tendo sido realizada uma vistoria técnica a todos os edifícios da propriedade e respetivas infraestruturas no dia 27 de fevereiro, com o que os interessados despenderam €1.272,00€ (Cfr. Documento 11, junto com a PI).
38. Aquando da realização da vistoria técnica referida em 34 foi constatada por OO engenheiro da ..Manutenção de Patrimónios, Lda.. a existência de desconformidades entre o construído nos imóveis e o legalizado, nomeadamente quanto à casa de hóspedes (Guest house) que não estava legalizada.
39. Os interessados angariados, AA e BB, mantiveram apesar disso o interesse na propriedade, o que foi expressamente manifestado à angariadora/ Consultora Imobiliária EE, e solicitaram através da mesma à Autora uma nova visita para o dia 28 de fevereiro de 2022 a fim de serem analisadas as desconformidades detectadas pelo engenheiro referido em 38.
40. No dia 28 de Fevereiro de 2022, pelas 10:28, data agendada para a visita, o legal representante da Ré LL, envia e-mail para II ...”, com o conhecimento de para EE ...”, ... e ... com o seguinte teor “.. Bom dia II
Venho comunicar que a venda deste nosso imóvel se encontra suspensa pelas razões que apontei no meu telefonema de há pouco.
Agradeço o seu empenho e profissionalismo na condução do processo de venda e espero pode continuar a contar consigo no futuro.”(conforme melhor resulta do Documento 12, que ao diante se junta e cujo teor se dá por integralmente reproduzido).
41. A suspensão foi confirmada pelo email do mesmo dia 28 de Fevereiro de 2022 pelas 12h15m de LL para II ...”, com o conhecimento de para EE ...”, ... e ...” “a decisão de suspender a venda foi bastante ponderada e não é, por agora, reversível…”.
42. O legal representante da Ré LL, comunicou a suspensão das diligências de venda por ter decidido avançar para a legalização de construções ainda não legalizadas existentes nos imóveis.
43. No dia 28 de março de 2022, a II reencaminhou para José Salazar Rodrigues da Ré uma mensagem remetida pelos interessados na compra do imóvel, conforme Doc. nº 1 junto com a contestação.
Boa tarde OO e PP,
Recebi a seguinte mensagem que foi mandada à EE.
Refere-se à due-diligence feita à Casa....
“We would like you to communicate the below and need an answer by Wednesday.
Please tell the owner of Casa... that we are aware that there are major discrepancies in the documents. An architect has confirmed with the city hall of Cascais that due to the location of the property inside the boundaries of the national park, it will be impossible for the guest house to be legalized. With this in mind, the property is a high-risk investment and unlikely to ever find a buyer who would not do their due diligence for a property of this value. There is no doubt that they will discover the same issues that we discovered.
Please tell the owner that before we move forwards with another property in Malveira da Serra, we are making a final cash offer of 2.300.000 euros for Casa..., and need an answer from him by Wednesday afternoon.”
Ele paga a totalidade em 30 dias e não vai pedir empréstimo”.
44. A proposta de €2.300.000 foi rejeitada pela Ré, como resulta do email junto como Doc. nº 2 com a contestação.
45. O montante de 10.000,00 €, pago com a reserva dos imóveis, acabou por ser devolvido pela Remax Valor MM Imobiliária, Lda aos interessados angariados, no dia 03/03/2022, dada a suspensão da venda dos imóveis comunicada pela R.. (Cfr. Documento 9 e Documento 13, juntos com a PI).
46. Foi no âmbito das relações comerciais existentes entre a Autora e a Ré, e no seguimento da publicitação realizada pela Autora, na qualidade de mediadora que os compradores AA e BB obtiveram conhecimento da promoção da venda dos imóveis supra identificados.
47.
Foi, também, através da Autora que os compradores obtiveram as informações necessárias e atinentes às características dos imóveis, bem como às respetivas condições de venda
– facto alterado nos termos que constam infra.
48. O preço de 3.520.000,00 €, que foi negociado e que consta do acordo de reserva foi obtido com o acompanhamento e em colaboração com a Autora, na qualidade de mediadora.
49. A R. nunca enviou carta registada com AR à A. com vista à denuncia do contrato de mediação imobiliária celebrado com a Autora, nos termos previstos na Cláusula 8.ª do contrato de mediação.
50. Nem foi declarada expressamente pela R. junto da A. a resolução do contrato de mediação imobiliária.
51.
Como AA e BB continuavam interessados na aquisição dos imóveis referidos em 2. e 3. conhecidos por “Casa...”, sem que a tal obstassem as desconformidades com as planimetrias da Câmara Municipal de Cascais, e tinham pressa em adquirir um imóvel, dado que teriam que sair do imóvel que tinham arrendado, em meados de março de 2022, numa visita a uma outra casa indicada pela EE, conheceram DD, de Cascais, e acabaram por entrar em contacto com ela e perguntar a esta se sabia se a Casa... estava no mercado, ao que esta assegurou que sim, após confirmação junto de QQ da JJ - Mediação Imobiliária, Lda., que usa a designação comercial “IMOJOY”
– facto alterado nos termos que constam infra.
52. JJ - Mediação Imobiliária, Lda., que usa a designação comercial “IMOJOY”, em Abril de 2022 entrou em contacto com a R., com quem tinha formalizado o contrato de mediação referido em 15. informando-a que em parceria com a Remax Collection Villa, de Cascais, representada por DD, tinham interessados na compra dos imóveis referidos em 2 e 3 que identificou como sendo AA e BB que já tinham visitado o imóvel com outra mediadora.
53. Foi, então, marcada reunião em Abril de 2022 nos imóveis conhecidos por “Casa...”, em que estiveram presentes os interessados AA e BB, a advogada destes, a DD, o LL, a KK e QQ da JJ -Mediação Imobiliária, Lda.,
54. Os interessados AA e BB referiram na reunião que já tinham visitados os imóveis com outro agente e que já tinham negociado a compra com a R. através de outro agente, mas que, em face da suspensão da venda pela R. não chegaram a concretizar a aquisição, mantendo os mesmos contudo o interesse no negócio pelo preço de € 3.520.000,00 (três milhões quinhentos e vinte mil euros).
55. AA e BB já sabiam, das negociações com vista à aquisição dos imóveis referidos em 2 e 3, encetadas com a A., que o preço apresentado na reunião pela R. de € 3.520.000,00 (três milhões quinhentos e vinte mil euros) era um preço inegociável, tendo aqueles nessa reunião reafirmado a vontade de adquirir os imóveis pelo preço de € 3.520.000,00 já constante do acordo de reserva referido no doc. 9 junto com a PI.
56. No dia 12 de maio de 2022 AA e BB celebraram com a R. o contrato-promessa de compra e venda junto como Doc. nº 3 com a contestação.
57. A Ré celebrou, a 3 de junho de 2022, escritura pública de compra e venda dos supra mencionados imóveis com os interessados AA e BB, angariados pela Autora no âmbito das ações de promoção imobiliária por si realizadas (vide Documento 14 junto com a PI).
58. Consta da escritura de compra e venda que “…neste negócio jurídico houve intervenção de mediador imobiliário, com a firma JJ - Mediação Imobiliária, Lda.…”
59. As cadernetas prediais referentes aos imóveis mencionados na escritura pública: cadernetas prediais são as mesmas que foram enviadas à Autora pela Ré.
60. As cadernetas prediais foram consultadas e impressas em 14.02.2022 (Cfr. Documento 14).
61. A licença de utilização n.º ..., emitida em 10.01.1962 pela Câmara Municipal de Cascais (Cfr. Documento 14).
62. Na sequência da celebração da escritura pública, pela Ap 5396 de 2022/06/03 foi registada a aquisição dos prédios referidos em 2 e 3 a favor dos interessados compradores AA e BB.
63. Foi com surpresa que a Autora foi informada, a 18 de julho de 2022, que a consultora imobiliária EE havia rececionado uma mensagem remetida pelos interessados por si angariados, AA e BB,
64. Na qual estes comunicaram que havia sido formalizada a 3 de junho de 2022 a escritura pública de compra e venda dos imóveis entre estes e a Ré, pelo preço de 3.520.000,00 € cfr. Documento e respectiva tradução juntos aos autos).
65. A A. não teve conhecimento da existência do contrato de mediação imobiliária referido em 15.
66.
Os compradores que figuram na escritura pública de compra e venda foram angariados pela A., em parceria com a EE
– item eliminado nos termos que constam infra.
67. A Ré não celebrou com a empresa “MM - Mediação Imobiliária, Lda.” mencionada no acordo de reserva qualquer contrato de mediação imobiliária.
68. A R. pagou à JJ - Mediação Imobiliária, Lda. a comissão de 4,2% mais IVA à taxa de 23% - € 181.843,20 (cento e oitenta e um mil oitocentos e quarenta e três euros e vinte cêntimos),
69. A qual foi transferida para a conta bancária da empresa de mediação no dia 7 de junho de 2022, conforme Doc. nº 4 junto com a contestação.
70. A fatura e recibo da comissão paga referida em 68, respetivamente correspondem aos Docs. nº 5, 6 e 7juntos com a contestação.
71. A R. até à data não pagou qualquer quantia à A. a título remuneração prevista no contrato de mediação junto como doc. 6 com a PI.
[
é aditado o facto 72 nos termos que constam infra
].
*
Foram considerados não provados os seguintes factos:
a. a Autora remeteu a 22 de julho de 2022, por intermédio dos seus mandatários, uma carta registada com aviso de receção dirigida à Ré, no âmbito da qual solicitava a regularização da situação e o pagamento da remuneração acordada entre as partes.
b. Os interlocutores da Autora apresentaram-se sem grandes explicações ou precisões quanto a que entidade seria a sua empregadora ou quem lhe pagava a retribuição pela prestação de serviços.
c. o Acordo de Reserva (Doc. nº 9 da PI) não tinha correspondido a uma vontade firme de aquisição pelos potenciais compradores dos imóveis à Ré.
d. Este Acordo teve apenas como propósito fossem facultados aos potenciais compradores quer os documentos necessários para a realização de análise da situação jurídica do estado dos imóveis – vulgo “Due Diligence” –, quer para que os seus consultores de engenharia avaliassem o local e construções.
e. Previamente à assinatura deste Acordo, já as relações entre Ré e Autora estavam bastante periclitantes, com discussões incessantes por parte da Autora das condições do negócio, especialmente no que diz respeito aos prazos e condições de pagamento.
f. Estas relações acabam por ter uma quebra definitiva após os potenciais compradores terem levando um número considerável de questões referentes a desconformidades registais dos imóveis, as quais eram já conhecidas pela Autora, que não cuidou de as introduzir devidamente a esses interessados, como era sua obrigação.
g. a Ré decidiu que mais valia retirar a casa do mercado, suspendendo a sua venda até ter regularizado as questões pendentes, dando assim por concluída a sua relação com a Autora.
h. A A. ignorou a informação que já lhe havia sido transmitida pela Ré quanto às irregularidades nos imóveis;
i. a Autora não transmitiu aos potenciais compradores as irregularidades patentes nos imóveis, como não lhes comunicou que a vendedora não estaria disposta a aceitar uma redução de preço que veio a revelar-se inibidora da concretização do negócio visado.
Fundamentação jurídica
A.
Da alteração da decisão relativa à matéria de facto
Pretende a recorrente impugnar a decisão relativa aos factos provados e não provados, designadamente quanto aos pontos 35, 47, 51 e 66 dos factos provados, f), g), h) e i) dos factos não provados, que considera incorretamente decididos. Pretende ainda que se inclua na factualidade provada um facto que considera resultar da instrução da causa.
O ónus de impugnação previsto no art.º 640º/1, do CPC exige que o recorrente: (1) especifique os meios probatórios que determinariam decisão diversa da tomada em primeira instância para cada um dos factos que pretende impugnar, não sendo suficiente a genérica indicação dos ditos meios de prova (isto é, desacompanhada do reporte a cada um dos facto sindicados, e antes oferecida para a totalidade da matéria de facto sob recurso); (2) a decisão que deve ser proferida sobre cada um dos factos impugnados, esclarecendo sobre o seu exato teor (isto é, a exata redação que pretende para cada um deles); e (3) a indicação das passagens da gravação em que funda a sua sindicância, de novo para cada um dos depoimentos em causa.
Verifica-se que a recorrente cumpriu os ónus de impugnação, pelo que há que apreciar da pretendia alteração da decisão relativa à matéria de facto.
Os factos são os seguintes:
Dos factos provados:
35. No dia 22 de fevereiro de 2022, foi realizada nova visita aos imóveis, no âmbito da qual estiveram presentes os interessados angariados pela Autora, AA e BB, acompanhados dos consultores imobiliários FF e EE, bem como do funcionário da Ré, GG.
47. Foi, também, através da Autora que os compradores obtiveram as informações necessárias e atinentes às características dos imóveis, bem como às respetivas condições de venda.
51. Como AA e BB continuavam interessados na aquisição dos imóveis referidos em 2. e 3. conhecidos por “Casa...”, sem que a tal obstassem as desconformidades com as planimetrias da Câmara Municipal de Cascais, e tinham pressa em adquirir um imóvel, dado que teriam que sair do imóvel que tinham arrendado, em meados de março de 2022, numa visita a uma outra casa indicada pela EE, conheceram DD, de Cascais, e acabaram por entrar em contacto com ela e perguntar a esta se sabia se a Casa... estava no mercado, ao que esta assegurou que sim, após confirmação junto de QQ da JJ - Mediação Imobiliária, Lda., que usa a designação comercial “IMOJOY”.
66. Os compradores que figuram na escritura pública de compra e venda foram angariados pela A., em parceria com a EE.
Dos factos não provados
:
f. Estas relações acabam por ter uma quebra definitiva após os potenciais compradores terem levando um número considerável de questões referentes a desconformidades registais dos imóveis, as quais eram já conhecidas pela Autora, que não cuidou de as introduzir devidamente a esses interessados, como era sua obrigação.
g. a Ré decidiu que mais valia retirar a casa do mercado, suspendendo a sua venda até ter regularizado as questões pendentes, dando assim por concluída a sua relação com a Autora.
h. A A. ignorou a informação que já lhe havia sido transmitida pela Ré quanto às irregularidades nos imóveis;
i. a Autora não transmitiu aos potenciais compradores as irregularidades patentes nos imóveis, como não lhes comunicou que a vendedora não estaria disposta a aceitar uma redução de preço que veio a revelar-se inibidora da concretização do negócio visado.
Quanto ao facto que entendem resultar da instrução da causa, é o seguinte:
“
AA e BB começaram, por iniciativa própria, a consultar outros agentes imobiliários, tendo decidido terminar definitivamente a sua relação comercial com EE, atenta a indisponibilidade manifestada pela mesma
”.
*
Apreciando e decidindo.
Dos factos provados
Quanto ao facto 35, a própria recorrida aceita que tal facto tem de ser alterado, dizendo que a referência à presença de FF e AA se deveu a lapso. Assim, tal facto passará a ter a redação proposta pela recorrente.
Quanto ao facto 47 há que eliminar a expressão “necessárias”, pois é também manifestamente valorativa/conclusiva, passando a ter a seguinte redação: “
foi, também, através da Autora que os compradores obtiveram informações atinentes às características dos imóveis, bem como às respetivas condições de venda
”. E com esta formulação o facto deve manter-se pois da prova produzida resulta que a recorrida facultou aos interessados BB e AA informações acerca do imóvel e das condições de pagamento.
Quanto ao facto 51, dos depoimentos de AA, BB e DD apenas é possível apurar de forma consistente que foram os dois primeiros que tomaram a iniciativa de contactar a terceira. E isso é que interessa para o caso. É completamente irrelevante apurar se BB e AA já conheciam DD antes do contacto que conduziu à conclusão do negócio nos termos em que veio a ser efetuado e se a conheciam por via da visita a uma casa ou por via de um site de anúncios de casas. O aspeto fundamental do facto em questão é o de a iniciativa do contacto com DD - para apurar se a Casa... ainda estava no mercado - ter partido daqueles interessados.
Assim, o facto 51 passará a ter a seguinte redação:
51. Como AA e BB continuavam interessados na aquisição dos imóveis referidos em 2. e 3. conhecidos por “Casa...”, sem que a tal obstassem as desconformidades com as planimetrias da Câmara Municipal de Cascais, e tinham pressa em adquirir um imóvel, dado que teriam que sair do imóvel que tinham arrendado, em meados de março de 2022, contactaram DD, de Cascais, com vista a apurar se a Casa... estava no mercado, ao que esta assegurou que sim, após confirmação junto de QQ da JJ - Mediação Imobiliária, Lda., que usa a designação comercial “IMOJOY”.
O facto 66 tem de ser eliminado do elenco dos factos provados na medida em que, tal como os acima referidos, se trata de algo manifestamente
conclusivo
, para além de ser irrelevante. O que interessa são os factos concretos de onde decorre toda a atividade levada a efeito pela autora-recorrida no âmbito do contrato de mediação, bem como a intervenção de EE nessa relação contratual.
Dos factos não provados
Quanto aos factos não provados, eles na realidade reportam-se a três questões factuais:
- à cessação da relação contratual com a autora-recorrida;
- à retirada da casa do mercado;
- à não comunicação pela autora-recorrida aos interessados de informações relativas às “irregularidades” do imóvel e à não aceitação de propostas muito abaixo do valor pedido.
Quanto à cessação da relação contratual com a autora, resulta ela inequívoca do teor do mail de 29 de março de 2022, no qual a ré-recorrente diz que “informo que por claras razões de incompatibilidade comunicacional, vimos vedar à Remax a apresentação e comercialização da nossa propriedade”. Aliás, o teor deste mail está referido no ponto 44 dos facto provados, mas apenas quanto à rejeição da proposta de 2.300.000€, não se percebendo da razão pela qual tal teor não foi transcrito nos factos provados como o foi o teor do mail enviado pela autora em 28 de março de 2022, que consta de forma integral do facto nº 43. Se este teor foi transcrito, a resposta ao mesmo também o deveria ter sido.
Assim, deve considerar-se provado o seguinte:
“
A ré, em resposta ao mail de 28.03.2022, respondeu por mail de 29.03.2022, no qual comunicou o seguinte:
«A resposta à proposta destes vossos clientes foi recusada há várias semanas pelo que não entendo de todo esta nova investida a roçar a parvoíce…
Dito isto e levando em conta o teor deste novo mail, reitero a não aceitação da mesma e informo que por claras razões de incompatibilidade comunicacional, vimos vedar à Remax a apresentação e comercialização da nossa propriedade»
”.
Quanto à retirada do imóvel do mercado, consideramos que apenas se pode dar como provado o que já consta dos factos provados, ou seja, que a venda foi suspensa, nos termos que constam do facto 42. Resulta da prova produzida, bem como dos mais factos provados, em especial os relativos aos contactos que houve e que levaram à concretização do negócio de venda, que o imóvel nunca foi retirado do mercado, pois a intenção de venda por parte da ré nunca deixou de existir.
Em relação à não comunicação pela autora-recorrida de informações relativas às “irregularidades” do imóvel e à não aceitação de proposta muito abaixo do valor pedido, temos desde logo que na contestação a ré apenas se referiu a irregularidades registais, e mesmo quanto a essas não alegou a quais em concreto se estava a referir e quando é que as comunicou à autora. A alegação efetuada na contestação no que a este aspeto concerne foi demasiado vaga e levada a efeito a propósito da quebra das relações contratuais (cfr. art.º 17 da contestação). Não tendo sido efetuada uma concretização das irregularidades e quando ocorreu tal comunicação, a pretensão modificativa da recorrente tem de improceder. E a mera menção a “irregularidades” é conclusiva, não se sabendo se as mesmas se reportam às que foram detetadas na vistoria técnica efetuada a 27 de fevereiro.
Quanto à não comunicação respeitante à não aceitação de propostas de valor muito inferior ao preço pretendido, trata-se de facto que nem sequer foi alegado pela ré. Mas em todo o caso, o que importa verdadeiramente é o facto de ter sido apresentada a proposta de 2.300.000€, que foi rejeitada, sendo irrelevante apurar se a ré fez aquela comunicação. Até porque, no contexto que resulta do contrato de mediação, tal nem faz sentido, pois se ficou estabelecido um preço no contrato, e esse preço era certamente realista – pois de outro modo não se compreenderia a aceitação do contrato por parte da autora pelo valor de venda acordado - obviamente que esse preço seria o objetivo a alcançar.
Do facto que resulta da instrução da causa
Independentemente das questões que a invocação de tais factos em sede de recurso levantam, nomeadamente o de não ter existido no caso a possibilidade de contraditório, incluindo a nível probatório, na primeira instância, consideramos que o facto em causa não releva. Desde logo a recorrente refere uma “relação comercial” entre os compradores e a agente imobiliária que não se percebe, de todo, em que é que consiste. Da prova produzida resulta que os compradores AA e BB eram terceiros destinatários do negócio objeto do contrato de mediação celebrado entre a autora e a ré e nada mais do que isso. Entre o mediador e o terceiro destinatário não há qualquer vínculo contratual. Haverá uma relação informal da qual podem resultar direitos e obrigações, nos termos definidos pelo art.º 17º/1 da Lei nº 15/2013, de 08.02, mas nada mais do que isso. Não se pode afirmar que exista uma relação de natureza contratual ou quasi-contratual e muito menos que essa relação assuma a natureza de “comercial”. E, como tal, essa relação também não tem de ser cessada da forma efetiva, específica, definitiva que resulta da formulação do facto pretendida pela recorrente. Assim, temos desde logo que não existe prova nenhuma – sendo que tal resulta do alegado pela própria recorrente – de que tenha existido qualquer relação, e muito menos comercial, entre os compradores AA e BB e a agente imobiliária EE, nada havendo também que tenha terminado definitivamente entre eles. E o facto de aqueles terem consultado outros mediadores imobiliários é irrelevante face ao que já consta dos factos provados, nomeadamente do constante sob o nº 51, de onde resulta que o contacto com DD foi efetuado por iniciativa dos compradores AA e BB. E se outros mediadores foram consultados, não releva para o caso dos autos. Só os concretos contactos que conduziram à celebração do negócio em apreço é que são relevantes, sendo que também não existe prova de que outros mediadores foram consultados com vista à aquisição do imóvel que foi pertença da recorrente.
*
Em face do exposto, a pretendida alteração da decisão relativa à matéria de facto procede parcialmente nos seguintes termos:
- Factos
alterados
:
- facto 35:
No dia 22 de fevereiro de 2022, foi realizada nova visita aos imóveis, no âmbito da qual estiveram presentes AA, acompanhada da consultora imobiliária EE, bem como do funcionário da Ré, GG.
- facto 47:
Foi, também, através da Autora que os compradores obtiveram informações atinentes às características dos imóveis, bem como às respetivas condições de venda
.
- facto 51
Como AA e BB continuavam interessados na aquisição dos imóveis referidos em 2. e 3. conhecidos por “Casa...”, sem que a tal obstassem as desconformidades com as planimetrias da Câmara Municipal de Cascais, e tinham pressa em adquirir um imóvel, dado que teriam que sair do imóvel que tinham arrendado, em meados de março de 2022, contactaram DD, de Cascais, com vista a apurar se a Casa... estava no mercado, ao que esta assegurou que sim, após confirmação junto de QQ da JJ - Mediação Imobiliária, Lda., que usa a designação comercial “IMOJOY”.
- O facto 66 é
eliminado
.
- Factos
aditados
:
72
A ré, em resposta ao mail de 28.03.2022, respondeu por mail de 29.03.2022, no qual comunicou o seguinte:
«A resposta à proposta destes vossos clientes foi recusada há várias semanas pelo que não entendo de todo esta nova investida a roçar a parvoíce…
Dito isto e levando em conta o teor deste novo mail, reitero a não aceitação da mesma e informo que por claras razões de incompatibilidade comunicacional, vimos vedar à Remax a apresentação e comercialização da nossa propriedade».
*
B-
Da aplicação do Direito aos factos
Estando definidos os factos, há que proceder à respetiva aplicação do Direito.
O contrato de mediação imobiliária acha-se regulado pela Lei nº 15/2013, de 08.02, a qual entrou em vigor em 01.03.2013 (artigo 45º/1) e revogou o Decreto-Lei nº 211/2004, de 20.08. Tal diploma legal teve em vista a conformação com a disciplina constante do Decreto-Lei nº 92/2010, de 26/07, que transpôs para a ordem jurídica interna a Diretiva nº 2006/123/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2006, relativa aos serviços no mercado interno (artigo 1º/1).
Sobre o que seja mediação imobiliária diz-se no artigo 2º/1 que consiste na procura, por parte das empresas, em nome dos seus clientes, de destinatários para a realização de negócios que visem a constituição ou aquisição de direitos reais sobre bens imóveis, bem como a permuta, o trespasse ou o arrendamento dos mesmos ou a cessão de posições em contratos que tenham por objeto bens imóveis.
No caso dos autos não se levanta qualquer dúvida quanto ao facto de a autora e a ré terem celebrado um contrato de mediação imobiliária. A questão que se levanta é a de saber se a autora recorrente tem direito a receber a remuneração relativa à celebração do negócio que veio efetivamente a ser celebrado.
Relativamente à remuneração do mediador imobiliário, estabelece-se o artigo 19º/1 e 2 da Lei 15/2013 que:
1 — A remuneração da empresa é devida com a conclusão e perfeição do negócio visado pelo exercício da mediação ou, se tiver sido celebrado contrato-promessa e no contrato de mediação imobiliária estiver prevista uma remuneração à empresa nessa fase, é a mesma devida logo que tal celebração ocorra.
2 — É igualmente devida à empresa a remuneração acordada nos casos em que o negócio visado no contrato de mediação tenha sido celebrado em regime de exclusividade e não se concretize por causa imputável ao cliente proprietário ou arrendatário trespassante do bem imóvel
.
A decisão recorrida fundamentou da seguinte forma a conclusão de que assistia à autora recorrente o direito à comissão pretendida:
“
Ademais, para que se torne devida a remuneração acordada, não basta que o mediador tenha desenvolvido todos os esforços para a produção desse resultado, sendo ao invés necessário que esses esforços tenham conduzido à celebração do negócio visado e que o negócio assim celebrado tenha resultado directamente dessa actividade do mediador” (cfr. Maria de Fátima Ribeiro, O contrato de mediação e o direito do mediador à remuneração, Revista de Direito Comercial, págs. 223 e 224, disponível online).
Discute-se, a este respeito, se o contrato de mediação imobiliária configura uma obrigação de resultado, na medida em que o mediador obriga-se a causar certo resultado, resultado esse que define a prestação, pelo que apenas existe cumprimento se o resultado vier a ocorrer em consequência da actuação do mediador, ou uma obrigação de meios em que o devedor se obriga a tentar adequadamente causar o resultado, existindo cumprimento quando o tenha assim tentado, ainda que o resultado não se tenha produzido, ou se tenha produzido devido a factos estranhos à sua actuação.
In caso como remuneração pelos serviços prestados, foi expressamente acordado o pagamento de 4% sobre o preço pelo qual o negócio fosse efetivamente concretizado, acrescido de IVA à taxa legal aplicável, tal como estipulado na Cláusula 5.ª, n.º 2 do contrato de mediação imobiliária.
O referido valor remuneratório seria liquidado pela Ré 50% após a celebração do contrato-promessa e o remanescente de 50% na celebração da escritura ou conclusão do negócio (Cfr. n.º 3 da clausula 5.ª do contrato junto como Documento 6 com a PI).
No acórdão do STJ de 23-04-2020, Revista n.º 308/16.3T8PTM.E1.S2, disponível em www.stj.pt, foi sumariado que:
«(…) IV - No contrato de mediação imobiliária, a atividade do mediador consiste essencialmente na angariação de interessados para a celebração do negócio visado, podendo a obrigação assumida pelo mediador revestir a natureza de uma obrigação de resultado, se a obrigação do mediador consistir na obtenção de um interessado, ou de meios, se tal obrigação for apenas a de diligenciar no sentido de encontrar interessados no contrato desejado pelo cliente.
V - O cumprimento desta obrigação de obter/procurar interessado na realização do negócio visado pelo contrato de mediação, por si só, não atribui ao mediador o direito à remuneração contratualmente prevista, sendo necessário que a atividade do mediador tenha contribuído para a concretização do negócio em causa, ou seja, que se verifique um nexo causal entre a sua atividade e o contrato a final celebrado, aferindo-se o cumprimento do mediador pela existência desse nexo de causalidade adequada.
VI - Incumbe, assim, à mediadora, nos termos do art.º 342.º, n.º 1, do CC, o ónus de alegação e prova dos elementos constitutivos do direito à remuneração e do nexo de causalidade adequada entre a atividade do mediador e a celebração do negócio visado pelo cliente.»
É assim necessária a verificação cumulativa de três requisitos para que seja devida a remuneração: a actividade do mediador; a conclusão do contrato pretendido entre o comitente e um terceiro; um nexo de causalidade entre aquela actividade e a conclusão deste contrato.
No que se refere ao nexo de causalidade, é necessário “que a atividade do mediador tenha contribuído para essa celebração, ou seja, que se verifique um nexo entre a sua atividade e o contrato a final celebrado, aferindo-se o cumprimento do mediador pela existência desse nexo. A necessidade de um tal nexo decorre dos compromissos assumidos pelas partes no âmbito da relação contratual de mediação imobiliária e é incansavelmente lembrada pela jurisprudência. Tem por função afastar a retribuição quando o nexo causal não se estabelece, mas também mantê-la quando, após o seu estabelecimento, actos alheios ao comportamento do mediador conduzem à sua aparente quebra” (cfr. Higina Orvalho Castelo, O Contrato de Mediação, Almedina, pág. 410).
Assim, incumbia às partes cumprir as obrigações emergentes do contrato de mediação imobiliária, e no caso da A., cumprido por ela teria a mesma direito à remuneração fixada no contrato.
…
Decorre dos factos provados o cumprimento pela A. das obrigações decorrentes do contrato, sendo que não releva a antiguidade do contrato e a maioria as diligencias terem sido realizadas em 2021/2022, pois que enquanto o contrato não for denunciado, renova-se, tal como previsto no contrato e encontrava-se em vigor.
O negócio foi realizado com os interessados angariados pela autora, enquanto compradores, tendo a sua mediação sido causal do negócio celebrado.
Com efeito, resulta da matéria de facto provada ter a autora, no âmbito da promoção do imóvel que desenvolvia com o conhecimento e anuência da ré, tirado fotografias, publicitado o imóvel, promovido visitas aos imóveis com potenciais interessados na repectiva aquisição, assim angariando interessados em cumprimento das obrigações por si contratualmente assumidas, tendo estes apresentado uma propostas de aquisição que ficou a constar do acordo de reserva, correspondente ao preço pelo qual o imóvel foi efectivamente adquirido.
Ainda que os potenciais compradores tenham realizado uma proposta posterior mais baixa, o certo tal consubstancia proposta tentada, em sede de negociações, não ocorrendo qualquer quebra do nexo causal, porquanto só não prosseguiram as negociações porque a R. não quis, ao dizer que tinha a venda suspensa, o que nem sequer era verdadeiro, tanto mais, que tendo sido rejeitada e sabendo os interessados que a R. não desceria abaixo do preço constante do acordo de reserva, mantiveram o interesse na sua aquisição pelo preço constante do acordo de reserva, tanto que continuaram a tentar perceber se os imóveis designados por “Casa...” estariam à venda, não obstante a comunicada suspensão da venda, o que demonstra, sem margem para dúvidas, a continuidade do seu interesse na aquisição, que confirmou à mediadora DD, e logo foram reunir com a proprietária nos imóveis, com vista à concretização da aquisição pelo preço que já havia constado do acordado de reserva.
Verifica-se, assim, por um lado, demonstrado ter a autora cumprido as obrigações a que se obrigou no contrato de mediação imobiliária celebrado com a ré de conseguir um interessado para os imóveis, tendo sido quem angariou clientes, em parceria com EE, a quem iria pagar o serviço, dada a parceria o que é corrente no mercado, por outro os interessados adquiriram, efectivamente, os imóveis objecto do contrato de mediação, sendo o negócio realizado efectivamente o previsto no mesmo.
Resulta, assim, que o negócio celebrado apenas o foi em virtude da actividade desenvolvida pela autora que angariou os interessados que vieram, efectivamente, a celebrar o negócio, e diga-se de forma rápida e pelo preço constante do acordo de reserva, dadas as negociações e diligências feitas anteriormente pela A..
Efectivamente, para o seu preenchimento do nexo de causalidade que deve existir entre a atividade do mediador e a conclusão do negócio visado:
- Basta que o trabalho do mediador tenha contribuído/influído decisivamente para a conclusão do negócio, integrando-se a sua atividade de forma idoneamente determinante na cadeia de factos que deram lugar ao negócio;
- Não é, para tanto, necessário que a atividade do mediador seja a única causa determinante da realização do negócio pretendido pelo comitente;
- Muito menos é necessário que a intervenção do mediador constitua a causa exclusiva da celebração do negócio, pois pode haver outras concausas concorrentes, afirmação que se justifica na hipótese de intervenção de vários mediadores;
- Não se impõe que o mediador esteja presente até à conclusão do negócio, bastando ao mediador a prova do nexo causal entre a sua atividade e a conclusão do negócio; - Não obsta à existência do nexo causal terem os termos do contrato resultado, eventualmente, de negociações diretas entre os interessados que o mediador pôs em contacto; - Assim como não se exige que a atividade do mediador, com vista à consecução do negócio, seja contínua e ininterrupta;
- Bastará, para esse efeito, ter o mediador posto em contacto as partes interessadas, desde que tal atividade tenha influído/contribuído decisivamente para o negócio;
- Não é suficiente a mera identificação de potenciais interessados ou interessados meramente virtuais: os interessados têm que ser reais e efetivos;
- Pode subsistir o nexo causal apesar de ter havido uma interrupção temporária das negociações entre o principal e o potencial comprador ou no caso de ter lugar uma quebra aparente desse mesmo nexo, por atos alheios ao comportamento do mediador.
Neste sentido, Fernando Baptista de Oliveira, in Manual da Mediação Imobiliária, Almedina, 2019, págs. 139 a 14,
Conforme se sintetiza no sumário do recente acórdão da Relação de Lisboa de 22-02-2022, Apelação n.º 1020/19.7T8CSC.L1 -7, disponível em www.dgsi.pt:
«I - No contrato de mediação imobiliária celebrado em regime de não exclusividade (como foi o caso dos autos), o direito à remuneração por parte do mediador depende dos seguintes requisitos: o cumprimento da obrigação pelo mediador (diligenciar por encontrar interessado/encontrar interessado); a celebração pelo cliente do contrato desejado (ou, eventualmente, promessa dele); a existência de um nexo causal entre a actividade do mediador e o contrato celebrado.
II - Para que se verifique o nexo causal torna-se necessário que a actividade do mediador constitua uma das causas próximas e imediatas da conclusão do negócio; que essa actividade seja consciente e voluntária, direccionada para o cumprimento do contrato; a actividade não tem de ser contínua e ininterrupta, nem se exige que o mediador tenha participado em todos eventos da cadeia de factos que levaram à conclusão do negócio, podendo eventualmente ter apenas indicado o interessado ao vendedor, mas de tal modo que se possa dizer que conseguiu a adesão do terceiro à celebração do negócio, influindo assim na sua concretização.»
Neste sentido, citando Higina Castelo, escreve-se na fundamentação do mencionado aresto: «para que se verifique o direito à remuneração, o contrato que venha a ser celebrado pelo cliente e pelo terceiro angariado pelo mediador não tem de ser exactamente o mesmo que foi inicialmente projectado, embora deva existir uma correspondência económica, dando como exemplo mais frequente desta correspondência, mas não identidade, o do preço do contrato, referindo: “aquando da celebração do contrato de mediação, o cliente indica um preço para o pretendido contrato, especialmente quando se trata de um ato de disposição. Muitas vezes, durante a vida do contrato de mediação, e até perante a frustração da obtenção de um terceiro interessado pelo preço ambicionado, é frequente o cliente ir adaptando o preço, diminuindo-o se se tratar de disposição, ou aumentando-o no caso de aquisição. Conseguido um interessado, se o cliente vem a celebrar com ele contrato por valor diferente do perspetivado no contrato de mediação, em princípio, não poderá usar essa diferença para se escusar ao pagamento da remuneração do mediador.”
Lê-se também no Ac. da Relação de Guimarães de 02/11/2023, disponível em www.dgsi.pt que “…Importa ter em consideração que, em qualquer relação contratual e designadamente na de mediação – seja de exclusividade ou não – há que observar o princípio da boa-fé (art.º 762º/2, do C. Civil), há que ter um comportamento honesto, correto, leal e fiel, há que cumprir os deveres acessórios e laterais de conduta ao caso atinentes; pelo que as partes – mediador e comitente – devem prestar mutuamente todas as informações pertinentes e relevantes, devem manter-se leais, praticando todas as condutas que viabilizem o escopo do negócio.
No caso, apesar de estarmos perante um contrato de “não exclusividade”, resulta nos termos expostos que a autora/mediadora, fez diligências quanto à promoção do imóvel, publicitou-o, fez visitas ao imóvel e obteve/angariou interessados e designadamente, o interessado EMP03... e a sua namorada, facto que o réu não desconhecia, mormente quando com estes celebrou, sem conhecimento da autora, a escritura de compra e venda do imóvel, declarando não ter existido intervenção de mediador imobiliário no negócio.
Destarte, resulta evidenciado que os réu não podia deixar de ter consciência da atividade de mediador da autora e da forma como o interessado em questão chegou até si, através da angariação da autora, pelo que a celebração do negócio diretamente concretizado (apenas entre o réu e os ditos interessados) não pode afastar a relação de causa e efeito entre a provada atividade da autora e o negócio concretizado, aliás devidamente explicitada nos pontos 37 a 39 da factualidade provada, razão por que assiste à autora/apelada o direito ao pagamento, a título de retribuição/comissão, fixada no contrato de mediação imobiliária celebrado.
A considerar-se que apenas uma intervenção ao longo de todo o processo, nos casos de não exclusividade, permitiria à mediadora auferir a compensação contratualmente prevista, conduziria a que se estivessem a premiar expedientes ardilosos de molde a privar o mediador da devida retribuição a que na economia do contrato a parte outorgante/cliente se vinculou….”
Como tal, e face às circunstâncias concretas do caso, em que ficou demonstrado ter sido a autora a angariar os interessados na aquisição do imóvel, fruto da sua actividade de mediação, em parceria com EE de outra mediadora, e atenta a mencionada proximidade com a realização do negócio visado e a identidade do preço acordado no seguimento das prolongadas negociações promovidas pela autora.
Dispõe o art.º 406.º, n.º 1 do CC, que «o contrato deve ser pontualmente cumprido», aqui se consagrando o princípio da pontualidade, enquanto vector fundamental em matéria de cumprimento das obrigações.
E, este princípio, consagra a exigência de uma correspondência integral, em todos os aspectos (e não apenas no aspecto temporal, como o nome do princípio poderia fazer supor), entre a prestação efectivamente realizada e aquela a que o devedor se encontra vinculado.
Sem a referida correspondência integral, verifica-se uma situação de incumprimento ou de cumprimento defeituoso.
Por seu turno, havendo incumprimento, a consequência do mesmo é a constituição do devedor em responsabilidade obrigacional pelos danos causados ao credor.
Determina o art.º 798.º do CC que «o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor».
Com base no normativo citado, são, pois, pressupostos da responsabilidade obrigacional ou contratual: o facto voluntário, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Assim, e como primeiro pressuposto, tem-se o facto voluntário do agente, enquanto comportamento ou conduta dominável pela vontade daquele, que lhe possa ser imputada em virtude de estar sob o controlo da sua vontade.
A ilicitude corresponde à violação da obrigação, através da não execução pelo devedor, da prestação a que estava obrigado, nos precisos termos em que o estava.
Essa não execução da prestação tem ainda de ser imputável ao devedor a título de culpa (nas suas modalidades de dolo ou negligência), ou seja, tem de lhe ser pessoalmente censurável o facto de não ter adoptado o comportamento devido. E, a culpa do devedor presume-se, nos termos do art.º 799.º do CC..
Vistos os factos provados e não provados, quem incumpriu o contrato foi a R., ao não pagar a remuneração à A. não obstante o cumprimento por esta do contrato.
Face ao exposto, entende-se como demonstrada a prestação da autora e a verificação do nexo de causalidade entre essa actividade traduzida na angariação dos clientes e o negócio que veio a ser concretizado.
In caso como remuneração pelos serviços prestados, foi expressamente acordado o pagamento de 4% sobre o preço pelo qual o negócio fosse efetivamente concretizado, tal como estipulado na Cláusula 5.ª, n.º 2 do contrato de mediação imobiliária e não de 4,2%.
Termos em que deverá a presente acção ser julgada parcialmente procedente e a ré condenada a pagar o valor da remuneração acordado no contrato de mediação correspondente a 4% do preço do negócio efectivamente concretizado no valor de 140 800,00€, acrescido de juros
”.
Consideramos que a decisão recorrida está bem fundamentada no que respeita à
descrição do regime jurídico
, com indicação de doutrina e a jurisprudência que respeitam à questão em causa e que é a de saber
em que termos tem o mediador imobiliário direito à remuneração, vulgo comissão, pela atividade que desenvolveu em cumprimento do contrato de mediação
.
Efetivamente, a doutrina e a jurisprudência fazem apelo à verificação de um
nexo de causalidade adequada
entre a atividade de mediação e a celebração do contrato visado, devendo o mediador alegar e provar, na ação que intenta com vista a obter o pagamento da remuneração, que realizou os atos necessários e determinantes para a concretização do negócio, em especial nos casos em que, como no caso
sub juditio
, está afastada a presunção que pode resultar do facto de ter gozado do regime de exclusividade.
Maria de Fátima Ribeiro
4
entende que “
a verificação da existência de um nexo de causalidade entre a actividade desenvolvida pelo mediador e a conclusão do contrato parece ser o requisito que mais dúvidas coloca, quando de trata de determinar a existência do direito do mediador à remuneração.
Desde logo, cabe apurar em que consiste e como se identifica esse nexo causal. O critério determinante deverá ser o da ligação psicológica entre a actividade do mediador e a vontade de o terceiro concluir um contrato com o comitente - e a afirmação dessa ligação não deve ser posta em causa pelo lapso temporal entretanto decorrido entre o exercício da actividade e a conclusão do contrato, nem pelos factos ocorridos nesse período de tempo, v. g., a intervenção de um novo mediador.
Cabe salientar que não está em causa o contributo do mediador para a formação da vontade do comitente. Ou seja, o facto de o mediador ter aconselhado o comitente, determinando a celebração do contrato, não é suficiente para fazer nascer o direito à remuneração; para tal, será sempre necessário que a vontade do terceiro tenha sido determinada pela actuação do mediador.
Salienta-se que este entendimento não é, contudo, pacífico: para alguns Autores, a mera indicação de um terceiro interessado na celebração do negócio em causa - que venha, efectivamente, a celebrar o negócio -, nos termos pretendidos, pode justificar o direito à remuneração, a menos que do contrato se retire que o mediador se obrigou a negociar o contrato pretendido pelo comitente. Parece é que, neste caso, o mediador deverá sempre estabelecer o contacto entre o comitente e o terceiro interessado [“pôr em contacto” as partes do eventual futuro negócio], para que, depois, estes prossigam eventualmente as necessárias negociações.
Dada a essencialidade da verificação deste nexo causal entre a actividade do mediador e a conclusão do negócio para a constituição do direito à remuneração do mediador, este não terá direito à remuneração se o negócio pretendido pelo comitente vier a ser concluído, mas com um terceiro que não foi “angariado” pelo mediador, não tendo a respectiva actividade de mediação sido causal na conclusão deste negócio [de modo a integrar-se de forma idoneamente determinada na cadeia dos factos que lhe deram origem. E é, naturalmente, ao mediador que cabe fazer a prova deste facto, por se tratar de um facto constitutivo do seu direito”
.
E finalmente, temos a nossa mais alta instância judicial, o STJ, que no acórdão de 23.04.2020
5
, decidiu o seguinte, assim sumariado:
“IV - No contrato de mediação imobiliária, a atividade do mediador consiste essencialmente na angariação de interessados para a celebração do negócio visado, podendo a obrigação assumida pelo mediador revestir a natureza de uma obrigação de resultado, se a obrigação do mediador consistir na obtenção de um interessado, ou de meios, se tal obrigação for apenas a de diligenciar no sentido de encontrar interessados no contrato desejado pelo cliente.
V - O cumprimento desta obrigação de obter/procurar interessado na realização do negócio visado pelo contrato de mediação, por si só, não atribui ao mediador o direito à remuneração contratualmente prevista, sendo necessário que a atividade do mediador tenha contribuído para a concretização do negócio em causa, ou seja, que se verifique um nexo causal entre a sua atividade e o contrato a final celebrado, aferindo-se o cumprimento do mediador pela existência desse nexo de causalidade adequada.
VI - Incumbe, assim, à mediadora, nos termos do art.º 342.º, n.º 1, do CC, o ónus de alegação e prova dos elementos constitutivos do direito à remuneração e do nexo de causalidade adequada entre a atividade do mediador e a celebração do negócio visado pelo cliente”.
Como se constata do acima citado, a doutrina e a jurisprudência recorrem, para determinar o direito do mediador à remuneração acordada,
à teoria da causalidade adequada para estabelecer a relação entre a atividade da mediadora e o negócio que, a final, foi efetivamente celebrado
. Tal teoria, que é essencialmente do âmbito do direito penal e, no âmbito do direito civil, da responsabilidade civil, tem várias formulações doutrinárias, mas que podemos definir da seguinte forma:
existirá nexo de causalidade adequada entre um evento e a respetiva consequência danosa se os danos forem previsíveis para qualquer pessoa de conhecimentos médios colocada na situação ex ante à ação, segundo o juízo de prognose póstuma
. Aplicando essa teoria à atividade de mediação imobiliária, para que haja tal nexo de causalidade tem de haver efetiva atividade da mediadora e essa atividade, globalmente considerada, tem de ser causalmente adequada ao resultado que se veio a verificar, no sentido de esse resultado ser previsível segundo o referido juízo de prognose póstuma.
Mas esta teoria, que formulamos de maneira genérica, tem várias nuances, nomeadamente quando se verifica o que se designa por
quebra do nexo de causalidade
. Essa situação ocorre quando estamos perante um evento que possa ser causalmente adequado a um determinado resultado, mas, por circunstância posteriores, imprevisíveis e alheias ao autor do evento,
esse resultado vem a verificar-se em virtude de uma outra causa
. É o caso típico de alguém que dá uma facada a outrem, este é transportado para o hospital numa ambulância e, nesse percurso, ocorre um acidente que provoca ferimentos na pessoa que havia sido agredida, os quais vêm a determinar a sua morte. Nesta situação, mesmo que a facada seja causa adequada da morte,
o resultado não é imputável ao seu autor
.
Como se referiu supra, no contrato de mediação e para determinar o direito à remuneração,
é necessário que a atividade do mediador seja causa adequada do negócio que, no final, vier a ser efetivamente concretizado
.
No caso concreto temos desde logo dois aspetos fundamentais a considerar e que são muito importantes.
O primeiro é que a iniciativa de retomar o contacto com vista à aquisição do imóvel em apreço
partiu dos interessados compradores
. Ou seja, não foi a ré que, depois de romper as relações com a autora, contactou aqueles interessados para retomar as negociações com vista à concretização do negócio.
E o segundo decorre do facto de os interessados compradores terem contactado para tal finalidade uma outra imobiliária que também estava a intermediar a venda, tendo o negócio sido concluído com a intervenção dessa imobiliária,
a quem foi paga a comissão
.
Quer isto dizer que não estamos na situação, que ocorre algumas vezes (e que é aquela que a lei,
prima facie
, pretende evitar), em que os vendedores, a fim de não pagarem qualquer comissão, contactam diretamente os interessados angariados pela mediadora a fim de celebrarem o negócio diretamente com eles para desse modo se furtarem ao pagamento da comissão. Não foi, de todo, isso que aconteceu.
No caso em apreço temos que a autora desenvolveu toda uma atividade tendente à celebração do negócio com as pessoas com quem o mesmo veio a ser concretizado. No entanto, consideramos que
ocorreram factos relevantes que levam a considerar que existiu uma quebra do nexo de causalidade entre a atividade da autora e o negócio que foi celebrado, que leva necessariamente a que tenhamos de concluir, ao contrário do que se fez na decisão recorrida,
que o negócio não pode ser imputado à atividade da autora
.
Para além das duas circunstâncias acima referidas – a retoma das negociações foi iniciativa dos interessados compradores e foi paga a comissão devida à mediadora – existe um aspeto fundamental que determina tal quebra do nexo de causalidade e que é o facto de
as negociações promovidas pela autora se terem gorado
, pois as partes não chegaram a acordo quanto ao preço. Ou, melhor, dizendo, a proposta final, definitiva, que veio a ser obtida pela atividade autora – e que era de 2.300.000€ - foi rejeitada pela ré de forma absolutamente inequívoca, como se comprova pelo teor do mail que consta supra do facto nº 72. O negócio efetivamente concluído foi pelo preço de 3.520.000€, ou seja, mais
1.220.000€
do que o valor obtido pela autora, o que é um montante obviamente muito substancial.
É verdade que esse valor já tinha sido abordado em sede de negociações promovidas pela autora. No entanto, por via das questões surgidas após a vistoria técnica ao imóvel, tal valor foi colocado de parte de forma definitiva, não tendo a autora conseguido que os interessados apresentassem outra proposta. Aliás, a autora não só não conseguiu melhor proposta,
como nem sequer fez o mínimo esforço para tal finalidade
.
A definitividade do valor de 2.300.000€ resultou da própria atividade da autora
.
O regresso ao valor de 3.520.000€ não foi, de todo, imputável à autora.
Foi desde logo desde logo imputável aos próprios interessados compradores, que decidiram de
motu proprio
retomar as negociações com vista à aquisição do imóvel e decidiram também fazê-lo por via de outra imobiliária e não pela autora. E foi por via destas circunstâncias que o negócio se concluiu por um valor muito superior aquele que a autora havia conseguido.
Como vemos, existiram circunstâncias relevantíssimas que levaram à conclusão do negócio pela forma como ele veio a ser efetivamente celebrado. Faltou à autora aquele rasgo negocial que permitiria o consenso entre as partes, em especial a obtenção de um valor mais adequado aquele que era a expectativa da ré, que, afinal, era a sua cliente e era quem lhe iria pagar a comissão. É que, em face dos factos provados, parece que a determinada altura, nomeadamente após a vistoria técnica,
a autora estava a favorecer mais a parte compradora, procurando convencer a ré a aceitar uma redução muito substancial do preço de forma a favorecer o interesse dos compradores em detrimento da sua cliente
. É claramente isso que se extrai do mail datado de 28 de março de 2022 (facto 43), em que a autora se limita a encaminhar um mail que recebeu dos interessados compradores, com a tal proposta de 2.300.000€, acrescentando ela própria, a final, a seguinte frase da sua autoria: “
ele paga a totalidade em 30 dias e não vai pedir empréstimo
”, como que a dizer “aproveitem que é um excelente negócio”. E foi com esta tirada que a autora terminou a sua intervenção como mediadora neste negócio. Em face destas circunstâncias, como é que se pode considerar que a venda pelo valor de 3.520.000€ é imputável à atividade da autora? Obviamente que resposta só pode ser negativa. É verdade que resulta dos factos provados que autora teve trabalho no âmbito das negociações que tiveram lugar com os compradores AA e BB. Isso é inegável. Mas esse trabalho não conduziu a bom porto e a autora não teve o rasgo negocial – que no caso teria sido muito relevante – de fazer com os interessados retomassem a proposta anterior após a realização da vistoria técnica. E isso até era possível, como se viu
a posteriori
. Claramente a autora achou que após a vistoria técnica estava inviabilizado o negócio pelo valor que constava do acordo de reserva, tendo por isso desistido de insistir pela obtenção de um melhor preço. Aliás, em sede de contra-alegações, a recorrida mantém que a tal proposta de 2.300.000€ era perfeitamente adequada, dizendo na conclusão ZZZ que “
A proposta inferior dos compradores resultou diretamente da descoberta de irregularidades na propriedade e da intenção de uma venda rápida e sem recurso a crédito bancário, uma vez que estes mantinham o interesse no negócio, o que foi oportunamente comunicado à Recorrente
”. Afigura-se muito pouco compreensível esta valorização que a recorrida teima em fazer
, mesmo nesta sede
, de uma proposta que é 1.220.000€ inferior ao valor que até constava do acordo de reserva e pelo qual o negócio acabou por ser concluído. Mas, em todo o caso, será compreensível esta tentativa, um pouco desesperada, é certo, de valorização daquela proposta pois a recorrida deve ter a perfeita noção de que realmente não fez tudo o que poderia ter feito para conseguir que os interessados retomassem a proposta que constava do acordo de reserva.
E note-se que no caso concreto para a ré era irrelevante que os interessados compradores aparecessem por via de outra imobiliária ou retornassem por via da autora, pois da parte deles não houve qualquer intuito de se furtarem ao pagamento da comissão, procedendo na íntegra o afirmado na conclusão CCCC da recorrente. Acresce que o facto de os interessados terem surgido novamente por via de outra imobiliária nem sequer lhe é imputável.
Foram esses interessados que tomaram a iniciativa de procurar outra mediadora para tal finalidade e a isso é alheia a ré
, como com toda a propriedade refere a recorrente na conclusão YYY.
A decisão recorrida baseou a obrigação de pagamento da remuneração apenas na mera atividade da autora de angariação dos interessados e no facto de o preço ser idêntico aquele que também havia sido falado no decurso das negociações intermediadas pela autora. Mas não abordou a questão essencial que decorria do facto de toda essa atividade da autora ter desembocado numa proposta que era 1.220.000€ inferior ao valor pelo qual o negócio foi efetivamente concluído.
Na decisão recorrida cita-se o acórdão da Relação de Guimarães de 02.11.2023 na parte em que diz que “
Importa ter em consideração que, em qualquer relação contratual e designadamente na de mediação – seja de exclusividade ou não – há que observar o princípio da boa-fé (art.º 762º/2, do C. Civil), há que ter um comportamento honesto, correto, leal e fiel, há que cumprir os deveres acessórios e laterais de conduta ao caso atinentes; pelo que as partes – mediador e comitente – devem prestar mutuamente todas as informações pertinentes e relevantes, devem manter-se leais, praticando todas as condutas que viabilizem o escopo do negócio”.
Compulsados os factos provados, quem se nos afigura não ter tido um comportamento honesto, correto e, essencialmente, leal e fiel, foi a autora, que, ao caucionar uma proposta de valor muito inferior ao pretendido pela ré, não agiu de forma a prosseguir os interesse desta, que era a sua cliente, não tendo praticado as condutas necessárias à viabilização do escopo do negócio e que, afinal, até era possível obter, como resulta do negócio que veio a ser efetivamente celebrado.
Procedem na íntegra as conclusões da recorrente, em especial as WWW e XXX, onde se refere que “
A identidade dos compradores não implica, por si só, a manutenção de um nexo causal entre o trabalho da Recorrida e a conclusão do negócio, uma vez que o primeiro processo negocial terminou sem sucesso, dando lugar a um novo processo, que foi iniciado e concluído pela IMOJOY e pela DD
” e que “
o facto de o preço de venda ser já conhecido dos compradores não é suficiente para asseverar a existência de causalidade. É que, como ficou provado na Decisão recorrida, os compradores sabiam que o preço era inegociável, o que significava que este não se iria alterar
”.
Está, pois, verificada a quebra do nexo de causalidade entre a atividade da autora e o negócio que veio a ser efetuado, que não só é diferente daquele que havia sido obtido em termos definitivos pela autora, como também resultou, de forma determinante, de circunstâncias alheias à atividade da autora.
O recurso deve, pois, ser considerado totalmente procedente, devendo a decisão recorrida ser revogada na íntegra e substituída por outra que absolva a ré do pedido.
***
DECISÃO
Face ao exposto, acordam os Juízes que compõem este coletivo da 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar o recurso procedente e, em consequência, revogam a decisão recorrida, determinando a improcedência da ação com a consequente absolvição da ré do pedido.
Custas em ambas as instâncias pela recorrida (art.º 527º/1 e 2 do CPC).
Notifique.
TRL, 08mai2025
Jorge Almeida Esteves (relator)
Vera Antunes
Cláudia Barata
_______________________________________________________
1. Esta alegação deveu-se certamente a lapso uma vez que no contrato de mediação junto pela autora constava a remuneração correspondente a 4% do valor da venda.
2. Apesar de, na sentença, só a parte do relatório destinada à descrição da posição das partes perante o litígio se estender por 16 páginas.
3. Com fundamento nos art.ºs 6º e 547º do CPC, não obstante o disposto no art.º 596º/1 e 597º, dos quais resulta que só é admissível tal dispensa nas ações previstas neste último preceito.
4. In O contrato de mediação, Scientia Ivridica, n.º 331 (2013), pp. 78-79.
5. Proferido no proc.º nº 308/16.3T8PTM.E1.S2, in
www.dgsi.pt
e citado na decisão recorrida.
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TRL
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https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/f1afdb16ac6e286780258c8a0030bf2b?OpenDocument
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1,759,536,000,000
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IMPROCEDENTE
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1682/24.3YLPRT.L1-8
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1682/24.3YLPRT.L1-8
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CARLA FIGUEIREDO
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(elaborado ao abrigo do artigo 663º n º7 do Código do Processo Civil)
- Tendo em conta que o arrendatário é casado e que o locado se destina à habitação do agregado do requerido, constituindo casa de morada de família, a comunicação remetida pela requerente destinada a operar a oposição à renovação do contrato de arrendamento devia ter sido dirigida separadamente a cada um dos cônjuges;
- A inobservância desta regra determina a ineficácia daquela comunicação, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 12º, nº 1, art.º 10º, nº 2, al. b) e 15º, nº 2, al. c) do NRAU.
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[
"CONTRATO DE ARRENDAMENTO",
"HABITAÇÃO DO AGREGADO FAMILIAR DO LOCATÁRIO",
"OPOSIÇÃO À RENOVAÇÃO",
"COMUNICAÇÃO",
"INEFICÁCIA"
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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
I – RELATÓRIO
MM apresentou requerimento de despejo contra KK, com fundamento em “cessação por oposição à renovação pelo senhorio”, juntando para o efeito cópia do contrato de arrendamento (ref. 40758349), cópia do comprovativo da comunicação a que se refere o nº 1 do artigo 1097º do Código Civil (ref. 40758351) e comprovativo do pagamento de imposto de selo (ref. 40758350). Foi paga a taxa de justiça (ref. 40758355).
Notificado, o requerido apresentou a oposição (ref. 40758370), alegando, em síntese, a ineficácia da comunicação de oposição à renovação do contrato de arrendamento, uma vez que o locado constitui casa de morada de família e a oposição não foi remetida também à sua mulher, mais alegando que a autora recebeu rendas posteriores à pretensa produção de efeitos da oposição à renovação. Requer, ainda, o diferimento da desocupação do locado.
Notificada para se pronunciar quanto à oposição, a requerente pugnou pela sua improcedência, por desconhecer se o requerido é ou não casado e que este não o prova por documento, sendo certo que na oposição não identificou ninguém, nem nunca deu a conhecer tal facto à senhoria. Assim, a requerente sempre estaria impossibilitada de deduzir o incidente de intervenção provocada previsto no art.º 15º H, nº 2 do NRAU. Mais pugna pelo indeferimento do diferimento da desocupação do imóvel.
Por despacho de 23/12/2024, foi o requerido notificado para juntar aos autos o documento comprovativo do seu estado civil.
A requerente, notificada do documento em causa, no exercício do seu direito do contraditório, insurgiu-se quanto ao facto de ter sido apresentado documento em língua inglesa e que do mesmo resulta que o Requerido “
was married
” o que significa “
foi casado
”, não resultando do mesmo que o Requerido
ainda
é casado.
Devidamente notificado, o Requerido juntou, com o requerimento de 20/1/25, a tradução para a língua portuguesa da referida certidão.
Notificada do documento, a Requerente não se pronunciou.
A 10/2/2025 foi, então, proferida sentença que julgou procedente a oposição deduzida e, em consequência, absolveu o requerido do pedido de despejo.
*
Inconformada com a referida decisão, veio a Requerente interpor recurso, concluindo da seguinte forma:
“a) O ora Apelado nunca referiu à Apelante, seja oralmente ou por escrito, ser casado, e tanto assim é que no âmbito do contrato celebrado não indicou qualquer nome de cônjuge ou pediu a sua inserção posteriormente;
b) O ora Apelado não juntou qualquer prova do seu estado civil, isto é, não diligenciou pela demonstração dessa realidade (casamento);
c) A prova do casamento faz-se pela certidão extraída do assento ou pelo acesso à base de dados do registo civil;
d) Em cumprimento de Despacho proferido pelo Tribunal a quo o Apelado juntou um documento em língua estrangeira, sem a devida tradução que se impõe, e do qual resulta que o mesmo “was married” ou ainda “foi casado”;
e) Do novo requerimento junto pelo Apelado resulta que se trata de documento emitido pelo Bangladesh, e não por Portugal;
f) A Apelante não foi convidada a pronunciar-se quanto a tal novo requerimento junto;
g) O documento traduzido pelo Apelado data já de 2017, e a tradução do mesmo data de 03.12.2018, nada provando, portanto, que se mantém tal como o atual estado do Apelado;
h) Ainda que o Apelado se mantenha casado no Bangladesh, não resulta que o mesmo é casado em Portugal;
i) O Apelado não sendo português, não é possível obter o assento de nascimento / casamento do mesmo;
j) Não está transcrito para a nossa ordem jurídica portuguesa qualquer casamento.
k) Agir nos termos pretendidos pelo Apelado na sua oposição é agir em claro abuso de direito, totalmente condenável,
l) O Tribunal a quo não conheceu da exceção invocada pela Apelante do abuso de direito – determinando tal a nulidade da sentença;
m) O Apelado apenas poderia invocar tal casamento, como forma de determinar a ineficácia da oposição à renovação, depois de registado o mesmo em Portugal, o que não sucede no caso em apreço;
n) não está demonstrado nos autos o alegado casamento, não sendo a falta do documento substituível por confissão – cf. art.ºs 1º, n.º 1, d), 4º e 211º, n.ºs 1 e 2 do Código do Registo Civil e art.º 364º do Código Civil;
o) Está afastada a possibilidade de comunicação do direito do arrendatário ao cônjuge, nos termos do art.º 1068º do Código Civil;
p) não sendo o Apelante casado em Portugal, não é possível concluir pela necessidade de envio de uma outra carta para comunicação da oposição à renovação do contrato de arrendamento, pois esta exigência apenas se coloca relativamente a quem é cônjuge do arrendatário;
q) não se verifica no caso sub judice qualquer violação do disposto no artigo 12.º, n.º 1 do NRAU, por não estar demonstrado que à data da comunicação existia um cônjuge do arrendatário a quem se tivesse comunicado o direito ao arrendamento ou o locado constituísse casa de morada de família desse casal;
Nestes termos e nos mais de direito, que V. Exas. doutamente suprirão, deverá o presente recurso ser julgado procedente, e, em consequência, revogar-se a douta decisão proferida pelo Tribunal a quo, julgando-se totalmente improcedente a Oposição pelo Apelado, com o consequente decretamento do despejo, com o que se fará a objectiva e costumada JUSTIÇA!”.
*
O Requerido apresentou contra-alegações, terminando com as seguintes conclusões:
“a) Do contrato de arrendamento para habitação com prazo certo, junto aos autos, o Apelado aparece identificado com o estado civil de “casado”;
b) Não existe qualquer rasura sobre a palavra “casado”;
c) A palavra “casado” está datilografa e bastante legível;
d) Não restando qualquer dúvida que aquele é o estado civil do Apelado;
e) A Apelante, quando leu e assinou o contrato de arrendamento, tomou conhecimento que o Apelado era casado;
f) O Apelado juntou aos autos comprovativo do seu assento de casamento com a respetiva tradução (Ref.ª 50986803 de 13/01/2025 e Ref.ª 51073743 de 20/01/2025);
g) A transcrição do casamento para o ordenamento jurídico, nada mais é do que dar validade a um ato praticado no estrangeiro, em território português, alterando-se as informações civis do respetivo cidadão português;
h) Isto é, a transcrição do registo de casamento deve ser realizada por todo cidadão português que se casou no estrangeiro, ou seja, fora dos territórios de Portugal;
i) O Apelado é de nacionalidade bengali;
j) A sua esposa é, igualmente, de nacionalidade bengali;
k) Estamos, por isso, perante um casamento entre dois cidadãos estrangeiros, naturais do Bangladesh, cujo casamento foi realizado no seu país de origem e de acordo com a legislação nele em vigor;
l) Nenhum dos elementos do casal é Português ou veio, até à presente data, a adquirir a cidadania portuguesa;
m) Não impendia sobre o Apelado nenhuma obrigação de transcrição do casamento para o ordenamento jurídico;
n) O abuso de direito é de conhecimento oficioso, devendo o tribunal apreciá-lo enquanto obstáculo legal ao exercício do direito, quando, face às circunstâncias do caso, concluir que o seu titular excede manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e pelo fim social e económico do direito;
o) O tribunal está vinculado a tomar conhecimento do abuso de direito se do conjunto dos factos alegados e provados resultarem provados os respectivos pressupostos legais;
p) Constitui ato inútil proibido pela lei ordenar que os autos baixem para que o tribunal recorrido se pronuncie sobre o abuso de direito de que não conheceu oficiosamente, se dos factos definitivamente considerados provados não resultar sequer minimamente indiciado que qualquer das partes atuou em abuso de direito;
q) Sendo o Apelado casado e o locado constituir casa de morada de família, as comunicações de oposição à renovação do contrato de arrendamento devem ser dirigidas a cada um dos cônjuges, sob pena de ineficácia.
Nestes termos, e nos mais de Direito que V. Ex.ªs doutamente suprirão, deverá ser negado provimento ao recurso, confirmando-se, na íntegra, a douta Sentença apelada.
Assim decidindo, Venerandos Desembargadores, uma vez, mais se fará a costumada e esperada Justiça”
.
*
II - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da Recorrente, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal (artigos 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do CPC).
No caso vertente, as questões a decidir, que ressaltam das conclusões do Recurso interposto são as seguintes:
- Se o Tribunal a quo não conheceu da excepção do abuso de direito invocada pela Apelante, determinando tal a nulidade da sentença;
- Se a decisão da matéria de facto deve ser alterada;
- Se a oposição à renovação operada pela Apelante foi válida e eficaz.
*
III – FUNDAMENTAÇÃO
Fundamentação de Facto
Foi esta a factualidade considerada pela primeira instância:
“Com fundamento nos documentos juntos aos autos e na posição das partes assumidas nos articulados, com relevância para a decisão está demonstrado que:
1. Requerente e requerido celebraram em 28.02.2019 contrato de arrendamento com, entre outros, os seguintes termos:
(documento de ref.ª 40758349).
2. No mencionado contrato, o requerido é identificado nos seguintes termos:
(…)
(documento de ref.ª 40758349).
3. Em 31.07.2023 a requerente remeteu ao requerido uma carta registada com aviso de receção com, entre outro, o seguinte teor:
(documento de ref.ª 40758351).
4. O requerido é casado com RR desde 04.05.2004 (documentos de ref.ª 41578762 e 41664296) .
5. O requerido reside no imóvel objeto do contrato de arrendamento acima identificado com a sua mulher e as quatro filhas menores de ambos (documentos de ref.ª 40758373 e 40758375).
Com relevo para a decisão não ficaram factos por provar”.
*
Revelam, ainda, para a decisão os factos constantes do Relatório, que aqui se dão por reproduzidos.
*
Fundamentação de Direito
Inicia a Apelante por suscitar uma nulidade da sentença, invocando que Tribunal a quo não conheceu da excepção do abuso de direito invocada pela Apelante na resposta à oposição.
Nos termos do art.º 615º, 1, d) do CPC, “
é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento
”.
Esta causa de nulidade está directamente relacionada com o art.º 608º nº 2 do CPC, segundo o qual “
o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras
”.
Nas alegações de recurso, a Apelante defende que, não estando transcrito o casamento do Requerido no ordenamento jurídico português, não podia opor-se à renovação junto da suposta cônjuge deste e que a defesa do Requerido, ao suscitar a falta dessa comunicação está a agir em “claro abuso de direito, conforme já alegou em sede de resposta à Oposição apresentada e que o Tribunal não conheceu”.
Ora, perscrutada a resposta à oposição, não se vislumbra que a Apelante tenha suscitado a mencionada excepção de abuso de direito por parte do requerido, assim como também não o fez na resposta à oposição ou no requerimento apresentado em resposta à certidão de casamento junta aos autos pelo Requerido.
Deste modo, não ocorre a nulidade apontada à decisão sob recurso.
*
Da impugnação da Matéria de Facto.
Em sede de recurso, os recorrentes impugnam a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo tribunal de primeira instância, designadamente aos pontos 4 e 5 dos factos provados.
O artigo 640º do CPC impõe ao recorrente o ónus de:
a) especificar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) especificar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) especificar a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Entendemos que o recurso interposto, no que respeita à impugnação da matéria de facto (pontos 4 e 5 dos factos provados) cumpre o ónus imposto pelo art.º 640º do CPC, pelo que passaremos à análise da referida impugnação.
Do ponto 4 resulta que o “
Requerido é casado com RR desde 04.05.2004 (de acordo com os documentos de ref.ª 41578762 e 41664296)
”.
A Apelante entende que este facto não está demonstrado nos autos (al. n) das conclusões).
A Requerente, em resposta à oposição, declarou desconhecer se o Requerido é ou não casado e que juntamente com a Oposição não juntou qualquer documento que o comprove.
Notificada da certidão de casamento junta aos autos pelo requerido em 13/1/25, a Requerente insurgiu-se quanto ao facto de ter sido apresentado documento em língua estrangeira, defendendo que do mesmo resulta apenas que o Requerido “
was married
” o que significa “
foi casado
”, não resultando do mesmo que o Requerido ainda é casado.
Devidamente notificado, o Requerido juntou, com o requerimento de 20/1/25, a tradução para a língua portuguesa da referida certidão. Notificada do documento, a Requerente não se pronunciou.
A Requerente, nas suas alegações de recurso defende que o documento junto pelo Requerido foi emitido em Bangladesh e não por Portugal, pelo que Apelado apenas se encontrará ainda casado naquele país e não em Portugal, uma vez que o seu casamento não se encontra transcrito na ordem jurídica Portuguesa.
Quanto à certidão junta aos autos pelo Requerido, cuja tradução se encontra junta aos autos, resulta com clareza que se trata da sua certidão de casamento. Na sua versão original, as expressões “
was married
” (que na tradução corresponde a um “
foi casado
”) e “and the marriage was solemnized”, significam que no dia 4/5/2004 o Requerido “casou”, pois na verdade trata-se de uma certidão de casamento. O sentido que a Requerente pretende atribuir à expressão “was married” não faz, por isso, qualquer sentido.
Tratando-se de documento autêntico passado em país estrangeiro, na conformidade da respectiva lei, faz prova como faria um documento da mesma natureza exarado em Portugal – art.º 365º, nº 1 do CC.
Por outro lado, prescreve o art.º 440º, nº 1 do CPC, que “
Sem prejuízo do que se encontrar estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os documentos autênticos passados em país estrangeiro, na conformidade da lei desse país, consideram-se legalizados desde que a assinatura do funcionário público esteja reconhecida por agente diplomático ou consular português no Estado respetivo e a assinatura deste agente esteja autenticada com o selo branco consular respectivo
”.
“
A legalização não é indispensável para que um documento passado em país estrangeiro faça prova em Portugal. Desde que seja elaborado em conformidade com a lex loci, o documento reveste a mesma força probatória que têm os documentos da mesma natureza elaborados em Portugal, só sendo de exigir a respectiva legalização se houver fundadas dúvidas acerca da sua autenticidade ou da autenticidade do seu reconhecimento
” – Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3ª ed., pág. 552).
À data em que foi emitida a certidão em causa, a República Popular de Bangladesh ainda não tinha aderido à Convenção de 5 de Outubro de 1961 sobre a Abolição da Exigência de Legalização de Documentos Públicos Estrangeiros, pelo que a apostila não era necessária para respectiva validação (este país só em 29 de Julho de 2024 depositou o seu instrumento de adesão à Convenção, que entrará em vigor apenas no dia 30 deste mês – consulta disponível em
www.hcch.net/en/news-archive/details/?varevent=997
).
Ora, o documento junto aos autos (“certidão de casamento”), provém do Departamento de Registo de casamento Muçulmano e Quazi do Governo da República do Bangladesh, com selo do “Muslim Registrar”, carimbo do notário público do Bangladesh, com o selo e assinatura do secretário assistente (consular) do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Dhaka e selo e assinatura do secretário assistente do Departamento de Lei e Justiça do Ministério de Justiça e Assuntos Parlamentares de Bangladesh, pelo que não se suscitam dúvidas quanto à sua autenticidade, sendo tal documento válido em Portugal, nos termos das supra citadas normas.
Quanto à questão de o casamento do Requerido não se encontrar registado no ordenamento civil português, também não assiste razão à Apelante, na medida em que apenas aos cidadãos portugueses é imposto o registo do casamento (art.º 1º, 1, d) e 2 do CRC).
Como resulta da certidão de casamento junta aos autos, o Requerido e sua mulher são ambos de nacionalidade bengali (ele natural de Beanibazar e ela de Sunamganj). Assim, o seu casamento, realizado no país de origem, não tinha de estar registado em Portugal, nem tinha de ser transcrito para o nosso registo civil para poder valer como tal (a transcrição de casamento realizados em território estrangeiro apenas se aplica igualmente a nacionais portugueses – art.º 6º, nº 4 do CRC).
Concluindo, o Requerido, tal como consta dos factos provados, em resultado da certidão junta aos autos, é casado com RR desde 4/5/2004, pelo que improcede, nesta parte, a impugnação do referido ponto da matéria de facto.
O ponto 5 dos factos provados tem a seguinte redacção: “
O requerido reside no imóvel objeto do contrato de arrendamento acima identificado com a sua mulher e as quatro filhas menores de ambos (documentos de ref.ª 40758373 e 40758375)
”.
A Apelante defende que não podia o tribunal a quo dar como provado, “
atenta a prova junta que o ora Apelado reside no imóvel objeto do contrato de arrendamento acima identificado com a sua mulher e as quatro filhas menores de ambos
”, ou que “
o locado constituísse casa de morada de família desse casa
” (ponto 59 das alegações e al. q) das conclusões).
Para prova do alegado, o Requerido juntou com a Oposição a declaração de IRS relativa ao ano de 2023 (doc. ref. 40758373), em que aparece como sujeito passivo A, casado e, como sujeito passivo B, a mulher RR; no campo destinado ao agregado familiar, dependentes, indica três números de identificação fiscal. Juntou, ainda, documento emitido pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, “Informação Social” (doc. ref. 40758375), de onde consta a composição do agregado familiar do requerido, com a mulher RR e as quatro filhas do casal (a mais nova nascida no ano de 2024), cuja residência coincide com o arrendado.
Notificada para se pronunciar quanto à Oposição, a Requerente afirmou desconhecer o estado civil do Requerido. Na verdade não impugnou o facto de ser no arrendado que o Requerido reside com a “
esposa
” e as quatro filhas menores, tão pouco impugnou os documentos juntos, como devia, pelo que teria necessariamente de se considerar a autenticidade e relevância probatória desses documentos, como o fez a primeira instância.
Pelo que se expôs, e porque os documentos considerados pelo tribunal
a quo
permitem, efectivamente, concluir que no arrendado reside o requerido com a sua mulher e as quatro filhas de ambos, improcede, também aqui, a impugnação da matéria de facto.
*
Apreciemos, agora, se a oposição à renovação operada pela Apelante foi válida e eficaz.
Como resulta do ponto 3 dos factos provados, por carta registada, com aviso de recepção, datada de 31/7/2023, a Requerente, como senhoria, comunicou ao Requerido que se opunha à renovação automática do contrato, pelo que o Requerido devia proceder à entrega das chaves e “
do andar livre e devoluto até ao próximo dia 29 de Fevereiro de 2024
”.
Nos termos do disposto no art.º 9º, nº 1 da Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro (doravante NRAU), “
salvo disposição da lei em contrário, as comunicações legalmente exigíveis entre as partes relativas a cessação do contrato de arrendamento, atualização da renda e obras são realizadas mediante escrito assinado pelo declarante e remetido por carta registada com aviso de receção
”.
Por seu turno, o art.º 12º, nº 1 do NRAU, prevê que “
se o local arrendado constituir casa de morada de família, as comunicações previstas no nº 2 do artigo 10º devem ser dirigidas a cada um dos cônjuges, sob pena de ineficácia
”.
Dispõe o art.º 10º, nº 2 do NRAU que: “
O disposto no número anterior não se aplica às cartas que:
a) Constituam iniciativa do senhorio para a transição para o NRAU e atualização da renda, nos termos dos artigos 30.º e 50.º;
b) Integrem título para pagamento de rendas, encargos ou despesas ou que possam servir de base ao procedimento especial de despejo, nos termos dos artigos 14.º-A e 15.º, respetivamente, salvo nos casos de domicílio convencionado nos termos da alínea c) do n.º 7 do artigo anterior.
c) Sejam devolvidas por não terem sido levantadas no prazo previsto no regulamento dos serviços postais
”.
E o art.º 15º, nº 2, al. c) dispõe que “
apenas podem servir de base ao procedimento especial de despejo independentemente do fim a que se destina o arrendamento, em caso de cessação por oposição à renovação, o contrato de arrendamento acompanhado do comprovativo da comunicação prevista no n.º 1 do artigo 1097.º ou no n.º 1 do artigo 1098.º do Código Civil
”.
Ora, a comunicação remetida pela Requerente ao Requerido visou a oposição à renovação do contrato, tendo servido como pressuposto para o presente procedimento especial de despejo.
Cabe aqui referir que, ao contrário do alegado pela Requerente, no contrato de arrendamento celebrado consta que o Requerido é “
casado
”, facto que aquela não podia assim ignorar.
Tendo em conta que o arrendatário é casado e que o locado se destina à habitação do agregado do requerido, constituindo casa de morada de família, a conclusão necessária a tirar é que a comunicação remetida pela requerente destinada a operar a oposição à renovação do contrato de arrendamento é ineficaz, ou seja, não produziu o efeito a que se destinou, pois, como se viu, as comunicações respeitantes a oposição à renovação por iniciativa do senhorio, devem ser dirigidas separadamente aos cônjuges, não bastando uma única comunicação dirigida a ambos.
A inobservância desta regra determina a ineficácia daquela comunicação, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 12º, nº 1, art.º 10º, nº 2, al. b) e 15º, nº 2, al. c) do NRAU.
*
IV - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso interposto, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela Apelante.
Lisboa, 10/4/2025
(o presente acórdão não segue na sua redacção as regras do novo acordo ortográfico, com excepção das “citações/transcrições” efectuadas que o sigam)
Carla Figueiredo
Cristina Lourenço
Carla Matos
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TRL
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https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/540084f5835098ef80258c7a0038db5c?OpenDocument
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1,754,352,000,000
|
CONFIRMADA A SENTENÇA RECORRIDA
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1135/23.7T8LLE-A.E1
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1135/23.7T8LLE-A.E1
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FILIPE CÉSAR OSÓRIO
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Sumário
:
I.
A nulidade da sentença por falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito apenas ocorre quando esta falta é absoluta, questão diversa consiste na discordância dos seus fundamentos ou por conter fundamentos errados, deficientes ou incompletos, mas neste caso, se ocorrerem estes vícios, já estamos no domínio da reapreciação do mérito da causa, a qual pode, ou não, conduzir a outras consequências, desde a anulação ou revogação da sentença, mas não à sua nulidade.
II.
É incontroverso que no nosso sistema jurídico apenas a prática de actos judiciais (citação, notificação judicial ou qualquer outro meio judicial pelo qual se dá conhecimento do acto àquele contra quem o direito pode ser exercido) pode operar a interrupção da prescrição, excluindo-se assim qualquer outro meio extrajudicial como sucede com as cartas de interpelação invocadas pela Recorrente.
|
[
"PRESCRIÇÃO",
"INTERRUPÇÃO DA PRESCRIÇÃO",
"INTERPELAÇÃO",
"NULIDADE DA SENTENÇA"
] |
*
Apelação n.º 1135/23.7T8LLE-A.E1
(1.ª Secção Cível)
Relator:
Filipe César Osório
1.º Adjunto
: Manuel Bargado
2.º Adjunto:
Susana Ferrão da Costa Cabral
*
*
*
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
*
I. RELATÓRIO
- Embargos de Executado – Oposição à Execução
1. As partes:
Embargante/Executado/Recorrido – AA
Embargado/Exequente/Recorrente – “CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS, S.A.”
*
2. Objecto do litígio:
O Executado veio por apenso à Execução que contra ele foi intentada por “Caixa Geral de Depósitos, S. A.”, deduzir embargos de executado alegando essencialmente que assinou o contrato, sem que o seu conteúdo lhe tivesse sido explicado e convencido que se tratava de um “
documento que permitiria uma prova de que a sua namorada vivia em união de facto para que a mesma pudesse adquirir um veículo automóvel
”; esse contrato integra cláusulas contratuais gerais e que as mesmas não lhe foram comunicadas nem explicadas, pelo que é nulo esse contrato; o negócio é inexistente; a nulidade do contrato por omissão da comunicação ao Embargante do direito ao arrependimento; invoca a prescrição da obrigação exequenda e, subsidiariamente, a prescrição da obrigação de juros.
Em contraponto, contestou a Exequente alegando, em suma, razões que em seu entender conduzem à improcedência do pedido formulado pelo Executado, devendo prosseguir a Execução contra o Embargante, com todas as legais consequências, destacando-se entender que com o incumprimento do contrato, o prazo prescricional aplicável é o ordinário, para além de que o Embargante foi interpelado para o pagamento através de carta, pelo que não prescreveu a obrigação.
*
3.
Sentença em Primeira Instância:
Foi proferida sentença em primeira instância com o seguinte dispositivo [transcrição]:
«Pelo exposto, decide-se:
A)Julgar procedentes os presentes embargos de executado e, consequentemente, declarar extinta a execução;
B)Fixar o valor dos presentes embargos de executado em 81.534,44 euros;
C)Condenar a Embargada nas custas dos embargos.
Registe e notifique.
Comunique-se ao Sr. Agente de execução.».
*
4. Recurso de apelação da Executado/Embargante/Recorrente:
A Recorrente interpôs recurso de apelação da sentença onde pede a revogação da sentença com as seguintes conclusões [transcrição]:
«1. Vem o presente recurso interposto da decisão proferida pelo Tribunal a quo que julgou procedentes os embargos e extinta a execução ao conhecer da excepção da prescrição por aplicação do prazo quinquenal, fazendo tábua rasa da interpelação feita aos executados que fez interromper o prazo prescricional.
2. Não pode a Recorrente concordar com o entendimento sufragado pelo Tribunal a quo, por entender que, sem prejuízo da aplicação do prazo quinquenal de prescrição, o mesmo sempre foi interrompido, ao abrigo do disposto no art. 323º do Código Civil (doravante, CC) com o envio das cartas de interpelação aos recorridos em 11-03-2022.
3. A Recorrente peticionou, em 25-04-2023, o valor de € 81 534,44, decorrente de um contrato de mútuo celebrado entre a Recorrente e a mutuária BB, no qual interveio o Recorrido AA como fiador e principal pagador por tudo o quanto venha a ser devido ao Banco Exequente em consequência do empréstimo aqui referido
4. Foi dado como provado que em 29/10/2004 foi celebrado por escritura pública o denominado contrato de “compra e venda, mútuo como hipoteca e fiança
5. Foi dado como provado que nessa escritura consta que pelo outorgante AA foi declarado que se responsabiliza como fiador e principal pagador por tudo quanto venha a ser devido à Caixa credora em consequência do empréstimo aqui titulado dando, desde já, o seu acordo a quaisquer modificações da taxa de juro e bem assim às alterações de prazo ou moratórias que venham a ser convencionadas entre a credora e a parte devedora e aceitando que a estipulação relativa ao extracto da conta e aos documentos de debito seja também aplicável à fiança e que conhece também perfeitamente o conteúdo do referido documento complementar pelo que dispensa a sua leitura
6. Foi dado como provado que a mutuária BB interrompeu o pagamento das prestações do empréstimo acima indicado em 29/11/2010.
7. Foi dado como provado que em 17/10/2016 a Embargada comunicou por carta registada ao Embargante que se encontrava em divida o valor global de 136.579,78 euros e fixou-lhe o prazo até 25/10/2016 para proceder ao pagamento sob pena de instauração de acção judicial-cfr. documento junto com o requerimento de 18/12/2023.
8. Foi dado como provado que em 11/3/2022 a Embargada interpelou o Embargante através de carta para proceder ao pagamento da quantia de 80.464,22 euros respeitante ao empréstimo acima referido- cfr. documento junto como requerimento executivo.
9. As cartas de interpelação não foram impugnadas pelo Recorrido, o mesmo é dizer que: o não foi impugnada a sua junção aos autos, não foi impugnado o seu teor e não foi impugnada a sua recepção.
10. Face ao valor confessório dos referidos documentos, as cartas de interpelação produziram necessariamente e em absoluto os seus efeitos, nomeadamente o de fazer interromper a prescrição.
11. Conforme previsto no n.º 1 do art. 376º do CC não tendo sido arguida e feita prova da falsidade das cartas de interpelação juntas, não ficou arredada a sua força probatória plena, nem estão sujeitas ao princípio da livre apreciação da prova por parte do julgador, pelo que o Tribunal a quo teria forçosamente de reconhecer que o envio das sobreditas cartas fez interromper, naquelas datas, o prazo de prescrição.
12. Sendo a carta de interpelação datada de 11-03-2022 e tendo o requerimento executivo deu entrada em 25-04-2023, entre a entre a data de envio da carta e o requerimento executivo, decorreram menos de cinco anos.
13. O Tribunal a quo deveria ter considerado que a interpelação interrompeu o prazo de prescrição e que o crédito exequendo não está prescrito
14. Não o tendo feito, o Tribunal a quo andou mal ao decidir como decidiu.
Mais,
15. A fundamentação da decisão recorrida é manifestamente simplista.
16. É tão singela que não chega a fazer uma análise suficientemente crítica dos factos carreados para o processo, tanto que olvidou que a interpelação resultou amplamente confessada, ao não ter sido de qualquer forma impugnada, tal como ignorou os efeitos que obrigatoriamente se devem, daí, extrair.
17. A sentença recorrida não fez o devido enquadramento jurídico da junção das cartas de interpelação no quadro da prova documental, não procedeu a uma correcta valoração dessa mesma prova, especialmente porque o recorrido não impugnou os sobreditos documentos, o que significa que estes últimos fazem prova plena, e tais omissões conduziram à prolação da decisão que é agora sindicada.
18. A decisão recorrida não está devidamente fundamentada, de não ter especificado os concretos factos e disposições legais que conduziram à decisão proferida, ainda que errada, reitere-se.
19. É a sentença recorrida nula, nos termos da al. b) do n.º 1 do art. 615º do CPC, o que invoca com todas as consequências legais.
Mais,
20. Existe um claro erro de julgamento, pelo que se impõe a revogação da sentença recorrida.
21. A valoração feita na sentença recorrida quanto às cartas de interpelação é manifestamente errada e resulta de um erro evidente da apreciação da realidade factual (error facti), mas também de um erro de aplicação do direito (error iuris) ao olvidar o preceituado no art. 323º do CC no que toca aos efeitos da interrupção da prescrição promovida pelo ora recorrente.
22. Existindo erro de julgamento por incorrecta apreciação da realidade factual e incorrecta aplicação do direito, impõe-se que a sentença recorrida seja revogada, o que se requer.
23. A recorrente não se conforma que a decisão recorrida tenha desprezado e desvalorizado o envio das cartas de interpelação aos ora recorridos, bem como os efeitos que essas cartas produziram ao fazer interromper a prescrição, sobretudo porque fazem prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor.
24. Esta presunção poderia ser afastada caso fosse arguida e provada a falsidade documento, o que não sucedeu.
25. Não tendo sucedido, não poderia o Tribunal a quo atribuir um efeito jurídico diferente daquele que vem previsto na lei e valorar tal circunstância ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova, ainda que tal princípio implique uma conscienciosa ponderação dos elementos em causa e das circunstâncias que os envolvem.
26. Impunha-se, deste modo, que o Tribunal a quo tivesse valorado as cartas de interpelação de forma diferente da que fez, reconhecendo que tais documentos, porque não impugnados, fazem prova plena do que foi alegado pela recorrente no que toca à interrupção da prescrição.
27. Não pode, a Recorrente concordar com o entendimento segundo o qual aquando da instauração do requerimento executivo em 25-04-2023, o crédito incumprido já se encontrava prescrito, porquanto o envio da carta de interpelação em 11-03-2022 fez interromper o decurso de prazo de prescrição ao abrigo do art. 323º do CC.
28. A jurisprudência e doutrina têm sido unânimes em considerar que o vencimento antecipado a que alude o art. 781º do CC depende da interpelação ao devedor pelo credor, exigindo o pagamento ou o cumprimento de todas as prestações vencidas na sequência da falta de pagamento de uma prestação.
29. As partes nos autos não pretenderam afastar a necessidade de interpelação prévia; antes pretenderam remeter para o que já resulta da lei no art. 781º do CC
30. Considerar que o vencimento antecipado ocorreu na data de incumprimento é absolutamente errado.
31. O vencimento antecipado ocorreu necessariamente após a data de incumprimento e teria de ser materializada num acto externo através do qual o credor comunica expressamente ao devedor o vencimento da dívida e a perda do benefício do prazo.
32. Não aceita o Recorrente a conclusão do Tribunal a quo de que “Destarte, mostra-se prescrito todo o crédito da exequente/embargada” quando entendido que o início do prazo de prescrição se começa a contar desde a data de incumprimento.
33. Não está em causa a aplicação do prazo quinquenal, mas o modo de contagem desse mesmo prazo e, nessa matéria, discorda-se rotundamente da parca fundamentação da sentença recorrida, não só porque por ser demasiado singela, mas porque o faz de modo errado ao assumir que as partes prescindiram da previsão do art. 781º do CC, quando tal conclusão não resulta da prova junta aos autos
Mais
34. Incorreu ainda em erro o Tribunal a quo quando, entendeu que ainda que não apurada “a data da concreta comunicação da resolução do contrato de mútuo, sempre se sabe que o incumprimento remonta a 29/11/2010 e então a Embargada considerou vencida toda a dívida e exigiu o pagamento imediato de todo o capital em dívida.
35. A ver válida a conclusão do Tribunal a quo de afastamento do efeito cominatório da carta de interpelação, mormente o de interrupção do prazo de prescrição e do não apuramento da data da concreta comunicação da resolução, aquele Tribunal estava obrigado a concluir que, até à citação no âmbito da execução, manteve-se em vigor o plano prestacional acordado no contrato de mútuo dado à execução, o que não fez.
36. Impondo-se também por esta via que a decisão recorrida seja revogada e substituída por outra que improceda a excepção da prescrição invocada».
*
5. Resposta
O Recorrido apresentou “contra-alegações”
1
onde pede seja negado provimento ao recurso interposto, confirmando-se a sentença recorrida.
*
6. Admissão do recurso
O recurso foi admitido e foi proferido despacho sobre as nulidades invocadas recusando a sua verificação.
*
7. Objecto do recurso – Questões a Decidir:
7.1.
Nulidade da sentença por falta de fundamentação;
7.2.
Reapreciação jurídica da causa – Saber se ocorreu interrupção do prazo de prescrição.
*
II. FUNDAMENTAÇÃO
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
8. É o seguinte o teor da decisão de facto constante da sentença
[transcrição]
:
«
A) DE FACTO
Com relevância para a decisão da causa, encontram-se provados:
1º-No Cartório Notarial de ... a cargo do Notário CC em 29/10/2004 foi celebrado por escritura pública o denominado contrato de “compra e venda, mútuo como hipoteca e fiança”- cfr. documento junto com o requerimento executivo e que aqui se dá por reproduzido.
2º-Na escritura acima referida consta que Caixa Geral de Depósitos S.A. concede à outorgante BB um empréstimo pelo prazo de 40 anos da quantia de 95.000,00 euros, importância de que aquela se confessou devedora e que esse empréstimo se regeria pelas cláusulas constantes da escritura e do documento complementar que faz parte integrante da escritura.
3º-Nessa escritura consta que pelo outorgante AA foi declarado que se responsabiliza como fiador e principal pagador por tudo quanto venha a ser devido à Caixa credora em consequência do empréstimo aqui titulado dando, desde já, o seu acordo a quaisquer modificações da taxa de juro e bem assim às alterações de prazo ou moratórias que venham a ser convencionadas entre a credora e a parte devedora e aceitando que a estipulação relativa ao extracto da conta e aos documentos de debito seja também aplicável à fiança e que conhece também perfeitamente o conteúdo do referido documento complementar pelo que dispensa a sua leitura.
4º-Nessa
escrita
2
conta
3
que pelo representante da Caixa Geral de Depósitos S.A. foi dito que para a sua representada aceita a confissão de divida, hipoteca e fiança nos termos exarados.
5º-No documento complementar que integra a escritura acima referida consta que o prazo para a amortização do empréstimo é de 40 anos, a contar da data da celebração do presente contrato, sendo os primeiros 36 meses de carência de capital e os restantes até final, de amortização, e que o empréstimo seria pago em prestações mensais constantes de capital e juros, vencendo-se a primeira no mês seguinte ao do final do período de carência.
6º- A quantia emprestada, referida no aludido título foi efetivamente entregue a BB, mediante crédito processado na sua Conta de Depósitos à Ordem n.º 45232/600, domiciliada na agência do Banco Exequente ....
7º-A mutuária BB interrompeu o pagamento das prestações do empréstimo acima indicado em 29/11/2010, nada mais tendo pago por conta do mesmo, apesar das diligências desenvolvidas pela Embargada.
8º-Assim, a Embargada considerou vencida toda a dívida, reportada à data das últimas prestações pagas e exigiu o pagamento imediato de todo o capital em dívida, à data daquelas últimas prestações pagas.
9º-A presente execução foi instaurada em 25/4/2023, encontrando-se em divida nessa data, relativamente ao empréstimo acima referido, a quantia de 26.462,66 euros a título de capital acrescida da quantia de 54.851,78 euros relativa a juros vencidos entre 29/11/2010 e 10/11/2022, e da quantia de 220,00 euros a título de comissões.
10º-Em 20/10/2010 a Embargada comunicou por carta ao Embargante que na qualidade de fiador o informava que remetera à mutuária BB uma carta onde a interpelava para proceder ao pagamento das 23 prestações vencidas e não pagas no valor de 10.240,04 euros, sob pena de recurso à via judicial para a cobrança da divida- cfr. documento junto com o requerimento de 18/12/2023.
11º-Em 19/6/2013 a Embargada comunicou por carta registada ao Embargante que na qualidade de fiador a contactasse para a regularização da divida, por se prever que o valor da venda do imóvel não seria suficiente para o pagamento integral da divida-cfr. documento junto com o requerimento de 18/12/2023.
12º-Em 17/10/2016 a Embargada comunicou por carta registada ao Embargante que se encontrava em divida o valor global de 136.579,78 euros e fixou-lhe o prazo até 25/10/2016 para proceder ao pagamento sob pena de instauração de acção judicial-cfr. documento junto com o requerimento de 18/12/2023.
13º-Em 11/3/2022 a Embargada interpelou o Embargante através de carta para proceder ao pagamento da quantia de 80.464,22 euros respeitante ao empréstimo acima referido- cfr. documento junto como requerimento executivo.
*
Com relevância para a decisão da causa, inexistem factos não-provados».
*
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
9. Da invocada nulidade da sentença por falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (cfr. art. 615.º, n.º 1, al. b), do CPC):
Entende a Recorrente essencialmente que a fundamentação da decisão recorrida é manifestamente simplista, é tão singela que não chega a fazer uma análise suficientemente crítica dos factos carreados para o processo, que não especificou os concretos factos e disposições legais que conduziram à decisão proferida.
O Recorrido discorda deste entendimento.
Apreciando.
Neste domínio, importa distinguir as nulidades da sentença (cfr. art. 615.º, do CPC), das nulidades do processo (cfr. art. 195.º, do CPC) e de outras patologias de que pode padecer a sentença e que podem ter consequências diversas daquelas, desde a simples alteração da matéria de facto à anulação da decisão (cfr. art. 662.º, do CPC), estas atinentes à impugnação da decisão da matéria de facto.
“Acresce ainda uma frequente confusão entre nulidade da decisão e discordância quanto ao resultado, entre a falta de fundamentação e uma fundamentação insuficiente ou divergente da pretendida ou mesmo entre a omissão de pronúncia (relativamente a alguma questão ou pretensão) e a falta de resposta a algum argumento dos muitos que florescem nas alegações de recurso.” – Abrantes Geraldes e outros, CPC Anotado, Vol. I, Almedina, pág. 793.
Então, a sentença é nula, entre outros casos (art. 615.º, n.º 1, al. b), do CPC): “
Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;”.
Com efeito, «Para além da falta de assinatura do juiz (suprível oficiosamente em qualquer altura), é nula a sentença que não especifique os fundamentos de facto e de direito ou que se caracterize pela sua ininteligibilidade (quanto a um caso de fundamentação ininteligível ou impercetível, cf. RP 8-9-20, 15756/17), previsões que a jurisprudência tem vindo a interpretar de forma uniforme, de modo a incluir apenas a absoluta falta de fundamentação e não a fundamentação alegadamente insuficiente e ainda menos o putativo desacerto da decisão (STJ 10-5-21, 3701/18, STJ 9-9-20, 1533.17, STJ 20-11-19, 62/07, STJ 2-6-16, 781/11).»
4
.
Como se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09/12/2021
5
(Oliveira Abreu, proc. n.º 7129/18.7T8BRG.G1.S1,
www.dgsi.pt
) “Só a falta absoluta de fundamentação, entendida como a total ausência de fundamentos de facto e de direito, gera a nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do art.º 615º do Código de Processo Civil.”.
Nesta sequência, no caso concreto em apreciação, resulta da análise da sentença recorrida que o Mm.º Juiz fundamentou a sua decisão de facto e de direito de modo completo e preciso relativamente a todas as questões suscitadas pelas partes, elencando todos os factos provados e não provados, explicitou a sua motivação de facto e a fundamentação de direito, localizando-se assim nos antípodas da ausência absoluta de fundamentação.
Ou seja, a decisão de facto e de direito corresponde com precisão à respectiva fundamentação, verificando-se assim ocorrer o silogismo judiciário, isto é, as premissas conduzem necessariamente ao resultado ali constante e esse resultado é manifestamente unívoco.
A Recorrente entende que “a decisão recorrida é manifestamente simplista”, no entanto, importa notar que o dever de fundamentação não tem de ser “
exaustivo”
pois cumpre-se sempre que a fundamentação da decisão judicial permite ao destinatário a perceção do iter cognoscitivo e valorativo de facto e de direito revelando o que a justifica, como se decidiu a este propósito no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23/05/2024
6
(Isoleta de Almeida Costa, proc. n.º 1804/03.7TBPVZ-B.P1, www.dgsi.pt):
I - A nulidade da sentença prevista no 615º, nº 1, al. b) do Código de Processo Civil (aplicável aos despachos por força do artigo 613º, nº 3,) prende-se com o disposto no artigo 154º, do mesmo diploma, que fixa o dever do juiz fundamentar a decisão e concretiza o comando constitucional contido no n.º 1 do artigo 205.º da CRP ao estabelecer que «as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei».
II - Acolhe-se em razões de ordem substancial, demonstração do raciocínio lógico do juiz na interpretação da norma geral e abstrata aplicada ao caso concreto e de ordem prática, dar a conhecer às partes os motivos da decisão, em particular à parte vencida, a fim de, sendo admissível o recurso, poder impugnar o respetivo fundamento.
III - Este dever de fundamentação da decisão judicial, no entanto
não tem de ser exaustivo
e cumpre-se sempre que a fundamentação da decisão judicial, permite ao destinatário a perceção do iter cognoscitivo e valorativo de facto e de direito, revelando o que a justifica.
IV - Só se pode falar em sentença nula por falta de fundamentação, se, se verifica a ausência absoluta de fundamentos, seja de facto, seja de direito, não bastando a fundamentação deficiente e incompleta
[sublinhado nosso].
Foram assim respeitados os direitos que impõem o dever de fundamentação da decisões, constitucionalmente protegidos, para efeitos do disposto nos artigos 13.º, 20.º, 202.º, 204.º e 205.º, da Constituição da República Portuguesa.
Questão diversa consiste na discordância dos seus fundamentos ou por conter fundamentos errados, deficientes ou incompletos, mas neste caso, se ocorrerem estes vícios, já estamos no domínio da reapreciação do mérito da causa, a qual pode, ou não, conduzir a outras consequências, desde a anulação ou revogação da sentença, mas não à sua nulidade
7
.
Deste modo, porque foram especificados os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão e esses fundamentos estão em consonância com a decisão sem ocorrer ambiguidade ou obscuridade, a decisão é perfeitamente inteligível, não ocorreu nulidade da sentença, para efeitos do disposto no art. 615.º, n.º 1, alíneas b) e c), do CPC.
*
10. Reapreciação jurídica da causa – Saber se ocorreu interrupção do prazo de prescrição:
A Recorrente não se insurge contra a factualidade dada como provada nem se insurge contra a aplicabilidade do prazo de prescrição de cinco anos, aceitando expressamente nas suas alegações a aplicação deste prazo, isto em detrimento do prazo de 20 anos que defendeu aplicar-se em sede de Contestação.
A discordância essencial da Recorrente centra-se no modo de contagem do prazo de prescrição, na interpretação dos factos relativos às interpelações realizadas e na aplicabilidade do art. 781.º, do Código Civil.
A fundamentação jurídica da sentença começa pelo prazo de prescrição aplicável, analisando aprofundadamente esta temática com citação do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/6/2022 (DR, I série, 22/9/2022) que uniformizou a jurisprudência a esse propósito, concluindo ser “inegável que ao caso tem aplicação o prazo prescricional de 5 anos, sendo evidente que o referido AUJ se aplica igualmente ao fiador (veja-se, entre outros, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27/6/2023, proc.º n.º 10389/21.2T8PRT-A.P1, in
www.dgsi.pt/)
.”.
Então, como acima referido, a Recorrente conforma-se com a aplicabilidade do prazo prescricional de cinco anos, estando arredada de análise esta questão.
Prossegue a fundamentação jurídica da sentença do seguinte modo:
«Ora, ainda que não se apure a data da concreta comunicação da resolução do contrato de mútuo, sempre se sabe que o incumprimento remonta a 29/11/2010 e então a Embargada considerou vencida toda a dívida e exigiu o pagamento imediato de todo o capital em dívida.
Por outro lado, não resulta verificada de qualquer causa de interrupção ou suspensão do prazo (anterior à propositura da presente execução), sendo que as meras cartas registadas enviadas ao Embargante não tem a virtualidade de interromper o prazo prescricional em curso (como decorre das causas de interrupção previstas no art.º 323º do Código Civil). Refira-se também que a eventual interrupção da prescrição contra a mutuária (que nem foi demonstrada) nunca produziria efeito contra o fiador, exigindo-se sempre a interrupção da prescrição quanto ao próprio fiador.
Assim, sendo aplicável o prazo prescricional de 5 anos, sem que resulte a verificação de qualquer causa de interrupção ou suspensão do prazo, aquando da instauração da execução já havia decorrido aquele prazo de 5 anos (o que abrangerá capital e juros).
Destarte, mostra-se prescrito todo o crédito da exequente/embargada.».
Por seu turno, a Recorrente alegou essencialmente que o prazo quinquenal de prescrição sempre foi interrompido, ao abrigo do disposto no art. 323.º do Código Civil com o envio das cartas de interpelação enviadas tal como consta dois factos provados, ou seja, está provado que em 11/3/2022 a Embargada interpelou o Embargante através de carta para proceder ao pagamento da quantia de 80.464,22 euros respeitante ao empréstimo acima referido, que “As cartas de interpelação não foram impugnadas pelo Recorrido, o mesmo é dizer que: o não foi impugnada a sua junção aos autos, não foi impugnado o seu teor e não foi impugnada a sua recepção.” E “Face ao valor confessório dos referidos documentos, as cartas de interpelação produziram necessariamente e em absoluto os seus efeitos, nomeadamente o de fazer interromper a prescrição.”.
Considera ainda a Recorrente que “Sendo a carta de interpelação datada de 11-03-2022 e tendo o requerimento executivo deu entrada em 25-04-2023, entre a entre a data de envio da carta e o requerimento executivo, decorreram menos de cinco anos.”, por isso, entende que o Tribunal a quo deveria ter considerado que aquela interpelação interrompeu o prazo de prescrição e que por isso o crédito exequendo não está prescrito, invocando o disposto no art. 323.º, do Código Civil, que interrompeu o prazo de prescrição em curso.
Alegou ainda que “A jurisprudência e doutrina têm sido unânimes em considerar que o vencimento antecipado a que alude o art. 781º do CC depende da interpelação ao devedor pelo credor, exigindo o pagamento ou o cumprimento de todas as prestações vencidas na sequência da falta de pagamento de uma prestação.”, embora sem citar qualquer doutrina ou jurisprudência a esse propósito e ainda que “As partes nos autos não pretenderam afastar a necessidade de interpelação prévia; antes pretenderam remeter para o que já resulta da lei no art. 781º do CC”.
Vejamos então se as cartas de interpelação extrajudicial invocadas – e que constam dos factos provados – têm a virtualidade de interromper o prazo de prescrição:
Estão sujeitos a prescrição, pelo seu não exercício durante o lapso de tempo estabelecido na lei, os direitos que não sejam indisponíveis ou que a lei não declare isentos de prescrição – cfr. art. 298.º, n.º 1, do CC.
Completada a prescrição, tem o beneficiário a faculdade de recusar o cumprimento da prestação ou de se opor, por qualquer modo, ao exercício do direito prescrito – cfr. art. 304.º, do CC.
Nos termos do disposto no art. 781.º, do Código Civil, “Se a obrigação puder ser liquidada em duas ou mais prestações, a falta de realização de uma delas importa o vencimento de todas.”.
E tal como abordado na sentença recorrida, «No caso vertente, decorre da matéria de facto provada que a obrigação de restituição da quantia emprestada, resultante do celebrado contrato de mútuo com fiança, foi fracionada em 480 prestações mensais, que incluíam capital e juros remuneratórios, a pagar no prazo de 40 anos, prestações pré determinadas e sujeitas a revisão periódica (semestral) em função da taxa Euribor.
Esta materialidade enquadra-se, pois, no âmbito do disposto da alínea e) do art. 310.º do CC, sendo aplicável o prazo da prescrição de cinco anos ao direito de crédito exigido coercivamente pelo Embargado.
Neste sentido, nesta mesma Secção, decidiram os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de setembro de 2016 (Coletânea de Jurisprudência (STJ), Ano XXIV, t. 3, pág. 63) e de 27 de março de 2014 (189/12.6TBHRT-A.L1.S1), acessível em www.dgsi.pt.»
No mesmo sentido, entre outros, veja-se o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23/5/2019, proc.º n.º 316/18.0T8PDL.L1-6, acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 11/4/2019, proc.º n.º 308/16.3T8LLE-A.E1 ou o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27/10/2016, proc.º n.º 2411-14.5T8OER-B.L1-6, todos in www.dgsi/pt.
Finalmente, foi a questão definitivamente resolvida com a publicação do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/6/2022 (DR, I série, 22/9/2022) que uniformizou a jurisprudência no sentido de:
«I – No caso de quotas de amortização do capital mutuado pagável com juros, a prescrição opera no prazo de cinco anos, nos termos do art.º 310.º al. e) do Código Civil, em relação ao vencimento de cada prestação.”
II – Ocorrendo o seu vencimento antecipado, designadamente nos termos do art.º 781.º daquele mesmo diploma, o prazo de prescrição mantém-se, incidindo o seu termo “a quo” na data desse vencimento e em relação a todas as quotas assim vencidas.».
Assim, é inegável que ao caso tem aplicação o prazo prescricional de 5 anos, sendo evidente que o referido AUJ se aplica igualmente ao fiador (veja-se, entre outros, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27/6/2023, proc.º n.º 10389/21.2T8PRT-A.P1, in www.dgsi.pt/).
Ora, ainda que não se apure a data da concreta comunicação da resolução do contrato de mútuo, sempre se sabe que o incumprimento remonta a 29/11/2010 e então a Embargada considerou vencida toda a dívida e exigiu o pagamento imediato de todo o capital em dívida.».
Importa acrescentar que, como se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21/03/2023
8
(Sousa Pinto, proc. n.º 4288/21.5T8VNF-B.G1.S1,
www.dgsi.pt
), “Apesar da redacção equívoca do referido artigo 781.º, a mesma deve ser interpretada no sentido de que o vencimento antecipado das demais prestações, tendo por causa a falta de pagamento de uma delas, não ocorre automaticamente, sendo apenas concedida ao credor a faculdade de exigir, antecipadamente, o cumprimento de todas as prestações.”.
Então, a este propósito ficou provado de relevante o seguinte:
7º-A mutuária BB interrompeu o pagamento das prestações do empréstimo acima indicado em 29/11/2010, nada mais tendo pago por conta do mesmo, apesar das diligências desenvolvidas pela Embargada.
8º-Assim, a Embargada considerou vencida toda a dívida, reportada à data das últimas prestações pagas e exigiu o pagamento imediato de todo o capital em dívida, à data daquelas últimas prestações pagas.
9º-A presente execução foi instaurada em 25/4/2023, encontrando-se em divida nessa data, relativamente ao empréstimo acima referido, a quantia de 26.462,66 euros a título de capital acrescida da quantia de 54.851,78 euros relativa a juros vencidos entre 29/11/2010 e 10/11/2022, e da quantia de 220,00 euros a título de comissões.
10º-Em 20/10/2010 a Embargada comunicou por carta ao Embargante que na qualidade de fiador o informava que remetera à mutuária BB uma carta onde a interpelava para proceder ao pagamento das 23 prestações vencidas e não pagas no valor de 10.240,04 euros, sob pena de recurso à via judicial para a cobrança da divida- cfr. documento junto com o requerimento de 18/12/2023.
11º-Em 19/6/2013 a Embargada comunicou por carta registada ao Embargante que na qualidade de fiador a contactasse para a regularização da divida, por se prever que o valor da venda do imóvel não seria suficiente para o pagamento integral da divida-cfr. documento junto com o requerimento de 18/12/2023.
12º-Em 17/10/2016 a Embargada comunicou por carta registada ao Embargante que se encontrava em divida o valor global de 136.579,78 euros e fixou-lhe o prazo até 25/10/2016 para proceder ao pagamento sob pena de instauração de acção judicial-cfr. documento junto com o requerimento de 18/12/2023.
13º-Em 11/3/2022 a Embargada interpelou o Embargante através de carta para proceder ao pagamento da quantia de 80.464,22 euros respeitante ao empréstimo acima referido- cfr. documento junto como requerimento executivo.
Nesta sequência, é necessário atentar que da factualidade provada resulta expressamente que a Recorrente considerou vencida toda a dívida em 29/11/2010.
Mas mesmo que assim não se entendesse, acresce ainda que ficou de igual modo provado que em 17/10/2016 a Recorrente comunicou por carta registada ao Embargante que se encontrava em divida o valor global de 136.579,78 euros e fixou-lhe o prazo até 25/10/2016 para proceder ao pagamento sob pena de instauração de acção judicial, ou seja, pelo menos nesta data sempre teria ocorrido o vencimento de toda a dívida para efeitos do disposto no art. 781.º, do Código Civil.
Ora, considerando ser pacificamente aplicável o prazo de prescrição de cinco anos, se a presente execução foi instaurada apenas em 25/04/2023 já há muito tinha ocorrido a prescrição.
A Recorrente entende ainda que as cartas de interpelação que enviou são susceptíveis de interromper o prazo de prescrição. Mas não lhe assiste razão, como veremos.
Nos termos do disposto no art. 323.º, do Código Civil, sob a epígrafe “Interrupção promovida pelo titular”:
1. A prescrição interrompe-se pela citação ou notificação judicial de qualquer acto que exprima, directa ou indirectamente, a intenção de exercer o direito, seja qual for o processo a que o acto pertence e ainda que o tribunal seja incompetente.
2. Se a citação ou notificação se não fizer dentro de cinco dias depois de ter sido requerida, por causa não imputável ao requerente, tem-se a prescrição por interrompida logo que decorram os cinco dias.
3. A anulação da citação ou notificação não impede o efeito interruptivo previsto nos números anteriores.
4. É equiparado à citação ou notificação, para efeitos deste artigo, qualquer outro meio judicial pelo qual se dê conhecimento do acto àquele contra quem o direito pode ser exercido.
Daqui resulta com relevância para o caso concreto, como exemplarmente refere Júlio Gomes
9
, «Como se vê, no nosso regime, apenas a prática de actos judiciais (citação, notificação judicial ou qualquer outro meio judicial pelo qual se dá conhecimento do acto àquele contra quem o direito pode ser exercido) pode operar a interrupção da prescrição. A interrupção da prescrição não ocorrerá, por exemplo, com o envio de comunicações extrajudiciais pelo credor (ao contrário do que sucede, por exemplo, na lei italiana). Em contrapartida, a notificação judicial avulsa, de acordo com o Ac. Uniformizador de Jurisprudência n.º 3/98 do STJ de 26.03.1998 tem esse efeito interruptivo.
A este propósito, com relevância, por todos, decidiu-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21/04/2022
10
(Leonor Cruz Rodrigues, proc. n.º ,
www.dgsi.pt
) o seguinte:
«III – A prescrição interrompe-se pelos meios que a lei autoriza como tais, pois que, estando regulada por normas de ordem pública, não se admitem modificações operadas por particulares.
IV – Nos termos do artigo 323º do Código Civil, para que a prescrição se tenha por interrompida, é necessário que o credor manifeste judicialmente ao devedor a intenção de exigir a satisfação do seu crédito e que este, por esse meio, tenha conhecimento daquele exercício ou daquela intenção.
V - Decorre claramente deste preceito (artº 323º) que não basta o exercício extrajudicial do direito para interromper a prescrição: é necessária a prática de actos judiciais que, directa ou indirectamente, dêem a conhecer ao devedor a intenção de o credor exercer a sua pretensão.
VI - O envio de comunicações extrajudiciais não é, pois, meio idóneo para operar a interrupção da prescrição.».
Então, não existem quaisquer dúvidas, é incontroverso que no nosso sistema jurídico o único meio idóneo apto a interromper a prescrição tem de ser um acto judicial, excluindo-se assim qualquer outro meio extrajudicial como sucede com as cartas de interpelação invocadas pela Recorrente, sem necessidade de maiores desenvolvimentos sobre esta temática, porque redundantes.
Nesta sequência, é manifesto que as cartas de interpelação extrajudiciais enviadas pela Recorrente não têm a virtualidade de interromper o prazo de prescrição em causa.
Deste modo, não ocorreu a invocada interrupção da prescrição.
Em síntese, impõe-se julgar totalmente improcedente o recurso de apelação e confirmar a sentença recorrida.
*
11. Responsabilidade Tributária
As custas do recurso de Apelação são da responsabilidade da Recorrente.
*
III. DISPOSITIVO
Nos termos e fundamentos expostos,
1.
Acordam os Juízes da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar totalmente improcedente o recurso de apelação interposto pela Recorrente e, em consequência confirmar a Sentença da Primeira Instância.
2.
As custas do recurso de Apelação são da responsabilidade da Recorrente.
3.
Registe e notifique.
*
Évora, data e assinaturas certificadas
Relator:
Filipe César Osório
1.º Adjunto
: Manuel Bargado
2.º Adjunto:
Susana Ferrão da Costa Cabral
1.
Atento o seu teor, deve considerar-se como “contra-alegações”, pesar de qualificar o seu requerimento como “recurso subordinado” – questão decidida por despacho de 08/12/2024.
↩︎
2.
Certamente quis dizer-se “escritura”.
↩︎
3.
Certamente quis dizer-se “consta”.
↩︎
4.
- Abrantes Geraldes e outros, ob. cit., pág. 793.
↩︎
5.
https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/54940067083ff01f802587a80057e6d2?OpenDocument
↩︎
6.
https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/9e31989ba631ed0580258b49004b2768?OpenDocument
↩︎
7.
Como de igual modo se menciona no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/09/2010 (Álvaro Rodrigues, proc. n.º 341/08.9TCGMR.G1.S2,
www.dgsi.pt
) citado pela própria Recorrente.
↩︎
8.
https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/a70ec33f0b9389f3802589790070d11f?OpenDocument
↩︎
9.
Comentário ao Código Civil, Parte Geral, 2.ª ed., UCP Editora, 2023, pág. 942.
↩︎
10.
https://www.dgsi.pt/JSTJ.NSF/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/a3078e5df255058180258830003742c2?OpenDocument
↩︎
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TRE
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https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/9972e40e302d7a7780258c8f002cffbf?OpenDocument
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1,741,219,200,000
| null |
3947/24.5T8FAR.E1
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3947/24.5T8FAR.E1
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ARTUR VARGUES
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Um despacho a dar sem efeito uma anterior decisão que ordenava a devolução das custas, sem contraditório e sem qualquer facto superveniente, constitui uma violação dos princípios da segurança jurídica, proteção da confiança legítima e da proibição de decisões surpresa, pelo que tal alteração não é admissível, por tal despacho ter sido lavrado em momento e circunstâncias em que o poder jurisdicional já se tinha esgotado, enfermando de ineficácia processual.
|
[
"DEVOLUÇÃO DE TAXA DE JUSTIÇA",
"ALTERAÇÃO DA DECISÃO",
"INEFICÁCIA PROCESSUAL"
] |
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora
I - RELATÓRIO
1. No Tribunal Judicial da Comarca de … – Juízo Local Criminal de … – Juiz …, Proc. com o nº 3947/24.5T8FAR, foi proferido despacho, aos 07/04/2025, em que se decidiu dar sem efeito a parte de despacho anterior que determinou a “devolução das custas”.
2. Inconformada com o teor do referido despacho, dele interpôs recurso a arguida “AA.”, para o que formulou as seguintes conclusões (transcrição):
A. A Recorrente foi absolvida em processo de contraordenação, por decisão judicial transitada em julgado, que declarou a nulidade da decisão administrativa por imputar norma que não constitui contraordenação.
B. A douta sentença fixou expressamente que o processo decorreria sem custas, sendo a Recorrente, portanto vencedora em juízo.
C. Apenas as decisões desfavoráveis ao arguido dão lugar ao pagamento de taxa de justiça.
D. O despacho inicialmente proferido pelo Tribunal a quo – que determinou a devolução da taxa de justiça paga – encontra-se conforme à letra da lei e aos princípios fundamentais do processo penal e contraordenacional.
E. O despacho ora recorrido, ao revogar tal decisão com base no AUJ nº 2/2014, viola o disposto no artigo 93º, nº 3 do RGCO, impondo um encargo indevido a quem foi absolvido.
F. O entendimento do voto de vencido no AUJ 2/2014, acolhido em várias decisões dos tribunais de 1ª instância e da Relação, reconhece que:
Não há norma no RCP que obste à restituição da taxa de justiça nestes casos;
A restituição é coerente com o regime do RGCO, bem como com o direito ao recurso e à tutela jurisdicional efetiva;
O exercício de um direito constitucional não pode ser penalizado com um encargo financeiro, quando quem o exerce obtém vencimento.
G. A manutenção do despacho recorrido desincentiva o exercício do direito ao recurso, penaliza economicamente a parte vencedora e compromete os princípios da equidade e da justiça material.
H. A revogação da decisão que ordenava a devolução das custas, sem contraditório e sem qualquer facto superveniente, constitui uma violação dos princípios da segurança jurídica, proteção da confiança legítima e da proibição de decisões surpresa.
I. Esses princípios, impõem a previsibilidade e estabilidade das decisões judiciais, especialmente quando já proferidas no sentido favorável à parte, como sucedeu no caso da Recorrente.
Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente, e, em consequência, ser revogado o despacho recorrido com a ref.ª …, mantendo-se o despacho anterior que ordenou a restituição da taxa de justiça à ora Recorrente.
Assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!
3. O recurso foi admitido.
4. O Digno Magistrado do Ministério Público junto do tribunal a quo apresentou resposta à motivação de recurso, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
5. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto apôs o seu “visto”.
6. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
II - FUNDAMENTAÇÃO
1. Âmbito do Recurso
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, Edições Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/99, CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág. 196 e Ac. do Pleno do STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série A, de 28/12/1995.
No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, a questão que se suscita é a da inadmissibilidade do despacho de não devolução à arguida/recorrente do montante pago a título de taxa de justiça, quando em despacho anterior se tinha determinado essa devolução.
2. Elementos relevantes para a decisão
2.1 “AA” impugnou judicialmente a decisão da Câmara Municipal de … que lhe aplicou coima no montante de 45,00 euros, pela prática de uma contraordenação de não cumprimento da indicação dada pelo sinal de proibição C16 – paragem e estacionamento proibidos.
2.2 Por sentença de 14/02/2025, foi declarada nula a decisão da entidade administrativa e absolvida a arguida, decidindo-se também a não condenação desta em custas.
2.3 Aos 22/03/2025, a arguida requereu ao tribunal a devolução da quantia que pagou a título de taxa de justiça, no valor de 102,00 euros.
2.4 Na sequência desse requerimento foi, aos 28/03/2025, proferido o despacho, na parte que releva: “proceda à devolução da quantia requerida (custas)”.
2.5 A decisão recorrida, lavrada aos 07/04/2025, apresenta o seguinte teor (transcrição):
Atento o teor do AUJ 2/2014 de 14/04, dou sem efeito a parte do despacho anterior que determinou a devolução das custas.
Apreciemos.
Como resulta do transcrito, o tribunal recorrido determinou, aos 28/03/2025, na sequência de requerimento apresentado com esse escopo pela arguida “AA”, a devolução da quantia por esta paga nos autos a título de taxa de justiça.
Porém, em 07/04/2025, sem que requerimento algum fosse atravessado nos autos, mormente pelo Ministério Público, por iniciativa própria, o tribunal a quo deu sem efeito essa decisão de devolução, alterando-a em sentido absolutamente contrário.
Ora, de acordo com o estabelecido no artigo 613º, nº 1, do Código de Processo Civil, aplicável por força do artigo 4º, do CPP (uma vez que este não contém norma equivalente que reja), “proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa”, admitindo-se a correção da sentença ou de despacho apenas nos casos previstos nas alíneas a) e b), do nº 1, do artigo 380º, do CPP (regime próprio do processo penal), sendo certo que, no caso em apreço, não estamos manifestamente perante a situação enunciada nessa alínea a) e, claro se torna também que a decisão de 07/04/2025 modifica na sua essência a de 28/03/2025, pelo que tal alteração não é admissível, por o despacho recorrido ter sido lavrado em momento e circunstâncias em que o referido poder jurisdicional já se tinha esgotado.
Termos em que, o despacho de 07/04/2025 enferma de ineficácia processual, pois, como se salienta na decisão sumária do Tribunal da Relação de Coimbra de 24/04/2018, Proc. nº 3639/09.5TJCBR3639/09.5TJCBR--A.C1, disponível em A.C1, disponível em www.dgsi.ptwww.dgsi.pt, “se a lei determina a ineficácia entre duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, no referido art. 625º do NCPC, paralisando a que transitou em segundo lugar, afigura--se--nos que semelhante raciocínio e consequência jurídica, pode ser feito e há--de ser tirada em relação à situação processual imediatamente antecedente, isto é, quando embora ainda não haja trânsito em julgado de nenhuma das decisões, tivessem sido proferidas duas, de seguida, de sinal contrário. Ou seja, perante a intangibilidade da primeira decisão a defesa da sua eficácia faz--se a montante, num momento anterior, em vez de se esperar que tal ineficácia se produza a jusante, num momento ”posterior”.
Não podendo subsistir esse despacho, cumpre revogá-lo, concedendo provimento ao recurso.
III - DISPOSITIVO
Nestes termos, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso interposto pela arguida “AA” e revogar a decisão recorrida, por ser processualmente ineficaz, devendo ser cumprido o despacho de 28 de Março de 2025, 1ª parte.
Sem tributação.
Évora, 3 de Junho de 2025
(Consigna-se que o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário)
________________________________________
(Artur Vargues)
_______________________________________
(Jorge Antunes)
_______________________________________
(Manuel Ramos Soares)
|
TRE
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https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/ad7073c39f68e9e380258cab002b561b?OpenDocument
|
1,743,033,600,000
| null |
92/24.7T8LGA-B.E1
|
92/24.7T8LGA-B.E1
|
TOMÉ DE CARVALHO
|
1 – O incidente de qualificação da insolvência visa, fundamentalmente, averiguar as causas e as razões que conduziram à insolvência do devedor ou o seu agravamento, designadamente se a mesma constituiu o resultado de uma actuação ou omissão culposa, imputável ao devedor a título de dolo ou de negligência.
2 – Para que a insolvência possa ser considerada culposa é imperioso que se esteja perante uma conduta dolosa ou com culpa grave que apresente um nexo de causalidade com a situação de insolvência ou com o seu agravamento, cometida dentro de um determinado limite temporal.
3 – O preenchimento da
fattispecie
da insolvência culposa exige, assim, que, cumulativamente, estejam presentes na decisão de facto, os seguintes requisitos: (i) o facto inerente à actuação, por acção ou omissão, do devedor, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, (ii) a culpa qualificada (dolo ou culpa grave) e (iii) o nexo causal entre aquela actuação e a criação ou o agravamento da situação de insolvência.
4 – A culpa grave, ainda que presumida, por si só não é suficiente para qualificar a insolvência como culposa, e é necessário se torna demonstrar o nexo de causalidade entre aquela omissão culposa e a criação ou o agravamento da situação de insolvência.
5 – O mero incumprimento da obrigação de colaboração, por banda do devedor, sem que se apure a existência do mencionado nexo causal entre o comportamento omissivo e a criação ou o agravamento da situação de insolvência, não permite concluir por um cenário de qualificação do comportamento do insolvente.
(Sumário do Relator)
|
[
"INCIDENTE DE QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA",
"INSOLVÊNCIA CULPOSA",
"CULPA GRAVE",
"AGRAVAMENTO"
] |
Processo n.º 92/24.7T8LGA-B.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo de Comércio de Lagoa – J1
*
Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório:
(…) foi declarado insolvente e o subsequente incidente de qualificação da insolvência foi julgado procedente, tendo o afectado pela qualificação interposto recurso desta decisão.
*
A administradora da insolvência requereu o incidente de qualificação da insolvência de (…) como culposa, pedindo que o mesmo fosse afectado com tal qualificação.
Para tanto, alegou que o insolvente não forneceu as informações necessárias a apurar a sua situação patrimonial, incumprindo de forma reiterada os seus deveres de colaboração, comportamento que se subsume no previsto na alínea i) do n.º 2 do artigo 186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
*
O Ministério Público não acompanhou o parecer da administradora da insolvência, sublinhando, para o efeito, que a conduta imputada ao insolvente não é subsumível em qualquer das presunções de culpa previstas no n.º 2 do artigo 186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e que a conduta omissiva apontada ao devedor não está directamente relacionada com a situação de insolvência declarada na sentença mas com a sociedade de que o mesmo é sócio.
*
O insolvente deduziu oposição onde afirmou que enviou à administradora os elementos referentes ao exercício do ano de 2022 (declaração de IVA, IRC e balancete) e que não foi junta a documentação relativa ao ano de 2023 por não terem sido apresentadas declarações referentes a esse exercício.
Mais adiantou o que está em causa a sua insolvência pessoal e se está a confundir a sua situação com a da sociedade de que é sócio, concluindo que à pessoa singular não se aplicam as presunções referidas no n.º 2 do artigo 186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
*
A decisão recorrida tem os seguintes segmentos decisórios:
a) declarar afectado pela qualificação o insolvente (…).
b) declarar (…) inibido, pelo período de 3 anos, para o exercício do comércio e para ocupar qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa.
c) condenar (…) a indemnizar os credores no montante dos créditos não satisfeitos nos autos, até às forças do respectivo património, sendo o valor da indemnização o devido, de acordo com os créditos reclamados.
*
O afectado pela qualificação não se conformou com a referida decisão e o recurso apresentado continha as seguintes conclusões:
«I) O tribunal
a quo
considerou procedente o incidente de qualificação e a insolvência de (…) como culposa, por incumprimento da alínea i) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE e, em consequência foi declarado afetado pela qualificação o próprio (…); ficando inibido pelo período de 3 anos, para o exercício do comércio, e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa; e, ainda, vai condenado a indemnizar os credores no montante dos créditos não satisfeitos nos autos, até às forças do respetivo património, sendo o valor da indemnização o devido, de acordo com os créditos reclamados;
II) A questão a decidir é apurar se existe atuação dolosa ou de culpa grave do Recorrente na criação ou no agravamento da sua situação de insolvência, não concordando o Recorrente que dos factos dados como provados, se possa subsumir que estamos perante um comportamento / atuação dolosa ou de culpa grave do devedor, na criação ou no agravamento da sua situação de insolvência pessoal requerida, de forma que seja afetado com tal qualificação o aqui Recorrente, o que motiva as presentes alegações;
III) Veio o Insolvente, aqui Recorrente, apresentar-se à Insolvência pessoal em 08.05.2024, apresentando para o efeito todos as informações e documentos previstos e elencados no artigo 24.º do CIRE e, explicitou a factualidade concreta que o levou à situação de insolvência e, de todo o circunstancialismo exposto, nada há de atuação culposa ou culpa grave na criação ou agravamento da sua situação de insolvência;
IV) Bem pelo contrário, emerge que a situação de insolvência, resultou de fatores externos à vontade do aqui Recorrente, que interferiram com a sua capacidade económico-financeira e, que originaram um desequilíbrio económico grave que se manifestou na insuficiência do ativo para satisfação do passivo do devedor e, em consequência, uma espiral de problemas, dos quais o Recorrente sem solução, se viu impossibilitado de sair;
V) Quanto à sua situação profissional, com verdade declarou que é o único sócio e gerente, da sociedade comercial por quotas com a firma “(…), Unipessoal, Lda.”, pessoa coletiva com o n.º único (…), detentor de uma quota no valor nominal de € 50,00 (cinquenta euros), correspondente à totalidade do capital social da sociedade, auferindo em resultado da função exercida, a retribuição mensal correspondente ao salário mínimo nacional;
VI) Em 10.05.2024 foi proferida Sentença, julgando procedente a ação e, em consequência, foi declarada a insolvência do aqui Recorrente;
VII) No presente incidente de qualificação a Sra. Administradora veio nos termos e para os efeitos no n.º 2 do artigo 188.º do CIRE, apresentar parecer no qual concluiu que a presente Insolvência deve ser qualificada como culposa por incumprimento no envio de documentos relativos à sociedade do qual é sócio e gerente, subsumindo-se o seu comportamento na alínea i) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, com fundamento no facto de ter, relativamente à sociedade “(…), Unipessoal Lda”, requerido o envio – da IES e declaração de IRC dos últimos três anos; Declarações de IVA referentes aos últimos doze meses; Balanço e Balancete a 31.12.2022 e 31.12.2023; Inventário e lista de existência à presente data; e Indicação de quais os planos que apresenta para sanear a sociedade – e de estes documentos não terem sido entregues, por a sua obtenção se ter demonstrado impossível em virtude de não terem sido apresentados quaisquer declarações e documentos referente ao exercício do ano de 2023;
VIII) A Digníssima Procuradora da República do Ministério Público, veio emitir parecer, mencionando que o Ministério Público não acompanha o douto parecer da Sra. Administradora da Insolvência, pugnando para que a insolvência seja declarada como fortuita;
IX) Ora, estamos perante uma insolvência culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, conforme o disposto no n.º 1 do artigo 186.º do CIRE, resultando do n.º 2 do referido artigo, que este se aplica ao devedor que não seja pessoa singular. In casu, o Insolvente é uma pessoa singular e está em causa a sua insolvência pessoal e não da sociedade da qual é sócio-gerente;
X) Resulta do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 28-01-2015, referente ao Processo n.º 1460/14.8TBGMR-D.G1, que:
“1 - São requisitos da insolvência culposa:
a) o facto inerente à actuação, por acção ou omissão, do devedor ou dos seus administradores, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência;
b) a culpa qualificada (dolo ou culpa grave);
c) e o nexo causal entre aquela actuação e a criação ou o agravamento da situação de insolvência.
(…)
Mas porque a culpa grave, assim presumida, por si só não é suficiente para qualificar a insolvência como culposa, por faltar um dos requisitos previstos no n.º 1 do citado artigo 186.º, necessário se torna demonstrar o nexo de causalidade entre aquela omissão culposa e a criação ou o agravamento da situação de insolvência”.
XI) Tal como a situação do referido Acórdão, dos autos de Insolvência resulta que o que conduziu o devedor à Insolvência, foi o facto de este em 2022, ter contratado com a empresa “(…), Lda.”, a compra de material do comércio desta, pagando o preço antes de receber a mercadoria, sendo que esta embora já tivesse na sua posse o pagamento dos equipamentos solicitados, não lhe chegou a entregar os materiais nem a devolver o montante já pago, equipamento fotovoltaico que o Recorrente necessitava para realizar as obras que se encontravam em curso, em habitações dos seus clientes e, cujo dinheiro adiantaram para a aquisição dos mesmos;
XII) E, embora o Recorrente tenha intentado ação de condenação com processo comum contra a empresa “(…), Lda.”, que correu os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, Juízo Central Cível de Leiria - Juiz 1, proc. n.º 522/23.5T8LRA e, tendo sido a final proferida sentença já transitada em julgado, condenando a Ré a restituir ao aqui Recorrente, a quantia de € 24.339,86 (vinte e quatro mil e trezentos e trinta e nove euros e oitenta e seis cêntimos) acrescidos dos juros comerciais legais desde a citação até efetivo pagamento e, a quantia de € 8.000,00 (oito mil euros) a título de danos não patrimoniais, acrescidos de juros de mora à taxa civil contados desde a citação até integral pagamento, a empresa não lhe pagou estes valores, e em execução de sentença que corre os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, Juízo de Execução de Ansião – Juiz 2, Processo n.º 190/24.7T8ANS, por penhoras anteriores, não há quais quer bens a penhorar;
XIII) E foi esta situação que despoletou todo um conjunto de acontecimentos independentes e externos à vontade do Recorrente, que levou a que este não conseguisse terminar as obras que tinha em curso e, consequentemente, a que os clientes solicitassem a devolução do dinheiro já pago para a aquisição dos equipamentos e, como nem os equipamentos lhe foram entregues pela empresa acima referida, nem tão pouco o valor dos mesmos devolvido, ficou impossibilitado de comprar outros equipamentos a outros fornecedores para concluir as obras, tendo-se visto impossibilitado de trabalhar e terminar as obras que tinha em curso, perdendo a sua única fonte de rendimento;
XIV) Ora, dúvidas não podem subsistir que foi esta situação que originou a falta de clientes e, sem clientes não há trabalho e, sem trabalho o Recorrente ficou sem capacidade financeira, para fazer face as suas despesas, não conseguindo suportar as suas despesas e pagar aos seus credores, o que originou o seu passivo;
XV) Resulta do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 07-02-2012, referente ao Processo n.º 2273/10.1TBLRA-B.C1, que:
“A culpa do devedor ou dos seus administradores decorre de um juízo de censurabilidade, em cuja formulação devem ser consideradas as condições que justificam que lhes seja dirigida essa censura. (…) O desvalor que fundamenta a ilicitude da conduta do devedor ou dos seus administradores encontra-se no resultado: a criação ou agravamento da situação de insolvência. Devendo a ilicitude referenciar-se a esse resultado antijurídico, importa verificar, não apenas que esse resultado se produziu – mas se ele pode ser atribuído – imputado – à conduta. (…)
Uma orientação que tem merecido um apoio generalizado é a da causalidade adequada ou da causalidade jurídica sob a forma de adequação, que, simplificadamente, pode formular-se assim: um facto é causa de um resultado, sempre que, em termos de normalidade social, seja adequado a produzir esse resultado (…)
Para que se afirme um nexo de adequação, deve ponderar-se, de um ponto de vista objectivo, se dadas as regras de experiência e o normal acontecer dos factos – o id quod plerumque accidit – a conduta tem como consequência a produção do evento. Caso se entenda que a produção do resultado era imprevisível ou que, sendo previsível, era improvável ou de verificação rara, a imputação não deverá ter lugar. (…)
Contudo, para que neste caso se conclua pelo carácter culposo da insolvência, não basta assentar na culpa grave, ainda que simplesmente presuntiva, dos seus administradores na omissão do cumprimento de qualquer daquelas obrigações; exige-se a prova da relação ou nexo de causalidade entre essa conduta e a criação ou agravamento da situação de insolvência do devedor (…)”;
XVI) Em conformidade com o supra exposto, não se crê ser de responsabilizar o aqui Recorrente pela violação do mencionado dever de incumprimento, de forma reiterada, dos seus deveres de colaboração nos termos da alínea i) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE e, correspondentemente, para presumir a sua culpa grave e, em consequência, para se considerar verificado o caráter culposo da insolvência do aqui Recorrente;
XVII) Até porque, não se considera que esteja provado, o nexo de causalidade entre a conduta do aqui Recorrente – não envio à Sra. Administradora da Insolvência dos documentos relativos à sociedade do qual é sócio – e a criação ou o agravamento da situação de insolvência do devedor, aqui Recorrente;
XVIII) Faltando um dos elementos essenciais, só se pode concluir que não há fundamento para a qualificação da insolvência do aqui Recorrente como culposa e, em consequência, deve o mesmo ser desafetado de tal qualificação;
XIX) Pelo que, só se pode concluir que a presente insolvência para além de pessoal, se deveu exclusivamente a razões externas e independentes da vontade do Recorrente, o que faz com que a Insolvência se considere fortuita, por não estarem verificados todos os requisitos previstos no n.º 1 do citado artigo 186.º do CIRE, pois não se verifica o nexo de causalidade entre aquela omissão de entrega dos documentos referentes à sociedade “(…), Unipessoal, Lda.” solicitados pela Sra. Administradora de Insolvência e, a criação ou o agravamento da situação de insolvência pessoal do aqui Recorrente;
XX) Assim e, pelos motivos supra expostos e que resultam provados, a Insolvência do aqui Recorrente (…) deve ser qualificada e declarada como fortuita, alterando-se a douta sentença em conformidade e, absolvendo o aqui Recorrente do Incidente de Qualificação de Insolvência e desafetando-o de tal qualificação e, das consequências da qualificação da insolvência como culposa, nomeadamente, que não o iniba para o exercício do comércio e ocupação, em geral de cargos sociais, pelo período de 3 (três) anos e, de indemnizar os credores no montante dos créditos não satisfeitos nos autos, até às forças do respetivo património, sendo o valor da indemnização o devido, de acordo com os créditos reclamados;
XXI) Sem prescindir e, se ainda assim se considerar manter a decisão impugnada do incidente de qualificação da insolvência e, em consequência, considerar-se que a insolvência do Recorrente é culposa, sendo este o único responsável e, por isso, deve ser afetado com a qualificação, o que só por mero dever de patrocínio se admite, dir-se-á quanto à medida da inibição para o exercício do comércio e ocupação, em geral de cargos sociais, que ponderados os factos dados como provados e as circunstâncias que levaram à qualificação, bem como a gravidade das mesmas, entende-se por excessivo fixar em 3 (três) anos o período de inibição;
XXII) Pelo que, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 189.º do CIRE e, tendo em conta tudo o supra exposto, bem como a conduta do aqui Recorrente e a gravidade da mesma, deve a inibição para o exercício do comércio, e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa, ser substituída por um período de inibição justo, proporcional e adequado, que se crê ser de 2 (dois) anos.
Nestes termos, nos melhores de Direito, e sempre com o mui douto suprimento de V. Exªs, deve ser dado provimento ao presente recurso e o mesmo julgado procedente e, por via dele, ser revogada a decisão impugnada do incidente de qualificação de insolvência, qualificando-se a insolvência de (…) como fortuita e desafetando-se o recorrente das consequências das consequências da qualificação daquela insolvência como culposa, nos termos pugnados nas presentes alegações, tudo com as legais consequências;
Só assim, se fazendo, a tão habitual e costumada Justiça».
*
Foram apresentadas contra-alegações pelo Ministério Público que, revertendo a posição inicialmente tomada, defende a manutenção do decidido.
*
Admitido o recurso, foram observados os vistos legais.
*
II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal
ad quem
(artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2,
ex vi
do artigo 663.º, n.º 2, do citado diploma).
Analisadas as alegações de recurso, o
thema decidendum
está circunscrito à apreciação da questão da existência de erro interpretação e aplicação do direito quanto à existência de conduta culposa na insolvência.
*
III – Decisão de facto:
3.1 – Factos provados:
Com interesse para a decisão, e tendo em conta os documentos juntos aos autos e a posição assumida pelo requerido na oposição, estão provados os seguintes factos:
1. (…) é solteiro, nasceu a 2 de Junho de 1989 e vive em casa dos pais.
2. É gerente da sociedade comercial por quotas “(…), Unipessoal, Lda.”, que não tem qualquer actividade neste momento, tendo fixada a remuneração mensal correspondente ao salário mínimo nacional.
3. A última remuneração registada nos serviços de segurança social reporta-se a Fevereiro de 2023, no valor de € 760,00.
4. Nas buscas realizadas com vista à apreensão de bens, a administradora da insolvência apenas identificou como património ao insolvente a quota na sociedade “(…), Unipessoal, Lda.” com o valor nominal de € 50,00.
5. A sociedade “(…), Unipessoal, Lda.”, constituída em 18/08/2022, tem sede na habitação onde reside o insolvente.
6. Tem como objecto social a importação de equipamentos solares térmicos, fotovoltaicos, baterias solares, inversores solares, revenda de equipamentos solares painéis fotovoltaicos, instalação de equipamentos solares térmicos e fotovoltaicos.
7. O insolvente é o único sócio da sociedade.
8. Para avaliar o valor de mercado da participação social e apurar a eventual existência de património em nome da sociedade a administradora da insolvência, a 23/05/2024 solicitou ao insolvente o envio dos seguintes elementos (doc. 1 junto com o requerimento de 24/10/2024):
a. IES e declaração de IRC dos últimos três anos;
b. Declarações de IVA referentes aos últimos doze meses;
c. Balanço e Balancete a 31/12/2022 e 31/12/2023;
d. Inventário e lista de existência à presente data.
e. Indicação de quais os planos que apresenta para sanear a sociedade, considerando a declaração de que esta se encontra incapaz de proceder sequer ao pagamento de salário mínimo.
9. Em 29/05/2024, a advogada do insolvente informou que o insolvente estava a tentar obter todos os documentos “junto do gabinete de contabilidade” e requereu a prorrogação de prazo por 10 dias (doc. 2 junto com o requerimento de 24/10/2024).
10. Não tendo o insolvente apresentado os documentos solicitados, a administradora da insolvência insistiu pelo envio por e-mail de 12 de Junho de 2024 e novamente em 18 de Junho de 2024 (doc. 3 junto com o requerimento de 24/10/2024).
11. No dia 19 de Junho de 2024, a mandatária do insolvente remeteu à administradora da insolvência os documentos referentes ao ano de 2022, nomeadamente declaração de IVA, IRC e balancete referente ao período compreendido entre Janeiro e Dezembro de 2022 (doc. 5 junto com o requerimento de 24/10/2024).
12. Em 21 de Junho de 2024 a administradora da insolvência remeteu novo e-mail à mandatária do insolvente informando que os documentos que havia enviado não correspondiam à totalidade do solicitado informando que tais documentos não demonstram a totalidade do património da sociedade e o balancete não demonstra o inventário nem o mapa de amortizações (doc. 9 junto com o requerimento de 24/10/2024).
13. A administradora da insolvência alertou para a necessidade de colaboração do insolvente.
14. Tendo ainda mencionado que a sociedade não havia publicado as contas nos três últimos anos, pelo que ainda era mais premente que fornecesse a informação solicitada.
15. E informou novamente os documentos em falta:
IES (2021, 2022 e 2023) e declaração de IRC (2021 e 2023);
Declarações de IVA referentes aos últimos doze meses,
Balanço e Balancete a 31/12/2023;
Inventário e lista de existência à presente data.
Planos para sanear a sociedade (doc. 9 junto com o requerimento de 24/10/2024).
16. A administradora da insolvência estabeleceu como prazo limite para a apresentação dos documentos a data da apresentação do relatório do artigo 155.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
17. O requerido não apresentou os documentos em falta nem prestou qualquer outra informação.
18. A 2 de Julho de 2024 a administradora da insolvência apresentou o relatório a que alude o artigo 155.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, propondo o encerramento do processo de insolvência por insuficiência da massa insolvente.
*
3.2 – Factos não provados:
Inexistem.
*
IV – Fundamentação:
4.1 – Da qualificação da insolvência:
4.1 – Considerações gerais sobre a qualificação da insolvência e a certificação do preenchimento da presunção de culpa:
A insolvência é qualificada como culposa ou fortuita, mas a qualificação atribuída não é vinculativa para efeitos da decisão de causas penais, nem das acções a que se reporta o n.º 3 do artigo 82.º (artigo 185.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).
A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação dolosa ou com culpa grave do devedor ou dos seus administradores de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo (n.º 1 do artigo 186.º
[1]
do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).
A apreciação da culpa deve ser feita à luz da disciplina contida no n.º 2 do artigo 186.º do Código da Insolvência e da Recuperação da Empresa e o n.º 3 do mesmo preceito provisiona situações em que a responsabilidade se presume.
*
Sobre esta matéria debruçam-se Carvalho Fernandes
[2]
, Carneiro da Frada
[3]
, Luís Menezes Leitão
[4]
, Maria do Rosário Epifânio
[5][6]
, Catarina Serra
[7][8][9]
, Coutinho de Abreu
[10]
, Nuno Pinto Oliveira
[11][12]
, José Engrácia Antunes
[13]
, José Manuel Branco
[14]
, Adelaide Menezes Leitão
[15]
, Miguel Pupo Correia
[16]
, Maria Elisabete Ramos
[17]
, Maria de Fátima Ribeiro
[18]
, Carla Magalhães
[19]
, Liliana Pinto de Carvalho
[20]
, Rui Pinto Duarte
[21][22]
, Rui Estrela de Oliveira
[23][24]
e Marco Carvalho Gonçalves
[25]
, entre outros.
Para a qualificação da insolvência importa que tenha ocorrido uma conduta do devedor ou dos seus administradores que tenha criado ou agravado o quadro de insolvência, que esse comportamento voluntário e ilícito corresponda a uma actuação dolosa ou cometida com culpa grave e é necessário que a situação causal tenha ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
O n.º 2 do artigo 186.º elenca, de forma taxativa, nas suas alíneas a) a i) as situações fácticas que implicam a caracterização da insolvência como culposa e ali estão presentes presunções
iuris et de iure
, inilidíveis, que fundamentam a existência de um quadro de culpa grave, da existência do nexo de causalidade entre a conduta tipificada e a criação ou agravamento da situação de insolvência
[26]
[27]
[28]
.
Na verdade, a compreensão interpretativa dominante aponta que a mera alegação de alguma das situações descritas nos n.ºs 2 e 3 do artigo 186.º do CIRE não é suficiente para a qualificação da insolvência como culposa, exigindo-se, ainda, a alegação e prova do nexo de causalidade entre a actuação ali presumida e a situação da insolvência nos termos previstos no n.º 1 do mesmo artigo. Verificada a existência de factos que se reconduzam às situações previstas no n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, extrair-se-á em princípio (a lei extrai, ficciona) a ilação da verificação da insolvência culposa, sem necessidade de comprovação (ou alegação) de outros factos
[29]
.
Nesta dimensão, em sumário intercalar, pode concluir-se que para que a insolvência possa ser considerada culposa é imperioso que se esteja perante uma conduta dolosa ou com culpa grave que apresente um nexo de causalidade com a situação de insolvência ou com o seu agravamento, cometida dentro de um determinado limite temporal.
*
4.2
–
Da situação concreta – Do incumprimento, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no n.º 2 do artigo 188.º
[30]
do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Está aqui em causa o incumprimento do dever de colaboração e é consensual que n.º 4 do artigo 186.º estende a aplicação desse regime, com as necessárias adaptações, à actuação das pessoas singulares insolventes.
Porém, neste particular, é de atentar que, nos termos do artigo 18.º
[31]
do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, a insolvência de ente singular nunca poderá ser qualificada como culposa pelo facto de se ter verificado uma mera omissão ou retardamento na apresentação, ainda que tal tenha provocado um agravamento da sua situação económica.
Na situação judicanda é de tomar em consideração que se está perante uma insolvência da pessoa singular e não é de atentar à situação da empresa “(…) Solar, Unipessoal, Lda.”, a não ser para os efeitos de reconstituição do património pessoal do insolvente. Isto é, quanto à pessoa colectiva, no presente processo apenas se poderia visar o esclarecimento sobre o valor da quota detida na sociedade em questão para efeito de posterior liquidação desse património societário.
Dito isto, acompanhamos claramente a reconstituição histórica efectuada e o pensamento da Mm.ª Juíza de 1ª Instância quando afirma que ocorreu uma violação reiterada do dever de colaboração, na acepção inscrita no artigo 83.º
[32]
do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Na verdade, tal como se extrai da decisão recorrida «
a Sra. Administradora tentou durante mais de um mês, através da mandatária do devedor que este que enviasse os documentos em falta, mas a partir de 19 de Junho de 2024, não obstante as diversas interpelações, o devedor remeteu se ao silêncio
».
Mais se escreveu que «
se o devedor não tinha os documentos, como agora veio dizer, deveria disso ter informado a Sra. Administradora. O artigo 83.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, impõe ao insolvente uma conduta ativa de colaboração prestando as informações que lhe sejam solicitadas. Ao remeter-se ao silêncio não enviando os documentos o devedor insolvente incumpriu a obrigação de informação que sobre si recaía
».
Contudo, não se pode confundir uma presunção de culpa com o requisito matricial constitutivo da qualificação da insolvência e antes disso é imperioso que se comprove a circunstância de a situação de insolvência ter sido criada ou agravada em virtude de uma actuação dolosa ou com culpa grave do devedor.
Na realidade, na esteira de Marco Carvalho Gonçalves, o incidente de qualificação da insolvência visa, fundamentalmente, averiguar as causas e as razões que conduziram à insolvência do devedor ou o seu agravamento, designadamente se a mesma constituiu o resultado de uma actuação ou omissão culposa, imputável ao devedor a título de dolo ou de negligência
[33]
.
A insolvência culposa pressupõe a verificação de um elemento intencional ou subjectivo
[34]
e o regime de qualificação da insolvência compõe-se ainda de um conjunto (inilidíveis e ilidíveis)
[35]
, mas antes disso é imprescindível que esta actuação tenha criado ou agravado a situação de insolvência em que o devedor se encontra.
É certo que a recusa de prestação de informações ou de colaboração é livremente apreciada pelo juiz, nomeadamente para efeito da qualificação da insolvência como culposa.
No entanto, previamente ao escrutínio da avaliação dessa intencionalidade, é imperioso que se demonstre a verificação do elemento objectivo, que afere se «a ilicitude da actuação do devedor ou dos administradores pela sua correspondência com o estado de insolvência do primeiro: a conduta é ilícita se dela resulta a criação ou agravamento da situação de insolvência»
[36]
.
Prosseguindo, no citado aresto conclui-se que, para que se afirme um nexo de adequação, deve ponderar-se, de um ponto de vista objectivo, se dadas as regras de experiência e o normal acontecer dos factos – o id quod plerumque accidit – a conduta tem como consequência a produção do evento.
O preenchimento da
fattispecie
da insolvência culposa exige que, cumulativamente, estejam presentes na decisão de facto os seguintes requisitos: (i) o facto inerente à actuação, por acção ou omissão, do devedor, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, (ii) a culpa qualificada (dolo ou culpa grave) e (iii) o nexo causal entre aquela actuação e a criação ou o agravamento da situação de insolvência.
Por outras palavras, a culpa grave, ainda que presumida, por si só não é suficiente para qualificar a insolvência como culposa, por faltar um dos requisitos previstos no n.º 1 do artigo 186.º, necessário se torna demonstrar o nexo de causalidade entre aquela omissão culposa e a criação ou o agravamento da situação de insolvência
[37]
.
Em suma, o mero incumprimento da obrigação de colaboração, por banda do devedor, sem que se apure a existência do mencionado nexo causal entre o comportamento omissivo e a criação ou o agravamento da situação de insolvência, não permite concluir por um cenário de qualificação do comportamento do insolvente.
Nesta ordem de ideias, julga-se procedente o recurso interposto e revoga-se a decisão recorrida, que, ao ser omissa na enunciação de todos os requisitos objectivos necessários à qualificação da insolvência, implica que a mesma seja considerada fortuita.
*
V – Sumário:
(…)
*
VI – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar procedente o recurso interposto, revogando a decisão recorrida.
Custas do recurso a cargo da massa insolvente, face ao disposto no artigo 527.º do Código de Processo Civil.
*
Processei e revi.
*
Évora, 27/03/2025
José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho
Mário Branco Coelho
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
__________________________________________________
[1] Artigo 186.º (Insolvência culposa):
1 - A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
2 - Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;
b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas;
c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação;
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
e) Exercido, a coberto da personalidade colectiva da empresa, se for o caso, uma actividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa;
f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto;
g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;
h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;
i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração previstos no artigo 83.º até à data da elaboração do parecer referido no n.º 6 do artigo 188.º.
3 - Presume-se unicamente a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido:
a) O dever de requerer a declaração de insolvência;
b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.
4 - O disposto nos n.ºs 2 e 3 é aplicável, com as necessárias adaptações, à actuação de pessoa singular insolvente e seus administradores, onde a isso não se opuser a diversidade das situações.
5 - Se a pessoa singular insolvente não estiver obrigada a apresentar-se à insolvência, esta não será considerada culposa em virtude da mera omissão ou retardamento na apresentação, ainda que determinante de um agravamento da situação económica do insolvente.
[2] Carvalho Fernandes, A Qualificação da Insolvência e a Administração da Massa Insolvente pelo Devedor, Themis, edição especial, 2005.
[3] Carneiro da Frada, A Responsabilidade dos Administradores na Insolvência, separata da Revista da Ordem dos Advogado, Ano 66, II, Lisboa, 2006.
[4] Luís Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 5ª edição, Almedina, Coimbra, 2013.
[5] Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 6ª edição, Almedina, Coimbra, 2016.
[6] Maria do Rosário Epifânio, O Incidente de qualificação de insolvência, in Estudos em Homenagem ao Professor Saldanha Sanches, vol. II, Coimbra Editora, Coimbra 2001.
[7] Catarina Serra, Decoctor ergo fraudator? – A insolvência culposa (esclarecimentos sobre um conceito a propósito de umas presunções), in Cadernos de Direito Privado n.º 21, 2008.
[8] Catarina Serra, O Novo Regime Português da Insolvência. Uma Introdução, Almedina, Coimbra, 2004, págs. 61 e seguintes.
[9] Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, Almedina, Coimbra, 2018, págs. 298-304.
[10] Coutinho de Abreu, Direito das Sociedades e Direito da Insolvência: Interações, in Catarina Serra (coord.), IV Congresso de Direito da Insolvência, Almedina, Coimbra, 2017.
[11] Nuno Pinto Oliveira, Responsabilidade civil dos administradores pela insolvência culposa, in Catarina Serra (coord.), I Colóquio de Direito da Insolvência de santo Tirso, Almedina, Coimbra, 2014, págs. 195 e seguintes.
[12] Nuno Pinto Oliveira, Responsabilidade civil dos administradores – Entre Direito Civil, Direito das Sociedades e Direito da Insolvência, Coimbra Editora, Coimbra, 2015.
[13] José Engrácia Antunes, O âmbito subjectivo do incidente de qualificação da insolvência, in Revista de Direito da Insolvência, 2017, n.º 1.
[14] José Manuel Branco, A qualificação da insolvência (análise do instituto em paralelo com outros de tutela dos credores e enquadramento no regime dos deveres dos administradores, AA. VV, Processo de Insolvência e acções conexas, Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, 2014.
[15] Adelaide Menezes Leitão, Insolvência culposa e responsabilidade dos administradores na Lei 16/2012, de 20 de Abril, in Catarina Serra (coord.), I Congresso de Direito da Insolvência, Almedina, Coimbra, 2013.
[16] Miguel Pupo Correia, Inabilitação do insolvente culposo, in Lusíada – Revista de ciência e Cultura, 2011, nºs 8-9, págs. 237 e seguintes.
[17] Maria Elisabete Ramos, Insolvência da sociedade e efectivação da responsabilidade civil dos administradores, Separata do Boletim da Faculdade de Direito, 2007, vol. LXXXXIII, págs. 449 e seguintes.
[18] Maria de Fátima Ribeiro, A responsabilidade dos administradores pela insolvência: evolução dos direitos português e espanhol, in Revista de direito das Sociedades, 2015, vol. 14, págs. 68 e seguintes.
[19] Carla Magalhães, Incidente de qualificação da insolvência. Uma visão geral, in Maria do Rosário Epifânio, Estudos de Direito da Insolvência, Almedina, Coimbra, 2015.
[20] Liliana Pinto de Carvalho, Responsabilidade dos administradores perante os credores resultante da qualificação da insolvência como culposa, Revista de Direito das Sociedades, 2013, n.º 4.
[21] Rui Pinto Duarte, Responsabilidade dos administradores: coordenação dos regimes do CSC e do CIRE, in Catarina Serra (coord.), III Congresso de direito da Insolvência, Almedina, Coimbra, 2015, págs. 151 e seguintes.
[22] Rui Pinto Duarte, Estudos Jurídicos Vários, Almedina, Coimbra, 2015, págs. 731 e seguintes.
[23] Rui Estrela de Oliveira, Uma brevíssima Incursão pelos incidentes de qualificação da insolvência, in O Direito, ano 142º, 2010, V, págs. 931-987.
[24] Rui Estrela de Oliveira, O incidente de qualificação de insolvência, in Insolvência e consequências da sua declaração – Formação contínua 2011/2012 do Centro de Estudos Judiciários,
https://educast.fccn.pt
.
[25]
[26] Neste sentido Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª edição, Quid Juris, Lisboa, págs. 680-682.
[27] Manuel Carneiro da Frada, in A responsabilidade dos administradores na insolvência, Revista da Ordem dos Advogados, ano 66, Set. 2006, pág. 692.
[28] No plano jurisprudencial podem ser consultados, entre outros, os acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 14/11/06, do Tribunal da Relação do Porto de 22/05/07, de 18/06/07, de 13/09/07, de 27/11/07, do Tribunal da Relação de Lisboa de 22/01/08 e do Tribunal da Relação de Guimarães de 20/09/07, todos disponíveis in www,dgsi.pt.
[29] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10/02/2011, in www.dgsi.pt.
[30] Artigo 188.º (Tramitação):
1 - O administrador da insolvência ou qualquer interessado pode alegar, fundamentadamente, por escrito, em requerimento autuado por apenso, o que tiver por conveniente para efeito da qualificação da insolvência como culposa e indicar as pessoas que devem ser afetadas por tal qualificação, no prazo perentório de 15 dias após a assembleia de apreciação do relatório ou, no caso de dispensa da realização desta, após a junção aos autos do relatório a que se refere o artigo 155.º, cabendo ao juiz conhecer dos factos alegados e, se o considerar oportuno, declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência, nos 10 dias subsequentes.
2 - O prazo de 15 dias previsto no número anterior pode ser prorrogado, quando sejam necessárias informações que não possam ser obtidas nesse período, mediante requerimento fundamentado do administrador da insolvência ou de qualquer interessado, e que não suspende o prazo em curso.
3 - A prorrogação prevista no número anterior não pode, em caso algum, exceder os seis meses após a assembleia de apreciação do relatório ou, no caso de dispensa da realização desta, após a junção aos autos do relatório a que se refere o artigo 155.º.
4 - O juiz decide sobre o requerimento de prorrogação, sem possibilidade de recurso, no prazo de 24 horas, e a secretaria notifica imediatamente ao requerente o despacho proferido, nos termos da segunda parte do n.º 5 e do n.º 6 do artigo 172.º do Código de Processo Civil, e publicita a decisão através de publicação na Área de Serviços Digitais dos Tribunais.
5 - O despacho que declara aberto o incidente de qualificação da insolvência é irrecorrível, sendo de imediato publicado no portal Citius.
6 - Declarado aberto o incidente, o administrador da insolvência, quando não tenha proposto a qualificação da insolvência como culposa nos termos do n.º 1, apresenta, no prazo de 20 dias, se não for fixado prazo mais longo pelo juiz, parecer, devidamente fundamentado e documentado, sobre os factos relevantes, que termina com a formulação de uma proposta, identificando, se for caso disso, as pessoas que devem ser afetadas pela qualificação da insolvência como culposa.
7 - O parecer e as alegações referidos nos números anteriores vão com vista ao Ministério Público, para que este se pronuncie, no prazo de 10 dias.
8 - Se tanto o administrador da insolvência como o Ministério Público propuserem a qualificação da insolvência como fortuita, o juiz pode proferir de imediato decisão nesse sentido, a qual é insuscetível de recurso.
9 - Caso não exerça a faculdade que lhe confere o número anterior, o juiz manda notificar o devedor e citar pessoalmente aqueles que em seu entender devam ser afetados pela qualificação da insolvência como culposa para se oporem, querendo, no prazo de 15 dias; a notificação e as citações são acompanhadas dos pareceres do administrador da insolvência e do Ministério Público e dos documentos que os instruam.
10 - O administrador da insolvência, o Ministério Público e qualquer interessado que assuma posição contrária à das oposições pode responder-lhe dentro dos 10 dias subsequentes ao termo do prazo referido no número anterior.
11 - É aplicável às oposições e às respostas, bem como à tramitação ulterior do incidente da qualificação da insolvência, o disposto nos artigos 132.º a 139.º, com as devidas adaptações.
12 - A instância suspende-se no caso de falecer um dos propostos afetados nos termos do n.º 9.
[31] Artigo 18.º (Dever de apresentação à insolvência):
1 - O devedor deve requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 30 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência, tal como descrita no n.º 1 do artigo 3.º, ou à data em que devesse conhecê-la.
2 - Excetuam-se do dever de apresentação à insolvência:
a) As empresas que se tenham apresentado a processo especial de revitalização durante o período de suspensão das medidas de execução previsto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 17.º-E;
b) As pessoas singulares que não sejam titulares de uma empresa na data em que incorram em situação de insolvência.
3 - Quando o devedor seja titular de uma empresa, presume-se de forma inilidível o conhecimento da situação de insolvência decorridos pelo menos três meses sobre o incumprimento generalizado de obrigações de algum dos tipos referidos na alínea g) do n.º 1 do artigo 20.º.
[32] Artigo 83.º (Dever de apresentação e de colaboração):
1 - O devedor insolvente fica obrigado a:
a) Fornecer todas as informações relevantes para o processo que lhe sejam solicitadas pelo administrador da insolvência, pela assembleia de credores, pela comissão de credores ou pelo tribunal;
b) Apresentar-se pessoalmente no tribunal, sempre que a apresentação seja determinada pelo juiz ou pelo administrador da insolvência, salva a ocorrência de legítimo impedimento ou expressa permissão de se fazer representar por mandatário;
c) Prestar a colaboração que lhe seja requerida pelo administrador da insolvência para efeitos do desempenho das suas funções.
2 - O juiz ordena que o devedor que sem justificação tenha faltado compareça sob custódia, sem prejuízo da multa aplicável.
3 - A recusa de prestação de informações ou de colaboração é livremente apreciada pelo juiz, nomeadamente para efeito da qualificação da insolvência como culposa.
4 - O disposto nos números anteriores é aplicável aos administradores do devedor e membros do seu órgão de fiscalização, se for o caso, bem como às pessoas que tenham desempenhado esses cargos dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência.
5 - O disposto nas alíneas a) e b) do n.º 1 e no n.º 2 é também aplicável aos empregados e prestadores de serviços do devedor, bem como às pessoas que o tenham sido dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência.
[33] Marco Carvalho Gonçalves, Processo de Insolvência e Processos Pré-Insolvenciais, Almedina, Coimbra, 2023, pág. 575.
[34] García-Cruces, Concurso Culpable, in Comentario de la Ley Concursal, Tomo II, Thomson Civitas, Madrid, 2004, pág. 2523.
[35] Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, Almedina, Coimbra, 2018, pág. 300.
[36] Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 07/02/2012, consultável em
www.dgsi.pt
.
[37] Neste sentido, pode ser consultado o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 28/01/2015, pesquisável em
www.dgsi.pt
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TRE
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https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/a857e802197db8db80258c69002ea8a7?OpenDocument
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1,746,489,600,000
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REVOGADA A DECISÃO RECORRIDA NA PARTE IMPUGNADA
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592/22.3T8TVR-B.E1
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592/22.3T8TVR-B.E1
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ANTÓNIO MARQUES DA SILVA
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Sumário (da responsabilidade do relator - art. 663º n.º7 do CPC):
- o acompanhante só está obrigado a prestar contas pelos actos que pratique, não podendo ser obrigado a prestar contas, mormente indicando despesas e sua aplicação, decorrentes de actos cuja autoria lhe não é atribuída.
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[
"PRESTAÇÃO DE CONTAS",
"CONTA BANCÁRIA",
"PATRIMÓNIO",
"ADMINISTRAÇÃO",
"MAIOR ACOMPANHADO"
] |
Proc. 592/22.3T8TVR-B
Acordam no Tribunal da Relação de Évora
I. AA, filha do acompanhado BB, sendo acompanhante CC (irmão da requerente), intentou «incidente de revisão da medida de acompanhamento» alegando, no essencial, que:
- foram realizadas operações bancárias a partir de conta do acompanhado (transferência de 40.000 euros para conta do acompanhante e vários levantamentos em ATM), as quais, dada a ligação do acompanhante com a mãe da requerente, presume terem sido realizadas pelo acompanhante.
- o acompanhante impede a requerente de estar com o acompanhado.
Para além de pedir que fosse constituído o conselho de família, com a intervenção da requerente (ou em alternativa que esta fosse nomeada acompanhante, juntamente com o seu irmão), e que fosse decretada medida que assegurasse o direito do acompanhado de manter a sua relação com a requerente, pediu ainda que fosse «
decretado judicialmente (...) uma prestação de contas ao Acompanhante CC
».
O MP, em representação do acompanhado, respondeu, tendo requerido que o acompanhante prestasse contas das transferências realizadas e indicasse o motivo pelo qual obstaculiza as visitas da requerente ao beneficiário.
O acompanhante respondeu, contrariando a versão da requerente, tendo, em particular, afirmado que:
- os valores em causa pertencem aos pais da requerente e acompanhante.
- a transferência de 40.000 euros visou rentabilizar o valor, sendo a conta titulada pela mãe da requerente e do acompanhado (sendo este segundo titular por pedido da mãe).
- os demais levantamentos foram realizados pela mãe do acompanhante e da requerente, sendo o requerente alheio a tais operações.
Suprida judicialmente a autorização do acompanhado, procedeu-se à produção da prova relevante, no decurso da qual foi realizada transacção e ocorreu desistência parcial do pedido, negócios processuais estes que puseram termo ao processo salvo no que respeita i. à nomeação de um segundo acompanhante e ii. à prestação de contas por parte do acompanhante - passando a ser estas as únicas questões a avaliar.
Foi depois proferida a seguinte decisão:
«
julgo parcialmente procedente o presente incidente de alteração/modificação de medidas de acompanhamento e, consequentemente, determino a obrigatoriedade do Acompanhante CC prestar contas quanto às operações bancárias descritas nos pontos 7) e 8) dos factos provados, absolvendo-se o mesmo do demais peticionado.
».
Mais foi decidido o seguinte: «
Custas do incidente pelo Acompanhante, por ter deduzido oposição (Cfr. art. 539º, n.º 1, do CPC).
».
Desta decisão foi interposto recurso pelo acompanhante, tendo formulado as seguintes conclusões:
1. O tribunal a quo decidiu o seguinte: Custas do incidente pelo acompanhante, por ter deduzido oposição (Cfr art.º 539.º, n.º 1 do CPC (c) Responsabilidade por custas).
2. Discorda-se deste segmento condenatório relativo à obrigação de pagamento de custas, pelo que vem pedir a reforma relativa às custas, nos termos do artigo 616.º, n.º 1 e 3 do CPC.
3. Entendeu o tribunal a quo entender que a mera apresentação da oposição implica, per se, a responsabilização pelo pagamento de custas pelo oponente, independente do vencimento ou decaimento da ação, entendimento que não acompanhamos.
4. O tribunal não atentou à regra contida no número 1 do artigo 533.º do C.P.C, segundo o qual existe a responsabilização da parte vencida, na proporção do seu decaimento e nos termos previsto no Regulamento das Custas Processuais.
5. O artigo 539.º, n.º 1 do Código Processo civil refere que a taxa de justiça nos incidentes é paga pelo requerente e havendo oposição, pelo requerido.
6. Ou seja, cada um pagará a taxa de justiça pelo seu impulso processual, não se podendo interpretar no sentido da responsabilização do pagamento das custas em resultado da apresentação da mera oposição.
7. Na verdade, resulta do disposto nos artºs 529º, nº. 2 do NCPC e 6º, nº. 1 do RCP que o impulso processual de cada interveniente ou parte interessada constitui o elemento sujeito ao pagamento da taxa de justiça, sendo regra geral que os interessados directos no objecto do processo, quer quando impulsionem o seu início, quer quando formulem em relação a ele um impulso de sentido contrário, são responsáveis pelo pagamento de taxa de justiça processual.
8. A Lei não estabelece uma conjunção subordinativa condicional, para indicar uma condição ou uma hipótese (ex.: A taxa de justiça nos procedimento cautelaras ou incidentes é paga pelo requerente ou pelo requerido se houver oposição.”
9. O que importa é o vencimento ou decaimento e, se for o caso, a respectiva proporção e não a imputação das custas ao oponente em qualquer caso. É de elementar justiça distrair as custas judiciais pela medida do decaimento, caso contrário, teríamos que entender que o oponente seria sempre responsável pelas custas mesmo que a oposição ao incidente fosse julgado parcial ou mesmo totalmente procedente.
10. No caso concreto, de acordo com a douta sentença decide o seguinte:
VII- DECISÃO
Em face do exposto julgo parcialmente procedente por provada o presente incidente de alteração/modificação de medidas de acompanhamento e, consequentemente, determino a obrigatoriedade do acompanhante CC prestar contas quanto às operações bancárias descritas em 7) e 8) dos factos provados, absolvendo-se o mesmo do demais peticionado.” (O sublinhado é nosso).
11. In casu, a ação foi parcialmente procedente pelo que há que aferir a medida do decaimento, o qual será essencial pata afectação da responsabilidade pelas custas.
12. Por outro lado, importa proceder à concreta aferição da proporcionalidade do decaimento que não resulta da sentença.
II.II - Conclusões sobre erro de julgamento e Matéria de Direito:
Erro de julgamento:
13. Tem o presente recurso por objecto a sentença proferida pelo tribunal a quo que julgou parcialmente procedente por provado o incidente de alteração/modificação de medias de acompanhamemto e, consequentemente, determinou a obrigatoriedade do Acompanhante CC prestar contas quanto às operações bancarias descritas nos pontos 7) e (8) dos factos provados, absolvendo-se o mesmo do demais peticionado.
14. O objecto do presente recurso respeita, como tal, à decisão de determinação da obrigatoriedade do Acompanhante prestar contas.
15. Na douta sentença proferida pelo tribunal a quo, foram, entre outros, julgados provados os factos seguintes:
“1. V – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
a) Factos Provados:
“1- Por sentença proferida nos autos principais a que este incidente se encontra apenso, em 26.04.2024, transitada em julgado no dia 14.05.2024, foi nomeado CC, como acompanhante do seu pai BB, em regime de representação geral (o qual abrange também a administração de bens).
(…)
7- Nesse mesmo dia 27.05.2024, para além desta transferência, foram efectuados ainda dois levantamentos em ATM BCP Rua da Liberdade, em ..., no valor de € 200,00 (duzentos euros) cada, num total de € 400,00 (quatrocentos euros).
8- Para além dos levantamentos referidos em 7), foram ainda realizados os seguintes levantamentos bancários da conta com o n.º ... do Banco Millennium BCP:
- no dia 18.06.2024, a quantia de € 200,00 (duzentos euros), por duas vezes, em ATM BCP Rua da Liberdade, em ..., num total de € 400,00 (quatrocentos euros);
- no dia 01.07.20244, a quantia de € 200,00 (duzentos euros), numa ocasião e a quantia de € 150,00 (cento e cinquenta euros), numa outra ocasião, ambas em ATM BCP Rua da Liberdade, em ..., num total de € 350,00 (trezentos e cinquenta euros);
- no dia 25.07.2024, a quantia de € 200,00 (duzentos euros), por duas vezes, em ATM CGD ... Gran.PI, num total de € 400,00 (quatrocentos euros);
- em 22.08.2024, a quantia de € 200,00 (duzentos euros), por duas vezes, em ATM CGD ... Gran.PI, num total de € 400,00 (quatrocentos euros);
- em 19.09.2024, a quantia de € 200,00 (duzentos euros), por duas vezes, em ATM ..., num total de € 400,00 (quatrocentos euros).
9- A conta bancária com o n.º ... do Banco Millennium BCP é uma conta que os progenitores da Requerente abriram há mais de 30 anos e que sempre utilizaram para depósito das suas economias de muitos anos, e à qual recorrem para os seus gastos pessoais diários, ordinários e extraordinários.
10. DD, na qualidade de primeira titular da conta bancária referida em 9), é titular de um cartão de débito – cartão multibanco – associado á mesma, com o qual faz levantamentos bancários com a ajuda logística de terceiros.
11- Os saldos contantes na conta referida em 9), pertencem exclusivamente ao Beneficiário e a DD, embora também seja co titulada pela Requerente, que nela nunca fez qualquer provisão ou movimento.
(cfr. douta sentença recorrida, II-Fundamentação de Facto, Factos provados, págs. 4 e 6).
E foram julgados não provados os factos seguintes:
b) Factos Não Provados:
a) Que os levantamentos bancários referidos em 7) e 8) tenham sido realizados pelo Acompanhante CC.
b) Que o Acompanhante CC esteja a colocar DD contra a Requerente, aproveitando-se da deterioração da relação entre elas.
(cfr. douta sentença recorrida, II-Fundamentação, de Facto, Factos não provados, pág. 9).
16. A Meritíssima juiz do tribunal “a quo” entendeu - a nosso ver erradamente - que dos factos dados como provados e não provados resulta a obrigação do acompanhante prestar contas.
17. Estamos perante um duplo erro de julgamento!
Do erro de construção no silogismo judiciário:
18. É que a conclusão extraída dos factos provados em 7), 8), 9), 10) e 11) e não provados em a), não corresponde às premissas de que ele emerge.
19. O processo lógico, silogístico, desenvolvido pelo tribunal “a quo" não está conforme às premissas.
Vejamos:
20. Por um lado, foi como dado como provado que:
• no dia 27.05.2024, foram efectuados ainda dois levantamentos em ATM BCP Rua da Liberdade, em ..., no valor de € 200,00 (duzentos euros) cada, num total de € 400,00 (quatrocentos euros) (Facto provado 7) e;
• E, para além dos levantamentos referidos em 7, foram ainda realizados os seguintes levantamentos bancários da conta com o n.º ... do Banco Millennium BCP:
- no dia 18.06.2024, a quantia de € 200,00 (duzentos euros), por duas vezes, em ATM BCP Rua da Liberdade, em ..., num total de € 400,00 (quatrocentos euros);
- no dia 01.07.20244, a quantia de € 200,00 (duzentos euros), numa ocasião e a quantia de € 150,00 (cento e cinquenta euros), numa outra ocasião, ambas em ATM BCP Rua da Liberdade, em ..., num total de € 350,00 (trezentos e cinquenta euros);
- no dia 25.07.2024, a quantia de € 200,00 (duzentos euros), por duas vezes, em ATM CGD ... Gran.PI, num total de € 400,00 (quatrocentos euros);
- em 22.08.2024, a quantia de € 200,00 (duzentos euros), por duas vezes, em ATM CGD ... Gran.PI, num total de € 400,00 (quatrocentos euros);
- em 19.09.2024, a quantia de € 200,00 (duzentos euros), por duas vezes, em ATM ..., num total de € 400,00 (quatrocentos euros).”
(Facto provado 8.)
• A conta bancária com o n.º ... do Banco Millennium BCP é uma conta que os progenitores da Requerente abriram há mais de 30 anos e que sempre utilizaram para depósito das suas economias de muitos anos, e à qual recorrem para os seus gastos pessoais diários, ordinários e extraordinários. (Facto provado 9.).
• DD, na qualidade de primeira titular da conta bancária referida em 9), é titular de um cartão de débito – cartão multibanco – associado á mesma, com o qual faz levantamentos bancários com a ajuda logística de terceiros. (Facto provado 10.)
21. E, por outro lado, foi dado como não provado:
• Que os levantamentos bancários referidos me 7) e 8) tenham sido realizados pelo Acompanhante CC (Facto não provado a)) .
Ora,
22. tendo sido dado como não provado que foi o acompanhante CC quem efectuou os levantamentos das quantias depositadas na conta, melhor referidos em 7) e 8) dos factos provados, não fará qualquer sentido obrigar o mesmo Acompanhante a prestar contas dessas quantias.
23. Tal significa obrigar o Acompanhante a prestar contas de operações bancárias, consistentes em vários levantamentos de dinheiro, que não efectuou, não movimentou, nem tem sabe onde foi aplicado ou gasto o dinheiro.
24. O Acompanhante não pode, por não lhe ser possível, prestar contas das operações bancárias referidas em 7) e 8) dos factos provados, uma vez que não foi o autor das mesma e, portanto, não foi um ato de gestão.
25. Não resulta dos autos que tal dinheiro tenha sido dissipado, que tenha desaparecido ou que, de alguma forma, tenha sido subtraído ao Acompanhado.
26. E, para além disso, não resultou provado que tais levantamentos foram efectuados pela esposa do beneficiário, o tribunal “a quo” apenas admite essa possibilidade, mas não dá como provado.
27. Na fundamentação da sentença, o tribunal a quo considera que “a terem sido efectuados pela esposa do beneficiário, cabe a este controlar a boa administração dos saldos constantes nas contas bancárias tituladas pelo acompanhado, tato mais que resultou provado assente que aquele é cuidado informal da sua mãe, DD.”
28. Não se concorda com o raciocínio assim expendido: Em primeiro lugar porque o Acompanhante não é cuidador informal da mãe, nem lhe foi atribuído tal estatuto, nem esse facto foi alegado, apenas a ajuda nalgumas tarefas e, em segundo lugar, porque se trata apenas de uma mera probabilidade, uma vez que não resultou provado quem efectuou as operações bancárias enunciadas em 7) e 8) dos factos provados.
29. Em suma, o Acompanhante apenas está obrigado a prestar contas dos actos praticados no âmbito da sua administração e não por actos de terceiros.
30. O raciocínio expendido na douta sentença apenas faria sentido se tivesse resultado provado ter sido o Acompanhante a efectuar as operações bancárias descritas em 7) e 8) dos Factos Provados.
31. Pelo que, salvo melhor entendimento, estamos perante um erro de construção no silogismo judiciário, uma vez que o tribunal “a quo” concluiu e decidiu contra a factualidade provada e não provada, o que consubstancia um erro de julgamento.
Matéria de Direito:
32. O tribunal a quo determinou a obrigação da prestação de contas pelo Acompanhante, ao abrigo do artigo 151.º, n.º 2 do Código Civil.
33. Tal decisão constitui uma consequência jurídica contrária aos factos dados com provados e a um facto dado como não provado,
34. logo, o tribunal a quo violou precisamente o n.º 2 do artigo 151.º do Código Civil.
35. Ao determinar a obrigação do Acompanhante prestar contra, o Tribunal a quo decidiu contra os factos provados e, ademais, não atentou ao facto de ter sido dado como não provado que foi o acompanhante quem efectuou as operações bancárias enunciadas em 7) e 8) e, dessa forma, aplicou erradamente a norma jurídica contida no artigo 151.º, n.º 2, , porquanto a aplicação dessa norma pressupõe a administração dos bens do Acompanhado pelo próprio Acompanhante e nunca por terceiro,
36. Aliás, in casu, nem se apurou a autoria das operações bancárias.
37. Não tendo sido o Acompanhante a efectuar tais operações bancárias, não se pode impor-lhe a prestação de contas de bens pertencentes ao casal, que não administrou,
38. Por conseguinte, não existe fundamento legal para exigir a prestação de contas ao Acompanhante ao abrigo do n.º 2 do artigo 151.º do Código Civil, pelo que se impõe uma solução jurídica diversa.
39. Com efeito, em sede de acompanhamento estabelece o art.º 151º, n.º 2 do Código Civil que “o acompanhante presta contas ao acompanhado e ao tribunal, quando cesse a sua função ou, na sua pendência, quando o tribunal o determinar”.
40. Assim, independentemente da fonte, a administração de bens alheios tem sempre subjacente uma relação jurídica estabelecida entre o titular dos bens administrados (beneficiário) e o respectivo administrador (acompanhante).
41. Quero isto dizer que, no âmbito do acompanhamento de maior, a prestação provocada de contas, pressupõe que Acompanhante tenha efectivamente administrado os bens do Acompanhado.
42. E, é, precisamente, essa componente de administração dos bens do beneficiário levada a cabo pelo Acompanhante que pode e deve ser seguida pelo tribunal através da prestação de contas judicialmente determinada, nos termos do artigo 151.º, n.º 2 do Código Civil.
43. Na verdade, o tribunal pode determinar a prestação de contas do Acompanhante sempre que entenda por justificado, porém, não se pode dissociar a prestação de contas de uma efectiva e concreta administração do património do Acompanhado pelo Acompanhante.
44. Não basta que o beneficiário seja o titular, no todo ou em parte, dos bens, é preciso que tenha sido o Acompanhante a administra-los, pois só dessa forma estará em condições de poder prestar contas.
45. Não resultando provado que foi o Acompanhante quem efectuou as operações bancárias mencionadas em 7) e 8), nem tendo sido alegado nem resultado provado que o mesmo tenha gerido esse dinheiro, não estão verificados os pressupostos consagrados no artigo 151.º, n.º 2 do Código Civil,
46. Uma vez que as operações bancárias enunciadas em 7) e 8) não resultaram de qualquer ato de administração do Acompanhante, não estão preenchidos os pressupostos do artigo 151.º, n.º 2, logo o tribunal a quo interpretou erradamente esta norma, porquanto não tem aplicação no caso concreto
.
A requerente respondeu, pugnando pela manutenção da decisão impugnada.
Quanto à requerida reforma, foi ela atendida pelo tribunal recorrido, tendo sido reformada a decisão quanto a custas, tendo passado a fixar-se o seguinte: «
Custas do incidente a cargo da Requerente e do Requerido, na proporção do decaimento, fixando-se a proporção de 75% para a primeira e 25% para o segundo, nos termos do art. 527º e art. 533º, n.º 1, ambos do CPC.
».
Após, nada mais foi requerido.
II. O objecto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente (art. 635º n.º4 e 639º n.º1 do CPC), «só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa».
Assim, importa avaliar:
- se é devida a prestação de contas pelo acompanhante por referência aos factos descritos em 7 e 8.
- a distribuição da responsabilidade pelas custas no incidente.
III. Foram considerados provados os seguintes factos [
1
]:
1. Por sentença proferida nos autos principais a que este incidente se encontra apenso, em 26.04.2024, transitada em julgado no dia 14.05.2024, foi nomeado CC, como acompanhante do seu pai BB, em regime de representação geral (o qual abrange também a administração de bens).
2. Da mesma sentença resultou provado que o Beneficiário padece de doença de demência vascular, em estádio grave com curso crónico e deterioração cognitiva, afectiva e social grave, revelando um quadro cínico débil associado a AVC e a doença neuro-degerativa, apresenta amnésia, discurso desorganizado e falta de juízo critico, carecendo da supervisão e acompanhamento.
3. No dia 27.05.2024, por DD, esposa do Beneficiário BB, foi realizada uma transferência bancária da conta conjunta de que é cotitular com este e com a Requerente, com o n.º ... do Banco Millennium BCP, no montante de € 40.000,00 (quarenta mil euros), para a conta bancária conjunta com o n.º... do Banco Comercial Português, S.A., titulada por DD e pelo Acompanhante CC.
4. A conta bancária conjunta com o n.º ... do Banco Millennium BCP, no dia 27.05.2024, estava aprovisionada com o montante de € 50.169,13 (cinquenta mil cento e sessenta e nove euros e treze cêntimos), tendo após a transferência referida em 3) ficado com um saldo de € 10.169,13 (dez mil cento e sessenta e nove euros e treze cêntimos).
5. A operação bancária descrita em 3), ocorreu na presença do Acompanhante CC e após informação da gestora de conta, que considerou que a quantia depositada nessa conta e referida em 4) era avultada e sem qualquer “rentabilidade”.
6. Na sequência, DD, com a colaboração da sua gestora de conta e na presença do Acompanhante, que a tal não se opôs, decidiu efectuar a transferência descrita em 3) e em acto contínuo, constituir um depósito a prazo (seis meses) de € 20.000,00 (vinte mil euros) e um outro depósito PPR (longo prazo), no valor de € 50.000,00 (cinquenta mil euros).
7. Nesse mesmo dia 27.05.2024, para além desta transferência, foram efectuados ainda dois levantamentos em ATM BCP Rua da Liberdade, em ..., no valor de € 200,00 (duzentos euros) cada, num total de € 400,00 (quatrocentos euros).
8. Para além dos levantamentos referidos em 7), foram ainda realizados os seguintes levantamentos bancários da conta com o n.º ... do Banco Millennium BCP:
- no dia 18.06.2024, a quantia de € 200,00 (duzentos euros), por duas vezes, em ATM BCP Rua da Liberdade, em ..., num total de € 400,00 (quatrocentos euros);
- no dia 01.07.20244, a quantia de € 200,00 (duzentos euros), numa ocasião e a quantia de € 150,00 (cento e cinquenta euros), numa outra ocasião, ambas em ATM BCP Rua da Liberdade, em ..., num total de € 350,00 (trezentos e cinquenta euros);
- no dia 25.07.2024, a quantia de € 200,00 (duzentos euros), por duas vezes, em ATM CGD ... Gran.PI, num total de € 400,00 (quatrocentos euros);
- em 22.08.2024, a quantia de € 200,00 (duzentos euros), por duas vezes, em ATM CGD ... Gran.PI, num total de € 400,00 (quatrocentos euros);
- em 19.09.2024, a quantia de € 200,00 (duzentos euros), por duas vezes, em ATM ..., num total de € 400,00 (quatrocentos euros).
9. A conta bancária com o n.º ... do Banco Millennium BCP é uma conta que os progenitores da Requerente abriram há mais de 30 anos e que sempre utilizaram para depósito das suas economias de muitos anos, e à qual recorrem para os seus gastos pessoais diários, ordinários e extraordinários.
10. DD, na qualidade de primeira titular da conta bancária referida em 9), é titular de um cartão de débito – cartão multibanco – associado á mesma, com o qual faz levantamentos bancários com a ajuda logística de terceiros.
11. Os saldos contantes na conta referida em 9), pertencem exclusivamente ao Beneficiário e a DD, embora também seja co titulada pela Requerente, que nela nunca fez qualquer provisão ou movimento.
12. DD tem dificuldades de locomoção, necessitando de ajuda nas suas actividades da vida diária e que [
2
] tem assegurado a compra dos alimentos e de outros bens de primeira necessidade para os seus pais é CC, Acompanhante, que se tem assumido como cuidador dos seus pais, e com quem a mãe da Requerente tem uma boa relação de proximidade.
13. Fazendo uso da procuração outorgada pelo Beneficiário BB em 07.08.2007, nos termos melhor descritos no ponto 9) da sentença proferida nos autos principais, DD, de 88 anos de idade, outorgou escritura pública de compra e venda, em 14.06.2022, no Cartório Notarial de ..., através da qual declarou vender a EE e mulher FF, o prédio urbano sito na ..., freguesia e concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 4300, onde se mostrava registada a aquisição a favor daquela e do Beneficiário e inscrito na respectiva matriz urbana sob o artigo 6038 da mesma freguesia, pelo preço de € 117.000,00 (dezassete mil euros).
14. De acordo com a escritura pública de compra e venda referida em 13), o preço de € 117.000,00 (dezassete mil euros), foi pago da seguinte forma: «i) no dia 08.06.2022 a quantia global de dez mil euros, por duas transferências bancárias, ambas nas quantias de cinco mil euros cada, da conta ordenante n.º ... da Caixa Geral de Depósitos, S.A. para a conta beneficiária n.º ... do Banco BPI, S.A.; ii) o remanescente é pago hoje, por cheque bancário n.º ..., sacado sobre a Caixa Geral de Depósitos.», ou seja, o remanescente foi pago em 14.06.2022.
15. DD, por não se recordar do NIB das contas bancárias de que é titular, solicitou ao Acompanhante CC que indicasse aos compradores o NIB da conta bancária n.º ... do BPI, para que estes pudessem transferir no dia acordado em 13) a quantia a título de sinal e antecipação do pagamento do preço no valor de € 10.000,00 (dez mil euros), o que o Acompanhante fez.
16. Na sequência, os compradores efectuaram duas transferências bancárias no valor de € 5.000,00 (cinco mil euros) cada para a conta bancária com o n.º ... do BPI, num total de € 10.000,00 (dez mil euros).
17. Nos dias 13.06.2022 e 14.06.2022, o Acompanhante CC procedeu à transferência (em duas tranches de € 5.000,00 cada uma) da quantia a titulo de sinal referida em 15) e 16) da sua conta bancária com o n.º ... do BPI, para a conta bancária com o n.º ... do Banco Comercial Português, S.A., titulada por aquele e por DD.
18. A Requerente desconhecia a existência da conta bancária com o n.º ... do Banco Comercial Português, S.A., titulada por DD e pelo Acompanhante CC.
19. O Acompanhante é segundo titular da conta bancária referida em 18) por vontade de DD, primeira titular, sendo que o saldo nela depositado pertence exclusivamente a esta e ao Beneficiário BB.
20. Quando a Requerente começou a questionar o Acompanhante e DD sobre o destino do produto da venda do terreno, estes responderam que não lhe tinham que prestar contas sobre esse assunto, esquivando-se sempre a responder sobre o mesmo.
21. A relação entre a Requerente e DD deteriorou-se muito com o tempo, sendo que esta passa mais tempo com o Acompanhante CC e tem uma maior proximidade e ligação emocional com este.
22. Até à relação entre a Requerente e DD se começar a deteriorar, aquela também ajudava a mãe com a gestão normal do dia-a-dia e tinha acesso às contas bancárias de que DD e o Beneficiário eram titulares.
23. Pelo menos desde o inicio de 2018, que já era o filho CC quem prestava cuidados médicos aos seus progenitores, quem os visitava, cuidava, tratava, e zelava pela saúde, alimentação e demais cuidados diários ou não, extraordinários ou ordinários.
24. Quer antes da nomeação na qualidade de acompanhante, quer depois dela, CC sempre visitou o Beneficiário diariamente, acompanhando-o a todas as consultas médicas, adquirindo e ministrando a medicação, de acordo com as necessidades consideradas em casa momento.
25. Desde pelo menos início de 2018, aquando a sua pré-reforma, que CC, já auxiliava e acompanhava o seu pai nos cuidados diários, médicos ou outros que se afigurassem necessários.
26. Sempre foi CC quem acompanhou o pai, Beneficiário, ao Centro de Saúde de ..., onde lhe são feitas, mensalmente, análises ao sangue e as consultas com o médico de família, Dr. GG.
27. É o Acompanhante quem procede diariamente à medição e registo da tensão arterial do pai e quem lhe compra a medicação receitada pelo médico de família.
28. Bem como à sua mãe, DD.
29. É o Acompanhante CC quem gere e ministra a medicação aos dois progenitores, de acordo com o receituário médico.
30. Faz a gestão das necessidades alimentares do acompanhado compra os alimentos e produtos necessários, com a qualidade da dieta alimentar adequada.
31. No que concerne aos serviços domésticos, é o Acompanhante CC paga mensalmente a uma empregada que apoia nos cuidados de higiene, limpeza e nas refeições.
32. E diligencia pela aquisição de todos os produtos necessários ao funcionamento da casa de morada de família dos seus pais.
E foram tidos por não provados os seguintes factos:
a) Que os levantamentos bancários referidos em 7) e 8) tenham sido realizados pelo Acompanhante CC.
b) Que o Acompanhante CC esteja a colocar DD contra a Requerente, aproveitando-se da deterioração da relação entre elas.
IV.1. A prestação de contas deve ser realizada, nos termos do art. 151º n.º2 do CC, quando o acompanhante cessar a sua função ou, na pendência desta, quando for judicialmente ordenada. Estando em causa esta segunda hipótese, ela pressupõe dois elementos: uma actuação do acompanhante sobre a esfera patrimonial do acompanhado [
3
], administrando-a, e a conveniência de prestar informação (em princípio sob a forma específica da prestação de contas) sobre os termos dessa intervenção.
Quanto a esta conveniência, a lei não estabelece o pressuposto da prestação de contas judicialmente imposta, pelo que esta imposição assentará num juízo valorativo que atenderá às circunstâncias presentes, de contornos muito variados, enquanto justificativas da prestação da informação subjacente à prestação de contas (por exemplo, o mero decurso do tempo, sem que o acompanhante preste informação, ou informação satisfatória, ao acompanhado [
4
], pode só por si justificar a imposição). Nenhum juízo de necessidade ou de censurabilidade se exige.
Quanto ao primeiro elemento, a prestação de contas deriva em regra, e assim é no caso, da dissociação entre a titularidade dos interesses administrados e a titularidade dos poderes de administração. O administrador deve dar contas da sua actuação ao titular (ou co-titular) dos interesses administrados por esta titularidade lhe atribuir um direito de acesso aos termos em que os seus interesses são administrados. Nesse sentido se afirma estar em causa estruturalmente um dever de informação, derivado em termos genéricos do art. 573º do CC, mas um dever de informação que se manifesta de uma forma específica e precisa, operando, de acordo com o art. 941º (aplicável por força do art. 948º) do CPC, através do «
apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios
» [
5
].
Quer a natureza da situação, quer esta regra legal (que corresponde àquela situação) pressupõem que esteja em causa a actividade do próprio administrador (do acompanhante, no caso), recebendo ou gastando valores, actividade que se repercute dessa forma no património do acompanhado. Na fórmula legal, têm que estar em causa despesas «
realizadas por quem administra bens
». A obrigação, nestes termos, só existe, portanto, quando é o acompanhante que realiza (ainda que por intermédio de terceiro) os actos interventivos no património administrado.
Saliente-se que a prestação de contas, pese embora seja ainda uma forma de prestar informação como referido, constitui uma coisa diversa do dever amplo de informação do acompanhante perante o acompanhado (ou perante outros intervenientes relevantes, como o conselho de família), que existe com permanência, pois este dever traduz-se em dar conta do que vai sucedendo (manter o acompanhado «a par das questões mais relevantes») [
6
], enquanto aquela prestação de contas envolve uma indicação concreta dos movimentos patrimoniais (activos e passivos) realizados pelo acompanhante. Não se confundem, nem a obrigação de prestar contas existe sempre que exista um dever de informação mais amplo: só existirá quando o dever de informação se concretize no dever de facultar uma descrição completa das receitas e despesas realizadas.
A argumentação do recorrente dirige-se a este elemento, que assim se começa por analisar.
A necessidade de existir uma intromissão do acompanhante na esfera patrimonial do acompanhado, já afirmada, é, na realidade, evidente e revela-se ainda numa abordagem negativa: se aquele não interveio nos actos que se repercutem naquela esfera patrimonial (no património administrado), não tem que deles prestar contas pois estarão em causa actos a que é alheio e pelos quais não pode sequer dar informação, no sentido proposto na prestação de contas (indicando a aplicação das despesas ou a proveniência das receitas, e os valores em causa). Em termos liminares, se os actos dispositivos são praticados por terceiro (mormente um co-titular do património), por eles não responde o administrador nem pode responder por, em rigor, ignorar a aplicação. A obrigação de prestar contas não chega a nascer pois esta está associada ao seu papel de administrador e aos actos (v.g. pagamentos e cobranças) que nessa função realize. A existência de actos de intervenção por si praticados constitui, reitera-se, pressuposto essencial da imposição da obrigação de prestar contas a certo sujeito [
7
].
Ora, dos factos provados não decorre que os actos dispositivos tenham sido praticados pelo recorrente/acompanhante, o que impede que por eles possa ser responsabilizado para efeitos de prestação de contas: não lhe sendo tais actos imputados, fica impedido o nascimento da obrigação de contas inerente, pois a autoria de tais actos é, pelo exposto, a condição primeira e insuperável da prestação de contas. Aliás, mesmo para a obrigação de informação em geral se acentua como seu requisito específico que a pessoa visada esteja em condições de prestar a informação em causa [
8
]. O que se compreende pois informar consiste na exposição de uma certa situação de facto (Sinde Monteiro), o que apenas pode ocorrer quando o visado tenha dessa situação conhecimento próprio. Ora, tal não pode afirmar-se ocorrer quando não se demonstra que a intervenção no património administrado foi praticada (directa ou indirectamente) pelo obrigado.
2. A decisão recorrida, para impor a obrigação de prestação de contas, baseou-se na ideia de que, a terem sido os movimentos efectuados pela esposa do acompanhado, caberia ao recorrente controlar a boa administração dos saldos constantes nas contas bancárias tituladas pelo acompanhado, tanto mais que resultou assente que aquele é também cuidador informal da sua mãe, DD. Esta avaliação tem-se, no essencial, por correcta. Pertencendo o saldo bancário também ao acompanhado, cabe ao recorrente controlar os movimentos realizados porque, em último termo, podem colidir com os direitos (patrimoniais) do acompanhado, direitos que lhe cabe acautelar. Sucede que este não é pressuposto bastante para impor a prestação de contas pela exposta, e singela, razão de o acompanhante só poder prestar contas, no sentido em causa, do que realiza (dos movimentos que efectua, dos gastos que faz). Pode aquela sua conduta (v.g. a existir violação do dever de cuidado por inacção ou negligência) ser discutida no âmbito da sua idoneidade como acompanhante (quanto à forma como cumpre os seus deveres) e por isso quanto ao merecimento do seu cargo (com a sanção da eventual remoção), ou até no plano da responsabilização pessoal pela sua eventual incúria na gestão dos interesses do acompanhado (face ao dever de cuidado que lhe incumbe, com amplo acolhimento no art. 146º n.º1 do CC). E assim, neste sentido, pode ser chamado a «prestar contas» pela sua actuação. Mas não é neste sentido que se discute a imposição de uma obrigação estrita de prestação de contas, na forma pressuposta naquele art. 151º n.º2 do CC.
3. Na resposta ao recurso, a recorrida adopta uma perspectiva diferenciada, sustentando:
- de um lado, que «
resulta destes factos indicados como provados - 3) a 7) - que no dia 27 de Maio de 2024, aquando o levantamento referido no ponto 7) era o Recorrente que se encontrava com a sua mãe DD, e não qualquer outra pessoa
». Visto o facto 7), nele não se indica quem realizou os movimentos nem se afirma a presença do recorrente [
9
]. Sem o afirmar expressamente, a recorrente infere dos factos 3) a 6) que teria sido o recorrente, juntamente com a sua mãe, a realizar os movimentos (usando, pois, de presunção natural).
- de outro lado, «
que não é crível que seja outra pessoa (outro terceiro qualquer) que não o Recorrente a gerir ou a administrar o dinheiro da conta conjunta dos seus pais n.º ... do Banco Millennium BCP, com a utilização do cartão bancário de HH, ainda que a seu pedido
», tendo em conta o que consta dos factos provados quanto a quem acompanha a DD (factos 10, 12 e 22 [
10
]). Também neste ponto, a recorrida imputa assim ao recorrente a autoria dos movimentos (ainda que a pedido da DD, sua mãe). Analisado o facto 8 (e os demais factos), neles não consta que foi o recorrente quem efectuou os movimentos (nem consta, na verdade, quem efectuou os movimentos, nem que o recorrente acompanhava quem os efectuou). Aquela imputação alcançar-se-ia, na lógica da recorrida, por inferência, a partir dos demais factos provados a que apela (de novo, por presunção natural).
A presunção parte de factos conhecidos (factos dados como provados) para alcançar o facto desconhecido (inferido), que seria a intervenção do recorrente. Sucede que está tido por não provado que os levantamentos bancários referidos em 7) e 8) tenham sido realizados pelo recorrente (al. a) dos factos não provados). O que significa que o resultado factual que a recorrida pretende extrair das circunstâncias presentes, através de presunções naturais, contraria directamente a forma como foram julgados e fixados os factos, mormente não provados.
Ora, independentemente do acerto, ou não, do resultado obtido com tais presunções, não pode a parte pretender alterar a decisão sobre a matéria em causa através da utilização de presunções sem impugnar a decisão sobre a matéria de facto. Pois, de um lado, tal daria lugar a uma contradição intrínseca na decisão, que, de uma banda, tem certo facto julgado não provado, e, de outro lado, o dá como provado a coberto do mecanismo da presunção (mas sem discutir nem alterar aquele julgamento de facto) [
11
]. De outro lado, a impugnação da decisão sobre a matéria de facto constitui pressuposto necessário da reapreciação da matéria factual, o que se retira, a
contrario sensu
, do regime do art. 662º n.º2 do CPC (quando só admite a alteração oficiosa da matéria de facto nas situações que elenca) [
12
], impugnação aquela que tem que obedecer ao regime do art. 640º do CPC. E impugnação esta a que notoriamente, a recorrida não apelou (como podia, nos termos do art. 636º n.º2 do CPC).
4. A pretender a recorrida afirmar que seria a mãe do recorrente a realizar os movimentos, mas por ordem daquele ou ao menos acompanhada por aquele, valeriam idênticas objecções pois, além da difícil compatibilização com a referida matéria dada por não provada (e que não foi impugnada), ao menos quanto a ser o recorrente a dar ordens [
13
], não pode a recorrida pretender ver alterada a decisão sobre a matéria de facto, com a introdução dos factos que agora pretende presumir, sem impugnar aquela decisão, pois a presunção não serve para inserir no processo factos principais (ao menos na perspectiva da recorrida) que não constam do elenco de factos provados ou não provados. E factos que surgem em sede recursória pela primeira vez, o que também concorreria para inviabilizar a sua consideração.
5. De todo o modo, ainda se nota que, mesmo que se demonstrasse que o recorrente acompanhava a sua mãe quando esta fez os levantamentos (a ter sido esta a autora de tais factos, pois isso também não decorre dos factos provados), tal não justificaria a imposição da obrigação de prestação de contas pela razão já indicada: tais actos não seriam atribuíveis ao recorrente mas a terceiro legitimado para movimentar a conta. O facto de o terceiro estar acompanhado pelo recorrente apenas permitiria dizer que este sabia dos movimentos, já não que respondesse por eles ou pela subsequente aplicação dos valores levantados, em termos de dever, ou sequer poder, deles prestar contas. Nesta situação, o acompanhante poderia responder, se disso fosse caso, por eventual incúria (com possíveis reflexos na sua função e na sua responsabilização, como se disse), mas não tinha que prestar contas (por actos alheios).
6. Pode admitir-se, sem dificuldade, que equivale a acto praticado pelo obrigado (à prestação de contas) o acto praticado por terceiro de acordo com aquele, ou por terceiro instrumentalizado por aquele. Os factos não revelam esta situação nem, na verdade, foi tal sequer sugerido pela recorrida. Trata-se de situação que não releva no caso.
7. A conclusão alcançada prejudicaria a avaliação da conveniência em prestar contas, aliás decerto por isso não impugnada.
Procede assim o recurso, devendo revogar-se a decisão recorrida na parte impugnada, em que condenou o recorrente a prestar contas.
8. Decaindo no recurso, suporta a recorrida as respectivas custas (art. 527º n.º1 e 2 do CPC).
Como esta decadência importa a decadência integral da recorrida/requerente no incidente (na parte que foi decidida na decisão final), deve suportar também as custas do incidente. O que prejudica a avaliação do recurso quanto à decisão sobre custas (recurso ainda pendente pois, não tendo o recorrente dele desistido, na sequ~encia da reforma realizada, passou o recurso a incidir sobre a nova decisão: art. 617º n.º2 do CPC).
V. Pelo exposto, julga-se procedente o recurso, absolvendo-se o recorrente/requerido do pedido de imposição judicial de prestação de contas na parte em que ainda subsistia (quanto às operações bancárias descritas nos pontos 7) e 8) dos factos provados).
Custas no recurso e no incidente pela recorrida.
Notifique-se.
Datado e assinado electronicamente.
Redigido sem apelo ao Acordo Ortográfico (ressalvando-se os elementos reproduzidos a partir de peças processuais, nos quais se manteve a redacção original).
António Marques da Silva - Relator
Maria Adelaide Domingos - Adjunta
Ana Pessoa - Adjunta
1. Em reprodução literal.
↩︎
2. Querer-se-ia dizer «quem».
↩︎
3. A asserção não é inteiramente exacta para quem admita que o dever de prestar contas tem alcance pessoal, estendendo-se ao bem estar e recuperação do acompanhado (Paula Távora Vítor, CC Anotado, vol. I, Almedina 2024, pág. 196) - não sendo este o caso dos autos, não importa avaliá-lo, embora pareça que esta situação esteja coberta não tanto pelo art. 151º n.º2 citado como pelo art. 573º do CC.
↩︎
4. Que esteja, naturalmente, em condições de as receber.
↩︎
5. E, de acordo com a mesma regra legal mas em termos que no caso não interessam, impondo «a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se».
↩︎
6. Sobre este dever, A. Agostinho Guedes e M. Monterroso Rosas, Comentário ao CC, Parte Geral, UCP Editora 2023, pág. 382/3.
↩︎
7. A existência da obrigação constitui antecedente lógico e normativo, note-se, da assunção da sua titularidade passiva.
↩︎
8. Mónica Duque, Comentário ao CC, Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral, UCP Editora 2021, pág. 584.
↩︎
9. E também se não estabelece, em rigor, relação (v.g. de continuidade temporal) entre os factos 3 a 6 e o facto 7.
↩︎
10. Embora nem sempre a leitura que deles faz a recorrida corresponda ao que está efectivamente provado.
↩︎
11. Assim, Ac. do STJ de 07.07.2010, proc. 2273/03, in 3 w.dgsi.pt (válido também para o regime actual).
↩︎
12. V. L. de Freitas,
Error in procedendo
na decisão de facto da relação (...), Novos estudos sobre direito civil e processo civil, Gestlegal 2021, pág. 380 e ss..
↩︎
13. A alegação da recorrida, pecando embora por alguma ambiguidade, não chega a afirmar tal tipo de actuação, a qual se refere em benefício de integral discussão da situação.
↩︎
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TRE
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https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/dce4ac0a0e1ae14f80258cb4002dd089?OpenDocument
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1,745,971,200,000
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NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO ARGUIDO
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765/23.1GBAMT.P1
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765/23.1GBAMT.P1
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LILIANA DE PARIS DIAS
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I - Tratando-se de prova de valor acrescido, reforçado, o tribunal não pode afastar--se dos juízos técnicos contidos na prova pericial, a não ser que esteja na posse de um meio probatório de valor idêntico, exigindo-se, neste caso, especial dever de fundamentação da decisão.
II - Contudo, se o juízo pericial vincula o tribunal quanto à sua conclusão técnica, sem prejuízo de ser contraditado por outro juízo científico (designadamente, havendo mais do que um perito, mediante a adesão judicial a um relatório discordante ou opinião vencida – cf. o artigo 157.º, n.º 5, do CPP), a hipótese jurídica pressuposta (isto é, o facto em si) continuará sujeita ao princípio da livre apreciação da prova (cf. art.º 127.º do CPP), devendo ser valorada à luz de toda a prova produzida.
III - As perturbações da personalidade — que, segundo o DSM-IV-TR, se caracterizam já por serem inflexíveis e não adaptativas — apenas poderão adquirir relevância para efeitos de inimputabilidade quando se revelarem com consistência, intensidade, relevância e gravidade tais que se tornem suscetíveis de incidir em concreto sobre a capacidade inteletiva ou volitiva do sujeito agente de um crime.
IV - Se o tribunal tiver dúvidas, quer por não ser clara a existência de anomalia psíquica, quer por não estar seguro das consequências que daí deve extrair para o elemento normativo, tem ao seu dispor o instituto da imputabilidade diminuída, consoante se decida sobre se o agente pode ou não ser censurado por não dominar (falta de controlo) os efeitos da anomalia psíquica e, ainda, em função de saber se para a socialização do agente será preferível que este cumpra uma pena ou antes uma medida de segurança (pensamento a partir do resultado ou da consequência).
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[
"PROVA PERICIAL",
"PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA",
"DIVERGÊNCIA",
"ABRANGÊNCIA",
"FUNDAMENTAÇÃO",
"ANOMALIA PSÍQUICA",
"INIMPUTABILIDADE",
"IMPUTABILIDADE DIMINUIDA",
"AVALIAÇÃO",
"CRITÉRIOS"
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Proc. nº 765/23.1GBAMT.P1
Acordam, em conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto.
I - Relatório
No âmbito do processo comum coletivo que, sob o nº 765/23.1GBAMT, corre termos pelo Juízo Central Criminal de Penafiel, foi submetido a julgamento o arguido AA, tendo, a final, sido proferido acórdão, datado de 6/1/2025, com o seguinte dispositivo (segue transcrição parcial):
«Pelo exposto, o presente Tribunal Coletivo decide:
I) Na parte crime:
Julgar a acusação pública parcialmente procedente, por provada e, em consequência:
a) Absolver o arguido AA da prática do crime de ameaça agravada, p. e p. pelos art.ºs 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a) do C. Penal, por que foi acusado;
b) Condenar o arguido AA pela prática de um crime de roubo, na forma tentada, perpetrado na pessoa de BB, p. e p. pelos art.ºs 22.º, 23.º e 210.º, n.º 1 do C. Penal, na pena de 6 (seis) meses de prisão;
c) Condenar o arguido AA pela prática de um crime de roubo, na forma consumada, perpetrado na pessoa de CC, p. e p. pelo art.º 210.º, n.º 1 do C. Penal, na pena de 1 (um) ano e 3 (três) meses de prisão;
d) Condenar o arguido AA pela prática de um crime de roubo, na forma tentada, perpetrado na pessoa de DD, p. e p. pelos art.ºs 22.º, 23.º e 210.º, n.º 1 do C. Penal, na pena de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão;
e) Condenar o arguido AA pela prática de um crime de roubo, na forma consumada, perpetrado na pessoa de EE, p. e p. pelo art.º 210.º, n.º 1 do C. Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão;
f) Condenar o arguido AA pela prática de um crime de dano, p. e p. pelo art.º 212.º, n.º 1 do C. Penal, na pena de 2 (dois) meses de prisão;
g) Em cúmulo jurídico das penas aplicadas em b), c), d), e) e f), condenar o arguido AA na pena única de 4 (quatro) anos e 3 (três) meses de prisão efetiva;
h) Condenar o arguido AA nas custas criminais do processo, fixando-se a taxa de justiça em 5 (cinco) UC, sem prejuízo da decisão que incidir sobre o pedido de apoio judiciário que requereu.
*
II) Na parte cível:
Julgar totalmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido por DD e, em consequência, condenar o demandado AA a pagar à demandante a quantia de € 2.000,00 (dois mil euros) a título de danos não patrimoniais, quantia esta acrescida de juros de mora contabilizados desde a presente decisão e até integral pagamento.
Custas cíveis pelo demandante, sem prejuízo da decisão que incidir sobre o pedido de apoio judiciário que requereu.
*
III) Mais decide o presente Tribunal Coletivo:
a) Julgar parcialmente procedente a perda da vantagem patrimonial requerida pelo Ministério Público e, em consequência, nos termos do art.º 110.º, n.ºs 1, al. b) e 4 do C. Penal, condenar o arguido AA a pagar ao Estado a quantia € 20,00 (vinte euros), absolvendo-se o mesmo do mais peticionado;
b) Determinar que a quantia de € 6,62 (seis euros e sessenta e dois cêntimos) apreendida nos autos reverta a favor do Estado para pagamento parcial da quantia referida em a);
c) Nos termos dos art.ºs 191.º a 196.º, 202.º, n.º 1, al. a) e 204.º, al. c), todos do C. P. Penal, manter o arguido AA sujeito à medida de coação de prisão preventiva aplicada nos autos.
d) Determinar a recolha de amostras biológicas ao arguido, para inserção na base de perfis de ADN, nos termos do art.º 8.º, n.º 3 da Lei n.º 5/2008, de 12.02, na redação dada pela Lei n.º 90/2017, de 22.08, a qual será efetuada após trânsito em julgado […]».
*
Inconformado com a decisão, dela interpôs recurso o arguido para este Tribunal da Relação, com os fundamentos descritos na respetiva motivação e contidos nas “conclusões”, que se transcrevem:
«A. O Arguido aceita a decisão de absolvição quanto ao crime de ameaça imputado não apresentando recurso quanto a essa parte do douto Acórdão.
B. Quanto à sentença relativa à indemnização civil a mesma é irrecorrível por força do n.º 2, do art.º 400.º do CPP, porém, o arguido não aceita a decisão e a decisão que seja tomada neste recurso deve ter reflexos na decisão quanto à indemnização civil estipulada no douto Acórdão.
C. O Arguido não se conforma com o demais proferido no douto Acórdão, não concorda com o julgamento efetuado quanto a alguns pontos da matéria dada como provada e dada como não provada, não se conforma com a decisão proferida quanto ao enquadramento legal pelo qual é condenado, nem se conforma quanto à concreta medida da pena aplicada pelo Tribunal a quo, nem pela falta de aplicação de pena suspensa, razão pela qual apresenta recurso.
D. O Arguido, manifesta a sua oposição ao decidido, de facto e de direito, por insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão e erro notório na apreciação da prova, tendo sido violados os Princípios da Presunção de Inocência do Arguido e de In Dubio Pro Reo – art.º 32.º, n.º 1, 2 e 5 da Constituição da República Portuguesa (CRP), e art.º 374.º, do Código de Processo Penal (CPP).
E. O douto Acórdão está ferido de inconstitucionalidade, por violação destes preceitos e dos Princípios atrás invocados, porquanto faz uma interpretação e aplicação dos art.ºs 127.º, 162.º do CPP, bem como do art.º 389.º do Código Civil (CC), no sentido em que entende que não pode usar factos científicos prestados por testemunhas psiquiatras contrários à perícia efetuada.
F. Sendo nulo o Acórdão por força do disposto no art.º 379.º. al. c) do C.P.P., pois o julgador em violação daqueles Princípios, não se pronunciou sobre matéria que devia conhecer ou pronunciar-se.
G. Vícios estes que resultam do texto do próprio Acórdão, conjugado com a prova documental dos autos e depoimento de testemunhas, bem como quando conjugados com as regras da experiência comum.
DA IMPUGNAÇÃO DO JULGAMENTO DA MATÉRIA DE FACTO.
H. O arguido impugna, art.º 412.º, n.º 2, al. a) do CPP, a matéria de facto dada por provada nos pontos 19., 30., 43., 45., 46., 47., 57., 62. (este por insuficiência de resposta), de páginas 4 a 9 do douto Acórdão.
I. O arguido impugna, art.º 412.º, n.º 2, al. a) do CPP, a matéria de facto dada por não provada nos seguintes pontos: 2., 3., de página 9 do douto Acórdão.
J. Os concretos meios de prova documental que sustentam a impugnação pelo arguido são os seguintes (al. b) do n.º 1 do art.º 412.º do CPP):
- fls. 16 a 19, 26 a 28, 30 a 37, 38, 38v, 39, 40 a 48, 53 a 89, dos autos;
- fls. 324v a 332, dos autos;
- fls. 356 a 372, dos autos;
- fls. 377 a 400, dos autos.
K. Os concretos meios de prova testemunhal que sustentam a impugnação pelo arguido são os seguintes (al. b) do n.º 1 do art.º 412.º do CPP):
- depoimento do arguido cf. ata de audiência de julgamento do dia 15/11/2024, depoimento gravado com início pelas 15:11:30 horas e termo pelas 15:49:24 horas –, nas passagens:
00:34 Arguido: «Isto é assim eu já vivo ali desde 2006 e eles de vez em quando davam-me dinheiro, eu sou um rapaz pobre, a minha mãe trabalhou sempre a vida inteira para mim e para a minha falecida avó e ele costumava-me dar às vezes 20€. E eu não andava bem, não tomava a medicação, sou esquizofrénico Sr. Meritíssimo Juiz. O meu médico tirou-me, fez-me o desmame da medicação pensava que eu ia reagir bem, mas e reagi mal.»
01:08 Arguido: «Cruzei-me com o Senhor BB e disse Sr. BB arranje-me 20€ que eu não tenho um cigarro para fumar, e ele “Oh AA, não te dou que eu preciso do dinheiro.” mas eu não cerrei a mão.
01:19 Arguido: «Disso de bater na porta, sim dei um pontapé na porta isso é verdade, mas eu não cerrei a mão. Ele estava acompanhado pelo filho e eu “Por favor dê-me €20,00, quero fumar”.
(…)
01:56 Meritíssimo Juiz: «Mas pediu-lhe os €20,00 e não lhe deu os €20,00 e o Sr. arrombou a porta?»
02:00 Arguido: «Eu não arrombei, a porta não arrombou.»
(…)
02:46 Arguido: «A D. FF que é esposa do Sr. BB, era o meu vizinho, é amiga da minha mãe costumava conversar com a minha mãe, chamava-me “Oh AA está mais mrago, toma lá uma comidinha pega €20,00” e eu pedi-lhe €20,00 por eles às vezes de vez em quando me darem €20,00. Mas nunca foi com a intenção de o magoar nem de … nem cerrei a mão nem nada.»
(…)
07:07 Arguido: «Não foi nada premeditado Sr. Juiz, depois cheguei à Banco 1..., estava lá a menina DD, eu não lhe pedi €20,00.»
07:10 Meritíssimo Juiz: «Então?»
07:11 Arguido: «Eu disse-lhe “O meu dinheiro que me mandaram?” não estava em mim, estava descompensado sem medicação Meritíssimo. “O meu dinheiro” e ela “Eu não te conheço, que dinheiro?”.»
(…)
08:19 Arguido: «Estava lá a menina DD, que eu não conheço de lado nenhum aquela menina nunca a vi, vou-lhe pedir perdão por lhe ter dado 2 bofetadas e um pontapé. E eu o meu dinheiro que me mandaram agora
Meritíssimo e ela “Que dinheiro eu nem te conheço” e eu, eu, não estou bem, o meu dinheiro? Depois dei-lhe 2 bofetadas.»
08:37 Meritíssimo Juiz: «Mas porquê que deu? É isso que eu não estou a entender?»
08:43 Arguido: «Porque me tinham mandado €20,00 e eu não consegui levantar o dinheiro, como é que eu hei de explicar Sr. Meritíssimo, a intenção, não foi nada intencional meritíssimo, nem eu conheço a menina DD nem eu sabia que ela estava na caixa, nem eu sabia o que ia acontecer.»
09:03 Meritíssimo Juiz: «Portanto nunca lhe tentou, nunca lhe pediu €20,00 a ela diretamente, o senhor estava-se a queixar era do dinheiro?»
09:10 Arguido: «Eu estava-me a queixar era dos €20,00 que me tinham mandado.»
(…)
10:29 Meritíssimo Juiz: «Porquê que o Sr. estava a mandar vir com o dinheiro, ela não tinha nada a ver, ela não era funcionária da caixa?»
10:35 Arguido: «Não sei meritíssimo. Estava descompensado, sem medicação.
Chegou a GNR (…)».
10:55 Meritíssimo Juiz: «No dia seguinte, no posto de combustível ..., o senhor já era habitual ir lá não?»
11:00 Arguido: «Sim meritíssimo.»
(…)
11:05 Arguido: «(…) Eu pedia para ser internado e eles mandavam-me embora para casa, eu era internado e ao outro dia mandavam-me embora. E eu dizia senhor meritíssimo aos médicos “Doutores não me mandem embora eu não me sinto bem”. O meu médico que me acompanhava na psiquiatria, fez-me o desmame para ver se eu reagia bem, e eu reagi mal, doutor, senhor meritíssimo e eu reagi muito mal.»
(…)
12:35 Arguido: «cheguei lá e ele “o quê que foi estás todo magoado” e eu oh EE dá-me um café que eu não estou bem. E ele “não te posso dar se não tiveres dinheiro”, e eu, oh meritíssimo, eu só via coisas à minha frente, ouvia vozes. “porquê que me vais roubar, porquê que me queres matar”, alucinações. E eu, oh EE desculpa, desferi-lhe 2 ou 3 murros, tenho uma vaga ideia.» (...)
26:47 Arguido: «Meritíssimo Juiz uma coisa que lhe vou dizer com toda a verdade eu estou muito arrependido, nada, nada meritíssimo juiz foi premeditado, nunca foi com a intenção de magoar ninguém. Eu estava descompensado e hoje sou outro homem e estou muito arrependido.»
- Depoimento do arguido, cf. ata de audiência de julgamento do dia 15/11/2024, depoimento gravado com início pelas 16:33:15 horas e termo pelas 16:37:36 horas, diz:
01:27 Arguido: «Estava descompensado não tomava medicação.»
Além do que já consta do douto Acórdão e imputado como frases proferidas pelo mesmo (cf. pág. 13 do Acórdão).
- Testemunha CC, cf. ata de audiência de julgamento do dia 15/11/2024, depoimento gravado com início pelas 16:54:00 horas e termo pelas 17:07:19 horas –, nas passagens:
«02:46: CC: «O senhor sabe quem é Napoleão Bonaparte?», «O senhor sabe quem é o Napoleão Bonaparte?»
- Testemunha médico psiquiátrico Dr. GG, cf. ata de audiência de julgamento do dia 04/12/2024, depoimento gravado com início pelas 11:52:39 horas e termo pelas 12:32:37 horas –, nas passagens:
«06:31: Dr. GG: (…) os dois relatórios são compatíveis entre si (…) mantém o diagnóstico de psicose esquizofrénica (…) a medicação é antipsicótica (…) incumprimento de medicação tem comportamentos agressivos e com baixa tolerância à frustração (…)».
- Testemunha médico psiquiátrico Dr. HH, cf. ata de audiência de julgamento do dia 20/12/2024, depoimento gravado com início pelas 15:04:48 horas e termo pelas 15:26:16 horas –, nas passagens:
«06:48: Mandatário do Arguido: «Este injetável estamos a falar de quê?»
06:51: Dr. HH: «Pelo que está aqui a seguir estariam os colegas estariam a pensar na risperidona mensal, portanto um antipsicótico de longa duração, que seria administrado uma vez de quatro em quatro semanas.»
(…)
16:35: Mandatário do Arguido: «Não obstante fosse a vossa interpretação que o senhor AA, aí nessa altura não tem diagnóstico de esquizofrenia, mas o diagnóstico das alterações da personalidade ele devia continuar a fazer antipsicóticos?»
16:56: Médico: «Sim, às vezes digamos sugerirmos o antipsicótico no sentido de uma certa contenção comportamental para resfriar um pouco a impulsividade e os comportamentos mais desajustados.»
17:15: Mandatário do Arguido: «Portanto uma pessoa com o problema de saúde do senhor AA necessita desses antipsicóticos para combater essas impulsividades.»
17:27: Médico: «Poderá ser uma indicação.»
17:30: Mandatário do Arguido: «Na vossa perspetiva naquela altura justificava-se essa toma de medicação para ter esse, como é que o senhor doutor disse? Refreamento.»
17:44: Médico: «Sim, da impulsividade e também dos níveis de ansiedade e de angústia que o levaram nomeadamente à urgência do Hospital 3....»
(…)
20:08: Médico: «Depois há outra coisa. Eu só gostaria de acrescentar que os diagnósticos no internamento são sempre diagnósticos de presunção, provisórios carecem depois e na psiquiatria mais que outra especialidade os diagnósticos não são assim digamos preto e branco porque não há exames enquanto um enfarte é confirmado objetivamente, nós, é difícil e muitas vezes a fotografia longitudinal. Num internamento eu diria que temos um corte transversal na urgência ainda é pontual por isso muitas vezes até mesmo na própria urgência a opinião muda.»
L. Da prova documental indicada resulta que o arguido é seguido, pelo menos, desde o ano de 2016 pelos Departamentos de Psiquiatria do Hospital ... do Porto, e do Centro Hospitalar ... EPE, o Hospital ..., e pelo Hospital 1..., tendo sido internado mais do que uma vez no Hospital 2....
M. Destes relatórios médicos das assistências prestadas, resulta que o arguido padece de Perturbação de Personalidade, Patologia Antissocial de Personalidade e Psicose e Perturbação Psicológica.
N. Bem como lhe foi diagnosticado Perturbação de Personalidade Dissocial (6D11.2, CID-11), Perturbação Psicótica não especificada (6A2Z, CID-11), Padrão de uso não nocivo de múltiplas substâncias psicoativas (6C4F.1, CID-11).
O. No ano dos factos o arguido foi internado compulsivamente em 13/09/2023, 09/11/2023, 23/11/2023, com alta a 30/11/2023, 7 dias antes dos factos, em virtude de padecer, de Perturbação Esquizofrénica e Perturbação de Personalidade, com o fundamento clínico em «(…) alterações de comportamento com heteroagressividade e atividade delirante (…)».
P. O problema de saúde mental do arguido é de tal modo crítico, que mesmo em ambiente hospitalar, medicado, teve comportamentos agressivos e delirantes para com outros utentes.
Q. Ao contrário do defendido na fundamentação do douto Acórdão, o arguido sofria aquando da data dos factos, e sofre neste momento, de doença do foro de saúde mental.
R. As evidências probatórias de tal estado de saúde emergem de documentos e relatórios médicos, acima indicados, os quais têm a mesma carga científica que os relatórios periciais, que o Tribunal
a quo
entende ser inatacável.
S. Aliás, têm uma carga científica ainda maior, porque, qualquer um dos relatórios de perícia foi efetuado com base numa só entrevista, foram efetuados perante o arguido totalmente medicado com antipsicóticos, como resulta provado do histórico clínico do Estabelecimento Prisional, não tendo os peritos avaliado o arguido num estado de pós surto psicótico, ou em momento em que este estava sem medicação, os médicos peritos não apreciaram os conhecimentos de terceiros (por exemplo a família mais próxima), tudo ao contrário do que os outros médicos vivenciaram e avaliaram o arguido e fizeram e fazem constar dos relatórios.
T. O segundo relatório pericial contém incongruências, obscuridades e lacunas que não são admissíveis e que deveria ter levado o Tribunal a quo a reconsiderar o relatório.
U. Os relatórios periciais referem que tiveram em conta os relatórios clínicos, mas não os identificam, nem há qualquer ponderação entre o que consta dos relatórios clínicos e o que o perito estava a observar, levando assim á impossibilidade de compreender a fundamentação dos peritos e as conclusões formuladas.
V. Perante a primeira perícia o arguido requereu uma segunda perícia, perante a segunda, o arguido no requerimento que apresentou a 28/10/2024, arguiu as obscuridades e contradições do relatório pericial.
W. Lendo os relatórios periciais é clara, até pela forma dos tempos verbais usados na fundamentação, a falta de apuramento do estado mental do arguido à data dos factos; centrando-se sim no estado mental atual.
X. Tudo comprometido pelo facto de o arguido à data das entrevistas com os peritos estar totalmente medicado com antipsicóticos, muito nomeadamente, para esquizofrenia.
A. Dos relatórios clínicos, juntos aos autos, quer emanados dos Hospitais, quer do Estabelecimento Prisional, resulta que o arguido era/é medicado com medicamentos próprios para tratamento de esquizofrenia e antipsicóticos.
B. Na nota de alta de psiquiatria, datada de 30/11/2023, 7 dias antes dos factos, é indicado que o arguido apresentava-se de tal forma que não era possível avaliar a «sua capacidade de autodeterminação/livre arbítrio.».
C. Nesse dia 30/11/2023, que com o tratamento instituído a situação clínica evoluiu favoravelmente ao ponto de se considerar que o arguido devia ter tratamento em ambulatório, com medicação antipsicótica, todavia, o arguido tem histórico clínico recorrente de falha na toma de medicação, e essas falhas levam ao estado de não controlar os impulsos.
D. Esta falta de controlo de impulsos é o que releva para os autos, e que os médicos psiquiátricos que estiveram em julgamento referiram no depoimento prestado como sendo o motivo para o arguido ser medicado com antipsicóticos, como o Tribunal a quo faz constar da motivação.
E. Consequentemente, se o arguido tem abstinência de medicação o estado de saúde deteriora-se e o mesmo perde o controlo dos impulsos, como sucedeu na data dos factos.
F. Não estando assim em condições de avaliar a ilicitude do seu comportamento e de se determinar de acordo com essa avaliação, estando, se não inimputável, pelo menos com reduzida capacidade de determinação.
G. Foi determinada ao arguido deficiência nos termos da TNI – Anexo I, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de Outubro, tendo sido determinada uma incapacidade permanente global de 60%, precisamente por doença psiquiátrica, por Junta Médica de 28/09/2022.
H. O Tribunal a quo embora dê como provado a incapacidade, não dá como provado que a mesma advém de doença psiquiátrica, sendo insuficiente a resposta à matéria, o que tem influência na boa decisão da causa.
I. Nos relatórios de perícia psiquiátrica tidos em conta pelo Tribunal a quo, e na fundamentação da decisão do Acórdão recorrido, verifica-se a desconsideração de factos constantes dos relatórios médicos já previamente elaborados, e ainda os elaborados numa altura em que o arguido não estava a ser medicado como atualmente, todos com notório relevo.
J. As perícias médico legais não responderam ao que foi solicitado, nomeadamente quanto ao estado mental do arguido à data dos factos, centrando-se somente com o momento atual.
K. Ao contrário do que considerou o Tribunal a quo, resulta da leitura do relatório pericial de fls. 116 a 118, e do relatório de fls. 308-A a 308-D, o estado de doença do arguido assim como a decisão da Junta Médica, não foram tidos em conta pelos peritos.
L. Está documentado em relatórios clínicos de especialidade que o Arguido, entre o mais, «sofre de anomalia psíquica grave, de esquizofrenia paranóide, com alterações comportamentais», «(…) Juízo crítico prejudicado, sem crítica para a sua condição mórbida, não aceitando o plano terapêutico proposto. (…) necessidade de tratamento psicofarmacológico e contenção de risco em internamento (…). Foi-lhe diagnosticada psicose SOE e PP antissocial, (…).».
M. Mas até os médicos têm opiniões diferentes, razão pela qual o Tribunal a quo deveria ter tido um juízo mais crítico dos relatórios de perícia, porquanto, oito dias depois do relatório médico de 23/02/2022, um médico escreve que o arguido teve uma «rápida melhoria clínica», e dá por concluído o internamento, mas foi medicado com antipsicóticos e tinha de comparecer no hospital para ser medicado com injetável.
N. O arguido requereu que o Tribunal a quo não valorasse o segundo relatório face às incongruências, e que se mostrava fundamental nova perícia médica legal, que tenha em atenção de facto todo o historial médico e judicial do arguido, para poder responder quanto ao estado de saúde mental do arguido à data dos factos nestes autos, mas assim não entendeu o Tribunal a quo.
O. Acredita o arguido que a nova perícia, tendo por base e por escopo principal apurar o estado mental do arguido na data dos factos, teria sido benéfica para a descoberta da verdade material e para a boa decisão da causa.
P. Não havendo qualquer aspeto negativo para os autos caso tal perícia fosse realizada.
Q. Defendemos que, e nomeadamente quanto à perícia médico legal para apuramento da situação de inimputabilidade ou de situação de capacidade de culpabilidade notavelmente diminuída, não deve o julgador considerar que não pode conhecer outros elementos probatórios que possam infirmar a perícia efetuada, mais ainda quando esses elementos têm o mesmo peso científico, sendo imposto tão somente que o julgador fundamente a sua decisão.
R. Nos presentes autos foi produzida prova que demonstra que as perícias, não têm capacidade de dar ao Tribunal a quo respostas quanto ao estado de saúde mental do arguido na data dos factos.
S. O arguido apresentou impugnação motivada relativamente à segunda perícia, sobre a qual o Tribunal a quo não se pronuncia nem toma conhecimento no douto Acórdão proferido, o que é uma questão diferente da decisão de não ordenar nova perícia.
T. A valoração da prova pericial é efetuada no douto Acórdão recorrido e não no despacho de 04/12/2024 que decide não efetuar nova perícia.
U. Pelo que, no Acórdão recorrido deveria o Tribunal a quo conhecer a impugnação motivada efetuada pelo arguido relativamente à segunda perícia.
V. Ao não se ter pronunciado sobre questão que tinha de conhecer, padece a douta decisão de nulidade cfr. art.º 379.º, n.º 1, al. d) do CPP, o que desde já se argui para todos os devidos efeitos.
W. Quando devia e podia ter determinado perícia no sentido de apurar o estado de saúde mental do arguido nos dias dos factos em causa.
X. Pode o Tribunal ad quem, ordenar a renovação de produção de prova pericial com vista a apurar o estado de saúde mental do arguido à data dos factos, designadamente, e tendo por base todos os relatórios clínicos juntos aos autos, se naqueles momentos o arguido é imputável ou se tem capacidade diminuída, o que se requer nos termos da al. c), do n.º 1 do art.º 412.º do CPP.
Y. A apreciação da prova produzida, efetuado pelo Tribunal a quo, no nosso humilde entendimento viola o Princípio da Presunção de Inocência e o Princípio de In Dubio Pro Reo.
Z. Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, art.º 32.º da CRP, e sendo o Princípio in Dubio Pro Reo corolário do Princípio da Presunção de Inocência, a sua intervenção deve acautelar toda a valoração probatória, independentemente da fase processual.
AA. Deste modo, atento o facto de este princípio ser relacionado com a matéria de facto, tal princípio atua em todas as vertentes fácticas relevantes quer se refiram ao tipo incriminador, quer a causas de justificação quer mesmo a circunstâncias relevantes para a determinação da pena.
BB. O mesmo é dizer que o Tribunal a quo tem de respeitar tais princípios quando valora a prova produzida.
CC. Quem tem o ónus de provar que estão reunidos os elementos objetivos e subjetivos dos tipos de ilícito imputados ao arguido, onde se inclui a imputabilidade do mesmo, é o Ministério Público.
DD. É possível concluir que o Tribunal a quo errou na apreciação da prova produzida, há insuficiência de fundamentação para a decisão da matéria de facto dada como provada, há contradição entre a fundamentação e a decisão – art.º 410.º, n.º 2 do Código Processo Penal (CPP) –, tido sido violado o disposto no art.º 127.º e 162.º do CPP, e art.º 389.º do CC, ocorrendo nulidade da sentença por não conhecer questões que tinha de conhecer, tendo violado os Princípios da Presunção de Inocência do Arguido e de In Dubio Pro Reo – art.º 32.º, n.º 1, 2 e 5 da Constituição da República Portuguesa (CRP), e art.ºs 374.º e 379.º do Código de Processo Penal (CPP).
EE. O Acórdão está ferido de inconstitucionalidade, por violação destes preceitos e dos Princípios atrás invocados, porquanto faz uma interpretação e aplicação do art.º 127.º e 162.º do CPP, no sentido que ao julgador não é possível valorar uma perícia médico legal quando tem nos autos prova documental de igual valor científico, não aplicando dessa forma o Principio da Presunção de Inocência e o Principio de In Dubio Pro Reo, e ao não justificar fundamentadamente de facto e de direito porque afasta tais princípios.
FF. Vícios estes que resultam do texto do próprio Acórdão, assim como da indicação da prova documental acima efetuada, e das declarações do arguido e testemunhas, quando conjugados com as regras da experiência comum.
GG. É possível afirmar que os factos dados como provados nos pontos 19, 30, 43, 45, 46, 47, 62 (neste último sendo deficiente a resposta dada) e os pontos 2., e 3., dados por não provados no douto Acórdão, são infirmados quando conjugamos todos os meios de prova concretamente indicados neste recurso, conjugados com as regras da experiência comum e a doença mental do arguido.
HH. E desta forma, bem como pelas razões doutamente supridas por VV. Exas., deve o douto Acórdão ser revogado em conformidade com o aqui alegado, e proferida decisão nos termos do n.º 1 do art.º 426.º do CPP, o que, por cautela de patrocínio desde já se requer.
II. Devendo o Tribunal ad quem decidir a causa e em conformidade com o alegado e vindo de concluir, bem como pelas razões doutamente supridas por VV. Exas., nos termos do art.º 412.º, n.º 6, do CPP, deverá o Tribunal ad quem alterar a resposta dada pelo Tribunal a quo aos factos impugnados nos termos que aqui se defende, no seguinte sentido, devendo dar como provados:
«19. O arguido não agiu de forma totalmente livre, voluntária e consciente, com o propósito concretizado de danificar a porta e a fechadura do ofendido, que sabia não serem suas, agindo contra a vontade do seu legítimo proprietário;»
«30. O arguido não atuou de forma totalmente livre, deliberada e conscientemente, com o propósito concretizado de, mediante os gestos, palavras e agressões físicas constranger DD a entregar-lhe quantias em dinheiro, que não lhe pertenciam, o que só não veio a suceder porque a mesma não tinha aquelas disponíveis, facto esse alheio à sua vontade;»
«43. O arguido não atuou de forma totalmente livre, deliberada e conscientemente, com o propósito conseguido de, mediante os gestos, palavras e agressões físicas constranger EE a entregar-lhe quantias em dinheiro e os maços de tabaco, dos quais se apropriou, bem sabendo que os mesmos não lhe pertenciam e que atuava contra a vontade dos seus detentores e proprietários;»
«45. Por seu turno, o arguido não sabia que essas mesma palavras, gestos e ação eram idóneos, no contexto descrito, a provocar medo em EE, propósito por expressamente querido;
46. Não agiu o arguido de forma totalmente livre, voluntária e consciente, com o propósito concretizado de criar em EE sentimento de medo, receio e insegurança, o que veio efetivamente a suceder;
47. Não sabia o arguido que as condutas descritas eram proibidas e punidas por lei;»
«62. O arguido apresenta um grau de incapacidade de 60%, por doença psiquiátrica (capítulo X, II, grau IV), determinada por Junta Médica, a 28/09/2022, auferindo uma prestação social para a inclusão, no valor de € 316,00;».
JJ. Os factos não provados deverão ser retirados os pontos 2 e 3 que passam a ter resposta como provados nos pontos 69. e 70., no seguinte sentido:
«69- O arguido sofre de doença psiquiátrica e no momento dos factos não tinha a total capacidade de entender ou determinar o seu comportamento e de distinguir o comportamento lícito de ilícito, designadamente no momento dos factos;
70- O arguido, no momento da prática dos factos, não conseguia avaliar a ilicitude do seu comportamento e de se determinar de acordo com essa avaliação, por padecer de doença mental que comprometia à data dos factos totalmente, ou pelo menos reduzia, a capacidade de determinação por parte do arguido.»
KK. Ao assim alterar a resposta à matéria de facto que se impugnou, no sentido aqui defendido, sempre fará o Tribunal ad quem inteira justiça.
DO ENQUADRAMENTO JURÍDICO
LL. A apreciação teórico-jurídica do Tribunal a quo quanto aos requisitos impostos pela lei para cada tipo de ilícito é perfeita, mas não se aceita que estejam reunidos, in casu, os requisitos necessários para a condenação do arguido.
MM. Não é possível condenar o arguido pelo crime de dano, pois o dano verificado foi na fechadura e não na porta.
NN. Ficou provado que o arguido deu um pontapé na porta, e não na fechadura, portanto, não há dolo quanto ao dano da fechadura.
OO. Não há acusação particular pelo dano da fechadura, cujo valor é de € 15,00, conforme o art.º 212.º, n.º 4 do CP.
PP. O art.º 207.º do CP tem por base o crime de furto, pelo que a sua interpretação e aplicação ao crime de dano tem de ser efetuada mediante o caso concreto e mutatis mutandis, sem violar princípios jus-penalistas, sendo assim ilegal a interpretação e aplicação do Tribunal a quo.
QQ. O art.º 207.º, quanto à questão do valor diminuto do bem danificado aplica-se por si só não sendo necessário que a destruição fosse necessária para satisfazer uma necessidade básica do arguido.
RR. O procedimento criminal quanto ao crime de dano só poderia prosseguir com acusação particular, considerando o valor diminuto do dano.
SS. A prossecução dos autos quanto ao crime de dano não é admissível por falta de legitimidade do Ministério Público, conforme os art.º 50.º, 283.º e 285.º do CPP.
TT. A falta de acusação particular constitui uma irregularidade que influencia a decisão da causa, conforme o art.º 123.º do CPP, irregularidade que afeta do douto Acórdão, e tudo que depende desta condenação.
UU. De todo o modo, entende-se que a resposta aos factos dados como provados e não provados, sendo alterada conforme alegado e defendido, deve levar à absolvição do arguido.
VV. O arguido sofre de doença psiquiátrica que lhe retira a capacidade de controlar os seus impulsos, razão pela qual é medicado com antipsicóticos.
WW. No momento dos factos, o arguido não conseguia avaliar a ilicitude do seu comportamento devido à doença mental que comprometia ou reduzia a sua capacidade de determinação.
XX. Não sendo capaz de determinar a sua vontade para violar os normativos legais, não é possível verificar a existência do elemento subjetivo para os tipos de ilícitos imputados, que exigem dolo.
YY. Não preenchido o elemento subjetivo, o arguido não pode ser condenado pelos crimes imputados, devendo antes ser aplicada medida nos termos do art.º 91.º e ss. do CP.
ZZ. Deve ser proferido um Acórdão que revogue o Acórdão recorrido e decida pela aplicação de medida de segurança para o tratamento do arguido, o que pode ser decidido pelo Tribunal ad quem.
AAA. Caso se entenda que não há fundamento para considerar a inimputabilidade do arguido, considera-se que há uma situação de «capacidade de culpabilidade notavelmente diminuída».
BBB. A imputabilidade diminuída pressupõe a existência de uma anomalia ou alteração psíquica que interfere na capacidade de avaliar a ilicitude do facto ou de se determinar de acordo com essa avaliação, e logo um menor grau de culpa, que deve ter reflexo na determinação da medida da pena, conforme art.º 70.º e ss. do CP.
CCC. O Tribunal a quo não teve este entendimento, razão pela qual se recorre, solicitando que o Tribunal ad quem revogue a decisão proferida e profira outra que defira o requerido pelo arguido.
DA MEDIDA DA PENA
DDD. No que respeita à medida da pena, o arguido entende que o Tribunal a quo não valorou todos os elementos necessários para a medida concreta da pena.
EEE. O Tribunal a quo não apreciou a possibilidade de atenuação especial da pena.
FFF. A ausência de apreciação da atenuação especial resulta em nulidade do Acórdão, nos termos do art.º 379.º, n.º 1, al. c) do CPP.
GGG. Requer-se a revogação da decisão com os devidos efeitos legais ou a sua alteração pelo Tribunal ad quem.
HHH. A decisão deve ser revogada no sentido de absolvição do arguido ou de reconhecimento da inimputabilidade.
III. A capacidade de culpabilidade notavelmente diminuída deve ser considerada na concretização da medida de pena.
JJJ. O relatório social destaca a necessidade de supervisão clínica e intervenção médica especializada em psiquiatria para o arguido.
KKK. O arguido beneficiaria de medidas de segurança que proporcionem o devido tratamento, o que não é possível em regime de prisão sem meios específicos dedicados à sua problemática.
LLL. O arguido sempre viveu de forma humilde, sem recursos económicos, com baixa escolaridade e um passado de vício em substâncias aditivas.
MMM. O arguido padece de doença psiquiátrica major, com uma incapacidade parcial permanente de 60% determinada por Junta Médica.
NNN. O arguido confessou sinceramente os factos imputados, mostrando arrependimento e colaborando com a justiça.
OOO. A confissão do arguido foi reconhecida pelo Tribunal a quo, que admitiu os factos.
PPP. A determinação da medida da pena deve considerar a culpa do agente e as exigências de prevenção, bem como todas as circunstâncias atenuantes ou agravantes.
QQQ. A medida da pena deve ter em conta a finalidade socializadora da pena, conforme o art.º 42.º do Código Penal.
RRR. As penas aplicadas ao arguido são manifestamente excessivas e não favorecem a sua reintegração social.
SSS. A medida da pena deve ser estritamente necessária para a reintegração do indivíduo na sociedade e para afastá-lo da delinquência.
TTT. O Tribunal a quo não considerou todas as circunstâncias que depuseram a favor do arguido, violando os artigos 42.º, 70.º, 71.º, 72.º do Código Penal.
UUU. A pena aplicada fecha as portas da reintegração ao arguido, esquecendo as finalidades preventivas especiais das penas, sendo manifestamente desadequada à culpa e às exigências de prevenção.
VVV. As penas aplicadas são desequilibradas face ao comportamento do arguido e às suas consequências.
WWW. Os ofendidos BB e CC não sofreram danos físicos, e conhecem o arguido e sua doença há anos.
XXX. O Tribunal a quo deveria ter aplicado o disposto no art.º 76.º, n.º 1 do CP, para condenação por reincidência, mas não apreciou a aplicação deste artigo, resultando em nulidade da decisão.
YYY. A agravação pela reincidência não pode exceder a medida da pena aplicada anteriormente, mas o Acórdão não indica a pena de base para determinar a reincidência.
ZZZ. A decisão é ilegal por violar o art.º 76.º, n.º 1 do CP, havendo insuficiência de fundamentação e nulidade da decisão, devendo ser revogada ou alterada pelo Tribunal ad quem.
AAAA. Com a aplicação da atenuação especial, o limite mínimo é reduzido a um quinto, conforme art.º 73.º, n.º 1 do CP.
BBBB. Caso não se aplique a medida de segurança nos termos do art.º 91.º do CP, e face às exigências de prevenção geral e especial, a pena de prisão deve ser reduzida e proporcionada.
CCCC. A pena a aplicar seria de 30 dias pelo crime de roubo tentado contra BB, 6 meses pelo crime de roubo consumado contra CC, 1 ano e 3 meses pelo crime de roubo tentado contra DD, e 1 ano e 3 meses pelo crime de roubo consumado contra EE, já com reincidência considerada, quanto ao crime de dano, defende-se a absolvição, ou, a aplicação do mínimo legal substituído por multa, considerando o valor do dano e os rendimentos do arguido, resultando num cúmulo jurídico de 1 ano e 7 meses.
DDDD. Pena esta que deverá ser substituída por permanência na habitação com controlo por meios eletrónicos, sujeita ainda à injunção de tratamento médico, com medicação administrada pelo centro de saúde competente da área de residência do arguido.
EEEE. A moldura penal aplicada pelo Tribunal a quo é exagerada e deve ser diminuída em pelo menos metade ou conforme determinado pelo Tribunal ad quem, desde que inferior à fixada.
FFFF. Face ao alegado, caso não se aplique uma medida de segurança para tratamento do arguido, considerando-o imputável e não sofrendo de doença mental, estão reunidos os pressupostos legais exigidos para a suspensão da pena, nos termos dos art.ºs 50.º e ss. do CP.
GGGG. A suspensão da execução da pena pretende ser uma forma de forçar a reeducação, permitindo uma ligação entre as exigências de prevenção geral e as especiais, com medidas injuntivas para manutenção da suspensão.
HHHH. A suspensão da execução, acompanhada das injunções admitidas na lei, permite manter o arguido em sociedade, privilegiando a inclusão e evitando afastamento, isolamento, ostracização e discriminação.
IIII. O arguido tem descendência menor de idade que beneficiaria da sua presença paterna e da possibilidade de restabelecer a sua vida em sociedade, contribuindo para a sua ressocialização.
JJJJ. A suspensão da execução da pena é um instituto fundado em juízo de prognose favorável ao arguido, como ensinado pela jurisprudência e doutrina, especialmente por Figueiredo Dias.
KKKK. O Tribunal a quo entende que o arguido não tem doença mental e tem capacidade para entender, logo também tem capacidade para entender que violar as injunções aplicadas significa ter de cumprir pena de prisão.
LLLL. A ameaça da pena e a obrigação de cumprir medidas injuntivas serão suficientes para dissuadir a prática de novos crimes, facilitando a ressocialização do arguido.
MMMM. A suspensão, determinada com injunções que se considerem determinantes para a ressocialização do arguido, é adequada e justificada nos termos dos artigos 40.º, 42.º, 50.º, 51.º e 71.º e ss. do Código Penal.
NNNN. Sendo procedente o recurso apresentado, o arguido deve ser absolvido do pedido de perda de vantagem patrimonial e deve ser restituída a posse da quantia ainda apreendida nos autos e que é pertença do arguido, sendo revogada, pelo Tribunal ad quem, a decisão aqui em crise.
OOOO. Entende o arguido que o Tribunal a quo violou com a interpretação e aplicação que fez, ao contrário da interpretação e aplicação vinda de alegar neste recurso e nas presentes conclusões, as disposições legais já atrás referidas que se reiteram e os art.ºs 127.º, 162.º, 343.º, 344.º, 351.º, 355.º, 374.º, n.º 2, 375.º, n.º 1, do CPP; art.ºs 40.º, 42.º, 50.º, 51.º, 71.º, todos do Código Penal; art.º 32.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.
PPPP. Termos em que, e pelo que seja suprido por VV. Exas., requer-se que o presente recurso seja julgado procedente e em consequência ser o douto acórdão revogado e substituído por outro que contemple o defendido e requerido pelo arguido.
DECIDINDO DESSA FORMA, FARÃO VV. EXA.S, COMO SEMPRE, INTEIRA E SÁ JUSTIÇA!»
*
O recurso foi admitido para subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
O Ministério Público, em primeira instância, apresentou resposta, defendendo a improcedência do recurso, com os fundamentos constantes da respetiva motivação (e cujo teor aqui damos por reproduzido), posição condensada no seguinte conjunto de conclusões:
«1ª Os elementos de prova constantes dos autos, como seja, as declarações do arguido e os depoimentos das várias e muitas testemunhas que foram inquiridas na audiência de julgamento, bem como a prova documental e pericial junta aos autos, são bastante claros, seguros e firmes no sentido de se dar como provada e como não provada toda a factualidade constante do douto acórdão recorrido que foi dada por assente e por não assente e contra a qual agora se insurge o arguido AA.
2ª O coletivo de juízes, como, aliás, é seu hábito, fundamentou devidamente e exaustivamente a sua convicção sobre todos os factos que deu como assentes e como não assentes, dizendo expressamente, com clareza e bastante rigor, o modo como formou a sua convicção, fazendo uma análise crítica e seletiva de toda a prova produzida em audiência, mormente os depoimentos das várias e inúmeras testemunhas que foram ouvidas na audiência de julgamento, as declarações do arguido prestadas em julgamento, mas também a abundante prova documental e pericial constante dos autos, tudo é claro, analisado de acordo com as regras da lógica e experiência comum.
3ª Da simples leitura do recurso interposto pelo arguido logo se retira a conclusão segura e firme de que não existem quaisquer razões que imponham uma diferente convicção daquela que foi formada pelo tribunal, pois toda a fundamentação do coletivo de juízes sobre a motivação da decisão sobre a matéria de facto que deu por assente e por não assente está correta e de acordo com as regras da experiência, sem que exista qualquer dúvida razoável quanto aos factos que foram dados como provados e como não provados.
4ª Basta ler o douto acórdão agora em recurso para facilmente se constatar que toda a fundamentação do coletivo de juízes sobre a matéria de facto que foi dada como provada e como não provada, incluindo os pontos contra os quais agora se insurge o arguido no seu recurso, baseou-se na abundante prova documental e pericial constante dos autos e nos inúmeros depoimentos e declarações de todas as pessoas que foram ouvidas na audiência de julgamento (testemunhas e arguido), não fazendo, assim, qualquer sentido dizer-se, como o faz o arguido AA, que o Tribunal incorreu em erro de julgamento no tocante à factualidade dada como provada e como não provada.
5ª Lida a motivação fáctica do douto acórdão recorrido, impõe-se concluir que não estamos perante uma convicção arbitrária, mas, ao invés, de uma convicção racionalmente objetivada e em que não se deteta qualquer violação ao princípio da livre apreciação da prova contido no art. 127º do Código de Processo Penal, isto porque o coletivo de juízes, de forma fundada e transparente, explicita o modo como formou a sua convicção sobre todos os factos que deu por assentes e por não assentes, não se vislumbrando no respetivo substrato racional do coletivo de juízes algo que seja ofensivo das regras da experiência ou qualquer vício de raciocínio que evidencie algum erro.
6ª O recorrente assenta a impugnação da matéria de facto provada e não provada na discordância da credibilidade atribuída pelo Tribunal aos meios de prova em que se alicerçou para dar como provada e como não provada a factualidade constante do douto acórdão recorrido, mas esquecendo por completo que o Tribunal apreciou criticamente a globalidade das provas e que é ao Tribunal e não às partes que compete fazer a apreciação da prova.
7ª Pior, ainda, para tentar demonstrar a sua inimputabilidade ou a sua reduzida capacidade de determinação aquando da prática dos factos em apreço nos presentes autos o recorrente diz que são mais importantes e mais decisivos os vários relatórios médicos e registos clínicos dos estabelecimentos de saúde onde esteve internado (Departamentos de Psiquiatria do Hospital ... do Porto e do Centro Hospitalar ... EPE, Hospital ... e Hospital 2... em Amarante) juntos aos autos do que as duas perícias psiquiátricas do arguido realizadas no âmbito dos presentes autos, a segunda delas efetuada, aliás, a requerimento do próprio arguido.
8ª Completamente descabido este entendimento do recorrente, já que alguns dos aludidos relatórios médicos e registos clínicos têm vários anos, não foram efetuados com o propósito exclusivo de se apurar a imputabilidade ou a inimputabilidade do arguido e nem sequer foram realizados por reporte à data da prática dos factos ilícitos típicos praticados pelo arguido e em apreços nestes autos.
9ª Ao contrário, as duas perícias psiquiátricas do arguido realizadas no âmbito dos presentes autos tiveram como finalidade exclusiva indagar sobre a imputabilidade ou a inimputabilidade do arguido por referência à data da prática dos crimes imputados ao recorrente nestes autos e foram ambas efetuadas em datas muito mais próximas das datas da prática dos crimes objeto destes autos.
10ª Assim, o meio de prova que em processo penal pode demonstrar a imputabilidade ou a inimputabilidade do arguido que praticou um crime é a realização de uma perícia psiquiátrica à pessoa do agente que praticou o crime, por referência à data da prática do crime, e não a existência de qualquer relatório médico ou registo clínico elaborado em data muito anterior à prática do crime em causa.
11ª A demonstrar a total falta de acerto do recorrente estão as conclusões das duas perícias psiquiátricas realizadas no âmbito dos presentes autos e que demonstram inequivocamente que o arguido é imputável, pois aquando da prática dos crimes que lhe são imputados nestes autos agiu sempre de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo, ainda, que a sua conduta era contrária à lei.
12ª As próprias testemunhas arroladas pelo arguido e que tiveram alguma intervenção nos internamentos compulsivos a que este foi sujeito, Dr. GG e Dr. HH, médicos psiquiatras, quando na audiência de julgamento foram confrontados com o teor dos relatórios médicos e dos registos clínicos juntos aos autos confirmaram o desvio de personalidade do recorrente, afastando a esquizofrenia, tendo ambos concluído pela consciência da realidade do arguido pelos seus atos e das consequências dos mesmos.
13ª Os depoimentos destes dois médicos psiquiatras, que o arguido invoca no seu recurso como sendo demonstrativos da sua inimputabilidade, são bastante claros, expressos e inequívocos no sentido do recorrente ser imputável e, como tal, aquando da prática dos factos ilícitos típicos em apreço nestes autos ter agido de forma livre, voluntária e consciente e de ter perfeita consciência que os mesmos eram proibidos e punidos por lei.
14ª Sobre o entendimento do recorrente de que as declarações que prestou na audiência de julgamento demonstram a sua inimputabilidade, somente se dirá que não é da competência do arguido ajuizar sobre esta questão, o mesmo se dizendo relativamente à testemunha CC, ofendido nestes autos, que, de resto, em momento algum no seu depoimento prestado na audiência de julgamento se debruçou sobre a imputabilidade ou inimputabilidade do arguido.
15ª Não se detetando, assim, a existência do erro de julgamento apontado pelo recorrente, a valoração de prova proibida ou a violação de alguma regra da experiência nos termos do art. 127º do Código de Processo Penal, a convicção que prevalece é a do Tribunal e não a do recorrente, como é óbvio.
16ª De qualquer modo, sempre se dirá que a impugnação da matéria de facto dada como provada e como não provada apresentada pelo arguido terá de improceder, já que o recorrente não indicou ponto por ponto da matéria de facto dada por assente e por não assente no douto acórdão recorrido que entenda ter sido erradamente dado como provado e como não provado e também em relação a cada um destes pontos o recorrente não indicou prova concreta que imporia decisão diversa.
17ª É que o arguido no seu recurso não consegue indicar qualquer prova que tenha o condão de alterar a matéria de facto dada como assente e como não assente no douto acórdão recorrido, sendo notório do recurso do arguido que as provas concretas que para o recorrente impõem decisão diversa da tomada pelo Tribunal são precisamente as mesmas provas que levaram ou estiveram na base da sua condenação.
18ª Quer isto dizer, pois, que o recorrente não cumpriu os requisitos legais da impugnação da matéria de facto, como seja, as exigências expressas no art. 412º, nº 3, alíneas a) e b) do CPP, pelo que nesta parte sempre o recurso do arguido tem de improceder.
19ª É por demais ostensivo, pelo menos assim consta expressamente da fundamentação sobre a convicção dos factos que foram dados como assentes no douto acórdão agora em recurso, que o coletivo de juízes não ficou com quaisquer dúvidas sobre os factos ilícitos típicos praticados pelo recorrente, o que bem se compreende, atenta a extensa, clara e inequívoca prova constante dos autos, como seja, a prova produzida na audiência de julgamento e a prova documental e pericial constante dos autos, meios de prova estes que não suscitaram quaisquer dúvidas ao Tribunal.
20ª Ora, se o Tribunal não ficou com quaisquer dúvidas sobre os factos que deu como provados, é completamente descabido dizer-se, como o faz o recorrente, que foi violado o princípio in dubio pro reo.
21ª Perante a factualidade que foi dada como provada no douto acórdão recorrido é manifesto que o arguido praticou um crime de dano, p. e p. pelo art. 212º, nº 1 do Código Penal, uma vez que se mostram preenchidos todos os elementos constitutivos (objetivo e subjetivo) deste tipo legal de crime.
22ª Na verdade, quando o agente procede à destruição ou estraga um objeto, coisa ou um bem alheio, que é composto por várias partes ou peças, o que conta é a intenção do agente em provocar danos ou tornar não utilizável o objeto, coisa ou bem alheio considerando este na sua globalidade e não cada uma das peças ou partes que o compõem.
23ª Certamente que o recorrente quando desferiu um pontapé na porta da residência de CC, ofendido nestes autos, a intenção do mesmo foi provocar danos na porta em causa e não em qualquer uma das partes que compõem esta porta, nomeadamente, a fechadura, a chave, o puxador, o encaixe, a madeira, a dobradiça ou qualquer outra peça que faça parte da mesma, como ferro, alumínio, vidro, espelho ou algum adorno.
24ª Resulta claro do douto acórdão agora em recurso que o coletivo de juízes cumpriu escrupulosamente todos os critérios previstos na lei que devem nortear a aplicação de uma pena, razão pela qual as penas parcelares em que o recorrente foi condenado deverão ser mantidas nos seus precisos termos, dado que, perante a gravidade da factualidade dada como provada e a moldura penal em causa, mal se compreende que o arguido sustente que houve violação dos princípios da legalidade, necessidade e proporcionalidade, que devem estar sempre presentes na aplicação de uma pena, com guarida constitucional.
25ª Basta ler o douto acórdão agora em recurso para facilmente se constatar que no presente caso a determinação do quantum das penas parcelares aplicadas ao arguido não violou quaisquer regras da experiência, nem a quantificação se revela desproporcionada, injusta e inadequada e muito menos foi violado o disposto nos artigos 40º e 71º do Código Penal.
26ª Ora, considerando, assim, a moldura penal abstrata dos crimes em apreço nestes autos e ponderando todos os factos que foram dados como provados, entendemos, com o merecido respeito, que não se pode questionar a adequação e proporcionalidade das penas parcelares fixadas no douto acórdão recorrido, afigurando-se-nos serem ajustadas à culpa do arguido e satisfazer plenamente as exigências reclamadas pela prevenção especial, que se prende com a capacidade do arguido se deixar influenciar pelas penas que lhe foram impostas, e pela prevenção geral positiva ou de integração, isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face às normas violadas.
27ª Por outro lado, resulta claro do douto acórdão agora em recurso que o coletivo de juízes cumpriu escrupulosamente todos os critérios previstos na lei e que devem nortear a aplicação de uma pena resultante de cúmulo jurídico de penas segundo o disposto no art. 77º do Código Penal.
28ª Lendo o douto acórdão proferido nestes autos e agora em recurso facilmente se chega à conclusão de que o coletivo de juízes procedeu à especial fundamentação imposta pelo art. 77º, nº 1, conjugado com o art. 71º, nº 3, ambos do Código Penal, podendo assim dizer-se que a avaliação feita pelo tribunal a quo é correta, assim, se justificando a pena unitária fixada ao arguido de 4 anos e 3 meses de prisão efetiva.
29ª Efetivamente, depois de enumerar todos os factos dados como provados, o coletivo de juízes fez uma extensa e exaustiva avaliação quanto às condições pessoais e personalidade do arguido, descrevendo em pormenor todos os factos relevantes que caracterizam a personalidade do recorrente, socorrendo-se, para o efeito, do relatório social junto aos autos e que foi elaborado pela DGRSP, incluindo todos os factos da vida pessoal, familiar e social que beneficiam o arguido.
30ª Não se entende, assim, muito bem como pode o arguido vir agora dizer no seu recurso que o Tribunal devia tê-lo condenado em penas parcelares e em pena única inferiores às que lhe foram aplicadas, quando é por demais evidente e ostensivo que, pelo menos assim resulta expressamente do acórdão recorrido, o coletivo de juízes indagou e apurou com precisão e rigor tudo o que se afigurou relevante sobre a personalidade e as condições pessoais do arguido e fundamentou devidamente tanto as penas parcelares como a pena única em que condenou o recorrente, tanto mais que as razões invocadas no recurso do arguido para ser punido em penas inferiores já foram tidas em conta pelo Tribunal a quo na determinação das penas concretas em que o condenou.
31ª Menos se compreende, ainda, como pode o arguido querer ver suspensa na sua execução a pena única de 4 anos e 3 meses de prisão em que foi condenado.
32ª É que é por demais evidente que o recorrente não poderá ver suspensa a execução da pena única de prisão em que foi condenado, dado que o mesmo já possui antecedentes criminais, como, aliás, foi dado como provado no ponto 68 da matéria de facto dada por assente no douto acórdão recorrido.
33ª Assim, o arguido já foi condenado no Processo Comum Coletivo nº 278/18.3GBAMT, que correu seus termos pelo Juízo Central Criminal de Penafiel – Juiz 3 da Comarca de Porto Este, por acórdão proferido em 6/5/2019, transitado em julgado a 17/6/2019, pela prática, respetivamente, em 4/4/2016 e 11/5/2028, de um crime de abuso sexual de crianças e de um crime de violência doméstica, na pena única de 2 anos e 3 meses de prisão efetiva, já declarada extinta.
34ª Porém, esta condenação criminal e a execução da pena de prisão em que o arguido foi condenado não surtiram qualquer efeito, já que o recorrente foi restituído à liberdade em 24/9/2020, conforme foi dado como provado no ponto 59 da matéria de facto dada por assente no douto acórdão recorrido, e passado pouco mais de três anos voltou a praticar os crimes que lhe são imputados nos presentes autos.
35ª Por outro lado, o arguido na audiência de julgamento não assumiu na íntegra a prática dos factos ilícitos típicos em apreço nestes autos, mesmo perante a evidência e a abundância dos meios de prova constantes dos autos (prova documental e prova pericial) e dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento (depoimentos de inúmeras testemunhas), o que quer dizer que o recorrente ainda não interiorizou por completo a gravidade da sua conduta e nem sequer tem consciência crítica da sua conduta criminosa.
36ª Equivale isto a dizer, pois, que não é possível a formulação de um juízo de prognose favorável do arguido, por forma a que se possa concluir que a ameaça da aplicação de pena privativa da liberdade será suficiente para afastá-lo da prática de novos ilícitos criminais, sobretudo de crimes contra pessoas, para os quais o recorrente tem uma certa tendência, com todas as nefastas consequências daí decorrentes, nomeadamente para as futuras vítimas e para a sociedade em geral, que não veria com bons olhos a ineficácia dos Tribunais perante novos ilícitos criminais praticados pelo arguido após o mesmo ter sido restituído à liberdade.
37ª Por último, convém dizer que os crimes praticados pelo arguido e em apreço nos presentes autos são vários, assim como várias são as vítimas destes crimes perpetrados pelo recorrente, mais precisamente, quatro ofendidos.
38ª Por tudo isto, é forçoso concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão não realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição e não são bastantes para afastar o arguido da repetição futura de novos ilícitos criminais.
39ª Assim sendo, nada aconselha que se suspenda a execução da pena única de 4 anos e 3 meses de prisão em que o recorrente foi condenado, pois, caso contrário, a satisfação das necessidades de reprovação e de prevenção do crime não ficariam convenientemente salvaguardadas.
40ª O douto acórdão recorrido não merece qualquer censura ou reparo, pois não violou qualquer disposição ou preceito legal e muito menos algum princípio penal, processual penal ou constitucional, nomeadamente os referidos pelo recorrente.
Nestes termos, deve ser negado provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, mas, se outra for a decisão de V. Exªs, por certo farão a costumada JUSTIÇA».
*
A Exma. Procuradora-Geral Adjunta, aderindo às alegações de resposta ao recurso, emitiu parecer no sentido da respetiva improcedência, concluindo, quanto ao mérito do recurso, nos seguintes moldes (segue transcrição):
«QUANTO AO MÉRITO DO RECURSO
Analisados os fundamentos do recurso, e os demais elementos processuais, nomeadamente, o teor do acórdão recorrido no que concerne à matéria de facto dado como provada e sua motivação – cf. págs. 4 a 17, onde se faz referência aos relatórios periciais que levaram a considerar o arguido imputável para a prática dos factos pelos quais foi condenado, a págs. 23 a 26, tudo do acórdão recorrido -, a integração jurídico-penal dos factos dados como provados – cf. págs. 17 a 31 do acórdão –, a escolha e medida concreta das penas, parcelares e única aplicadas e razões da não suspensão da pena de prisão – cf. págs. 31 a 35 -, tudo se me afigurando não merecer qualquer reparo, ACOMPANHO, NA ÍNTEGRA, A POSIÇÃO DO MAGISTRADO DO MINISTÉRIO PÚBLICO JUNTO DA 1ª INSTÂNCIA NA SUA RESPOSTA AO RECURSO – cujas conclusões transcrevi, por com elas estar de acordo.
Acrescenta-se, apenas, e no que concerne ao crime de dano pelo qual o arguido foi condenado, e bem, e tal como se refere no acórdão, na pág. 28, não tem aqui aplicação o disposto no art.º 207.º, n.º 1, al. b), ex vi n.º 4 do art.º 212.º, ambos do Código Penal, apesar do valor diminuto do prejuízo causado (15€), uma vez que não se verificam os demais requisitos aí previstos, tais como: a coisa danificada seja destinada a utilização imediata e indispensável à satisfação de uma necessidade do agente ou do seu cônjuge, ascendente, descendente, adotante, adotado, parente ou afim até ao 2.º grau, ou com ele conviver em condições análogas às dos cônjuges, sendo que estes pressupostos, de que depende a atribuição da natureza particular ao crime de dano, são cumulativos.
Pelo que, é por de mais evidente que a argumentação defendida pelo recorrente para a sua absolvição, com base no valor diminuto do dano e natureza particular do crime de dano, por aplicação do art.º 207.º, n.º 1, al. b), ex vi n.º 4 do art.º 212.º, ambos do Código Penal, também deverá improceder.
No mais, subscreve-se a argumentação constante da resposta ao recurso efetuada pelo Ministério Público.
Assim, o meu parecer é no sentido de que se deve negar provimento ao recurso do arguido e manter-se, íntegra, o acórdão recorrido».
*
Cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, pelo recorrente foi apresentada resposta ao parecer, reiterando os fundamentos do recurso e pugnando pela respetiva procedência.
*
Procedeu-se a exame preliminar e foram colhidos os vistos, após o que o processo foi à conferência, cumprindo apreciar e decidir.
*
*
II - Fundamentação
É pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido (artigos 412.º, n.º 1 e 417.º, n.º 3, do CPP), que se delimita o objeto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões que devem ser conhecidas oficiosamente, como sucede com os vícios a que alude o art.º 410.º, n.º 2 ou o art.º 379.º, n.º 1, do CPP (cf., por todos, os acórdãos do STJ de 11/4/2007 e de 11/7/2019, disponíveis em
www.dgsi.pt
).
Assim, podemos equacionar como questões colocadas à apreciação deste tribunal, as seguintes
[1]
:
a)
Impugnação da matéria de facto - vícios decisórios e erro de julgamento.
b)
Violação do princípio «in dubio pro reo».
c)
Punibilidade do crime de dano.
d)
Aplicação de medida de segurança de internamento.
e)
Atenuação especial da pena de prisão.
f)
Escolha de pena de multa quanto ao crime de dano.
g)
Medida concreta da pena de prisão.
h)
Suspensão da execução da pena ou execução da pena em regime de permanência na habitação.
*
Delimitado o
thema decidendum
, importa conhecer a factualidade e o exame crítico da prova em que assenta a decisão proferida.
*
Factos provados e não provados. Motivação da decisão de facto
(segue transcrição):
«FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Factos provados
Com relevo para a decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos:
1. O arguido reside na Rua ..., 4.ª Frente, em Amarante, local onde igualmente reside o queixoso CC, pai do queixoso BB;
2. No dia 07 de dezembro de 2023, pelas 11:00 horas, o arguido deparou-se com BB, quando o elevador em que aquele seguia parou no terceiro piso do prédio supra descrito;
3. O arguido acercou-se de BB, tendo com o braço impedido a porta do elevador de se fechar;
4. De seguida, em voz alta e tom sério, dirigindo-se a BB o arguido, disse: “dá-me vinte euros”;
5. BB respondeu que não tinha essa quantia consigo;
6. Ato contínuo, o arguido elevou um dos seus braços, cerrou o punho e, em voz alta e tom sério, visivelmente irado, disse: “quero vinte euros, dá-me vinte euros”;
7. O arguido insistiu nesta conduta durante dois ou três minutos, sempre com punho levantado, procurando assim intimidar BB, mediante agressão física iminente, a entregar-lhe vinte euros;
8. Uma vez que BB não tinha consigo qualquer dinheiro, o arguido acabou por desistir, deixando que a porta do elevador se fechasse;
9. Alguns instantes volvidos, o arguido deparou-se novamente com BB, desta vez acompanhado do seu pai, CC, no quarto andar do referido imóvel, junto à residência deste;
10. O arguido abordou novamente BB e, da mesma forma, disse: “vinte euros, dá-me vinte euros”;
11. Quando confrontado, novamente, com a resposta de BB, no sentido de não ter aquela quantia, o arguido cerrou os punhos e esbracejou sempre exigindo a entrega dos mencionados vinte euros;
12. Isto posto, o arguido acercou-se dirigiu a sua atenção para CC, acercando-se do mesmo e, em voz alta e tom sério, disse: “oh senhor BB ... vinte euros, … quero vinte euros … dá-me vinte euros …”;
13. No entanto, quer CC quer BB responderam que não tinham qualquer quantia disponível;
14. Ato contínuo, quando confrontado com aquelas respostas, o arguido desferiu um pontapé contra a porta da residência de CC, fazendo com a fechadura da mesma, bem como o respetivo encaixe se partissem;
15. Perante esta conduta o arguido, com receio de que se lhe seguiriam agressões físicas, CC entregou a AA uma nota de € 20,00, sendo que o mesmo, já na sua posse, abandonou aquele local;
16. Com a conduta descrita o arguido partiu a fechadura da porta e respetivo encaixe, causando um prejuízo de cerca de € 15,00, equivalente ao custo da sua reparação e substituição das peças danificadas;
17. O arguido atuou livre, deliberada e conscientemente, com o propósito concretizado de, mediante os gestos, palavras e ações supra descritas, constranger através da ameaça de agressão física iminente os queixosos a entregar-lhe quantias em dinheiro, das quais se apropriou, bem sabendo que os mesmos não lhe pertenciam e que atuava contra a vontade dos seus detentores e proprietários;
18. O queixoso BB não entregou qualquer quantia ao arguido apenas porque não a tinha, facto esse que é alheio ao arguido, que tudo fez para o constranger, mediante ameaça de agressão física iminente, a entregar-lhe € 20,00;
19. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito concretizado de danificar a porta e a fechadura do ofendido, que sabia não serem suas, agindo contra a vontade do seu legítimo proprietário;
20. No dia 08 de dezembro de 2023, cerca das 21:30, o arguido circulava pela Rua ..., em Amarante, quando se deparou com a assistente DD no interior da dependência bancária da Banco 1...;
21. O arguido entrou naquela dependência, local onde se encontra instalado o ATM e acercou-se de DD;
22. Uma vez junto daquela, em voz alta e tom sério disse: “levanta vinte euros”;
23. A assistente DD respondeu que não tinha aquela quantia;
24. Ato contínuo, o arguido desferiu uma bofetada que atingiu DD na face, do lado esquerdo;
25. O arguido voltou a exigir que DD levantasse vinte euros, tendo a mesmo repetido que não tinha aquela quantia disponível;
26. Quando confrontado com a resposta negativa, o arguido desferiu uma outra bofetada na face de DD, bem como um pontapé que a atingiu na coxa;
27. De seguida, empurrou DD contra uma porta de vidro existente naquele local;
28. Nesse preciso momento surge II, mãe do arguido, que disse: “olha o que estás a fazer à miúda”, o que fez com que o arguido abandonasse aquele local;
29. Como consequência direta e necessária da conduta do arguido, DD sofreu lesões, nomeadamente equimose arroxeada na pálpebra superior esquerda, bem como duas equimoses no membro inferior esquerdo, sendo que tais lesões determinaram à assistente 8 dias para a cura, sem afetação da capacidade de trabalho geral e profissional;
30. O arguido atuou livre, deliberada e conscientemente, com o propósito concretizado de, mediante os gestos, palavras e agressões físicas constranger DD a entregar-lhe quantias em dinheiro, que não lhe pertenciam, o que só não veio a suceder porque a mesma não tinha aquelas disponíveis, facto esse alheio à sua vontade;
31. No dia 09 de dezembro de 2023, o arguido deslocou-se ao posto de combustível ..., sito na Rua ..., ..., ..., Amarante;
32. Uma vez aí, cerca das 06:30 horas, o arguido dirigiu-se ao balcão da loja do referido posto, local onde se encontrava EE, funcionário daquele;
33. Após, quando junto àquele, em voz alta e tom sério disse "quero o tabaco e o dinheiro que está aí em baixo" apontando para o local onde o funcionário guarda habitualmente a gaveta da caixa com o dinheiro;
34. De seguida, o arguido entrou na área restrita do balcão, agarrou EE pelo casaco na zona do peito, empurrando-o contra o mobiliário ali existente;
35. Ato contínuo, o arguido desferiu dois murros que atingiram EE na cabeça e na face, enquanto dizia, em voz alta: "quero o dinheiro, dá-me o dinheiro";
36. Perante as agressões físicas de que foi objeto, EE colocou a gaveta da caixa com o dinheiro em cima do balcão;
37. Por seu turno, o arguido retirou da caixa a quantia monetária de € 145,00, em notas de 5, 10 e 20 euros;
38. Assim como retirou do expositor do tabaco três maços de tabaco da marca Terea e um maço de tabaco de marca Winston, tudo no valor de € 18,00;
39. Entretanto o arguido pegou no terminal de multibanco de marca “Ingenico”, modelo IPP320 e arremessou-o contra o expositor e, dirigindo-se a EE, disse: "hoje vou-te matar", o que repetiu por diversas vezes;
40. Após, o arguido saiu da loja para o exterior e começou a retirar as mangueiras das bombas de combustível, com o intuito de libertar alguma gasolina, ao mesmo tempo que proferia as seguintes expressões: "ativa as bombas que eu vou chegar lume a isto tudo";
41. EE fechou a porta do estabelecimento, tendo para junto da mesma regressado o arguido, que desferiu vários pontapés mesma;
42. Alguns instantes volvidos, o arguido abandonou aquele local, em direção ao centro da cidade mais precisamente para a Rua ..., onde este reside, na posse dos maços de tabaco e daquela quantia monetária, tudo no valor global de € 163,00;
43. O arguido atuou livre, deliberada e conscientemente, com o propósito conseguido de, mediante os gestos, palavras e agressões físicas constranger EE a entregar-lhe quantias em dinheiro e os maços de tabaco, dos quais se apropriou, bem sabendo que os mesmos não lhe pertenciam e que atuava contra a vontade dos seus detentores e proprietários;
44. As referidas palavras, bem como demais gestos e ações ora descritos, proferidas e perpetradas pelo arguido dirigidas a EE, foram-no de molde a perturbar este último nos seus sentimentos de segurança e liberdade, provocando-lhe o receio de que o arguido concretizasse as ameaças feitas, nomeadamente que atentasse contra a sua vida;
45. Por seu turno, o arguido sabia que essas mesma palavras, gestos e ação eram idóneos, no contexto descrito, a provocar medo em EE, propósito por expressamente querido;
46. Agiu o arguido de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito concretizado de criar em EE sentimento de medo, receio e insegurança, o que veio efetivamente a suceder;
47. Saiba o arguido que as condutas descritas eram proibidas e punidas por lei;
48. O arguido é seguido, pelo menos desde o ano de 2016, pelos Departamentos de Psiquiatria do Hospital ... do Porto e do Centro Hospitalar ... EPE, o Hospital ... e pelo Hospital 1...;
49. Nas assistências prestadas entre os anos de 2023 e 2024 pelo Centro Hospitalar ... EPE, foi diagnosticada ao Perturbação de Personalidade, Patologia Antissocial de Personalidade e Psicose e Perturbação Psicológica, Perturbação de Personalidade Dissocial, Padrão de uso nocivo de múltiplas substâncias psicoativas e Perturbação Psicótica não especificada;
50. O arguido foi sujeito a diversos internamentos compulsivos, nomeadamente em 27.02.2018, 14.05.2018, 24.02.2022, 13.09.2023, 09.11.2023, 23.11.2023;
51. A quantia monetária subtraída no posto de combustível ... e o tabaco, foram apreendidos à ordem dos autos e devolvidos ao proprietário;
2. Com a sua conduta, o arguido causou na demandante DD dores físicas no momento da agressão, que sentiu durante o período da sua cura;
53. A demandante DD sentiu-se humilhada por tais atos, traumatizada, chocada e com medo;
54. A demandante DD sentiu embaraço e humilhação no contacto com os seus familiares e amigos nos dias que se seguiram;
55. O episódio vivido pela demandante DD deixou-a abalada e humilhada no próprio dia e nos dias que se seguiram;
56. A demandante DD acorda diversas vezes durante a noite, sobressaltada, sempre com medo de encontrar o arguido, não conseguindo voltar a adormecer depois;
57. A demandante DD teve necessidade de manter um acompanhamento psicológico regular e fazer medicação para a ansiedade e perturbação do sono;
58. À data dos factos, o arguido residia no agregado familiar materno, em apartamento arrendado, dotado de condições de habitabilidade, localizado no centro da cidade de Amarante;
59. O arguido encontrava-se em liberdade desde 24.09.2020, após cumprimento de uma pena única de 2 anos e 3 meses de prisão, pela autoria de um crime de violência doméstica (contra a mãe) e de abuso sexual de crianças;
60. Sem qualquer ocupação estruturada, o arguido ocupava o seu quotidiano no convívio com grupo de pares;
61. Na comunidade é conhecido e associado a hábitos aditivos e a um estilo de interação agressivo, nomeadamente em espaços públicos;
62. O arguido apresenta um grau de incapacidade superior a 60%, auferindo uma prestação social para a inclusão, no valor de € 316,00;
63. O arguido concluiu o 9.º ano numa escola profissional em Amarante, altura em que iniciou consumos de estupefacientes, nomeadamente haxixe e convívio com grupo de pares com conduta social inadequada;
64. Profissionalmente registou como atividade laboral uma curta experiência como empregado de mesa, mas sem qualquer vínculo contratual de trabalho;
65. Mantém o apoio da mãe e da irmã, consubstanciado em contatos telefónicos e visitas regulares em meio prisional;
66. Em meio prisional, o arguido regista duas sanções disciplinares, em 18.01.2024 por incumprimentos dos deveres impostos nos termos legais e regulamentares e em 16.08.2024 por agressão a companheiro;
67. Em meio prisional, beneficia da intervenção clínica especializada na área da psiquiatria, com toma de medicação;
68. O arguido foi condenado no Processo comum coletivo n.º 278/18.3GBAMT, que correu termos Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este – JC Criminal de Penafiel, Juiz 3, por acórdão de 06.05.2019, transitado em julgado a 17.06.2019, pela prática, respetivamente, em 04.04.2016 e 11.05.2018, de um crime de abuso sexual de crianças e de um crime de violência doméstica, na pena única de 2 anos e 3 meses de prisão efetiva, já declarada extinta.
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Factos não provados
Com pertinência para a decisão da causa, não resultaram provados quaisquer outros factos, nomeadamente que:
1- Com a conduta descrita em 15 e 16 dos factos provados, o arguido causou um prejuízo nunca inferior a € 5.000,00;
2- O arguido não tem capacidade de entender ou determinar o seu comportamento e de distinguir o comportamento lícito de ilícito, designadamente no momento dos factos, por padecer de Psicose Esquizofrénica;
3- O arguido, no momento da prática dos factos, não conseguia avaliar a ilicitude do seu comportamento e de se determinar de acordo com essa avaliação, por padecer de doença mental que comprometia totalmente ou pelo menos reduzia a capacidade de determinação por parte do arguido, no momento de surto psicóticos.
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Convicção do tribunal
O tribunal formou a sua convicção com base na prova pericial e documental junta aos autos, nomeadamente:
i. autos principais: (pericial) relatório de perícia médico-legal de fls. 116 a 118 e relatório da perícia psiquiátrica forense de fl. 308-A a 308-D, (documental) elementos clínicos de fls. 16 a 19, 26 a 28, 30 a 48, 53 a 89, auto de visionamento de imagens de fls. 98 a 108, auto de reconhecimento de objetos de fls. 137, termo de entrega de fls. 138, certidão de fls. 257 a 261, informação médica de fls. 288 a 290, relatório social de fls. 295 a 297, documentos de fls. 324v a 332, certificado de registo criminal de fls. 354/355, registos clínicos de fls. 356 a 372 e documentos (relatórios e elementos clínicos) de fls. 377 a 400;
ii. apenso A: (pericial) relatório da perícia de avaliação do dano corporal de fls. 81/82, (documental) auto de apreensão de fls. 10 a 12 e auto de visionamento de imagens de fls. 99 a 109;
iii. apenso B: (pericial) relatório da perícia de avaliação do dano corporal de fls. 13/14 e (documental) elementos clínicos de fls. 6;
conjugada com as declarações do arguido e dos assistentes e depoimentos das testemunhas, tudo analisado de forma crítica e em conjugação com regras de experiência comum e as mais elementares regras de prova previstas no nosso ordenamento jurídico.
Assim, quanto à situação ocorrida no dia 07.12.2023, foram consideradas as declarações do arguido, na parte em que admite que o queixoso CC lhe entregou € 20,00 e que deu um pontapé na porta do apartamento deste.
No mais, as mesmas foram contrárias aos depoimentos das testemunhas CC e BB, pelo que não foram consideradas.
De facto, os depoimentos das testemunhas CC e BB, que confirmaram os factos tal como estes se provaram, mostraram-se credíveis, pela forma isenta e precisa como foram prestadas, não denotando animosidade para com o arguido, apesar da ocorrência, sendo coincidentes entre si e descrevendo espacial e temporalmente os factos de forma lógica e assertiva, de tal forma que explicaram o valor dos danos (cerca de € 15,00), diferente do que havia sido apresentado na queixa (€ 5.000,00), sendo este último relativo a uma porta blindada que não foi colocada, por desnecessidade.
A presenciar os factos, encontrava-se a mãe do arguido, a testemunha II, que confirmou, contrariamente ao que foi referido pelo arguido, que este pediu dinheiro ao assistente CC, tendo referido que assistiu a um “alvoroço”.
Quanto à situação ocorrida no dia 08.12.2023, foram também consideradas as declarações do arguido na parte em que admitiu determinados factos, mais concretamente ter ido à Banco 1... e aí ter encontrado a assistente DD, lhe ter dado duas bofetadas e um pontapé.
Também nesta situação o arguido negou os demais factos que lhe eram imputados na acusação, tendo os mesmos resultado provados em função das declarações da assistente DD, que os confirmou tal como estes se provaram. As suas declarações foram de tal forma claras e precisas, situando espacial e temporalmente os factos, descrevendo-os com a emoção natural de quem vivenciou uma situação inesperada e violenta, que, aliás, a afetou de tal forma que, como a mesma referiu, se “urinou toda”. A mesma relata que entrou uma senhora, dizendo ao arguido “olha o que estás a fazer à rapariga, olha a tua vida”, o que é confirmado pela própria mãe do arguido, a testemunha II. Esta testemunha refere que quando entrou o arguido tinha agarrado a “mocinha” e dizia “dá-me os € 20,00 que levantaste”.
As lesões sofridas pela assistente DD estão comprovadas pelo relatório da perícia de avaliação do dano corporal de fls. 13/14 e (documental) elementos clínicos de fls. 6, do apenso B.
As consequências da conduta do arguido são também descritas pela assistente DD, como a “imagem dele não sai da cabeça” e “noites sem dormir”, o que a levou a recorrer a tratamento médico e medicamentoso, o que é confirmado pela testemunha JJ, pai da assistente e pela testemunha KK, que refere que antes a assistente era calma, trabalhadora e concentrada e que atualmente não sai à noite e não tem vida social, devido ao medo que sente.
Quanto à situação ocorrida no dia 09.12.2023, o tribunal considerou as declarações do arguido, na parte em que confirmou que se deslocou ao posto de combustível ..., agrediu a testemunha EE no peito e face e a empurrou.
Com base nas declarações do assistente EE, o tribunal deu por provados os demais factos que constavam da acusação e que não foram admitidos pelo arguido, mostrando-se claras e precisas quanto à descrição que faz da ocorrência e encontram respaldo nas imagens de videovigilância, cujo auto de visionamento se encontra junto aos autos a fls. 98 a 108 e das quais se retira que o arguido, já no exterior da loja, se dirige a um dos postos de abastecimento, retira as mangueiras e pressiona no botão da pistola de combustível, obviamente na tentativa de derramar produto petrolífero, arremessando-as para o chão quando se vê na impossibilidade de o fazer, o que descredibiliza as declarações do arguido, que negou estes factos e credibiliza as declarações do assistente.
Com base nas declarações do assistente EE, no depoimento da testemunha LL, militar da GNR que deteve o arguido, no auto de apreensão de fls. 10 a 12 do apenso A, no auto de reconhecimento de objetos de fls. 137 dos autos principais e termo de entrega de fls. 138, o tribunal deu por provados os bens retirados do posto de combustível e a sua restituição.
Quanto à intenção do arguido em praticar os factos e conhecimento da desconformidade legal das suas condutas, cumpre referir que o arguido, em audiência de julgamento, referiu que “não andava bem”, “pediu para ser internado”, “só via coisas à volta”, “estava descompensado”, entre outras expressões, na tentativa, aliás expressa na contestação, de justificar as condutas com problemas psiquiátricos que padeceria e que levariam a que não tivesse capacidade de entender ou determinar o seu comportamento no sentido de compreender que os mesmos eram ilícitos ou se determinar e querer praticar esses factos.
Nas suas declarações, mostra-se percetível a procura pelo arguido na negação dos factos que constituem uma conduta contrária à lei, como na primeira situação, em que refere “não lhe exigi dinheiro”, na segunda situação quando refere que “não pedi o dinheiro” e na terceira situação em que nega ter dito que “ia matar” o assistente EE e a preocupação em justificar os demais factos com problemas psiquiátricos.
Do relatório de exame psiquiátrico ao arguido realizado no dia 18.01.2024, junto aos autos a fls. 116 a 118, verifica-se que no exame do estado mental efetuado pelo perito, o arguido apresentava um discurso percetível e coerente, de fluência normal, “psiquiatrizado”, aludindo à “esquizofrenia” para justificar os comportamentos desviantes.
No entanto, nesse mesmo relatório, o perito conclui que “O examinado padece de Perturbação da Personalidade Dissocial (6D11.2, CID-11), Perturbação Psicótica não especificada (6A2Z, CID-11) e Padrão de uso nocivo de múltiplas substâncias psicoativas (6C4F.1, CID-11). Embora não se possa afirmar inequivocamente que a perturbação de personalidade de que padece o examinado seja de natureza permanente, afigura-se como altamente improvável que seja alguma vez totalmente resolvida. Relativamente à perturbação psicótica, permanece, ainda, a dúvida diagnóstica se se tratará de um processo plenamente instalado e irreversível ou de uma manifestação intermitente relacionada com o abuso de substâncias psicoativas. À data dos factos, não há evidência de que o examinado estivesse psicótico e, assim, tivesse comprometida a capacidade para avaliar a ilicitude dos atos praticados e para se determinar de acordo com essa avaliação. Mais se acrescenta que, sobretudo em face da sua perturbação caracterial e do historial de abuso de substâncias, existe perigo de que o examinado venha a adotar comportamentos da mesma espécie”.
Da própria prova produzida em audiência de julgamento se depreende que as condutas do arguido foram sempre conscientes, nomeadamente as declarações do assistente EE, que relata que o arguido sabia que havia um “fundo de caixa”, pois viu-o a ir lá buscar “trocos noutros dias”, tendo-se dirigido ao sítio onde a mesma se encontrava, a porta de baixo do interior do balcão, o que denota a consciência por parte do arguido nessa sua conduta e, o próprio arguido, quando confrontado com as declarações da assistente DD, refere que “sabia que estava a bater”.
Realizada a perícia psiquiátrica requerida pelo arguido, para apurar a imputabilidade/inimputabilidade e perigosidade social pelos crimes imputados na acusação, cujo relatório se mostra junto a fls. 308-A a 308-D, no mesmo conclui-se “No exame realizado e durante a observação do Examinado, encontra-se em situação de imputabilidade, sendo capaz de avaliar a ilicitude dos seus comportamentos. Não apresenta uma anomalia psíquica grave. O arguido tem capacidade para se autodeterminar, sendo imputável. Existe perigosidade, isto é, é provável a repetição de um comportamento semelhante por apresentar os seguintes fatores de mau prognóstico: várias tentativas previas de tratamento sem sucesso, baixa adesão á terapêutica, personalidade disfuncional, consumos de tóxicos, envolvimento prévio com o sistema de justiça O examinado tem capacidade de entender e de ser influenciado pelas penas que possam vir a ser determinadas, de estar em juízo, e de preparar a sua defesa”.
De referir que no exame o perito afirma que “O examinado tem o diagnóstico segundo a classificação internacional da DSM – V de Perturbação da Personalidade antissocial. Perturbação aditiva a canabinoides. As características da sua personalidade são falha em se adequar a um comportamento lícito e ético e egocêntrico e insensível com falta de preocupação com os outros, acompanhado de desonestidade, irresponsabilidade, manipulação e exposição a riscos. Ausência de preocupação pelos sentimentos e sofrimento das outras pessoas, ausência de remorso após magoar ou tratar mal alguém. As suas funções psíquicas plenas (juízo da realidade e controle da vontade ou volição, assim como a função psíquica relativa (conhecimento da ilicitude) estão preservadas. O abuso de substâncias psicoativas representa um maior risco para a violência do que qualquer perturbação mental, podendo atuar como facilitador de impulsos agressivos. Assim sendo, para haver imputabilidade estão presentes a integridade da cognição; composta por consciência, vontade e conhecimento da ilicitude”.
Nas respostas aos quesitos formulados pelo arguido, o perito é perentório ao afirmar que “é importante referir que Perturbação da Personalidade não e sinónimo de doença mental, como já e consensual nas classificações internacionais, que recomendam separar em diferentes eixos para não cometer erros diagnósticos O abuso de sustâncias tóxicas agrava a evolução do quadro, interferem a nível metabólico com a terapêutica efetuada e aumenta o risco de surtos (Psicoses tóxicas) e reinternamentos”, “A agressividade não é sinónimo de surto psicótico, (…) a baixa tolerância á frustração quando uma pessoa é contrariada não é patognomónico de diagnostico de Esquizofrenia e sim de uma Perturbação da Personalidade, como é no caso que nos ocupa”, “Conseguia agir de outra maneira tendo consciência da realidade, sendo responsável pelos seus atos e das consequências dos mesmos” e “Pode ser considerado imputável, como é consensual nos utentes portadores de Perturbações das Personalidade que cometem atos delituosos, que, como no caso que nos ocupa, acostumam ser reiterados, e que já o levaram a cumprir pena de prisão no passado”.
Assim se constata que o arguido não padece de esquizofrenia, causa invocada pelo mesmo para a prática dos factos em causa nos autos, antes de perturbação de personalidade, com baixa tolerância à frustração, o que é compatível com a sua capacidade de avaliar a ilicitude dos seus atos e de se determinar de acordo com essa avaliação, que o arguido não padece de limitações de natureza psíquica que possam interferir na forma como se determina pelas normas de convivência social e que os eventos que deram origem aos presentes autos não podem ser considerados surtos psicóticos.
Nesta parte refira-se que este meio probatório apenas poderia ser colocado em crise por outro meio de prova idêntico, se justificado ou equacionado de forma fundada, o que nos leva a afastar as declarações do arguido, nomeadamente quando refere que “estava descompensado” e “não tinha intenção”, os depoimentos da sua mãe, a testemunha II, que sempre justificou as condutas do arguido com problemas psiquiátricos, culpando o médico que o assistia por lhe ter tirado os medicamentos seis meses antes e da irmã, a testemunha MM, que foi idêntico ao da mãe.
O depoimento da testemunha de defesa NN, taxista que transportou duas vezes o arguido ao hospital e do hospital para casa, é também exemplo da consciência que o mesmo tem das suas condutas, quando refere que uma vez “ia portar-se mal” e lhe disse “ó meu menino” e “ele acatou as ordens”, adequando o comportamento.
Se dúvidas não há sobre o relatório pericial e que o mesmo não pode ser posto em causa pela prova testemunhal (subscrevendo a posição assumida no Acórdão do Tribunal de Lisboa de 18.03.2015, disponível in www.dgsi.pt “tratando-se de exame pericial o resultado obtido no mesmo apenas pode ser colocado em crise por outro meio de prova idêntico e nunca pela análise de uma testemunha, ou nas declarações do arguido”), ainda assim se dirá que as próprias testemunhas arroladas pelo arguido e que tiveram alguma intervenção nos internamentos compulsivos a que este foi sujeito, bem como episódios de assistência médica hospitalar, quando confrontados com o teor dos relatórios juntos aos autos e registos clínicos, confirmaram esse desvio de personalidade do arguido, afastando a esquizofrenia, todos eles concluindo pela consciência da realidade do arguido pelos seus atos e das consequências dos mesmos. Tal aconteceu com as testemunhas GG e HH, médicos psiquiatras.
Assim, a testemunha GG explicou de forma bastante esclarecedora a diferença entre “esquizofrenia” e “problemas de personalidade”, referindo que na primeira o comportamento não poderia ser moldado, nomeadamente na sala de audiência de julgamento, acometendo ao arguido problemas ligados à personalidade e afastando a esquizofrenia. De facto, esta testemunha, perante os elementos clínicos que lhe foram exibidos, nomeadamente nas situações em que teve intervenção, defendeu, de forma perentória, que o arguido não padece de esquizofrenia, antes de problemas ligados à personalidade, nomeadamente impulsos e dificuldade de controlar esses impulsos e baixa tolerância à frustração, que o levam a partir para a agressividade, que também podem necessitar de tratamento e conduziram o arguido a diversos internamentos compulsivos e à toma de medicamentos antipsicóticos (também administrados para controlo de impulsos), mas que não afetam a consciência do arguido nos atos que praticou, sendo elucidativa a frase, no final do seu depoimento, “a questão é que estamos a pôr um surto psicótico em situações que não há surtos psicóticos”.
Também a testemunha HH, que teve intervenção em dois internamentos do arguido, o último dos quais em 2023, afirma que não foi confirmado surto psicótico, tratando-se de alterações comportamentais, alterações de personalidade.
O depoimento da testemunha OO, médica de família, nada de relevante trouxe aos autos, uma vez que apenas falou com a mãe do arguido e consultou informações constantes da base de dados. No mesmo sentido se caraterizou o depoimento da testemunha PP.
Assim, resultou provado que o arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram contrárias à lei e não provados factos que estão em contradição com estes e que foram alegados na contestação.
O Tribunal considerou, quanto às condições pessoais, sociais e económicas do arguido, o relatório social de fls. 295 a 297 e o certificado de registo criminal de fls. 354/355, quanto aos antecedentes criminais do arguido.
Os factos não provados, resultaram por contrários aos elementos probatórios produzidos, nos termos supra referidos».
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Apreciando os fundamentos do recurso
[segundo a respetiva ordem de precedência lógica].
I - Impugnação da matéria de facto - vícios decisórios e erro de julgamento; violação do princípio “in dubio pro reo”.
O recorrente impugna a matéria de facto constante dos pontos 19), 30), 43), 45), 46), 47), 57) e 62), que considera ter sido erradamente julgada, devendo passar a integrar o elenco da factualidade não provada (ou ainda da matéria provada, mas com redação inversa à que lhe foi dada). Relativamente à factualidade constante dos pontos 2) e 3), considerada não provada, defende que deverá passar a integrar o elenco dos factos provados. Sustenta, também, que a decisão recorrida enferma dos vícios de «insuficiência para a decisão da matéria de facto provada», de «contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão» e de «erro notório na apreciação da prova», previstos no art.º 410.º, n.º 2, alíneas a), b) e c), do CPP. Finalmente, invoca a violação do princípio da presunção de inocência, na modalidade do «in dubio pro reo».
Vejamos se lhe assiste razão.
Os poderes de cognição deste Tribunal da Relação abrangem matéria de facto e matéria de direito (cf. art.º 428.º do Código Processo Penal).
A matéria de facto pode ser questionada por duas vias, a saber:
- no
âmbito restrito
, mediante a arguição dos vícios decisórios previstos no art.º 410.º, n.º 2, do Código Processo Penal, cuja indagação tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo, por isso, admissível o recurso a elementos àquela estranhos para a fundamentar, ainda que se trate de elementos existentes nos autos e até mesmo provenientes do próprio julgamento;
- mediante a
impugnação ampla
a que se reporta o art.º 412.º, nº 3, 4 e 6, do Código Processo Penal, caso em que a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência.
A primeira modalidade de impugnação, que integra o chamado recurso de «revista ampliada», trata-se de uma intervenção restrita, já que apenas admissível no tocante às patologias catalogadas nas alíneas do n.º 2, do art.º 410º e evidenciadas no texto decisório, por si ou em conjugação com as regras de experiência, sem recurso a quaisquer outros elementos que o extravasem.
O elenco legal destes vícios, como decorre das alíneas a), b) e c), do citado normativo legal, abrange a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada [lacunas factuais que podiam e deviam ter sido averiguadas e se mostram necessárias à formulação de juízo seguro de condenação ou absolvição], a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão [incompatibilidade entre factos provados ou entre estes e os não provados e entre a matéria fáctica e a conclusão jurídica] e
o erro notório na apreciação da prova [erro patente que não escapa ao homem comum]
[2]
.
Assim, os erros da decisão, para poderem ser apreciados ou mesmo conhecidos oficiosamente, devem detetar-se, sem esforço de análise, a partir do teor da própria sentença, sem recurso a elementos externos como seja o cotejo das provas disponíveis nos autos e/ou produzidas em audiência de julgamento.
O vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão reporta-se a lacunas no elenco factual vertido na decisão, pelo que tal vício ocorre quando da leitura desta se evidencia a omissão de factos que podiam e deviam ter sido averiguados - por se mostrarem necessários à formulação de juízo seguro de condenação ou absolvição - e não o foram, em prejuízo do dever de descoberta da verdade e boa decisão da causa que incumbe ao tribunal, como nos dá conta o acórdão deste TRP, de 15/11/2018
[3]
.
Deste modo, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada supõe que os factos provados não constituem suporte bastante para a decisão que foi tomada, quer porque não permitem integrar todos os elementos materiais de um tipo de crime, quer porque deixam espaços não preenchidos relativamente a elementos essenciais à determinação da ilicitude, da culpa ou outros necessários para a fixação da medida da pena.
A insuficiência da matéria de facto tem de ser objetivamente avaliada perante as várias soluções possíveis e plausíveis dentro do objeto do processo, e não na perspetiva subjetiva decorrente da interpretação pessoal do interessado perante os factos provados e as provas produzidas que permitiram a decisão sobre a matéria de facto.
Sucede que, no presente caso, o tribunal
a quo
averiguou a questão da imputabilidade do arguido/recorrente, essencial à determinação da culpa jurídico-penal, e sobre ela tomou uma decisão, inexistindo, assim, qualquer insuficiência da matéria de facto provada para a decisão (situação que, naturalmente, não se confunde com a divergência manifestada pelo recorrente em relação à solução dada à problemática em questão pelo tribunal) ou, ainda, «nulidade por omissão de pronúncia», como sustenta o recorrente.
Avançando para o vício decisório previsto na referida alínea b), do n.º 2 do art.º 410.º do CPP, importa assinalar que abrange, na verdade, dois vícios distintos:
- A contradição insanável da fundamentação; e
- A contradição insanável entre a fundamentação e a decisão.
No primeiro caso incluem-se as situações em que a fundamentação desenvolvida pelo julgador evidencia premissas antagónicas ou manifestamente inconciliáveis. Ocorre, por exemplo, quando se dão como provados dois ou mais factos que manifestamente não podem estar simultaneamente provados ou quando o mesmo facto é considerado como provado e como não provado. Trata-se de “um vício ao nível das premissas, determinando a formação deficiente da conclusão”, de tal modo que “se as premissas se contradizem, a conclusão logicamente correta é impossível”
[4]
.
Por seu turno, a contradição entre a fundamentação e a decisão abrange as situações em que os factos provados ou não provados colidem com a fundamentação da decisão. É o vício que se verifica, por exemplo, quando a decisão assenta em premissas distintas das que se tiveram como provadas.
Ora, analisado o teor da decisão recorrida facilmente se conclui que a mesma não evidencia qualquer contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão – contradição que, de resto, o recorrente não identifica - suscetível de integrar o vício decisório previsto no art.º 410.º, n.º 2, b), do CPP.
Com efeito, a contradição ali postulada é só aquela que se apresente como insanável, irredutível, que não possa ser ultrapassada com recurso à decisão recorrida no seu todo e com recurso às regras da experiência e que incida sobre elementos relevantes do caso submetido a julgamento (como é salientado no acórdão do TRL de 21/5/2015
[5]
), o que, no presente caso, manifestamente não se verifica. É de notar, aliás, que o recorrente limita-se a censurar a valoração da prova efetuada pelo tribunal, mas nenhum contributo válido, com a virtualidade de densificar o vício decisório que abstratamente invoca, apresenta no seu recurso.
Resolvida esta questão, avancemos para a análise do vício decisório previsto no art.º 410.º, n.º 2, c), do CPP, vício que o recorrente aparentemente funda na concreta valoração da prova pericial efetuada pelo tribunal
a quo
relacionada com a questão da determinação da sua imputabilidade/imputabilidade diminuída, acrescentando que ocorreu a violação do princípio
in dubio pro reo
[6]
.
Vejamos, então.
O «erro notório na apreciação da prova» configura uma patologia extrema da decisão que, não se confundindo com a mera discordância ou diversa opinião quanto à valoração da prova levada a efeito pelo julgador, traduz-se na evidência de uma apreciação manifestamente ilógica, violadora das regras da experiência, das
legis artis
ou das regras sobre o valor da prova vinculada, refletida no próprio texto da decisão recorrida. Radica, assim, em situações de falha grosseira e ostensiva na análise da prova, em distorções de ordem lógica entre os factos provados ou não provados, ou na evidência de uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio - ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente.
[7]
Em síntese, deve tratar-se de um erro manifesto, isto é, facilmente demonstrável, dada a sua evidência perante o texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
No presente caso, analisada a fundamentação da matéria de facto constante da decisão recorrida (e já transcrita), verificamos que o tribunal
a quo
,
analisando o conteúdo da prova pericial constante do processo, em conjugação com a prova documental (elementos clínicos) e com os esclarecimentos prestados por algumas das testemunhas inquiridas (em particular, pelos contributos para o esclarecimento dos factos prestados pelas testemunhas GG e HH, médicos psiquiatras), concluiu pela imputabilidade do arguido, pela verificação dos elementos subjetivos dos tipos de ilícito e, ainda, do tipo de culpa e, consequentemente, pela sua responsabilidade individual pela prática dos factos objetivos que resultaram demonstrados, suscetíveis de integrar a prática dos crimes de roubo e de dano que lhe foram imputados.
O recorrente, por seu turno, limita-se a divergir do modo como o tribunal valorou a globalidade dos meios de prova, sem que, de modo algum, se possa concluir que a perspetiva do tribunal sobre a prova, tal como se encontra retratada no acórdão recorrido, carece de fundamento, mostrando-se arbitrária, irracional, ilógica ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.
Com efeito, analisada a decisão recorrida, verificamos que nela o tribunal expressou fundamentadamente, procedendo a uma análise crítica da prova de forma exaustiva, um juízo positivo sobre a credibilidade dos meios de prova atrás assinalados, esclarecendo que a prova produzida demonstrava, para além de qualquer dúvida razoável, não só que os factos objetivos ocorreram, mas também que por eles teria de ser responsabilizado o arguido, o qual, sendo imputável e, por isso, sujeito de culpa jurídico-penal, agiu dolosamente, com consciência e vontade livre de praticar os atos ilícitos documentados na factualidade apurada, apesar de conhecer o seu caráter proibido e punido por lei.
Na verdade, e como bem esclareceu o tribunal
a quo
na decisão recorrida: «Quanto à intenção do arguido em praticar os factos e conhecimento da desconformidade legal das suas condutas, cumpre referir que o arguido, em audiência de julgamento, referiu que “não andava bem”, “pediu para ser internado”, “só via coisas à volta”, “estava descompensado”, entre outras expressões, na tentativa, aliás expressa na contestação, de justificar as condutas com problemas psiquiátricos que padeceria e que levariam a que não tivesse capacidade de entender ou determinar o seu comportamento no sentido de compreender que os mesmos eram ilícitos ou se determinar e querer praticar esses factos. Nas suas declarações, mostra-se percetível a procura pelo arguido na negação dos factos que constituem uma conduta contrária à lei, como na primeira situação, em que refere “não lhe exigi dinheiro”, na segunda situação quando refere que “não pedi o dinheiro” e na terceira situação em que nega ter dito que “ia matar” o assistente EE e a preocupação em justificar os demais factos com problemas psiquiátricos.
Do relatório de exame psiquiátrico ao arguido realizado no dia 18.01.2024, junto aos autos a fls. 116 a 118, verifica-se que no exame do estado mental efetuado pelo perito, o arguido apresentava um discurso percetível e coerente, de fluência normal, “psiquiatrizado”, aludindo à “esquizofrenia” para justificar os comportamentos desviantes. No entanto, nesse mesmo relatório, o perito conclui que “O examinado padece de Perturbação da Personalidade Dissocial (6D11.2, CID-11), Perturbação Psicótica não especificada (6A2Z, CID-11) e Padrão de uso nocivo de múltiplas substâncias psicoativas (6C4F.1, CID-11). Embora não se possa afirmar inequivocamente que a perturbação de personalidade de que padece o examinado seja de natureza permanente, afigura-se como altamente improvável que seja alguma vez totalmente resolvida. Relativamente à perturbação psicótica, permanece, ainda, a dúvida diagnóstica se se tratará de um processo plenamente instalado e irreversível ou de uma manifestação intermitente relacionada com o abuso de substâncias psicoativas. À data dos factos, não há evidência de que o examinado estivesse psicótico e, assim, tivesse comprometida a capacidade para avaliar a ilicitude dos atos praticados e para se determinar de acordo com essa avaliação. Mais se acrescenta que, sobretudo em face da sua perturbação caracterial e do historial de abuso de substâncias, existe perigo de que o examinado venha a adotar comportamentos da mesma espécie”.
Da própria prova produzida em audiência de julgamento se depreende que as condutas do arguido foram sempre conscientes, nomeadamente as declarações do assistente EE, que relata que o arguido sabia que havia um “fundo de caixa”, pois viu-o a ir lá buscar “trocos noutros dias”, tendo-se dirigido ao sítio onde a mesma se encontrava, a porta de baixo do interior do balcão, o que denota a consciência por parte do arguido nessa sua conduta e, o próprio arguido, quando confrontado com as declarações da assistente DD, refere que “sabia que estava a bater”.
Realizada a perícia psiquiátrica requerida pelo arguido, para apurar a imputabilidade/inimputabilidade e perigosidade social pelos crimes imputados na acusação, cujo relatório se mostra junto a fls. 308-A a 308-D, no mesmo conclui-se “No exame realizado e durante a observação do Examinado, encontra-se em situação de imputabilidade, sendo capaz de avaliar a ilicitude dos seus comportamentos. Não apresenta uma anomalia psíquica grave. O arguido tem capacidade para se autodeterminar, sendo imputável. Existe perigosidade, isto é, é provável a repetição de um comportamento semelhante por apresentar os seguintes fatores de mau prognóstico: várias tentativas previas de tratamento sem sucesso, baixa adesão á terapêutica, personalidade disfuncional, consumos de tóxicos, envolvimento prévio com o sistema de justiça O examinado tem capacidade de entender e de ser influenciado pelas penas que possam vir a ser determinadas, de estar em juízo, e de preparar a sua defesa”.
De referir que no exame o perito afirma que “O examinado tem o diagnóstico segundo a classificação internacional da DSM – V de Perturbação da Personalidade antissocial. Perturbação aditiva a canabinoides. As características da sua personalidade são falha em se adequar a um comportamento lícito e ético e egocêntrico e insensível com falta de preocupação com os outros, acompanhado de desonestidade, irresponsabilidade, manipulação e exposição a riscos. Ausência de preocupação pelos sentimentos e sofrimento das outras pessoas, ausência de remorso após magoar ou tratar mal alguém. As suas funções psíquicas plenas (juízo da realidade e controle da vontade ou volição, assim como a função psíquica relativa (conhecimento da ilicitude) estão preservadas. O abuso de substâncias psicoativas representa um maior risco para a violência do que qualquer perturbação mental, podendo atuar como facilitador de impulsos agressivos. Assim sendo, para haver imputabilidade estão presentes a integridade da cognição; composta por consciência, vontade e conhecimento da ilicitude”.
Nas respostas aos quesitos formulados pelo arguido, o perito é perentório ao afirmar que “é importante referir que Perturbação da Personalidade não e sinónimo de doença mental, como já e consensual nas classificações internacionais, que recomendam separar em diferentes eixos para não cometer erros diagnósticos O abuso de sustâncias tóxicas agrava a evolução do quadro, interferem a nível metabólico com a terapêutica efetuada e aumenta o risco de surtos (Psicoses tóxicas) e reinternamentos”, “A agressividade não é sinónimo de surto psicótico, (…) a baixa tolerância á frustração quando uma pessoa é contrariada não é patognomónico de diagnostico de Esquizofrenia e sim de uma Perturbação da Personalidade, como é no caso que nos ocupa”, “Conseguia agir de outra maneira tendo consciência da realidade, sendo responsável pelos seus atos e das consequências dos mesmos” e “Pode ser considerado imputável, como é consensual nos utentes portadores de Perturbações das Personalidade que cometem atos delituosos, que, como no caso que nos ocupa, acostumam ser reiterados, e que já o levaram a cumprir pena de prisão no passado”.
Assim se constata que o arguido não padece de esquizofrenia, causa invocada pelo mesmo para a prática dos factos em causa nos autos, antes de perturbação de personalidade, com baixa tolerância à frustração, o que é compatível com a sua capacidade de avaliar a ilicitude dos seus atos e de se determinar de acordo com essa avaliação, que o arguido não padece de limitações de natureza psíquica que possam interferir na forma como se determina pelas normas de convivência social e que os eventos que deram origem aos presentes autos não podem ser considerados surtos psicóticos.
Nesta parte refira-se que este meio probatório apenas poderia ser colocado em crise por outro meio de prova idêntico, se justificado ou equacionado de forma fundada, o que nos leva a afastar as declarações do arguido, nomeadamente quando refere que “estava descompensado” e “não tinha intenção”, os depoimentos da sua mãe, a testemunha II, que sempre justificou as condutas do arguido com problemas psiquiátricos, culpando o médico que o assistia por lhe ter tirado os medicamentos seis meses antes e da irmã, a testemunha MM, que foi idêntico ao da mãe.
O depoimento da testemunha de defesa NN, taxista que transportou duas vezes o arguido ao hospital e do hospital para casa, é também exemplo da consciência que o mesmo tem das suas condutas, quando refere que uma vez “ia portar-se mal” e lhe disse “ó meu menino” e “ele acatou as ordens”, adequando o comportamento.
Se dúvidas não há sobre o relatório pericial e que o mesmo não pode ser posto em causa pela prova testemunhal (subscrevendo a posição assumida no Acórdão do Tribunal de Lisboa de 18.03.2015, disponível in www.dgsi.pt “tratando-se de exame pericial o resultado obtido no mesmo apenas pode ser colocado em crise por outro meio de prova idêntico e nunca pela análise de uma testemunha, ou nas declarações do arguido”), ainda assim se dirá que as próprias testemunhas arroladas pelo arguido e que tiveram alguma intervenção nos internamentos compulsivos a que este foi sujeito, bem como episódios de assistência médica hospitalar, quando confrontados com o teor dos relatórios juntos aos autos e registos clínicos, confirmaram esse desvio de personalidade do arguido, afastando a esquizofrenia, todos eles concluindo pela consciência da realidade do arguido pelos seus atos e das consequências dos mesmos. Tal aconteceu com as testemunhas GG e HH, médicos psiquiatras.
Assim, a testemunha GG explicou de forma bastante esclarecedora a diferença entre “esquizofrenia” e “problemas de personalidade”, referindo que na primeira o comportamento não poderia ser moldado, nomeadamente na sala de audiência de julgamento, acometendo ao arguido problemas ligados à personalidade e afastando a esquizofrenia. De facto, esta testemunha, perante os elementos clínicos que lhe foram exibidos, nomeadamente nas situações em que teve intervenção, defendeu, de forma perentória, que o arguido não padece de esquizofrenia, antes de problemas ligados à personalidade, nomeadamente impulsos e dificuldade de controlar esses impulsos e baixa tolerância à frustração, que o levam a partir para a agressividade, que também podem necessitar de tratamento e conduziram o arguido a diversos internamentos compulsivos e à toma de medicamentos antipsicóticos (também administrados para controlo de impulsos), mas que não afetam a consciência do arguido nos atos que praticou, sendo elucidativa a frase, no final do seu depoimento, “a questão é que estamos a pôr um surto psicótico em situações que não há surtos psicóticos”.
Também a testemunha HH, que teve intervenção em dois internamentos do arguido, o último dos quais em 2023, afirma que não foi confirmado surto psicótico, tratando-se de alterações comportamentais, alterações de personalidade.
O depoimento da testemunha OO, médica de família, nada de relevante trouxe aos autos, uma vez que apenas falou com a mãe do arguido e consultou informações constantes da base de dados. No mesmo sentido se caraterizou o depoimento da testemunha PP.
Assim, resultou provado que o arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram contrárias à lei e não provados factos que estão em contradição com estes e que foram alegados na contestação».
As conclusões a que chegou o tribunal
a quo
quanto à imputabilidade do recorrente e consequente atuação dolosa baseiam-se nos resultados da prova pericial e de modo nenhum afrontam as regras da lógica e da experiência comum.
Neste âmbito, é de notar que, para a prova dos factos em processo penal, é perfeitamente legítimo o recurso à prova indireta, também chamada prova indiciária, por presunções ou circunstancial. Portanto, tanto a prova direta, como a indireta ou indiciária são modos igualmente legítimos de chegar ao conhecimento da realidade do facto a provar, importando nesta as presunções simples, naturais ou
hominis
, simples meios de convicção que se encontram na base de qualquer juízo probatório.
O sistema probatório alicerça-se em grande parte neste tipo de raciocínio (indutivo) e, para certos factos,
[8]
como sejam os relativos aos elementos subjetivos do tipo (doloso ou negligente)
[9]
, não havendo confissão, a sua comprovação não poderá fazer-se senão por meio de prova indireta
[10]
.
Naturalmente, quando a base do juízo de facto é indireta, impõe-se um particular rigor na análise dos elementos que sustentam tal juízo, a fim de evitar erros.
[11]
Com efeito, a presunção de inocência que impera em direito processual penal exige que não seja afetada pela utilização de presunções judiciais. Portanto, a utilização de uma presunção judicial para determinar a culpa pela prática de um ilícito criminal deve ser particularmente sólida, bem fundamentada, não dando margem para o erro judiciário: além da prova fundamentada dos factos básicos deve existir uma conexão racional forte entre esses factos e o facto consequência.
[12]
Em conclusão, no processo penal, por força das garantias constitucionais, exige-se que o juízo probatório implique uma probabilidade elevada (um forte grau de probabilidade de que os factos tenham ocorrido daquela forma e que eles tenham sido praticados pelo arguido), a qual não convive com parâmetros de dúvida e de incerteza relevantes.
No presente caso, analisada a decisão recorrida facilmente se conclui que o tribunal de primeira instância baseou a sua convicção quanto à imputabilidade e dolo do arguido num conjunto alargado de indícios fortes e concordantes e assente em raciocínios lógicos suportados por sólida prova de natureza pericial.
É de notar que, tratando-se de prova de valor acrescido, reforçado, o tribunal não pode afastar-se dos juízos técnicos nela contidos, a não ser que esteja na posse de um meio probatório de valor idêntico, exigindo-se, neste caso, especial dever de fundamentação da decisão
[13]
. Com efeito, o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador (cf. o artigo 163.º, n.º 1, do CPP), razão pela qual as conclusões a que chegaram os peritos quanto ao diagnóstico de natureza psiquiátrica e respetiva repercussão sobre o juízo de imputabilidade do arguido não poderiam ser derrogadas com base em simples declarações de testemunhas (em particular, daquelas que não dispunham de especiais conhecimentos técnicos) ou do arguido, como corretamente se assinalou no acórdão recorrido, não se evidenciando nesta consideração qualquer «inconstitucionalidade» como aquele invoca no recurso
[14]
.
Não se evidencia, assim, qualquer erro notório na apreciação da prova (bem pelo contrário), mostrando-se a decisão congruente com a prova produzida (tal como aí se encontra retratada), aferida segundo juízos de normalidade decorrentes das regras da experiência comum (e, portanto, com o princípio da livre apreciação da prova) e perfeitamente suportada pelo princípio
in dubio pro reo
(sendo certo que, como vimos, o tribunal de primeira instância não enuncia qualquer dúvida relativamente à verificação desta factualidade, que pudesse ter resolvido de forma desfavorável ao arguido, nem tal dúvida se evidencia)
[15]
.
Inexistindo «contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão», «erro notório na apreciação da prova» ou qualquer outro vício decisório que se evidencie a partir da simples leitura da decisão recorrida
[16]
, a alteração da matéria de facto pretendida pelo recorrente apenas poderá decorrer da constatação de um «erro de julgamento», caso exista.
Relativamente a esta modalidade de impugnação da matéria de facto, o legislador onera o recorrente com o dever de especificar os
concretos pontos de facto
que considera incorretamente julgados e as
concretas provas
que impõem decisão diversa; ónus que tem que ser observado para cada um dos factos impugnados, devendo ser indicadas em relação a cada facto as provas concretas que impõem decisão diversa e, bem assim, referido qual o sentido em que devia ter sido produzida a decisão
[17]
.
O ónus de especificação deve, assim, ser observado relativamente a cada um dos factos impugnados, e não «por atacado», impondo-se ao recorrente relacionar e fazer a necessária correspondência do conteúdo específico do meio de prova que segundo ele impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorretamente julgado
[18]
.
Havendo gravação das provas, tais especificações devem ser feitas com referência ao consignado na ata, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.º 4 e 6 do artigo 412.º do Código de Processo Penal).
Tais imposições legais fundam-se na necessidade da delimitação objetiva do recurso da matéria de facto, na medida em que o recurso deste tipo não se destina a um novo julgamento com reapreciação de toda a prova, como se o julgamento efetuado na primeira instância não tivesse existido, sendo antes o recurso da matéria de facto concebido pela lei como remédio jurídico
[19]
.
O ónus de impugnação especificada foi observado pelo recorrente de forma que ainda consideramos suficientemente adequada, pelo que importa analisar as razões de discordância enunciadas quanto à decisão sobre a matéria de facto reportada aos segmentos atrás identificados.
Ora, porque não se trata de um novo julgamento, e constitui apenas um remédio para os vícios do julgamento em primeira instância
[20]
, faltando-lhe a imediação e a oralidade da prova, a reapreciação deve ser particularmente cuidadosa, não podendo o Tribunal da Relação fazer tábua rasa da livre apreciação da prova em que assentou o juízo do tribunal recorrido
[21]
. Deste modo, e embora se imponha ao tribunal de recurso que se posicione como tribunal efetivamente interveniente no processo de formação da convicção, assumindo um reclamado «exercício crítico substitutivo»
[22]
, a natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o «contacto» com as provas ao que consta das gravações, constitui uma importante limitação a considerar na sindicância da matéria de facto no âmbito da impugnação ampla, como se faz notar no acórdão do STJ de 12/6/2008
[23]
.
Com efeito, o tribunal decide, salvo existência de prova vinculada, de acordo com as regras da experiência e a livre convicção e, por isso, não é suficiente para a pretendida modificação da decisão de facto que as provas especificadas pelo recorrente permitam uma decisão diferente da proferida pelo tribunal, sendo imprescindível, para tal efeito, que as provas especificadas pelo recorrente imponham decisão diversa da recorrida
[24]
.
E isto porque, neste âmbito, rege o princípio da livre apreciação da prova
[25]
, significando este princípio, por um lado, a ausência de critérios legais predeterminantes de valor a atribuir à prova (salvo exceções legalmente previstas, como sucede com a prova pericial) e, por outro lado, que o tribunal aprecia toda a prova produzida e examinada com base exclusivamente na livre apreciação da prova e na sua convicção pessoal.
Por isso que o juiz é livre de relevar, ou não, elementos de prova que sejam submetidos à sua apreciação e valoração: pode dar crédito às declarações do arguido ou do ofendido/lesado em detrimento dos depoimentos (mesmo que em sentido contrário) de uma ou várias testemunhas; pode mesmo absolver um arguido que confessa, integralmente, os factos que consubstanciam o crime de que é acusado (v.g, por suspeitar da veracidade ou do carácter livre da confissão); pode desvalorizar os depoimentos de várias testemunhas e considerar decisivo na formação da sua convicção o depoimento de uma só
[26]
; não está obrigado a aceitar ou a rejeitar, acriticamente e em bloco, as declarações do arguido, do assistente ou do demandante civil ou os depoimentos das testemunhas, podendo respigar desses meios de prova aquilo que lhe pareça credível
[27]
.
Da análise da decisão recorrida resulta que o tribunal
a quo
explicitou, claramente e de forma perfeitamente lógica, as razões pelas quais considerou demonstrados (ou, pelo contrário, não provados) os factos impugnados pelo recorrente, relacionados, à exceção dos contidos nos pontos 57) e 62), com a imputabilidade e dolo do arguido.
Com efeito, analisada a decisão recorrida, verificamos que nela o tribunal expressou fundamentadamente, procedendo a uma análise crítica da prova de forma exaustiva, um juízo positivo sobre a credibilidade dos meios de prova atrás assinalados (os resultados da prova pericial, em conjugação com prova documental e testemunhal), esclarecendo que a prova produzida demonstrava, para além de qualquer dúvida razoável, que o arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente nos moldes concretizados na matéria de facto considerada provada, não obstante ter reconhecido, no mesmo acórdão, que ao recorrente foi diagnosticada, nos anos de 2023 e 2024, «Perturbação de Personalidade, Patologia Antissocial de Personalidade e Psicose e Perturbação Psicológica, Perturbação de Personalidade Dissocial, Padrão de uso nocivo de múltiplas substâncias psicoativas e Perturbação Psicótica não especificada», tendo o mesmo sido sujeito a «diversos internamentos compulsivos» (cf. os pontos 49 e 50 da matéria de facto provada).
O recorrente, por seu turno, embora com referenciação de documentos e transcrição de depoimentos, limita-se a manifestar a sua discordância relativamente ao modo como o tribunal de primeira instância valorou a prova produzida, contrapondo a sua própria análise valorativa, verificando-se, porém, inequivocamente que o tribunal explica de forma coerente o motivo pelo qual se convenceu de que o arguido/recorrente adotou os comportamentos descritos no acórdão recorrido, agindo dolosamente, sendo da análise conjugada da prova pericial, testemunhal e documental contida no processo - mostrando-se, no essencial, tais meios de prova coerentes e congruentes entre si - que retira a sua convicção
[28]
.
Na verdade, o que ressalta da motivação do recurso é que o recorrente tem opinião diversa da que foi expressa pelo tribunal
a quo
no que respeita à análise e valoração da prova, pretendendo sobrepor a sua convicção à do julgador, de forma não consentida pelo nosso sistema, que configura o recurso sobre a matéria de facto como um
remédio jurídico
, com o objetivo de detetar e corrigir erros de julgamento, e não como um instrumento de substituição da convicção do tribunal de primeira instância, alicerçada no princípio da livre apreciação da prova.
Ora, os elementos de prova que o recorrente indica para contrariar as conclusões obtidas pelo tribunal (fundamentalmente, os relatórios clínicos constantes dos autos, segmentos das declarações por si prestadas na audiência de julgamento e excertos dos depoimentos prestados pelas testemunhas CC, GG e HH, estes últimos, médicos psiquiatras)
não impõem
, efetivamente, decisão diversa da recorrida - como se exigiria, para se reconhecer a ocorrência de um erro de julgamento.
Na verdade, as perícias efetuadas nos autos comprovam que o recorrente não padece de qualquer doença mental, designadamente esquizofrenia, suscetível de determinar a sua inimputabilidade ou imputabilidade diminuída, sendo as alterações de comportamento por ele denotadas (nomeadamente, impulsividade, auto e/ou heteroagressividade e baixa tolerância à frustração) enquadráveis no contexto de diagnóstico de «Perturbação de Personalidade Antissocial», não se evidenciando alteração psicopatológica de caráter psicótico, nem comprometimento do juízo crítico – sendo os seus comportamentos compatíveis com um funcionamento próximo da psicopatia, como referido na «nota de alta», elaborada pelo médico psiquiatra Dr. QQ, datada de 12/1/2024 (documento junto aos autos a fls. 30/31).
Em consonância, aliás, com os resultados das perícias, concluiu o referido médico psiquiatra, por ocasião do internamento compulsivo do recorrente entre 9 e 10 de novembro de 2023: «sem sinais sugestivos de patologia psicótica ou comprometimento do juízo crítico; paciente com discernimento para a sua condição mórbida – patologia da personalidade – e que poderá ser responsabilizado pelos seus comportamentos e consequências dos mesmos; medicado sintomaticamente para contenção comportamental», tendo ali sido assinalado que «Apesar dos antecedentes de episódios psicóticos (muito provavelmente no contexto do
consumo de substâncias psicotrópicas
), este paciente não tem uma patologia mental grave a necessitar de tratamento em regime involuntário. Está medicado, apenas, sintomaticamente, e especificamente para controlo de impulsos, mas a sua capacidade de discernimento para a realidade não está afetada, tendo por isso capacidade de compreensão das consequências dos seus atos. Com efeito, as alterações do comportamento descritas sobre este paciente são enquadráveis no contexto do seu diagnóstico de Pert. Personalidade Antissocial (com antecedentes criminais), em particular no que diz respeito ao desrespeito pelas regras do serviço, a desconsideração dos limites e valores sociais na interação com terceiros, a coação e intimidação dos restantes utentes para conseguir as suas pretensões, a sedução e manipulação velada dos técnicos para obter ganhos secundários, a baixa tolerância à frustração com rápida passagem ao ato e heteroagressividade verbal e física, bem como a capacidade de moderar e adequar este comportamento quando percebe que isso lhe é mais vantajoso» (cf. fls. 53/55).
É de notar que a observação efetuada pelo médico psiquiatra Dr. HH em contexto do internamento ocorrido em 23/11/2023 – tendo aqui sido assinalado que, tratando-se de indivíduo com evidentes traços psicopáticos da personalidade, em simultâneo apresentava «descompensação psicótica e incumprimento terapêutico» (cf. fls. 38/39) -, não é de molde a invalidar as conclusões contidas nos relatórios periciais. Com efeito, não só estes constituem prova particularmente reforçada, como já tivemos oportunidade de assinalar, como também tiveram por base a consideração de todo o histórico clínico do recorrente - o qual claramente evidencia a prevalência de traços psicopáticos da personalidade, compatível com o diagnóstico de «Perturbação de Personalidade Antissocial», sendo os episódios psicóticos atribuídos ao «consumo de substâncias psicotrópicas» e não a «doença mental» -, não se circunscrevendo a uma análise pontual e localizada temporalmente, sendo assim o seu contributo para o esclarecimento das matérias que nos ocupam particularmente qualificado.
Importa, aliás, observar que a testemunha Dr. HH, médico psiquiatra responsável pelo internamento do recorrente em duas ocasiões, explicitou, no decurso do depoimento prestado na audiência de julgamento (e que ouvimos na íntegra, através do
citius media studio
), que não foi confirmado surto psicótico, mas antes alterações comportamentais relacionadas com a sua personalidade, no decurso do último internamento, ocorrido entre 23 e 30 de novembro de 2023 (portanto, cerca de uma semana antes da prática dos crimes em apreço nos autos). Acrescentou que os antipsicóticos prescritos tinham por objetivo a contenção da impulsividade («contenção dos impulsos») e a diminuição dos níveis de angústia e ansiedade, associados às alterações comportamentais relacionadas com a perturbação de personalidade, não existindo diagnóstico de esquizofrenia ou evidência de qualquer surto psicótico, o que corrobora, portanto, as conclusões obtidas no âmbito das perícias médico-legais.
De qualquer modo, e como bem explicou a testemunha, os diagnósticos efetuados no decurso dos internamentos são sempre diagnósticos «provisórios», de «presunção», não podendo, assim, e por princípio, sobrepor-se aos diagnósticos e conclusões obtidos no decurso de uma avaliação de natureza pericial.
Em suma, nenhuma razão encontramos para alterar a decisão da matéria de facto impugnada que se relaciona com a imputabilidade e dolo do arguido
[29]
, encontrando-se as conclusões extraídas pelo tribunal
a quo
quanto a esta matéria suportadas por prova esclarecedora e consistente, designadamente de natureza pericial
[30]
.
Relativamente ao ponto 62) da matéria de facto provada, considera o recorrente que deverá ser complementado pela indicação do motivo que lhe determinou um grau de incapacidade superior a 60%, nele devendo ser incluída a referência a doença psiquiátrica.
Contudo, e embora se admita que a razão da atribuição da incapacidade possa estar efetivamente relacionada com a sua condição psiquiátrica, o concreto meio de prova indicado pelo recorrente («atestado médico de incapacidade multiuso» - documento junto de fls. 332) não permite alicerçar tal conclusão (pois, indicando o grau de incapacidade, não faz referência ao motivo que a determina) e do relatório elaborado pela DGRS, no qual igualmente se baseou o tribunal
a quo
, não resulta tal menção.
Já quanto ao ponto 57), igualmente impugnado pelo recorrente, o tribunal
a quo
baseou-se nas declarações prestadas pela assistente/demandante DD, e o recorrente nenhuma razão invoca que pudesse justificar decisão diversa da recorrida relativamente a tal matéria.
*
Como se salienta no acórdão deste TRP, de 2/6/2019
[31]
, «Constatando-se que não são detetáveis desconformidades entre a prova produzida, que inexistem provas proibidas ou produzidas fora dos procedimentos legais, tendo o tribunal justificado suficientemente na decisão as opções que fez na valoração dos contributos probatórios, atribuindo valor positivo ou negativo às provas de modo racionalmente justificado, de acordo com regras de lógica e de experiência comum e com respeito pelo princípio do
in dubio pro reo
, resta à Relação confirmar a decisão sobre a matéria de facto e nomeadamente a que diz respeito à questionada pelo recorrente»
[32]
.
Improcede, assim, o presente fundamento do recurso, considerando-se definitivamente fixada a matéria de facto impugnada.
*
II – Punibilidade do crime de dano.
Considera o recorrente que não poderia ser condenado pelo crime de dano, invocando duas ordens de razões: a) «o dano verificado foi na fechadura, não tendo a porta qualquer dano», com a consequência de que «não há dolo quanto ao dano da fechadura»; b) o dano causado à fechadura não excedeu o montante de € 15,00, pelo que, inexistindo acusação particular, nos termos impostos pelo artigo 212.º, n.º 4 do Código Penal, a prossecução dos autos quanto ao crime de dano não era admissível por falta de legitimidade do Ministério Público, conforme resulta dos artigos 50.º, 283.º e 285.º, do Código de Processo Penal.
Analisando o preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do tipo de ilícito do crime de dano, pronunciou-se o tribunal
a quo
no acórdão recorrido nos seguintes moldes (segue transcrição parcial):
«In casu, resultou provado que nas circunstâncias de tempo e lugar provadas em 1, 2 e 9, o arguido danificou a porta da residência com um pontapé, partindo a fechadura e respetivo encaixe, causando um prejuízo de cerca de € 15,00, equivalente ao custo da sua reparação.
Encontram-se, assim, preenchidos os elementos objetivos do tipo legal de crime de dano simples.
Importa ainda considerar que não tem aplicação o disposto no art.º 207.º, n.º 1, al. b), ex vi n.º 4 do art.º 206.º, ambos do C. Penal, apesar do valor diminuto do prejuízo causado, uma vez que não se verificam os demais requisitos aí previstos, que são: a coisa danificado seja destinada a utilização imediata e indispensável à satisfação de uma necessidade do agente ou do seu cônjuge, ascendente, descendente, adotante, adotado, parente ou afim até ao 2.º grau, ou com ele conviver em condições análogas às dos cônjuges.
Quanto ao tipo de ilícito subjetivo, importa considerar que é imputada ao arguido uma conduta a título de dolo direto.
Remetendo para as considerações supra explanadas quanto à inimputabilidade e imputabilidade diminuída, verifica-se que no presente caso e quanto a este crime, não resultaram provados quaisquer factos que nos permitam concluir que o arguido fosse possuidor de anomalia psíquica que o incapacitava de avaliar a ilicitude dos seus atos ou de se determinar de acordo com essa avaliação ou por qualquer surto psicótico momentâneo que diminuísse sensivelmente a capacidade de avaliação da ilicitude da sua conduta, pelo que improcede a invocada inimputabilidade ou a consideração da imputabilidade diminuída pelo arguido na sua contestação.
Antes pelo contrário e na sequência do que vimos explanando, provou-se que o arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito concretizado de danificar a porta e a fechadura, que sabia não serem suas, agindo contra a vontade do respetivo proprietário, o que fez sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Assim, face à factualidade apurada em 19 e 47, encontra-se preenchido o elemento subjetivo, na forma de dolo direto (art.º 14.º, n.º 1 do C. Penal).
Destarte, encontram-se preenchidos os elementos típicos, objetivos e subjetivos, do tipo legal do crime de dano, p. e p. pelo art.º 212.º, n.º 1 do C. Penal, pelo que inexistindo qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, deverá o arguido ser responsabilizado criminalmente pela sua conduta».
É evidente que assim é, não assistindo razão ao recorrente.
Na verdade, tendo ficado demonstrado que o recorrente desferiu um pontapé contra a porta da residência do ofendido CC, fazendo com a que fechadura da mesma, bem como o respetivo encaixe, se partissem, conforme consta do ponto 14) da matéria de facto provada (matéria factual não impugnada), é evidente que o tribunal não poderia deixar de concluir que foi sua intenção causar danos na porta genericamente considerada, englobando os seus componentes, como a fechadura, e não unicamente apenas nesta. Se os danos, afinal, vieram a atingir unicamente a fechadura e já não a estrutura da porta ou outros componentes (por exemplo, o puxador ou algum adorno existente), trata-se de contingência irrelevante para a aferição do dolo do arguido, o qual, no circunstancialismo concretamente apurado, sempre abarcaria a totalidade dos danos ocasionados com a sua conduta.
Por outro lado, tal como foi considerado pelo tribunal
a quo
e assinalado pela Exma. Procuradora-Geral Adjunta no seu parecer,
não tem aqui aplicação o disposto no art.º 207.º, n.º 1, al. b),
ex vi
do
n.º 4 do art.º 212.º, ambos do Código Penal, apesar do valor diminuto do prejuízo causado (15€), uma vez que não se verificam os demais requisitos aí previstos: que a coisa danificada seja destinada a utilização imediata e indispensável à satisfação de uma necessidade do agente ou do seu cônjuge, ascendente, descendente, adotante, adotado, parente ou afim até ao 2.º grau, ou com ele conviver em condições análogas às dos cônjuges, sendo que estes pressupostos, de que depende a atribuição da natureza particular ao crime de dano, são cumulativos.
Improcede, deste modo, o presente fundamento do recurso.
*
III – Aplicação de medida de segurança ou atenuação especial da pena.
Divergindo da aplicação pelo tribunal
a quo
de penas de prisão, em detrimento de uma medida de segurança de internamento, argumenta o arguido (segue transcrição):
«Como resulta do que se defende neste recurso, o arguido sofre de doença psiquiátrica que lhe retira a capacidade de controlar os seus impulsos, razão pela qual é medicado com medicação antipsicóticos, para assim controlar os impulsos.
O arguido, no momento da prática dos factos, não conseguia avaliar a ilicitude do seu comportamento e de se determinar de acordo com essa avaliação, por padecer de doença mental que comprometia totalmente, ou pelo menos reduzia, a capacidade de determinação por parte do arguido (cf. art.º 20.º do Código Penal (CP)).
Não sendo o arguido capaz de determinar a sua vontade no sentido de violar os normativos legais e de se conformar com essa violação, não é possível dar por verificado a existência do elemento subjetivo para cada um dos tipos de ilícitos imputados ao arguido, considerando que cada um daqueles tipos exige o dolo.
Não se mostrando preenchido o elemento subjetivo de cada um dos tipos de ilícito imputados, não pode o arguido ser condenado pelos crimes em que foi condenado, devendo antes ser aplicada medida nos termos do art.º 91.º e ss. do CP.
Devendo como tal ser proferido douto Acórdão que revogue o Acórdão aqui recorrido, com todas as devidas consequências legais, e decida pela aplicação de medida de segurança com vista ao tratamento do arguido, o que pode ser decidido já pelo Tribunal ad quem, assim fazendo toda a justiça, e o que se requer».
A questão em apreço foi devidamente analisada no acórdão recorrido, tendo o tribunal
a quo
assinalado o seguinte (segue transcrição):
«[…] quando esteja em causa um agente inimputável em razão de anomalia psíquica, “o facto ilícito típico integra apenas a conduta objetiva prevista no tipo legal de crime, não abrangendo os elementos subjetivos” – Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 07.02.2018, disponível in www.dgsi.pt.
A definição de inimputável em razão de anomalia psíquica surge no art.º 20.º, n.º 1 do C. Penal: “por força de uma anomalia psíquica, for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação”.
Pelo que, em face da inimputabilidade invocada, impõe-se discutir a questão da responsabilidade penal e da reação criminal a aplicar ao arguido em consequência dos factos ilícitos e típicos praticados, tendo precisamente em conta que a aplicação de uma pena pressupõe a possibilidade de poder ser dirigido ao agente um juízo de censura ético-jurídico ou um juízo e culpa.
Por essa razão, caso se conclua pela inimputabilidade do agente, a aplicação de uma medida de segurança exige que a mesma se mostre necessária e proporcional à gravidade do facto e à perigosidade do agente (art.º 40.º, n.º 3 do C. Penal).
A formulação de um juízo de inimputabilidade depende de três pressupostos: a prática de facto ilícito típico, a existência de anomalia psíquica e a ligação entre ambos - de molde a que, “sem a anomalia psíquica, o facto se tomasse para o julgador incompreensível” - cfr. Cristina Líbano Monteiro, Perigosidade de Inimputáveis e «in Dubio Pro Reo», pag. 124.
Em primeiro lugar, o facto ilícito típico consiste no “especifico sentido de desvalor jurídico-penal que atinge um concreto comportamento numa concreta situação, por referência à necessidade de proteção de bens jurídicos”, colocando-se de parte a atitude interna do agente face a esse desvalor - Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10.07.2013, disponível in www.dgsi.pt.
Quanto ao conceito de anomalia psíquica, o mesmo não se identifica com o conceito médico de doença mental, podendo estar relacionado com outras patologias ou perturbações que afetem o agente, cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal..., pag. 179.
A anomalia psíquica não se reconduz apenas ao elemento biopsicológico - que consiste na patologia ou perturbação de que o inimputável padece, a qual o legislador optou por não enumerar nem definir -, integrando um elemento normativo que se traduz na incapacidade de avaliar a ilicitude do seu comportamento ou de se determinar de acordo com essa avaliação, cfr. Maia Gonçalves, in Código Penal Português Anotado e comentado, pág. 124; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.06.2012, disponível in www.dgsi.pt.
Finalmente, deve existir uma ligação entre o facto cometido e a anomalia psíquica do agente, de forma a divisar uma causalidade entre a patologia ou perturbação do foro psíquico e a conduta grave produzida, não sendo suficiente a coincidência temporal da anomalia psíquica e da prática de facto ilícito típico, cf. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 469.
A relação de causalidade deve aferir-se através de uma ideia de manifestação da anomalia psíquica na conduta observada ou de existência de uma relevância explicativa da patologia ou da perturbação para o facto praticado.
A imputabilidade diminuída, também invocada pelo arguido, é reconhecida no nosso ordenamento jurídico-penal no n.º 2 desse normativo, que dispõe “pode ser declarado inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica grave, não acidental e cujos efeitos não domina, sem que por isso possa ser censurado, tiver, no momento da prática do facto, a capacidade para avaliar a ilicitude deste ou para se determinar de acordo com essa avaliação sensivelmente diminuída” e no n.º 3 que dispõe que “a comprovada insensibilidade do agente às sanções penais pode constituir índice da situação prevista no número anterior”.
Assim, nos n.ºs 2 e 3 do citado normativo a lei trata das situações em que a capacidade de avaliação e autodeterminação do agente se encontra “sensivelmente diminuída”.
De facto, nestes dois números estão previstos os casos em que, apesar de o agente não se encontrar destituído de capacidade de avaliação, a gravidade da situação permite assimilá-la à inimputabilidade do n.º 1.
Subscrevendo a posição constante do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 18.09.2019, disponível in www.dgsi.pt “(…) ao permitir a integração dessas situações na inimputabilidade, a lei admite uma inimputabilidade fictícia, uma vez que a situação não é de total carência de capacidade de avaliação e determinação. Entendeu, porém, o legislador que, nos casos mais graves, o tribunal deve poder optar (“pode ser declarado inimputável…”) entre a decisão de imputabilidade ou de inimputabilidade, ou seja, entre a aplicação de uma pena ou antes de uma medida de segurança, conforme faça ou não sentido censurar eticamente a conduta do agente (n.º 2), ou tentar (ainda) influenciar a sua conduta futura mediante a aplicação de uma pena (n.º 3). Ou seja: os casos de “diminuição sensível da capacidade de avaliação” podem ser tratados como de inimputabilidade ou antes de imputabilidade (diminuída), de acordo com o juízo que o tribunal faça sobre os pressupostos referidos nos n.ºs 2 e 3 do art.º 20.º do C. Penal”.
Assim, por aplicação do citado normativo, sendo o agente imputável, estamos perante imputabilidade diminuída, mas não está prevista a atenuação da pena, que deverão ser tomados em conta os critérios definidos no art.º 71.º do C. Penal, que manda atender à culpa e às exigências preventivas.
Sem necessidade de mais considerações, dir-se-á que nos presentes autos não resultaram provados quaisquer factos que nos permitam concluir que o arguido fosse possuidor de anomalia psíquica que o incapacitava de avaliar a ilicitude dos seus factos ou de se determinar de acordo com essa avaliação ou por qualquer surto psicótico momentâneo que diminuísse sensivelmente a capacidade de avaliação da ilicitude da sua conduta, pelo que improcede, logo à partida, a invocada inimputabilidade ou a consideração da imputabilidade diminuída.
Antes pelo contrário e na sequência do que vimos explanando, provou-se que o arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito concretizado, no que concerne aos crimes de roubo, de constranger, mediante ameaça ou violência física, as respetivas vítimas, a entregar-lhe quantias monetários e, no último caso, tabaco.
Ao apurar-se que o arguido agiu com intenção de apropriação para si de coisa móvel alheia, encontra-se também preenchido o dolo específico exigido por este tipo legal.
Assim, face à factualidade apurada em 17, 30, 43 e 47, encontra-se preenchido o elemento subjetivo, na forma de dolo direto (art.º 14.º, n.º 1 do C. Penal), o mesmo acontecendo com o dolo específico, que resulta preenchido.
Destarte, encontram-se preenchidos os elementos típicos, objetivos e subjetivos, do tipo legal dos crimes de roubo, dois na forma consumada e dois na forma tentada, p. e p. pelos art.ºs 22.º, n.º 1, 23.º, n.ºs 1 e 2 e 210.º, n.º 1 do C. Penal, pelo que inexistindo qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, deverá o arguido ser responsabilizado criminalmente pelas suas condutas».
É certo que o juízo de culpa não prescinde, desde logo, da “capacidade de entender ou querer”, da capacidade para “avaliar a ilicitude do facto ou se determinar de acordo com essa avaliação” a que se refere o art.º 20.º do Código Penal Português. A possibilidade de se ser objeto dum juízo de censura tem, assim, por pressuposto a capacidade de culpa, de tal modo que só pode ser censurado o facto (ou também a personalidade) assentes numa "atitude interna juridicamente desaprovada", e só quem "alcançou uma determinada idade e não padeça de graves anomalias psíquicas possui o grau mínimo de capacidade de autodeterminação que é exigido pelo ordenamento jurídico para a responsabilidade penal" (cf. Jescheck in "Tratado de Derecho Penal – Parte General", Comares, 2002, pág. 465).
Reconhecendo que, de acordo com a perspetiva científica desenvolvida pelas modernas ciências sociais, uma vontade livre, entendida como liberdade absoluta de autodeterminação no limite do puro arbítrio, não existe nem pode ser configurada, a Suprema Corte italiana optou por definir a ação como livre numa aceção menos pretensiosa e mais realista do termo: a ação será livre — e, enquanto tal, eticamente sindicável — na medida em que o sujeito não sucumba passivamente aos impulsos psicológicos que o impelem a agir de um determinado modo mas consiga exercitar poderes de inibição e de controlo idóneos a consentir-lhe escolhas conscienciosas frente a motivos antagonistas.
[33]
No presente caso, resulta assente da matéria de facto apurada, que já julgamos imodificável, a imputabilidade do arguido/recorrente, pois, não obstante ter sido diagnosticada, nos anos de 2023 e 2024, «Perturbação de Personalidade, Patologia Antissocial de Personalidade e Psicose e Perturbação Psicológica, Perturbação de Personalidade Dissocial, Padrão de uso nocivo de múltiplas substâncias psicoativas e Perturbação Psicótica não especificada», as alterações comportamentais evidenciadas (em particular, impulsividade, baixa tolerância à frustração e auto/hetero agressividade) não afetaram a sua capacidade, no momento da prática dos factos ilícitos em apreço, de avaliar a ilicitude do seu comportamento e/ou de se determinar de acordo com essa avaliação.
Como observa Joana Costa (in Julgar n.º 15, página 81), «na ausência de uma base epistemológica certa, a conclusão ainda hoje porventura mais segura seja a de que as perturbações da personalidade, não obstante incluídas no conceito de anomalia psíquica, não se apresentam, em regra, na ausência de co-morbilidade, com gravidade e consistência suscetíveis de anular ou tornar ineficiente a capacidade de auto-determinação racional no momento do crime — o que poderá justificar a sua problematização no âmbito discussão nos fatores da pena».
Como nos dá conta a autora, segundo a jurisprudência fixada pela Suprema Corte italiana, as perturbações da personalidade — que, segundo o DSM-IV-TR, se caracterizam já por serem inflexíveis e não adaptativas — apenas poderão adquirir relevância para efeitos de inimputabilidade quando se relevarem com consistência, intensidade, relevância e gravidade tais que se tornem suscetíveis de incidir em concreto sobre a capacidade inteletiva ou volitiva do sujeito agente de um crime. Deve tratar-se, deste ponto de vista, de uma perturbação da personalidade idónea “a determinar — e que efetivamente haja determinado — uma situação de um
acesso psíquico incontrolável e não gerível
(totalmente ou em grande medida) que,
sem culpa
,
torne o agente incapaz de exercitar o devido controlo sobre os próprios atos e, consequentemente, de direcioná-los, de perceber o desvalor social do facto e de determinar-se de forma autónoma e livre”.
A limitação da relevância normativa das perturbações da personalidade aos casos em que estas se apresentem com a gravidade e consistência necessárias a bloquear os mecanismos de contra-motivação do sujeito afetado, impedindo-o assim de responder de maneira crítica aos estímulos internos, corresponde inteiramente aos termos em que é possível atribuir-lhes significado no contexto do estabelecimento da inimputabilidade segundo o ordenamento jurídico-penal português. Com efeito, somente naquelas hipóteses tenderá a ser possível a verificação do pressuposto consistente na incapacidade do agente para, no momento da prática do facto, se determinar de acordo com a avaliação que haja feito da respetiva ilicitude (art.º 20.º, n.º 1, do Código Penal)
[34]
.
Deste modo, falecem os necessários pressupostos legais para a aplicação de uma medida de segurança de internamento ao recorrente, conforme por ele proposto (cf. os artigos 20.º e 91.º do Código Penal), sendo certo, ainda, que dos autos não resultam verificados os requisitos contidos no artigo 104.º, n.º 1 do mesmo diploma legal, norma que prevê e consente o «internamento de imputáveis portadores de anomalia psíquica» - designadamente, que o «regime dos estabelecimentos comuns lhe será prejudicial, ou que ele perturbará seriamente esse regime», tanto mais que, como resulta do ponto 67 dos factos provados, em meio prisional, o recorrente beneficia da intervenção clínica especializada na área da psiquiatria, com toma de medicação.
Resta-nos, assim, analisar a questão da atenuação especial da pena proposta pelo recorrente, que a considera devida em função da sua «culpa diminuída».
Nos termos do artigo 72º, n.º 1, do Código Penal, «O tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena».
E dispõe tal artigo, no seu n.º 2, que:
«Para efeito do disposto no número anterior, são consideradas, entre outras, as circunstâncias seguintes:
a) Ter o agente atuado sob influência de ameaça grave ou sob ascendente de pessoa de quem dependa ou a quem deva obediência;
b) Ter sido a conduta do agente determinada por motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da própria vítima ou por provocação injusta ou ofensa imerecida;
c) Ter havido atos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados;
d) Ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta».
O princípio que regula a aplicação deste instituto, como ensina Figueiredo Dias
[35]
, é a
diminuição acentuada
, não só da ilicitude do facto ou da culpa do agente, mas também da necessidade da pena e, consequentemente, das exigências de prevenção.
As circunstâncias previstas no n.º 2 não têm o efeito automático de desencadear o efeito atenuativo especial, mas apenas quando da sua presença se puder concluir que a «imagem global do facto», resultante da atuação de alguma ou de algumas das referidas circunstâncias, se
apresente tão diminuída, que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em tais hipóteses quando estatuiu os limites normais da moldura abstrata cabida ao tipo de facto respetivo
.
Deste modo,
a atenuação especial da pena só em casos extraordinários ou excecionais pode ter lugar
: para a generalidade dos casos, para os casos «normais», lá estão as molduras penais normais, com os seus limites máximo e mínimo próprios
[36]
.
Ora, analisados os factos provados e a fundamentação de facto constante do acórdão recorrido, não vemos como concluir que a situação que nos ocupa configura um «caso extraordinário».
Com efeito, a ilicitude do facto é já acentuada, sendo muito elevadas as exigências de prevenção, particularmente as de prevenção especial, por referência ao padrão comportamental do recorrente e inerente incremento de perigosidade que lhe está associado. Além disso, embora se reconheça que a perturbação da personalidade que o carateriza, traduzindo-se em dificuldade de controlar os impulsos, possa ter um efeito ligeiramente mitigador da sua culpa, tal não basta para desencadear o efeito atenuativo pretendido, pois nada de extraordinário revela, no sentido de fazer funcionar a atenuação especial. Com efeito, a culpa do recorrente de modo algum se revela
diminuta,
único caso que justificaria a diminuição dos limites máximo e mínimo das molduras abstratas previstas para os crimes em causa, apresentando as molduras abstratas das penas, previstas pelo legislador, suficiente elasticidade para enquadrar as especificidades do caso concreto, em particular o grau da sua culpa jurídico-penal.
Concluindo, não há fundamento para fazer funcionar o instituto da atenuação especial da pena, como pretende o recorrente, já que inexistem circunstâncias anteriores ou posteriores aos crimes praticados, ou contemporâneas deles, que diminuam (muito menos de forma acentuada) a ilicitude dos factos, a necessidade da pena (ambas significativas) ou, ainda, a sua culpa
[37]
.
Resta-nos assinalar que, não tendo o tribunal
a quo
ponderado expressamente, no acórdão recorrido, a possibilidade de aplicação do regime da atenuação especial das penas, nenhuma nulidade por omissão de pronúncia foi cometida, diversamente do que sustenta o recorrente.
Na verdade, o funcionamento do regime em causa depende da verificação de apertados requisitos legais, relacionados com a diminuição acentuada da ilicitude dos factos, da culpa do agente ou da necessidade da pena, os quais claramente não foram reconhecidos pelo tribunal
a quo
, como resulta da leitura do acórdão recorrido na sua totalidade, razão pela qual não se impunha a análise e ponderação da respetiva aplicação.
Improcede, desta forma, o presente fundamento do recurso, nenhuma censura nos merecendo, também quanto a este aspeto, o acórdão recorrido.
*
IV – Pena de prisão quanto ao crime de dano. Dosimetria das penas de prisão e respetivo modo de execução.
A propósito da escolha da espécie de pena aplicável ao crime de dano, escreveu-se no acórdão recorrido o seguinte (segue transcrição):
«Sendo o crime de dano punido com pena de multa ou com pena de prisão, importa ponderar, à luz da alternativa concedida pelo citado art.º 70.º do C. Penal, se a opção do tribunal deverá recair em pena de multa ou de prisão.
No caso sub judice, as necessidades de prevenção especial são elevadas, uma vez que o arguido tem antecedentes criminais, ainda que de natureza diversa, tendo cumprido prisão efetiva, o que não o afastou de praticar novos factos ilícitos.
Por outro lado, a conduta do arguido tem que de ser analisada num todo, tendo praticado num curto espaço de tempo – 3 dias – quatro crimes de roubo (dois tentados e dois consumados) e um crime de dano, pelo que a gravidade da conduta do arguido analisada num todo impõe a aplicação de uma pena de prisão.
Assim, perante a gravidade da conduta do arguido globalmente analisada e os seus antecedentes criminais, a pena de multa já não se mostra suficiente para salvaguardar as finalidades da punição, pelo que entendemos que só a pena prisão realiza de forma adequada e suficiente essas finalidades».
Afiguram-se-nos inteiramente justificadas as considerações expendidas pelo tribunal de primeira instância a propósito da escolha da pena de prisão.
Na verdade, são finalidades exclusivamente preventivas que devem presidir à operação da escolha da espécie de pena a aplicar ao agente, devendo o tribunal dar preferência à pena não detentiva, a não ser que razões ligadas à socialização do delinquente (no seu conteúdo mínimo, traduzido na prevenção da reincidência) ou de preservação do limite mínimo da prevenção geral positiva, no sentido de «defesa do ordenamento jurídico», imponham a pena de prisão
[38]
.
Ora, no presente caso, e como assinalou o tribunal de primeira instância, o recorrente denota elevadas carências de socialização, manifestadas pela sua evidente incapacidade de se deixar influenciar pelas penas previamente aplicadas, subsistindo um elevado risco de repetição deste e de outros tipos de crimes, risco este incrementado pelas alterações comportamentais decorrentes das perturbações de personalidade já referenciadas.
Exigências de prevenção, em particular de prevenção especial, demandam, assim, a aplicação de uma pena de prisão, também por este ilícito-típico.
Relativamente à medida concreta das penas de prisão, que igualmente suscita a discordância do recorrente, considerando-a excessiva e desproporcionada, assinalou o tribunal
a quo
, no acórdão recorrido, o seguinte:
«[…] Assim, no vertente caso, estamos perante as seguintes molduras penais:
- O crime de roubo, na forma consumada, p. e p. pelo art.º 210.º, n.º 1 do C. Penal, é punido com pena de 1 a 8 anos de prisão.
- O crime de roubo, na forma tentada, p. e p. pelos art.ºs 22.º, 23.º, 73.º e 210.º, n.º 1 do C. Penal, é punido com pena de 30 dias a 5 anos e 4 meses de prisão.
- O crime de dano, p. e p. pelo art.º 212.º, n.º 1 do C. Penal, é punido com a pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa. […]
Nos termos do art.º 40.º do C. Penal, a aplicação da pena visa a proteção de bens jurídicos (prevenção geral) e a reintegração do agente na sociedade (prevenção especial), não podendo a pena em caso algum ultrapassar a medida da culpa.
A determinação da medida concreta da pena faz-se, nos termos do art.º 71.º do C. Penal, em função da culpa do agente, tendo ainda em conta as exigências de prevenção de futuros crimes e atendendo a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime (estas já foram tomadas em consideração ao estabelecer-se a moldura penal do facto), deponham a favor do agente ou contra ele.
Vejamos, então, quais as circunstâncias a relevar em sede de medida concreta (art.º 71.º, n.º 2 do C. Penal):
- o dolo intenso (direto);
- o elevado grau de ilicitude, atento o modo de atuação do arguido, que em três dias comete cinco crimes;
- as necessidades de prevenção geral, no que concerne aos crimes de roubo, que são elevadas, dado o incremento de tais conduta na sociedade portuguesa e alarme social causado;
- as consequências da sua conduta, no que concerne ao crime de roubo, na forma tentada, perpetrado nas instalações da Banco 1... em que teve como vítima a assistente DD, que teve várias lesões, que demandaram 8 dias para cura, o que justifica uma pena mais elevada;
- as condições pessoais do arguido, sendo muito elevadas as exigências de prevenção especial, uma vez que possui antecedentes criminais, ainda que por crimes de diversa natureza, tendo já cumprido uma pena de prisão efetiva.
Sopesando os fatores enunciados, considera-se necessário, adequado e proporcional aplicar ao arguido as seguintes penas:
i) a pena de 6 meses de prisão pela prática do crime de roubo, na forma tentada, perpetrado sobre BB;
ii) a pena de 1 ano e 3 meses de prisão pela prática do crime de roubo, na forma consumada, perpetrado sobre CC;
iii) a pena de 2 anos e 4 meses de prisão pela prática do crime de roubo, na forma tentada, perpetrado sobre DD;
iv) a pena de 2 anos e 6 meses de prisão pela prática do crime de roubo, na forma consumada, perpetrado sobre EE;
v) a pena de 2 meses de prisão pela prática do crime de dano.
*
Tendo em consideração que estamos perante uma situação de concurso de crimes importa aplicar uma pena única, na qual se ponderem os factos e a personalidade do arguido vertida nesses factos.
No caso concreto, teremos como limite mínimo a pena 2 anos e 6 meses de prisão e limite máximo a pena de 6 anos e 9 meses de prisão.
Assim, em cúmulo jurídico, nos termos do disposto nos art.ºs 30.º e 77.º do C. Penal, tendo em consideração a gravidade dos factos e a personalidade do arguido revelada nos mesmos, decide-se aplicar-lhe a pena única de 4 anos e 3 meses de prisão».
A tarefa de determinação da medida concreta da pena, dentro dos limites legalmente determinados, realiza-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (geral de integração e especial de socialização) que se façam sentir no caso concreto, nos termos do disposto no nº 1 do art.º 71º do C. Penal.
A pena visa, assim, finalidades exclusivamente preventivas (de prevenção geral e especial), constituindo a culpa pressuposto e limite inultrapassável da pena (cf. Jorge Figueiredo Dias, “Direito Penal – Parte Geral”, Tomo I, 2004, pág. 75 e seguintes).
[39]
Através das exigências de
prevenção
, dá-se satisfação à necessidade comunitária de reafirmação da confiança geral na validade da norma violada, bem como ao objetivo de reinserção social do delinquente e, por esta via, à
realização dos fins das penas
no caso concreto (art.º 40º, nº 1 do C. Penal).
A consideração da
culpa
do agente, liga-se à vertente pessoal do crime e decorre do incondicional respeito pela dignidade da pessoa humana - a culpa é entendida como um "princípio liberal, limitador do poder punitivo do Estado" (na expressão de Claus Roxin), e estabelece um
limite inultrapassável
às exigências de prevenção (art.º 40º, nº 2 do C. Penal).
O princípio da culpa, enquanto expressão da dignidade da pessoa humana e objeto de consagração constitucional, tem, assim, uma eficácia irradiante sobre o sistema de direito penal ordinário
[40]
, sujeitando-o à necessidade de fundamentar a responsabilidade penal em apropriados elementos subjetivos e recusando-lhe a possibilidade de instrumentalização da pessoa, designadamente para efeitos de prevenção geral.
É da tensão dialética de fatores que se repercutem, uns de forma positiva e outros negativamente, ao nível do juízo da culpa, que resulta a construção da medida da culpa, impondo limites inultrapassáveis às necessidades de prevenção.
Por outro lado, necessidade, proibição do excesso ou proporcionalidade e adequação são os princípios orientadores que devem presidir à determinação da pena.
Relevantes para a determinação da medida concreta da pena são os fatores elencados no art.º 71º do Código Penal e que, fundamentalmente, se relacionam quer com o facto típico praticado, quer com a personalidade do agente neles documentada, podendo tais fatores ser valorados, simultaneamente, por via da culpa e da prevenção
[41]
.
Assim, o nº 2 do artigo 71º do Código Penal, manda atender, no caso concreto, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido, nomeadamente: «o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; a intensidade do dolo ou da negligência; os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; as condições pessoais do agente e a sua situação económica; a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena».
Como bem salienta o Conselheiro Henriques Gaspar
[42]
, «As circunstâncias e critérios do art.º 71.º do CP devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afetação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objetivas para apreciar e avaliar a culpa do agente».
Finalmente, importa, quanto a esta matéria, ter presente que o recurso reveste-se das características e função de
remédio jurídico
. Como é assinalado no acórdão proferido por este Tribunal da Relação, datado de 2/6/2010
[43]
, “No recurso dirigido à reação penal aplicada, a pretensão recursiva incidirá sobre os seus critérios fundamentais (culpa, prevenção especial ou geral) no propósito de comprovar seja a inadequação quanto à escolha, seja um desajustamento relevante no quantum fixado. Observados que se mostrem os critérios de dosimetria concreta da pena, sobra uma margem de atuação do julgador dificilmente sindicável.”
Analisada a decisão condenatória, verificamos que todos os aludidos fatores foram atendidos, sendo certo que o acórdão recorrido ponderou o elevado grau de ilicitude dos factos em apreço, bem como a intensidade do dolo do recorrente; referenciou as acentuadas necessidades de prevenção especial; teve em conta as necessidades de prevenção geral, refletidas na danosidade social inerente ao ilícito em causa e na necessidade de preservar a paz social – tudo com observância do disposto nos artigos 40.º, 70.º e 71.º, do C. Penal.
A premência da necessidade de reafirmação da confiança comunitária na validade das normas violadas, decorrente da específica danosidade social dos tipos de ilícito em causa, associada à necessidade de readaptação social do delinquente (prevenção especial positiva) e dissuasão da prática de futuros crimes (prevenção especial negativa), de modo nenhum se adequa à medida concreta das penas proposta pelo recorrente (1 mês de prisão e 6 meses de prisão pelos crimes de roubo na forma tentada e consumada que tiveram, respetivamente, por vítimas BB e CC; 1 ano e 3 meses de prisão por cada um dos crimes de roubo – um, tentado e o outro, consumado - que tiveram por vítimas DD e EE), sendo, aliás, de notar que só circunstâncias atenuantes especiais, que no presente caso não se verificam, justificam a fixação da pena no mínimo legal.
É certo que, como já tivemos oportunidade de assinalar, a condição psiquiátrica do recorrente, traduzida numa perturbação de personalidade com caraterísticas disfuncionais, pautadas por baixa tolerância à frustração, impulsividade e episódios de auto/hetero agressividade repercute-se ao nível do juízo de culpa (e, portanto, de censura jurídico-penal dirigido ao arguido), designadamente por implicar uma diminuição da capacidade de controlo dos impulsos. Contudo, esta diminuição do juízo de censura fica fortemente mitigada pela circunstância de ter ficado demonstrado [como se retira da apreciação crítica da prova efetuada pelo tribunal
a quo
e do ponto 49 dos factos provados] que a dificuldade de controlo de impulsos e o baixo limiar de tolerância à frustração, propiciando a adoção de comportamentos explosivos de hetero e/ou auto agressividade, é exponenciada pelo consumo de substâncias tóxicas, dependendo este fator do controlo e da vontade do arguido, sendo-lhe, portanto, imputável e censurável.
Em todo o caso, as penas aplicadas ao recorrente, bastante contidas, não excedem a medida da sua culpa, e adequam-se, igualmente sem excessos ou desproporção, à medida do incremento de perigosidade revelado pela sua personalidade, evidenciada, aliás, nos seus antecedentes criminais
[44]
.
Resta-nos assinalar que nenhuma desproporção, a justificar a intervenção corretiva deste tribunal de recurso, encontramos na dosimetria da pena conjunta de prisão, que o tribunal
a quo
decidiu fixar em 4 anos e 3 meses.
Por fim, a referência do recorrente a uma nulidade alegadamente cometida pelo tribunal
a quo
na determinação da medida concreta das penas com a agravante da reincidência revela-se incompreensível, dado que tal circunstância modificativa geral não foi aplicada, e nem sequer havia sido equacionada no despacho de acusação.
*
Analisemos, agora, a possibilidade de suspensão da execução da pena de prisão, hipótese que a nossa lei penal expressamente contempla no artigo 50.º
[45]
.
Como já é sabido, são finalidades exclusivamente preventivas que devem presidir à operação da escolha da espécie de pena a aplicar ao agente, devendo o tribunal dar preferência à pena não detentiva, a não ser que razões ligadas à socialização do delinquente (no seu conteúdo mínimo, traduzido na prevenção da reincidência) ou de preservação do limite mínimo da prevenção geral positiva, no sentido de "defesa do ordenamento jurídico", imponham a pena de prisão.
Por outro lado, em caso de conflito entre os vetores da prevenção geral e especial, o primado pertence à prevenção geral.
[46]
A suspensão da execução da pena de prisão constitui uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico, tendo na sua base uma prognose social favorável ao arguido: a esperança fundada – e não uma certeza – de que a socialização em liberdade será possível, que o arguido sentirá a sua condenação como uma advertência solene e que, em função desta, não sucumbirá, não cometerá outro crime no futuro, que saberá compreender, e aceitará, a oportunidade de ressocialização que lhe é oferecida, pautando a conduta posterior no sentido da fidelização ao direito.
Para aplicação da pena em causa necessário se torna que o julgador se convença de que a ameaça da pena, como medida de reflexos sobre o seu comportamento futuro, evitará a repetição de condutas delitivas e ainda que a pena de substituição não coloca em causa de forma irremediável a necessária tutela de bens jurídicos (cf., neste sentido, o acórdão do STJ de 14/5/2009, disponível em www.dgsi).
Como salientado no acórdão deste Tribunal da Relação do Porto, de 17/1/2017
[47]
(igualmente disponível em www.dgsi.pt), reproduzindo o ensinamento do Prof. Figueiredo Dias, "A finalidade político-criminal que a lei visa com o instituto da suspensão é clara e terminante: o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes e não qualquer «correção», «melhora» ou – ainda menos - «metanoia» das conceções daquele sobre a vida e o mundo. Constitui um elemento decisivo aqui o «conteúdo mínimo» da ideia de socialização, traduzida na «prevenção da reincidência».
Analisando a possibilidade de suspensão da execução da pena de prisão, o tribunal
a quo
fez constar do acórdão recorrido o seguinte (segue transcrição parcial):
«A suspensão da execução da pena de prisão surge no art.º 50.º do C. Penal.
Segundo este preceito, se a pena de prisão não for superior a cinco anos e se for possível concluir que a censura do facto e ameaça de cumprimento da pena de prisão realizam de forma suficiente as finalidades da punição, o tribunal suspende a execução da pena.
Quanto ao primeiro requisito (ser pena de prisão inferior a 5 anos), o mesmo não levanta dúvidas, uma vez que é inferior.
Quanto ao segundo requisito, na formulação do juízo de prognose deve o tribunal atender à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias do mesmo.
Verificados os requisitos, que são cumulativos, o tribunal suspende a execução, dado tratar-se de um poder-dever.
Ora, cremos que este segundo requisito não está preenchido.
De facto, se as prementes exigências de prevenção geral levam este Tribunal a um juízo de prognose negativo em relação à suspensão de execução da pena de prisão, as exigências de prevenção especial elevam esse juízo de prognose desfavorável à suspensão da execução da pena de prisão aplicada. O arguido já cumpriu uma pena de prisão efetiva, o que não o afastou da prática dos factos em causa nestes autos. Os crimes pelos quais cumpriu pena de prisão foram crimes contra as pessoas (violência doméstica e abuso sexual de criança) e encontrava-se em liberdade desde 24.09.2020, pelo que não passou muito tempo até que praticasse novos factos ilícitos, em que exerceu novamente violência contra pessoas (cerca de 3 anos e 3 meses). Acresce que, mesmo preso, o arguido já teve duas sanções disciplinares. Por fim, o arguido alega que não estava bem porque não tomava a medicação, o que só a ele se deve e que agrava as necessidades de prevenção especial.
Assim, a pena de prisão que se determinou é para cumprir efetivamente».
Concordamos com a apreciação efetuada pelo tribunal de primeira instância. Com efeito, no caso concreto, para além de se mostrarem exacerbadas as exigências de prevenção geral associadas a este tipo de criminalidade (em particular, aos crimes de roubo), o arguido denota uma atitude deficitária ao nível da interiorização do desvalor da sua conduta e, para além disso, uma personalidade violenta e impulsiva, persistindo o risco de escalar a violência dos seus comportamentos, em meio livre – e, portanto, sem estar condicionado por controlo externo -, tanto mais que persistem os fatores de risco já referenciados, designadamente associados à perturbação da personalidade que lhe foi diagnosticada.
Assim, não só as elevadas exigências de prevenção especial, mas também as acentuadas exigências de prevenção geral, “
sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico",
pelas quais se limita sempre o valor da socialização, impõem, no presente caso, a aplicação de uma pena de prisão efetiva. A comunidade dificilmente compreenderia que alguém que pratica factos da natureza e gravidade dos que o arguido praticou, de forma repetida e revelando uma personalidade violenta e avessa à observância das normas jurídico-penais (incrementando, por isso, o juízo de
perigosidade
associado à sua personalidade e, consequentemente, de prognose desfavorável relativamente ao seu comportamento futuro), fosse punido com uma pena diversa da pena de prisão, afigurando-se previsível a total ausência de capacidade intimidatória e dissuasora das medidas alternativas previstas na lei.
Mostra-se, assim, necessária a aplicação de uma pena de prisão, em detrimento de uma pena de substituição, por só aquela se mostrar adequada para dissuadir o arguido/recorrente da prática de novos crimes e reforçar a confiança comunitária na validade das normas violadas.
Nenhuma censura merece, assim, também quanto a este aspeto, o acórdão recorrido (muito bem fundamentado, aliás), improcedendo, na totalidade, o presente recurso.
*
*
III – Dispositivo
Pelo exposto, acordam os juízes da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso, confirmando-se integralmente o acórdão recorrido.
As custas devidas pelo presente recurso são da responsabilidade do arguido, fixando-se a respetiva taxa de justiça em 4 UC (cf. o art.º 513.º do CPP).
Notifique.
*
(Elaborado e revisto pela relatora – art.º 94º, nº 2, do CPP – e assinado digitalmente)
Porto, 30 de abril de 2025.
Liliana de Páris Dias
Maria Dolores da Silva e Sousa
José António Rodrigues da Cunha
_____________
[1]
As questões que constituem o objeto do recurso serão conhecidas de acordo com as regras da precedência lógica a que estão submetidas as decisões judiciais (cf. o artigo 608º, nº 1, do Código de Processo Civil, aplicável “ex vi” do artigo 4.º do Código de Processo Penal). Além disso, será levada em consideração a natureza subsidiária de algumas das questões tratadas (por exemplo, a questão da declaração de perda de vantagens decretada pelo tribunal
a quo
está condicionada pela resposta a dar ao problema de saber se o arguido deverá ou não ser responsabilizado pelo crime de dano).
[2]
Cf., neste sentido, o acórdão deste Tribunal da Relação do Porto, de 15/11/2018, relatado pela Desembargadora Maria Deolinda Dionísio consultável em www.dgsi.pt.
[3]
Cf. o acórdão deste TRP, de 15/11/2018, já citado.
Na formulação do acórdão do TRL, de 29/1/2020 (José Alfredo Costa, in www.dgsi.pt), «Verifica-se o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando da factualidade vertida na decisão se constata que faltam dados e elementos que, podendo e devendo ser investigados não o foram, sendo de considerar que são necessários para que se possa formular um juízo seguro de condenação (e da medida desta) ou de absolvição».
Também no acórdão do TRP de 9/1/2020, relatado pelo Desembargador Nelson Fernandes e disponível em
www.dgsi.pt
, é referido que “O vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ocorre quando a factualidade dada como provada na sentença é insuficiente para fundamentar a solução de direito e quando o tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final”.
[4]
Veja-se, neste sentido, o acórdão do TRC de 13/5/2020, relatado por Jorge Jacob e disponível para consulta em
www.dgsi.pt
, citando o acórdão do STJ de 18/2/1998, nº convencional JSTJ00034535.
[5]
Relatado pelo Desembargador Francisco Caramelo, consultável em www.dgsi.pt.
[6]
Efetivamente, a violação ostensiva do aludido princípio é suscetível de consubstanciar um «erro notório na apreciação da prova».
[7]
“Estão incluídas, evidentemente, as hipóteses de erro evidente, escancarado, escandaloso, de que qualquer homem médio se dá conta.
Porém, esta interpretação do preceito pecaria por demasiado restritiva do seu alcance e deixaria a descoberto muitas situações de matéria de facto viciada por erro notório de apreciação da prova. Na verdade, seria inconcebível que, não obstante ser inacessível ao homem médio, mas evidente para qualquer jurista ou, mesmo para o tribunal, ainda assim, o vício não devesse ser sanado pela previsão do preceito em causa. Assim, estão aqui também previstas todas as situações de erro clamoroso, e que, numa visão consequente e rigorosa da decisão no seu todo, seja possível, ainda que só ao jurista, e, naturalmente ao tribunal de recurso, assegurar, sem margem para dúvidas, que, nelas, a prova foi erroneamente apreciada.
Certo que o erro tem que ser «notório». Importa, pois, para assegurar essa notoriedade, que ela ressalte do texto da decisão recorrida, ainda que, para tanto tenha que ser devidamente escrutinada e sopesado à luz de regras da experiência, não necessariamente só do homem comum. Ponto é que, no fim, não reste qualquer dúvida sobre a existência do vício e que essa existência fique devidamente demonstrada pelo tribunal ad quem, demonstração esta que, naturalmente, deve ser acessível a toda a gente, enfim, agora sim, ao homem comum” (cf. CPP Comentado, A. Henriques Gaspar e outros, 2016, 2ª. ed. rev., pág(s) 1275, parág(s) 6).
[8]
Como observa o Conselheiro José Santos Cabral (in “Prova indiciária e as novas formas de criminalidade”, Revista Julgar n.º 17, Maio-Agosto 2012), reproduzindo o ensinamento de Marieta, a prova indiciária é uma prova de probabilidades e é a soma das probabilidades que se verifica em relação a cada facto indiciado que determinará a certeza. É a
compreensão global dos indícios existentes
, estabelecendo
correlações e lógica intrínsecas
, que permite e avaliza a passagem da multiplicidade de probabilidades, mais ou menos adquiridas, para um estado de certeza sobre o facto
probando
.
[9]
Com efeito, quanto à prova dos elementos subjetivos, por via de regra, na ausência de confissão do arguido, a prova do dolo terá de ser feita através de prova indireta a partir da leitura do comportamento exterior e visível do agente, mediante os elementos objetivamente comprovados e em conjugação com as regras da experiência comum. Na verdade, «a intenção de praticar o crime pertence ao foro íntimo, psicológico, da pessoa e, se negada ou reconduzindo-se o agente ao silêncio, só a ela normalmente se chega através de factos externos ao agente, concludentes desse nexo psicológico e, assim, através de prova indireta (indiciária)», como se reconhece no acórdão deste TRP de 27/1/2021 (igualmente consultável em www.dgsi.pt).
[10]
Como é observado no acórdão deste TRP de 3/2/2016 (relatado pela Desembargadora Eduarda Lobo, disponível para consulta em
www.dgsi.pt
), “A prova indireta (ou indiciária) não será um
“minus”
relativamente à prova direta, pois se até é certo que na prova indireta intervém a inteligência e a lógica do julgador que associa o facto indício a uma regra da experiência e vai permitir alcançar a convicção sobre o facto a provar, na prova direta poderá intervir um elemento que ultrapassa a racionalidade e que será muito mais perigoso de determinar, como é o caso da credibilidade do testemunho.”.
[11]
A decisão da matéria de facto, em processo penal, constitui, não só a superação da dúvida metódica, mas também da dúvida razoável sobre a matéria da acusação e da presunção de inocência do arguido. Tal superação é sujeita a controlo formal e material rigoroso do processo de formação da decisão e do conteúdo da sua motivação, a fim de assegurar os padrões inerentes ao Estado de Direito moderno (cf., neste sentido, o acórdão do TRP de 14/7/2020, relatado pelo Desembargador Jorge Langweg e disponível em www.dgsi.pt).
[12]
Como é observado no acórdão deste TRP de 14/7/2020, havendo uma falha evidente na utilização de uma presunção judicial ou natural que resulte do texto da fundamentação de uma decisão da matéria de facto, tal corporiza um erro notório na apreciação da prova (art.º 410.º, 2, c), do CPP).
[13]
Cf. sobre a matéria e a título exemplificativo, o acórdão do TRP de 25/2/2025 (Desembargadora Maria da Luz Seabra) e o acórdão do TRL de 18/3/2015 (Desembargador Vasco Freitas), disponíveis no sítio
www.dgsi.pt
.
Como observam Ana Sofia Cabral, António Macedo e Duarte Nuno Vieira, no estudo intitulado “Da psiquiatria ao direito”, publicado na revista Julgar, n.º 7, 2009, página 190, não obstante o juízo técnico e científico inerente quer à perícia psiquiátrica, quer à perícia sobre a personalidade, reguladas nos artigos 159.º e 160.º do Código de Processo Penal, se presumir subtraído à livre apreciação do julgador, este acaba por ter a faculdade de divergir daquele parecer desde que fundamente a sua divergência. É de notar que, como observam os autores, com a evolução da dogmática penal, o juízo de inimputabilidade passa a centrar-se – ou, pelo menos, a relevar de igual forma – no substrato normativo. Por isso, se ao perito continua a pertencer a função de aferição do fundamento biopsicológico da inimputabilidade – que, nesta fase, deixa inclusivamente de se reportar unicamente à doença mental em sentido estrito e passa a abarcar todo e qualquer transtorno ao nível psíquico -, já não se concebe qualquer competência do mesmo para responder ao aludido fundamento normativo que passa a estar sob a alçada do juiz. Assim, a importância atribuída ao elemento normativo da inimputabilidade leva a uma mutação do papel do perito, e é este paradigma normativo que se apresenta ainda hoje como modelo dominante.
Paralelamente, assinala João Athayde Varela (no estudo “Psicologia cognitiva, neurociência e prova testemunhal”, publicado na revista Julgar n.º 52, 2024, páginas 300/301) que, se o juízo pericial vincula o tribunal quanto à sua conclusão técnica, sem prejuízo de ser contraditado por outro juízo científico (designadamente, havendo mais do que um perito, mediante a adesão judicial a um relatório discordante ou opinião vencida – cf. o artigo 157.º, n.º 5, do CPP), a hipótese jurídica pressuposta (isto é, o facto em si) continuará sujeita ao princípio da livre apreciação da prova (cf. art.º 127.º do CPP), devendo ser valorada à luz de toda a prova produzida.
[14]
Por outro lado, pronunciando-se o tribunal
a quo
sobre o conteúdo da prova pericial disponível é evidente que não cometeu qualquer «nulidade por omissão de pronúncia», como invoca o recorrente, ainda que superficialmente, nas alegações de recurso.
[15]
Consta do sumário do acórdão do STJ de 15/12/2011, relatado pelo Conselheiro Raúl Borges e que se encontra disponível para consulta em
www.dgsi.pt
, o seguinte:
“XVII - Relativamente à violação do princípio
in dubio pro reo
, importa acentuar que, dizendo respeito à matéria de facto e sendo um princípio fundamental em matéria de apreciação e valoração da prova, num caso em que, como o presente, o Tribunal da Relação se encontra no âmbito de um recurso da matéria de facto restrito aos vícios previstos no art.º 410.°, n.º 2, do CPP, a mesma deve resultar do texto da decisão recorrida em termos análogos aos dos referidos vícios. Ou seja, só ocorre quando, seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção, se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente – de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido - pela prova em que assenta a convicção.”.
Na síntese de Roxin (in “Derecho Procesal Penal”, Editores del Puerto, Buenos Aires, pág. 111), “o princípio não se mostra atingido quando, segundo a opinião do condenado, o juiz deveria ter tido dúvidas, mas sim quando condenou apesar da existência real de uma dúvida”.
Importa, ainda, salientar que o que releva é a dimensão objetiva do princípio “in dubio pro reo”. Na síntese do acórdão do TRL de 22/9/2020 (relatado pelo Desembargador Jorge Gonçalves e disponível em
www.dgsi.pt
), “no caso de o tribunal dar como provados factos duvidosos desfavoráveis ao arguido, mesmo que não tenha manifestado ou sentido a dúvida, mesmo que não a reconheça, há violação do princípio se, do confronto com a prova produzida, se conclui que se impunha um estado de dúvida.” – algo que, no presente caso, manifestamente não se verifica, como já tivemos oportunidade de concluir.
[16]
Pois a decisão mostra-se coerente, harmónica, destituída de antagonismos factuais, de factos contrários às regras da experiência comum ou de erro patente para qualquer cidadão, nela inexistindo também qualquer inconciliabilidade na fundamentação ou entre esta e a decisão, sendo, por outro lado, a fundamentação de facto suficiente para fundar uma segura decisão de direito.
[17]
Mas mesmo essa reapreciação ampla, como assinala o STJ, no acórdão de 2/6/2008, (no proc. 07P4375, in
www.dgsi.pt
) sofre as limitações que decorrem e resultam dos seguintes fatores:
- da necessidade de observância pelo recorrente do ónus de especificação, restringindo aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorretamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;
- da falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações, postergando-se assim a “sensibilidade” que decorre de tais princípios;
- de a análise e ponderação a efetuar pelo Tribunal da Relação não constituir um novo julgamento, porque restrita à averiguação ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros indicados pelo recorrente; e de
- o tribunal só poder alterar a matéria de facto impugnada se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida (al. b) do nº 3 do citado art. 412º), e não apenas a permitirem.
[18]
Como se observa no acórdão deste TRP, datado de 13/12/2023 (relatado pelo Desembargador José António Rodrigues da Cunha e consultável em
www.dgsi.p
t), «Questionada a decisão matéria de facto através da impugnação ampla a que se reporta o art.º 412.º, n.º 3, do CPP, recai sobre o recorrente o ónus de especificar e individualizar os concretos factos que, em seu entender, se encontram incorretamente julgados, cabendo-lhe, também, indicar as concretas provas de onde resultem os alegados erros de julgamento e que impõem decisão diversa. Feita tal indicação, deverá ainda explicar a razão pela qual as provas ou os meios de prova que especifica impõem decisão diversa da recorrida. Por exemplo, não basta transcrever excertos de declarações ou de depoimentos e dizer que dali resulta o contrário do decidido. Acresce que o ónus deve ser observado relativamente a cada um dos factos impugnados, e não por atacado, impondo-se ao recorrente relacionar e fazer a necessária correspondência do conteúdo específico do meio de prova que segundo ele impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorretamente julgado.
Porque não se trata de um novo julgamento, e constitui apenas um remédio para os vícios do julgamento em primeira instância, faltando-lhe a imediação e a oralidade da prova, não pode o Tribunal da Relação fazer tábua rasa da livre apreciação da prova em que assentou o juízo do tribunal recorrido. Face a essa limitação, o tribunal de recurso, em sede de impugnação ampla da matéria de facto, só pode alterar o decidido pela primeira instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida e não apenas se a permitirem. Isto é, quando a convicção do julgador da primeira instância tiver na sua base erros de tal modo evidentes e óbvios que tornem a decisão inaceitável».
[19]
Como se afirma no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.04.2006, Proc. nº 06P120, (disponível em www.dgsi.pt) com as especificações consagradas nos nºs 3 e 4 do art.º 412º do Código de Processo Penal «visou-se, manifestamente, evitar que o recorrente se limitasse a indicar vagamente a sua discordância no plano factual e a estribar-se probatoriamente em referências não situadas, porquanto, de outro modo, os recursos sobre a matéria de facto constituiriam um encargo tremendo sobre o tribunal de recurso, que teria praticamente em todos os casos de proceder a novo julgamento na sua totalidade. Impõe-se, por isso uma exigência rigorosa na aplicação destes preceitos».
[20]
Cf. o Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência, de 8/3/2012, relatado pelo Conselheiro Raúl Borges, in DR. I Série, n.º 77, de 18.04.2012: «Pede-se ao tribunal de recurso uma intromissão no julgamento da matéria de facto, um juízo substitutivo do proclamado na 1.ª instância, mas há que ter em atenção que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em segunda instância, não impõe uma avaliação global, não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida e muito menos um novo julgamento da causa, em toda a sua extensão, tal como ocorreu na 1.ª primeira instância, tratando-se de um reexame necessariamente segmentado, não da totalidade da matéria de facto, envolvendo tal reponderação um julgamento/reexame meramente parcelar, de via reduzida, substitutivo».
[21]
Cf., neste sentido, Germano Marques da Silva, in Forum Iustitiae, Ano I, maio de 1999, e Damião da Cunha, in «O caso Julgado Parcial», 2002, pág. 37.
[22]
“Em sede de conhecimento do recurso da matéria de facto, impõe-se que a Relação se posicione como tribunal efetivamente interveniente no processo de formação da convicção, assumindo um reclamado «exercício crítico substitutivo», que implica a sobreposição, ou mesmo, se for caso disso, a substituição, com assento nas provas indicadas pelos recorrentes, da convicção adquirida em 1.ª instância pela do tribunal de recurso, sobre todos e cada um daqueles factos impugnados, individualmente considerados, em vez de se ficar por uma mera atitude de observação aparentemente externa ao julgamento” – cf. o acórdão do STJ de 30/11/2006, relatado pelo Conselheiro Pereira Madeira e disponível em
www.dgsi.pt
.
Nesta linha, o acórdão n.º 116/07 do TC julgou inconstitucional a norma do artigo 428.º, n.º, 1 “quando interpretada no sentido de que, tendo o tribunal de 1.ª instância apreciado livremente a prova perante ele produzida, basta para julgar o recurso interposto da decisão de facto que o tribunal de 2.ª instância se limite a afirmar que os dados objetivos indicados na fundamentação da sentença objeto de recurso foram colhidos da prova produzida”.
[23]
Relatado pelo Conselheiro Raul Borges, já citado.
[24]
Tem sido este, de facto, o entendimento predominante da jurisprudência dos tribunais superiores. Como é sublinhado no acórdão da Relação de Coimbra, de 8/2/2012 (relatado pelo Desembargador Brízida Martins e disponível em
www.dgsi.pt
), “os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem apenas um remédio a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos apontam inequivocamente para uma resposta diferente da que foi dada pela 1ª instância. E já não aqueles em que, existindo versões contraditórias, o tribunal recorrido, beneficiando da oralidade e da imediação, firmou a sua convicção numa delas (ou na parte de cada uma delas que se afigurou como coerente e plausível), sem que se evidencie no juízo alcançado algum atropelo das regras da lógica, da ciência e da experiência comum, porque nestes últimos a resposta dada pela 1º instância tem suporte na regra estabelecida no citado art.º 127º e, por isso, está a coberto de qualquer censura e deve manter-se”.
Veja-se também o acórdão deste TRP, de 2/6/2019 (relatado pelo Desembargador Paulo Costa e disponível em
www.dgsi.pt
), “Constatando-se que não são detetáveis desconformidades entre a prova produzida, que inexistem provas proibidas ou produzidas fora dos procedimentos legais, tendo o tribunal justificado suficientemente na decisão as opções que fez na valoração dos contributos probatórios, atribuindo valor positivo ou negativo às provas de modo racionalmente justificado, de acordo com regras de lógica e de experiência comum e com respeito pelo princípio do
in dubio pro reo
, resta à Relação confirmar a decisão sobre a matéria de facto e nomeadamente a que diz respeito à questionada pelo recorrente.”
Ou na síntese do acórdão do TRP, de 6/3/2002, relatado pelo Desembargador Fernando Monterroso, igualmente disponível em
www.dgsi.pt
: “Mesmo quando houver documentação da prova, a sua livre
apreciação, devidamente fundamentada segundo as regras da experiência, no sentido de uma das soluções plausíveis torna a decisão inatacável. Doutro modo seriam defraudados os fins visados com a oralidade e a imediação da prova.”.
[25]
Estabelece o art.º 127.º do CPP que «Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente».
[26]
Como se fez notar no acórdão do STJ de 11/7/2007 (
www.dgsi.pt
), a prova produzida avalia-se pela sua qualidade, pelo seu peso na formação da convicção, e não pelo seu número.
[27]
Cf., expressamente neste sentido, o acórdão deste TRP, datado de 17/2/2016 (Relator: Desembargador Neto de Moura), disponível para consulta em www.dgsi.pt.
Como é assinalado no acórdão do TRG de 21/6/2010 (relatado pelo Desembargador Fernando Monterroso e disponível para consulta em
www.dgsi.pt
), o prof. Enrico Altavilla já há muito ensinava que "o interrogatório como qualquer testemunho está sujeito à crítica do juiz, que poderá considerá-lo todo verdadeiro ou todo falso, mas poderá aceitar como verdadeiras certas partes e negar crédito a outras" – Psicologia Judiciária, vol. II, 3º ed. pág. 12.
[28]
Como vem sendo salientado pela jurisprudência dos tribunais superiores, dar ou não dar crédito ao que diz um arguido, um ofendido ou uma testemunha é uma questão de convicção, que assenta numa multiplicidade de circunstâncias e fatores que ocorrem no julgamento da primeira instância. Ora, quando a atribuição de credibilidade ou de falta de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear em opção assente na imediação e na oralidade, o Tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção não é racional, se mostra ilógica e é inadmissível face às regras da experiência (cf. o acórdão do TRC de 13/9/2017, relatado pelo Desembargador Inácio Monteiro, in
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) – algo que, manifestamente, não sucede no presente caso.
[29]
Quanto à «capacidade de autodeterminação/livre arbítrio», não foi determinada pelo identificado médico psiquiatra por força da falta de colaboração e «defensividade» denotadas, naquele contexto, pelo recorrente, pelo que nada de útil poderia concluir-se quanto a esta matéria a partir do mencionado relatório clínico.
[30]
Como assim também o considerou o tribunal de primeira instância no acórdão recorrido, na decorrência, aliás, da análise efetuada no despacho constante de fls. 340/341, inexistindo, por isso, qualquer nulidade por omissão de pronúncia, diversamente do que invoca o recorrente.
[31]
Relatado pelo Desembargador Paulo Costa e disponível em www.dgsi.pt.
[32]
Como se refere no acórdão do STJ de 21/03/2003, proc. 024324, relator Conselheiro Afonso Paiva: “A admissibilidade da respetiva alteração (referência à matéria de facto) por parte do Tribunal da Relação, mesmo quando exista prova gravada, funcionará assim, apenas, nos casos para os quais não exista qualquer sustentabilidade face à compatibilidade da resposta com a respetiva fundamentação.
Assim, por exemplo:
a) apoiar-se a prova em depoimentos de testemunhas, quando a prova só pudesse ocorrer através de outro sistema de prova vinculada;
b) apoiar-se exclusivamente em depoimento(s) de testemunha(s) que não depôs(useram) à matéria em causa ou que teve(tiveram) expressão de sinal contrário daquele que foi considerado como provado.
c) apoiar-se a prova exclusivamente em depoimentos que não sejam minimamente consistentes, ou em elementos ou documentos referidos na fundamentação, que nada tenham a ver com o conteúdo das respostas dadas.”.
[33]
Cf. Joana Costa, no estudo intitulado «A relevância jurídico-penal das perturbações da personalidade no contexto da inimputabilidade», publicado em Julgar, n.º 15, página 69.
[34]
Cf. Joana Costa, texto citado, página 74.
É de notar que, se o tribunal tiver dúvidas, quer por não ser clara a existência de anomalia psíquica, que por não estar seguro das consequências que daí deve extrair para o elemento normativo, tem ao seu dispor o instituto da imputabilidade diminuída, consoante se decida sobre se o agente pode ou não ser censurado por não dominar (falta de controlo) os efeitos da anomalia psíquica e, ainda, em função de saber se para a socialização do agente será preferível que este cumpra uma pena ou antes uma medida de segurança (pensamento a partir do resultado ou da consequência), como observa Paulo Barreto, no estudo intitulado “A problemática da culpa penal dos toxicodependentes”, publicado na Revista Julgar, n.º 54, Outubro-Dezembro 2024, página 57.
[35]
Cf. Jorge de Figueiredo Dias, “Direito Penal Português, As consequências jurídicas do Crime”, 1993, p. 305.
[36]
Cf. Jorge de Figueiredo Dias, “Direito Penal Português, As consequências jurídicas do Crime”, 1993, pp. 306/307.
[37]
Já confissão dos factos (que, no caso, nem sequer foi integral e sem reservas, mas meramente parcial e sem especial relevo para a descoberta da verdade), fator igualmente invocado pelo recorrente, naturalmente nunca teria o condão de, por si só, provocar a atenuação especial.
[38]
Como refere Anabela Miranda Rodrigues [In «Critério de escolha das penas de substituição no Código Penal Português», Separata do B.F.D. - «Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia», 1984, p. 3 e ss.], o Código Penal consubstancia um critério de prevenção especial como aquele que deve estar na base da escolha da espécie de pena pelo juiz, sendo igualmente um critério de prevenção - agora geral positiva ou de integração - o único que poderá obstar à substituição da pena de prisão.
Deste modo, o juiz deverá substituir a pena de prisão por uma pena de cariz não detentivo sempre que razões de prevenção especial, ligadas à socialização do delinquente no sentido de evitar a reincidência, o aconselhem. Porém, quando a aplicação da pena não detentiva possa ser entendida pela sociedade, no caso concreto, como uma injustificada indulgência e prova de fraqueza face ao crime, quaisquer razões de prevenção especial que aconselhassem a substituição cedem, devendo aplicar-se a prisão. Trata-se, portanto, de assegurar que o limite mínimo da prevenção geral positiva, no sentido de “defesa do ordenamento jurídico”, não seja posto em causa.
[39]
Como é assinalado no acórdão do STJ de 18/2/2016 (relatado pelo Conselheiro Raúl Borges, in www.dgsi.pt)
[39]
, “Está subjacente ao artigo 40.º uma conceção preventivo-ética da pena. Preventiva, na medida em que o fim legitimador da pena é a prevenção; ética, uma vez que tal fim preventivo está condicionado e limitado pela exigência da culpa”
.
No nosso regime penal, “as finalidades de aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade. Por outro lado, a pena não pode ultrapassar, em caso algum a medida da culpa. Nestas duas proposições reside a fórmula básica de resolução das antinomias entre os fins das penas; pelo que também ela tem de fornecer a chave para a resolução do problema da medida da pena” (cf. J. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Notícias Editorial, pág. 227).
[40]
Como observa Paulo Barreto, no estudo intitulado «A Problemática da Culpa Penal dos Toxicodependentes», já citado, pág. 224, a culpa criminal é sempre a mesma, como princípio da responsabilidade subjetiva, como fundamento da pena e como fator de determinação da medida da pena: um juízo de censurabilidade sobre o agente por ter praticado um ilícito-típico (juízo de censurabilidade mais centrado no incumprimento da norma ou na atitude do agente, consoante se siga os conceitos normativo ou da culpa da vontade).
[41]
Cf. Anabela Miranda Rodrigues, “A determinação da medida da pena privativa de liberdade”, 1995, pág. 658 e seguintes.
[42]
No acórdão do STJ, de 11.04.2007, disponível em www.dgsi.pt.
[43]
Relatado pelo Desembargador Joaquim Gomes e disponível em
www.dgsi.pt
.
No mesmo sentido conclui Souto de Moura, citado no acórdão do STJ, de 9/5/2019 (igualmente disponível em www.dgsi.pt): “sempre que o procedimento adotado se tenha mostrado correto, se tenham eleito os fatores que se deviam ter em conta para quantificar a pena, a ponderação do grau de culpa que o arguido pode suportar tenha sido feita, e a apreciação das necessidades de prevenção reclamadas pelo caso não mereçam reparos, sempre que nada disto seja objeto de crítica, então o “quantum” concreto de pena já escolhido deve manter-se intocado”.
O que bem se compreende, como é assinalado no acórdão do STJ de 9/5/2019, “porque a fixação do quantum da pena concreta aplicada em cada caso não é uma operação aritmética em que os fatores a ponderar possam assumir um coeficiente numérico ou uma valoração tabelada.”.
[44]
O arguido foi condenado, por acórdão transitado em julgado em 17/6/2019, na pena única de 2 anos e 3 meses de prisão (efetiva), pela prática dos crimes de violência doméstica e de abuso sexual de crianças.
[45]
A ponderação da possibilidade de execução da pena em regime de permanência na habitação não é concretamente admissível em face da dosimetria da pena única, superior a dois anos de prisão (cf. o artigo 43.º, n.º 1 do Código Penal).
[46]
Cf. o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 28/10/2009 (disponível em
www.dgsi.pt
).
Com efeito, a socialização não pode sobrelevar a prevenção. Embora com pressuposto e limite na culpa do agente, o único entendimento consentâneo com as finalidades de aplicação da pena é a tutela de bens jurídicos e, [só] na medida do possível, a reinserção do agente na comunidade.
[47]
Relatado pelo Desembargador Jorge Langweg.
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TRP
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https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/9b5e40dc51416d3f80258c90004e8a36?OpenDocument
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1,742,860,800,000
| null |
166/21.6GEBNV.E1
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166/21.6GEBNV.E1
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MOREIRA DAS NEVES
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I. A suspensão da execução da medida de segurança de internamento, prevista no artigo 98.º CP, estriba-se no princípio da proporcionalidade, previsto no § 2.º do artigo 18.º da Constituição, permitindo que nos casos menos graves, em que ao processo de reintegração do agente da sociedade não é imprescindível a privação da liberdade, este ocorra sem privação daquela.
II. Gizando-se com essa medida proporcionar ao agente as condições de prosseguimento de tratamento em liberdade, de molde a mantê-lo equilibrado e, por essa via, controlada a perigosidade, que impedirá a repetição da prática de factos ilícitos-típicos.
III. A proporcionalidade é a dimensão valorativa que incorpora uma função limitadora em matéria de medidas de segurança; em termos similares à culpa nos casos dos agentes que dela são capazes.
IV. Imprescindível para lograr as finalidades impregnadas na lei, é mobilizar os serviços existentes na comunidade, que dispõem de programas e meios gizados para a prestação de cuidados e serviços a pessoas frágeis que não conseguem, por si só, assegurar, temporária ou permanentemente, os cuidados clínicos e medicamentosos de que carecem.
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[
"MEDIDA DE SEGURANÇA DE INTERNAMENTO",
"SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DO INTERNAMENTO",
"PROPORCIONALIDADE",
"MOBILIZAÇÃO DOS RECURSOS DA COMUNIDADE"
] |
ACÓRDÃO I – Relatório
a. No ….º Juízo1 Local Criminal de …, do Tribunal Judicial da comarca de …, procedeu-se a julgamento em processo comum, da competência do tribunal singular, de AA, nascida a 20/12/1949, com os demais sinais dos autos, à estava imputada a autoria, em concurso efetivo, de:
- quatro crimes de dano, previstos no artigo 212.º, § 1.º do Código Penal (CP) – pelo Ministério Público;
- e dois crimes de injúria, previstos no artigo 181.º, § 1.º CP – pela assistente.
A assistente deduziu um pedido de indemnização civil contra a arguida, reclamando o ressarcimento dos danos de natureza patrimonial, que computou em 1 000€ e de natureza não patrimonial, que quantificou em 1 500€, decorrentes dos ilícitos imputados.
b. Veio a ser proferida sentença pela qual se decidiu:
- Declarar a arguida AA autora dos factos que lhe haviam sido imputados, com referência aos ilícitos típicos indicados;
- Declarar que a mesma é relativamente aos mesmos inimputável, por força de anomalia psíquica (nos termos previstos no artigo 20.º, § 1.º CP); e,
- Aplicar à arguida a medida de segurança de internamento em estabelecimento de tratamento psiquiátrico, por um período máximo de 3 anos, até cessar o estado de perigosidade criminal (em conformidade com o disposto nos artigos 91.º, § 1.º e 92.º, § 2.º CP e 501.º do Código de Processo Penal (CPP), sem prejuízo do disposto no artigo 93.º CP;
- Julgar improcedente o pedido de indemnização civil absolvendo-se a demandada em conformidade.
c. Inconformada com a decisão determinativa do seu internamento, recorre a arguida, extraindo-se da respetiva motivação as seguintes conclusões:
«1. A medida de internamento aplicada pelo Tribunal a quo é excessiva e desproporcionada.
2. A patologia diagnosticada à arguida não é grave pelo que tem tratamento em ambulatório e não internamento como determinado pelo douto tribunal.
3. Não ficou provado que a arguida não toma a medicação e que se recusa a tomá-la.
4. Também não ficou provado que a arguida se recusou a efetuar tratamento em liberdade.
5. Os factos cometidos pela arguida, não são considerados perigosos.
6. A arguida não é perigosa.
7. Violou o douto tribunal o estabelecido no art.º 40.º, 70.º, 91.º e 98.º/1 todos do CP.
8. Deveria ter sido suspensa a medida de internamento, mediante a imposição à arguida da frequência das consultas de psiquiatria em regime livre ou em ambulatório, e acompanhamento pela DGRS.»
d. Admitido o recurso o Ministério Público respondeu pugnando pela sua improcedência, sintetizando a sua posição nos termos seguintes:
«1. O Tribunal a quo fez uma correta avaliação das circunstâncias, em ordem à ponderação da melhor decisão para o caso concreto, a qual, face ao que resultou da prova produzida, não podia, de facto, ser outra que não a que se traduzisse e foi o que se decidiu na aplicação à arguida da medida de segurança de internamento em estabelecimento de tratamento psiquiátrico por um período máximo de 3 anos.
2. A sentença recorrida, proferida pelo Tribunal a quo, mostra-se conforme à legislação aplicável, não se vislumbrando, na aludida decisão, qualquer vício, muito menos, aqueles cuja verificação é invocada pela recorrente.
3. Da prova produzida resultou que a recorrente não detém capacidade de autocontrole, existindo um sério risco de cometimento de factos semelhantes aos dos autos.
4. Só a medida de segurança de internamento em estabelecimento de tratamento psiquiátrico por um período máximo de 3 anos, em que a recorrente foi condenada poderá acautelar o efeito de prevenção de futuros crimes.»
e. No mesmo sentido sendo a resposta da assistente, acrescentando com eventual relevo que:
- Resulta do relatório médico-psiquiátrico que a perigosidade da arguida existe e depende diretamente do seu grau de adesão ao tratamento médico que lhe for prescrito.
- A arguida padece de uma incapacidade de aderir ao tratamento de que necessita, ainda que involuntária, nada a impedindo, em liberdade, de voltar a praticar os mesmos factos, já que irá manter-se sem acompanhamento psiquiátrico e sem acompanhamento medicamentoso ou, no limite, no que configura um perigo para si própria, automedicando-se.
- Não possuindo uma rede familiar ou económica que lhe permita o apoio de que carece, o que também não debelaria o juízo de prognose favorável a que não se chegou.
- Não tendo sido produzida qualquer prova que a arguida acolheria ou cooperaria com rede familiar, cuja prova também não foi produzida existir, de apoio que poderia eventualmente vir a suprir, pelo menos em teoria, a sua incapacidade/recusa de sujeitar-se a tratamento/acompanhamento psiquiátrico permanente, ainda que se viesse a decretar vigilância, a tutela dos serviços de reinserção social e um apertado controle do Tribunal através da imposição de exames e outras regras de conduta
- Aa condições de vida da arguida não são de molde a antever uma evolução clínica positiva que permita, nos termos e com os fins legais, a suspensão da execução da medida de internamento;
- E que a suspensão da medida de segurança, sem necessidade do internamento, não satisfaria o fim que determina a aplicação da medida de segurança: a proteção dos bens jurídicos e a reintegração da agente na sociedade.
f. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ministério Público aportou doutas considerações, entendendo mostrar-se justificada a medida de segurança imposta à arguida.
g. Respondeu a assistente, aderindo ao sustentado no parecer do Ministério Público.
h. Efetuado exame preliminar, colhidos os vistos legais, cumpre agora, em conferência, apreciar e decidir.
II – Fundamentação
A. Delimitação do objeto do recurso O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 412.º, § 1.º CPP)2. Suscitando-se apenas a seguinte: i) Se a medida de internamento é desproporcionada, devendo ser antes aplicada a suspensão desse internamento, com acompanhamento pela DGRSP.
B. Os factos provados constantes da sentença são os seguintes3:
«1. No dia 8 de Junho de 2021, cerca das 10h30m, a arguida AA, que reside na habitação sita na Rua …, n.º …, em … que é contígua à da assistente BB sita na Rua …, n.º …, na mesma localidade, lançou para o quintal desta um produto químico com amoníaco que atingiu a horta propriedade da assistente, assim queimando as suas plantações e culturas e provocando-lhe estragos com o valor de pelo menos 75,50€.
2. Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, a arguida AA, com recurso a objeto de características não concretamente apuradas, desferiu pancadas na chapa que se encontra sobre o muro que divide a sua propriedade e a da assistente, propriedade desta, que amolgou, assim provocando estragos com o valor de pelo menos 162,38€.
3. No dia 9 de dezembro de 2021, a hora não concretamente apurada, nas mesmas circunstâncias de lugar, a arguida AA lançou para o quintal da assistente um produto químico com amoníaco que atingiu a horta propriedade da assistente, assim queimando as suas plantações e culturas e provocando-lhe estragos com o valor de pelo menos 77€.
4. No dia 2 de agosto de 2022, cerca das 02h00m, nas mesmas circunstâncias de lugar, uma vez mais, a arguida AA lançou para o quintal da assistente um produto químico com amoníaco que atingiu a horta propriedade da assistente, assim queimando as suas plantações e culturas e provocando-lhe estragos com o valor de pelo menos de 60,50€.
5. Com a conduta descrita, a arguida causou prejuízos no quintal da assistente no valor global de pelo menos de 375,38€.
6. A arguida agiu da forma descrita com o propósito concretizado de provocar estragos nas culturas e plantações do quintal da assistente e na chapa que se encontrava colocada sobre o muro que divide a propriedade de ambas, bem sabendo que tais bens não lhes pertenciam e que agia contra a vontade da sua legítima proprietária BB, o que representou e quis.
7. A arguida AA, sem motivo ou justificação, dirige à assistente, com caráter frequente, palavras com vista a apelidá-la em termos impróprios.
8. Trata também, com o mesmo caráter de frequência, de atirar pedras e laranjas para o quintal desta, o que sucedeu designadamente no dia 2 de agosto de 2022, data em que a GNR se deslocou ao local a pedido da assistente.
9. Bate, ainda, com pedras nas chapas da divisão do muro de ambas, amolgando-as.
10. No contexto e concretizando o provado em 7, a arguida dirigiu-se em voz alta à assistente, pelo menos numa ocasião, situada no referido dia 8 de junho de 2021, proferindo as seguintes expressões: - «És uma puta, uma ladra» - «Sua puta» - «Puta de merda» - «Essa merda tá a ladrar é igual à dona» - «Puta da beira da estrada» - «Vaca de merda» - «Vaca» - «O teu marido é um inválido de merda» - «O teu filho é um cabrão» - «O teu filho é um filho da puta» - «Puta andas a trair o teu marido» - «Vai para o caralho».
11. No referido dia 2 de agosto de 2022, na presença dos militares da GNR que se encontravam no quintal da assistente, CC e DD, a arguida proferiu em voz alta as seguintes expressões dirigidas à assistente: - «Sua vaca, vai-te lavar porca de merda».
12. Com a conduta descrita, a arguida quis ofender, como efetivamente ofendeu, a honra, dignidade, bom nome e consideração social da assistente.
13. Os factos aqui descritos chegaram ao conhecimento de vizinhos e terceiras pessoas, tornando-se rapidamente conhecidos na localidade de ….
14. A assistente sentiu-se transtornada, humilhada, magoada, envergonhada e constrangida, por ter sido destinatária das expressões supra descritas e estas terem sido ouvidas pelas pessoas que se encontravam presentes no local e pelas demais que tiveram conhecimento dos factos.
15. A arguida bem sabia que as expressões que proferira ofendiam a honra, dignidade, bom nome e consideração social da assistente.
16. A arguida foi seguida na especialidade de psiquiatria junto do Hospital Distrital de … a 22 de maio de 2018.
17. Do registo documental de tal consulta, consta designadamente o seguinte:
“Doente, sexo feminino, 68 anos, seguida em consulta de Psiquiatria há cerca de 45 anos, tendo abandonado o seguimento passados cerca de 36 anos. Hoje recorreu à consulta de Psiquiatria por queixas de insónia e dificuldades mnésicas. Apresenta humor deprimido e ansioso, refere irritabilidade, nega alterações do apetite e refere insónia inicial, intermédia e terminal. Nega ideação suicida. Refere ideação deliróide de conteúdo persecutório. Nega alterações da percepção. Nega consumo de substâncias psicoativas. Queixas dolorosas generalizadas. Nega outras patologias relevantes. Faço ajuste terapêutico.”.
18. A arguida foi seguida por conta de episódio de urgência no Hospital Distrital de …, datado de 14 de dezembro de 2019.
19. Do registo documental de tal episódio, consta designadamente o seguinte:
“Doente de 69 anos de idade, sexo feminino. Mora com o marido. Trazida pelos bombeiros e pela GNR por comportamento agressivo para com os vizinhos. Parece que liga para a GNR várias vezes por dia, tem um bar ao lado e a doente se queixa do ruído do bar e o cão que tem e não consegue dormir. A doente diz já ter feito no domicílio 2 cp de diazepam. Seguida em consulta de Psiquiatria há cerca de 45 anos, terá abandonado o seguimento passados cerca de 36 anos. Consulta de Psiquiatria no 2018 por queixas de insónia e dificuldades mnésicas. Com humor deprimido e ansioso, e irritabilidade. Referia ideação deliróide de conteúdo persecutório. (...) Tira análise e faz haloperidol agora. Vai para H…, Psiquiatria.”.
20. A arguida foi seguida na especialidade de psiquiatria junto do Hospital Distrital de … a 24 de fevereiro de 2020.
21. Do registo documental de tal consulta, consta designadamente o seguinte:
“Doente, sexo feminino, 70 anos, seguida em consulta de Psiquiatria há cerca de 48 anos, recorreu à consulta de Psiquiatria por queixas de insónia e dificuldades mnésicas. Apresenta humor deprimido e ansioso, refere irritabilidade, nega alterações do apetite e refere insónia inicial. Nega ideação suicida. Refere ideação deliróide de conteúdo persecutório. Nega alterações da percepção. Nega consumo de substâncias psicoativas. Queixas dolorosas lombo-sagradas. Nega outras patologias relevantes. Faço ajuste terapêutico.”.
22. Durante o exame pericial psiquiátrico a que foi submetida, a 15 de março de 2024, a arguida “Apresentou um discurso muito pobre em termos lexicais, por vezes desorganizado e pouco claro. Estavam presentes ideias sobrevalorizadas de teor persecutório. Não se apuraram alterações da senso-perceção. Procedeu- se a uma avaliação cognitiva breve com recurso ao instrumento MoCA (Montreal Cognitive Assessment, versão portuguesa), que a examinanda não foi capaz de concluir, mas ainda assim corroborando a impressão clínica relativamente à presença de evidentes dificuldades intelectuais, em particular na compreensão lógica e no pensamento abstrato, com discalculia, bem como comprometimento mnésico e evocativo. Não foram verbalizadas ideias de suicídio durante a avaliação. Foi referida alteração do padrão do sono. Não apresentava crítica para os comportamentos que motivaram a avaliação” – relatório de perícia psiquiátrica forense do INML datado de 18 de abril de 2024.
23. A arguida padece de perturbação do desenvolvimento intelectual ligeira, enquadrável no código 6A00.0 da 11.ª Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde da Organização Mundial da Saúde (CID-11).
24. Demonstra incapacidade intelectual traduzida em défices de funcionamento intelectual e adaptativo, em diferentes áreas, demonstrando dificuldades no pensamento abstrato e funções executivas, entre outras, dificuldades de planificação e operacionalização de estratégias, estabelecimento de prioridades e flexibilidade cognitiva.
25. Manifesta-se ainda com alterações do comportamento, dificuldades na regulação emocional e comportamento paranoide, o qual, em situações de crise ou stress contínuo pode-se assumir com uma intensidade típica de ideias delirantes, presente na forma como interpreta acontecimentos, descreve a convivência e as alegadas práticas da vizinhança.
26. Durante o exame pericial psiquiátrico a que foi submetida, a 15 de março de 2024, a arguida, perante os Srs. Peritos, enquadrou os “insultos” que constam da acusação particular com uma “atitude normativa, demonstrando baixo conhecimento das normas convencionais do comportamento, sem capacidade de distinguir o lícito do ilícito, sem compreender o alcance das consequências dos seus atos e sem capacidade de autocontrole em relação aos seus comportamentos” - relatório de perícia psiquiátrica forense do INML datado de 18 de abril de 2024.
27. A sua condição, que se reveste de um caráter irreversível, resulta numa incapacidade intelectual que compromete a inteligência da arguida, pelo que lhe limita significativamente a perceção do lícito ou ilícito, que estava presente à data dos factos provados em ambas as acusações deduzidas, assim como atualmente.
28. Este contexto incapacita-a e incapacitava de avaliar a ilicitude dos seus atos e de se determinar de acordo com essa avaliação, situação que se reconduz a uma condição de inimputabilidade em razão da anomalia psíquica.
29. Existe um risco alto de cometimento de factos da mesma natureza e/ou gravidade dos que cometeu nos presentes autos, atendendo à incapacidade intelectual que apresenta, e à ausência de crítica para os seus comportamentos.
30. Carece a arguida de acompanhamento adequado em Psiquiatria, o qual deixou de ter, sendo necessário que cumpra de forma rigorosa o esquema psicofarmacológico que lhe seja proposto, algo que não consegue fazer voluntariamente, não revelando capacidade de aderir a tal tratamento, não tendo sequer capacidade para administrar a medicação de que necessita.
31. A arguida não detém antecedentes criminais registados no seu certificado de registo criminal.
32. A arguida detém a 3.ª classe de escolaridade, tendo desempenhado ao longo da sua vida trabalhos de tipo agrícola.
33. A socialização de AA processou-se na freguesia de …, região onde os pais eram arrozeiros, dedicando-se ambos ao cultivo de arroz, desenvolvendo-se num contexto de carência económica.
34. A arguida exerceu atividade laboral com os pais nos arrozais desde os 12 anos de idade.
35. Casou com 20 anos de idade com EE, que conheceu e começou a namorar aos 16 anos, tendo vivido sempre com dificuldades.
36. Teve 2 filhos, tendo um deles falecido há 15 anos.
37. O outro filho vive na …, visitando os pais uma vez por ano.
38. À data dos factos constantes da acusação, como atualmente, a arguida vive com o marido numa pequena barraca sem as mínimas condições de habitabilidade, salubridade, higiene ou conforto.
39. É coberta por uma placa de zinco, sem qualquer isolamento.
40. Tem acesso a eletricidade e água potável.
41. A arguida foi reformada por invalidez aos 37 anos por lesão na coluna que a incapacitou para o trabalho, auferindo de 341,59€ mensais.
42. O seu marido aufere uma reforma por velhice no valor de 518,34€.
43. A arguida faz fisioterapia diariamente, por manter graves problemas de coluna e de mobilidade, serviço assegurado pelo sistema nacional de saúde.
44. No local de residência, a arguida é conhecida por criar problemas com a generalidade das pessoas, ligando diariamente para a GNR de … queixando-se do comportamento de terceiros para com ela. Liga também inúmeras vezes para a GNR de … para se queixar da inoperância da GNR de ….
45. Das diligências encetadas por parte da DGRSP tendentes a realizar o relatório social da arguida, resulta que “Os vizinhos referem que a arguida sempre teve ideação persecutória, que se tem vindo a agravar de dia para dia. (…). Atualmente, há relatos de que atira pedras aleatoriamente a pessoas que passem nas proximidades da sua casa.”
46. A arguida revela um estado de descompensação, detendo incapacidade psíquica para gerar uma resposta adequada a uma situação de tensão nervosa e/ou emocional, de que podem resultar alterações de humor, delírios ou comportamentos psicóticos.
47. Das diligências encetadas por parte da DGRSP tendentes a realizar o relatório social da arguida, resulta que “Nos tempos livres, a arguida dedica-se a pequenas atividades agrícolas como produção de horta e, segundo os habitantes que contactámos, está associada a práticas que envolvam mezinhas e rituais utilizados para contactar “espíritos”, tendo alguns clientes que a procuram para este tipo de rituais”.
48. A arguida culpabiliza a assistente por todas as ocorrências negativas da sua vida.
49. Na eventualidade de ser condenada, a arguida referiu junto da DGRSP, no seguimento do relatório social que lhe foi exarado, “indisponibilidade para cumprir uma medida judicial de execução na comunidade, nomeadamente de carácter probatório, que contemple acompanhamento terapêutico na área da psiquiatria, ou enquadramento em serviço de apoio domiciliário”.»
C. Da desproporcionalidade do internamento e da suspensão deste com acompanhamento pela DGRSP A arguida/recorrente questiona a proporcionalidade da medida de segurança de internamento que lhe foi aplicada, sustentando dever ser suspensa a execução de tal medida de internamento, com fixação de deveres e controlo externo dos mesmos. O Ministério Público e a assistente, por seu turno, sufragam a posição sustentada na sentença recorrida. Pois bem.
O quadro normativo respeitante à inimputabilidade, norteador da aplicação das medidas de segurança e da possibilidade legal da suspensão do internamento, encontra-se previsto nos artigos 20.º, 40.º, § 1.º e 3.º e 91.º a 99.º, todos do CP e 501.º a 508.º CPP, preceitos estes encimados pelos princípios constitucionais previstos nos artigos 2.º, 18.º, § 2.º e 29.º, § 1.º da Constituição. Devendo recordar-se que a aplicação das medidas de segurança, talqualmente sucede com as penas, visa a proteção de bens jurídicos (artigo 40, § 1.º CP). «Sendo finalidade delas a prevenção especial de recuperação social do inimputável perigoso, através do tratamento da anomalia psíquica e ainda da inocuização ou neutralização da perigosidade criminal do infrator, através do internamento, enquanto subsistir aquela perigosidade.»4 Os pressupostos da aplicação de uma medida de segurança (de internamento) são: a prática de um facto ilícito típico, por agente considerado inimputável nos termos do artigo 20.º; e que, devido à anomalia psíquica de que sofre e da gravidade do facto praticado, haja fundado receio de vir a cometer outros factos típicos graves. Gizando a aplicação da medida de segurança acautelar o perigo («probabilidade séria») de repetição de atos da mesma natureza (id est da mesma espécie e género dos cometidos). Isto é, só poderá aplicar-se medida de segurança (de internamento) se esta se mostrar proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente (id est à probabilidade de repetição de factos da mesma espécie e género) – artigo 91.º, § 1.º CP.
Nas circunstâncias do caso presente, o tribunal recorrido procedeu à avaliação prevista no artigo 20.º CP, tendo considerado – e bem – que a arguida era inimputável relativamente aos factos ilícitos que praticou. Isto é, que a arguida era insuscetível de ser considerada culpada relativamente aos factos que praticou, em razão do comprometimento de cariz psiquiátrico que lhe condicionou a respetiva vontade. Mais entendeu que para acautelar o perigo de recidiva criminosa (a repetição de atos do mesmo jaez) era necessário o seu internamento. Sucede que conforme resulta do quadro normativo citado, a lei reserva os «remédios pesados» do direito penal, como é, evidentemente, o caso da medida de segurança de internamento do agente, apenas lá onde isso se mostrar ajustado e proporcional. Ou seja, quando a mobilização dos serviços disponíveis na comunidade se mostrar insuficiente para acautelar o perigo de repetição de factos ilícitos e a reintegração do agente na comunidade. Vejamos, então: que factos praticou a arguida cuja repetição importa acautelar? Em três ocasiões distintas, nos anos 2021 e 2022 atirou um líquido (desconhecido) contendo amoníaco para o quintal da vizinha, causando-lhe prejuízo nas plantações que esta ali tinha. Por junto importando o prejuízo em 375,38€. Noutra ocasião, também no período em referência, amolgou umas chapas do muro divisório dos quintais (seu e da vizinha-assistente); e noutra ainda atirou com pedras e laranjas para o quintal da ofendida.
E pelo menos em outras duas ocasiões dirigiu à mesma imputações desonrosas (que tinha trato com amantes), apelidando-a com os nomes que normalmente acompanham tais imputações. E quem é a arguida? Tem 75 anos e não regista antecedentes criminais. Não completou o ensino primário. Iniciou a atividade laboral nos campos com apenas 12 anos de idade. Posteriormente casou e teve dois filhos (um deles já falecido, estando o outro emigrado na …, o qual visita os pais uma vez ao ano). Vive com o seu marido numa casa sem condições de salubridade, de higiene e de conforto, dispondo, contudo, de eletricidade e água potável. Encontrando-se reformada por invalidez (por lesão na coluna que a incapacitou para o trabalho), recebendo uma pensão mensal de 341,59€; sendo a pensão de reforma do seu marido de 518,34€.
Padece de doença psiquiátrica, caracterizada por Perturbação do desenvolvimento intelectual ligeira, enquadrável no código 6A00.0 da CID-11, a qual reveste caráter irreversível, resultando numa incapacidade intelectual que compromete a inteligência, limitando significativamente a perceção do lícito ou ilícito.
Sendo este o contexto que concretamente a incapacitava (na data dos factos) de avaliar a ilicitude dos seus atos e de se determinar de acordo com essa avaliação O que do ponto de vista psiquiátrico-forense justifica que se invoque a figura de inimputabilidade em razão da anomalia psíquica, sem que se possa excluir «o risco de cometimentos de factos da mesma natureza e/ou gravidade» dos praticados (extrato do relatório pericial).
A arguida é, pois, em suma: uma pessoa idosa, pobre e doente do foro psiquiátrico, que em diversas ocasiões nos anos 2021 e 2022, produziu danos materiais no quintal da sua vizinha (assistente), em valor inferior a 500€. E no mesmo período, em pelo menos em duas ocasiões distintas, dirigiu àquela a imputação de factos desonrosos (que tinha trato com amantes), acompanhada de epítetos caracterizadores de tais factos. Conforme se referiu, a lei e a interpretação que dela vem sendo feita pela doutrina e pela jurisprudência, exigem que para a aplicação da medida de segurança de internamento, a mais da prática de factos previstos na lei penal como crime, é também necessário que da avaliação global dos factos praticados resulte uma prognose desfavorável, decorrente da perigosidade do agente (da arguida). Sendo também necessário que da avaliação global dos factos praticados emirja uma prognose desfavorável decorrente da perigosidade do agente («fundado receio de que venha a cometer outros factos típicos graves»5). Isto é, nesse caso, os factos prognosticados, sustentadores do fundado receio de repetição, deverão apresentar-se como consequência da anomalia psíquica de que sofre o agente (e não de quaisquer outras circunstâncias, como por exemplo uma dada situação conflitual). E «para que uma medida de segurança em consideração possa ser aplicada necessário se torna ainda que o facto assuma uma natureza e uma gravidade tais que possam justificar uma medida tão severa como a do internamento, com a consequente privação da liberdade do inimputável.» Quer-se dizer, não pode deixar ponderar-se a gravidade relativa dos factos praticados (e cuja repetição poderá sobrevir). Pois é a esses que se reporta o fundado receio de repetição. Não sendo – como ficou dito – indiferente, termos em referência factos que vulneram os bens jurídicos mais relevantes, como a vida ou a integridade física, por um lado; e a honra ou o património, por outro. Evidenciando as circunstâncias do caso, não estarmos, pois, perante ilícitos que protejam os bens jurídicos mais importantes Não sendo ademais irrelevante anotar a circunstância de (pelo menos) se evidenciar haver uma relação conflitual entre a arguida e a sua vizinha – aqui ofendida6. Sendo que este tipo de conflitos tanto surgem com pessoas com comprometimento da capacidade de avaliação e determinação, como noutras que não sofrem de mal que afete tal capacidade. Não estando neste caso concretamente determinado até que ponto essa conflitualidade latente poderá ser independente da incapacidade da arguida! E nestas circunstâncias consideramos ser razoável conjeturar que a suspensão da execução do internamento e a manutenção em liberdade da arguida, cumprirão as finalidades de prevenção especial (de socialização e de segurança) e de prevenção geral (compatibilidade com a defesa da ordem jurídica e da paz social). Até porque, conforme assinala o relatório pericial, o acompanhamento médico e medicamentoso permitirá controlar a perigosidade latente. Ali concretamente se referindo que: «(…) 2. A sua condição, que se reveste de um caráter irreversível, resulta numa incapacidade intelectual que compromete a inteligência da examinanda, pelo que lhe limita significativamente a perceção do lícito ou ilícito, que estava presente à data dos factos que lhe são imputados, assim como atualmente. 3. O risco de cometimentos de factos da mesma natureza e/ou gravidade dos que agora a examinanda vem indiciada não pode ser excluído, atendendo à incapacidade intelectual que apresenta, e à ausência de crítica para os seus comportamentos. 4. É recomendável que retome o acompanhamento em consulta de Psiquiatria e que cumpra de forma rigorosa o esquema psicofarmacológico que lhe seja proposto, que ainda que não consiga reverter os défices que a examinanda apresenta, pode controlar, na medida do possível, eventuais comportamentos impulsivos.» Em suma: - a prognose relativa à perigosidade (repetição de atos da mesma espécie e género - danos de pequena monta e injúrias) alicerça-se na anomalia psíquica de que sofre a arguida (na sua incapacidade intelectual), com ressalvada de possível questão conflitual subjacente; - tal perigosidade tem por referência bens jurídicos de segunda linha (por referência à ordenação dos bens jurídicos no Código Penal); - podendo tal perigosidade (a adveniente da doença psiquiátrica) ser controlada por via do devido acompanhamento médico-psiquiátrico e psicofarmacológico. O tribunal recorrido não deixou de equacionar a possibilidade de suspensão da execução do internamento, tendo considerado que a arguida «não possui uma rede familiar ou económica que lhe permita o apoio de que carece.» E que «as suas condições de vida não são de molde a antever uma evolução clínica positiva (...) jamais sendo expetável que a arguida se submetesse a um plano delineado pela DGRSP, ainda que particularmente rígido ou “apertado”.» Concluindo, assim, pela não mobilização da suspensão da execução do internamento! Cremos que nesta última parte importaria ter ido mais longe. Assinala a doutrina, com inteira pertinência neste contexto, que «a medida de segurança de internamento de inimputáveis por anomalia psíquica nos interroga sobre a necessidade de repensar as disposições legais que a conformam, ao ponto de questionar se faz sentido manter a intervenção penal nesta área. A queda das certezas da psiquiatria biológica e positivista enredou os juristas em dificuldades, praticamente inultrapassáveis, no que diz respeito ao pressuposto desta medida de segurança – a perigosidade criminal do agente (...)»7 A tais certezas e à via da imposição da medida de segurança de internamento «contrapõe-se hoje uma resposta médico-psiquiátrica centrada na necessidade (ou não) de tratamento do agente declarado inimputável em razão de anomalia psíquica. Ao que acresce que a intervenção médico-psiquiátrica atual – psicofarmacológica, psicoterapêutica e psicossocial – permite, cada vez mais, internamentos menos prolongados e modalidades de tratamento que não passam pelo internamento.»8
Recordemos o que preceitua a lei em matéria de pressupostos e regime da preconizada suspensão da execução do internamento (artigo 98.º CP). Preceituando-se que: «1. O tribunal que ordenar o internamento determina, em vez dele, a suspensão da sua execução se for razoavelmente de esperar que com a suspensão se alcance a finalidade da medida.
2. No caso previsto no n.º 2 do artigo 91.º, a suspensão só pode ter lugar verificadas as condições aí enunciadas.
3. A decisão de suspensão impõe ao agente regras de conduta, em termos correspondentes aos referidos no artigo 52.º, necessárias à prevenção da perigosidade, bem como o dever de se submeter a tratamentos e regimes de cura ambulatórios apropriados e de se prestar a exames e observações nos lugares que lhe forem indicados.
4. O agente a quem for suspensa a execução do internamento é colocado sob vigilância tutelar dos serviços de reinserção social. É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 53.º e 54.º.
5. A suspensão da execução do internamento não pode ser decretada se o agente for simultaneamente condenado em pena privativa da liberdade e não se verificarem os pressupostos da suspensão da execução desta.
6. É correspondentemente aplicável:
a) À suspensão da execução do internamento o disposto no artigo 92.º e nos n.ºs 1 e 2 do artigo 93º;
b) À revogação da suspensão da execução do internamento o disposto no artigo 95.º.»
A previsão legal desta medida de segurança não privativa da liberdade encontra o seu esteio no princípio da proporcionalidade9, previsto no § 2.º do artigo 18.º da Constituição – a que já nos referimos -, permitindo que nos casos menos graves, em que ao processo de reintegração do agente da sociedade não é imprescindível a privação da liberdade, este ocorra sem privação daquela. A manutenção em liberdade do agente dos factos ilícitos constitui um maius face às soluções de clausura obrigatória, para o agente e para a comunidade, na medida em que neste está pressuposto um grande investimento na reinserção social do agente em liberdade, assegurando-lhe as condições de acesso ao tratamento adequado, de molde a permitir manter a sua liberdade, protegendo-se, do mesmo passo (ainda que apenas na medida possível) os bens jurídicos de terceiros.
Tendo esta medida algumas similitudes com a suspensão da execução da pena de prisão, aplicável aos imputáveis, não deverá, porém, com ela confundir-se. Pois que, contrariamente ao que sucede nesta, em que a simples ameaça do cumprimento da pena de prisão exerce sobre o condenado uma benévola coação psicológica para que não volte a delinquir; na suspensão da medida de segurança de internamento essa coação psicológica não funciona da mesma maneira, justamente em razão das condicionantes impostas pela anomalia psíquica que está na base da inimputabilidade. O que nestes casos verdadeiramente se giza é, apenas, proporcionar ao agente as condições de prosseguir um tratamento em liberdade, que o mantenha equilibrado e, por essa via, controlada a perigosidade, que impedirá a repetição da prática de factos ilícitos-típicos. É justamente por isso que a medida de suspensão da execução do internamento incorpora, necessariamente, um conjunto de regras de conduta, «em termos correspondentes às prevenidas no artigo 52.º CP, necessárias à prevenção da perigosidade, bem como o dever de se submeter a tratamentos e regime de cura ambulatórios apropriados e de se prestar a exames e observações nos lugares que lhe forem indicados»10 (artigo 98.º, § 3.º CP).
No contexto de uma sociedade justa e inclusiva, que até por imposição constitucional vamos coletivamente construindo, é suposto que os mais vulneráveis tenham efetivo acesso à proteção da comunidade.
Daí que, diversamente do juízo feito na sentença recorrida, consideremos mais ajustado o risco que subjaz à suspensão da execução do internamento, com efetiva mobilização dos serviços existentes na comunidade, os quais estão vocacionados justamente para garantir a todos o acesso a um patamar mínimo de dignidade, o que ademais vem imposto pelo princípio da proporcionalidade, previsto no § 2.º do artigo 18.º da Constituição (nas dimensões de adequação e idoneidade). E referimo-nos à proporcionalidade por ser a dimensão valorativa que incorpora uma função limitadora em matéria de medidas de segurança; em termos similares à culpa nos casos dos agentes que dela são capazes11 O que se mostra imprescindível para lograr as finalidades impregnadas na lei é, pois, nos termos já referidos, mobilizar os serviços existentes na comunidade, que (com as insuficiências que sabemos sempre existirem) dispõem de programas próprios e meios de prestação de cuidados e de serviços a pessoas frágeis, que se encontram no seu domicílio em situação de dependência psíquica, e que não conseguem por si só assegurar, temporária ou permanentemente, a satisfação das suas necessidades básicas (que na circunstância do caso presente são cuidados clínicos e medicamentosos).
Não se terá atentado que a arguida vem fazendo fisioterapia diariamente (por ter graves problemas de coluna e de mobilidade), para o que conta com a colaboração do sistema nacional de saúde, como se refere no facto 43.
É desse mesmo modo que se deverão mobilizar os serviços de apoio social e clínica, com capacidade para acudir à comprovada falta de retaguarda familiar da arguida, suprindo as necessidades de acompanhamento de que esta necessita:
- levá-la às consultas;
- e realizar a vigilância ativa sobre o regime terapêutico, em razão da doença psiquiátrica de que padece.
O facto de a arguida ser pobre e desvalida não pode ser fator de descriminação, em desfavor da sua dignidade e da sua liberdade, conforme imposto pelo princípio da igualdade (artigo 13.º da Constituição). Claro que para lograr o controlo médico e medicamentoso a que nos referimos se torna necessário acompanhamento tutelar, o qual pode e deve ser realizado pelos serviços de reinserção social. Sem que nos abstraiamos de duas componentes essenciais: a fragilidade da arguida (que é uma doente); e a dimensão real dos factos praticados (por referência aos quais reporta o perigo de repetição), cuja gravidade relativa se situa na fronteira do que convencionalmente se vem designando de pequena criminalidade ou de criminalidade de baixa intensidade.
Importa, pois, mobilizar os serviços públicos existentes, criados justamente para acudir às necessidades dos cidadãos que servem, prestando-lhes o apoio de que carecem. Claro que há sempre uma margem de risco prudencial pressuposta, que decerto valerá a pena correr.
A medida de segurança de internamento, cuja duração se fixará em dois anos, deverá ficar suspensa nos termos previstos no artigo 98.º CP, com acompanhamento pela DGRSP (dotada de técnicos muito competentes - ainda que, como é bem-sabido, também sempre insuficientes), que se posicionará como elo mobilizador e agregador dos serviços de apoio social e de saúde, bem assim da realização das diligências necessárias à regularidade das consultas médicas, de molde a controlar a perigosidade imanente, prevenindo (na medida do possível) o risco de reincidência. E desse modo prevenindo os riscos para os bens jurídico-penais em referência (artigos 53.º e 54.º ex vi artigo 98.º, § 4.º CP). A mera vigilância burocrática será, evidentemente, insuficiente – equivalendo mesmo a uma «burla de etiquetas» - por se não tratar de um efetivo «acompanhamento». Mas é este que é necessário e é este que a lei tem por referência, pelo que é o devido no contexto de um direito penal moderno, que também deste modo se reafirma. Por banda da arguida, o sucesso da medida de suspensão do internamento, impõe não apenas a sua comparência às consultas de psiquiatria, sempre que elas forem marcadas, bem assim como o cumprimento das prescrições farmacológicas (base do equilíbrio mental da arguida). Mas também evitará os contactos com a assistente e abster-se-á de arremessar quaisquer objetos, líquidos ou gases para o quintal desta. Breve: consideramos que a decisão recorrida, ao afastar a possibilidade de suspensão da execução da medida de segurança de internamento, não atentou devidamente nos valores em presença e, desse modo, desrespeitou o programa da lei.
Pelo que a mesma será alterada nos termos que se deixaram alinhavados.
III – DISPOSITIVO
Destarte e por todo o exposto, acordam Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora, em conferência:
1. Conceder integral provimento ao recurso interposto pela arguida, e, consequentemente, revogar a medida de segurança determinada na sentença recorrida;
2. Aplicar à arguida a suspensão da execução do internamento, como previsto no artigo 98.º CP, por um período máximo de 2 anos, mas findando quando o tribunal verificar cessado o estado de perigosidade criminal que lhe deu origem; sendo essa apreciação obrigatória decorrido um ano sobre o início do internamento ou sobre a decisão que o tiver mantido (artigo 93.º, § 1.º e 2.º CP);
3. Sobre a arguida recaindo em especial os seguintes deveres e regras de conduta: a. comparecer às consultas de psiquiatria, sempre que elas forem marcadas e lhe forem comunicadas, acompanhando quem para esse efeito for designado; b. cumprir as prescrições farmacológicas (base do seu equilíbrio mental); c. abster-se de quaisquer contactos com a assistente; d. abster-se de enviar quaisquer objetos, líquidos ou gases para o quintal da assistente ou interferir com o muro dela.
4. Determinar que a DGRSP, com a máxima urgência, no âmbito de um plano de reinserção social a elaborar (artigos 53.º e 54.º ex vi artigo 98.º, § 4.º CP) com vista aos objetivos traçados, concerte com os demais serviços da comunidade (nomeadamente com os serviços de saúde e as valências se apoio da Segurança Social), o acompanhamento da arguida de molde a assegurar a presença desta nas consultas médico-psiquiátricas periódicas e consequente plano de tratamento, ajustado à contenção dos efeitos delirantes da doença psiquiátrica adrede - fonte dos riscos que a medida judicial imposta visa justamente acautelar. 5. Sem custas (artigo 513.º, § 1.º CPP a contrario).
Évora, 25 de março de 2025
J. F. Moreira das Neves (relator)
Mafalda Sequinho dos Santos
Jorge Antunes
.............................................................................................................
1 A utilização da expressão ordinal (1.º Juízo, 2.º Juízo, etc.) por referência ao nomen juris do Juízo tem o condão de não desrespeitar a lei nem gerar qualquer confusão, mantendo uma terminologia «amigável», conhecida (estabelecida) e sobretudo ajustada à saudável distinção entre o órgão e o seu titular, sendo por isso preferível (artigos 81.º LOSJ e 12.º RLOSJ).
2 Em conformidade com o entendimento fixado pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no DR I-A de 28dez1995.
3 Com exceção dos que têm relevo exclusivamente cível e as redundâncias.
4 Américo Taipa de Carvalho, Direito Penal – Parte Geral, 2.ª ed., 2008, Coimbra Editora, p. 76. 5 Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Editorial Notícias, p. 417 e 467
6 Sobre a independência e relevância (face à anomalia psíquica) de situação conflitual cf. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Editorial Notícias, p. 470 (§ 741
7 Maria João Antunes, Penas e Medidas de Segurança, 2020 (reimp.), Almedina, pp. 124-125.
8 Maria João Antunes, Penas e Medidas de Segurança, 2020 (reimp.), Almedina, p. 125.
9 Neste sentido Maria João Antunes, Penas e Medidas de Segurança, 2020 (reimp.), Almedina, p. 124.
10 Maria João Antunes, Penas e Medidas de Segurança, 2020 (reimp.), Almedina, p. 124.
11 Neste sentido cf. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Editorial Notícias, p. 468 (§ 737).
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TRE
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https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/9fd513a10c6fdba980258c66002ed3a1?OpenDocument
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1,747,094,400,000
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IMPROCEDENTE
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2181/23.6T8SNT.L1-1
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2181/23.6T8SNT.L1-1
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AMÉLIA SOFIA REBELO
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Sumário
da responsabilidade da relatora, cfr. art. 663º, nº 7 do CPC.
:
1. A exoneração do passivo restante corresponde a benefício cujo pedido a lei coloca na exclusiva disponibilidade/vontade do devedor mas, requerendo-o e nele mantendo interesse, onera-o com um conjunto de obrigações erigidas a condições ou requisitos legais para a sua concessão.
2. A ausência de prestação nos autos e/ou ao fiduciário das informações solicitadas ao devedor constitui omissão que, no mínimo, manifesta falta de interesse do devedor em relação ao procedimento destinado à exoneração do passivo restante que requereu, e de falta de lisura e de compromisso compatível com a reeducação subjacente ao princípio do
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que informa o dito benefício, o que é sobejamente apto a preencher a negligência grave pressuposta pela gravidade da cessação antecipada do procedimento, tal como seria para a recusa da concessão da exoneração, e consequente definitiva preclusão do perdão do passivo que corporizou a sua situação de insolvência.
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[
"EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE",
"PERÍODO DE CESSÃO",
"DEVER DE INFORMAÇÃO",
"CESSAÇÃO"
] |
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
I – Relatório
1. A., casado, nascido em 1969, apresentou-se à insolvência em 07.02.2023, que foi declarada por sentença proferida em 27.02.2023, e deduziu incidente de exoneração do passivo restante, que foi deferido por despacho inicial (de autorização do período de cessão) proferido em 07.07.2023, notificado ao insolvente na sua própria pessoa e através do respetivo mandatário em 10.07.2023, e confirmado por decisão sumária de 10.11.2023 no âmbito do recurso de apelação que dele foi interposto pelo recorrente, tendo por objeto o segmento que fixou o rendimento disponível no montante equivalente a 1 RMMG, acrescido de ¼ e de 70% dos subsídios de férias e de natal auferidos pelo insolvente.
2. Em 03.07.2024 a Sr.ª fiduciária dirigiu comunicação ao insolvente para o endereço eletrónico
jlisboaleal@gmail.com
solicitando-lhe informação sobre os rendimentos auferidos entre julho de 2023 e junho de 2024, o respetivo NISS, e a senha atualizada de acesso à
SS Direta
com vista à elaboração do relatório anual, advertindo-o que a falta de envio dos elementos necessários à elaboração desse relatório pode cominar “
em multa processual ou mesmo na anulação da sentença de exoneração do passivo restante pelo tribunal.
”, com insistência pela mesma via em 08.07.2024.
3. Em 15.07.2024 a Srª. fiduciária apresentou relatório anual sobre o período de cessão informando que em outubro de 2023 remeteu carta ao insolvente, que este não apresentou comprovativo de rendimentos nem respondeu aos pedidos para envio de documentação, que em contacto telefónico conseguido com o insolvente em abril de 2024 este declarou desconhecer o resultado do recurso que interpôs do despacho inicial e que, tendo-o informado, manifestou vontade em reunir com a Srª fiduciária mas não quis agendar data e até ao presente não foi realizada reunião.
4. Em 18 e 23.07.2024 o mandatário do insolvente foi notificado dos requerimentos de 17 e 23.07.2024 dos credores Eos Credit Funding DAC e SD DEBT Portfólios 2, SA requerendo a notificação do insolvente para junção dos comprovativos dos rendimentos sob pena de ser requerida a cessação antecipada do procedimento de exoneração, nada tendo dito ou requerido.
5. Em 22.10.2024 o credor Eos Credit requereu a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante nos termos do art. 243º, nº 1, al. a) alegando violação do art. 239º, nº 4, al. a) e d) do CIRE por falta de junção das informações relevantes, do que o mandatário do insolvente foi notificado em 23.10.2024.
6. Por despacho de 20.11.2024 foi ordenada a notificação do insolvente, com cópia do relatório apresentado, para se pronunciar “
relativamente à falta de entrega das quantias determinadas no despacho inicial que deu início ao período de cessão do rendimento disponível, bem como, para prestar(em) as informações relativas à sua situação pessoal e económica, incluindo a morada atualizada, devendo juntar os respetivos comprovativos, sob pena de cessação antecipada do procedimento de exoneração.
”, notificação que foi cumprida na pessoa do insolvente e na do respetivo mandatário.
7. Nada tendo sido dito ou requerido, por despacho de 16.01.2025 foi ordenada a notificação do insolvente, fiduciário e credores para se pronunciaram sobre a cessação antecipada do procedimento de exoneração (art. 243º, nº 3 do CIRE), com cópia do relatório apresentado pelo fiduciário.
8. Responderam à notificação a Sr.ª fiduciária e os credores Scalabis-Stc, SA e Eos Credit Funding, Dac pronunciando-se pela cessação antecipada da exoneração. Mais respondeu o insolvente, declarando opor-se ao pretendido por considerar “
não ter cometido qualquer irregularidade que leve a tomada da medida proposta.
” e que “
inexiste motivos para que seja proferido qualquer despacho que não seja da manutenção da exoneração do passivo
”.
9. Em 20.02.2025 foi proferida decisão de cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante requerido nos autos pelo insolvente, com os seguintes fundamentos:
Tendo em atenção os fundamentos do requerimento de cessação antecipada, encontra-se verificado o requisito enunciado na alínea a) do n.º 1 do art.º 243º do CIRE por violação do disposto no art.º 239º, n.º 4, al. c), que estabelece que durante o período da cessão o devedor fica ainda obrigado a não
ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira por qualquer título, e a informar o Tribunal e o Fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado.
Com efeito, pese embora interpelado pelo fiduciário, bem como pelo Tribunal a prestar informações atualizadas quanto à sua situação socioeconómica e profissional, incluindo o fornecimento de morada atualizada, o devedor nada informou, nem cedeu os rendimentos a que estava obrigado.
Além disso, o incidente sempre procederia, em conformidade com o n.º 3 do art.º 243º do CIRE, segundo o qual a exoneração do passivo restante é sempre recusada se o devedor, sem motivo razoável, não fornecer no prazo que lhe for fixado informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações, o que se verificou no caso em apreço, conforme resulta das notificações que lhe foram dirigidas pelo tribunal.
10. Inconformado, o insolvente apresentou o presente recurso requerendo a revogação daquela decisão. Formulou as seguintes conclusões:
1. A sentença recorrida viola o artº 238º n° 1 alínea d) do CIRE
2. Pois tem de existir cumulativamente três requisitos para que fosse possível proferir tal decisão
3. O prejuízo para os credores consiste na desvantagem económica diversa do simples vencimento de juros, que não são a consequência normal do incumprimento
4. O prejuízo a que se refere
0
art° 238° n° 1 alínea d) deverá corresponder a um prejuízo concreto que, nas concretas circunstâncias do caso, tenha sido efectivamente sofrido pelos credores em consequência do atraso à apresentação a insolvência
5. Cabia aos credores, o dever de virem reclamar tais prejuízos o que não aconteceu
6. Nem fizeram efectiva prova desse prejuízo
7. Quanto ao terceiro requisito, existe omissão pois o credor tentou por todas as formas melhorar a sua vida, o que infelizmente não conseguiu
8. Qualquer dos três requisitos não foram devidamente valorados e se o fossem a decisão seria certamente diferente
9. Alem de que a insolvência já foi decretada a mais de 6 anos”
tr
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10. O insolvente não pode com
0
que não tem
II – Objeto do recurso
Nos termos dos arts. 635º, nº 5 e 639º, nº 1 e 3, do Código de Processo Civil, o objeto do recurso, que incide sobre o mérito da crítica que vem dirigida à decisão recorrida, é balizado pelo objeto do processo, tal qual como o mesmo surge configurado nos autos pelas partes ou é legalmente tipificado e as concretas questões nele suscitadas, e destina-se a reapreciar e, se for o caso, a revogar ou a modificar decisões proferidas, e não a analisar e a criar soluções sobre questões que não foram sujeitas à apreciação do tribunal
a quo
e que, por isso, se apresentam como novas, ficando vedado, em sede de recurso, a apreciação de novos fundamentos de sustentação do pedido ou da defesa. Acresce que o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas das questões de facto ou de direito suscitadas que, contidas nos elementos da causa, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, sendo livre na aplicação do direito (cfr. art. 5º, nº 2 do CPC).
Nesta senda assinala-se a manifesta desconexão lógico-jurídica entre as alegações de recurso e o objeto da decisão recorrida posto que apenas o (parco) teor da conclusão 10, em conexão lógica tão só com os arts. 28 e 29 da motivação
[1]
, aparenta respeitar ao objeto da mesma – cessação antecipada do incidente de exoneração – e às questões que a fundamentam – falta de prestação de informação e de cedência de rendimentos pelo insolvente. As demais conclusões apontam para questões jurídicas atinentes com os pressupostos de rejeição (inicial) do incidente de exoneração do passivo restante nos termos previstos no art. 238º, nº 1, al. d)
[2]
do CIRE citado nas alegações – oportunidade da temporal da apresentação à insolvência face à data em que a mesma se verificou e prejuízo para os credores decorrente da apresentação tardia -, que não correspondem ao objeto nem aos fundamentos de facto e de direito da decisão recorrida, razão pela qual não são passíveis de ser consideradas na apreciação da pretensão recursiva por corresponderem a questões estranhas ao objeto da decisão recorrida e que, por isso, não têm a virtualidade de contrariar os respetivos fundamentos e suportar a sua modificação, anulação ou revogação.
Em conformidade, considerando o teor da decisão recorrida e a referida parte prestável das alegações e conclusões de recurso, cumpre apreciar se, como considerou a decisão recorrida, existe fundamento legal para a cessação antecipada do incidente de exoneração do passivo restante, isto é, antes do termo do período legal de cessão do rendimento disponível autorizado pelo despacho inicial proferido em 10.07.2023.
III – Fundamentação
A) De facto
O tribunal recorrido elencou e considerou os seguintes factos, que sintetizam as incidências processuais acima relatadas:
- Por requerimento apresentado em 15.07.2024, a fiduciária apresentou o relatório referente ao primeiro ano do período de cessão e comunicou que o devedor não apresentou qualquer comprovativo de rendimentos, nem obteve resposta aos pedidos para envio de documentação;
- No mesmo requerimento a fiduciária fez constar que: “Contudo da conversa telefónica conseguida pela fiduciária no final do mês de Abril de 2024, o insolvente foi informado da decisão de recurso pois estava convicto que não havia ainda a resposta ao recurso; manifestou vontade em reunir no escritório da Fiduciaria porém não quis agendar data pelo que até ao presente não se realizou tal reunião, mas informou que se encontrava em graves dificuldades económicas porque a cônjuge estava insolvente noutro processo e tinham de fazer depósitos mensais elevados para a conta da massa insolvente da mulher”
- Na sequência de despacho proferido a 20.11.2024, o devedor foi notificado para pronunciar(em)-se relativamente à falta de entrega das quantias determinadas no despacho inicial que deu início ao período de cessão do rendimento disponível, bem como, para prestar(em) as informações relativas à sua situação pessoal e económica, incluindo a morada atualizada, devendo juntar os respetivos comprovativos, sob pena de cessação antecipada do procedimento de exoneração;
- O devedor não respondeu à notificação realizada;
Procedeu-se à audição dos interessados quanto à cessação antecipada do benefício requerido, tendo os credores Scalabis, EOS proposto a cessação antecipada do procedimento.
O devedor alegou tabelarmente não existirem motivos para cessação.
Não requereu nem juntou quaisquer documentos que impusessem alteração da obrigação de cessão fixada.
B) De Direito
Numa breve incursão pelo instituto da exoneração do passivo restante, cumpre anotar que constitui este o facto determinante da iniciativa da apresentação à insolvência pelo devedor singular (senão em todos pelo menos na grande maioria dos casos): alcançar a exoneração do passivo restante, libertando-se através deste benefício legal de um passivo que com toda a probabilidade o acompanharia ao longo de grande parte, senão de toda a sua vida, com os consequentes e recorrentes constrangimentos, no imediato logo ao nível das disponibilidades financeiras e, no mediato ao nível da sua paz pessoal, familiar, profissional, com o consequente reflexo no coletivo social ao nível da integração sócio-económico-profissional do indivíduo e respetivo agregado familiar. Deste concreto instituto decorre que a especificidade do processo de insolvência singular - para além da natureza da pessoa jurídica que dele é sujeito passivo (que, contrariamente ao que sucede com as pessoas coletivas, não se ‘extingue’ com o encerramento do processo) -, reside no referido benefício legal que através da insolvência o devedor pode ver legalmente reconhecido, traduzido na extinção ou perdão legal do seu serviço de dívida através da concessão da exoneração do passivo que restar em dívida depois de esgotado o produto da liquidação e decorrido que seja o período de cessão do rendimento disponível (também designado período de ‘provação’), durante o qual o devedor fica adstrito ao cumprimento de determinadas obrigações, previstas pelo art. 239º nº4 do CIE, sendo as mais relevantes a cessão/entrega, durante o período de três anos, dos rendimentos disponíveis, e a obrigação de prestar as informações, desde logo, as necessárias ao apuramento dos rendimentos disponíveis, que são em cada momento determinados por contraposição entre os rendimentos auferidos e o montante inicialmente fixado nos autos como o necessário à subsistência minimamente condigna do devedor e do respetivo agregado familiar. A par com a referida finalidade probatória do período de cessão e das obrigações a que na sua vigência o devedor fica adstrito, no art 241º a lei mais prevê a afetação dos rendimentos que venham a ser objeto de cessão: à cabeça, o pagamento das custas em dívida da insolvência, os reembolsos devidos pelo adiantamento de pagamentos pelos cofres, e a remuneração do Fiduciário; o remanescente é destinado à distribuição pelos credores da insolvência, caso subsista para o efeito.
O propósito de reabilitação do devedor como elemento teleológico informador da interpretação de todo o regime legal do instituto da exoneração do passivo restante não prescinde e, por isso, não desonera o devedor de demonstrar que é merecedor da oportunidade que a exoneração do passivo restante lhe concede, através do perdão de dívidas e do consequente sacrifício dos interesses dos seus credores. Assumindo o evidente conflito de interesses entre o devedor e os seus credores, não obstante o propósito protetor do devedor numa lógica de segunda oportunidade – o
fresh start -
como elemento teleológico informador da interpretação de todo o regime legal deste instituto, o nosso legislador assumiu que o devedor não deve ser exonerado em qualquer circunstância e, por isso, e também para acautelar o recurso abusivo a esse instituto, não prescindiu da imposição de um período probatório (atualmente e desde 11 de abril de 2022 com a duração de três anos
[3]
) durante o qual, e por referência às obrigações
[4]
previstas no art. 239º, nº 4, o devedor deve revelar ser merecedor da oportunidade que a exoneração do passivo restante lhe concede, através do perdão de dívidas e do consequente sacrifício dos interesses dos seus credores – o
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– o que traduz uma solução de compromisso na gestão do conflito dos interesses em evidente antítese no instituto da exoneração do passivo restante: por um lado, o interesse do devedor em libertar-se das suas dívidas, por outro lado o interesse dos credores na satisfação dos correspetivos créditos. Nesta dicotomia, em bom rigor as obrigações previstas pelo art. 239º, nº 4 só o são no restrito contexto do período de cessão porque, por referência à exoneração do passivo restante requerida pelo devedor, mais se enquadram na figura do ónus associado ou emergente de um direito, enquanto requisito ou exigência a cumprir (pelo devedor) com vista à obtenção de um resultado em seu benefício e sob pena de o mesmo não lhe ser concedido. Benefício/sacrifício que, nas palavras de Cláudia Oliveira Martins
[5]
, justifica afirmar que
o processo de insolvência, como primeiro pressuposto para o pedido de exoneração do passivo restante, deixou de ser o processo dos credores para passar a ser o processo dos devedores
.
Em síntese, a exoneração do passivo restante corresponde a benefício cujo pedido a lei coloca na exclusiva disponibilidade/vontade do devedor mas, requerendo-o e nele mantendo interesse, onera-o com um conjunto de obrigações erigidas a condições ou requisitos legais para a sua concessão. Com o acento tónico na finalidade que justifica a exoneração do passivo restante – reabilitação do devedor em benefício de uma visão sistémica da economia, no ciclo e de acordo com os papéis dos que nela intervêm -, é na ponderação da iniciativa e interesses do devedor, por um lado, e dos direitos dos credores, por outro, que devem ser interpretadas as normas reguladoras do incidente e a natureza ou âmbito das prorrogativas e obrigações que dele decorrem para os devedores, e resolver os litígios que surjam no seu âmbito.
No contexto do período probatório do incidente de exoneração do passivo restante, dispõe o art. 239º, nº 4 que
Durante o período da cessão, o devedor fica ainda obrigado a:
a) Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado;
b) Exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto;
c) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão;
d) Informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respectiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego;
e) Não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores.
A par com a obrigação de entrega do rendimento disponível, durante o período de cessão o devedor beneficia de proteção perante os credores da insolvência na medida em que, tal qual como ocorre até ao encerramento da insolvência, estes não podem executar bens do devedor para satisfazerem créditos sobre a insolvência (art. 242º, n.º 1 do CIRE). Justifica-se por isso que, pelo menos no termo de cada ano do período de cessão, seja verificado o (in)cumprimento, pelo insolvente, dos ónus que sobre si recaem no período já decorrido para, se for o caso, determinar a sua cessação antes do termo legal previsto para extinguir as limitações que da sua pendência decorrem para o exercício dos direitos dos credores sobre o insolvente, destacando-se no caso a obrigação de informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado, cuja violação, conforme se extrai do confronto do art. 243º, nº 3, segunda parte do CIRE, constitui fundamento bastante para a cessação antecipada ou recusa da exoneração do passivo restante, atenta a evidente e direta instrumentalidade do ónus de informação na sindicância do cumprimento do ónus de entrega dos rendimentos disponíveis durante o período de cessão.
Assim, em correlação com aqueles deveres, do art. 243º, nº 1 do CIRE constam previstos os fundamentos da cessação antecipada do procedimento de exoneração. A saber, quando:
a) O devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência;
b) Se apure a existência de alguma das circunstâncias referidas nas alíneas b), e) e f) do n.º 1 do artigo 238.º, se apenas tiver sido conhecida pelo requerente após o despacho inicial ou for de verificação superveniente;
c) A decisão do incidente de qualificação da insolvência tiver concluído pela existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência.
Acrescenta o nº 3 daquele artigo que
Quando o requerimento se baseie nas alíneas a) e b) do n.º 1, o juiz deve ouvir o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência antes de decidir a questão; a exoneração é sempre recusada se o devedor, sem motivo razoável, não fornecer no prazo que lhe seja fixado informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações, ou, devidamente convocado, faltar injustificadamente à audiência em que deveria prestá-las.
[6]
Sintetizando, uma vez autorizado o período de cessão, nos termos do art. 243º, nº 1 são requisitos da sua cessação antecipada (e, cfr. art. 244º, nº 2, da recusa da concessão da exoneração do passivo restante), i) a violação das obrigações previstas no art. 239º do CIRE
[7]
, ii) com dolo ou culpa grave, iii) o prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência, iv) e o nexo de causalidade entre a conduta dolosa ou gravemente negligente do devedor e o dano para a satisfação dos credores da insolvência.
Resulta da decisão recorrida que a cessação antecipada do período de cessão por ela decretado vem factualmente suportada no facto de o devedor não ter prestado as informações que lhe foram solicitadas pela Sr.ª fiduciária e pelo tribunal quanto à sua situação sócio-económica, e legalmente fundamentada na al. a) do nº 1 do art. 243º por referência à obrigação de “[n]
ão ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado
”. Da conjugação deste último segmento com a inicial transcrição da al. a) do nº 4 do art. 239º é possível extrair que a decisão recorrida cessou o incidente de exoneração por ter julgado verificada a violação do dever de informação durante o período de cessão, correspondente ao teor da al. a) do nº 4 do art. 239º, pelo que só por lapso de simpatia, que manifestamente decorre do contexto da decisão, nela foi indicada a al. c) em vez da referida al. a) do nº 4 do art. 239º.
Julgamento que se confirma.
Em causa nos presentes autos está o fundamento previsto pelo art. 243º, nº 1, al. a) por referência à obrigação de informação imposta pelo art. 239º, nº 4, al. a), assentando a decisão recorrida na violação dessa obrigação por ausência de resposta do devedor às notificações que lhe foram dirigidas pelo tribunal e pelo fiduciário para, junto deste, comprovar a respetiva situação laboral e os rendimentos por si auferidos. Efetivamente, os fundamentos de facto supra relatados e considerados pela decisão recorrida desembocam objetiva e manifestamente na violação do dever de informação por ela considerado e previsto pelo art. 239º, nº 1, al a), e já não na violação do dever de entrega dos rendimentos disponíveis, que pressupõe sejam conhecidos, o que não é o caso, votando à irrelevância a alegação, contida na conclusão 10 das alegações de recurso, de a falta de entrega de rendimentos se ter devido ao facto de o insolvente os não ter.
A decisão recorrida mais considerou o facto de o insolvente não ter alegado um qualquer motivo razoável para a falta de prestação dos elementos que lhe foram solicitados (para verificação dos rendimentos por si auferidos e apuramento, se fosse o caso, dos que fossem objeto de cessão) e o facto de, nos termos do art. 243º, nº 3, tal conduta determinar sempre a recusa da exoneração do passivo. O que bem se compreende na medida em que a ausência de prestação das informações que lhe foram solicitadas e das que, de mote próprio, deveria ter prestado (atinentes com os rendimentos auferidos em cada um dos três anos do período de cessão decorridos)
[8]
, representam um desvalor de ação concretizador, no mínimo, de negligência grave, pois que manifestam a total desconsideração a que o recorrente votou o procedimento que em seu benefício tomou a iniciativa de requerer e os ónus que dele para si emergiram, em manifesta desconformidade com o dever de cuidado a que estava obrigado, sendo certo que não coloca em causa que tinha conhecimento do dever de informação e de colaboração que sobre si recaíam, nem em momento algum – sequer quando no cumprimento do art. 244º foi notificado para se pronunciar previamente à prolação da decisão recorrida -, alegou qualquer impedimento suscetível de justificar o incumprimento desse ónus, mais concretamente, de prestar as informações que lhe foram solicitadas, atinentes com a sua situação profissional ou perante a segurança social e o centro de emprego, e com os rendimentos que auferiu durante os dois últimos anos do período de cessão, quer na eventual situação de desempregado, quer na situação oposta de exercício de atividade profissional. Omissão que, no mínimo, manifesta falta de interesse do devedor em relação ao procedimento destinado à exoneração do passivo restante que requereu, e de falta de lisura e de compromisso compatível com a reeducação subjacente ao princípio do
fresh start
que informa o instituto da exoneração do passivo restante, o que é sobejamente apto a preencher a negligência grave pressuposta pela gravidade da consequência recusa da concessão da exoneração e consequente definitiva preclusão, do perdão do passivo que corporizou a sua situação de insolvência.
Ainda que por referência ao art. 238º, nº 1, al. d) do CIRE, alega o recorrente que não causou qualquer prejuízo aos credores, conclusão que assenta na alegada – mas, conforme já referido, não comprovada - ausência de rendimentos disponíveis e suscetíveis de objeto da obrigação de cessão.
Conforme já acima anotado e consta realçado por acórdão de 14.07.2020 desta Relação e secção
[9]
, “
o dever de informação sobre os rendimentos é absolutamente crucial por ser instrumental à determinação do rendimento a ceder e à medida da satisfação dos credores”.
Daí que, conforme defendem Luis Carvalho Fernandes e João Labareda
[10]
, haja “
casos em que o juiz deve sempre recusar a exoneração. Assim o impõe a segunda parte do nº 3
[do art. 243º]
, segundo qual deve haver recusa quando, sem invocar motivo razoável: a) o devedor não forneça, no prazo que lhe for fixado, informações que comprovem que cumpriu as suas obrigações
[11]
;
b) o devedor, tendo sido para o efeito devidamente convocado, falte à audiência em que devia prestar essas informações.
[12]
No mesmo sentido, acórdão desta Relação e secção de 23.02.2021
[13]
:
I. Para o preenchimento da previsão do art.º 243º, n.º 1, a) do CIRE é necessário, para além da violação dos deveres aí previstos por parte do insolvente, que se verifique em concreto um prejuízo para os credores da insolvência e da omissão de informações resulta que não se pode avaliar da existência desse prejuízo.//II - Mas já o mesmo não se pode dizer quanto à previsão do art.º 243º, n.º 3, parte final do CIRE, que se julga consistir na previsão pelo julgador das consequências aplicáveis a casos como o dos autos, em que há omissão de informação, sem que seja possível enquadrar a mesma nas previsões anteriores, precisamente por não ser possível apurar do concreto prejuízo para os credores.//III - A não ser assim, resultaria que a omissão de informações por parte dos insolventes redundaria num benefício para os mesmos – bastava nada dizer ou informar (sendo este um ónus que a Lei impõe a seu cargo, como contrapartida do benefício que supõe a exoneração do passivo restante) e, já agora, nenhum rendimento entregar, para que não se pudesse concluir pela verificação de todos os requisitos para a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante, uma vez que não seria possível averiguar do concreto prejuízo para os credores.
E ainda acórdão de 22.06.2021
[14]
, sumariado nos seguintes termos:
1.Tendo o devedor sido notificado várias vezes para prestar as informações previstas no artigo 239.º, n.º 4, alínea a), do CIRE, por remissão do artigo 243.º, n.º 1, alínea a), do mesmo diploma legal, e nada tendo dito ou justificado, tal comportamento revela um elevado grau de imprudência e total desinteresse pelo cumprimento das obrigações a que estava adstrito, pelo que, mesmo que não seja uma conduta dolosa, é violadora de forma gravemente negligente das referidas obrigações.//2. Trata-se de comportamento ilícito que tem como última consequência a impossibilidade de apuramento da sua situação económica, em prejuízo do interesse dos credores da insolvência, preenchendo, desse modo, a previsão do n.º 3, parte final, do artigo 243.º do CIRE, justificando-se, consequentemente, a recusa da exoneração do passivo restante.
Termos em que se conclui pelo acerto da decisão recorrida, e consequente improcedência da apelação.
IV – Decisão
Em conformidade com o exposto, julga-se a apelação improcedente, com consequente confirmação e manutenção da decisão recorrida.
Tendo decaído na pretensão recursiva, as custas da apelação são a cargo do recorrente (cfr. art. 527º, nº 1 e 2 do CPC).
Em 13.05.2025
Amélia Sofia Rebelo
Nuno Teixeira
Paula Cardoso
_______________________________________________________
[1]
Com o seguinte teor:
“
28. E não pode ser recusado a exoneração por não ter entregue valores a massa ou não ter entregue as declarações anuais de rendimentos
29. Acontece que o insolvente não tendo rendimentos não entregou nada porque o não tinha
”.
[2]
Prevê que
O pedido de exoneração é liminarmente indeferido se: (…) d) O devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica;
[3]
Alteração introduzida pela Lei nº 9/2022 de 11.01 ao art. 239º, nº 2 do CIRE.
[4]
No rigor jurídico correspondem a ónus posto que a sua inobservância não implica qualquer sanção ou perda para o devedor, mas ‘apenas’ a ausência de ‘ganho’, no caso, a não obtenção de um benefício, consubstanciado no referido excecional perdão de dívidas.
[5]
In Revista de Direito da Insolvência nº 0, Almedina 2016, p. 215.
[6]
Sobre este específico fundamento de recusa da exoneração, entre outros, acórdão desta Relação de
24.01.2023
.
[7]
Do art. 243º, nº 2 decorre que como fundamento de recusa estão excluídos os factos isolados (não reiterados ou continuados) sobre os quais tenha decorrido mais de seis meses à data em que são invocados pelo interessado que a requeira (prazo introduzido pela Lei nº9/2022 de 11.01 em substituição do prazo de um ano da redação original do preceito).
[8]
Anota-se que o despacho inicial de autorização do período de cessão foi notificado ao recorrente também na sua pessoa, e dele constava expressamente que durante o período de cessão estava obrigado a
Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado;
e a
Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão;
[9]
Proc. 2049/14.7TBSXL.L2, relatado por Fátima Reis Silva e subscrito pela ora relatora na qualidade de 2ª adjunta, disponível na página da dgsi, como todos os demais citados.
[10]
Estudos sobre a Insolvência, Quid Iuris, 2009, p. 290.
[11]
Nas quais se integra o dever de informação sobre a sua situação profissional e rendimentos que aufere, pois só mediante tais informações é possível aferir, e comprovar, se o devedor dispõe de rendimentos objeto de cessão e, em ultima análise, se cumpre ou não a obrigação de entrega dos rendimentos disponíveis.
[12]
No mesmo sentido, Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, 2015, p. 557, Pedro Pidwell, Revista de Direito da insolvência, nº0, p. 207, e Leticia Marques, tese de doutoramento, disponível em
https://revistas.ulusofona.pt/index.php/rfdulp/article/view/6308
. Na jurisprudência, acórdãos da RP de 24.09.2020, processos nº 2160/15.78STS.P1 e nº 755/18.6T8AMT-B.P1 (aduzindo-se neste que na situação prevista no art. 243º, nº 3 do CIRE
não se exige que a omissão de prestação de informações determine prejuízo para a satisfação dos direitos dos credores, constituindo a recusa de exoneração uma sanção para o devedor inadimplente
.), de 12.10.2020, proc. nº 192/17.0T8VNG-A.P1, e acórdão da RC de 08.05.2018, proc. nº 110/14.7TBSPS.C1.
[13]
Proc. 911/15.9T8BRR.L1, relatado por Vera Antunes e subscrito pela ora relatora na qualidade de 1ª adjunta.
[14]
Proc. 12104/18.9T8SNT.L1, relatado por Adelaide Domingues e subscrito pela ora relatora na qualidade de 2ª adjunta.
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TRL
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https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/2d57932e64daca7c80258c96002ebef8?OpenDocument
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1,750,118,400,000
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PARCIALMENTE PROCEDENTE
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2638/21.3T8OER.L1-7
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2638/21.3T8OER.L1-7
|
DIOGO RAVARA
|
Sumário
:
[1]
-
[2]
-
[3]
-
[4]
I. O não exercício pelo Tribunal
a quo
, do poder-dever de levar a cabo diligências oficiosas de prova (art. 411º do CPC), não configura nulidade processual (art. 195º, nº 1 do CPC); embora possa motivar a anulação do julgamento pelo Tribunal da Relação com fundamento na insuficiência da decisão probatória (art. 662º, nº 2, al. c), e nº 3, al. a) do CPC);
II. O art. 1043º, nº 2 do CC consagra uma presunção elidível, mediante a qual, feita a prova do facto indiciante , no caso a “inexistência de documento onde as partes tenham descrito o estado dela ao tempo da entrega” se alcança da demonstração da realidade indiciada, a saber o “bom estado” da coisa locada no referido momento temporal.
III. O funcionamento desta presunção rege-se pelo disposto no art. 350º do CC, embora revele duas particularidades: o facto indiciante é aparentemente um facto negativo, e a realidade indiciada corresponde a um conceito indeterminado.
IV. Porém o facto indiciante só na sua aparência constitui um facto negativo, o que significa que se tem por demonstrado a menos que se apure a concreta existência do
documento onde as partes tenham descrito o estado da coisa locada ao tempo da sua entrega
ao locatário
V. Cabe ao locatário alegar e provar a existência de concretos defeitos ou avarias da coisa locada que permitam concluir que, quando a recebeu, esta não estava em bom estado (art. 342º, nº 2 do CC).
VI. Por outro lado, sendo a realidade indiciada não um facto ou conjunto de factos, mas um conceito indeterminado, a não elisão da presunção não pode conduzir à inclusão, no elenco de factos provados, de uma proposição que se traduza na afirmação genérica de que a coisa estava em bom estado quando foi entregue ao locatário. Nessas circunstâncias, o “bom estado” da coisa locada ao tempo da celebração do contrato é apenas considerado em sede de apreciação jurídica da causa.
VII. Não obstante, se o locador alegar factos concretos que consubstanciem o alegado “bom estado da coisa” no momento da entrega da mesma ao locatário, pode vir a conseguir a sua demonstração, por efeito da referida presunção, bastando para tal que o locatário não logre fazer a prova do contrário (art. 350º, nº 2 do CC).
VIII. O pedido de condenação da ré locatária no pagamento da quantia correspondente ao custo da reparação do veículo locado, formulado no contexto da aplicação do art. 1044º do CC tem como fundamento um dano futuro previsível.
IX. Apurando-se que a autora, na pendência da causa, vendeu o veículo locado, forçoso será concluir que a mesma não sofrerá tal dano, razão pela qual a pretensão indemnizatória descrita em VII necessariamente improcede.
X. Nas circunstâncias referidas em VII e VIII admite-se que a locadora poderá ter sofrido um dano correspondente à diferença entre o preço da venda e o valor que teria obtido se o veículo locado não tivesse sofrido os estragos que sofreu, mas a consideração de tal dano pressupunha a alteração simultânea do pedido e da causa de pedir, em articulado superveniente, mediante a alegação dos factos consubstanciadores deste dano (a saber, o preço pelo qual a venda foi efetuada e o valor comercial que o veículo teria se não tivesse sofrido os mencionados estragos).
_______________________________________________________
[1]
Da responsabilidade do relator - art.º 663º nº 7 do Código de Processo Civil aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26-06.
[2]
Neste acórdão utilizar-se-á a grafia decorrente do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, no entanto, nas citações, a grafia do texto original.
[3]
Todos os acórdãos citados no presente aresto se acham publicados em
http://www.dgsi.pt/
e/ou em
https://jurisprudencia.csm.org.pt/
. A versão eletrónica deste acórdão contém hiperligações para todos os arestos nele citados.
[4]
No presente aresto designaremos o Código Civil e o Código de Processo Civil pelas siglas “CC” e “CPC”, respetivamente.
|
[
"CONTRATO DE ALUGUER DE VEÍCULO",
"PRESUNÇÃO DE BOM ESTADO",
"AVARIA",
"RESOLUÇÃO DO CONTRATO",
"INDEMNIZAÇÃO"
] |
Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
1. Relatório
A …
[1]
e B …
[2]
intentaram a presente ação declarativa com processo comum contra C …
[3]
e D …
[4]
, deduzindo os seguintes pedidos:
“Ser declarada a resolução judicial do contrato celebrado entre as partes, com efeitos retroativos à data de 05/01/2021;
Devem os RR. ser condenados no pagamento aos AA. da quantia de € 27.300,26 (vinte e sete mil e trezentos euros e vinte e seis cêntimos) nos termos do preceituado nos artigos 798.º e 799.º do Código Civil.”
Para tanto alegaram, em síntese, que:
-
Os autores são casados um com o outro, no regime da comunhão de adquiridos;
-
A autora celebrou com os réus um contrato escrito nos termos do qual cedeu à ré o uso de determinado veículo automóvel, por tempo indeterminado e mediante contrapartida mensal em dinheiro, bem como outros encargos, como os decorrentes do seguro do mesmo veículo;
-
O réu outorgou o mesmo contrato na qualidade de fiador da ré;
-
A ré enviou ao autor uma mensagem de correio eletrónico, manifestando rescindir o contrato em apreço;
-
Tal comunicação é ineficaz, porque o autor não é parte no mencionado contrato;
-
Os autores sempre se opuseram à resolução do contrato pela ré;
-
Quem incumpriu o contrato foi a ré porquanto:
o
Incorreu repetidamente em mora no pagamento das mensalidades ajustadas;
o
não pagou qualquer montante a título de indemnização por mora;
o
não liquidou diversas prestações a título de prémio de seguro automóvel;
o
não entregou o veículo para reparação num concessionário da marca, como resultava do contrato;
o
não substituiu os pneus da viatura aquando da sua
entrega
aos autores;
o
aquando da entrega do veículo aos autores o mesmo encontrava-se avariado, necessitando de reparação.
Da análise da petição inicial decorre que o valor global de € 27.300,26 corresponde à soma das seguintes quantias
[5]
:
i. € 14.657,28, correspondente ao custo previsível da reparação da viatura;
ii. € 1.845,00, referente à quantia despendida com o depósito da viatura em oficina;
iii. € 8.200,00, a título de alugueres e “reforços” vencidos nos meses de junho de 2020 a dezembro do mesmo ano;
iv. € 1.640,00 a título de
Citados os réus, apenas o réu contestou, defendendo-se por impugnação, e concluindo pela improcedência da ação e consequentemente, pela sua absolvição dos pedidos deduzidos pelos autores.
Seguidamente foi proferido despacho dispensando a realização da audiência prévia, procedendo ao saneamento tabelar da causa, identificando o objeto do litígio, enunciando os temas da prova, e admitindo os meios da prova requeridos pelas partes.
Subsequentemente teve lugar a audiência final, após a qual veio a ser proferida sentença julgando a ação totalmente improcedente, e absolvendo os réus do pedido.
Inconformados, os autores interpuseram o presente recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:
1. No âmbito dos presentes autos está em causa o contrato celebrado entre a Autora, a 1.ª Ré e o 2.º Réu (fiador), a 19/11/2019 no qual a A. concedeu à 1.ª R. o gozo de um veículo Jaguar XE, do qual é proprietária, mediante o pagamento mensal de €600,00, vencida ao dia 20 de cada mês, para além de serem devidos reforços ao longo da execução do contrato
2. Ficou ainda acordado que a 1.ª Ré pagaria as prestações do seguro, no qual ficou identificada como condutora habitual da viatura.
3. Sucede que, além do incumprimento do pagamento pontual das prestações que se vinha verificando por parte da 1.ª Ré, esta, oito meses oito meses e mais de três mil quilómetros percorridos desde o início do contrato, veio, em Junho, comunicar uma suposta avaria da viatura aos Autores, tendo “largado” o veículo numa oficina desconhecida pelos primeiros – incumprindo o contratualmente acordado pelas partes de que o veículo seria colocado sempre numa oficina da marca Jaguar -, pretendendo fazer resolver retroactivamente o contrato, pese embora estivesse em mora.
4. A 1.ª Ré, advogada de profissão e devidamente representada por defensor oficioso, não contestou, não esteve presente em nenhuma sessão de julgamento e não trouxe aos autos a sua versão dos factos, não tendo impugnado o alegado pelos Autores nem a prova documental por estes apresentada.
5. Os AA. foram a única parte a produzir prova - quer documental, quer testemunhal – sendo que as testemunhas ouvidas em julgamento, que observaram o veículo e até contactaram, algumas delas, com a 1.ª Ré, corroboraram o articulado na PI.
6. Porém, e fruto de uma incompreensível motivação, o Tribunal recorrido, contrariando toda a prova produzida e contrariando, inclusivamente, presunções legais, quase substituindo a parte revel, absolveu os RR. do pedido.
7. E pese embora o 2.º R tenha contestado, impugnou os factos 15.º, 17.º a 50.º por desconhecimento. Ora, ainda que a contestação aproveite à 1.ª R para efeitos do art. 568.º do CPC, essa concreta impugnação nunca poderia aproveitar à 1.ª R pois que são factos que ainda que possam ser desconhecidos pelo 2.º R, são de conhecimento directo e pessoal da 1.ª Ré, pelo que deverão considerar-se confessados - art. 567.º n.º1 e 574.º n.º3 CPC.
8. Ainda previamente, diga-se que o Tribunal recorrido abre um “parêntesis” na pág. 11 da sentença que concerne à legitimidade do Autor (marido da 1.ª Autora), cumprindo referir que tratando-se a viatura de um bem comum do casal apesar de registado em nome da 1.ª A (uma vez que os AA. estão casados em comunhão de adquiridos), qualquer prejuízo daí decorrente nomeadamente com o seu arranjo repercutir-se-ia sempre também na sua esfera patrimonial – quanto a esta questão os AA. referem no corpo do presente doutrina e jurisprudência a qual, salvo melhor entendimento, corrobora a sua posição.
9. Contudo e sempre por respeito ao Tribunal, somos a considerar que se o Tribunal considerasse, contudo, que na situação em causa o 2.ª A. não carecia de figurar como tal por não existir litisconsórcio necessário, sempre poderia/deveria ter conhecido da ilegitimidade por se tratar de excepção de conhecimento oficioso (artigos 576.º, 577.º alínea e) e 578.º do CPC)
10. Os AA impugnam ainda a factualidade não provada sob os n.ºs 26, 27, 28, 29, 30 e 31 – conjuntamente, quando o raciocínio assim o justificar
11. A prova documental que impõe decisão diversa da recorrida é: Doc. 1 da PI (factos não provados 29, 30 e 31), Doc. 3 da PI (factos não provados 29, 30 e 31), Doc. 6 da PI (quanto aos factos não provados 29, 30 e 31), Doc. 19 da PI [factos não provados 26 e 27 (1ª parte)], Doc. 20 da PI (factos não provados 27 (2ª parte) e 28), Doc. 21 da PI (factos não provados 29, 30 e 31), Doc. juntos pela Carclasse notificados aos AA., a 31.03.2022 com a ref. Citius … 19 (factos não provados 29, 30 e 31), Docs. juntos por requerimento dos AA. datado de 03.03.2022, com a ref. Citius … 84 (factos não provados 29, 30 e 31).
12. A prova testemunhal que impõe decisão diversa da recorrida, é: G …, gravado no sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática do Tribunal, tendo ocorrido e ficado registado em acta do dia 13.09.2022 com duração entre as 14:37:27 e as 14:50:17 (áudio … 25_ … 65_ … 61) – minutos 00:02:14 a 00:03:15 e 00:07:31 a 00:08:11 impugnação dos factos não provados 29, 30 e 31; F …, gravado no sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática do Tribunal, tendo ocorrido e ficado registado em acta do dia 13.09.2022 com duração entre as 14:22:24 e as 14:35:03 (áudio … 23_ … 65_ … 61) – minutos 00:02:22 a 00:03:04 impugnação do facto não provado 26, 00:02:33 a 00:04:51 impugnação do facto não provado 27 (1ª parte) e 00:06:25 e 00:06:56 impugnação dos factos não provados 29, 30 e 31 ; E … prestadas no dia 26/09/2022, cujo depoimento foi gravado no sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, tendo ocorrido e ficado registado entre as 09:43:12 e as 09:54:30 (áudio … 01_ … 65_ … 61) – minutos 00:03:49 a 00:04:48 impugnação do facto não provado 27 (1.ª parte); as declarações de parte do Autor B …, gravado no sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática do Tribunal, tendo ocorrido e ficado registado entre as 15:01:38 e as 15:27:27 (áudio … 36_ … 65_ … 61) – 00:02:20 a 00:02:35 e 00:02:36 a 00:04:06 impugnação do facto não provado 27 (1ª e 2ª parte) e 28, e 00:04:41 a 00:06:46 impugnação dos factos não provados 29, 30 e 31..
13. O
facto não provado n.º 26
foi incorrectamente julgado, contrariando o Tribunal recorrido directamente a prova produzida nos autos, sem sequer fundamentar devidamente, referindo somente que os documentos foram impugnados, suscitaram dúvidas e verificou-se “ausência de prova sobre os mesmos”.
14. Não só a impugnação dos documentos levada a cabo pelo 2.º R. foi genérica (por desconhecimento), como os AA. juntaram o Doc 19 da PI que consubstancia o orçamento para reparação do veículo no valor aposto no facto que o Tribunal deu como não provado.
15. O referido orçamento foi emitido pelo Sr. F …, da Auto DCS que prestou declarações no julgamento enquanto testemunha, relatando o que observou no veículo aquando do reboque do mesmo para a sua oficina e descrevendo os procedimentos efectuados ao veículo na mesma - conforme declarações acima identificadas, em concreto nos minutos 00:02:22 e 00:03:04 transcritos no corpo do recurso.
16. Deste modo, as declarações prestadas pela referida testemunha tiveram por base as avarias que observou de forma directa e que resultaram no referido Doc. 19, e o Tribunal a quo atribuiu credibilidade a esta testemunha cfr. página 11 da sentença.
17. Assim, existe prova documental que atesta a existência de um orçamento, emitido por uma oficina de mecânica, cujo proprietário foi testemunha e observou as avarias e laborou o custo da sua reparação, a qual foi considerada credível. Não existe qualquer ausência de prova, existe sim uma errada apreciação da mesma!
18. Da leitura da sentença recorrida, parece que o Tribunal a quo se bastou com o seguinte: existiu um orçamento fixado no valor de €12.000,25, todavia, como foi impugnado, e como só existem dois meios probatórios sobre o mesmo, mais vale considerar como não provado! O que em nada se compatibiliza com o princípio da convicção prudente do julgador.
19. Assim, deveria o Tribunal de 1ª instância ter dado como provado o facto 26 pois assim o impõe a prova documental e testemunhal produzida nos autos e acima referenciada.
20. Também
o facto 27 primeira parte foi dado como não provado
em contradição com a prova documental e testemunhal produzida, impondo decisão diversa, as declarações da testemunha E … da “Fórmula F”, conforme minutos 03:49 a 04:48 transcritos no corpo do recurso e também, o depoimento da testemunha Sr. F … (a tal testemunha, para o Tribunal, credível), agora concretamente entre os minutos 00:02:23 e 00:04:51, que se transcreveram no corpo do recurso, na qual refere expressamente que não era suficiente uma intervenção apenas a nível do turbocompressor, motivo pelo qual não procedeu a qualquer reparação – conforme também se fez constar na página 11 da sentença recorrida:
21. Mais uma vez o Tribunal recorrido não fundamentou a sua decisão e decidiu contrariamente a uma testemunha cujo depoimento considerou credível - um mecânico especializado em turbocompressores – e ainda contra o Doc. 19 da PI que revela a necessidade de reparar o motor – pois uma intervenção apenas a nível do turbocompressor se revelava insuficiente.
22. Quanto ao
facto não provado 27 segunda parte e facto não provado 28
incorrectamente julgados e impugnados conjuntamente por identidade probatória, sempre se dirá que em semelhança aos demais, o Tribunal recorrido contrariou a prova produzida.
23. Quanto à
segunda parte do facto 27
, conforme já se referiu, que o Sr. F … analisou o veículo e concluiu que a reparação do mesmo não se bastava pelo turbocompressor, sendo necessário reparar o próprio motor, tendo aconselhado os AA. a assim proceder, o que assim fizeram, tendo obtido um orçamento para esta reparação junto da oficina Land Rover – Auto Sueco – conforme Documento 20 junto na petição inicial.
24. Veja-se ainda que em declarações de parte acima identificadas e nos concretos minutos 00:02:20 e 00:02:35 os quais se transcreveram no corpo do recurso, o Autor atestou a existência deste orçamento.
25. Quer a
segunda parte do facto 27, quer o facto 28
respeitam ao orçamento obtido pelos AA. na oficina Land Rover, orçamento que abrangia todas as intervenções mecânicas necessárias para que o veículo fosse reparado na sua totalidade.
26. Este orçamento, emitido em modelo de factura, contém todos os elementos que podem aferir da sua validade: tem a data da emissão do orçamento, o funcionário da oficina, o NIPC da oficina e todos os componentes do veículo a serem reparados/substituídos, logo, a prova documental que resulta dos autos é clara, foi emitido um orçamento pela oficina Land Rover e esse orçamento previa que todos os danos constantes no veículo teriam como custo de reparação o valor de €14.657,28 – doc. 20 PI.
27. Em semelhança ao orçamento emitido pela oficina Auto DCS, o Tribunal a quo declarou ter dúvidas, que curiosamente não demonstrou ter colocado em audiência de discussão e julgamento, que seria o momento próprio para o efeito, tendo as mesmas apenas surgido na prolação da sentença, por terem sido impugnados os documentos (mais uma vez, genericamente) e por existir ausência de prova… Novamente, não há qualquer ausência de prova porque existe prova documental que retrata a existência do orçamento, bem como todas as reparações necessárias e o valor da mesma.
28. Quanto a este orçamento explicou o Autor B … o seu âmbito e valores em declarações de parte acima identificadas nos concretos minutos 00:02:36 e 00:04:06, os quais se transcreveram no corpo do recurso, situando os valores entre os €11.000,00 e os €13.000,00 (sem IVA) o que corresponde aos serviços apostos no orçamento junto como Doc. 20 da PI – o que se retira da mera análise do mesmo.
29. Assim, deveria o Tribunal de 1ª instância ter dado como provada o facto 27 e o facto 28 tendo em conta a prova produzida nos autos.
30. Quanto aos
factos não provados 29, 30 e 31
incorrectamente julgados, impugnados conjuntamente por facilidade de raciocínio que respeitam à revisão efectuada ao veículo a 19/08/2019, antes da entrega do mesmo à Ré, na marca – Carclasse Lisboa, diga-se que o Doc. 21 junto com a PI é elucidativo em conjunto com o facto provado 30 que descreve os elementos do veículo substituídos ou reparados nessa revisão, nomeadamente, a substituição do óleo e do filtro de óleo.
31. Quanto a estes factos, o Tribunal recorrido faz um conjunto de considerações de fundamentação, na página 11 da sentença, que causam desde logo, algum incómodo, pois tece considerações em matéria relacionada com mecânica à margem da prova produzida, aventando a possibilidade de a viatura ser sinistrada, quando no facto provado 6 dá por integralmente reproduzido o Doc. 3 que atesta que a viatura sofreu zero sinistros.
32. A factura da revisão em causa não só foi junta pelos Autores na PI como pela própria oficina Carclasse – marca especializada na Jaguar e na Land Rover –onde foi efectuada a revisão, conforme notificação aos AA supra identificada, tendo juntado ainda o orçamento emitido, bem como o comprovativo de pagamento desta revisão pelos Autores.
33. Desde já se esclarece, por forma a evitar dúvidas supervenientes, que o valor do orçamento e da factura juntos pela Carclasse em requerimento, divergem porque na factura final foram aplicados descontos pela oficina, o que permitiu a cobrança de um valor inferior ao aposto no orçamento – o que se retira da mera análise dos mesmos.
34. Ora, começa o Tribunal a quo por considerar que desta factura surgiram diversas dúvidas (que, em semelhança aos demais temas, o Tribunal recorrido não se preocupou em procurar esclarecer no momento da produção de prova), nomeadamente, que “até para um leigo, fácil é aferir que algo se passou inicialmente com o veículo”, insinuando que o mesmo foi eventualmente interveniente num acidente de viação, devido aos itens constantes na fatura.
35. O Tribunal a quo retira estas ilações dos itens constantes na primeira folha e aos dois primeiros da segunda folha, os quais se transcreveram no corpo do recurso, retirando um conjunto de ilações pecaminosas – pois não possuindo uma licenciatura em engenharia mecânica, à semelhança do Tribunal recorrido, não há uma efectiva aptidão para tecer considerações técnicas sobre o assunto.
36. Ora, o facto de um pára-choques ou um capô serem pintados, de terem sido substituído um sensor, ou ainda a reparação do A/C, em nada se traduzem além de normais manutenções que os veículos possam carecer.
37. Para além de todas as considerações que possam ser tecidas no âmbito dos conhecimentos da experiência comum e de um homem médio, há um elemento documental mais estrutural e coeso que todas estas, que se trata da apólice de seguro.
38. A apólice de seguro junta na PI como Doc. 3 atesta a A. como tomadora do seguro e a empresa Ocidental Seguros como seguradora, tendo como mediador o vulgarmente conhecido Millennium BCP, e ficando a Ré designada como condutora habitual.
39. Ora, desta apólice de seguro resulta algo muito claro: o veículo não esteve envolvido em nenhum sinistro e, não obstante, o Tribunal recorrido vem descredibilizar, através de raciocínio ilógico, esta apólice de seguro, só porque a Autora vem identificada como solteira, o que para aquele se traduz em mera falta de rigor declaratório.
40. Não faz qualquer sentido, e vai contra as mais comuns regras da experiência, considerar que embora exista uma apólice de seguro que atesta a inexistência de sinistros associados ao veículo, o mesmo esteve envolvido num acidente com base em suspeições.
41. Aliás, do ponto de vista financeiro e lucrativo das seguradoras, tal argumento decai ainda mais, porque como bem se sabe, quantos mais sinistros um veículo tiver registados, maior será o valor do seguro a cobrar.
42. Ademais, o bom estado da viatura quando foi entregue à 1.ª R. encontra-se alegado no artigo 39.º da PI, o qual foi somente impugnado pelo 2.º R. no artigo 2.º, por desconhecimento. Como acima referimos, este desconhecimento não pode aproveitar à 1.ª Ré revel, nos termos e para os efeitos dos artigos 567.º n.º 1 do CPC e 574.º n.º 3 do CPC, pelo que este facto deveria, inclusivamente, ser dado como provado por confissão da 1.ª Ré que não podia desconhecer o bom estado da viatura quando contratualiza a sua utilização.
43. Imagine-se, no entanto, a título de mera hipótese académica, que o veículo tinha, de facto, estado envolvido nalgum tipo de acidente, ou batida, não registada no seguro – o que afirmamos que desde logo nos parece impossível. Ainda assim, nunca se poderia sustentar que o veículo foi entregue à Ré em más condições, (pois o Tribunal recorrido retira do facto não provado o facto inverso) porque o mesmo foi objecto de uma revisão/manutenção numa oficina de excelência, tendo um custo final para os AA., de €4.894,00.
44. De todo o modo, este Venerando Tribunal com certeza saberá que a Carclasse não é uma oficina - perdoe-se o vulgarismo - ali da esquina. Pelo que não se nos afigura possível conseguir acreditar que um veículo que entra numa oficina deste calibre, mesmo que se aceitasse a tese do Tribunal recorrido de que tinha estado envolvido num acidente e aí fosse entregue para reparação, após se pagar cerca de cinco mil euros pela revisão/manutenção efectuada ao mesmo, sairá dessa mesma oficina com avarias. Simplesmente não é possível concluir neste sentido sem auxílio de qualquer prova adicional por que contrário às regras da experiência comum!
45. Em seguida, o Tribunal recorrido vem colocar em causa os próprios procedimentos da revisão, considerando que para o carro estar sem óleo ou
não colocaram óleo na revisão efectuada a 19.08.2019, ou então o veículo não estava em condições.
46. Ora, afirmar que não foi colocado óleo no veículo, quando existe prova documental – fatura emitida pela Carclasse – que comprova que o veículo levou óleo e também filtro de óleo (vide página 3 da fatura junta pela Carclasse em requerimento notificado aos Autores a 31.03.2022, com a ref. Citius … 19), é desprovido de sentido. É até, como já supra referido, chegar ao limite extremo de duvidar e desconsiderar uma marca de reconhecimento internacional e de referência no mundo automóvel. E é ainda duvidar da prova testemunhal produzida em julgamento, nomeadamente, as declarações prestada pela testemunha G … acima identificadas, concretamente nos minutos transcritos no corpo do recurso entre 00:02:14 e 00:03:15, em que a testemunha declarou não só a seriedade encetada pela Carclasse enquanto oficina bem como a veracidade da factura da revisão.
47. A testemunha, que exerceu funções de assessor de clientes durante largos anos na Carclasse, declarou que as intervenções apostas nas faturas traduzem-se, sem qualquer sombra para dúvidas, no que foi efectivamente realizado no veículo! E a testemunha afirmou e bem:
“é por isso que o cliente vem à marca e não vai fora da marca”
.
48. Ora, quando o veículo esteve nesta revisão, o contador marcava os 81.496 quilómetros, quando o veículo regressou à posse dos Autores, contava com 84.765 quilómetros. Assim, enquanto o veículo esteve na posse da Ré, percorreu cerca de 3.269 quilómetros. Este simples cálculo matemático permite desfazer, desde logo, a teoria de que o veículo não tinha óleo ou que o mesmo foi entregue à Ré em más condições, porque é impossível um veículo circular mais do que 20 minutos sem óleo, quanto mais percorrer 3000km!
49. E ainda que se equacionasse que o veículo não estaria em condições (sem sequer o Tribunal recorrido se interpelar ou tentar explicar o que isso quer exactamente dizer), necessitando de se considerar assim que haveria uma fuga de óleo que culminasse na ausência total de óleo no veículo, nunca um veículo com uma fuga de óleo percorreria três mil quilómetros!
50. Ademais, um veículo de 2016 – conforme resulta do Certificado de Matrícula junto como Doc. 1 da PI - equipado com componentes electrónicos, diversos sensores e tecnologia automóvel avançada, se padecesse de uma qualquer fuga ou avaria, como as relacionadas com o óleo, emitiria algum tipo de aviso no painel do veículo, circunstância que a Ré nunca deu a conhecer, existindo, ou sequer mencionou em conversações com os Autores.
51. Ora, todo este argumentário decorrente das regras da experiência comum, aliados à prova produzida, só permite concluir num sentido: a Ré circulou com o veículo, sem apresentar qualquer queixa aos Autores, durante oito meses - desde a data do contrato celebrado entre as partes em novembro de 2019, a junho de 2020 – e percorreu mais de três mil quilómetros com o mesmo, a causa da avaria do veículo só a ela pode ser imputada!
52. Não existem quaisquer elementos que permitam concluir em sentido diverso, porque tanto a prova documental como a prova testemunhal apontam no sentido de ter existido diligência no tratamento do veículo por parte dos AA.
53. A final, o Tribunal a quo erige ainda um outro argumento que, com a devida vénia, nos parece despropositado, e além do mais em colisão frontal com a prova carreada, quando afirma que os AA. tiveram falta de cuidado na manutenção do veículo porque a revisão realizada a 19.08.2019, “ocorreu mais de 13.000km do sugerido”.
54. O veículo em causa nos autos é um veículo importado, e conforme consta no Certificado de Matrícula – junto pelos AA., como Documento 1 da PI – obteve a primeira matrícula em Portugal a 07 de fevereiro de 2019.
55. Como é consabido, para que um veículo obtenha o certificado de matrícula portuguesa tem de ser observado um procedimento com essa finalidade, tendo o veículo de ser sujeito a Inspecção Técnica para obtenção da matrícula, como foi, a 22 de Janeiro de 2019, com 81.433km – conforme Doc. A junto pelos AA. por requerimento acima melhor identificado.
56. Portanto, se o veículo foi importado no ano de 2019, contando já com 81.433km, pedir aos AA., para cumprirem o sugerido pela marca e efectuarem a revisão aos 68.000km é impor sobre os mesmos uma obrigação impossível, porque estes não detinham nem a posse, nem a propriedade do veículo no momento em que o mesmo perfez os 68.000km! O veículo nem sequer estava em Portugal, nem sequer tinha matrícula portuguesa!
57. Por fim, o Tribunal a quo aborda a questão do turbo do veículo, considerando que os poucos quilómetros que o veículo percorreu na posse da Ré (relembrando, 3.269km), não coaduna com o facto de ter sido a condução efectuada por esta que levou a partir o turbo.
58. Nesta senda remetemos para toda a linha de argumentação já aposta que consideramos ser suficiente para sustentar a conclusão de que o veículo estava em excelentes condições, sem prejuízo de sempre se relembrar que a indicada prova documental e testemunhal contradiz as conclusões do Tribunal recorrido.
59. Foi junto aos autos a Inspecção Técnica efectuada ao veículo em janeiro de 2019, na qual o mesmo ficou aprovado sem anotações – em requerimento junto pelos AA. 03.03.2022, com a referência Citius … 84. Foi junta aos autos a factura da revisão efectuada ao veículo em agosto de 2019, revisão extensa e detalhada, realizada numa oficina de renome – conforme Documento 21 da PI. Foi ouvida perante o Tribunal testemunha que trabalhou na oficina na qual a revisão ao veículo foi realizada, tendo atestado que tudo o que consta na fatura foi realizado no veículo. E ainda assim, para o Tribunal a quo é mais fácil concluir que os AA. não entregaram o veículo em condições do que concluir que a Ré não procedeu a uma condução prudente do veículo tendo a mesma causado os danos.
60. Relembramos que só passados largos meses de o carro estar na posse da Ré, já se encontrando percorridos mais de 3000km é que o veículo sofreu de uma avaria. Relembramos que a Ré não comunicou qualquer avaria aos AA. durante esse tempo, o que apenas fez em Junho de 2020.
61. A avaria padecida pelo veículo, a ausência de óleo no mesmo, os danos causados ao turbo, são fruto, inequivocamente, da má utilização do veículo por parte da Ré.
62. Ora, o princípio da livre apreciação da prova nunca atribui ao juiz o poder arbitrário de julgar os factos sem prova ou contra as provas, ou seja, a livre apreciação da prova não pode confundir-se com uma qualquer arbitrária análise dos elementos probatórios.
63. O Tribunal
a quo
pronuncia-se e aprecia livremente – segundo consigna, tendo por base regras de experiência comum, embora não se descortine quais sejam, pois não se divisa uma lógica que permita esclarecê-las, mais parecendo tratar-se de um simples acervo de lugares comuns muito dubitativos –, tecendo comentários sobre revisões/manutenção automóvel, propriedades de óleo de motor ou estado de turbocompressor, retira ainda conclusões sobre o estado do veículo a partir de alegados elementos que presume terem sido substituídos ou reparados (mas que nem sabe se o foram), conclui sobre o estado da viatura presumindo-o a partir de periodicidades de revisão, enfim, pronuncia-se sobre um conjunto de matéria que exige um mínimo de conhecimentos técnicos e especializados que bem se percebe que o Tribunal recorrido não detém, não só atenta a referida matéria em discussão, mas sobretudo pelas conclusões abstrusas a que o Tribunal chega bem se percebe que se move em temas que não domina de todo.
64. Se é certo que para a apreciação da prova, que tem lugar na fase da sentença, só são admitidos os meios de prova propostos pelas partes e que relevem de acordo com as diversas soluções plausíveis da questão de direito, impõe o princípio do inquisitório que o julgador, em face da dúvida ou de questões técnicas que não domine, como é o caso, determine quaisquer diligências probatórias que não hajam sido solicitadas pelas partes para, precisamente, esclarecer essas dúvidas ou munir-se de prova que lhe permita compreender o que, dada a especial tecnicidade, impõe conhecimentos especializados.
65. Tal princípio, consagrado no art. 411º, do CPC, é um poder vinculado que impõe ao juiz, que determine, oficiosamente, diligências probatórias complementares, necessárias à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.
66. A prova pericial - com regulação de direito probatório material (objeto, admissibilidade e força probatória) nos arts 388º e seg, do CC, e de direito probatório formal (a regular o procedimento da prova pericial) nos arts 467º a 489º, do CPC –, modalidade de prova pessoal e indirecta, na medida em que a demonstração do facto é feita através de uma pessoa, o perito, que se interpõe entre o tribunal e o objeto da perícia, consiste na perceção ou apreciação de factos, pelo que o perito ou peritos são convocados a percepcionar os factos e/ou a valorá-los à luz dos seus conhecimentos técnicos, sendo que aquela operação envolve captação (com os sentidos) dos factos e a sua compreensão.
67. A prova pericial pode visar a percepção indiciária de factos, a apreciação, de acordo com a regra da causalidade,
dos indícios a extrair das fontes de prova (para, nomeadamente, estabelecer um nexo de causalidade)
.
68. Com efeito, considerando o Tribunal recorrido, como parece considerar, insuficiente ou até duvidosa a prova produzida, entendem os Recorrentes que, salvo melhor entendimento, ainda que tais alegadas falhas probatórias existissem – o que como se vem demonstrando inexistem, porém, por mera hipótese académica se concebe –, tal situação não legitima o Tribunal a quo a, sem mais retirar conclusões sobre matérias que exigiriam especiais conhecimentos que de todo não domina.
69. Pelo que, não lançando mão de produção de prova suplementar, o Tribunal
a quo
violou o princípio do inquisitório – por não ter a juíza do tribunal recorrido ordenado a realização de outros meios de prova, designadamente prova pericial ou até mais e melhores esclarecimentos aos técnicos que elaboraram os documentos juntos – o que integra uma nulidade processual dos artigos 186º e segs. do CPC.
70. Se é verdade que a realização oficiosa de diligências probatórias para o esclarecimento da verdade não se deverá traduzir numa gratuita substituição das partes, também é verdade que o Tribunal recorrido não pode sem mais apreciar prova resultante da indicada pelas partes sem especiais conhecimentos técnicos, quando podia e devia, atenta a manifesta pertinência e necessidade dessa prova suplementar, para a auxiliar a Mma. Juíza a quo nas conclusões técnicas que pretende retirar.
71. Assim, a acrescer ao errado julgamento por o Tribunal recorrido decidir contra a prova apresentada, verifica-se ainda uma nulidade processual por omissão do Princípio do Inquisitório, nos termos melhor expendidos.
72. Assim, deveria o Tribunal de 1ª instância ter dado como provados os factos 29 e 30 tendo em conta a prova documental e testemunhal produzida nos autos.
73. Quanto ao
facto 31 dado como não provado
, dá-lo como não provado é contrariar a presunção legal versada no artigo 1043.º, número 2 do CC.
74. Inverte, também, o instituto da prova dos factos, quando se percebe na fundamentação que o Tribunal a quo não só dá como não provado que o veículo não foi entregue em boas condições (facto não provado 31) como se agasta em defender o facto contrário.
75. Conforme melhor de descreverá infra, o Tribunal
a quo
considerou que o contrato celebrado entre as partes se caracteriza como contrato de locação, ao qual se aplicam as normas dos artigos 1022.º do CC, nomeadamente o já referido artigo 1043.º do CC.
76. A presunção deste artigo funciona a favor do locador – neste caso dos AA. – referindo o artigo que se presume que a coisa foi entregue ao locatário em bom estado quando não exista documento onde as partes tenham descrito o estado dela ao tempo da entrega.
77. Relembrando conceito básicos de direito, estipula o artigo 350.º do CC que quem tem a seu favor presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz.
78. Contrariamente ao que o Tribunal recorrido considerou, os AA. não tinham de provar que o veículo foi entregue em perfeitas condições. Quanto muito, o ónus de ilidir essa presunção competia aos Réus, violando assim a decisão o artigo 1043.º do CC.
79. E nos que aos RR concerne, como se observou, não produziram qualquer prova contrária à presunção: o 2.º R. não provou que o veículo não se encontrava em boas condições – aliás, nunca o poderia fazer porque o mesmo não teve qualquer contacto com veículo, sendo mero fiador -, e como bem se viu, a 1.ª Ré nunca contestou este facto, nem nenhum outro.
80. Toda a factualidade permite concluir no sentido da falta de diligência da Ré, não podendo ser imputada aos Autores a obrigação de atestar as boas condições do veículo aquando na entrega, não se podendo ignorar, todavia, que a prova documental as comprova.
81. Nestes termos, o Tribunal
a quo
deveria ter dado como provado o facto 31, tendo em conta a prova documental produzida nos autos bem como a presunção legal aplicável.
82. Nestes termos e nos melhores de Direito, devem os factos não provados acima identificados ser considerados incorrectamente julgados por assim o impor a prova concretamente identificada, passando a constar da factualidade provada com as necessárias consequências de procedência do pedido formulado pelos AA. na PI.
83.
Quanto à matéria de Direito
, após uma breve pesquisa jurisprudencial ocorrida na pendência da elaboração do recurso, os Recorrentes depararam-se com um acórdão deste Venerando TRL, datado de 06.12.2007, proferido no âmbito do processo n.º 10592/2006-6, no qual foi Relatora a Mmª Juiz Fernanda Isabel Pereira, cuja matéria discutida concerne a contratos de aluguer de equipamentos, em que os mesmos apresentaram, na pendência desse contrato, inúmeros defeitos, culminando na resolução do contrato pela Ré.
84. Imagine-se o espanto, quando se procedeu à leitura da fundamentação de direito desse acórdão e se deparou com a total identidade entre esta fundamentação e a fundamentação da sentença recorrida. A sentença recorrida utilizou, rigorosamente, 80% da fundamentação desse acórdão, e quando nos referimos a rigorosamente, é porque foram mudadas simplesmente as datas e os pequenos elementos que referenciam o caso concreto.
85. E que se deixe esclarecido que não se rejeita a possibilidade de aproveitamento de doutas considerações doutrinárias e jurisprudências tecidas em acórdãos de um tribunal de 2.ª instância pelo Tribunal
a quo
. O que se rejeita é o Tribunal a quo utilize a fundamentação de direito de um acórdão, cole na fundamentação de direito da sentença que vai proferir e alterar pequenos elementos, desconsiderando que as matérias discutidas são factualmente diferentes, oferecendo uma fundamentação que não coaduna com o caso dos autos.
86. Basta uma mera leitura perfunctória do Acórdão desse Alto Tribunal para perceber que embora se tenha discutido - como no caso dos presentes autos - matéria eventualmente subsumível ao contrato de locação, naquele caso o defeito dos equipamentos era imputável ao Autor, e a Ré comunicou inúmeras vezes esses defeitos ao Autor e a sua resolução contratual fundou-se no facto de o Autor ter faltado culposamente ao cumprimento do contrato por não ter feito face às deficiências apontadas pela Ré.
87. O caso que aqui se discute é essencialmente diferente, quer por não haver qualquer incumprimento por parte dos AA., quer por não ter existido qualquer comunicação da suposta avaria, aos AA. por parte da Ré.
88. Apesar de os temas da prova fixados por despacho de 17/02/2022 serem os factos conclusivos alvo da prova, foi na sentença que o Tribunal recorrido começou com uma conclusão. É que se numa fase anterior o Tribunal recorrido declarou que se deveria determinar se o contrato
“deve ser resolvido”
, na subsunção jurídica da sentença propõe-se a analisar a resolução da Ré que a 1.ª A. referiu, à cabeça, não poder operar, por ademais se ter oposto à mesma.
89. Mais, escreve ainda na página 12 da sentença que importava apurar se a declaração resolutiva feita pela Ré a 12 de junho de 2020 produziu efeitos.
90. O Tribunal a quo nem questiona que a viatura tenha ficado imobilizada a partir de Março, veja-se na página 11, assumindo, pois, que a viatura apenas somou km até Março!
91. Repare-se que, mesmo que não seja procedente a impugnação da matéria de facto, não existe nenhum facto provado de onde resulte que a viatura ficou imobilizada a 28.03.2020!
92. O único sinal que existe nos autos nesse sentido é que a Ré enviou um e-mail onde DIZ que a viatura está avariada desde essa data, conforme facto provado 10. Mas coisa diferente é que tenha sido dado como provado que desde 28 de Março de 2020 o carro estava avariado, e menos ainda que nesse momento essa avaria tenha sido comunicada aos AA.!
93. Da prova testemunhal produzida, e plasmada na sentença resulta que a Ré apenas comunicou a avaria aos Autores no mês de Junho, e em data próxima ligou à testemunha F … a comunicar o mesmo e se o podia mandar rebocar até à oficina.
94. Ora, esta questão não é de somenos: a pessoa que poderia afirmar se o carro estava ou não avariado desde Março, não apareceu em julgamento e nem apresentou a sua versão dos factos; a prova acerca dessa avaria está incorrectamente indicada na decisão, quando o próprio Tribunal diz que resulta que em Junho a Ré COMUNICOU A AVARIA!
95. Ou seja, os AA. apenas têm conhecimento da avaria no mesmo momento que a 1.ª Ré tenta resolver o contrato, impedindo activamente o apuramento da responsabilidade sobre a alegada avaria!
96. Com o devido respeito, na página 13 da sentença evidencia-se uma grande confusão, pois que foi ouvido em julgamento o mecânico para onde a viatura foi levada pela 1.ª Ré, e com o devido respeito, o que a testemunha diz não é o que aí se sumaria..
97. Nas declarações de F … prestadas no dia 26/09/2022, conforme acta desse dia, cujo depoimento foi gravado no sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, tendo ocorrido e ficado registado entre as 09:43:12 e as 09:54:30 (áudio … 01_ … 65_ … 61), transcrevendo-se no corpo do recurso entre os minutos 00:01:38 e 00:02:30, a testemunha declarou que apenas foi contactada pela 1.ª Ré no mês de maio de 2021.
98. Ou seja, ressalvado o lapso do ano (2020), a viatura foi levada para a oficina em Maio, como resultava também do Doc. 17 junto com a PI, e não em Março como dá a entender o Tribunal, dizendo que o diagnóstico tardou atendendo ao confinamento obrigatório.
99. Verdadeiramente a referida testemunha diz que demorou 2 meses para o diagnóstico, mas dois meses contados desde que enviou o orçamento à 1.ª Ré após a recepção da viatura, em Maio, não se referindo ao confinamento ou ao intervalo de meses entre Março e Maio (!), aqui nos minutos 00:03:33 e 00:03:59 e 00:04:49 e 00:05:40 das declarações acima identificadas.
100. Em Novembro os AA. recebem um e-mail provindo desse senhor, solicitando o levantamento da viatura, conforme Doc. 13 junto com a PI.
101. Mas honestamente, mesmo que a viatura estivesse imobilizada desde Março, - e talvez até pior para a Ré nesse caso - apenas seria imputável à Ré não garantir assistência à mesma, ou não solicitar aos AA. que o fizessem, deixando-a a deteriorar-se com um problema desconhecido até 19 de Maio de 2020 (reboque) conforme facto provado, dando apenas conta aos AA. dos problemas da viatura em Junho de 2020 (facto provado 10).
102. Ademais, o Tribunal recorrido escreveu mesmo que “Aliás, nem resulta dos autos que tenham procedido a quaisquer diligencias no sentido de salvaguardar o uso e gozo quer deste veículo quer de outro à Ré. Limitaram-se a peticionar – conforme cartas remetidas – o incumprimento imputado contratualmente à Ré, olvidando o seu.”
103. Primeiro, resulta do facto provado 6 que a viatura cedida encontra-se coberta pelo seguro n.º … 57, no qual a 1.ª Ré foi inscrita como condutora habitual, dando o Tribunal nesse facto o Doc. 3 junto com a PI integralmente reproduzido. Ou seja, a viatura estava segurada com garantia de veículo de substituição, sendo que a Ré nunca procurou accionar o seguro, estando mais preocupada em descartar-se da viatura antes de permitir que se apurasse o que realmente aconteceu e quais os custos associados, tentando desvincular-se do contrato antes de dar oportunidade aos AA. de solucionarem o problema que se viesse a apurar.
104. Pois que, já para evitar este tipo de situações, constava do contrato outorgado entre a 1.ª Autora e a 1.ª Ré que
b) Todas as revisões e/ou manutenções de acordo com o programa da marca num concessionário Jaguar;,
conforme facto provado 4.
105. Ademais, ignora-se olimpicamente o 1.º e-mail remetido pela Ré que anuncia a sua intenção, ao escrever, a 4 de Junho, conforme facto provado 12, que atravessa dificuldades económicas.
106. Mas perguntamos a esse Alto Tribunal: de que forma poderiam os AA. aceitar a rescisão de um contrato que tem por objecto um Jaguar que se diz estar imobilizado, não anda, com um problema que se desconhece, desconhecendo-se igualmente a responsabilidade da última pessoa que com ele circulou relativamente a essa avaria, com a singela informação que o orçamento recebido de uma oficina que não se conhece é
“no valor de 2.546,006 sendo que foi o turbo que se estragou, foi-me dito que teria também de ser visto se há danos provocados no motor”?
107. Salvo melhor opinião, isto ultrapassa todos os limiares mínimos da razoabilidade contratual!
108. Primeiro, no dia 4 de Junho a Ré testa os AA. para resolver o contrato por o carro estar com problemas, sem cuidar de querer apurar o problema efectivo ou permitir a continuidade desse contrato; após, logo a 12 de Junho, uma semana depois, faz retroagir os efeitos da rescisão a Março de 2020 (!).
109. Isto quando está em mora com duas prestações, como decorre do facto provado 7, pontos d. e e.. Mas sobre isto passa o Tribunal a quo dizendo que pese embora, não cumprindo pontualmente as datas de pagamento das prestações mensais, as mesmas foram pagas até 05/2020, quando em bom rigor o foram fora de prazo e após a tentativa de rescisão contratual!
110. O Tribunal recorrido escreve que: “O facto de o veículo se encontrar imobilizado é, claramente, revelador que o mesmo deixou de cumprir cabalmente o fim a que se destinava.”.
111. O Tribunal vai inclusivamente mais longe ao escrever na página 14 que os Autores faltaram culposamente ao cumprimento do contrato quando: a Ré incumpriu os pagamentos do contrato desde o início (factos provados 24, 8 e 9); a Ré apenas avisou os AA que a viatura estava avariada em Junho de 2020, em semanas sequenciais, logo com intenção de rescindir (factos provados 10 e 12); a Ré, aquando da avaria, não endereçou a viatura à Jaguar (factos provados 4 b) e 15) ;
112. A viatura: não tinha bateria (facto provado 18), não tinha óleo (facto provado 19), o turbo estava partido (facto provado 20), após retirar o turbo da viatura e carregada a bateria, o motor fazia um grande barulho (facto provado 21).
113. Não se percebe, sequer, o que quer o Tribunal dizer com a incapacidade dos Autores em solucionar eventuais problemas com a viatura, sem que se encontre uma única vez na decisão qualquer tentativa, sequer, de reconstrução do nexo com o responsável pela reparação da viatura – durante a qual sempre beneficiaria a Ré de viatura de substituição.
114. Ademais, e como vimos, os AA. ficaram “com o menino nos braços”, a partir do momento em que na leitura do Tribunal recorrido, a resolução da 1.ª Ré foi válida e os AA. ficaram com um carro com um arranjo de € 14.000 que, já agora, não pagaram – como se diz na sentença – por não ter esse capital disponível. Mas diga-se mais, à data em que se apura o valor do arranjo, e de acordo com o Tribunal, já não havia a possibilidade de os AA. o fazerem de forma a assegurar o uso da coisa pela 1.ª Ré porque ao que parece o contrato estava resolvido.
115. Pelos vistos andou bem a Ré em “largar” a viatura numa oficina que os AA. desconhecem, nem cumprindo a básica entrega da “coisa” – artigo 1038.º alínea i) do CC.
116. Mais longe ainda vai o Tribunal num ataque aos AA. que se confessa não compreender, escrevendo “Repare-se que, incumbia à Autora demonstrar que o veículo se encontrava em condições aquando da sua entrega à Ré. Não o fez. Aliás, duvidas serias surgiram quanto à integridade do veículo, conforme supra explanado.”
117. A A. juntou aos autos documento comprovativo da revisão da viatura e a testemunha G …, assessor da Carclasse que explicou a revisão efectuada. O que o tribunal não pode, e mesmo na hipótese de dar o facto 31 como não provado, é dar o seu contrário como provado para efeitos de raciocínio – isto é, que a viatura não foi entregue à Ré em condições. Pois que se não fosse, também sempre se deveria o Tribunal questionar como circulou a viatura de 11/2019 até 05/2020 ou, mesmo no convencimento do Tribunal recorrido de que a viatura ficou imobilizada em 03/2020, durante 4 meses sem óleo?
118. O Tribunal recorrido de forma tão imotivada decidiu contra os AA. que nem sequer o pedido de condenação no pagamento da prestação dos seguros teve procedência, ainda que se tenha dado como provado que os RR não pagaram nenhum, com excepção da 1.ª prestação – factos provados 8 e 24.
119. Ademais, na sentença recorrida veio o Tribunal recorrido considerar que o contrato celebrado entre as partes se caracteriza como contrato de locação, estando assim sujeito às normas dos artigos 1022.º e seguintes do Código Civil.
120. Logo se dirá que quanto à alegação de que incumbia à Autora demonstrar que o veículo se encontrava em condições aquando da sua entrega à 1.ª Ré, embora já se tenha introduzido a questão na impugnação de facto supra exposta, não é demais referir que existe presunção legal que funciona a favor do locador, neste caso da Autora plasmada no artigo 1043 do CC e, conforme se retira da leitura do contrato, as partes não descreveram o estado do veículo aquando da entrega, nem existe documento avulso sobre esta questão, o que faz operar a favor dos Autores a presunção do n.º2. C.C.
121. O artigo 1044.º do CC, na sequência da presunção do artigo anterior, refere que “O locatário responde pela perda ou deteriorações da coisa, não excetuadas no artigo anterior, salvo se resultarem de causa que lhe não seja imputável nem a terceiro a quem tenha permitido a utilização dela.”, ensinando a doutrina a este respeito que o locatário é responsável pela perda ou pelas deteriorações, e, portanto, para que o não seja necessita de provar que as causas lhe não são imputáveis, nem a terceiro a quem tenha permitido a utilização da coisa, “o que se traduz numa espécie de responsabilidade objectiva, que tem alguma justificação, quer por ser o locatário quem utiliza a coisa no seu próprio interesse, quer como estímulo legal a uma utilização prudente da coisa que lhe não pertence.”.
122. A lei indica no sentido de que em casos como o autos, o ónus da prova recai sobre o locatário (Ré) e não sobre o locador (A) pelo que a sentença recorrida é
contra legem
.
123. Ademais, o Tribunal a quo caracteriza a Ré como “contraente não faltoso” ignorando, de forma óbvia, toda a factualidade dos autos, numa tentativa de justificar a “resolução” do contrato por parte da Ré.
124. Ora resulta do art. 805.º/2 do CC que o devedor fica constituído em mora, independentemente de interpelação, se a obrigação tiver prazo certo, como é o caso. E ainda que se equacionasse ser de aplicar ao caso o prazo de tolerância legal de 8 dias contados da data do vencimento, para que o locatário deixasse de estar em mora, ainda assim a Ré sempre estaria em mora no momento em que declara que pretende resolver o contrato.
125. Na sentença recorrida vem também o Tribunal a quo sustentar a validade da resolução da Ré por considerar que não se verifica nos autos qualquer dos casos de irresponsabilidade do locador, previstos no artigo 1033.º do CC, indo contra a prova produzida e os factos.
126. E aqui é fácil compreender: ainda que não seja dado como provado o facto actualmente não provado 31 inexiste, seguramente, qualquer facto provado em sentido contrário ou prova que suporte a extracção pelo Tribunal a quo do facto inverso.
127. O artigo 1032.º do CC, atribui responsabilidade ao locador, considerando que o mesmo não cumpriu o contrato de locação, quando a coisa apresentar vício que lhe não permita realizar cabalmente o fim a que é destinada. Todavia, o artigo 1033.º vem eximir o locador da responsabilidade pelos vícios da coisa quando o defeito for da responsabilidade do locatário ou quando o locatário não tenha avisado o locador do defeito, como lhe cumpria.
128. Ora, parece-nos claro pelo supra exposto que as avarias causadas ao veículo – defeito do mesmo – ao que tudo indicia são da responsabilidade da Ré, pelo que não existiria qualquer direito a resolução por parte da mesma. Todavia, ainda que assim não se entendesse, sempre se aplicaria ao caso a alínea d) do 1033.º, que afasta a responsabilidade da Autora pelos defeitos, dado que a Ré não comunicou estes defeitos – na verdade avaria causada pela Ré - aquando da sua ocorrência.
129. A doutrina entende que o aviso do defeito ao locador deve ser imediato, não lhe sendo aplicável o prazo fixado no artigo 916.º/2 do C.C, e que este é obrigação do locatário conforme alínea h) do artigo 1038.º do CC - a que se somam outras que a Ré incumpriu, como as alíneas a) ou d), pelo menos. Assim, para ser imputável aos Autores a responsabilidade pela avaria do veículo – o que se concebe por mera cautela de patrocínio – a Ré teria de ter comunicado esta avaria no momento que esta aconteceu o que, na óptica do Tribunal foi em Março.
130. Ora, não foi isso que sucedeu nos autos, muito pelo contrário, conforme factos provados 10 e 12,
a Ré apenas entrou em contacto com os Autores no mês de Junho de 2020
, reportando uma alegada avaria desde Março de 2020. Deste modo, para se poder afirmar que recaia sobre os Autores a responsabilidade da avaria, a mesma teria de ter sido comunicada na data da sua ocorrência, o que não sucedeu. É até
venire contra factum proprium
deixar um bem avariado deteriorar-se e, perante essa avaria que não deu conhecimento ao proprietário dando oportunidade de a corrigir, resolver o contrato.
131. A fundamentação do Tribunal
a quo
revela-se ainda mais confusa quando procura subsumir a resolução perpetrada pela Ré a um preceito legal, dando a entender, em primeiro lugar, que estamos perante resolução contratual ao abrigo do artigo 1050.º - o que é fruto do, perdoe-se a franqueza,
“copy paste”
efectuado do acórdão deste Venerando Tribunal – e aplicando, em segundo lugar, a retroactividade do artigo 432.º.
132. No que concerne à aplicação do artigo 1050.º, parece-nos cristalino que, embora discutível, apenas estaria em causa a aplicação da alínea a), embora o Tribunal a quo não se importe de distinguir qual a alínea aplicável, mas considera-se que assim seja feita as referências à impossibilidade de uso e gozo do veículo na sentença recorrida. Ora, para que haja direito a resolução à luz deste artigo é necessário que por motivo estranho à pessoa do locatário ou à dos seus familiares, este fique privado do gozo da coisa, ainda que só temporariamente.
133. Prontamente se dirá que, aqui chegados, é obvio que o motivo pelo qual a Ré ficou privada do gozo da coisa se deve à sua conduta, conforme já supra demonstrado, razão suficiente para se afastar o seu direito à resolução.
134. Não obstante, ainda que se considerasse que o motivo não lhe era imputável, a verdade é que a mesma nunca ficou privada do gozo da coisa, ou melhor, ficou privada do gozo da coisa porque assim o quis – privação que os AA. desconheciam.
135. Bem sabendo que o veículo estava coberto por apólice de seguro, conforme já supra referido, apólice essa que dava direito a um veículo de substituição, equacionando-se a hipótese de o veículo se avariar, sempre estaria assegurado o gozo da coisa e, assim, a finalidade do contrato, porque durante o período de arranjo da viatura seria concedido à Ré veículo de substituição, de categoria igual ao superior ao veículo objecto do contrato e coberto pela apólice, razão adicional pela qual se afasta a aplicação do artigo 1050.º CC – já que não foi dada oportunidade aos AA. de serem eles a suprir essa falta de gozo do bem.
136. Surgem exemplos na jurisprudência, referidos no corpo do recurso, no qual a situação dos autos equipara-se à deste: o facto de a Ré ter direito a um carro de substituição, implica que a mesma não fique privada, de modo total, nem sequer temporário, do gozo da coisa.
137. Ademais, nunca poderia operar a retroatividade do artigo 432.º do CC nos presentes autos, porque a Ré, como bem sabia, estava em mora no momento em que manifestou a vontade de resolver o contrato.
138. Deste modo, a parte que se encontra a incumprir o contrato, como era o caso da Ré que se encontrava em mora desde o dia 20 de abril de 2020, não pode pretender fazer retroagir os efeitos da resolução, porque assim estaria a eximir-se ao pagamento de valores que bem sabe serem devidos. Na verdade, estão em crer os Autores que a alegação da avaria como sendo anterior à sua comunicação pode precisamente pretender acomodar uma tentativa de retroactividade da resolução à data do incumprimento dos pagamentos… precisamente o que a proibição da retroactividade naqueles termos visa acautelar!
139. A toda a linha de argumentação supra exposta acresce o seguinte facto: no dia 15 de Junho de 2022, após tentativa de resolução do contrato por parte da Ré, os AA. interpelaram a mesma para pagamento, sob pena de resolução do contrato – conforme Documento 10 da PI.
140. Sucede que, no dia 17/06/2022, após a declaração de resolução e após a interpelação para pagamento, vêm a ser liquidadas as prestações correspondentes aos meses abril e maio de 2020, bem como o reforço vencido no dia 01/06/2020 - conforme Documento 8 da PI.
141. Tais pagamentos e ausência de contactos criaram a convicção de que o contrato se mantém e que a Ré ficou ciente de que a resolução não operara.
142. Qual não é a surpresa dos AA. quando recebem em Novembro um e-mail da “Fórmula F” dando conta de um valor absurdamente elevado de parque Doc. 13 da PI.
143. Os AA. sofreram elevadíssimos prejuízos e requerem, a V. Exas. a sindicância e correcção da sentença ora recorrida, que padece de erros grosseiros ao nível factual, da apreciação da prova, e de aplicação do Direito.
Remataram as suas conclusões da seguinte forma:
“Nestes termos e nos melhores de direito, deve o presente recurso ser julgado procedente por provado e, em consequência:
a) Ser alterada a matéria de facto incorrectamente julgada nos termos acima expostos;
b) Declarando-se a nulidade por violação do princípio do inquisitório nos termos dos artº
s
186º e segs. do CPC., sendo em qualquer caso
c) alterada a decisão de direito nos termos supra requeridos,
Sempre com as demais consequências legais que se impõem, sendo a final procedente o pedido de condenação formulado pelos AA.”
O réu apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.
Admitido o recurso e remetidos os autos a este Tribunal, foi proferido acórdão determinando
“(…) que o Tribunal
a quo
proceda à ampliação da motivação da
decisão sobre matéria de facto, a fim de motivar adequadamente a sua convicção no
tocante a cada um dos pontos de facto não provados, nos exatos termos expostos na
fundamentação do presente aresto.
Voltando os autos ao Tribunal
a quo
, e proferido despacho complementando a motivação da decisão sobre matéria de facto, e remetidos aqueles, de novo, a este Tribunal, o relator proferiu despacho convidando as partes a pronunciar-se sobre um facto superveniente apurado em audiência e suscetível de relevar na apreciação do mérito da causa e do recurso, a saber, a venda do veículo dos autos na pendência da causa.
Exercido o contraditório, foram colhidos os vistos.
2. Objeto do recurso
Conforme resulta das disposições conjugadas dos arts. 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do CPC, é pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso, seja quanto à pretensão dos recorrentes, seja quanto às questões de facto e de Direito que colocam
[6]
. Esta limitação dos poderes de cognição do Tribunal da Relação não se verifica em sede de qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. art. 5º n.º 3 do CPC).
Não obstante, excetuadas as questões de conhecimento oficioso, não pode este Tribunal conhecer de questões que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas
[7]
.
Assim, as questões a apreciar e decidir são as seguintes:
a. A nulidade decorrente da violação do princípio inquisitório – Conclusões 62 a 71;
b. A impugnação da decisão sobre matéria de facto – Conclusões 10 a 5 a 61, e 72 a 82;
c. A resolução do contrato por iniciativa da ré e a sua invocada ineficácia - Conclusões 83 a 143;
d. A contra-exceção de abuso do direito, na modalidade de
venire contra factum proprium
– Conclusão 130;
e. O invocado incumprimento do contrato pela ré, e o consequente o mérito da resolução judicial do mesmo, e das pretensões indemnizatórias deduzidas pelos autores- Conclusões 83 a 143.
3. Fundamentação
3.1. Os factos
3.1.1. Factos provados
O Tribunal
a quo
considerou provados os seguintes factos:
[8]
1- A 1.ª Autora é proprietária de uma viatura de marca Jaguar, Modelo XE Pure, com a matrícula …-XB-….
2- A 1.ª Ré, advogada de profissão, precisava de um carro para se deslocar e, não pretendendo adquirir um, chegou a um consenso com a 1.ª A. em como essa lhe cedia a referida viatura, mediante contrato escrito, que as partes denominaram de
“contrato de cedência de veículo entre particulares”
, datado de 18 de Novembro de 2019.
3- Nos termos do acordo identificado em 2- a 1.ª Ré obrigou-se a pagar uma prestação mensal de 600 € (seiscentos euros), com reforços de 2.000,00 € (dois mil euros) no primeiro dia dos meses de fevereiro, junho e novembro de 2020, bem como no primeiro dia dos meses de fevereiro e junho de 2021.
4- A 1.ª Ré assumiu, ainda, a responsabilidade de liquidar:
a) Todos os impostos, taxas, multas e coimas relacionadas com a utilização, ou detenção do veículo;
b) Todas as revisões e/ou manutenções de acordo com o programa da marca num concessionário Jaguar;
c) Seguro contra todos os riscos com franquia zero.
5- Ademais, durante o período em que perdurasse a cedência da viatura, não podia a 1.ª Ré exceder o limite de 20.000km de circulação por cada 12 meses, sendo, ademais, responsável pela substituição dos quatro pneus aquando da entrega da mesma à 1.ª Autora.
6- A viatura encontra-se coberta pela apólice de seguro n.º … 57 da Ocidental Seguros, com data de início de 25-11-2019, constando a 1.ª Ré como condutora habitual da referida viatura.
7- Os Réus liquidaram os seguintes valores:
a) 30.11.2019 - € 835,27 (oitocentos e trinta e cinco euros e vinte e sete cêntimos) – prestação correspondente ao mês de novembro de 2019;
b) 03.02.2020 - € 3.200,00 (três mil e duzentos euros) – prestação correspondente aos meses de dezembro de 2019 e janeiro de 2020 e reforço correspondente ao mês de fevereiro de 2020;
c) 05.03.2020 - € 600,00 (seiscentos euros) – prestação correspondente ao mês de fevereiro de 2020;
d) 27.04.2020 - € 600,00 (seiscentos euros) prestação correspondente ao mês de março de 2020;
e) 17.06.2020 - € 1.200,00 (mil e duzentos euros) prestação correspondente aos meses de abril de 2020 e de maio de 2020 .
8- A primeira prestação paga (30.11.2019) contempla o valor devido pelo seguro automóvel correspondente à apólice supramencionada, e foi a única prestação liquidada pela 1.ª Ré.
9- Todas as demais foram liquidadas pelo 2.º Réu, o fiador da 1.ª R.
10- No dia 12 de Junho de 2020, a 1.ª Ré remeteu um e-mail ao 2.º A. onde consta:
“Após a n/a conversa de há minutos atrás, e na impossibilidade de chegar a acordo com relação à cedência do veículo acima identificado, venho por este meio e uma vez que não obtive resposta aos emails enviados no que se refere à imobilização do Jaguar XE por avaria, rescindir o contrato celebrado em 18 de Novembro de 2019 por inutilidade superveniente uma vez que o bem objecto do contrato de cedência se encontra avariado desde 28 de Março de 2020 data em que vigorava o EdE, tendo sido transportado para a oficina e recebido orçamento em 27/05/2020, estando a aqui locatária impedida do gozo do veículo.
A resolução aqui comunicada tem efeitos à data de recepção do orçamento de reparação do veículo em que se confirma a avaria não ser imputável a mau uso ou a accão ou omissão da Segunda Contraente (27/05/2020) e não antes em virtude do EdE decretado.
Sendo o veículo propriedade da Sra. A … e com a rescisão aqui comunicada (embora conhecimento da proprietária) o veículo encontra-se à V/ disposição na oficina Fórmula F, Quinta … …, Rua …- Lote …, 2685-870 Sacavém para recolha, conforme cópia do orçamento remetido em 04/06”.
11-
Em virtude de nessa altura haver pagamentos incumpridos, a Autora remeteu, por intermédio de mandatário, uma missiva datada de 15 de Junho de 2020, advertindo a 1.ª Ré e o fiador do incumprimento dos valores devidos pelas prestações vencidas referentes aos meses de Abril e Maio, bem como quanto ao reforço vencido no dia 1 de Junho de 2020, num total de € 3.200 (três mil e duzentos euros) .
12-
A 1.ª R. enviou ao 2º Autor, a 04.06.2020 um email com o seguinte conteúdo:
“Olá F …,
Como sabes o carro está imobilizado desde 28 de Março, nessa data estava em vigor o estado de emergência e não havia oficinas nem meios para se fazer diagnóstico.
No dia 19/05 foi transportado de reboque para oficina, foi feito diagnóstico que me chegou por email no dia 27/05 e no valor de 2.546,006 sendo que foi o turbo que se estragou, foi-me dito que teria também de ser visto se há danos provocados no motor, segundo o mecânico pode acontecer.
É certo que as prestações acordadas pela utilização do carro não foram pagas pontualmente, mas estão liquidadas / até fim de Março.
Neste momento e por causa da situação actual que veio agravar as dificuldades que tinha desde meados de Janeiro é-me impossível manter o contrato, o estado de emergência e a situação actual tomaram impossível suportar este encargo.
Queria saber se estás disponível para rescindir o contrato com a recolha imediata do carro e se atendendo à actual conjuntura concedes uma moratória de 3 meses para liquidação das prestações de Abril e Maio? (à semelhança do que fazem os concessionários, stands, financeiras etc).
Não te consigo ligar hoje estou a acabar um projecto que tem de ir para o ar amanhã.
Ligo-te amanhã logo de manhã.
Envio em anexo o orçamento como combinado.
Obrigada”
13- As prestações trimestrais relativas aos meses de Fevereiro e Março de 2020 do seguro automóvel, no montante individual de 235,52€ não foram pagas.
14- A 4 de novembro de 2020, a Autora recebeu um e-mail da oficina
“Fórmula F”
, sita em Sacavém, assinada pelo Sr. F …, informando que aí se encontrava parqueada a viatura …-XB-…, somando-se já o valor do parque em € 2.950,00 (dois mil novecentos e cinquenta euros) acrescido de IVA.
15- A Ré entregou-lhe a viatura, tendo a oficina
“Formula F”
, elaborado dois orçamentos em nome daquela, datados de 20.05.2020: um descritivo dos trabalhos a realizar na viatura e outro concernente ao valor do parque.
16- A Autora procedeu ao levantamento da viatura através de reboque no dia 5 de janeiro de 2021, tendo liquidado a quantia de 1.845,00 a título de parqueamento.
17- A viatura, no dia de 5 de janeiro levada por reboque para a oficina Auto DCS.
18- Na Oficina verificaram que a viatura não tinha bateria.
19- Não tinha óleo.
20- O turbo estava partido.
21- Verificaram ainda que após retirar o turbo da viatura e carregada a bateria, o motor fazia um grande barulho.
22- Os AA. ainda não procederam ao arranjo do veículo.
23- A Ré não procedeu ao pagamento das prestações relativas aos meses de junho de 2020 a dezembro de 2020 e, bem assim, aos reforços de junho e novembro de 2020, cifram-se em € 8.200 (oito mil e duzentos euros).
24- A 1.ª A. procedeu ao pagamento dos montantes, a título de seguro automóvel, no valor total de € 957.98 (novecentos e cinquenta e sete euros e noventa e oito cêntimos) devidos pelas seguintes prestações (Prestação de 28-02-2020 a 29-05-2020: 242.19€; Prestação de 29-052020 a 29-08-2020: 236.80€; Prestação de 29-08-2020 a 29-11-2020: 236.80€; Prestação de 2911-2020 a 28-02-2021: 242.19€).
25- A viatura tinha registado 84.765 km quando retornou à posse dos Autores.
3.1.2. Factos não provados
O Tribunal
a quo
considerou não provados os seguintes factos
[9]
:
26- Para resolução das sobreditas avarias, previa-se que o valor desta intervenção ascendesse a €12.000,25 (doze mil euros e vinte e cinco cêntimos).
27- Por se revelar insuficiente uma intervenção apenas a nível do turbocompressor, os AA. lograram obter um orçamento para reparação da viatura na oficina Land Rover - Auto Sueco, sita em Barcarena, a 11/02/2021.
28- Estimando-se que as reparações irão ascender a € 14.657,28 (catorze mil, seiscentos e cinquenta e sete euros e vinte e oito cêntimos) – conforme orçamento que se junta como Doc.20.
29- Em momento anterior à entrega da viatura à 1.ª R., mais concretamente, a 19/08/2019, a viatura em causa tinha ido à revisão automóvel na marca, Carclasse Lisboa, sita na Avenida Marechal Gomes da Costa.
30- Nessa data, foi feito um check-up geral à viatura, substituíram-se peças e procedeu-se às reparações que se demonstravam necessárias – todas estas discriminadas na fatura já junta como Doc.21 –, tendo-se ainda procedido à substituição do óleo e respetivo filtro.
31- A viatura encontrava-se em bom estado quando foi entregue pelos Autores à Ré no início do contrato.
3.2. Os factos e o direito
3.2.1. Da nulidade processual
Sustentaram os apelantes que a circunstância de o Tribunal
a quo
não ter determinado oficiosamente a realização de uma perícia ao automóvel dos autos configura uma nulidade processual, prevista no art. 195º do CPC, na medida em que tal omissão conduziu à não demonstração dos factos vertidos nos pontos 29 e 30 dos factos não provados, o que seria evitado se aquela perícia tivesse sido levada a cabo
[10]
.
Vejamos então.
Estabelece o art. 195º, nº 1 do CPC que não se verificando os casos previstos nos números anteriores
[11]
,
“a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”
.
No caso vertente é manifesto que a lei não prevê especificamente que a omissão da diligência probatória referidas pelos apelantes constitua nulidade processual, pelo que só poderá estar em causa uma nulidade secundária.
Assim, serão requisitos da verificação de uma tal nulidade:
-
a prática de ato que a lei não permita, ou a omissão de ato ou formalidade que a lei imponha;
-
que tal ato ou omissão influa no exame ou decisão da causa
A este propósito haverá que recordar que em regra o meio processual adequado para invocar nulidades processuais não é o recurso para o Tribunal da Relação, mas a arguição de nulidades perante o Tribunal recorrido
[12]
.
Não obstante, caso a nulidade se revele por efeito de uma decisão recorrível, então o meio próprio para a impugnar será o recurso.
Com efeito, já em 1945 ensinava ALBERTO DOS REIS
[13]
:
“a arguição de nulidade só é admissível quando a infracção processual não está ao abrigo de qualquer despacho judicial; se há um despacho a ordenar ou autorizar a prática ou omissão do acto ou da formalidade, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade que se tenha cometido, não é a arguição ou reclamação por nulidade, é a impugnação do respectivo despacho pela interposição do recurso competente.
Eis o que a jurisprudência consagrou nos postulados: dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se.
É fácil justificar esta construção. Desde que um despacho tenha mandado praticar determinado acto, por exemplo, se porventura a lei não admite a prática dêsse acto é fora de dúvida que a infracção cometida foi efeito do despacho; por outras palavras, estamos em presença dum despacho ilegal, dum despacho que ofendeu a lei do processo. Portanto a reacção contra a ilegalidade traduz-se num ataque ao despacho que a autorizou ou ordenou; ora o meio idóneo para atacar ou impugnar despachos ilegais é a interposição do respectivo recurso (...)”
.
Na mesma linha se pronunciou MANUEL DE ANDRADE
[14]
:
“(...) se a nulidade está coberta por uma decisão judicial que ordenou, autorizou ou sancionou, expressa ou implicitamente, a prática de qualquer acto que a lei impõe, o meio próprio para a arguir não é a simples reclamação, mas o recurso competente a interpor e a tramitar como qualquer outro do mesmo tipo. Trata-se em suma da consagração do brocardo: «dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se»”.
Também ANTUNES VARELA
[15]
dizia:
“se entretanto, o acto afectado de nulidade for coberto por qualquer decisão judicial, o meio próprio de o impugnar deixará de ser a reclamação (para o próprio juiz) e passará a ser o recurso da decisão”
.
Finalmente argumentou ANSELMO DE CASTRO
[16]
:
“Tradicionalmente entende-se que a arguição da nulidade só é admissível quando a infracção processual não está, ainda que indirecta ou implicitamente, coberta por qualquer despacho judicial; se há um despacho que pressuponha o acto viciado, diz-se, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade cometida, não é a arguição ou reclamação por nulidade, mas a impugnação do respectivo despacho pela interposição do competente recurso, conforme a máxima tradicional – das nulidades reclama-se, dos despachos recorre-se. A reacção contra a ilegalidade volver-se-á então contra o próprio despacho do juiz; ora o meio idóneo para atacar impugnar despachos ilegais é a interposição do respectivo recurso (…), por força do princípio legal de que, proferida a decisão, fica esgotado o poder jurisdicional do juiz (art. 666.º)”
.
É este também o entendimento pacífico da jurisprudência dos tribunais superiores [neste sentido, cfr., por todos, ac.
RL 09-05-2019 (Isoleta Almeida Costa), p. 8764/16.3T8LSB.L1-8
].
No caso em apreço, como vimos, os apelantes consideram que a realização de uma perícia, que em seu entender o Tribunal
a quo
deveria ter determinado oficiosamente constitui um ato que a lei prescreve e que a sua omissão influiu no exame da causa.
Poder-se-ia acrescentar que da argumentação dos apelantes decorre que a nulidade invocada se revelou apenas com a prolação da sentença o que, como se depreende do supra exposto, os habilitaria a invocar esta nulidade apenas em sede de recurso, na medida em que a influência da referida omissão na apreciação e decisão da causa só se manifestou com a prolação da sentença e o facto de esta ter julgado a ação improcedente.
Sucede, contudo, que do inciso inicial do nº 1 do art. 195º do CPC decorre de forma clara que a figura da nulidade processual secundária é manifestamente subsidiária, o que significa que a mesma só ocorre quando a lei não comine outra consequência para a prática de um ato processual não admitido ou a omissão de ato processual imposto por lei.
Ora, no caso vertente, é isso mesmo que se passa.
Temos por inequívoco que o art. 411º do CPC consagra a possibilidade de o Tribunal determinar, mesmo oficiosamente, a realização das diligências probatórias ao apuramento dos factos em discussão na causa, numa clara manifestação do princípio do inquisitório na instrução da causa, e admitindo-se que se trata de um poder cujo exercício envolve uma certa margem de discricionariedade, mas ainda assim se deve entender vinculado pela finalidade visada, numa clara manifestação de discricionariedade técnica.
Porém, a lei processual prevê um remédio específico para suprir a injustificada omissão do exercício de tal poder: o mecanismo previsto no art. 662º, nº 2, al. c) do CPC.
Com efeito, estabelece esta disposição legal que a Relação deve, mesmo oficiosamente, anular a decisão probatória proferida na 1ª instância quando, não dispondo de todos os elementos que permitam alterar a decisão sobre matéria de facto, a repute de deficiente, ou quando considere necessário ampliá-la, acrescentando o nº 3, al. a) do mesmo preceito que a prolação de nova decisão sobre matéria de facto pelo Tribunal
a quo
pode ser antecedida de novas diligências de prova.
Daqui decorre, com clareza, que as situações como as descritas nos autos não configuram nulidade, nos termos previstos no art. 195º do CPC, embora possam conduzir à anulação da decisão probatória, nos termos previstos no art. 662º, nº 2, al. c), com as consequências previstas na al. a) do nº 3 do mesmo preceito.
Termos em que se conclui que não se verifica a nulidade invocada pelos apelantes.
3.2.2. Da impugnação da decisão sobre matéria de facto e da falta de motivação desta, no tocante aos factos não provados
3.2.2.1. Dos ónus impugnatórios
Dispõe o art. 662º n.º 1 do CPC que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente, impuserem decisão diversa.
Por seu turno estatui o art. 640º n.º 1 do mesmo código que quando seja impugnada a decisão sobre matéria de facto deve o recorrente especificar, sob pena de rejeição:
a) os concretos factos que considera incorretamente julgados;
b) os
concretos meios probatórios
constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada,
que imponham decisão
sobre os pontos da matéria de facto impugnados
diversa da recorrida
; e
c) a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
O n.º 2 do mesmo preceito concretiza que, sempre que o recorrente se baseie em meios probatórios gravados
[17]
, incumbe-lhe, sob pena de imediata rejeição,
indicar com exatidão as passagens da gravação
em que funda o recurso.
A lei impõe assim ao apelante específicos ónus de impugnação da decisão de facto, sendo o primeiro o ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto proferida, o qual implica a análise crítica da valoração da prova feita em primeira instância, tendo como ponto de partida a totalidade da prova produzida.
Sumariando todos os ónus impostos pelo citado preceito, ensina ABRANTES GERALDES
[18]
:
“(…) podemos sintetizar da seguinte forma o sistema que agora vigora sempre que o recurso de apelação envolva a impugnação da decisão sobre a
matéria de facto
:
a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os
concretos pontos de facto
que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso, e síntese nas conclusões;
b) Deve ainda
especificar
, na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos;
c) Relativamente aos pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em
provas gravadas
, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos;
d) (…)
e) O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente;
f) (…).”
Nos termos do disposto no art. 640.º, n.º 2, al. b) do CPC, a inobservância deste ónus tem como consequência
“a imediata rejeição do recurso na respetiva parte”
.
Esta
respetiva parte
será a parte do recurso referente à impugnação da matéria de facto afetada pela inobservância daquele(s) ónus.
No caso em apreço, afigura-se inequívoco que os apelantes observaram todos os ónus consagrados no art. 640º do CPC, pelo que nada obsta à apreciação do mérito da impugnação da decisão sobre matéria de facto.
3.2.2.2. Apreciação
No caso vertente, a impugnação da decisão sobre matéria de facto incide sobre os pontos 26 a 31, que o Tribunal
a quo
considerou não provados.
3.2.2.2.1. Pontos 26 a 28
Os pontos 26 a 28 da decisão probatória (factos não provados) têm a seguinte redação:
26. Para resolução das sobreditas avarias, previa-se que o valor desta intervenção ascendesse a €12.000,25 (doze mil euros e vinte e cinco cêntimos)
27. Por se revelar insuficiente uma intervenção apenas a nível do turbocompressor, os AA. Lograram obter um orçamento para reparação da viatura na oficina Land Rover – Auto-Sueco, sita em Barcarena, a 11/02/2021.
28. Estimando-se que as reparações irão ascender a € 14.657,28 (catorze mil, seiscentos e cinquenta e sete euros e vinte e oito cêntimos) – conforme orçamento que se junta como Doc.20 e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
Do trecho da fundamentação da sentença apelada que se reporta à motivação da decisão sobre matéria de facto respeitante aos factos não provados consta o seguinte:
“Quanto aos factos 26, 27 e 28 não provados assim o foram considerados atendendo:
“A testemunha F … referiu, então que o veículo não tinha óleo nem bateria. Mais referiu que o motor fazia muito barulho e que o turbo estava partido. Não reparando motores, não foi possível reparar o turbo. Ligou de volta ao Autor e disse-lhe para ir buscar o veículo. Tal como a testemunha anterior, o seu depoimento foi credível e não tentou ir além dos seus conhecimentos.”
O documento 19 junto com a PI, aliás impugnado, e o depoimento da testemunha E …, colocou desde logo em crise o seu conteúdo tendo em conta o demais verificado por este aquando do diagnóstico do estado da viatura.
Consequentemente, o documento 20, também impugnado, não teve sob o mesmo a produção de qualquer prova nem obteve reflexo do documento anterior.”
Os apelantes discordam deste entendimento, sustentando que os factos em apreço devem considerar-se provados. Para tanto invocaram os documentos nº
s
19 e 20 juntos com a petição inicial e os depoimentos das testemunhas F ….
Em abono da tese que propugnam transcreveram os seguintes trechos dos depoimentos invocados:
[19]
Testemunha E …
00:02:22 – 00:03:04
“Mandatária: Boa tarde Sr. F …, referiu que é patrão na oficina Auto DCS, correto?
Testemunha: Sim.
Mandatária: E disse também que sabe do que é que estamos aqui a falar.
Testemunha: Sim.
Mandatária: Pode por favor explicar ao tribunal a sua intervenção?
Testemunha: Mandaram-me um carro para a minha oficina de reboque.
Mandatária: Que carro?
Testemunha: O Jaguar, o E … tinha ligado “Olha vou-te mandar um carro com o turbo todo partido” e eu “Então manda” é a minha área, o carro quando lá chegou, mas quer que eu lhe dê detalhes de outros procedimentos que a gente faz?
Mandatária: O máximo que se lembrar por favor.
Testemunha: Não fui eu que estava de volta do carro mas os procedimentos funcionam lá pelos empregados é sempre igual. Quando vem um carro do reboque a primeira coisa que a gente vai fazer é sempre ver o nível de óleo do carro, saber o porquê do carro foi para lá e entretanto disseram que o turbo estava partido. Entretanto, fez-se a desmontagem das primeiras partes que é o filtro da ar para chegar ao pé do turbo e ver-se que o tubo tava partido, pronto, tirou-se o turbo fora que é o procedimento normal, vê-se o nível do óleo se está baixo se está alto, se estiver pouco óleo a gente mete um bocado de óleo a nível, estrapa o tubo da lubrificação como vimos se tem bateria se não tem, desligamos as fichas dos injetores, damos à chave, limpar algum gasóleo que tenha para não haver uma, o carro não desalvorar, prontos, quando se fez o trabalho, foi se dar à chave o motor fazia muito barulho, como fazia muito barulho a gente automaticamente parou, informou-se o cliente a dizer “Olhe o carro tem uma batida muito grande no motor não vamos proceder à reparação porque isto tem a ver com o motor primeiro e depois a gente repara o turbo”, não se vai reparar o turbo e pronto o que a gente lá fez. Mandatária: O senhor na sua oficina não repara motores é isso?
Testemunha: Não, mas tenho causas porque sei os barulhos dos sintomas dos carros.
Mandatária: E foi por isso que não reparou o turbo?
Testemunha: Claro, aquilo fazia muito barulho, ao dar à chave apercebe-se que o motor fazia muito barulho, como faz muito barulho e a gente automaticamente não reparamos o turbo, normalmente os carros vão para outras oficinas que reparam motores e nós reparamos depois o turbo a posteriormente.”
00:02:23 – 00:04:51
“Mandatária: Boa tarde Sr. F …, referiu que é patrão na oficina Auto DCS, correto?
Testemunha: Sim.
Mandatária: E disse também que sabe do que é que estamos aqui a falar.
Testemunha: Sim.
Mandatária: Pode por favor explicar ao tribunal a sua intervenção?
Testemunha: Mandaram-me um carro para a minha oficina de reboque.
Mandatária: Que carro?
Testemunha: O Jaguar, o E … tinha ligado “Olha vou-te mandar um carro com o turbo todo partido” e eu “Então manda” é a minha área, o carro quando lá chegou, mas quer que eu lhe dê detalhes de outros procedimentos que a gente faz?
Mandatária: O máximo que se lembrar por favor.
Testemunha: Não fui eu que estava de volta do carro mas os procedimentos funcionam lá pelos empregados é sempre igual. Quando vem um carro do reboque a primeira coisa que a gente vai fazer é sempre ver o nível de óleo do carro, saber o porquê do carro foi para lá e entretanto disseram que o turbo estava partido. Entretanto, fez-se a desmontagem das primeiras partes que é o filtro da ar para chegar ao pé do turbo e ver-se que o tubo tava partido, pronto, tirou-se o turbo fora que é o procedimento normal, vê-se o nível do óleo se está baixo se está alto, se estiver pouco óleo a gente mete um bocado de óleo a nível, estrapa o tubo da lubrificação como vimos se tem bateria se não tem, desligamos as fichas dos injetores, damos à chave, limpar algum gasóleo que tenha para não haver uma, o carro não desalvorar, prontos, quando se fez o trabalho, foi se dar à chave o motor fazia muito barulho, como fazia muito barulho a gente automaticamente parou, informou-se o cliente a dizer “Olhe o carro tem uma batida muito grande no motor não vamos proceder à reparação porque isto tem a ver com o motor primeiro e depois a gente repara o turbo”, não se vai reparar o turbo e pronto o que a gente lá fez. Mandatária: O senhor na sua oficina não repara motores é isso?
Testemunha: Não, mas tenho causas porque sei os barulhos dos sintomas dos carros.
Mandatária: E foi por isso que não reparou o turbo?
Testemunha: Claro, aquilo fazia muito barulho, ao dar à chave apercebe-se que o motor fazia muito barulho, como faz muito barulho e a gente automaticamente não reparamos o turbo, normalmente os carros vão para outras oficinas que reparam motores e nós reparamos depois o turbo a posteriormente.”
00:03:49 e 00:04:48:
Testemunha: O carro tinha uma avaria no turbocompressor, mas não se conseguiu averiguar o resto do danos porque não tivemos autorização para fazer a desmontagem do veículo.
Juiz: Não tiveram autorização para?
Testemunha: Para fazer desmontagem.
Juiz: Hm.
Mandatária: Por parte de quem?
Testemunha: Sempre fui contactado pela, pela D. H ….
Mandatária: E após fazer este orçamento do carro e após receber os valores a quem é que remeteu o referido orçamento?
Testemunha: À única pessoa que conheci na altura que me foi indicada como responsável, a D. H ….
Mandatária: Diga-me uma coisa, ao nível do motor chegaram a avaliar o carro?
Testemunha: Não, verificou-se que o turbocompressor tinha danos, mas a nível interno de motor não conseguimos verificar.
Mandatária: Pela tal questão de não ter autorização para fazer a desmontagem…
Testemunha: Sim, teria que fazer a desmontagem.”
Declarações de parte do autor
00:02:20 – 00:02:35
“Juiz: Depois temos a outra questão que é a reparação do veículo, mas entretanto mandou ir buscar o carro aonde ele estava parqueado mandou ir para uma oficina, essa oficina devolveu o carro e depois levou-o para uma outra oficina, correto?
Autor: Certo”
00:02:36 – 00:04:06
“Juiz: Pronto, e qual foi o valor que foi pedido pela reparação?
Autor: Meritíssima primeiro começou por analisar a viatura também… Um cálculo, achavam que o motor estava a fazer muito barulho, se calhar conseguiam poupar dinheiro, ao fim de 15 dias lá chamaram quer era muitas horas que era muito tudo quanto eu queria pelo carro que o carro o motor não sabiam o que fazer, já não sabia do turbo, puderam algum líquido indevido, tinha ali muitos problemas e depois acabei por dizer 27, 28 como assim ofereceram-me 15000 euros Meritíssima a pagar em prestações como nós não conseguíamos aguentar reparações e tudo nesta altura do campeonato, achamos por bem mesmo sendo em prestações, entregar o carro a pessoas que percebessem da situação, porque Meritíssima no contrato era sempre para a Jaguar sempre Jaguar para defender todas as partes.
Juiz: Diga-me só uma coisa mas chegaram a dizer-lhe qual era o valor desse orçamento?
Autor: Meritíssima se fosse um motor novo que iria sempre para os 13.000 euros por a volta desse valor, se fosse usado podiam arranjar por volta dos 7000 euros mais o turbo usado mais 2000 iria uns 10, 11.000 euros.
Juiz: Ou seja o valor seria sempre entre 11 e 13 é isso?
Autor: Sim Meritíssima, sempre, sempre, sempre.”
Apreciando, e no que diz respeito ao ponto 26, diremos que do depoimento da testemunha E …, mecânico que examinou o veículo dos autos e ao qual o Tribunal
a quo
atribuiu credibilidade resultou de forma evidente que o mesmo considerou que o veículo dos autos necessitava de uma reparação no seu turbo, e que para verificar se necessitaria também de reparar o motor, necessitaria de o abrir, coisa que a ré não autorizou. Deste depoimento resulta de forma inequívoca que a mencionada testemunha considerou necessário verificar o estado do motor, sendo certo que o mesmo também afirmou que naquela oficina não reparavam motores. Esta menção à eventual necessidade de reparar o motor do veículo encontra ainda eco no documento nº 19 junto com a petição inicial, emitido pela “Auto DCS” (a empresa da testemunha E …, conforme o mesmo esclareceu), no qual se refere que aquela oficina recebeu o veículo dos autos em 05-01-2019, e, para além de se mencionar que o turbo se encontrava partido, se consigna ainda que
“o motor tem uma batida bastante grande”
. Aliás, no seu depoimento, a testemunha E … também referiu que o motor
“tinha uma batida”
. e que informou o autor desse facto (06:00 – 06:08). Mais adiante explicou ainda que essa “batida” pode ter sido causada pela rotura do turbo, e que não decorreu de acidente ou pancada exterior no motor.
Por outro lado, no seu depoimento, o autor referiu que noutra oficina lhe apresentaram uma estimativa de custo da reparação do veículo entre € 11.000 e 13.000.
Quanto ao documento nº 19, verifica-se ser um orçamento com o timbre da Auto-Sueco com data de 06-01-2021, onde consta o nome da autora, bem como os dizeres ”MOTOR-DESMONTADO” e “TURBOCOMPRESSOR”, e o valor global de € 12.000,25.
Este documento parece, pois, referir-se ao custo estimado do fornecimento de um motor e de um turbocompressor.
Já o documento nº 20 ostenta o timbre da Auto-Sueco II Automóveis, S.A. e reporta-se a uma “estimativa” do custo da reparação do veículo dos autos (ali consta a matrícula do mesmo), com o valor global de € 14.657,28, que compreende, nomeadamente, a substituição do motor e do turbocompressor.
Não obstante ter um valor global superior ao do orçamento que constitui o doc. 19, é possível verificar que a diferença entre ambos se explica pelo fornecimento de outras peças como juntas, parafusos, e um termóstato, bem como óleo, sendo plausível que se tratasse de elementos necessários à concretização da reparação do veículo assente na substituição do motor e do turbocompressor, com vista a repor o mesmo em condições de circular.
Da análise conjugada dos apontados meios de prova é possível concluir, com suficiente segurança que a autora obteve um orçamento no valor mencionado no ponto 26, mas que este valor não se reportava propriamente a uma reparação, mas sim ao custo de um turbocompressor e um motor, a incorporar no veículo.
Por outro lado, resulta igualmente do mesmo acervo probatório, nomeadamente do doc. 20 junto com a petição inicial que foi elaborado um segundo orçamento, referente com vista à reparação do veículo, que incluía a substituição do motor e do turbocompressor.
É certo que quer este foi emitido em nome de uma sociedade comercial, a
“A.C. Importação Exportação, Lda”
[20]
. Porém, os autos indiciam claramente que se tratava de uma empresa dos autores. Com efeito e desde logo, verificamos que no documento nº 21 junto com a petição inicial (outro orçamento emitido em nome da mesma sociedade) consta como endereço… a
“moradia Bernardino”
. E, por outro lado, aquando da prestação dos respetivos depoimentos, ambos os autores declararam ser empresários, e que a sua empresa se denomina
“Afonsinhos do Condado”
.
Esta afirmação encontra igualmente eco no registo comercial do veículo dos autos (refª … 61, de 19-05-2025), do qual consta que em 22-06-2020 o direito de propriedade relativo ao mesmo veículo foi registado a favor da mencionada empresa, através da apresentação … 77 para, logo de seguida, e na mesma data, o mesmo direito ser registado a favor da autora, mediante a apresentação 06178.
A sigla A.C. corresponderá, assim, à “Afonsinhos do Condado”, ou seja, à empresa dos autores.
Assim sendo, decide-se:
1- Alterar a redação dos pontos 26 a 28, fundindo os pontos 27 e 28, e transferir tais pontos para o elenco de factos provados, com a seguinte redação
-
Em 06-01-2021 a Auto Sueco II Automóveis S.A. elaborou orçamento relativo ao fornecimento de um motor e de um turbocompressor para incorporar no veículo identificado em 1-, no valor de 12.000,25.
-
Em 11-02-2021 a Auto Sueco II Automóveis S.A. estimou o custo da reparação do veículo identificado em 1-, com substituição do motor e do turbocompressor, em € 14.657,28.
3.2.2.2.2. Pontos 29 e 30
Os pontos 29 e 30 têm tem a seguinte redação:
29-Em momento anterior à entrega da viatura à 1.ª R., mais concretamente, a 19/08/2019, a viatura em causa tinha ido à revisão automóvel na marca, Carclasse Lisboa, sita na Avenida Marechal Gomes da Costa
30- 3Nessa data, foi feito um check-up geral à viatura, substituíram-se peças e procedeu-se às reparações que se demonstravam necessárias – todas estas discriminadas na fatura já junta como Doc.21 –, tendo-se ainda procedido à substituição do óleo e respetivo filtro.
Do trecho da fundamentação da sentença apelada que se reporta à motivação da decisão sobre matéria de facto respeitante aos factos não provados consta o seguinte:
“Quanto aos factos 29, 30 e 31 não provados assim o foram considerados atendendo às seguintes contradições entre os documentos e a ausência de prova (cf. resulta do último paragrafo):
“A testemunha G … não demonstrou conhecimento algum dos factos, tendo-se limitado a divagar quanto ao conteúdo da factura da Carclass.
Alias, desta factura resultam varias dúvidas: desde logo, até para um leigo, fácil é aferir que algo se passou inicialmente com o veículo, nomeadamente atendendo aos itens constantes na primeira folha e aos dois primeiros da segunda nos quais se verifica que o veículo foi eventualmente interveniente num acidente de viação (não obstante o que foi feito constar na Apólice (doc.3 junto com a PI) onde, consta 0 sinistros, mas onde também a Autora está identificada como “solteira”, pelo que verifica a falta de rigor declaratório.
Acresce que, mesmo resultando que o óleo foi mudado, desde logo não se vislumbra como seria possível, em quatro meses, a “ausência” de óleo. Salvo melhor opinião ou efectivamente não foi colocado o óleo ou então, quando foi entregue o veículo não estava em condições. Acresce que, não sabendo quantos quilómetros a Ré percorreu (mas nunca mais de 3.268) um óleo colocado num carro em perfeitas condições (no âmbito de uma revisão) dura, pelo menos, até à revisão seguinte, e não menos de seis meses…
Quanto à revisão, a mesma – realizada pelos Autores antes de entregarem à Ré - ocorreu mais de 13.000 km depois do sugerido! O que desde logo sugere falta de cuidado por parte dos Autores na manutenção do veículo.
Quanto à questão do turbo: o veículo é de Maio de 2016, tendo alegadamente à data de Agosto de 2019, 81.496 km e na data do retorno à posse dos Autores 84.765. O que desde logo demonstra que o veículo fez em média mensal 2.000 km…. Sendo certo que, entre 22.01.2019 e 19.08.2019 percorreu 63 km (cf. documento junto a 3.03.2022) o que nos leva a questionar “porquê?” - e entre 18 de Novembro e Junho de 2020 (Março de 2020) percorreu 3.269, Existem dúvidas quanto à integridade do veículo (conforme supra se referiu), considerando desde logo os poucos quilómetros que percorreu nas mãos da Ré, ou que a mesma foi, por si, interveniente num acidente. Repare-se que, para partir o turbo, e imputa-lo à falta de óleo, o passo é de gigante, pois inexistem de todo elementos para tal, na certeza que incumbia aos Autores demonstrarem que o veiculo foi entregue em perfeitas condições, o que, como se viu não o lograram. Tendo aliás determinado várias dúvidas.
No que se reporta à bateria a mesma parece-nos imputável ao facto de o veículo estar parado, mormente durante o período de Estado de Emergência, o qual, como infelizmente sabemos, determinou o encerramento das oficinas (e a impossibilidade de reboque do veículo).
Esta factura, bem como os orçamentos foram impugnados e atentas as dúvidas e a ausência de prova sobre os mesmos, foram considerados os respectivos factos como não provados.”
Os apelantes discordam desta decisão, considerando que os factos em apreço devem considerar-se provados.
Para tanto invocam o documento nº 21 junto com a petição inicial, bem como o depoimento da testemunha G …, transcrevendo o seguinte trecho deste último:
00:02:14 – 00:03:15
“Mandatária: Olá boa tarde Sr. G … diz que trabalhava para a Carclasse e nos últimos tempos para a Mercedes, trabalhou na parte da Jaguar?
Testemunha: Trabalhei na parte da jaguar, durante cerca de quatro anos e tal não consigo precisar.
Mandatária: E o quê que fazia em concreto na parte da Jaguar?
Testemunha: Assessor de clientes também.
Mandatária: Peço desculpa não percebi.
Testemunha: Assessor de clientes.
Mandatária: Assessor de clientes, e isso consubstancia basicamente o quê?
Testemunha: É receber os clientes, acompanhar o processo, dizer por que é que precisa de gastar ou não, se quer ajuda ou não que mas na realidade foi isso que eu fiz durante parte do tempo que cá tive.
Mandatária: E isto para todo o nível de intervenções, manutenções, revisões?
Testemunha: Sim, sim, na generalidade.
Mandatária: Sabe, consegue explicar qual é o procedimento de revisão na marca da Jaguar?
Testemunha: É assim o procedimento tem que correr os procedimentos da marca, a marca manda fazer uma revisão x substituições mais isto, tem que se cumprido…”
00:07:31 – 00:08:11
“Testemunha: É assim, a quantidade de óleo não são os rececionistas ou os assessores de clientes, entre aspas, que estão dentro da oficina a controlar.
Mandatária: Mas estando essa identificação ali significa que os colaboradores intervencionaram o carro ao nível do óleo?
Testemunha: Exactamente, a nível de tudo, a nível de tudo o que tá provisionado, em todas as marcas de concessionários, o que está definido para fazer em determinada revisão é para fazer ponto, não é, por isso é que o cliente vem à marca e não vai fora da marca.”
Analisando o doc. nº 21 junto com a petição inicial, verifica-se que o mesmo é uma fatura emitida em 19-08-2019 pela Carclasse, Comércio de automóveis, S.A., que se reporta ao veículo dos autos e refere atividades de manutenção do mesmo, ostentando os dizeres expressos “MANUTENÇÃO 68.000 KM 48 km”, e enumerando diversas reparações e substituição de peças, incluindo ´filtro de óleo, bem como fornecimento de óleo.
Acresce que tais informações constam igualmente do doc. nº 2 junto com o requerimento com a refª … 53/… 84, de 03-03-2022 que pela sua aparência se depreende ter sido extraído do sistema informático da assistência técnica da marca Jaguar, do qual consta que 20-08-2019 o veículo dos autos foi
[21]
objeto de revisão na Carclasse.
[22]
Como já mencionámos, o facto de a fatura estar emitida em nome de uma sociedade comercial não nos suscita dúvidas de maior, dado que a prova produzida permite concluir que se trata da empresa dos autores.
Por outro lado, o facto de os trabalhos terem sido faturados também indicia que foram efetuados, pois a experiência comum demonstra que as oficinas só faturam trabalhos já efetuados.
Isso mesmo comprovam os documentos juntos pela própria Carclasse, anexos à mensagem de correio eletrónico com a refª … 32, de 31-03-2022, a saber, a fatura em questão, e o comprovativo bancário que documenta o respetivo pagamento (feito pela sociedade “Os Afonsinhos do condado Imp Exp, Lda”).
Tais documentos foram exibidos à testemunha G … que a fatura em questão foi emitida pela Carclasse.
Nesta conformidade, não comungamos das dúvidas manifestadas pela Mmª Juíza
a quo
, antes consideramos que da conjugação destes meios de prova emerge a convicção de que os factos vertidos nos pontos 29 e 30 devem considerar-se provados,.
Não obstante, afigura-se ser de depurar referências redundantes e remissões para meios de prova.
Assim sendo decide-se eliminar os atuais pontos 29 e 30 e acrescentar ao elenco de factos provados um novo ponto de facto com o seguinte teor:
28 – Em 19-08-2019 a viatura identificada em 1- havia sido objeto de revisão (“manutenção 68.000 km”) na oficina Carclasse em Lisboa, sita na Av. Marechal Gomes da Costa, ocasião em que foi objeto das reparações tidas por adequadas àquele tipo de “manutenção”, incluindo a substituição do óleo do motor e do respetivo filtro.
3.2.2.2.3. Ponto 31
O ponto 31 dos factos provados tem a seguinte redação:
31- A viatura encontrava-se em bom estado quando foi entregue pelos Autores à Ré no início do contrato.
A convicção do Tribunal
a quo
relativamente a este ponto de facto formou-se nos termos descritos em 3.2.2.2.2..
Os apelantes discordam do entendimento manifestado pelo Tribunal
a quo
, por considerarem que a proposição constante deste ponto 31- se deve considerar provada, invocando para tanto a presunção legal consagrada no art. 1043º do CC e a prova documental junta aos autos.
Reportam-se os apelantes ao disposto no art. 1043º, nº 2 do CC que dispõe como segue:
“2- Presume-se que a coisa foi entregue ao locatário em bom estado de manutenção quando não exista documento onde as partes tenham descrito o estado dela ao tempo da entrega.”
Esta disposição consagra, efetivamente, uma presunção (elidível).
Estabelece o art. 349º do CC que
“presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido”
.
Por seu turno, refere o art. 350º do mesmo código, sob a epígrafe “presunções legais”:
“1. Quem tem a seu favor a presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz.
2. As presunções legais podem, todavia, ser elididas, mediante prova em contrário, exceto nos casos em que a lei o proibir.”
Na situação prevista no art. 1043º, nº 2 do CC, o facto conhecido será a inexistência de documento onde as partes tenham descrito o estado da coisa locada ao tempo da sua entrega ao locatário, e a realidade desconhecida será o bom estado da mesma.
Interpretando este preceito diz LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA
[23]
:
“O estado de coisas ideal (entrega da coisa (a) + ao locatário (b) + em bom estado de manutenção (c) ou se prova diretamente, ou se prova indiretamente demonstrando que as partes não redigiram documento descrevendo o estado do locado ao tempo de entrega (x). É manifesto que nesta segunda hipótese ocorre uma facilitação da prova.
A norma de presunção legal permuta ou substitui um dos pressupostos de uma consequência jurídica (no caso a+b+c) por outro pressuposto distinto (x), ligado ao primeiro por um certo enlace. Este pressuposto (x) deve ser distinto de todos os pressupostos concretos determinantes da consequência jurídica prevista na norma.”
Importa contudo considerar duas particularidades da presunção que ora analisamos.
Com efeito, e por um lado, embora o facto indiciante aparente ser um facto negativo, na realidade não o é, antes se tem por demonstrado a menos que se apure a concreta existência do
documento onde as partes tenham descrito o estado da coisa locada ao tempo da sua entrega
ao locatário. Assim, o facto indiciante tem-se por preenchido a menos que se apure a efetiva existência de um documento em que as partes tenham descrito o estado da coisa locada ao tempo da sua entrega ao locatário. Assim sendo, cabe ao locatário alegar e provar a existência de tal documento, no pressuposto que a descrição das caraterísticas da coisa locada constante de tal documento permite concluir que a mesma não se encontrava em bom estado (art. 342º, nº 2 do CC).
Por outro lado, a realidade indiciada não é um facto ou um conjunto de factos, mas um
conceito indeterminado
,
Com efeito, como referia Rosenberg
[24]
por factos jurídicos devem entender-se os acontecimentos (e circunstâncias) concretos, determinados no espaço e no tempo, passados e presentes, do mundo exterior e da vida anímica humana que o direito objetivo converteu em pressuposto de um efeito jurídico.
Para Alberto dos Reis,
“é questão de facto tudo o que tende a apurar quaisquer ocorrências da vida real, quaisquer eventos materiais e concretos, quaisquer mudanças operadas no mundo exterior”
e
“é questão de direito tudo o que respeita à interpretação e aplicação da lei”.
Ou seja, estaremos no âmbito da matéria de direito
“sempre que, para se chegar a uma solução, se torna necessário recorrer a uma disposição legal”
ao passo que
“há matéria de facto quando o apuramento das realidades se faz todo à margem da aplicação directa da lei, isto é, quando se trata de averiguar factos cuja existência ou não existência não depende da interpretação a dar a nenhuma norma jurídica”
.
E acrescenta:
“Reduzido o problema à sua simplicidade, a fórmula é esta: a) é questão de facto determinar o que aconteceu; b) é questão de direito determinar o que quer a lei, ou seja a lei substantiva, ou seja a lei de processo”.
Assim, o mesmo Mestre conclui que juridicamente relevantes são os factos que constituem
«ocorrências da vida real, isto é, os fenómenos da natureza, ou as manifestações concretas dos seres vivos, nomeadamente os actos e factos humanos (…) vistos à luz das normas e critérios do direito»
[25]
.
A expressão
bom estado
traduz uma apreciação que qualifica o estado da coisa que é objeto de locação. Tal
estado
será
bom
quando em função das suas caraterísticas, for possível concluir que se acha mantém as funcionalidades que lhe são próprias e não revela desgaste significativo.
Assim, e para os efeitos previstos no art. 1043º nº 2 do CC um automóvel
em bom estado
será aquele que, para além de circular sem dificuldades, não apresentar marcas ou sinais de uso ou desgaste significativos ou acentuados.
O referido
bom estado
corresponde, assim a um verdadeiro
conceito indeterminado
.
Sobre a figura dos
conceitos indeterminados
diz PEDRO ROMANO MARTINEZ:
[26]
“A regra jurídica pode ser formulada por um conceito indeterminado, que recorre a directrizes com alguma imprecisão, a concretizar perante cada caso concreto, carecendo de um preenchimento valorativo. O conceito indeterminado corresponde a um modo de superar o positivismo, porquanto o aplicador do direito não se limita a proceder à exegese das leis; ao aplicar a regra jurídica tem de se atender às especificidades da situação real.
O conceito indeterminado - atento o caráter incerto da previsão e a sua extensão aplicativa - permite uma adaptação do comando constante da regra a realidades futuras, que não são idênticas a outras já resolvidas, conferindo ao aplicador da regra a possibilidade de ajustar a solução à imprevisibilidade das novas factualidades. Facilita, deste modo, a necessidade da concretização da regra jurídica a cada nova situação real.”
No caso da presunção consagrada no art. 1043º, nº 2 do CC, como a realidade presumida não é um facto, mas um conceito indeterminado, sempre que a invocação da presunção pela parte a que aproveita se fizer por mera referência ao mencionado conceito indeterminado, sem alegação de factos concretos que suportem o preenchimento do mesmo, a não elisão da presunção não pode conduzir à inclusão, no elenco de factos provados, de uma proposição que se traduza na afirmação genérica de que a coisa estava em bom estado quando foi entregue.
Nessas circunstâncias, o
“bom estado”
da coisa locada ao tempo da celebração do contrato deve ser considerado apenas em sede de apreciação jurídica da causa, no contexto da aplicação do disposto no nº 1 do mesmo art. 1043º, conjugado com o art. 1044º do mesmo código.
Já se o locador alegar factos concretos que permitam preencher aquele conceito indeterminado, mas soçobrar na sua prova direta, poderá ainda assim beneficiar da demonstração dos mesmos por efeito da referida presunção (arts. 1043º, nº 2 e 350º, nº 2 do CC).
A elisão da presunção consiste, neste caso, na demonstração de factos que permitam concluir que ao tempo da sua entrega ao locatário, a coisa locada tinha defeitos ou avarias ou padecia de desgaste acentuado, que prejudicassem o gozo da mesma (art. 342º, nº 2 do CC).
No caso dos autos, considerando a factualidade provada,
maxime
os pontos 2 a 5, e o teor do contrato celebrado entre as partes, que constitui o doc. nº 2 junto com a petição inicial, é manifesto que no contrato de locação firmado ente a autora e os réus, as partes não descreveram o estado da coisa locada ao tempo da sua entrega à ré, nem se apurou ou sequer foi alegado que alguma vez tenham outorgado declaração escrita conjunta com tais caraterísticas.
Ora, como já referimos, o citado art. 1043º, nº 2 do CC deve ser interpretado no sentido de que não é necessário provar a inexistência de tal documento, mas antes que a presunção funciona sempre que a parte contrária daquela a quem a presunção aproveita não demonstre que o mesmo existe.
Assim, não tendo os réus feito prova da existência de um tal documento, forçoso é concluir que os autores beneficiam da referida presunção legal, ficando os réus com o ónus de a elidir.
Tal elisão – reitera-se - far-se-ia mediante a prova de factos que permitissem concluir que, aquando da entrega do veículo locado, o mesmo não se encontrava em bom estado, ou seja, de que se achava afetado por qualquer defeito ou avaria, ou desgaste acentuado, de molde a prejudicar o gozo da coisa locada. Prova essa que os réus não lograram fazer.
Nada obsta, por isso ao funcionamento da presunção legal consagrada no art. 1043º, nº 2 do CC.
Contudo, não tendo os autores alegado quaisquer factos concretos que permitam preencher o conceito indeterminado do
bom estado
do veículo dos autos ao tempo da sua entrega à ré, a consequência da presunção não consiste na inclusão da proposição vertida no ponto 31 no elenco de factos provados, embora se imponha que, na análise do mérito da causa, se considere, para todos os efeitos, que aquando da sua entrega à ré, o veículo dos autos se achava em
bom estado
.
Assim sendo, decide-se eliminar o ponto 31.
3.2.2.2.4. Alteração oficiosa por aditamento de facto superveniente
Nos termos do disposto no art. 611º, nº 1 do CPC,
“Sem prejuízo das restrições estabelecidas noutras disposições legais, nomeadamente quanto às condições em que pode ser alterada a causa de pedir, deve a sentença tomar em consideração os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que se produzam posteriormente à proposição da ação, de modo que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão.”
Desta disposição legal resulta, de forma clara, que na sentença deve o Tribunal atender a factos supervenientes que se revistam da relevância para a decisão da causa.
Assim, sempre que a prova produzida na audiência de julgamento resulte no apuramento de factos dessa natureza, e salvaguardado o exercício do contraditório, deve o Tribunal integrar tais factos na decisão sobre matéria de facto.
Porém, quando não o faça, nem por isso fica o Tribunal da Relação impedido de o fazer, nos termos previstos no art. 662º, nº 1 do CPC.
Com efeito, dispõe o art. 662.º n.º 1 do CPC que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente, impuserem decisão diversa.
Em comentário a esta disposição legal ensinam ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA E LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA
[27]
:
“1. A decisão sobre matéria de facto pode ser impugnada pelo recorrente quando os elementos fornecidos pelo processo possam determinar uma decisão diversa insuscetível de ser destruída por quaisquer outras provas, como sucede quando não tenha sido respeitado documento confissão ou acordo das partes com força probatória plena (…). Outrossim quando tenha sido considerado provado certo facto com base em meio de prova legalmente insuficiente (…), situação em que a modificação da decisão da matéria de facto passa pela aplicação ao caso da regra de direito probatório material (..).
2. Em qualquer destas situações a Relação, no âmbito da reapreciação da decisão recorrida e naturalmente dentro dos limites objetivo e subjetivo do recurso, deve agir oficiosamente, mediante aplicação das regras vinculativas extraídas do direito probatório material, modificando a decisão da matéria de facto advinda da 1ª instância (arts. 607º, º 4, e 663º, nº 2). A oficiosidade desta atuação é decorrência da regra geral sobre a aplicação do direito (
in casu
, das normas de direito probatório material), na medida em que possam interferir no resultado do recurso que foi interposto e, é claro, respeitando o seu objeto global, que, no essencial, é delimitado pelo recorrente, nos termos do art. 635º, e respeitando também o eventual caso julgado parcelar que porventura se tenha formado sobre alguma questão ou segmento decisório.”
Como bem explicam os citados autores, nos casos mencionados a alteração da decisão sobre matéria de facto pode ter lugar por iniciativa do Tribunal da Relação e ainda que nenhuma das partes o requeira, isto é, pode ter lugar oficiosamente. E o uso da forma verbal
deve
não deixa margem para dúvidas: não se trata de uma mera faculdade, mas de um dever imposto à Relação.
Nas palavras de ABRANTES GERALDES
[28]
,
“Como a nova redação do art. 662.º pretendeu-se que ficasse claro que, sem embargo da correção mesmo a título oficioso, de determinadas patologias que afetam a decisão da matéria de facto, (v.g. contradição) e também sempre juízo do ónus de impugnação que recai sobre o recorrente e que está concretizado nos termos previstos no art. 640.º, quando esteja em causa a impugnação de determinados factos cuja prova tenha sido sustentada em meios de prova submetidos a livre apreciação, a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu
juízo autónomo
, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência.
(…)
Obviamente que a modificação continuará a justificar-se (…) designadamente quando o tribunal recorrido tenha desrespeitado a força plena de certo meio de prova, o que ocorre quando, apesar de ter sido junto ao processo um documento com valor probatório pleno relativamente a determinado facto (arts. 371.º, n.º 1, e 376.º, n,º 1 do CC), o considere não provado, relevando para o efeito prova testemunhal produzida ou presunções judiciais.
O mesmo deve acontecer quando tenha sido desatendida determinada declaração confessória constante de documento ou resultante do processo (art. 358.º do CC e arts. 484.º, n.º 1, e 463.º do CPC) ou quando tenha sido desconsiderado algum acordo estabelecido entre as partes nos articulados quanto a determinado facto (art. 574º.º, n.º 2, do CPC) (…), optando por se atribuir prevalência à livre convicção formada a partir de outros elementos probatórios (v.g. testemunhas, documento particular sem valor confessório ou prova pericial). Ou ainda nos casos em que tenha sido considerado provado certo facto com base em meio de prova legalmente insuficiente (v.g. presunção judicial ou depoimento testemunhal, nos termos dos arts 351.º e 393.º do CC), situação em que modificação da decisão da matéria de facto passa pela aplicação ao caso da regra de direito probatório material (art. 364.º, n.º 1, do CC).
Em qualquer destes casos a relação limitando-se a aplicar regras vinculativas extraídas do direito probatório material deve integrar na decisão o facto que a 1.ªinstância considerou não provado o retirar dela o facto que ultimamente foi considerado provado sempre juízo neste caso da sua sustentação no torneio de prova alteração que nem sequer Depende da iniciativa da parte.
Com efeito nos termos do art. 663.º n.º 2 aplicam-se ao acórdão da Relação as regras prescritas para elaboração da sentença entre as quais se insere o arte 607.º, n.º 4, norma segundo a qual o juiz deve tomar em consideração na fundamentação da sentença (que agora integra também a decisão sobre os
“temas da prova”
) dos factos admitidos por
acordo
e plenamente provados por
documentos
ou por
confissão
reduzida a escrito.
Por outro lado, continua a ser impedido que se considerem provados os factos relativamente aos quais foram violadas regras
prova vinculada
, como aquelas que impõem a apresentação de prova documental.
Tal como o tribunal de 1.ª instância, também a Relação tem poderes que tanto podem determinar a assunção de factos segundo regras imperativas de direito probatório como a desconsideração de factos cuja prova tem respeitado essas mesmas regras.”
À luz destes ensinamentos, e no tocante ao exercício, pelo Tribunal da Relação, dos poderes de reapreciação da prova, a jurisprudência do STJ tem sublinhado os seguintes princípios norteadores:
1.º Os poderes de averiguação oficiosa da Relação a que se reporta o nº 1 do art. 662º do CPC devem ser exercidos:
a. as situações de desrespeito por regras de direito probatório material, e bem assim às situações em que, em virtude da apreciação de impugnação da decisão sobre matéria de facto que julgue procedente, seja necessário alterar pontos de facto não impugnados, a fim de evitar contradições – Cfr.
STJ 12-09-2013 (Fonseca Ramos), p. 2154/08.9TBMGR.C1.S1
;
STJ 07-11-2019 (Rosa Tching), p. 2929/17.8T8ALM.L1.S1
,
STJ 08-04-2021 (Maria Rosário Morgado), p. 453/14.0TBVRS.L1.S1
; e
STJ 08-09-2021 (Rosa Tching), p. 1721/17.4T8VIS-A.C1.S1
;
b. em caso de insuficiência da decisão sobre matéria de facto, a fim de evitar anulação da sentença apelada, nos termos do nº 2 do mesmo art. 662º - cfr. o mesmo acórdão;
c. nas situações em que, resultando da prova produzida em 1ª instância o apuramento de factos supervenientes relevantes para a decisão da causa, o Tribunal
a quo
não os tenha integrado na decisão sobre matéria de facto, nos termos previstos nos arts. 611º do CPC em conjugação com os arts. 5º, nº 2, al. c) e 412º, nº 2 do mesmo Código.
2.º Ao apreciar a impugnação da decisão sobre matéria de facto, a Relação pode, de acordo com as circunstâncias:
a. concluir pela desnecessidade de ouvir os trechos invocados por apelante e apelado, se considerar que tal é desnecessário, nomeadamente se considerar aplicável qualquer meio de prova plena, ou proibição de prova testemunhal;
b. limitar-se a ouvir o registo dos depoimentos invocados por apelante e apelado; ou ainda;
c. ouvir toda a prova gravada (e não apenas o registo dos depoimentos invocados por apelante e apelado)
–
STJ 17-11-2021 (Tibério Silva), p. 8344/17.6T8STB.E1.S1
.
No caso vertente, verificamos que aquando da prestação de declarações e depoimento de parte, a autora declarou ter vendido o veículo dos autos; o que o autor corroborou expressamente no seu depoimento de parte
[29]
. Tais declarações constituem o reconhecimento de um facto potencialmente desfavorável aos depoentes, na medida em que é suscetível de fazer questionar o direito a uma das pretensões indemnizatórias formuladas pelos autores nos presentes autos, a saber, a condenação da ré no pagamento da quantia de € 14.657,28, correspondente ao custo da reparação do veículo
[30]
. Trata-se, pois, de uma confissão, confissão essa que, sendo de qualificar como judicial (arts. 355º do CC), e tendo sido reduzida a escrito, faz prova plena do facto confessado (arts. 358º, nº 1 do CC e 463º do CPC).
Este mesmo facto também se acha provado através da certidão de registo automóvel que, por determinação deste Tribunal, veio a ser junta aos presentes autos, sendo certo que tal certidão também faz prova plena da alienação do veículo em causa (art. 363º, nº 2 e 371º, nº 1º do CC e art. 5º do Código do Registo Automóvel, aprovado pelo
DL n.º 54/75, de 12-02, na redação que lhe foi conferida pelo DL n.º 111/2019, de 16-08
).
Nesta conformidade, porque provados por meios de prova qualificáveis como
prova plena
, a saber, confissão e um documento autêntico, determina-se o aditamento ao elenco de factos provados de dois novos pontos com o seguinte teor:
-
Em data posterior àquela em que ocorreram os factos descritos em 25, a autora vendeu o veículo identificado em 1 à empresa Moticristo – Comércio de Automóveis, Lda
-
O registo automóvel relativo ao veículo identificado em ostenta as seguintes inscrições e encargos:
Registo de propriedade com ap. … 77, em 22/06/2020, a favor de:
OS AFONSINHOS DO CONDADO IMPORTAÇÃO E EXPORTAÇÃO LDA
RUA DA PAZ MORADIA BERNARDINO 1º ESQº PEDRENAIS
2620 353 RAMADA
Registo de propriedade com ap. … 78, em 22/06/2020,
A …
RUA DA … CHALLE DO …, ALMORQUIM
2705 … TERRUGEM SNT
Registo de propriedade com ap. … 41, em 15/10/2021, MOTICRISTO - COMÉRCIO DE AUTOMÓVEIS, S . A. a favor de:
RUA GAGO COUTINHO 4
2640 487 MAFRA
Registo de propriedade com ap . … 54 , em 05/11/2021,
BANCO PRIMUS, S.A.
QUINTA DA … - EDF. D. JOÃO I - …º PISO
2770 … PAÇO DE ARCOS
Registo de propriedade com ap . … 32 , em 19/11/2021,
I …
LUGAR ALTO DA FONTE MAFRA, QUINTA NOVA,
… MAFRA
(…)
ENCARGO RESERVA
N. ORDEM - 0 DATA - 19/11/2021
SUJEITO ACTIVO
NOME BANCO PRIMUS, S.A.
MORADA - i QUINTA DA FONTE EDF. D. JOÃO 1 1
0
PISO
COD. POSTAL – 2770 192 LOCALIDADE PAÇO DE ARCOS
SUJEITO PASSIVO
NOME – I …
MORADA - LUGAR … DA … MAFRA, QUINTA …, MAFRA
COD. POSTAL - … LOCALIDADE - MAFRA
3.2.2.2.5. Recapitulação
Face ao decidido nos pontos anteriores, o elenco de factos provados passa a ser o seguinte:
1. A 1.ª Autora é proprietária de uma viatura de marca Jaguar, Modelo XE Pure, com a matrícula …-XB-….
2. A 1.ª Ré, advogada de profissão, precisava de um carro para se deslocar e, não pretendendo adquirir um, chegou a um consenso com a 1.ª A. em como essa lhe cedia a referida viatura, mediante contrato escrito, que as partes denominaram de
“contrato de cedência de veículo entre particulares”
, datado de 18 de Novembro de 2019.
3. Nos termos do acordo identificado em 2- a 1.ª Ré obrigou-se a pagar uma prestação mensal de 600 € (seiscentos euros), com reforços de 2.000,00 € (dois mil euros) no primeiro dia dos meses de fevereiro, junho e novembro de 2020, bem como no primeiro dia dos meses de fevereiro e junho de 2021.
4. A 1.ª Ré assumiu, ainda, a responsabilidade de liquidar:
a. Todos os impostos, taxas, multas e coimas relacionadas com a utilização, ou detenção do veículo;
b. Todas as revisões e/ou manutenções de acordo com o programa da marca num concessionário Jaguar;
c. Seguro contra todos os riscos com franquia zero.
5. Ademais, durante o período em que perdurasse a cedência da viatura, não podia a 1.ª Ré exceder o limite de 20.000km de circulação por cada 12 meses, sendo, ademais, responsável pela substituição dos quatro pneus aquando da entrega da mesma à 1.ª Autora.
6. A viatura encontra-se coberta pela apólice de seguro n.º … 57 da Ocidental Seguros, com data de início de 25-11-2019, constando a 1.ª Ré como condutora habitual da referida viatura.
7. Os Réus liquidaram os seguintes valores:
a. 30.11.2019 - € 835,27 (oitocentos e trinta e cinco euros e vinte e sete cêntimos) – prestação correspondente ao mês de novembro de 2019;
b. 03.02.2020 - € 3.200,00 (três mil e duzentos euros) – prestação correspondente aos meses de dezembro de 2019 e janeiro de 2020 e reforço correspondente ao mês de fevereiro de 2020;
c. 05.03.2020 - € 600,00 (seiscentos euros) – prestação correspondente ao mês de fevereiro de 2020;
d. 27.04.2020 - € 600,00 (seiscentos euros) prestação correspondente ao mês de março de 2020;
e. 17.06.2020 - € 1.200,00 (mil e duzentos euros) prestação correspondente aos meses de abril de 2020 e de maio de 2020 .
8. A primeira prestação paga (30.11.2019) contempla o valor devido pelo seguro automóvel correspondente à apólice supramencionada, e foi a única prestação liquidada pela 1.ª Ré.
9. Todas as demais foram liquidadas pelo 2.º Réu, o fiador da 1.ª R.
10. No dia 12 de Junho de 2020, a 1.ª Ré remeteu um e-mail ao 2.º A. onde consta:
“Após a n/a conversa de há minutos atrás, e na impossibilidade de chegar a acordo com relação à cedência do veículo acima identificado, venho por este meio e uma vez que não obtive resposta aos emails enviados no que se refere à imobilização do Jaguar XE por avaria, rescindir o contrato celebrado em 18 de Novembro de 2019 por inutilidade superveniente uma vez que o bem objecto do contrato de cedência se encontra avariado desde 28 de Março de 2020 data em que vigorava o EdE, tendo sido transportado para a oficina e recebido orçamento em 27/05/2020, estando a aqui locatária impedida do gozo do veículo.
A resolução aqui comunicada tem efeitos à data de recepção do orçamento de reparação do veículo em que se confirma a avaria não ser imputável a mau uso ou a accão ou omissão da Segunda Contraente (27/05/2020) e não antes em virtude do EdE decretado.
Sendo o veículo propriedade da Sra. A … e com a rescisão aqui comunicada (embora conhecimento da proprietária) o veículo encontra-se à V/ disposição na oficina Fórmula F, Quinta … …, Rua … - Lote …, 2685-870 Sacavém para recolha, conforme cópia do orçamento remetido em 04/06”.
11. Em virtude de nessa altura haver pagamentos incumpridos, a Autora remeteu, por intermédio de mandatário, uma missiva datada de 15 de Junho de 2020, advertindo a 1.ª Ré e o fiador do incumprimento dos valores devidos pelas prestações vencidas referentes aos meses de Abril e Maio, bem como quanto ao reforço vencido no dia 1 de Junho de 2020, num total de € 3.200 (três mil e duzentos euros) .
12. A 1.ª R. enviou ao 2º Autor, a 04.06.2020 um email com o seguinte conteúdo:
“Olá E …,
Como sabes o carro está imobilizado desde 28 de Março, nessa data estava em vigor o estado de emergência e não havia oficinas nem meios para se fazer diagnóstico.
No dia 19/05 foi transportado de reboque para oficina, foi feito diagnóstico que me chegou por email no dia 27/05 e no valor de 2.546,006 sendo que foi o turbo que se estragou, foi-me dito que teria também de ser visto se há danos provocados no motor, segundo o mecânico pode acontecer.
É certo que as prestações acordadas pela utilização do carro não foram pagas pontualmente, mas estão liquidadas / até fim de Março.
Neste momento e por causa da situação actual que veio agravar as dificuldades que tinha desde meados de Janeiro é-me impossível manter o contrato, o estado de emergência e a situação actual tomaram impossível suportar este encargo.
Queria saber se estás disponível para rescindir o contrato com a recolha imediata do carro e se atendendo à actual conjuntura concedes uma moratória de 3 meses para liquidação das prestações de Abril e Maio? (à semelhança do que fazem os concessionários, stands, financeiras etc).
Não te consigo ligar hoje estou a acabar um projecto que tem de ir para o ar amanhã.
Ligo-te amanhã logo de manhã.
Envio em anexo o orçamento como combinado.
Obrigada”
13. As prestações trimestrais relativas aos meses de Fevereiro e Março de 2020 do seguro automóvel, no montante individual de 235,52€ não foram pagas.
14. A 4 de novembro de 2020, a Autora recebeu um e-mail da oficina
“Fórmula F”
, sita em Sacavém, assinada pelo Sr. E …, informando que aí se encontrava parqueada a viatura XB, somando-se já o valor do parque em € 2.950,00 (dois mil novecentos e cinquenta euros) acrescido de IVA.
15. A Ré entregou-lhe a viatura, tendo a oficina
“Formula F”
, elaborado dois orçamentos em nome daquela, datados de 20.05.2020: um descritivo dos trabalhos a realizar na viatura e outro concernente ao valor do parque.
16. A Autora procedeu ao levantamento da viatura através de reboque no dia 5 de janeiro de 2021, tendo liquidado a quantia de 1.845,00 a título de parqueamento.
17. A viatura, no dia de 5 de janeiro levada por reboque para a oficina Auto DCS.
18. Na Oficina verificaram que a viatura não tinha bateria.
19. Não tinha óleo.
20. O turbo estava partido.
21. Verificaram ainda que após retirar o turbo da viatura e carregada a bateria, o motor fazia um grande barulho.
22. Os AA. ainda não procederam ao arranjo do veículo.
23. A Ré não procedeu ao pagamento das prestações relativas aos meses de junho de 2020 a dezembro de 2020 e, bem assim, aos reforços de junho e novembro de 2020, cifram-se em € 8.200 (oito mil e duzentos euros).
24. A 1.ª A. procedeu ao pagamento dos montantes, a título de seguro automóvel, no valor total de € 957.98 (novecentos e cinquenta e sete euros e noventa e oito cêntimos) devidos pelas seguintes prestações (Prestação de 28-02-2020 a 29-05-2020: 242.19€; Prestação de 29-052020 a 29-08-2020: 236.80€; Prestação de 29-08-2020 a 29-11-2020: 236.80€; Prestação de 2911-2020 a 28-02-2021: 242.19€).
25. A viatura tinha registado 84.765 km quando retornou à posse dos Autores.
26. Em 06-01-2021 a Auto Sueco II AUTOMÓVEIS S.A. elaborou orçamento relativo ao fornecimento de um motor e de um turbocompressor para incorporar no veículo identificado em 1-, no valor de 12.000,25.
27. Em 11-02-2021 a Auto Sueco II AUTOMÓVEIS S.A. estimou o custo da reparação do veículo identificado em 1-, com substituição do motor e do turbocompressor em € 14.657,28.
28. Em 19-08-2019 a viatura identificada em 1- havia sido objeto de revisão (“manutenção 68.000 km/48 KM”) na oficina Carclasse em Lisboa, sita na Av. Marechal Gomes da Costa, ocasião em que foi objeto das reparações tidas por adequadas àquele tipo de “manutenção”, incluindo a substituição do óleo do motor e do respetivo filtro.
29. Em data posterior àquela em que ocorreram os factos descritos em 25, a autora vendeu o veículo identificado em 1 à empresa Moticristo – Comércio de Automóveis, Lda.
30. O registo automóvel relativo ao veículo identificado em ostenta as seguintes inscrições e encargos:
Registo de propriedade com ap. … 77, em 22/06/2020, a favor de:
OS AFONSINHOS DO CONDADO IMPORTAÇÃO E EXPORTAÇÃO LDA
RUA DA PAZ MORADIA BERNARDINO 1º ESQº PEDRENAIS
2620 353 RAMADA
Registo de propriedade com ap. … 78, em 22/06/2020,
A …
RUA DA TOI\LDILHA CHALLE DO MONTE, ALMORQUIM
2705 834 TERRUGEM SNT
Registo de propriedade com ap. … 41, em 15/10/2021, MOTICRISTO - COMÉRCIO DE AUTOMÓVEIS, S . A. a favor de:
RUA GAGO COUTINHO 4
… MAFRA
Registo de propriedade com ap . … 54 , em 05/11/2021,
BANCO PRIMUS, S.A.
QUINTA DA … - EDF. D. JOÃO I - …º PISO
2770 192 PAÇO DE ARCOS
Registo de propriedade com ap . … 32 , em 19/11/2021,
I …
LUGAR … DA … MAFRA, QUINTA …,
… MAFRA
(…)
ENCARGO RESERVA
N. ORDEM - 0 DATA - 19/11/2021
SUJEITO ACTIVO
NOME BANCO PRIMUS, S.A.
MORADA - i QUINTA DA … EDF. D. JOÃO 1 …
0
PISO
COD. POSTAL – 2770 … LOCALIDADE PAÇO DE ARCOS
SUJEITO PASSIVO
NOME – I …
MORADA - LUGAR … DA FONTE …, QUINTA …, MAFRA
COD. POSTAL - … LOCALIDADE - MAFRA
Inexistem factos não provados com interesse para a decisão da causa.
3.2.3. Do mérito da causa
3.2.3.1. Do contrato
Da factualidade provada flui com evidência, que as rés celebraram entre si um contrato de aluguer que tinha por objeto um veículo automóvel.
Muito embora alguns arestos aludam à atipicidade do contrato de aluguer de veículo, o mesmo é objeto de previsão legal específica, no DL nº 181/2012, de 06-08
[31]
. Não obstante, este diploma rege a atividade comercial vulgarmente designada por
rent a car
, e não estipula sobre as obrigações emergentes daquele contrato, limitando-se a prescrever a forma escrita e as menções que do mesmo devem constar.
De qualquer modo, tal diploma não se aplica ao caso vertente, visto que o contrato a que aludem os presentes autos foi firmado entre particulares
[32]
.
Pode, pois afirmar-se, com segurança, que o contrato de aluguer de veículo sem condutor celebrado entre particulares se rege pelas disposições contratuais livremente ajustadas entre as partes, no âmbito da sua liberdade contratual (art. 405º do CC) e pelas regras gerais da locação na parte aplicável ao aluguer, enquanto locação de coisa móvel (arts. 1022º a 1063º do CC).
3.2.3.2. Da resolução por iniciativa da ré, da ineficácia desta, do incumprimento imputável à autora
No caso vertente, apurou-se que na vigência do contrato, o turbo do veículo locado se partiu
[33]
, e que a ré enviou ao autor uma mensagem de correio eletrónico, na qual lhe comunicou
“rescindir o contrato celebrado em 18 de Novembro de 2019 por inutilidade superveniente uma vez que o bem objecto do contrato de cedência se encontra avariado desde 28 de Março de 2020 data em que vigorava o EdE, tendo sido transportado para a oficina e recebido orçamento em 27/05/2020, estando a aqui locatária impedida do gozo do veículo.”
[34]
Sucede, contudo, que esta comunicação foi dirigida ao autor, que não outorgou o contrato de aluguer dos autos, razão pela qual a mesma não pode produzir o almejado efeito extintivo do contrato dos autos.
Discordamos, por isso, do entendimento manifestado pelo Tribunal
a quo
que, sem explicar por que razão considera que a declaração resolutória, dirigida a quem não é parte do contrato, pode produzir qualquer efeito, considerou eficaz tal declaração resolutória e absolveu os réus de todos os pedidos.
Seja como for, sempre diremos que ainda que entendêssemos que a declaração resolutória dirigida ao autor poderia produzir efeitos, sempre concluiríamos que no caso vertente não se pode considerar demonstrado o fundamento nela invocado.
Vejamos então.
Do contrato de locação emerge para o locador a obrigação de proporcionar ao locado o gozo de determinada coisa
para os fins a que
a mesma
se destina
– arts. 1022º e 1301º, al. b) do CC.
No caso vertente, sendo a coisa locada um veículo automóvel, forçoso será reconhecer que a sua finalidade é circular, sendo inegável que um veículo automóvel, não pode circular com o turbo partido.
É igualmente certo que nos termos do disposto no art. 1032º do CC estabelece que
“se a coisa locada apresentar vício que lhe não permita realizar cabalmente o fim a que é destinada ou carecer de qualidades necessárias a esse fim ou asseguradas pelo locador, considera-se o contrato não cumprido”
. Contudo, como expressamente decorre da al. b) do mesmo preceito, no caso de o defeito surgir posteriormente à entrega do veículo pelo locador ao locatário, o incumprimento contratual aqui previsto, só se verifica se tal defeito sobrevier
“por culpa do locador”
.
Quanto ao estado da coisa locada ao tempo da entrega, dispõe o art. 1043º, nº 2 do CC:
“Presume-se que a coisa foi entregue ao locatário em bom estado de manutenção quando não exista documento onde as partes tenham descrito o estado dela ao tempo da entrega”
.
No caso dos autos, como já referimos, o contrato dos autos não descreve o estado do veículo ao tempo da entrega do mesmo, nem se apurou que as partes tenham outorgado qualquer declaração escrita na qual se reportem a tal aspeto, pelo que, não tendo os réus feito prova do contrário, funciona a presunção emergente daquele preceito.
Presumindo-se que à data da entrega do veículo dos autos o mesmo se encontrava em bom estado, tal implica, necessariamente, que a avaria tenha ocorrido em momento posterior, o que aliás é manifesto, porque o motor de um automóvel com o turbo partido simplesmente não funciona.
Assim, esta avaria só geraria incumprimento do contrato pelo locador se se tivessem apurado factos que permitissem concluir que tal avaria constituiu uma consequência da ação ou omissão culposa do locador, ou se tenha devido a qualquer outro
motivo estranho à pessoa
do locatário ou dos seus familiares (vd. art. 1050º, al. a) do CC).
Ora, no caso vertente não se apurou nenhum facto que permita concluir nesse sentido, sendo certo que neste particular, o ónus da prova incidia sobre os réus, por estarem em causa factos impeditivos do direito à resolução do contrato invocado pelos autores – art. 342º, nº 2 do CC.
Em consequência, conclui-se que a missiva enviada pela ré não pode produzir os efeitos de resolução do contrato por incumprimento imputável à autora.
Poderia igualmente considerar-se a possibilidade de a avaria em questão, que objetivamente privou a ré do gozo do veículo locado, poder justificar a resolução do contrato por causa objetiva, nos termos previstos no art. 1050º do CC.
Contudo, para tanto, teriam os réus de fazer prova da causa da avaria, e demonstrar que a mesma foi alheia ao comportamento da ré ou dos seus familiares (art. 342º, nº 2 do CC). Coisa que manifestamente não lograram fazer.
Não se verificam, por isso, os pressupostos da resolução do contrato por iniciativa da ré.
3.2.3.3. Da resolução do contrato por iniciativa da autora com fundamento no incumprimento imputável à ré
Aqui chegados, cumpre apreciar se se verificam os pressupostos necessários à resolução do mesmo contrato por iniciativa da autora, com fundamento no incumprimento definitivo do contrato imputável à ré.
Para tanto, cumpre recordar que o
incumprimento definitivo
de um contrato pode ocorrer numa das seguintes situações:
a) se em consequência da mora do contraente faltoso, o contraente fiel perder o interesse que tinha na prestação – art. 808º, nº 1 do CC;
b) se, em consequência da mora, a outorga do contrato prometido se tornar impossível – art. 801º, nº 1 do CC;
c) se, na sequência da mora, o promitente fiel interpelar o promitente faltoso, atribuindo-lhe um prazo razoável para a celebração do contrato prometido, e este não o outorgar – art. 808º, nº 1 do CC;
d) se o promitente faltoso declarar, expressa ou tacitamente (embora de forma clara, inequívoca e perentória), que não quer celebrar o contrato prometido – art. 808º, nº 1 do CC por interpretação extensiva
[35]
.
Quanto à
perda do interesse
, rege o nº 2 do art. 808º do CC que dispõe que
“a perda do interesse na prestação é apreciada oficiosamente”
.
A este propósito, ensina ANTUNES VARELA
[36]
:
“(…) a lei não se contenta com a simples perda (subjectiva) de interesse do credor na prestação em mora, para decretar a resolubilidade do contrato (…), exigindo, “apertes verbis” no nº 2 do art. 808º do Código Civil que a perda do interesse na prestação seja apreciada objectivamente.
(…).
É necessário que a perda – a perda e não a simples diminuição – do interesse seja apreciada à luz de circunstâncias objectivas.
(…).
A formulação da lei – “a perda do interesse na prestação é apreciada objectivamente – inculca desde logo, antes mesmo de serem conhecidas as raízes históricas do preceito, duas conclusões importantes.
A primeira é de que a perda do interesse na prestação não pode filiar-se numa simples mudança de vontade do credor, desacompanhada de qualquer circunstância além da mora. O credor não pode alegar, noutros termos, como fundamento da resolução, o facto de, não tendo o devedor cumprido a obrigação na altura própria, o negócio não ser já do seu agrado.
A apreciação objectiva da situação, prescrita na lei, exige algo mais do que esse puro elemento subjectivo, que é a alteração da vontade do credor, apoiada na mora da outra parte.
A segunda conclusão é que também não basta, para fundamentar a resolução, qualquer circunstância que justifique a extinção do contrato aos olhos do credor. Se a situação é apreciada objectivamente, por imperativo expresso da lei, é porque não basta para o efeito o critério subjectivo do titular da prestação.
A perda do interesse há-de ser justificada segundo o critério de razoabilidade, próprio do comum das pessoas.
(…).
O § 326 do Código alemão também começa por conceder ao credor, no caso de o devedor incorrer em mora no cumprimento da obrigação que o contrato bilateral lhe impõe, a faculdade de fixar a este um prazo adequado (…) para a realização da prestação, com a declaração de que a não aceitará depois de findo esse prazo.
Mas no nº 2 do mesmo parágrafo, a propósito da perda de interesse, acrescenta-se o seguinte: “Se o cumprimento do contrato, em consequência da mora, não tiver nenhum interesse (…) para a outra parte, competirão a esta os direitos a que se refere o número anterior (indemnização pelo não cumprimento ou resolução do contrato), sem necessidade de fixação do prazo”.
E
são realmente de perda absoluta, completa, do interesse na prestação – e não de mera diminuição ou redução de tal interesse – traduzida por via da regra no desaparecimento da necessidade que a prestação visava satisfazer
[37]
, os casos com que os autores ilustram a aplicação prática desse preceito fundamental da lei civil alemã. Insiste-se, além disso, na nota de que a perda do interesse tem que resultar da mora no cumprimento e não de qualquer outra circunstância. Exigência que tem pleno cabimento em face do nosso direito, visto não ser outro o sentido imputável à expressão introdutória do art. 808º do Código Civil: “Se o credor, em consequência da mora, perder o interesse que tinha na prestação …”
No mesmo sentido sublinha o ac.
STJ 07-06-2011 (Fernando Bento), p. 7005/06.6TBMAI.P1.S1
:
“Não basta, pois, uma perda subjectiva de interesse na prestação; é necessário que essa perda de interesse transpareça numa apreciação objectiva da situação.
A perda do interesse não se verifica porque o credor a alega nem porque, em juízo meramente subjectivo, entende que a prestação já não lhe aproveita – o que pode decorrer de mero capricho seu.
O interesse é uma relação entre a pessoa e os bens –
id quod inter est
– fundada na aptidão destes para satisfazer necessidades daqueles.
Mas a subsistência ou desaparecimento de tal relação é aferida, não em função do juízo do respectivo sujeito – ninguém é (bom) juiz em causa própria… - mas em função do juízo que, numa ponderação global do caso (na qual, entre outras, avulta o fim do credor ao celebrar o contrato), efectuaria um homem de bom senso e razoável, suposto pela ordem jurídica.
Com efeito, a satisfação do interesse do credor é o fim principal da prestação, podendo afirmar-se que, sendo a relação obrigacional um processo (isto é, um conjunto de actos encadeados entre si) tendente ao cumprimento, este só se realiza de acordo com esse processo quando o credor vê realizado o interesse que pretendia com aquela relação obrigacional, na dupla vertente de prestação-acção (conduta devida) e de prestação-resultado (fim da prestação), pois, “muito embora o interesse do credor, cuja satisfação é o fim e razão de ser da obrigação, seja um elemento extrínseco à sua estrutura, a decomposição ou cisão da prestação em acção de prestar (conduta) e resultado útil a prestar acaba por estar subjacente ao regime jurídico do cumprimento e não cumprimento” (cfr. Calvão da Silva, Cumprimento e sanção pecuniária compulsória, Coimbra, 1987, p. 82).”
Na síntese feliz do ac.
STJ 18-12-2003 (Araújo Barros), p. 03B3697
“não basta o juízo valorativo arbitrário do próprio credor antes aquela (falta de interesse) há de ser apreciada objectivamente, com base em elementos susceptíveis de serem valorados por qualquer pessoa (designadamente pelo próprio devedor ou pelo juiz).”
Finalmente, como salienta BAPTISTA MACHADO
[38]
, não valem casos de escassa importância para não sujeitar o devedor ao capricho ou até ao arbítrio do credor.
Relativamente à
impossibilidade da prestação
temos por desnecessário expender quaisquer considerações explicativas, na medida em que esta causa de incumprimento definitivo não foi invocada por qualquer das partes, nem se afigura aplicável ao caso dos autos, atentos os factos provados.
No tocante à
interpelação admonitória
, diz ANTUNES VARELA
[39]
:
“a interpelação admonitória não surge neste artigo 808º como um simples pressuposto da resolução do contrato, à semelhança do que sucede no Código italiano, mas antes como uma ponte obrigatória de passagem da tal ocorrência transitória da mora para o cumprimento da obrigação ou para a situação mais firme e mais esclarecedora do não cumprimento (definitivo) da obrigação. E não reveste sequer textualmente a forma de um puro direito (ou faculdade) concedido ao credor, precisamente porque, como ponte obrigatória de passagem de uma situação jurídica para outra, a intimação do credor funciona substancialmente no interesse de uma e outra das partes
Por um lado, o credor tem a possibilidade de impor à outra parte um prazo para cumprir, como meio de obter a realização efetiva da prestação a que tem direito ou de lançar mão das providências com que a lei castiga o não cumprimento definitivo da obrigação, entre as quais se conta a de resolver o contrato, donde nasceu a obrigação que também a ele vincula.
Por outro lado, o devedor tem a garantia de que a contraparte (o credor) não goza ainda da possibilidade de desencadear contra ele nenhuma das sanções ou providências correspondentes ao não cumprimento ... enquanto lhe não der uma nova e derradeira chance de corrigir o seu descuido, de emendar a sua negligência, de superar a mora em que incorreu.
E têm os autores entendido - e bem! -, em face do espírito e do próprio texto da lei, que, para o devedor em mora ficar nessa situação de faltoso em definitivo, se torna necessário mesmo que na interpelação feita pelo credor, ao abrigo do disposto no artigo 808º, se inclua expressamente a advertência de que, não cumprindo o devedor dentro do prazo suplementar fixado, a obrigação se terá para todos os efeitos por não cumprida.”
A esta luz, a interpelação admonitória deve integrar três elementos:
-
a exortação do devedor no sentido do cumprimento da obrigação;
-
a concessão de um prazo perentório, suplementar, razoável e exato para cumprir;
-
a declaração cominatória de que findo o prazo fixado, sem que ocorra a execução do contrato, este se considera definitivamente incumprido.
Este entendimento foi acolhido na jurisprudência do STJ – cfr. acs.:
-
STJ 02-11-2006 (Custódio Montes), p. 06B3822
;
-
STJ 08-05-2007 (Sebastião Póvoas), p. 07A932
;
-
STJ 17-11-2015 (Mª Clara Sottomayor), p. 2545/10.5TVLSB.L1.S1
;
-
STJ 10-12-2019 (Raimundo Queirós), p. 386/13.7T2AND.P2.S1
;
-
STJ 21-01-2021 (Mª dos Prazeres Beleza), p. 109/19.7T8MAI.P1.S1
;
-
STJ 24-05-2022 (Manuel Capelo), p. 3025/20.6T8FAR.E1.S1
;
-
STJ 23-06-2022 (Fernando Baptista), p. 831/19.8T8PVZ.P1.S1
-
STJ 28-03-2023 (Mª Clara Sottomayor), p. 211/21.5T8GMR.G1.S1
;
-
STJ 11-01-2024 (Sousa Lameira), p. 2356/21.2T8PTM.E1.S1
.
Finalmente, e no que concerne à
recusa de cumprimento
, afigura-se que uma tal causa de incumprimento definitivo pressupõe uma declaração absoluta e inequívoca de repudiar o contrato, isto é, uma declaração séria, categórica, que traduza, sem qualquer margem para dúvidas, a intenção e propósito de não outorgar o contrato prometido.
Sobre esta causa de incumprimento definitivo, refere o ac.
STJ 05-12_2006 (Sebastião Póvoas), p. 06A3914
:
«A recusa de cumprimento (ou
"riffiuto di adimpiere"
) é o incumprimento típico.
Mas tem de ser expressa por "uma declaração absoluta e inequívoca" de "repudiar o contrato". (cf. Dr. Brandão Proença, in "Do incumprimento do Contrato-Promessa Bilateral", 91 e "inter alia" os Acórdãos do STJ de 7/3/91 - BMJ 405-456, de 28/3/2006 - Pº 327/06-1ª e de 18 de Abril de 2006 - Pº 844/06).
Impõe-se que o renitente emita uma declaração séria, categórica e que não deixe que subsistam quaisquer dúvidas sobre a sua vontade (e propósito) de não outorgar o contrato prometido.
Ainda assim, certa doutrina entende ser necessária uma interpelação admonitória da parte do promitente fiel (cf. Doutor Pessoa Jorge - "Direito das Obrigações", 296-298) o que se pensa ser desnecessário (na esteira do ensinado pelos Profs. Galvão Telles - "Direito das Obrigações", 5ª ed., 224-225 - e Almeida Costa, in "Direito das Obrigações", 6ª ed., 921) já que a declaração inequívoca e peremptória da intenção de não cumprir equivale à interpelação antecipada.
Neste sentido vem julgando este STJ (Acórdãos de 15 de Março de 1983 - BMJ 325-561, de 15 de Fevereiro de 1990 - Act. Jur. 2ª -6-10 e de 7 de Janeiro de 1993 - C.J./STJ I-1,15 - "inter alia") e assim será face a toda a dogmática da recusa antecipada.
Mas, o que o direito da "common law" chama de "anticipatory breach of contract" ou "repudiation of a contract" terá de ser expresso - e nunca é demais repeti-lo, por forma a entender-se ser "a clear and absolute refusal to perform" e que "the party is unwilling".
Não pode, por outro lado, interpretar-se como recusa o atraso na prestação, ainda que reiterado.»
No caso vertente, já concluímos que não podemos considerar verificado o fundamento invocado pela ré para resolver o contrato, pelo que a declaração resolutória, não pode produzir os efeitos tópicos da resolução do contrato
[40]
.
Contudo, tal não significa que essa resolução não possa gerar incumprimento definitivo do contrato, e consequentemente constituir a ré na obrigação de indemnizar a autora.
Com efeito, relativamente a esta matéria, não existe unanimidade na doutrina, entendendo uns que em casos como os dos autos, a resolução extingue o contrato, ainda que configure um ilícito indemnizável, ao passo que outros consideram que uma resolução injustificada não extingue o vínculo contratual, mantendo-se a vigência do contrato, e mantendo o contraente fiel a faculdade de exigir do contraente faltoso o cumprimento das obrigações contratadas.
Acerca de tais divergências diz JOANA FARRAJOTA:
[41]
«apenas quando se encontrem preenchidos os pressupostos de existência do direito de resolução, bem como os respectivos pressupostos de exercício, será a resolução lícita. Interessa-
-nos todavia aqui não o exercício regular desta faculdade, mas o lado menos saudável daquele: a resolução emitida fora do respectivo quadro legal, do “licet”, em resultado da ausência de fundamento, “in casu”, o incumprimento. De facto, obtendo-se a resolução – em regra – por mera declaração à contraparte, nada obsta a que seja emitida sem que se verifique uma situação de incumprimento contratual relevante nos termos da lei.
A declaração de resolução, emitida em desconformidade com a lei ou a convenção das partes, não encontra uma designação consensual junto da doutrina e jurisprudência nacionais.
RAÚL GUICHARD e SOFIA PAIS designam esta forma de resolução por resolução ilegítima
[42]
. P. ROMANO MARTINEZ, por sua vez, apelida a resolução «(…) exercida em desrespeito de exigências formais, de pressupostos ou de direitos da contraparte ou de terceiros» por resolução ilícita
[43]
.
(...)
O cerne da problemática da resolução infundada reside, num primeiro momento, nos respectivos efeitos na vigência do contrato, isto é, no esclarecimento da questão da produção do efeito extintivo, atendendo ao carácter ilícito da declaração. Será este então o nosso ponto de partida na análise do estado da arte da doutrina nacional.
(...)
Parte significativa da doutrina nacional tende a reconhecer eficácia extintiva à declaração resolutiva ilícita. Assim, não obstante a desconformidade daquela declaração com a lei, o contrato alvo da mesma seria destruído. (...) P. ROMANO MARTINEZ entende que a resolução ilícita representa o incumprimento do contrato. Não ficámos, todavia, totalmente esclarecidos quanto ao pensamento do Autor. Assim, embora comece por afirmar que «(…) a resolução contrária à lei seria nula (art. 280º, n.º 1 do CC), inválida, portanto (…)»
[44]
, logo em seguida, partindo da impossibilidade de autonomização da declaração de resolução do contrato, retira que esta deve ser analisada como modo de cumprimento ou incumprimento do contrato, concluindo finalmente que «(…) a resolução ilícita não é inválida: representa o incumprimento do contrato» e, «(…) por via de regra, produz de imediato o efeito extintivo (…)»
[45]
. Não transparece, todavia, de forma clara a razão de ser desta aparente incompatibilidade entre invalidade e incumprimento aceite pelo Autor como premissa da construção apresentada.
ANTÓNIO PINTO MONTEIRO desenvolveu a problemática da resolução infundada no quadro do contrato de agência e, em geral, nos contratos de distribuição comercial
[46]
. Para o Autor, perante uma tal declaração, duas soluções possíveis se perfilam. Uma primeira, mais indicada no plano dos princípios, em que o contrato se manteria, fruto do carácter ilícito do exercício do direito resolutivo desprovido de fundamento. Neste caso a parte adimplente teria direito a ser indemnizada pelos danos causados pela «suspensão» do contrato, i.e., pelo período decorrido até à decisão da acção onde se apreciasse a licitude do acto. Outra, de ordem mais prática, em que o contrato se extinguiria, traduzindo-se a resolução sem fundamento num incumprimento contratual, gerador de uma obrigação de indemnizar a parte inadimplente. Muito embora reconhecendo que esta segunda orientação se traduz na admissibilidade da obtenção pelo devedor do resultado pretendido por meio de um comportamento ilícito, o Autor defende a respectiva adopção, apresentando para o efeito um conjunto de argumentos. De um lado salienta que, na prática, nem sempre será possível ou aconselhável impor a subsistência do contrato. E isto porque pode ter decorrido um longo período de tempo em que a relação entre as partes, de facto, cessou e em que se podem ter estabelecido relações alternativas com terceiros, com vista à satisfação dos interesses regulados pelo contrato em crise. Por outro lado, afirma o Autor, solução diversa também não se compaginaria com o carácter extrajudicial da resolução e a natureza meramente declarativa da acção judicial que aprecia a declaração de resolução
[47]
. O Autor como argumento na defesa desta orientação, a possibilidade de o contraente que resolve o contrato poder sempre denunciá-lo, caso se trate de um contrato de duração indeterminada. Seria assim possível, em regra, equiparar a resolução sem fundamento a uma denúncia sem respeito pelo pré-aviso legal que, por sua vez, confere apenas ao lesado o direito a uma indemnização, nos termos do n.º 1 do artigo 29.º do regime jurídico do contrato de agência130. Finalmente refere ainda, em abono desta posição, a equiparação, pela doutrina e jurisprudência, da resolução sem fundamento à recusa de cumprir e desta ao incumprimento definitivo. Finalmente refere ainda, em abono desta posição, a equiparação, pela doutrina e jurisprudência, da resolução sem fundamento à recusa de cumprir e desta ao incumprimento definitivo. Menos claras nos permaneceram as razões que conduzem o Autor, de um lado, a qualificar a declaração de resolução infundada como incumprimento contratual na segunda hipótese aventada – em que o contrato se extinguiu por efeito da resolução infundada – e, de outro, a recusar tal qualificação na primeira solução apresentada.
ASSUNÇÃO CRISTAS entende que a declaração de resolução – ainda que ilícita – destrói o contrato no momento em que se torna eficaz, chegando a tal conclusão pela combinação do modelo extrajudicial de resolução com o normal direito ao cumprimento das obrigações. Se a inexistência de fundamento da resolução for provada judicialmente, a resolução, esclarece a Autora, não desaparece, operando-se apenas uma modificação da respectiva valoração jurídica e dos seus efeitos: a resolução – anteriormente um acto legítimo – transforma-se em ilícito, com sentido de incumprimento. Assim, apesar de o contrato ter cessado irremediavelmente, o credor pode ainda exigir o cumprimento e oferecer a contraprestação
[48]
. Também aqui a solução apresentada não nos surge como clara, na medida em que parece prever o cumprimento do contrato (prestação e contraprestação) após a respectiva extinção. Se, de facto, o contrato se extinguiu, então também se extinguiram as pretensões jurídicas das partes ao cumprimento. Esta é, no nosso entendimento, a única posição consentânea com o entendimento segundo o qual o contrato se extingue por mero efeito da declaração de resolução. Neste sentido BECKMANN, na doutrina alemã, afirma que um dos efeitos do exercício do direito de resolução consiste na extinção dos direitos das partes ao cumprimento, bem como de quaisquer acções judiciais que tenham por base o interesse no cumprimento.
Esta crítica é extensível a toda a doutrina que, reconhecendo eficácia extintiva à resolução, simultaneamente a qualifica como acto de incumprimento contratual. Extinguindo-se o contrato não se deverá falar em incumprimento, na medida em que deixou de haver objecto de incumprimento. De facto, ainda que se enquadre a resolução infundada na figura do incumprimento do contrato, ao afirmar-se, simultaneamente, que extingue o contrato, sempre se terá de reconhecer que a sua vertente de acto de destruição do contrato consome aquela outra.
BRANDÃO PROENÇA, embora parecendo atribuir eficácia extintiva à declaração de resolução ilícita – afirmando que esta se produziu, inelutavelmente, nos momentos previstos no art. 224º, 1, 1ª parte, do C.C. – reconhece nesta uma modalidade de recusa de cumprimento
[49]
e, bem assim (...) uma forma de incumprimento. Ressalva o Autor, os casos em que nos encontremos «(…) face a uma representação infundada e não culposa do incumprimento da contraparte (…)» do devedor-declarante, caso em que não deverá este ser colocado numa situação de incumprimento, devendo ser mantido o contrato.
Refira-se ainda, finalmente, a posição de PAIS DE VASCONCELOS para quem a resolução sem fundamento, apesar da respectiva ilicitude, será em princípio eficaz, consubstanciando, todavia, o incumprimento definitivo do contrato. Excepcionalmente apenas, admite o Autor, nos casos em que a relação contratual tem especial relevância social – por exemplo, no caso do contrato de trabalho – a ilicitude poderá ter como consequência a ineficácia da resolução
[50]
.
(...)
Apenas uma doutrina minoritária entende que a resolução ferida de ilicitude se encontra desprovida de eficácia extintiva.
O Autor que porventura mais terá aprofundado a questão da (in)eficácia da resolução infundada – muito embora o tenha feito de forma marginal – foi PAULO MOTA PINTO, cujo entendimento tendemos a partilhar. Defende este Autor a ineficácia daquela declaração «(…) por não possuir fundamento jurídico e o resolvente não ser titular do correspondente direito potestativo»
[51]
. Nestes casos, não há, na realidade um direito de resolução, pelo que não poderá, consequentemente, produzir-se a extinção do contrato. Face ao exposto, conclui PAULO MOTA PINTO, a sentença que reconheça a inexistência de fundamento da resolução tem como efeito declarar que o contrato, afinal, não se extinguiu.
O Autor admite, todavia, que, nos casos em que o resolvente dispusesse de um direito de denúncia
ad nutum
, a resolução sem fundamento possa ser equiparada, ou mesmo convertida, a uma denúncia sem pré-aviso. As duas únicas possíveis consequências da declaração de resolução infundada são assim, para PAULO MOTA PINTO, de um lado a manutenção do contrato, acompanhada do respectivo não cumprimento e, de outro, a sua extinção, acompanhada de responsabilidade pelo desrespeito da obrigação de pré-aviso a que o exercício da denúncia se encontra sujeito. Adicionalmente entende o Autor, respondendo aos argumentos avançados por PINTO MONTEIRO, não dever este princípio encontrar-se sujeito a desvios por razões de ordem prática, designadamente por dificuldades na retoma da relação contratual, «(…) sob pena de se estar a conceder directa prevalência, sobre a inequívoca força do Direito ao facto ilícito (…) e ao decurso do tempo». Por outro lado, continua, se se considerasse que o contrato se extinguia por efeito da resolução infundada, estar-se-ia a vedar ao credor a possibilidade de requerer a execução específica – quando esta fosse possível, abrindo assim a porta para que o devedor, sempre que quisesse eximir-se àquela, pusesse fim ao contrato, resolvendo-o, ainda que sem fundamento. Finalmente, considerando que a obrigação de indemnizar depende de culpa, sempre que o comportamento do devedor ao resolver infundadamente o contrato não fosse culposo, deixar-se-ia o credor sem qualquer protecção.
CALVÃO DA SILVA, a propósito de um caso em que a resolução foi declarada sem que se verificasse um seu pressuposto – o incumprimento – afirma a ilegalidade e ineficácia da mesma. Acrescenta o Autor ainda que a intervenção do tribunal é de mera apreciação da legalidade da resolução, i.e., de verificação dos respectivos pressupostos e de declaração da existência ou inexistência e eficácia da mesma.
Finalmente, BAPTISTA MACHADO, ao afirmar que a existência do direito de resolução se encontra dependente da verificação do respectivo fundamento
[52]
, parece inclinar-se no sentido da ineficácia da declaração resolutiva sem fundamento. Acrescente-se ainda que, para BAPTISTA MACHADO, a declaração de resolução infundada consubstancia uma forma de recusa de cumprimento
[53]
-
[54]
.
(…)
«considerando que o vício de que sofre a declaração infundada resulta de “uma falta ou irregularidade dos elementos internos (essenciais, formativos) do negócio”, conclui-se que esta seria enquadrável na categoria das invalidades
[55]
.
Cabe-nos agora esclarecer se o vício do acto de resolução “(…) o priva de eficácia ou torna precária essa eficácia”
[56]
, i.e., se se trata de um caso de nulidade ou anulabilidade. A maioria da doutrina e jurisprudência, que se pronuncia sobre a invalidade da declaração de resolução infundada, tende a reconduzi-la à figura da nulidade, por referência ao artigo 280.º, n.º 1 do CC, na parte em que sanciona com nulidade o “negócio jurídico cujo objecto seja (...) contrário à lei”. A declaração de resolução infundada, na medida em que contraria o disposto no n.º 1 do artigo 432.º do CC, seria assim nula por força da conjugação desta disposição com o n.º 1 do artigo 280.º – consoante a posição adoptada quanto à qualificação da declaração de resolução, poder-se-á ainda ter de recorrer ao artigo 295.º.
Não é necessário, com efeito, recorrer aqui à previsão do artigo 294.º do CC, já que esta, como refere HÖRSTER, “(…) traduz um princípio básico e cede o seu lugar, sempre que os haja, a preceitos específicos”,
in casu
, o n.º 1 do artigo 280.º. Este artigo é, de facto, uma concretização da norma geral do artigo 294.º, propondo critérios mais pormenorizados para identificar os conteúdos de negócios jurídicos desconformes à lei.
A conjugação das disposições constantes dos artigos 432.º, n.º 1, e 280.º, n.º 1, do CC, in fine, conduzem-nos, no nosso entender, de forma inequívoca, à conclusão de que a resolução a que falte o pressuposto do incumprimento é nula e, desta forma, insusceptível de destruir o contrato.
(...).
Em conclusão, pode-se afirmar que a sanção-regra da declaração de resolução desprovida de fundamento é a nulidade, por força do disposto no artigo 432.º, n.º 1, conjugado com o n.º 1 do artigo 280.º, do CC. Não se trata, todavia, de uma regra absoluta, como já tivemos oportunidade de constatar, a propósito da análise dos regimes jurídicos de alguns contratos em particular, designadamente o regime do contrato de trabalho, em que o despedimento infundado é sancionado com a anulabilidade. De facto, outros interesses reconhecidos pela ordem jurídica poderão conduzir a um afastamento pela lei daquela regra, em detrimento da protecção do vínculo contratual.
(...).
A declaração de resolução infundada, mais não é do que um “tigre de papel”. Donde, apesar da existência de um significado negocial do acto – a destruição do contrato, este, em razão da respectiva invalidade, não é juridicamente atendível enquanto acto dirigido à extinção do contrato. Embora em abstracto a declaração de resolução realizada à contraparte fosse, por força dos artigos 436.º, n.º 1 e 224.º, n.º 1 do CC, adequada à composição de um negócio jurídico, não produz os efeitos correspondentes ao seu significado, porque se encontra viciada. Tal, como salienta FERREIRA DE ALMEIDA, não põe em causa o princípio performativo, já que este só se aplica a negócios e outros actos jurídicos e, no caso da resolução infundada, em bom rigor, não há um negócio jurídico
[57]
.
No mesmo sentido se pronuncia na doutrina alemã BECKMANN, ao afirmar que as consequências jurídicas de uma declaração de resolução podem realizar-se apenas quando esteja esclarecido que a declaração de resolução do credor foi efectuada legalmente, em particular, que existe um fundamento para a resolução. De facto, como chama a atenção PAULO MOTA PINTO, é importante manter presente a distinção entre os pressupostos do direito potestativo de resolução de um lado e, de outro, o modo como se produzem os efeitos do direito, isto é, por mera declaração à contraparte – sem a necessidade de intervenção judicial. Inexistindo os referidos pressupostos – no caso, o incumprimento – não há direito de resolução, sendo a declaração pretensamente resolutiva ilícita e, em regra, ineficaz. Neste contexto, a sentença, que reconheça a inexistência de fundamento da declaração resolutiva, declara, na realidade, que o contrato não se extinguiu.
[58]
-
[59]
»
Havendo que tomar posição, aderimos resolutamente à tese da ineficácia extintiva da declaração resolutiva infundada.
Por isso consideramos que no caso em apreço a resolução do contrato por iniciativa da ré, para além de não ter a eficácia resolutiva que almejava, também não extinguiu as obrigações emergentes do referido contrato que, por isso, se manteve em vigor.
Pretendem, por isso, os autores que o Tribunal declare a resolução do contrato de aluguer dos autos com fundamento no incumprimento definitivo do mesmo contrato por parte da ré.
Na apreciação desta questão haveremos que ter presente que aquela resolução contratual infundada, se dirigida à autora, configuraria uma inequívoca recusa em cumprir o contrato, qualificável como incumprimento definitivo do contrato que conferiria à autora o direito à resolução do mesmo, nos termos previstos no art. 801º, nº 2 do CC.
Só que, como também já o mencionámos, aquela resolução se deve ter por ineficaz, por não ter sido dirigida à autora.
Subsistem, contudo, outros fundamentos para a resolução do contrato.
Vejamos então.
Com efeito, provado ficou que a ré não pagou à autora os alugueres relativos aos meses de junho a dezembro de 2020, e respetivos acréscimos
[60]
, e que depois de citados os réus tais alugueres se mantiveram por pagar, razão pela qual a mora se converteu em incumprimento definitivo, assistindo, por isso à autora o direito à resolução judicial do contrato – art. 1048º, nº 1 do CC.
A resolução do contrato de locação pode ser feita extrajudicialmente, ou mediante processo judicial (arts. 436º, nº 1 e 1047º do CC).
Nada obsta, por isso, a que o contrato seja declarado resolvido com fundamento no incumprimento imputável à ré.
No caso vertente, pedem os autores que tal resolução produza efeitos com referência à data de 05-01-2021, data em que a autora recuperou a viatura
[61]
.
Tendo este facto resultado provado, nada obsta a que a declaração de efeitos da resolução se reporte a tal data.
Expliquemo-nos.
Dispõe o art. 433º do CC que
“Na falta de disposição especial, a resolução é equiparada, quanto aos seus efeitos, à nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico, com ressalva do disposto nos artigos seguintes.”
Por seu turno, dispõe o art. 289º, nº 1 do mesmo código que
“tanto a declaração de nulidade como a anulação do negócio têm efeito retroativo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente”
.
Contudo, no caso dos contratos de execução continuada, a repetição das prestações vencidas durante o tempo em que o contrato foi efetivamente executado pode não ser possível.
Nesta medida, o art. 434º, nº 1 do CC dispõe que a resolução do contrato tem, em princípio efeito retroativo, mas excetua as situações em que a retroatividade contrariar a vontade das partes ou a finalidade da resolução.
E o nº 2 do mesmo preceito concretiza a exceção constante da parte final do nº 1, estabelecendo que nos contratos de execução continuada a resolução não abrange as prestações já efetuadas, exceto se entre estas e a causa da resolução existir cum vínculo que legitime a resolução de todas elas.
No caso em apreço, a resolução do contrato reporta-se a um contrato de arrendamento parcialmente executado, o que significa que o gozo da coisa pelo locatário, nos termos do contrato, não pode ser repetido, razão pela qual a resolução não pode retroagir ao momento da celebração do mesmo.
Nada obsta, por isso, que tal resolução produza efeitos a partir da data em que o contrato deixou de ser executado por ambas as partes.
No caso em análise, já vimos que a resolução do contrato por iniciativa da ré não produziu qualquer efeito, pelo que a autora manteve intacto o direito de exigir o cumprimento do mesmo, nomeadamente o pagamento das prestações pecuniárias nele previstas.
Com efeito, não tendo os réus demonstrado que a avaria do veículo se deveu a ato de terceiro ou por qualquer outra forma alheio à vontade da locatária, a imobilização do mesmo é imputável à ré, na medida em que lhe competia proceder às necessárias reparações da coisa locada, por força da obrigação de a manter em bom estado (art. 1043º, nº 1, e 1044º do CC).
Assim sendo, a autora manteve o direito de exigir da ré as prestações emergentes do contrato até à data em que recolheu o veículo, data essa a partir da qual claramente deixou de proporcionar à ré o gozo do mesmo.
3.2.3.4. Dos danos invocados e da indemnização
3.2.3.4.1. Considerações prévias
A resolução do contrato por incumprimento definitivo do mesmo imputável à ré confere à autora o direito a ser indemnizada pelos danos decorrentes do incumprimento.
Neste particular, cumpre salientar que da factualidade provada não emerge nenhum facto que permita concluir que o autor tem qualquer direito a ser indemnizado pelos danos decorrentes do incumprimento do contrato dos autos, visto que não resultou provado que tenha outorgado o referido contrato, seja ou tenha sido proprietário do veículo, ou sequer que seja casado com a autora.
Daí que procedendo a presente ação, no todo ou em parte, apenas poderá ser proferida decisão condenatória favorável à autora.
Seja como for, cumpre reconhecer que no caso em apreço está em causa o ressarcimento de danos no âmbito da responsabilidade civil contratual
Como aponta CARNEIRO DA FRADA
[62]
“a responsabilidade civil é um instituto jurídico que comunga da tarefa primordial do Direito que consiste na
ordenação e distribuição dos riscos e contingências que afectam a vida dos sujeitos e a sua coexistência social
”
.
Por seu turno, acrescenta JOSÉ ALBERTO GONZÁLEZ
[63]
que a
“responsabilidade civil cumpre uma função:
obrigar terceiro a proceder à reparação de danos provocados na esfera jurídica do lesado
(credor para esse efeito)”
.
Qualquer que seja o ponto vista sobre o qual se encare, o direito a ser ressarcido nos quadros da responsabildade civil depende da verificação dos pressupostos desta.
Interpretando o disposto no art. 483º do CC, a doutrina dominante tem entendido, de modo convergente, que a responsabilidade civil delitual depende da verificação dos seguintes pressupostos :
a) Um facto - comportamento voluntário do lesante;
b) A ilicitude e a culpa;
c) A imputação do facto ao lesante;
d) O dano; e
e) O nexo de causalidade e adequação entre o facto e o dano.
Por
facto
deverá entender-se todo o comportamento voluntário ou forma de conduta humana.
A
ilicitude
poderá resultar, da violação de direito(s) de outrem (máxime direitos absolutos), ou de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios.
Mas, para uma conduta ser ilícita, a lesão desse direito de tutela erga omnes deve resultar de factos voluntários contrários ao direito.
Quanto à
culpa
, dispõe o art. 487º do CC que na falta de outro critério legal, pela ela deve ser aferida pela diligência de um bom pai de família, isto é, pela diligência de uma pessoa sem especiais qualidades, qualificações, ou perícia.
O
dano
consiste na ofensa de bens ou interesses alheios tutelados pela ordem jurídica.
O
nexo de causalidade e adequação
exprime uma relação de causa e efeito entre a conduta do lesante e o dano sofrido pelo lesado, apreciada não apenas de um ponto de vista naturalístico, mas numa perspetiva jurídica – vd. arts. 562º, 563º, e 566º do CC
[64]
.
Estes pressupostos são transponíveis,
mutatis mutandis
, para o domínio da responsabilidade contratual.
Com efeito, no caso da responsabilidade contratual, o facto consiste na
mora, incumprimento definitivo
,
cumprimento defeituoso
ou
impossibilidade culposa
de uma
obrigação
, residindo a sua
ilicitude
desde logo na antinomia entre aqueles e esta – vd. arts. 799º e 801º do CC.
Assim, a responsabilidade civil geradora da obrigação de indemnizar será contratual quando resulte de uma relação jurídica de natureza creditícia, e decorra da violação de deveres originados nesse vínculo obrigacional originário; e será extracontratual quando resulte da violação de direitos absolutos ou da prática de atos lícitos ou ilícitos que provoquem danos a outrem.
Os pressupostos da responsabilidade civil são pois bastante semelhantes, quer numa, quer noutra modalidades, divergindo, quanto aos seguintes aspetos:
-
ónus da prova da culpa (artigo 799.º, n.º 1 e artigo 487.º, n.º 1, do CC);
-
prazos de prescrição (artigo 309.º e artigo 498.º do CC);
-
responsabilidade por facto de outrem (artigo 800.º, n.º 1 e artigo 500.º do CC); e
-
atenuação equitativa da indemnização em caso de mera culpa (artigo 494.º do CC).
[65]
.
No caso vertente, foram invocados os seguintes danos
[66]
:
a) Alugueres vencidos e não pagos, e respetivos reforços, no valor de € 8.200,00
b) Cláusula penal - € 1.640,00;
c) Prémios de seguro vencidos e não pagos - € 957,98
d) Despesa previsível com a reparação do veículo, no valor de € 14.657,28;
e) Despesas emergentes do depósito da viatura locada em oficina - € 1.875,00.
3.2.3.4.2. Dos alugueres e “reforços”
Considerando que se apurou que nos termos previstos no contrato, a ré estava obrigada ao pagamento de um aluguer mensal de € 600, com reforços de 2.000 nos meses de fevereiro, junho e novembro, e que os alugueres relativos aos meses de junho a dezembro de 2020 e os reforços vencidos em junho e novembro do mesmo ano não foram pagos, totalizando os mesmos a quantia global de € 8.200,00
[67]
, tem a autora direito a receber tal quantia.
3.2.3.4.3. Da cláusula penal
Acresce que igualmente se apurou que nos termos do contrato, nomeadamente a sua cláusula 5ª, a resolução do contrato por facto imutável à locatária conferia à locadora o direito a receber
“uma importância igual a 20% da soma das prestações vencidas”
.
Esta estipulação contratual configura uma evidente cláusula penal (art. 810º do CC), e tem natureza moratória (art. 811º, nº 2, 2ª parte do CC). Visto que se destina a compensar o dano decorrente da falta de pagamento atempado de prestações previstas no contrato.
Não tendo sido invocada qualquer exceção que obste à procedência desta pretensão indemnizatória, conclui-se pela sua procedência.
Finalmente, e no tocante a prestações previstas no contrato, apurou-se igualmente que este previa a obrigação da locatária suportar as prestações relativas ao contrato de seguro da viatura (cláusula 3ª, al. c) do contrato), e que a ré não pagou os prémios vencidos nos meses de fevereiro de 2020 a novembro de 2011 (inclusive), no valor global de € 957,98
[68]
.
Termos em que também procede esta pretensão indemnizatória.
3.2.3.4.4. Dos prémios de seguro vencidos e não pagos
Previa igualmente o contrato dos autos que a ré deveria suportar os custos decorrentes da contratação e manutenção de um contrato de “seguro contra todos os riscos”
[69]
, e que a autora suportou o pagamento de prémios de seguro no valor de € 957,98, não tendo a ré demonstrado haver reembolsado a autora. Deve, pois, ser condenada a pagar este montante.
3.2.3.4.5 Da reparação do veículo
Estabelece o art. 1038º, al. g) do CC que o locatário está obrigado a
“não fazer da coisa uma utilização imprudente”
.
Por outro lado estatui o art. 1043º, nº 1 mesmo diploma
que “na falta de convenção, o locatário é obrigado a manter e restituir a coisa no estado em que a recebeu, ressalvando as deteriorações inerentes a uma prudente utilização, em conformidade com os fins do contrato.”
Finalmente dispõe o artº 1044º do CC que
“o locatário responde pela perda ou deteriorações da coisa, não excetuadas no artigo anterior, salvo se resultarem de causa que lhe não seja imputável nem a terceiro a quem tenha permitido a utilização desta.”
Interpretando esta disposição legal ensinam
PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA
[70]
que
“[…]a expressão imputável ao locatário ou a terceiro, usada no artº 1044º, significa apenas devida a facto do locatário ou de terceiro, pois não é necessário que haja culpa do locatário na perda ou deterioração da coisa; basta que elas sejam devidas ao locatário ou a qualquer pessoa a quem ele tenha autorizado a utilização. É uma espécie de responsabilidade objetiva, que tem alguma justificação, quer por ser o locatário quem utiliza a coisa no seu próprio interesse, quer como estímulo legal a uma utilização prudente da coisa que lhe não pertence”
Neste sentido cfr. ac.
-
RP 03-03-2011 (Deolinda Varão), p. 3837/06.3TBSTS.P1
;
-
RG 29-09-2016 (Fernando Fernandes Freitas), p. 88/14.7TBPCR-A.G1
;
-
RP 14-12-2022 (Ana Paula Amorim), p. 2022/21.7T8VNG.P1
No caso vertente, não se apurou qual a causa da avaria do veículo, razão pela qual não logrou a ré afastar a sua responsabilidade pelo ressarcimento dos danos decorrentes dessa avaria.
Contudo, tal não significa que se deva concluir pela procedência da pretensão indemnizatória formulada com fundamento nestes danos.
Com efeito, foi peticionada a condenação da ré a pagar a quantia que corresponderia ao custo da reparação do veículo, no óbvio pressuposto de que o mesmo seria reparado.
Tratar-se-ia, assim, de ressarcir um dano futuro previsível (art. 564º, nº 2 do CC).
Contudo, e apesar de se ter provado que o veículo dos autos sofreu diversas avarias, nomeadamente por ter partido o turbo e o motor fazer muito barulho
[71]
, que o custo da respetiva reparação, com substituição do turbo e do motor foi calculado em € 14.657,28
[72]
, e que à data da propositura da ação tal veículo não se mostrava reparado
[73]
, igualmente se provou que o mesmo veículo veio a ser vendido
[74]
.
Tendo o veículo sido vendido, é inegável que a autora não incorrerá na despesa relativa à sua reparação.
Pode, pois, concluir-se que dano invocado e cujo ressarcimento foi reclamado, emergente da reparação do veículo não foi sofrido pela autora, nem o será.
Poder-se-ia, objetar que tendo o veículo sido vendido no estado de avariado, a autora sempre sofreu um dano emergente da desvalorização do mesmo. Simplesmente, essa desvalorização consubstancia um dano diverso do invocado, sendo certo que a autora podia ter requerido a alteração do pedido e da causa de pedir com fundamento na ocorrência de um facto superveniente (nos termos previstos nos arts. 265º, ou 588º e 611º do CPC
[75]
), e não o fez.
Acresce que mesmo nessa circunstância, o dano se consubstanciaria na diferença entre o valor pelo qual o veículo poderia ter sido vendido, caso se encontrasse em bom estado, e o valor pelo qual foi efetivamente vendido. Mas para tanto deveria a autora ter alegado e provado quer o valor pelo qual poderia ter vendido o veículo caso se achasse em bom estado, quer o valor pelo qual efetivamente o vendeu. O que não fez.
Daí a improcedência desta pretensão indemnizatória.
3.2.3.4.6. Das despesas emergentes com o depósito da viatura em oficina
Como já se referiu, no caso em apreço ficou demonstrado que o veículo dos autos sofreu uma avaria que determinou a sua imobilização, e que o mesmo foi depositado em oficina, tendo a autora liquidado as inerentes despesas, no valor global de € 1.845,00.
[76]
Não tendo a ré demonstrado que a avaria se deveu a causa imputável à autora, a terceiro, ou motivo de força maior, forçoso é concluir que aquelas despesas lhe são imputáveis, porque resultam da inobservância do dever de manter o veículo em bom estado de funcionamento, conforme expusemos supra
[77]
.
3.2.4. Da responsabilidade do réu
O réu outorgou o contrato de aluguer dos autos na qualidade de fiador, constituindo-se assim na obrigação de cumprir as obrigações emergentes do contrato dos autos e da sua cessação, nos mesmos termos em que a ré se obrigou – art. 627º, nº 1 do CC.
Não obstante, na sua contestação, o réu sustentou que apenas se obrigou a suportar dois alugueres, visto que nos termos da cláusula 4ª do contrato, a ré nunca poderia acumular mais de duas das mencionadas prestações, sob pena de “rescisão” do contrato. Assim, e porque efetivamente liquidou dois alugueres em falta, considera o réu que não tem que garantir qualquer outra obrigação emergente do contrato.
[78]
A cláusula 4ª do contrato dos autos tem o seguinte teor:
“Se a Segunda contraente incorrer em atraso relativamente ao pagamento de qualquer obrigação pecuniária decorrente deste contrato, deverá a Segunda contraente ou o Fiador pagar à Primeira contraente ale do respetivo montante e a título de nora uma importância calculada por aplicação ao valor em mora e pelo período em que esta subsistir (…), nunca podendo acumular dois pagamentos em atraso ficando desta forma obrigada a restituir o veículo à Primeira contraente.”
[79]
Analisada a cláusula em apreço, afigura-se claro que a interpretação que o réu faz da mesma não é correta.
Com efeito, e apesar de alguma falta de clareza, o que resulta desta cláusula é que a mora relativamente a dois alugueres se converte em incumprimento definitivo e legitima a resolução do contrato por iniciativa da locadora; sem que se possa concluir que nessas condições a mesma teria forçosamente que resolver o contrato.
Por outro lado, nem esta cláusula, nem qualquer outra limitam âmbito da fiança prestada pelo réu. Com efeito, o contrato não tem nenhuma cláusula expressa que determine o âmbito da fiança, resultando a prestação desta da secção inicial do contrato, que contém a identificação das partes e da qual consta que o réu outorga tal contrato na qualidade de fiador. Assim, e na ausência de estipulação específica, há que considerar que a fiança tem a amplitude prevista no regime da fiança constante do Código Civil.
Termos em que se conclui que por força da fiança prestada, deve o réu ser condenado a pagar à autora as quantias apuradas nos pontos precedentes, no valor global de € 12.642,98
[80]
.
3.2.5. Das custas
Nos termos do disposto no art. 527º, nº 1 do CPC,
“A decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito.”
A interpretação desta disposição legal, no contexto dos recursos, deve atender ao elemento sistemático da interpretação.
Com efeito, o conceito de custas comporta um sentido amplo e um sentido restrito.
No sentido amplo, as custas tal conceito inclui a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte (cf. arts. 529º, nº1, do CPC e 3º, nº1, do RCP).
Já em sentido restrito, as custas são sinónimo de taxa de justiça, sendo esta devida pelo impulso do processo, seja em que instância for (arts. 529º, nº 2 e 642º, do CPC e 1º, nº 1, e 6º, nºs 2, 5 e 6 do RCP).
O pagamento da taxa de justiça não se correlaciona com o decaimento da parte, mas sim com o impulso do processo (vd. arts. 529º, nº 2, e 530º, nº 1, do CPC). Por isso é devido quer na 1ª instância, quer na Relação, quer no STJ.
Assim sendo, a condenação em custas a que se reportam os arts. 527º, 607º, nº 6, e 663º, nº 2, do CPC, só respeita aos encargos, quando devidos (arts. 532º do CPC e 16º, 20º e 24º, nº 2, do RCP), e às custas de parte (arts. 533º do CPC e 25º e 26º do RCP).
Tecidas estas considerações, resta aplicar o preceito supracitado.
E fazendo-o, diremos que no caso em apreço, a ação improcede totalmente no que respeita ao autor, e bem assim parcialmente quanto à autora, no que respeita à quantia de € 14.657,28.
[81]
Assim sendo, as custas devem ficar a cargo de autores e réus na proporção dos respetivos decaimentos. Tais decaimentos devem ser determinados em função da diferença entre o valor do pedido e o da condenação.
Não sendo, contudo, possível quantificar tal decaimento, entendemos adequado repartir a responsabilidade tributária por autores e réus, em partes iguais.
4. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes nesta 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a presente apelação parcialmente procedente, alterando a sentença apelada, e julgando a presente ação parcialmente procedente, nos seguintes termos:
a) Condenando os réus a pagar à autora a quantia de € 12.642,98;
b) Absolvendo os réus do demais peticionado.
Custas por autores e réus em partes iguais.
Lisboa, 17 de junho de 2025
[82]
Diogo Ravara
José Capacete
Edgar Taborda Lopes
_______________________________________________________
[1]
Titular do nº de identificação civil … 75, e do nº de identificação fiscal … 24.
[2]
Titular do nº de identificação civil … 26, e do nº de identificação fiscal … 05.
[3]
Titular do nº de identificação civil … 39, e do nº de identificação fiscal … 53.
[4]
Titular do nº de identificação civil … 51, e do nº de identificação fiscal … 75.
[5]
Vd. arts. 45º a 50º da petição inicial.
[6]
Neste sentido cfr. Abrantes Geraldes,
“Recursos no Novo Código de Processo Civil”
, 5ª Ed., Almedina, 2018, pp. 114-117
[7]
Vd. Abrantes Geraldes, ob. cit., p. 119
[8]
Suprimimos as referências a meios de prova, constantes da parte final de diversos pontos de facto, porquanto as mesmas nada têm que ver com factos, mas antes com a motivação da decisão sobre matéria de facto. O local próprio para as mencionar é, pois, na referida motivação, e não no enunciado de factos provados.
[9]
A sentença recorrida não organizou o elenco de factos não provados por números ou alíneas. Por considerarmos que tal omissão dificulta a apreciação do presente recurso, organizámos o referido elenco por alíneas.
[10]
Cfr. conclusões 62 a 71.
[11]
Que regulam as matérias da nulidade de todo o processado decorrente da ineptidão da petição inicial – art. 186º; a falta de citação – arts. 187º a 190º; a nulidade da citação – art. 191º; o erro na forma de processo – art. 193º; e a falta de vista ou exame ao Ministério Público como parte acessória – art. 194º.
[12]
Podendo as partes recorrer da decisão que decidir o incidente de arguição de nulidades, se em função do valor da causa, essa decisão for recorrível – cfr. art. 629º do CPC.
[13]
”Comentário ao Código de Processo Civil”
, vol. 2º, Coimbra Editora, 1945, pp. 507-508. Em sentido idêntico cfr. do mesmo autor,
“Código de Processo Civil Anotado”
, volume 1º, 3ª Ed. (reimpressão), Coimbra Editora, 2012, p. 381.
[14]
“Noções Elementares de Processo Civil”
, Reimpressão, Coimbra Editora, 1993, p. 183.
[15]
“Manual de processo civil”
, Coimbra Editora, 2ª Ed., 1985, p. 393.
[16]
“Direito Processual Civil Declaratório”
, Vol. III, Almedina, 1982, p. 134.
[17]
Incluem-se nesta categoria os seguintes meios de prova: depoimentos de testemunhas, depoimentos de parte, declarações de parte, esclarecimentos de peritos, esclarecimentos prestados pelas partes.
[18]
“Recursos no Novo Código de Processo Civil”
, 5ª Edição, Almedina, 2018, pp. 165-166.
[19]
Cfr. ponto B.3) da motivação do recurso e conclusões 11 a 13.
[20]
Tal como o foi o doc. nº 21 junto com a petição inicial.
[21]
Identificável através do nº do quadro referido em tal documento, que corresponde ao que consta da cópia do documento único automóvel do mesmo veículo – doc. 1 junto com a petição inicial.
[22]
Deste documento consta igualmente que se tratava de revisão prevista para os 68000 km ou que deveria ter lugar depois de passados desde 48 meses desde a anterior revisão, e que nessa altura o mesmo contava com 84.496 km, tendo a anterior revisão tido lugar em 27-04-2017, quando o mesmo veículo tinha 47.399 km. Estas informações permitem dissipar as dúvidas manifestadas pelo Tribunal
a quo
relativamente à quilometragem do veículo e à sequência das revisões feitas ao mesmo.
[23]
“Prova por presunção no Direito Civil”
, 4ª ed., Almedina, 2023, p. 112
[24]
“Tratado de Derecho Procesal Civil”,
tomo II, tradução espanhola de Angela Romera Vera, 1995.
[25]
“Código de Processo Civil Anotado”
, Vol. III, 4ª ed., pp. 206-209.
[26]
“Introdução ao estudo do Direito”
, 2ª ed., AAFDL Editora, 2024, p. 250.
[27]
“Código de Processo Civil Anotado”
, vol. I, 2018, p.796.
[28]
“Recursos no novo Código de Processo Civil”
, 5ª Ed., Almedina, 2018, pp. 286-289
[29]
Vd. ata com a refª 139445103, de 13-09-2022.
[30]
Vd. art. 46º da petição inicial.
[31]
Alterado DL 207/2015, de 24-09, pela Declaração de retificação 46/2015, de 16-10; e pelo DL 47/2018, de 20-06.
[32]
Cfr. pontos 2 a 5 dos factos provados.
[33]
Ponto 20 dos factos provados.
[34]
Ponto 10 dos factos provados.
[35]
Cfr., desde logo, a epígrafe do preceito que equipara a perda do interesse à recusa do cumprimento, embora o texto do preceito não contenha qualquer referência à hipótese de recusa da prestação devida.
[36]
Revista de Legislação e Jurisprudência
, ano 118º, p. 54.
[37]
Acentuado nosso.
[38]
“
Pressupostos da Resolução por Incumprimento”
, in Obra Dispersa, Vol. I, Scientia Ivridica, Braga, 2001, p. 162.
[39]
Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 128, pp. 136-138.
[40]
Fica, por isso, prejudicada a apreciação da contra-exceção de abuso do direito, invocada pelos autores (art. 608º. Nº 2, 2ª proposição, do CPC, aplicável
ex vi
do art. 663º, nº 2 do mesmo código).
[41]
“A resolução do contrato sem fundamento”
, Teses, Almedina, 2015. Vd. tb., da mesma autora,
“Os efeitos da resolução infundada por incumprimento do contrato”
, disponível em
https://www.google.com/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=&cad=rja&uact=8&ved=2ahUKEwiGtOXe66n1AhUPFRQKHUexCxg4ChAWegQICxAB&url=https%3A%2F%2Frun.unl.pt%2Fbitstream%2F10362%2F18555%2F1%2FFarrajota_2013.pdf&usg=AOvVaw2abKz1ixygo5-EhyfN4Qjl
[42]
“
Contrato-Promessa: Resolução Ilegítima e Recusa Terminante em Cumprir; Mora como Fundamento de Resolução; Perda de Interesse do Credor na Prestação; Possibilidade de Desvinculação com Fundamento em Justa Causa; “Concurso de Culpas” no Incumprimento; Redução da Indemnização pelo Sinal”,
in
Direito e Justiça,
XIV, 2000, I, pp. 316 a 333.
[43]
“Da Cessação do Contrato”
, 2.ª ed., Almedina, 2006, p. 75.
[44]
“
Da Cessação…”
cit. p. 221.
[45]
“Da cessação…”
pp. 221 ss.
[46]
“
Direito Comercial. Contratos de Distribuição Comercial#
, 3.ª Reimp. da ed. de 2001, Almedina, 2009, pp. 149 e ss. e
“Contrato de Agência. Anotação”
, 7.ª ed., Almedina, 2010, pp. 134 e ss.
[47]
Contrato…cit.,
p. 138.
[48]
“É possível impedir judicialmente a resolução de um contrato?”
, Estudos Comemorativos dos 10 Anos da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Vol. II, Almedina, 2008, p. 63.
[49]
“
Do incumprimento do contrato de promessa bilateral: a dualidade: execução específica – Resolução”
, Separata do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1987, p. 89.
[50]
“Teoria Geral do Direito Civil”,
6.ª Edição, Almedina, 2010, p. 773.
[51]
“Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo”,
Vol. II, Coimbra Editora, 2009, p. 1675, nota de rodapé n.º 4861.
[52]
“Pressupostos da resolução por incumprimento”
, Obra Dispersa, Vol. I, Scientia Juridica, 1991, pp. 130 e 131.
[53]
Anotação ao acórdão de 08.11.1983,
Revista de Legislação e Jurisprudência
, ano 118, p. 275, nota de rodapé n.º 2.
[54]
Joana Farrajota,
“A Resolução…” cit.,
pp. 49-55.
[55]
Veja-se, a título de exemplo, o Acórdão do STJ de 13.12.2007 (proc. n.º 07A2378, disponível em www.dgsi.pt), onde a propósito da verificação de ausência de fundamento resolutivo de um contrato promessa de compra e venda se afirma:
«[e] só a ocorrência efectiva – e objectiva – da perda de interesse é que é geradora do direito potestativo à resolução do contrato. Conclui-se, assim, que os recorrentes não resolveram validamente o contrato promessa de compra e venda, e que os recorridos não se colocaram em situação de incumprimento»
.
[56]
Inocêncio Galvão Telles,
“Manual dos Contratos em Geral
(refundido e atualizado)”, 4.ª ed., Coimbra Editora, 2002, p. 357.
[57]
«Para este Autor, “(...) a expressão ‘negócio jurídico nulo’ (ainda que conveniente e universalmente usada) é uma contradição nos próprios termos, porque, seja qual for o fundamento e a natureza que ao negócio se atribuam, ele só é concebível como instituto jurídico diferenciado, se existir uma relação adequada entre os efeitos que o acto produz e algo que os faça gerar (...)”»
- Carlos Ferreira de Almeida,
“Texto e Enunciado na Teoria do Negócio Jurídico”
, Vol. I, Almedina, 1992, pp. 218 e 219.
[58]
O destacado a negrito é da nossa autoria.
[59]
Joana Farrajota, “
A Resolução…”
cit., pp. 185-188.
[60]
Ponto 23 dos factos provados.
[61]
Vd. ponto 16 dos factos provados.
[62]
“Uma «terceira via» no Direito da Responsabilidade Civil?”
, Almedina, 1997, página 15.
[63]
“Responsabilidade Civil”
, 2ª edição, Quid Juris, 2009, páginas 14-15.
[64]
Cfr., ALMEIDA COSTA, ob. cit., pp. 760 ss.
[65]
Cfr. NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA,
“Tópicos sobre a distinção entre a responsabilidade contratual e a responsabilidade extracontratual”,
in Estudos em comemoração dos vinte anos da Escola de Direito da Universidade do Minho, Coimbra Editora, 2014, pp. 513-526; e FILIPE ALBUQUERQUE MATOS,
“Traços distintivos e sinais e contacto entre os regimes da responsabilidade civil contratual e extracontratual. O caso particular da responsabilidade civil médica [II]”
, in Lex Medicinae. Revista portuguesa de direito da saúde, ano 12.º, 2015, pp. 25-54).
[66]
Arts. 45º a 50º dos factos provados.
[67]
Pontos 3 e 23 dos factos provados.
[68]
Ponto 24 dos factos provados.
[69]
Ponto 4, al. c), e 24 dos factos provados.
[70]
Código Civil Anotado, Coimbra Editora,
[71]
Pontos 20 e 21 dos factos provados.
[72]
Ponto 27 dos factos provados.
[73]
Ponto 22 dos factos provados.
[74]
Ponto 29 dos factos provados
[75]
Neste sentido cfr. ac.
RL 09-04-2024 (Diogo Ravara), p. 96/20.9TNLSB-A.L1-7
, relatado pelo ora relator.
[76]
Ponto 16 dos factos provados.
[77]
Vd. ponto 3.3.2.3..
[78]
Vd. arts. 8º a 14º da contestação.
[79]
Sendo que a “Primeira contraente” é a autora, a “Segunda contraente” é a ré, e o Fiador é o réu.
[80]
8.200,00 + 1.640,00 + 957,98 + 1.845,00 = 12.642,98
[81]
Sustentando solução oposta, cfr. SALVADOR DA COSTA, Blog do IPPC, entradas de
25-01-2019
e de
04-04-2019
.
[82]
Acórdão assinado digitalmente – cfr. certificados apostos no canto superior esquerdo da primeira página.
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TRL
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https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/cdf118a93477510180258cbd00393fc8?OpenDocument
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1,742,428,800,000
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APELAÇÃO IMPROCEDENTE
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2044/24.8T8VRL.G1
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2044/24.8T8VRL.G1
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SANDRA MELO
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1. O artigo 651º, n.º 1, do Código de Processo Civil, não permite que as partes que não produziram na 1ª instância prova suficiente sobre determinado facto que alegaram ser essencial para a sua pretensão, quando confrontadas com sentença em que esse facto não é julgado provado, venham juntar com o recurso documento para cuja produção intervieram e que poderiam ter obtido antes do julgamento se tivessem agido com a competente diligência.
2- A resolução opera-se por meio de declaração unilateral, receptícia, do credor, que se torna irrevogável logo que chegue ao devedor ou dele é conhecida – arts. 224º, 230º e 436º nº 1 do Código Civil.
3- Da análise do disposto no artigo 224º do Código Civil podemos concluir que este consagra a teoria da receção mitigada: não vale para se considerar a declaração operante o seu simples envio, mas a sua receção pelo declaratário, exceto se a não recebeu por causa que lhe é imputável a título de culpa.
4- Assim, a Requerente, que se queria fazer valer da resolução, devia alegar e demonstrar que declarou à Requerida a resolução do contrato pelo meio contratualmente acordado, a saber, a carta registada com aviso de receção e factos de onde decorressem que esta operava: ou a sua receção pela Requerida ou que tal falta se deveu à negligência desta.
|
[
"JUNÇÃO DE DOCUMENTOS COM O RECURSO",
"LOCAÇÃO FINANCEIRA",
"DECLARAÇÃO DE RESOLUÇÃO DO CONTRATO"
] |
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
.I- Relatório
Recorrente e Requerente:
Banco 1..., S.A. – Sucursal em Portugal
Recorrida e Requerida:
EMP01..., Transportes, L.Da
Autos
de: procedimento cautelar de entrega, ao abrigo do disposto no artigo 21º do DL 149/95 de 24 de junho
A embargante pediu a entrega de objetos, marca ..., matrículas L-...... e L-...76, fornecidos pela entidade “EMP02..., Lda.
Alegou, para tanto e em síntese, que celebrou com a Requerida, esta na qualidade de locatária, um contrato de locação financeira mobiliária; porque a requerida faltou ao pagamento de rendas, a Requerente “
procedeu pela resolução do contrato, por meio de carta registada com aviso de receção, datada de 28-02-2024, conforme Doc. n.º 2 que ora se junta
”. No entanto, o documento que apresentou não continha qualquer assinatura nem a aposição de algum elemento pelos serviços postais.
A Requerida deduziu oposição em que refere, em súmula, que o contrato não foi resolvido, salientando que o talão de registo e o aviso de receção, ambos com o número ...05..., que a requerida juntou aos autos não contêm qualquer comprovativo, nem carimbo, de que tais documentos tenham sido entregues nos EMP03..., S.A., nem, no que toca ao aviso de receção, o nome legível, ou mesmo ilegível, e a assinatura de alguém tivesse recebido tal carta, bem como a data desse recebimento.
Produzida prova, foi proferida sentença na qual se decidiu pela total improcedência do peticionado.
É desta decisão que a Recorrente apela, apresentando as seguintes
conclusões:
(…)
A Recorrida não respondeu.
.II- Questões a apreciar
O objeto do recurso é definido pelas conclusões das alegações, mas esta limitação não abarca as questões de conhecimento oficioso, nem a qualificação jurídica dos factos (artigos 635º nº 4, 639º nº 1, 5º nº 3 do Código de Processo Civil).
Este tribunal também não pode decidir questões novas, exceto se estas se tornaram relevantes em função da solução jurídica encontrada no recurso e os autos contenham os elementos necessários para o efeito. - artigo 665º nº 2 do mesmo diploma.
Da mesma forma, não está o tribunal ad quem obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, desde que prejudicadas pela solução dada ao litígio.
Face ao alegado nas conclusões das alegações, são os seguintes os temas que cumpre examinar:
- Se se pode admitir a junção do documento com as alegações, por superveniência;
- se há que alterar a matéria de facto provada;
- se estão reunidos os pressupostos p a procedência da providencia cautelar de entrega judicial prevista no artigo 21º do DL 149/95 (norma que sofre alterações impostas pelos DL n.º 265/97, de 02/10 e DL n.º 30/2008, de 25/02.
.III- Fundamentação de Facto
Segue o elenco da matéria de facto provada e não provada a considerar:
Factos provados
1
- No exercício da sua atividade comercial, a 24 de abril de 2018, o Requerente, na qualidade de locatário, celebrou com a Requerida, um contrato de locação financeira mobiliária (leasing) com o n.º ...47, constituído por “Condições Gerais” e “Condições Particulares”.
2
- Nos termos do supra referido contrato, o Requerente acordou com a Requerida em proceder à locação de objetos, marca ..., matrículas L-...... e L-...76, fornecidos pela entidade “EMP02..., Lda.”.
3
- O preço global da locação ascendia a € 128.400,00 (cento e vinte e oito mil e quatrocentos euros), acrescido de IVA à taxa legal em vigor de 23%, no valor de € 29.532,00 (vinte e nove mil quinhentos e trinta e dois euros).
4
- O Requerente facultou a utilização dos bens à Requerida.
5
- Ficou acordado entre as partes, o pagamento de 60 (sessenta) rendas mensais, sendo o valor da primeira renda de € 12.840,00 (doze mil oitocentos e quarenta euros) e o valor das rendas seguintes calculado de acordo com uma taxa de juro nominal previamente convencionada entre as partes.
6
- A primeira renda venceu-se na data da entrada em vigor do contrato e as restantes 59 (cinquenta e nove) venceriam no dia 24 de cada mês.
7
- O Requerente e a Requerida acordaram igualmente que o valor residual, ou seja, o montante pelo qual a Requerida poderia vir a adquirir os bens locados, uma vez cumpridos os termos do contrato, ascendia a € 1,00 (um euro), acrescidos de IVA à taxa legal em vigor.
8
- Ficou convencionado que, em caso de incumprimento por parte da Requerida de quaisquer obrigações que para si decorressem do contrato celebrado, o Requerente poderia proceder à sua resolução.
9
- Mais convencionaram que, o incumprimento temporário, ou como tal reputado, quer de obrigações pecuniárias, quer de outras, se tornaria definitivo pela receção, na sede/residência da Requerida, de carta enviada pelo Requerente intimando-a ao cumprimento em prazo razoável, e pela não purgação, nesse prazo, da mora, isto é, da não reposição, nesse prazo, da situação que se verificaria caso o incumprimento não houvesse tido lugar.
10
- Acordaram ainda que, as notificações e comunicações entre o Requerente e a Requerida seriam consideradas válidas e eficazes se fossem efetuadas para os respetivos domicílios ou sedes sociais, tal como identificados no contrato, através de certa registada com aviso de receção.
11
- A Requerida deixou de pagar as rendas acordadas em 23-03-2023.
12
- Em consequência da falta de pagamento das rendas acordadas, o Requerente escreveu uma carta, datada de 28-02-2004, tendo como destinatária a Requerida, na qual informava que as obrigações decorrentes do contrato que havia celebrado com a Requerida se encontravam vencidas e não pagas e que decorrido o prazo de 8 dias sem que a Requerida procedesse ao pagamento solicitado, a mora se converteria em incumprimento definitivo e o contrato se consideraria automática e imediatamente resolvido.
13
- As rendas não foram pagas e os objetos não foram devolvidos ao Requerente.
IV- Apreciação jurídica
a) da inadmissibilidade da apresentação com o recurso do documento consistente em impressão da consulta do objeto entregue nos EMP03... com o registo ...05...
A Recorrente pretende proceder agora à junção de documento consistente em impressão da consulta do objeto entregue nos EMP03... com o registo ...05....
Afirma que do seu teor decorre a validade da resolução por ter sido feita por carta com aviso de receção que apenas não foi recebida por falta de levantamento do destinatário.
Por força do artigo 423º do Código de Processo Civil, embora as partes devam apresentar com os articulados os documentos em que se aleguem os factos que com eles se visam provar (nº 1), podem ser juntos, mediante o pagamento de multa, até ao vigésimo dia anterior ao da audiência final. Se a parte provar que os não pode oferecer com o articulado, fica dispensada dessa multa (nº 2).
Depois daquele momento, a parte só pode apresentar os documentos se invocar e demonstrar que os não pôde apresentar até esse momento ou se a sua apresentação só se mostrou necessária em virtude de ocorrência posterior.
Com efeito, o atual Código de Processo Civil, que teve em vista a simplificação, celeridade e economia processuais, antecipou o momento concedido às partes para a junção dos documentos face ao anterior código, a fim de reforçar a regra da inadiabilidade da audiência final, limitar os meios processuais que possam ser utilizados como instrumentos de atraso no julgamento, consciencializar as partes para uma escolha criteriosa dos factos, no momento em que os devem alegar, de forma a não se basearem em realidades indemonstráveis e, por fim, defender uma litigância mais leal, impedindo a deliberada apresentação tardia de documentos, em momento que dificulta a defesa por parte de quem com eles é confrontado.
A junção de documentos já na fase de recurso limita o exercício das faculdades concedidas pelo contraditório à parte contrária, que já não podem confrontar as testemunhas com os mesmos, nem tem a mesma liberdade produzir provas que ponham em causa o seu conteúdo. Só o princípio da procura da verdade material e a necessidade de uma justiça tempestiva justificam a possibilidade na apresentação posterior, a qual, no entanto, não ocorre quando a omissão na sua prévia junção decorre da falta de diligência da parte.
Ora, o envio da declaração de resolução do contrato, com indicação da sua causa, para a Requerida, por meio de carta registada com aviso de receção e a sua receção ou a invocação de causas que imputam ao destinatário a culpa pela falta de receção é efetivamente um dos factos constitutivos do direito do Requerente (o direito à entrega da coisa objeto do contrato resolvido) e logo relevante para a decisão desta causa, por se traduzirem em factos necessários para concluir pela verificação da resolução do contrato.
A resolução, no requerimento inicial, não foi estribada convenientemente, por não se referir de forma clara, nem o envio da carta registada com aviso de receção, visto que se remete para documento que o não sustenta minimamente e muito menos a sua receção pela Requerida, nem a ocorrência de facto que imputasse a não receção dessa carta à negligência da Requerida.
A relevância deste facto foi aliás logo salientada na oposição: a Requerida negou o recebimento dessa carta. Desde então, pelo menos, tinha então a Requerente todo o interesse na junção de documento de onde resultasse quer o envio de carta registada com aviso de receção, quer que a culpa pelo não recebimento da carta de resolução era da própria Requerida.
A junção dos documentos com as alegações de recurso, nos termos do artigo 651º, nº 1, do Código de Processo Civil é excecional, visto que neste se lê: “1 — As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância”. A norma citada neste artigo, por seu turno, dispõe: “Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento.”
Em nenhuma destas normas se preveem situações em que as partes não produziram prova suficiente sobre determinado facto, que estaria à sua disponibilidade, caso tivessem agido com um mínimo de diligência e que quando confrontadas com sentença em que não se julga provada a versão que defendeu, venham a obter a produção de documento que afirme factos já decorridos à data do julgamento e a que logo teriam acesso.
Com efeito, quando o artigo 651º do Código de Processo Civil refere “no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância”, não está a mencionar os casos em que a parte não produziu prova (ou não produziu prova suficiente) sobre a matéria que já estava em discussão em data anterior à prolação da sentença, como é o caso, mas os casos em que a sentença segue um caminho jurídico anteriormente não tratado pelas partes. Afasta-se com esta menção todos os casos em que a junção poderia já ser pertinente em função da discussão do litígio efetuada nos articulados.
Ora, como vimos, já nos articulados se discutiu a receção de carta com a declaração de resolução, negada pela Requerida, pelo que não foi com a sentença que a junção deste documento se poderia tornou pertinente.
Por outro lado, não se pode considerar que o documento apresentado é superveniente objetiva ou subjetivamente: este foi obtido no portal dos EMP03... a pedido da Recorrente, no prazo do recurso. Daqui decorre que, se agisse com a devida diligência, teria obtido o mesmo mal recebeu a oposição, caso não fosse negligente, ou, se agisse diligentemente, logo com o requerimento inicial.
Conclui-se pela intempestividade da junção da impressão da consulta do objeto entregue nos EMP03... com o registo ...05..., por não ser nem superveniente por causa não imputável ao apresentante, nem desnecessário até à prolação da decisão recorrida.
Em consequência, recusa-se a junção do referido documento, ordenando-se o seu desentranhamento.
*
.b – Da manutenção da matéria de facto provada (e da falta de impugnação da mesma)
.b.a---- Dos ónus a cargo do recorrente que impugna a decisão relativa à matéria de facto previstos no artigo 640º do Código de Processo Civil.
Nos termos do artigo 640º do Código de Processo Civil existem requisitos específicos para a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto com base em diversa valoração da prova, os quais, se não observados, conduzem à sua rejeição.
Assim, impõe esta norma ao recorrente o ónus de:
a) especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) especificar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham diferente decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados. (sendo a exigência da indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, a que se refere o nº 2, alínea a), deste artigo, considerado um ónus secundário, por instrumental, não obstante a expressa letra da norma).
c) especificar a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
É patente, numa primeira linha, que no novo regime foi rejeitada a admissibilidade de recursos que se insurgem em abstrato contra a decisão da matéria de facto: o Recorrente tem que especificar os exatos pontos que foram, no seu entender, erroneamente decididos e indicar também com precisão o que entende que se dê como provado.
Pretende-se, com a imposição destas indicações precisas ao recorrente, impedir “recursos genéricos contra a errada decisão da matéria de facto, restringindo-se a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente.” cfr Recursos no Novo Código de Processo Civil, António Santos Abrantes Geraldes, 2017, p.153.
Por estes motivos, o recorrente, tem também que especificar os meios de prova constantes do processo que determinam decisão diversa quanto a cada um dos factos, evitando-se que sejam apresentados recursos inconsequentes, não motivados, com meras expressões de discordância, sem fundamentação que possa ser percetível, apreciada e analisada.
Quanto a cada um dos factos que pretende que obtenha diferente decisão da tomada na sentença, tem o recorrente que, com detalhe, indicar os meios de prova deficientemente valorados, criticar os mesmos e, também discriminadamente e explicadamente, concluir pela resposta que deveria ter sido dada.
Relativamente ao ónus de especificar os concretos meios probatórios, particulariza o nº 2 deste preceito: “Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.
É comum verificar-se que há a tendência, nas alegações, no discorrer da pena, de misturar a impugnação do facto e do direito, trazendo opiniões sobre o que foi dado como provado, afirmando ter opinião diversa, mas conformando-se ainda assim com tal parte da decisão tomada. Desta forma, impõe-se que nas conclusões o Recorrente indique concretamente quais os pontos da matéria de facto que impugna, de forma a poder-se, com clareza, separar a mera exposição da sua apreciação sobre a prova da reivindicação fundamentada quanto à alteração da matéria de facto.
O que se pretende, com a exigência ao recorrente de assinalar "com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso", é onerá-lo com o esforço de se assegurar que existem, na prova gravada em que se pretende fundar, declarações que efetivamente justificam a sua discordância. Da mesma forma, permite-se ao tribunal que verifique diretamente, pelo acesso aos elementos objetivos do processo, apontadas pelo recorrente de forma definida e concretizada, da existência de alguns indícios nesse sentido, a exigir posterior análise.
Tem sido também opinião praticamente pacífica, e que se perfilha, que no âmbito da impugnação da matéria de facto não há lugar ao convite ao aperfeiçoamento da alegação, ao contrário do que se verifica quanto às alegações de direito. A tal convite se opõe, por um lado, a intenção da lei em não permitir impugnações vagas, sem bases consistentes, genéricas e injustificadas da decisão da matéria de facto, sendo aqui mais exigente no princípio da autorresponsabilização das partes. Veja-se que essa maior responsabilização é premiada com um alargamento do prazo processual para a apresentação das alegações quando ao recurso se funda também na impugnação da matéria de facto. Por outro lado, a leitura das normas que regem esta matéria não permite outro entendimento, como resulta da análise do teor taxativo do artigo 640º e da previsão dos casos que justificam o convite constante do artigo 639º do Código de Processo Civil.
Cumpre ainda salientar que a apreciação das questões pelo Tribunal da Relação deverá versar sobre as questões levantadas pelo Recorrente, sendo, por isso, do interesse deste o cumprimento com rigor dos ónus expressos no normativo que se discute, por conduzir a um maior aprofundamento da análise que pretende que seja efetuada num sentido divergente ao obtido na sentença, o que será potenciado com a especificação dos factos e a mais aprofundada concatenação de cada facto com a prova produzida, criticando o raciocínio efetuado na sentença. Com efeito, a maior parte das vezes, haverá alguma proporção entre a profundidade com que a parte apresenta as suas questões sobre a fixação da matéria de facto pelo tribunal recorrido e o calibre e a densidade que toma a apreciação das questões suscitadas.
Foi prolatado o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência, n.º 12/2023, publicado no
Diário da República n.º 220/2023, Série I de 2023-11-14
, páginas 44 – 65, com a seguinte síntese : “
Nos termos da alínea c), do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações”,
procurando “
a interpretação que se configure mais adequada no atendimento do estado atual do nosso ordenamento jurídico”, “num crescendo da preocupação da verdade material em detrimento da observação de formalidades, de menor relevância, ainda que algumas tenham resultado das inovações técnicas ocorridas, sem contudo deixar de manter a exigência, no que à impugnação da decisão da matéria respeita do cumprimento dos ónus enunciados
”. Ali se é perentório a afirmar que:
“
Da articulação dos vários elementos interpretativos, com cabimento na letra da lei, resulta que em termos de ónus a cumprir pelo recorrente quando pretende impugnar a decisão sobre a matéria de facto, sempre terá de ser alegada e levada para as conclusões, a indicação dos concretos pontos facto que considera incorretamente julgados, na definição do objeto do recurso
. [salientando embora que a mesma não precisa de ser indicada pela respetiva numeração.]
Quando aos dois outros itens
[leia-se alíneas b) e c) do nº do artigo 640º do Código de Processo Civil],
caso da decisão alternativa proposta, não podendo deixar de ser vertida no corpo das alegações, se o for de forma inequívoca, isto é, de maneira a que não haja dúvidas quanto ao seu sentido, para não ser só exercido cabalmente o contraditório, mas também apreendidos em termos claros pelo julgador, chamando à colação os princípios da proporcionalidade e razoabilidade instrumentais em relação a cada situação concreta, a sua não inclusão nas conclusões não determina a rejeição do recurso”.
Assim, na posição deste acórdão uniformizador tais ónus têm que ser cumpridos pelo menos nas alegações, mas alguns podem não ser vertidos diretamente para as conclusões, com exceção da identificação dos concretos pontos facto que considera incorretamente julgados, que ali devem têm necessariamente de constar, sob pena de rejeição do recurso nessa parte.
Entende-se que as razões que legitimariam posição diferente, aliás retratadas nos votos de vencido, não justificam postergar os interesses na segurança e certeza do direito trazida pelos Acórdãos de Uniformização de Jurisprudência.
.b.b---- concretização
A sentença refere que
“O Requerente não invocou, contrariamente ao que nos parece que seria seu ónus - por nos parecer tratar-se de factos constitutivos do seu direito - que: a) houvesse enviado à Requerida, com a viso de receção, a carta que juntou aos autos; e que b) tal carta houvesse sido rececionada
.
E de tal factualidade também não se produziu prova alguma, pois os documentos juntos aos autos não demonstram que a carta em questão tenha sido enviada à Requerida, registada com AR e, muito menos, que haja sido rececionada (a prova documental junta aos autos deixa séria dúvida de que a carta em causa tenha sido sequer registada e que tenha sido enviada à Requerida, mediante registo com AR, pois não há prova desse registo - que seria fácil haver se tal tivesse ocorrido - e, ainda que tal tenha ocorrido, a prova documental junta aos autos indicia, claramente, não ter sido tal carta rececionada, pois o AR junto aos autos não se mostra assinado).
A testemunha AA também nada de novo acrescentou a este respeito, pois que o seu depoimento se baseou na análise dos documentos que o Requerente juntou aos autos.”
Como vimos, embora a Requerente tenha aflorado que “
procedeu pela resolução do contrato, por meio de carta registada com aviso de receção, datada de 28-02-2024, conforme Doc. n.º 2 que ora se junta
”, juntou documento que não o patenteia, por falta de aposição de algum elemento (vinheta, tira, carimbo, escrito ou impressão) que comprovasse o registo da carta e por falta de aposição de assinatura ou dizeres na cópia do aviso de receção ou na carta.
Deveria a parte ter alegado que enviou a carta registada com aviso de receção com a declaração que resolvia o contrato por falta de pagamento das prestações mensais acordadas, com aviso de receção, para a morada do Requerido e explanar o destino da carta, se foi ou não rececionada e porquê, juntando os respetivo comprovativo (se não recebida teria interesse saber como obteve a morada, se foi com base no contrato ou por outra informação, prestada ou não por este).
No requerimento inicial pouco alegou de concreto nesse sentido (fazendo alguma confusão entre o objetivo jurídico pretendido, a resolução do contrato, e o meio de obter, com o envio e receção de declaração nesse sentido, verificados os pressupostos para que esta operasse).
No entanto, de mais relevante aqui o que se denota é que a Recorrente não se insurge contra a matéria de facto provada, não pede a alteração ou aditamento de algum facto, embora saliente que no documento que apresentou consta um código de barras.
Afirma factos conclusivos, sem pedir a inclusão daqueles que lhe estão na base na matéria de facto provada. Assim, refere que a resolução do contrato de locação financeira comunicada mediante carta registada com aviso de receção à Requerida, não tendo esta procedido ao seu levantamento, por motivo alheio ao Recorrente, é válida e eficaz, mas sem referir que pretende a alteração da matéria de facto provada, sem pedir o aditamento de algum facto, sem incidir de forma clara na impugnação da matéria de facto.
Destarte, compulsadas as alegações e as conclusão verifica-se que nenhum destes ónus foi cumprido: não se pediu, sequer implicitamente, a alteração da matéria de facto provada, pelo que não se especificaram os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida nem a alteração (que se não peticionou) e muito menos a redação pretendida.
Entende-se, no entanto, que se podem postergar estas razões formais e desde já conhecer de mérito, visto que com isso se não prejudica a parte contrária e se alcança a justiça material para que aponta uma visão mais atualista do Código de Processo Civil.
Como vimos, dos documentos juntos aos autos (não considerando os apresentados com as alegações de recurso, mandados desentranhar) não resulta claro o envio da carta registada com aviso de receção e não resulta, de forma nenhuma, o seu destino; se foi ou não recebida e porquê.
Da prova produzida (valida e tempestivamente) não resultam os factos que o Recorrente tinha que demonstrar no que toca à efetivação da resolução do contrato: que a comunicou, por carta registada com aviso de receção e que a parte contrária a recebeu ou se a não recebeu foi por causa que lhe é imputada a título de negligência.
Termos em que improcede a implicitamente requerida alteração da matéria de facto provada e não se altera a mesma.
*
Aplicando o Direito aos factos provados
Pretende a Requerente que seja decretada a apreensão e entrega de um bem móvel, ao abrigo do disposto no artigo 21º do DL 149/95 de 24 de junho.
Determina o artigo 21º do DL 149/95 de 24 de junho, que findo o contrato de locação por resolução ou pelo decurso do prazo sem ter sido exercido o direito de compra, o locatário não proceder à restituição do bem ao locador, pode este, após o pedido de cancelamento do registo da locação financeira, requerer ao tribunal providência cautelar consistente na sua entrega imediata ao requerente – cfr alterações impostas pelos DLs 265/97 de 2/10 e 30/2008 de 25-2.
Com o requerimento, o locador oferece prova sumária dos requisitos, exceto a do pedido de cancelamento do registo, que cabe ao tribunal efetuar quando tenha meios para tal.
Assim, o Requerente tem que demonstrar, se forma suficiente, a celebração do contrato e que este terminou, seja por via da resolução, seja por via da caducidade pelo decurso do prazo, alegando ainda que este ocorreu sem o exercício do direito de compra e que o bem lhe não foi entregue.
Dúvidas não há quanto ao tipo contratual celebrado entre as partes, atento o contrato junto.
O mesmo não se pode dizer quanto à resolução do contrato: A resolução opera-se por meio de declaração unilateral, receptícia, do credor, que se torna irrevogável logo que chegue ao devedor ou dele é conhecida – arts. 224º, 230º e 436º nº 1 do Código Civil.
Da análise do disposto no artigo 224º do Código Civil podemos concluir que este consagra a teoria da receção mitigada: não vale para se considerar a declaração operante o seu simples envio, mas a sua receção pelo declaratário, exceto se a não recebeu por causa que lhe é imputável a título de culpa.
Esta culpa tem que ser analisada á luz do conceito do próprio Código Civil, no domínio obrigacional em que nos encontramos, atendendo á posição de um bonus pater família.
Assim, tinha a Requerente que alegar e demonstrar que declarou à Requerida a resolução do contrato pelo meio contratualmente acordado, a saber, a carta registada com aviso de receção e factos de onde decorressem que esta operava: ou a sua receção pela Requerida ou que tal falta se deveu à negligência desta. Mas não o fez, não se demonstrando, nem o envio dessa carta, nem o seu destino: se foi aceite e se o não foi, que tal falha se deveu a negligência da Requerida.
Termos em que se conclui, como na sentença recorrida, que a pretensão da Recorrente não pode ter procedimento.
.V -Decisão
Por todo o exposto, julga-se totalmente improcedente o recurso e em consequência confirma-se a decisão recorrida.
Custas do recurso pela Recorrente (artigo 527º nº 1 e 2 do Código de Processo Civil).
Guimarães, 20-03-2025
Sandra Melo
Luís Miguel Martins
Conceição Sampaio
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TRG
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https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/f4d7bbce9123b92280258c5b00350a4c?OpenDocument
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1,738,022,400,000
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CONFIRMADA
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1844/21.5T8MTS-A.P1
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1844/21.5T8MTS-A.P1
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RUI MOREIRA
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I - Não deve admitir-se o prosseguimento de um incidente de incumprimento de responsabilidades parentais, designadamente da obrigação de prestação de alimentos, quando ao requerido, residente na Alemanha, não é apontado qualquer rendimento ou património no estado português, não é pretendida a intervenção substitutiva do FGADM e a realização do direito em causa só pode ser operada na Alemanha.
II - Nestas circunstâncias, é adequado o arquivamento do incidente, cabendo a realização do direito decorrer ao abrigo do Regulamento (CE) n.º 4/2009 do Conselho, de 18 de dezembro de 2008.
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[
"RESPONSABILIDADES PARENTAIS",
"INCIDENTE DE INCUMPRIMENTO",
"OBRIGAÇÃO DE ALIMENTOS",
"RESIDENTE NO ESTRANGEIRO"
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Proc. nº 1844/21.5T8MTS-A.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo de Família e Menores ... - Juiz 2
REL. N.º 934
Relator: Juiz Desembargador Rui Moreira
1º Adjunto: Juíza Desembargadora Maria da Luz Teles Meneses de Seabra
2º Adjunto: Juiz Desembargador João Proença
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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO
1 – RELATÓRIO
(Transcrição do segmento correspondente da decisão recorrida)
“AA, na qualidade de progenitora de BB, instaurou este incidente tutelar cível visando o incumprimento da regulação do exercício das responsabilidades parentais, na vertente do não pagamento da prestação de alimentos, contra CC, enquanto progenitor daquele, indicando-o como morador em ..., ...28 ..., República Federal da Alemanha.
A requerente alegou que por sentença datada de 11-06-2021, foram reguladas, no apenso do processo de divórcio, as responsabilidades parentais relativamente ao filho menor de idade BB, tendo sido fixado a título de pensão de alimentos, o valor mensal de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros), a ser paga pelo requerido.
Mais alega que, desde 07-09-2022, o requerido nada tem pago, assim como não tem entregue o abono da Alemanha, no montante de € 169,00 (cento e sessenta e nove euros) tal como se tinha obrigado na sentença acima mencionada.
O requerido recusa-se a pagar as quantias em dívida, sendo que este continua a residir na Alemanha.
Requer, a final, que o requerido seja compelido no pagamento das quantias em falta pelos meios coercivos a que alude o artigo 48.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (RGPTC).
A Digna Magistrada [do MºPº], na sua vista, defendeu não ser possível aplicar ao caso o disposto no artigo 48.º, do RGPTC, por o devedor de alimentos residir no estrangeiro, não sendo o incidente de incumprimento o meio adequado para fazer desencadear um procedimento internacional destinado a efetivar o cumprimento dos alimentos.
Por inadmissibilidade legal, promoveu que se indefira liminarmente o presente incidente.”
*
Decidiu, então, o tribunal recorrido:
“(…)
Na situação em apreço, o obrigado a alimentos está a residir na Alemanha, de acordo com a informação prestada pela requerente, sendo desconhecida a sua entidade patronal.
Ora, estando o requerido a residir na Alemanha, e não se conhecendo a sua entidade patronal, não é possível recorrer ao preceituado ao artigo 48.º, n. º1, alínea b), do RGPTC.
Como muito bem defende a Digna Procuradora do Ministério Público, não é legalmente possível ordenar nesta ação à entidade patronal sediada no estrangeiro que desconte nos salários as quantias necessárias para garantir o pagamento das prestações alimentares vencidas ou vincendas.
À requerente, impõem-se, por isso, uma vez que dispõem do competente título executivo que recorra à execução por alimentos autónoma regulada no Código de Processo Civil ou socorrer-se dos mecanismos de cobrança de alimentos no estrangeiro regulada no Regulamento (CE) nº 4/2009 de 18-12-2008.
Por todo o expendido, constatando-se a inadmissibilidade legal do mecanismo processual de que a requerente se socorreu para obter a cobrança coerciva dos alimentos vencidos e vincendos devidos ao seu filho, decide-se, sem necessidade de mais considerações, indeferir liminarmente o presente incidente.(…)”.
*
É desta decisão que vem interposto o presente recurso, que a requerente terminou oferecendo as seguintes conclusões.
1.ª – Perante o incumprimento das responsabilidades parentais quanto ao pagamento da prestação de alimentos fixada, pode o credor, alternativamente, lançar mão de qualquer um dos três mecanismos legalmente previstos para o efeito: o incidente de incumprimento das responsabilidades parentais previsto no artigo 41.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível; o mecanismo do artigo 48.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível; e a execução especial por alimentos regulada nos artigos 933.º a 937.º do Código de Processo Civil.
2.ª – Aqueles três mecanismos processuais articulam-se entre si numa relação alternativa, nada obstando a que o credor de alimentos lance mão do incidente de incumprimento estabelecido pelo artigo 41.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, ao invés de recorrer a um dos demais meios processuais: o mecanismo do artigo 48.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível e a execução especial por alimentos.
3.ª – No presente caso, a Recorrente deduziu o incidente de incumprimento previsto no artigo 41.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, peticionando que fosse ordenada «a notificação do Requerido nos termos e para os efeitos previstos no número 3 do artigo 41.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível», e, ainda, fosse ordenada «a notificação do Requerido» para que comprovasse, nos autos, «o estado do pedido» de concessão de abono «que haja efectuado junto das autoridades competentes da República Federal da Alemanha, incluindo a eventual decisão que sobre o mesmo haja recaído».
4.ª – A causa de pedir dos presentes autos não se limitava, aliás, ao incumprimento pelo Requerido do pontual pagamento da obrigação de alimentos que se encontra vigente. Incluía, ainda, o incumprimento, pelo Requerido, da obrigação, que assumiu, de diligenciar pela percepção do abono de família, junto das entidades competentes, e, consequentemente, pelo pagamento à Requerente – em representação do seu Filho Menor – de parte do montante daquela prestação social – diligências que a Requerente desconhece se foram encetadas, ainda menos se foram concluídas, pelo Requerido.
5.ª – Tendo o Insigne Tribunal a quo principiado por ordenar a notificação do Requerido «para que, em cinco dias, diga o que tiver por conveniente com a expressa advertência de que, nada dizendo, se terão por admitidos por acordo os factos alegados pela requerente, posto que não estão em causa direitos indisponíveis, mas apenas a falta de pagamento da quantia devida a título de alimentos», caberia, decorrido aquele prazo sem que nada tenha sido dito, ser determinado o prosseguimento dos autos, nos termos previstos pelo artigo 39.º, aplicável ex vi do número 7 do artigo 41.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível.
6.ª – Cautelarmente, ainda que se entendesse que os presentes autos se encontravam sujeitos à disciplina do artigo 48.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, caberia apurar, como não foi feito, se, em concreto, o Requerido aufere, em território nacional, qualquer rendimento periódico, que permita concretizar algum dos meios coercivos discriminados nas alíneas daquela norma.
7.ª – Tudo o que impõe, na esperada procedência do recurso, seja revogada a douta decisão recorrida, e, consequentemente, determinada a sua substituição por outra que determine o prosseguimento dos autos nos termos do regime legalmente previsto para a tramitação do incidente de incumprimento estabelecido no artigo 41.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, designadamente notificando as partes para, querendo, apresentarem alegações e prova, nos termos previstos pelo número 4 do artigo 39.º, aplicável ex vi do número 7 do artigo 41.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, e, após, prosseguindo-se para instrução e julgamento, nos termos consignados pelos números seguintes da mesma norma.
*
O MºPº ofereceu resposta ao recurso, afirmando que o meio adequado à tutela dos direitos invocados é o mecanismo de cobrança de alimentos no estrangeiro, previsto no Regulamento (CE) n.º 4/2009 do Conselho, de 18 de dezembro de 2008, relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e à execução das decisões e à cooperação em matéria de obrigações alimentares. Reafirmou a inaplicabilidade do regime previsto nos arts. 41º e 48º do RGPTC. E concluiu pelo acerto da decisão de indeferimento liminar proferida.
*
O recurso foi admitido para subir nos próprios autos e com efeito devolutivo.
Foi, todavia, determinada a baixa dos autos ao tribunal recorrido, para notificação do requerido quanto aos termos do processo e do recurso.
Operada tal notificação, não sobreveio aos autos qualquer outra resposta.
Cumpre decidir.
*
2- FUNDAMENTAÇÃO
O objecto do recurso é circunscrito pelas respectivas conclusões, sem prejuízo da decisão de questões que sejam de conhecimento oficioso - arts. 635º, nº 4 e 639º, nºs 1 e 3 do CPC.
No caso, atentas as conclusões acima reproduzidas, importa decidir se, atentos os factos alegados pela requerente, deve admitir-se o prosseguimento do presente incidente de incumprimento de responsabilidades parentais, designadamente quanto á obrigação de prestação de alimentos.
*
Tal como alega a apelante, resultam dos autos os seguintes elementos:
1º- Por Acordo, homologado por sentença de 11/06/2021, proferida nos autos de Divórcio Sem Consentimento do Outro Cônjuge – convolado em Divórcio por mútuo consentimento –transitada em julgado, Requerente e Requerido acordaram quanto ao exercício das responsabilidades parentais relativas ao filho de ambos, BB, nascido a ../../2017.
2.º - Obrigou-se então o Requerido, «a título de pensão de alimentos» ao seu filho Menor, a contribuir «com a quantia mensal de € 250,00 (duzentos e cinquenta Euros) a pagar até último dia de cada mês por depósito ou transferência bancária» para a conta bancária da Requerente.
3º - Obrigou-se ainda o Requerido, caso viesse «a receber o abono na Alemanha», a entregar à aqui Requerente «a quantia mensal de € 169,00 (cento e sessenta e nove Euros), a pagar até último dia de cada mês por depósito ou transferência bancária» para a conta bancária desta – cfr. a Cláusula 7 do Acordo homologado.
4º - Alegou a requerente desconhecer se o requerido recebeu qualquer quantia a esse propósito.
5º - Concluiu a requerente impor-se que “…seja o Requerido compelido no pagamento das quantias em falta, inclusive, se necessário, pelos meios coercivos a que alude o artigo 48.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível.”
*
Além da realidade processual que acaba de se descrever, constata-se que a requerente não alude à existência de qualquer património ou rendimentos do requerido, em território nacional, nem tão pouco invoca qualquer impossibilidade de obter a cobrança da obrigação de alimentos junto do requerido, em ordem a sustentar uma mediata pretensão de imputação dessa obrigação ao FGADM, em substituição daquele.
Em qualquer caso, pretende ainda, por via do incidente, apurar se o requerido cumpriu a obrigação de providenciar pela obtenção de um subsídio, na Alemanha, tal como se obrigara.
Foi nestas circunstâncias que, sob promoção do MºPº, o tribunal recorrido concluiu pela inviabilidade do presente procedimento, pois que jamais poderia resultar em qualquer efeito útil, designadamente o da cobrança coerciva das prestações devidas junto de qualquer entidade devedora de quaisquer rendimentos ao requerido, na Alemanha.
É óbvio não estar em causa o expediente da execução especial por alimentos, nos termos do art. 933º, do CPC, não tendo sido essa a opção da requerente para a cobrança do valor que alega ser devido pelo requerido.
Para além desse instrumento para a realização do direito invocado, dispõem os arts. 41º e 48º, na sua parte útil ao caso do RGPTC:
Art. 41.º
1 - Se, relativamente à situação da criança, um dos pais ou a terceira pessoa a quem aquela haja sido confiada não cumprir com o que tiver sido acordado ou decidido, pode o tribunal, oficiosamente, a requerimento do Ministério Público ou do outro progenitor, requerer, ao tribunal que no momento for territorialmente competente, as diligências necessárias para o cumprimento coercivo e a condenação do remisso em multa até vinte unidades de conta e, verificando-se os respetivos pressupostos, em indemnização a favor da criança, do progenitor requerente ou de ambos.
(…)
Art. 48.º
1 - Quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos não satisfizer as quantias em dívida nos 10 dias seguintes ao vencimento, observa-se o seguinte:
a) Se for trabalhador em funções públicas, são-lhe deduzidas as respetivas quantias no vencimento, sob requisição do tribunal dirigida à entidade empregadora pública;
b) Se for empregado ou assalariado, são-lhe deduzidas no ordenado ou salário, sendo para o efeito notificada a respetiva entidade patronal, que fica na situação de fiel depositário;
c) Se for pessoa que receba rendas, pensões, subsídios, comissões, percentagens, emolumentos, gratificações, comparticipações ou rendimentos semelhantes, a dedução é feita nessas prestações quando tiverem de ser pagas ou creditadas, fazendo-se para tal as requisições ou notificações necessárias e ficando os notificados na situação de fiéis depositários.
(…).
As normas citadas tendem a adopção de soluções que permitam, coercivamente, por ordem do tribunal, apreender bens ou rendimentos, para entrega imediata ao titular do direito correspondente, ou a quem o represente.
Por outro lado, situações frequentes há em que o próprio procedimento é útil em ordem a certificar a existência do incumprimento e a impossibilidade de obtenção dos alimentos devidos junto do respectivo obrigado, a fim de o fazer substituir pelo FGADM. Mas, como se referiu, essa não é a situação destes autos.
Assim, nas concretas circunstâncias do caso, é forçoso concluir que o prosseguimento do incidente tenderia apenas a diagnosticar a situação de incumprimento.
Com efeito, não aponta a requerente qualquer património ou rendimento que o requerido detenha ou obtenha no estado português, que possa ser aplicado ao pagamento das obrigações alegadamente incumpridas. E não serve o incidente para promover uma busca de tais meios que, ab initio, não são ditos como sequer passíveis de existir. Aliás, nada a esse respeito vem concretamente requerido pela ora apelante.
Além disso, o eventual apuramento sobre se o requerido recebe, ou não, algum subsídio do estado alemão, como se propôs obter, seria inconsequente, por não se poder determinar à entidade estrangeira pagadora a sua entrega à requerente.
Por fim, como referiu o tribunal recorrido, também não seria este incidente apto a cobrar, na Alemanha, onde reside, qualquer rendimento laboral que o requerido aí aufira. Com efeito, não estaria a entidade pagadora sujeita à obrigação de cumprir qualquer ordem judicial de desconto da quantia adequada, no salário do requerido, e de proceder à sua entrega à requerente. Uma tal decisão deste tribunal seria impertinente e inconsequente.
Todavia, não pode deixar de estar disponível um meio processual adequado para a realização do direito já reconhecido ao filho da requerente e do requerido.
Acontece que esse expediente existe: é o previsto no Regulamento (CE) n.º 4/2009 do Conselho, de 18 de dezembro de 2008, a operar através da Direção Geral da Administração da Justiça, que é a Autoridade Central portuguesa para efeitos de aplicação desse Regulamento, relativo à competência, lei aplicável, reconhecimento e execução de decisões e à cooperação em matéria de obrigações alimentares.
Nestas circunstâncias, tal como o entendeu o tribunal recorrido, o prosseguimento dos termos deste incidente sempre seria uma actuação estéril, inútil, inapta à produção de qualquer efeito na realização do direito a alimentos invocado.
Pelo exposto, sem outras considerações que a simplicidade do caso dispensa, resta concluir pelo não provimento da apelação, na confirmação da decisão recorrida.
*
Sumário (art. 663º, nº 7 do CPC):
…………………………………..
…………………………………..
…………………………………..
*
3 - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes que constituem este Tribunal em negar provimento ao presente recurso de apelação, com o que confirmam a decisão recorrida.
Custas pela apelante.
Reg. e not.
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Porto, 28 de Janeiro de 2025
Rui Moreira
Maria da Luz Seabra
João Proença
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TRP
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https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/20999e6f1ca0e53180258c2a005704f1?OpenDocument
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1,745,798,400,000
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CONFIRMADA
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1543/22.0T8PRT-A.P1
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1543/22.0T8PRT-A.P1
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CARLA FRAGA TORRES
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I - O indeferimento liminar da oposição à penhora com o fundamento legal da sua manifesta improcedência não carece de contraditório prévio.
II – Não viola o princípio da proporcionalidade a penhora do imóvel que seja habitação própria permanente do executado quando, estando em causa dívida superior ao dobro do valor da alçada do tribunal de primeira instância, não seja previsível que a penhora de outros bens permita a satisfação integral do credor no prazo de 12 meses.
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[
"OPOSIÇÃO À PENHORA",
"PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE DA PENHORA"
] |
Proc. n.º 1543/22.0T8PRT-A.P1 – Apelação
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo de Execução do Porto – Juiz 7
Relatora: Carla Fraga Torres
1.º Adjunto: Manuel Fernandes
2.º Adjunto: Teresa Maria Sena Fonseca
Acordam os juízes subscritores deste acórdão da 5.ª Secção Judicial/3.ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto:
I. Relatório.
Recorrente: AA
Recorrida: A... – Sociedade Financeira de Crédito, S.A.
AA
apresentou contra
A... – Sociedade Financeira de Crédito, S.A.
Oposição à penhora que, no âmbito da execução para pagamento de 53.106,42 € instaurada por esta contra si, incidiu sobre a fracção autónoma designada pela letra O, correspondente ao 2.º andar, destinada a habitação do prédio urbano sito na Av. ..., ... e Rua ..., ..., freguesia ..., concelho da Póvoa de Varzim, descrita na Conservatória do Registo Predial da Póvoa de Varzim sob o n.º ... da referida freguesia e inscrito na matriz sob o artigo ....
Para o efeito, alegou, em suma, que não deve a quantia exequenda, porquanto entregou a viatura que lhe garantiram ser suficiente para a liquidar, e que a penhora da fracção que é a sua casa de morada de família e tem valor venal igual ao valor patrimonial de 235.997,65 € viola, por excessiva, o princípio da proporcionalidade e só subsidiariamente responde pela dívida exequenda.
Em sede de apreciação liminar, a oposição à penhora foi objecto de indeferimento, nos seguintes termos:
“Da oposição à penhora
O executado AA veio deduzir oposição à penhora, por apenso à execução n.º 1543/22.0T8PRT, sustentando a desproporcionalidade da penhora efetuada sobre imóvel que constitui a casa de morada de família do executado, alegando que:
- Não deve a quantia peticionada na execução, por ter entregado uma viatura à exequente e ficado convencido que saldava a dívida, sem que saiba o valor da venda dessa viatura e seu destino;
- O imóvel penhorado tem valor muito superior ao da dívida exequenda, sendo, por isso, desproporcionada a penhora
*
A presente oposição à penhora é manifestamente improcedente ou não apresenta fundamento válido de oposição à penhora, pelo que deve ser indeferida liminarmente, nos termos dos arts. 732.º, n.º 1, als. b) e c), e 785.º, n.º 2, do NCPC.
*
Dos factos relevantes (resultantes do processo):
a) A exequente deduziu execução contra o ora executado, em 20.01.2022, tendo por base livrança como título executivo, peticionando o pagamento de € 53.106,42, conforme requerimento executivo que aqui se dá por reproduzido.
b) O ora executado opoente foi citado para a execução em 02.06.2022, conforme certidão junta na execução em 06.07.2022.
c) Foram realizadas pesquisas de bens penhoráveis.
d) Nessa sequência, foi realizada a penhora do saldo bancário do executado, no valor de € 313,03, conforme auto de penhora de 30.12.2022.
e) Foi realizada a penhora do saldo bancário do executado, no valor de 946,13, conforme auto de penhora de 30.06.2023.
f) Foi agora realizada a penhora da fração autónoma, designada pela letra “O”, do prédio descrito na CRPredial da Póvoa de Varzim sob o n.º ...-O, conforme auto de penhora de 01.04.2024,
g) A qual foi sustada, por pender penhora anterior, conforme decisão do agente de execução de 01.04.2024.
*
Do Direito.
Do valor da execução
As questões que se prendem com a execução propriamente dita e com a obrigação exequenda e sua exigibilidade não configuram fundamento de oposição à penhora, como resulta do art. 784.º, n.º 1, do NCPC, mas, quanto muito, fundamento de oposição à execução, nos termos dos arts. 728.º a 731.º do NCPC.
Além disso, a possibilidade de oposição à execução mostra-se precludida, uma vez que o executado, quando foi citado para, querendo, deduzir oposição à execução, não o fez no prazo legal de 20 dias, como se lhe impunha, nos termos do art. 728.º, n.º 1, do NCPC.
Assim sendo, por não ser fundamento de oposição à penhora e estar precludida a possibilidade de oposição à execução por factos anteriores à citação, não é cognoscível nesta sede a alegação do opoente quanto às dúvidas suscitadas a respeito do efetivo valor da dívida subjacente ao preenchimento da livrança apresentada como título executivo.
Acresce que, na verdade, o opoente também se limita a suscitar dúvidas, o que implicaria que, caso estivesse em prazo para deduzir oposição à execução, a mesma fosse de igual modo improcedente.
Da desproporcionalidade da penhora
O opoente invoca a desproporcionalidade da penhora de imóvel, mas a verdade é que, para além de alegar que o imóvel constitui a sua casa de morada de família, nada mais alega de factualmente relevante.
Concretizando, o princípio da proporcionalidade da penhora está presente nas regras que norteiam a realização de qualquer penhora em sede executiva.
No entanto, nada impede que se penhorem bens de valor superior à quantia exequenda, mesmo imóveis que constituem a habitação dos executados, pois, não havendo mais bens penhorados/penhoráveis ou que permitam, em tempo razoável e de forma igualmente satisfatória, o pagamento da dívida exequenda, não resta alternativa que não seja a penhora desses bens, nos termos previstos no atual art. 751.º do NCPC. Resulta dos n.ºs 3 e 4 deste preceito legal, na parte que pode relevar para o caso dos autos, que, “Ainda que não se adeque, por excesso, ao montante do crédito exequendo, é admissível a penhora de bens imóveis”, sendo que, caso se trate da habitação própria e permanente do executado, a penhora poderá ser concretizada, “em execução de valor superior ao dobro do valor da alçada do tribunal de 1ª instância, se a penhora de outros bens presumivelmente não permitir a satisfação integral do credor no prazo de 12 meses.”.
No fundo, estando em causa uma execução de valor superior ao dobro da alçada do tribunal de primeira instância, para que a pretensão da opoente procedesse, concluindo-se, então, pela desproporcionalidade da penhora do imóvel (admitindo-se, nesta parte, que seja a habitação própria e permanente do executada opoente), era necessário alegar (e, depois, provar), além do mais, que existem outros bens concretos penhorados/penhoráveis que permitem liquidar o crédito exequendo, no máximo, em 12 meses. Assim é, dado que cabe ao executado o ónus da alegação e prova da inadmissibilidade e/ou excesso de penhora, seja na perspetiva de que os fundamentos da inadmissibilidade da penhora constituem os factos constitutivos do direito de oposição à penhora (cfr. art. 342.º, n.ºs 1 e 3, do CC, e art. 784.º do NCPC), seja na perspetiva de que se trata de facto impeditivo do direito do credor exequente em executar todos os bens do devedor suscetíveis de penhora (cfr. arts. 817.º e 342.º, n.º 2, do CC e art. 735.º, n.º 1, do NCPC). Como se sustentou no Ac. RP de 16.06.2016 (proc. 6383/12.2TBMAI, do juízo de execução da Maia), “A impropriedade da penhora de um bem determinado e que abstractamente é penhorável…só se afere no confronto com outros bens determinados que poderiam ter sido penhorados, não podendo o executado discutir aquela impropriedade sem concretizar esses outros bens.”.
Acontece que, quanto à existência de bens penhorados/penhoráveis em alternativa ao imóvel, o opoente nada invoca, limitando-se a sugerir que o exequente deve continuar a procurar bens penhoráveis, isto, note-se, numa execução que se iniciou em 2022 e na qual foi já tentada a penhora de outros bens/direitos, conseguindo-se apenas a penhora de valores reduzidos. E, de facto, se existem outros bens penhoráveis suficientes e que não foi possível detetar desde o início da execução, impunha-se ao opoente que os identificasse, sob pena de estar irremediavelmente afastado um qualquer juízo no sentido da natureza excessiva/desproporcionada da penhora do imóvel. Entendimento contrário implicaria, na prática, tornar o imóvel em causa como absolutamente impenhorável, o que contraria o disposto nos arts. 736.º e 751.º do NCPC. Além disso, nem sequer bastaria a identificação de outros bens adequados a liquidar a quantia exequenda, mas ainda se exigia um mais – a alegar e, depois, a provar pelo opoente -, ou seja, que tais bens permitiriam o pagamento do crédito exequendo em 12 meses, alegação esta que, manifestamente, não foi apresentada, sequer conclusivamente.
Desta forma, não resultando da alegação do opoente a existência de bens penhorados ou penhoráveis concretos suficientes a, num juízo de prognose razoável, admitir a liquidação da totalidade da quantia exequenda, e muito menos no prazo máximo de 12 meses, conclui-se, de forma manifesta, pelo não preenchimento dos pressupostos da desproporcionalidade da penhora de imóvel.
Assim sendo, mesmo face aos factos alegados pelo opoente, não se mostra, com a penhora e execução do imóvel em causa, violado o preceito legal do art. 751.º do NCPC, nem o princípio geral da proporcionalidade da penhora.
Destarte, pelas razões expostas, a alegação do opoente é manifestamente improcedente.
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Improcede, assim, a presente oposição à penhora e sempre improcederia, mesmo que os autos prosseguissem, pois os factos alegados são insuficientes para conduzir à procedência da oposição.
*
Decisão.
Nestes termos, vistas as indicadas normas jurídicas e os princípios expostos, indefere-se liminarmente a presente oposição à penhora.
Custas pelo opoente.
Notifique”.
Inconformado com esta decisão, dela interpôs recurso o executado, que, a terminar as respectivas alegações, formulou as seguintes conclusões:
“1º) Salvo melhor opinião e o devido respeito, não andou bem o Mmo. Juiz a quo, ao julgar a oposição liminarmente improcedente, uma vez que deveria ter sido a mesma julgada totalmente procedente por provada.
2º) Salvo o devido respeito, não andou bem o Mmo. Juiz a quo, na sua Douta sentença, que salvo melhor viola o estatuído no disposto na alínea b) do artigo 643º do Código de Processo Civil.
3º) O Apelante vem ainda invocar a violação do princípio do contraditório, qualificando o despacho de indeferimento liminar como uma decisão surpresa, o que desde já se invoca.
4º) É inquestionável que o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem – cf. art.º 3.º, n.º 3, do CPC.
5º) Sendo a decisão recorrida um despacho de indeferimento liminar, no caso do Requerimento pelo qual o Recorrente veio dar início a incidente de oposição à penhora, importa ainda ter presente que, nos despachos de indeferimento liminar de petição ou requerimento inicial, faz sentido dela recorrer invocando a ofensa do princípio da proibição de decisões-surpresa (cf. artigos 551.º, 590.º, n.º 1, e 629.º, n.º 3, do CPC).
6º) Os fundamentos que o Recorrente invocou se reconduzem à previsão das alíneas a) e b) do n.º 1 do art.º 784.º do CPC, pelo que como ensina Marco Carvalho Gonçalves, in “Lições de Processo Civil Executivo”, 2.ª edição, Almedina, pág. 376, a oposição à penhora é um meio processual privativo do executado em que apenas podem ser invocados os fundamentos expressamente previstos no n.º 1 do art.º 784.º do CPC, sendo mesmo inadmissível que o executado venha invocar na oposição à penhora fundamentos próprios da oposição à execução.
7º) Não há dúvida que a Oposição à penhora que foi deduzida pelo Recorrente se reconduz à previsão da alínea a), sendo que quanto aos factos invocados, o Exequente avançou com a penhora de uma fracção autonoma descrita na Conservatória do Registo Predial da Póvoa de Varzim sob o numero ..., com um valor patrimonial de Euros 235997,65.
8º) O Recorrente não deve a quantia exequenda, tanto mais que entregou a viatura á Exequente e foi-lhe assegurado que com tal entrega a divida ficaria liquidada, sendo agora confrontado com um valor de Euros 59417, 06, mas sem que se saiba qual o destino e o valor apurado com a venda da viatura feita pela Exequente, vendo agora atacada a sua casa de morada de familia devendo a penhora sobre o mesmo ser levantada, uma vez que onera demasiado o Recorrente, sendo que este inclusivamente não reconhece dever o montante, tornando a penhora do imóvel excessiva, uma vez que por um lado o mesmo não possui o valor venal igual ao valor patrimonial, sendo muito superior, mas que ainda assim já se encontra fixado em Euros 235997, 65 (duzentos e trinta e cinco mil novecentos e noventa e sete euros e sessenta e cinco cêntimos), que mesmo assim é quase quatro vezes mais que o valor da Execução, devendo como tal ser avaliado, o que se requer a final e existindo aqui uma violação do principio da proporcionalidade.
9º) O princípio da proporcionalidade, consagrado no artigo 735.º, n.º3 e ainda no artigo 751.º, ambos do CPC, consiste num dos principais limitadores do objeto da penhora, ao não permitir transcender os bens precisos para garantir a liquidação do montante em divida e as despesas da execução. Logo, quando se aprecia a proporcionalidade de uma restrição a um direito fundamental, avalia-se a relação entre o bem que se pretende proteger ou prosseguir com a restrição e o bem jusfundamentalmente protegido que resulta, em consequência, desvantajosamente afectado (Jorge Reis Novais, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, Coimbra Editora, 2004, pg. 178). 15º
10º) No entanto, in casú a divida alegadamente é de Euros 59417, 06 (cinquenta e nove mil quatrocentos e dezassete euros e seis cêntimos), não sendo tal valor liquido, uma vez que se desconhece o destino dado ao veiculo Mercedes que foi entregue á Exequente e que a mesma certamente já terá vendido, pelo que se desconhece se não se encontra agora a alegadamente tentar cobrar duas vezes o mesmo valor, pelo que deverá a final ser notificada para vir prestar esclarecimentos e indicar os pagamentos anteriormente efectuados e juntar o documento do acordo celebrado, pois o Recorrente ficou convencido que com a entrega do carro nada mais era devido.
11º) Sendo por isso excessiva a penhora e como tal ilegal, tendo uma extensão exagerada, uma vez que o imóvel não precisava de ser penhorado para que a divida estivesse segura, sendo que a extensão com que a penhora foi efectuada é inadmissivel sendo que para além disso tal imóvel apenas subsidiariamente responde pela divida exequenda o que constituem fundamentos da oposição nos termos do disposto nos artigos 784º e 785º alineas a) e b) ambos do Código de Processo Civil,
12º) O Recorrente alega e alegou que o montante dos bens das penhoras extravasava a quantia exequenda, o que é legalmente inadmissível, face ao disposto no art.º 735.º, n.º 3, do CPC.
13º) Trata-se de situação que, em abstrato, é passível de conduzir ao deferimento, pelo menos parcial, da oposição à penhora, com fundamento na alínea a) do n.º 1 do art.º 784.º do CPC.
14º) Seria pois útil que os autos prosseguissem nos termos pretendidos pelo Recorrente quando, face ao que alegou a respeito da extensão das penhoras, existiam factos jurídicos relevantes e carecidos de prova, nomeadamente a prova testemunhal e pericial para avaliação do imóvel que certamente provariam que o valor dos bens penhorados extravasa o montante do crédito exequendo, uma vez que a oposição deduzida se encontrava acompanhada de substrato fáctico relevante devendo pois ser julgado procedente o recurso e revogado o despacho de indeferimento liminar da oposição á penhora por outro que determine o prosseguimento dos autos e a sua produção de prova, decindindo-se do merito da mesma a final.
15º) A Douta sentença violou o disposto no artigo 195º, 615º, 643º, 751º, 784º e 785 todos do Código de Processo Civil.”
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O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo da decisão.
Foi ordenado o cumprimento do disposto no art. 641.º, n.º 7 do CPC e nas contra-alegações, a exequente pugnou pela confirmação da decisão recorrida.
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Recebido o processo nesta Relação, proferiu-se despacho a considerar o recurso como próprio, tempestivamente interposto e admitido com o efeito e o modo de subida adequados.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. Questões a decidir.
Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões que se colocam a este Tribunal são as seguintes:
- nulidade da decisão por não especificar os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
- violação do princípio do contraditório, por se tratar de uma decisão surpresa.
-violação do princípio da proporcionalidade, consagrado no artigo 735.º, n.º 3 e ainda no artigo 751.º, ambos do CPC.
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III. Fundamentação de facto.
Os factos materiais relevantes para a decisão da causa são os que decorrem do relatório supra.
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IV. Fundamentação de direito.
Da nulidade da decisão
Não obstante o recorrente aludir ao art. 643.º do CPC temos por certo que pretendia referir-se ao art. 615.º, n.º 1, al. b) do CPC que dispõe que é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
É unânime considerar-se que “as nulidades da sentença são vícios intrínsecos da formação desta peça processual, taxativamente consagrados no nº 1, do art. 615.º, do CPC, sendo vícios formais do silogismo judiciário relativos à harmonia formal entre premissas e conclusão, não podendo ser confundidas com hipotéticos erros de julgamento, de facto ou de direito, nem com vícios da vontade que possam estar na base de acordos a por termo ao processo por transação” (
vide
Ac. da RG de 04.10.2018; rel. Eugénia Cunha; Proc. 1716/17.8T8VNF.G1,
in
www.dgsi.pt).
De facto, as nulidades da sentença que se encontram taxativamente previstas no art. 615.º do CPC respeitam a vícios estruturais ou intrínsecos da decisão, também designados por erros de atividade ou de construção da própria sentença, que não se confundem com eventual erro de julgamento de facto e/ou de direito.
A nulidade da falta de fundamentação de facto e de direito está relacionada com o disposto no art. 607.º, n.º 3 do CPC, que impõe ao juiz o dever de discriminar os factos que considera provados e de indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final.
Contudo, conforme foi decidido no Ac. do STJ de 03-03-2021; rel. Leonor Cruz Rodrigues, Proc. 3157/17.8T8VFX.L1.S1: “Há que distinguir as nulidades da decisão do erro de julgamento seja de facto seja de direito. As nulidades da decisão reconduzem-se a vícios formais decorrentes de erro de atividade ou de procedimento (
error in procedendo
) respeitante à disciplina legal; trata-se de vícios de formação ou atividade (referentes à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão) que afetam a regularidade do silogismo judiciário, da peça processual que é a decisão e que se mostram obstativos de qualquer pronunciamento de mérito, enquanto o erro de julgamento (
error in judicando
) que resulta de uma distorção da realidade factual (
error facti
) ou na aplicação do direito (
error juris
), de forma a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa, traduzindo-se numa apreciação da questão em desconformidade com a lei, consiste num desvio à realidade factual - nada tendo a ver com o apuramento ou fixação da mesma - ou jurídica, por ignorância ou falsa representação da mesma” (www.dgsi.pt).
Acresce que, “Só a absoluta falta de fundamentação – e não a errada, incompleta ou insuficiente fundamentação – integra a previsão da nulidade do artigo 615.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil.”.
Também no Ac. do STJ de 22-01-2019; rel. Oliveira Abreu, Proc. 19/14.4T8VVD.G1.S1 (www.dgsi.pt) se concluí em termos idênticos: “1. A nulidade em razão da falta de fundamentação de facto e de direito está relacionada com o comando que impõe ao juiz o dever de discriminar os factos que considera provados e de indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes. A fundamentação deficiente, medíocre ou errada, afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.”
De onde, só ocorre falta de fundamentação de facto e de direito da decisão quando exista uma falta absoluta de fundamentação, ou quando a sua insuficiência seja de tal maneira grave que não permita ao respetivo destinatário a percepção das razões de facto e de direito da decisão judicial.
Ora, não é manifestamente esse o caso, pois o tribunal
a quo
fundamentou devidamente a decisão que proferiu, como o revela o seu teor supra transcrito.
Improcede, pois, o recurso nesta parte.
Da violação do princípio do contraditório
No entender do recorrente a decisão de indeferimento liminar proferida nos termos dos arts. 732.º, n.º 1, als. b) e c), e 785.º, n.º 2, do CPC, constitui uma decisão surpresa.
O incidente de oposição à penhora encontra-se regulado nos arts. 784.º e 785.º do CPC, configurando um dos meios de reacção do executado ou seu cônjuge (cfr. art. 787.º, n.º 1, do citado Código) contra penhora considerada ilegal.
Sob a epígrafe “Fundamentos da oposição”, o citado art. 784.º, no seu n.º 1, elenca as situações que podem constituir fundamento de oposição à penhora, a saber: a) inadmissibilidade da penhora dos bens concretamente apreendidos ou da extensão com que ela foi realizada; b) imediata penhora de bens que só subsidiariamente respondam pela dívida exequenda; c) incidência da penhora sobre bens que, não respondendo, nos termos do direito substantivo, pela dívida exequenda, não deviam ter sido atingidos pela diligência.
Regulando o processamento do incidente, dispõe o art. 785.º, n.º 2, do CPC que o incidente segue os termos dos arts. 293.º a 295.º, aplicando-se ainda, com as necessárias adaptações, o disposto nos n.ºs 1 e 3 do art. 732.º, preceito do qual decorre que há lugar a despacho liminar, devendo a oposição à penhora ser liminarmente indeferida quando:
a) tiver sido deduzida fora do prazo;
b) o fundamento não se ajustar ao disposto no artigo 784.º, n.º 1;
c) seja manifestamente improcedente.
O indeferimento liminar do incidente, designadamente por manifesta improcedência, encontra-se expressamente previsto no art. 732.º, n.º 1, al. c), aplicável por força do art. 785.º, n.º 2, do CPC, pelo que não pressupõe qualquer comunicação prévia às partes, concretamente ao requerente do incidente, anunciando a decisão a proferir (cfr. Ac. RE de 7/03/2024; rel. Ana Margarida Leite, Proc. 7547/19.3T8STB,
in
www.dgsi.pt).
Entendemos, assim, que não viola o princípio do contraditório a decisão que indefere liminarmente a oposição à penhora com fundamento na manifesta improcedência do incidente, sem prévia audição do executado, e, como tal, cumpre concluir que o despacho recorrido não constitui decisão-surpresa.
Termos em que, neste particular, improcede a pretensão recursória.
Da violação do princípio da proporcionalidade
A oposição à penhora é um meio processual privativo do executado em que apenas podem ser invocados os fundamentos expressamente previstos no n.º 1 do art. 784.º do CPC, sendo inadmissível que o executado venha invocar na oposição à penhora fundamentos próprios da oposição à execução (cfr. Ac. da RG de 09-04-2019; rel. Joaquim Boavida, Proc. n.º 2343/07.3TJVNF-B.G1,
in
www.dgsi.pt
).
Nos termos do disposto no art. 784.º do CPC, sendo penhorados bens pertencentes ao executado, são três as situações que podem fundar a sua oposição à penhora:
- inadmissibilidade da penhora dos bens do executado concretamente apreendidos ou da extensão com que ela foi realizada;
- imediata penhora de bens do executado que só subsidiariamente respondiam pela dívida exequenda, e
-incidência da penhora em bens do executado que, não respondendo, nos termos do direito substantivo, pela dívida exequenda, não deviam por ela ter sido atingidos.
Apenas podem, portanto, servir de oposição à penhora os fundamentos tipificados no art. 784.º do CPC, ou seja a violação de normas que fixam impenhorabilidades objectivas, absolutas, relativas ou parciais, e infracção do princípio da proporcionalidade da penhora; penhora de bens próprios do executado em execução movida contra marido e mulher relativamente a dívida comum ou penhora de bens do fiador; penhora inicial de outros bens que não aqueles sobre que incida garantia real; casos de limitação convencional ou legal de responsabilidade, bem como casos de bens não transmissíveis que se encontram fora do comércio.
Dispõe o art. 735.º do CPC, quanto ao objecto da execução, que estão sujeitos à execução todos os bens do devedor susceptíveis de penhora, que, nos termos da lei substantiva, respondem pela dívida exequenda.
Apesar disso, o legislador procurou proteger o executado contra a verificação de eventuais abusos na execução do seu património, impedindo, designadamente, a penhora de bens e/ou direitos de valor manifestamente superior ao necessário para pagar a dívida exequenda e demais custas e despesas da execução, consagrando no n.º 3 do mencionado art. 735.º o princípio da proporcionalidade quanto à penhora do património do executado nos seguintes termos: “A penhora limita-se aos bens necessários ao pagamento da dívida exequenda e das despesas previsíveis da execução, as quais se presumem, para o efeito de realização da penhora e sem prejuízo de ulterior liquidação, no valor de 20%, 10% e 5% do valor da execução, consoante, respetivamente, este caiba na alçada do tribunal da comarca, a exceda, sem exceder o valor de quatro vezes a alçada do tribunal da Relação, ou seja superior a este último valor».
Assim, não sendo a posição jurídica do credor absoluta, a agressão do património do executado só é lícita se proporcional.
Ora, a penhora ilegal, por ofender o princípio da proporcionalidade, foi justamente um dos fundamentos invocado pelo executado para se opor à penhora.
De acordo com o art. 751.º, n.º 4 do CPC, caso o imóvel seja a habitação própria permanente do executado, só pode ser penhorado:
a) em execução de valor igual ou inferior ao dobro do valor da alçada do tribunal de 1.ª instância, se a penhora de outros bens presumivelmente não permitir a satisfação integral do credor no prazo de 30 meses, e
b) em execução de valor superior ao dobro do valor da alçada do tribunal de 1.ª instância, se a penhora de outros bens presumivelmente não permitir a satisfação integral do credor no prazo de 12 meses.
Sobre esta matéria, o Tribunal Constitucional por Acórdão n.º 612/2019, no Processo n.º 431/18, decidiu não julgar inconstitucional a norma do artigo 751.º, n.º 3, alínea b), do CPC, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, na sua redação originária, segundo a qual, ainda que não se adeque, por excesso, ao montante do crédito exequendo, é admissível a penhora do imóvel que seja habitação própria permanente do executado e sua família, mesmo que esse imóvel não tenha sido dado em garantia para o pagamento da dívida exequenda, quando esteja em causa uma dívida superior a metade do valor da alçada do tribunal de primeira instância e a penhora de outros bens presumivelmente não permita a satisfação integral do credor no prazo de dezoito meses (DR- 2.ª Série, de 16/01/2020).
E mais recentemente, o mesmo Tribunal Constitucional no acórdão n.º 221/2025 (Proc. n.º 837/24) decidiu igualmente, mas em relação ao artigo 751.º, n.º 4, alínea a), do Código de Processo Civil, na redação introduzida pela Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro, não julgar inconstitucional a norma nele contida interpretada no sentido de ser admitida a penhora de imóvel que seja habitação própria e permanente do executado em acções de valor igual ou inferior ao dobro do valor da alçada do tribunal de 1.ª instância, quando a penhora de outros bens não satisfaça integralmente o crédito no prazo de 30 meses.
Para a análise da questão colocada pelo executado, importa dizer que é a este que compete fazer a prova da verificação dos fundamentos da oposição à penhora, por se tratar de facto constitutivo do seu direito ao levantamento da penhora (cfr. Ac. RL de 28/03/2023; rel. Cristina Coelho, Proc. 17330/15.0T8LRS-C.L1-7,
in
www.dgsi.pt).
Da factualidade relevante que se colhe da decisão impugnada consta que:
a) A exequente deduziu execução contra o ora executado, em 20.01.2022, tendo por base livrança como título executivo, peticionando o pagamento de € 53.106,42.
b) O ora executado opoente foi citado para a execução em 02.06.2022, conforme certidão junta na execução em 06.07.2022.
c) Foram realizadas pesquisas de bens penhoráveis.
d) Nessa sequência, foi realizada a penhora do saldo bancário do executado, no valor de € 313,03, conforme auto de penhora de 30.12.2022.
e) Foi realizada a penhora do saldo bancário do executado, no valor de € 946,13, conforme auto de penhora de 30.06.2023.
f) Foi agora realizada a penhora da fração autónoma, designada pela letra “O”, do prédio descrito na CRPredial da Póvoa de Varzim sob o n.º ...-O, conforme auto de penhora de 01.04.2024,
Assim, tendo a execução valor superior ao dobro do valor da alçada do tribunal de 1.ª instância, importa agora verificar se a penhora de outros bens pode ou não presumivelmente permitir a satisfação integral do credor no prazo de 12 meses.
Parece-nos que a resposta só pode ser negativa, como muito bem entendeu o tribunal recorrido.
De facto, na execução movida em 20/01/2022 apenas se logrou fazer a primeira penhora do saldo bancário quase 12 meses depois (auto de penhora de 30/12/2022), no escasso valor de € 313,03. E a segunda penhora, no valor de € 946,13, apenas é referida no auto de penhora de 30/06/2023.
Assim, em ano e meio de pendência do processo executivo para cobrança de € 53.106,42 e acréscimos, o exequente apenas logrou penhorar ao executado o valor de € 1259,16.
A penhora de outros bens não permitiu, pois, a satisfação integral do credor no prazo de 12 meses, nem é previsível que tal venha a suceder.
De notar que a al. a) do n.º 5 do citado art. 751.º do CPC estabelece que a penhora pode ser reforçada ou substituída pelo agente de execução quando o executado requeira ao agente de execução, no prazo da oposição à penhora, a substituição dos bens penhorados por outros que igualmente assegurem os fins da execução, desde que a isso não se oponha o exequente.
Sucede que, como bem observa o tribunal
a quo
, o executado não só não ofereceu a substituição dos bens penhorados por outros, como não alegou sequer a sua existência.
A este respeito, também a RC em acórdão de 12/04/2023 (rel. Maria Catarina Gonçalves, no Proc. 49/13.3TBCLB-B.C1) decidiu que “I- Não sendo previsível que a penhora do vencimento do executado permita a satisfação integral do exequente dentro dos prazos referidos nos n.ºs 3 e 4 do art.º 751.º do CPC e não havendo notícia de outros bens, nada obsta à penhora de um bem imóvel (…) ainda que o valor deste não se adeque por excesso ao valor do crédito exequendo”.
Termos em que também nesta parte o recurso tem de improceder.
As custas do recurso são pelo recorrente por ter ficado vencido (art. 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
*
Sumário (ao abrigo do disposto no art. 663º, n.º 7 do CPC):
………………………………
………………………………
………………………………
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V. Decisão
Perante o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso e em confirmar o despacho recorrido.
Custas pelo recorrente.
Notifique.
Porto, 28/4/2025
Carla Fraga Torres
Manuel Domingos Fernandes
Teresa Fonseca
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TRP
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https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/c67d8cda1fed83a580258c88002fe49f?OpenDocument
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1,754,524,800,000
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CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO
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523/24.6GAPNI-A.C1
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523/24.6GAPNI-A.C1
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ALEXANDRA GUINÉ
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I - A pesquisa e posterior apreensão das mensagens de correio eletrónico ou registos de natureza semelhante que se encontrem no telemóvel apreendido pode constituir uma ingerência grave na vida privada, afetando restritivamente os direitos fundamentais à inviolabilidade da correspondência e sigilo das comunicações (artigo 34.º, n.ºs 1 e 4, da CRP), e à proteção dos dados pessoais, no domínio da utilização da informática (artigo 35.º, n.ºs 1 e 4 da Lei Fundamental), enquanto manifestações particular e intensamente tuteladas da reserva de intimidade da vida privada (n.º 1 do artigo 26.º da CRP).
II - Não sofre, no entanto, dúvida de que os interesses públicos de combate à criminalidade e da realização da justiça prosseguidos pela investigação criminal constituem razões legítimas para uma afetação restritiva dos direitos fundamentais, que deve limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (nos termos do artigo 18.º, n.º 2, da CRP).
III - Sem prejuízo, considerar que só a luta contra a criminalidade grave é suscetível de justificar o acesso a dados contidos num telemóvel limitaria indevidamente os poderes de investigação criminal, aumentando o risco de impunidade relativamente às infrações penais em geral.
IV - Considerar que só a luta contra a criminalidade grave é suscetível de justificar o acesso a dados contidos num telemóvel limitaria indevidamente os poderes de investigação criminal, aumentando o risco de impunidade relativamente às infrações penais em geral.
(Sumário elaborado pela Relatora)
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[
"CIBERCRIME",
"PESQUISA E APREENSÃO DE MENSAGENS DE CORREIO ELETRÓNICO OU REGISTOS DE NATUREZA SEMELHANTE EM TELEMÓVEL",
"INTERESSES PÚBLICOS DE COMBATE À CRIMINALIDADE E DA REALIZAÇÃO DA JUSTIÇA PROSSEGUIDOS PELA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL",
"PODERES DA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL NO DOMÍNIO DA UTILIZAÇÃO DA INFORMÁTICA LIMITADA À CRIMINALIDADE GRAVE"
] |
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Acordam, em conferência, na 5ª secção, do Tribunal da Relação de Coimbra
I. Relatório
1.
Por despacho judicial datado de 19.12.2024, o Mm.o Juiz de Instrução não autorizou a pesquisa e posterior apreensão das mensagens de correio eletrónico ou registos de natureza semelhante que se encontrem no telemóvel apreendido nos autos, em quaisquer dispositivos de memória a estes ligados (cartões SIM, cartões de memória) e em quaisquer contas (de email, de redes sociais) armazenadas em servidores remotos requerida pelo Ministério Público
.
2. Inconformado, recorreu o Ministério extraindo da motivação de recurso as seguintes conclusões:
«
1. Vem o presente recurso interposto do despacho do Mmo. Juiz de Instrução Criminal não autorizou a pesquisa e posterior apreensão das mensagens de correio eletrónico ou registos de natureza semelhante que se encontrem no telemóvel apreendido nos autos, em quaisquer dispositivos de memória a estes ligados (cartões SIM, cartões de memória) e em quaisquer contas (de email, de redes sociais) armazenadas em servidores remotos, num caso em que se investiga a prática pelos arguidos de um crime de Tráfico e outras atividades ilícitas, p. e p. no art. 21.º, n.º 1, DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro, e Tabela anexa I-C.
2. …
3. Perante uma apreensão de substâncias e objetos tipicamente conotados com a atividade de tráfico de estupefacientes, mormente, dentro de uma caixa, 35,10 gramas de canábis resina (haxixe), 4,10 gramas de canábis Liamba, bem como dentro dessa mesma caixa junto com o produto estupefaciente, a quantia global de € 50 (cinquenta euros), composta por duas notas de € 20 (vinte euros) e duas notas de € 5 (cinco euros), e uma balança de precisão digital, tal não permite que se afirme, ab initio sem mais e como transparece do entendimento do Mmo. Juiz de Instrução Criminal, que nos encontramos perante um simples caso de consumo de estupefacientes.
4. A promoção indeferida mostra-se fundamentada quanto ao tipo de crime em investigação, bem como quanto à necessidade e idoneidade da diligência promovida.
5. As asserções do Mmo. Juiz de Instrução Criminal ao indeferir a pesquisa informática e apreensão de dados informáticos, mormente mensagens, dando a entender tratar-se de um meio inidóneo e não necessário, mostram-se desfasadas da realidade e da experiência que decorre de situações de idêntica natureza.
6. Resulta inolvidável que neste tipo de criminalidade os seus autores recorrem amiúde ao uso de telemóvel e respetivas aplicações de comunicações a fim de combinarem encontros para transação de produto estupefaciente, seja com fornecedores ou pessoas a quem o produto estupefaciente se destina.
7. O crime sob investigação é normalmente praticado com recurso às telecomunicações, sendo que cada vez mais se vê o recurso a formas alternativas de comunicações (nomeadamente o uso de redes sociais como o telegram ou o Whatsapp, Signal, que usam tecnologia de encriptação) como alternativa às chamadas telefónicas e mensagens de SMS, para frustrar o recurso as escutas telefónicas. Diga-se até que, por precisamente não pretenderem comunicar às claras, que faze uso destas ferramentas tecnológicas.
8. Uma pesquisa informática pode revelar não só os contactos dos consumidores que contactam com os arguidos fornecedores, como os locais onde se encontram, como também ainda qual a quantidade de produto estupefaciente que visam vender e adquirir, respetivamente, e por qual preço.
9. Revelando as mensagens qual o dia, hora e até local em que os arguidos fornecedores se encontraram com consumidores, bem como qual a quantidade encomendada e preço, o resto infere-se do silogismo judiciário e traz à colação a prova indireta, isto é, se conversaram sobre compra de produto estupefaciente (ainda que através de linguagem codificada) e se se encontraram e combinaram um encontro, então é porque a transação terá ocorrido.
10. Revelando a pesquisa os contactos dos consumidores, é o ponto de partida para apurar a sua identidade e subsequente inquirição como testemunhas acerca da atividade prosseguida pelos arguidos fornecedores.
11. Olhando ao art. 21.º, n.º 1, DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro, e Tabela anexa I-C, desde logo o arguido não detinha qualquer autorização para receber, nem para transportar (como fez) tamanha quantidade de produto estupefaciente.
12. Não autorizando as pesquisas e apreensão de dados informáticos, o Mmo. Juiz de Instrução Criminal obsta a que se obtenham mais provas que fortaleçam os indícios de que a quantidade de estupefaciente apreendida se destinava à venda a terceiros.
13. Perante a quantidade de produto estupefaciente apreendida ao arguido, se é certo que ainda não se sabe qual o número de doses para que daria, certamente que será muito superior ao consumo médio individual durante o período de 10 dias, ao que acresce, e não menos importante, o facto de junto do produto estupefaciente ter sido encontrada quantia monetária já atendível e composta por várias notas de baixo valor que correspondem ao preço médio pelo qual são vendidas as doses deste tipo de produto estupefaciente, e tendo o arguido já beneficiado da suspensão provisória do processo por idêntico crime, questiona-se que mais indícios serão exigíveis para que não se considere um simples caso de consumo de estupefacientes.
14. Ainda que o arguido refira que o produto estupefaciente era para seu consumo, não se pode fazer uma aceitação acrítica de tais declarações e desapegada dos demais elementos contantes dos autos, mormente a apreensão de uma balança de precisão digital, a quantia monetária distribuída por notas de baixo valor e o facto de guardar essas notas, precisamente, na mesma caixa onde detinha produto estupefaciente, o que indicia também que tal dinheiro adveio da venda de tal substância.
15. Ao afirmar sem mais que se trata de um caso de consumo, sem autorizar diligências de investigação, está o Mmo. Juiz de Instrução Criminal a efetuar um raciocínio de prognose de conclusões a que se poderá chegar a final, mas que não poderá ser feito ab initio, bem como a coartar a atividade do Ministério Público a quem compete dirigir o inquérito, o qual, nos termos do art. 262.º, n.º 1, do CPP, “compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação.”
16. Ao fazer a antecipação de conclusões a que se podem chegar ao final da investigação, o Mmo. Juiz de Instrução Criminal dá a entender que somente interessa investigar os casos “grandes”, descurando todos os demais, bem como até olvidando a existência do crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. no art. 25.º do DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro, e em relação ao qual também são necessárias as diligências promovidas.
17. Destarte, afigura-se-nos que a diligência promovida se afigura adequada, idónea, necessária e proporcional aos fins visados, não se mostrando excessivamente lesiva da vida privada do arguido.
18. Durante uma pesquisa informática, os dados sensíveis e direitos dos fundamentais dos arguidos estão sempre salvaguardados, porquanto têm sempre de passar pelo controlo do Mmo. Juiz de Instrução Criminal, enquanto juiz dos direitos, liberdades e garantias, sendo este o primeiro a tomar contacto com os mesmos e a deles tomar conhecimento, nos termos do art. 16.º 3, e 17.º da Lei do Cibercrime.
…
».
3. Notificado, o arguido recorrido em resposta concluiu nos seguintes termos:
«…
O direito à prova não é um direito absoluto e pode ser restringido ou limitado quando esteja em causa a salvaguarda dos direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagradas, como é o caso.
Razão pela qual, na escolha dos meios de prova tem de ser respeitado o princípio da proporcionalidade, no seu sentido amplo, que se desdobra nos subprincípios de: (i) adequação, (ii) necessidade e (iii) proporcionalidade.
Assim, antes da autorização de um meio de prova, será necessário fazer uma análise e verificar entre os meios de obtenção de prova disponíveis, qual atingiria a finalidade almejada (princípio da adequação), com menor ingerência possível (princípio da necessidade), e aquele cuja vantagens da sua utilização superariam as desvantagens advindas (princípio da proporcionalidade).
No caso sub judice, o meio de obtenção de prova que o Dignissimo Ministério Público pretende utilizar não respeita o princípio da proporcionalidade em sentido amplo, na medida em que, ainda que se admitisse que a aprensão de comunicações do telemóvel do Arguido fosse um meio idóneo para a descoberta da verdade material – o que apenas se faz à cautela e por mero dever de patrocínio -, o certo é que este não é o único meio, nem é o meio menos oneroso para o Arguido.
No caso sub judice não existe nenhum indício, nenhuma suspeita, de que o Arguido utilizava o telemóvel para a alegada prática do crime em investigação.
O Dignissimo Ministério Público fundamenta o seu pedido - de autorização para apreender as comunicações do telemóvel do Arguido -, com base, única e exclusivamente, em premissas e presunções, de que nos crimes em investigação “mais das vezes implica a troca de mensagens, para cedência e transação de produto estupefaciente…”.
…
Assim admitir-se, sem mais – ou seja, sem fundamento, e sem esgotar todos os outros meios idóneos mas menos intrusivos da privacidade do Arguido - , a apreensão das comunicações do Arguido, constituiria uma violação abusiva dos seus direitos constitucionais.
…
4. Nesta Relação, o Digno Procurador Geral Adjunto emitiu parecer …
5. Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, nº 2, do CPP, não tendo sido exercido o contraditório
.
6. Colhidos os vistos legais e efetuado o exame preliminar, foram os autos à conferência.
II. FUNDAMENTAÇÃO
1.
…
De acordo com as conclusões da motivação do recurso interposto nestes autos, é a seguinte a
QUESTÃO
a que cabe dar resposta:
- Dever ser
autorizada a pesquisa e posterior apreensão das mensagens de correio eletrónico ou registos de natureza semelhante que se encontrem no telemóvel apreendido nos autos, em quaisquer dispositivos de memória a estes ligados (cartões SIM, cartões de memória) e em quaisquer contas (de email, de redes sociais) armazenadas em servidores remotos requerida pelo Ministério Público?
*
2. Promoção e subsequente despacho recorrido
(transcritos na parte ora relevante)
*
- promoção do Ministério Público -
«
Da pesquisa informática
Remeta os autos ao Mmo. Juiz de Instrução Criminal, junto do qual se promove:
Nos presentes autos encontra-se em investigação a prática pelo arguido de um crime de Tráfico e outras atividades ilícitas, p. e p. no art. 21.º, n.º 1, DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro, e Tabela anexa I-C, eventualmente enquanto tráfico de menor gravidade, p. e p. no art. 25.º, al. a), do mesmo diploma legal.
Ora, cotejando o auto de apreensão, verifica-se que para além do produto estupefaciente, foram apreendidos outros objetos conotados com a prática de tráfico de estupefacientes, nomeadamente um moinho, uma balança de precisão, quantias monetárias em notas de baixo valor e correspondentes ao preço médio da dose de produto estupefaciente apreendido nos autos, bem como um telemóvel.
É consabido e resulta da experiência adquirida em inquéritos de semelhante natureza que neste tipo de criminalidade os seus autores recorrem amiúde ao uso de telemóvel e respetivas aplicações de comunicações a fim de combinarem encontros para transação de produto estupefaciente, seja com fornecedores ou pessoas a quem o produto estupefaciente apreendido se destinava e que possam ser identificados.
Note-se que o crime sob investigação é normalmente praticado com recurso às telecomunicações, sendo que cada vez mais se vê o recurso a formas alternativas de comunicações (nomeadamente o uso de redes sociais como o telegram ou o Whatsapp, Signal, que usam tecnologia de encriptação) como alternativa às chamadas telefónicas e mensagens de SMS, para frustrar o recurso as escutas telefónicas.
Dispõe o artigo 15º da Lei do Cibercrime que, quando no decurso do processo se tornar necessário à produção de prova, tendo em vista a descoberta da verdade, obter dados informáticos específicos e determinados, armazenados num determinado sistema informático, a autoridade judiciária competente autoriza ou ordena por despacho que se proceda a uma pesquisa nesse sistema informático, devendo, sempre que possível, presidir à diligência.
Por sua vez, dispõe o artigo 16º, nº 1, da Lei do Cibercrime, que quando, no decurso de uma pesquisa informática ou de outro acesso legítimo a um sistema informático, forem encontrados dados ou documentos informáticos necessários à produção de prova, tendo em vista a descoberta da verdade, a autoridade judiciária competente autoriza ou ordena por despacho a apreensão dos mesmos.
Estipula ainda o nº 3 do mesmo preceito que, caso sejam apreendidos dados ou documentos informáticos cujo conteúdo seja suscetível de revelar dados pessoais ou íntimos que possam por em causa a privacidade do respetivo titular ou de terceiros, sob pena de nulidade esses dados ou documentos são apresentados ao juiz, que ponderará a sua junção aos autos tendo em conta os interesses do caso concreto.
Acresce o disposto no artigo 17º, nº 1, da Lei do Cibercrime, que, estando em causa mensagens de correio eletrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante encontrados, no decurso de uma pesquisa informática ou outro acesso legítimo a um sistema informático, armazenados nesse sistema informático ou noutro a que seja permitido o acesso legítimo a partir do primeiro, o juiz pode autorizar ou ordenar, por despacho, a apreensão daqueles que se afigurem ser de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, aplicando-se correspondentemente o regime da apreensão de correspondência previsto no Código de Processo Penal.
Aqui chegados, reconhecemos que a prática jurisprudencial ainda não firmou cabal orientação acerca de qual a autoridade judiciária que detém competência para autorizar a pesquisa de dados informáticos em equipamentos como telemóveis, contudo, uma vez que nestes, inevitavelmente acabará por, durante a pesquisa, haver contacto com mensagens e troca de correspondência de semelhante teor, e atenta a nota que saiu da Rede Cibercrime - Reunião de Pontos de Contacto de 7 de dezembro de 2023, “ANEXO D - APREENSÃO DE CORREIO ELETRÓNICO”, bem como entendimentos jurisprudenciais mais recentes, de que se refere o Acórdão do Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça n.º 10/2023, disponível em
https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao-supremo-tribunal-justica/10-2023-224081976
e os Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 13/07/2023, Processo n.º 54/22.9TELSB-F.L1-5, do Tribunal da Relação de Évora de 29/04/2024, processo 37/21.1PESTR-E.E1, de 07/05/20244, processo 338/23.9JAFAR-B.E1 e, também de 07/05/2024, processo 60/23.6SULSB-C.E1, e do Tribunal da Relação do Porto de 08/05/2024, processo 1300/22.4KRPRT-A.P1, todos disponíveis em www.dgsi.pt, promovo nos termos do previsto no artigo 11.º, n.º 1, al. c), 15.º, n.º 1, 16.º, n.º 1 e 17.º n.º 1, da Lei nº 109/2009, de 15 de setembro, e nos artigos 179.º e 269.º, n.º 1, alínea d) do CPP:
- se autorize a pesquisa e posterior apreensão das mensagens de correio eletrónico ou registos de natureza semelhante que se encontrem no telemóvel apreendido, em quaisquer dispositivos de memória a este ligado (cartões SIM, cartões de memória) e em quaisquer contas (de email, de redes sociais) armazenadas em servidores remotos, cujos dados de acesso estejam registados nesse aparelho, sem prejuízo de ser observado o disposto no artigo 179.º do CPP com extração dos dados sem visualização prévia para apresentação em juízo, a fim de se aferir da sua junção aos autos em concreto)»
.
*
Despacho recorrido (transcrito na parte ora relevante)
*
«
O MP promove, no que importa, a apreensão das comunicações do telemóvel do arguido, nos termos do art. 17 da LC.
Em nenhum momento se alega o “ grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova”.
Impunha-se, ou talvez não porque o caso não dá razões concretas para tanto.
Importa adiantar que no tráfico de estupefacientes, as mensagens podem individualizar contactos, mas não se provam entregas nalguma data, aquisições noutra, sendo algo do mundo físico. Importaria um esforço suplementar que não sabemos o resultado.
Aliás, como bem sabem os opc durante anos provaram-se centenas de processos de tráfico de estupefaciente sem qualquer ingerência direta nos conteúdos dos telemóveis, não se percebendo a acrítica recepção pelo MP nestes autos.
…
*
…
Numa cultura de respeito por direitos fundamentais, antes da ingerência, importaria que a acção penal se esforçasse por saber algo mais que comprovasse a sua conjectura (tráfico de estupefacientes), nomeadamente no local assinalado pelo próprio arguido “AA”.
O que se indicia seriamente é tão somente um caso de consumo, e que tem um determinado regime legal, e que não passa por crime.
Assim sendo como é, indefere-se a apreensão de comunicações do telemóvel a que se alude no art. 17 do LC.
Uma vez que mostra-se requerida a devolução do telemóvel, e que não mereceu qualquer resposta, nem tramitação legal, notifique-se o arguido (morada do tir, nos autos nem sequer paginados) outrossim deste despacho»
.
3. Conhecimento do recurso
Como dissemos é a seguinte questão a que cabe dar resposta:
- Deve ser
autorizada a pesquisa e posterior apreensão das mensagens de correio eletrónico ou registos de natureza semelhante que se encontrem no telemóvel apreendido nos autos, em quaisquer dispositivos de memória a estes ligados (cartões SIM, cartões de memória) e em quaisquer contas (de email, de redes sociais) armazenadas em servidores remotos requerida pelo Ministério Público?
Vejamos.
Diz-nos o artigo 17.º da Lei do Cibercrime o seguinte:
«Quando, no decurso de uma pesquisa informática ou outro acesso legítimo a um sistema informático, forem encontrados, armazenados nesse sistema informático ou noutro a que seja permitido o acesso legítimo a partir do primeiro, mensagens de correio eletrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante, o juiz pode autorizar
ou ordenar, por despacho, a apreensão daqueles que se afigurarem ser de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, aplicando-se correspondentemente o regime da apreensão de correspondência previsto no Código de Processo Penal.».
Está bom de ver que a pretendida diligência pode constituir uma ingerência grave na vida privada, afetando restritivamente os direitos fundamentais à inviolabilidade da correspondência e sigilo das comunicações (artigo 34.º, n.ºs 1 e 4, da CRP), e à proteção dos dados pessoais, no domínio da utilização da informática (artigo 35.º, n.ºs 1 e 4 da Lei Fundamental), enquanto manifestações particular e intensamente tuteladas da reserva de intimidade da vida privada (n.º 1 do artigo 26.º da CRP).
Com efeito, os dados pretendidos podem incluir mensagens, fotografias e o histórico da navegação na Internet, os quais se for o caso, eventualmente permitirão tirar conclusões muito precisas sobre a vida privada desse titular. Além disso, podem incluir dados particularmente sensíveis.
Não sofre, no entanto, dúvida de que os interesses públicos de combate à criminalidade e da realização da justiça prosseguidos pela investigação criminal constituem razões legítimas para uma afetação restritiva dos direitos fundamentais.
Certo é, que tal restrição deve
limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (n
os termos do artigo 18.º, n.º 2, da CRP).
Ou seja, deve observar o princípio da proporcionalidade, sem sentido amplo, por constituir uma medida idónea para realizar o fim invocado (princípio da adequação), não podendo ser substituída por outra medida idónea menos onerosa (princípio da necessidade), havendo proporcionalidade entre os meios utilizados e os fins que se protendem atingir (princípio da proporcionalidade em sentido estrito ou de proibição do excesso).
Sem prejuízo, considerar que só a luta contra a criminalidade grave é suscetível de justificar o acesso a dados contidos num telemóvel limitaria indevidamente os poderes de investigação criminal, aumentando o risco de impunidade relativamente às infrações penais em geral.
Dito isto.
No caso, o Mm.º JIC por entender que,
em nenhum momento se alega o “ grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova», que, «no tráfico de estupefacientes, as mensagens podem individualizar contactos, mas não se provam entregas nalguma data, aquisições noutra, sendo algo do mundo físico», que «numa cultura de respeito por direitos fundamentais, antes da ingerência, importaria que a acção penal se esforçasse por saber algo mais que comprovasse a sua conjectura (tráfico de estupefacientes), nomeadamente no local assinalado pelo próprio arguido “AA”», e que «o que se indicia seriamente é tão somente um caso de consumo, e que tem um determinado regime legal, e que não passa por crime», indeferiu a apreensão de comunicações do telemóvel a que se alude no art. 17 do LC.
Vejamos.
Compulsados os autos – designadamente auto de notícia, auto de apreensão e teste rápido/pesagem - verificamos que se mostra indiciado que o arguido transportava consigo uma caixa contendo no seu interior 35,10 gramas de canábis resina (haxixe), 4,10 gramas de canábis Liamba, bem como a quantia global de € 50 (cinquenta euros), composta por duas notas de € 20 (vinte euros) e duas notas de € 5 (cinco euros), e uma balança de precisão digital.
Não apenas o arguido não detinha qualquer autorização para receber, nem para transportar (como fez) tamanha quantidade de produto estupefaciente, como a quantidade de produto estupefaciente indiciariamente detido excede o consumo médio individual durante o período de 10 dias (art.º 9.º da Portaria n.º 94/96, de 26 de março e mapa anexo).
Assim, pese embora as declarações do arguido (no sentido de que destinava o produto estupefaciente a consumo), existem, ao momento, indícios que a quantidade de estupefaciente apreendida se destinava à venda a terceiros, preenchendo um crime de tráfico de menor gravidade, nos termos do art.º 25.º do DL n.º 15/93, de 22 de janeiro.
Ora, são elevadas as exigências de mobilização do sistema de prevenção e repressão criminal quanto ao crime de tráfico de estupefacientes.
E, como salienta o recorrente, não sofre qualquer dúvida a utilização frequente de telemóvel e respetivas aplicações, neste tipo de criminalidade, para serem combinados encontros para transação de produto estupefaciente, seja com fornecedores, seja com consumidores.
Uma pesquisa informática poderá revelar não só os eventuais contactos do arguido, com os fornecedores e consumidores, como os o dia, hora, locais onde se encontram, como também ainda qual a quantidade de produto estupefaciente que visam vender e adquirir, respetivamente, e por qual preço.
Das possíveis conversas sobre a compra do produto (ainda que em linguagem codificada) poderá inferir-se que terá ocorrido a transação.
A pesquisa pretendida poderá ser o ponto de partida para apurar a identidade de eventuais consumidores e subsequente inquirição como testemunhas acerca da atividade prosseguida.
Não há, pois, dúvida que o meio de obtenção de prova requerido poderá ser útil e necessário para a investigação, não se logrando alcançar como poderá, de outro modo, a investigação avançar, em tempo útil e com a possibilidade de evitar a prática de ilícitos de natureza similar pelo suspeito do crime.
Acresce que o meio utilizado é proporcional sopesando os valores constitucionais conflituantes, que são por um lado o interesse público na descoberta do crime, a eficiência penal, a segurança, a pacificação social e a justiça, e, por outro, os direitos de fundamentais do arguido em respeito pelo disposto no artigo 18.º n.º 2 da CRP.
Aliás, o Tribunal, sempre, poderá determinar a destruição dos dados, sendo certo que na maioria das vezes, muito simples discernir entre os comportamentos relevantes para a investigação e aqueles que são inócuos, e logo sem relação com os factos sob investigação.
Tudo visto, procede o recurso.
*
III. DISPOSITIVO
*
Em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que defira a pretensão do Ministério Público.
Sem tributação.
*
(Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeira signatária, sendo ainda revisto pela segunda e pela terceira signatárias – artigo 94º, nº2, do CPP -, com assinaturas eletrónicas apostas na 1.ª página, nos termos do artº 19º da Portaria nº 280/2013, de 26-08, revista pela Portaria nº 267/2018, de 20/09).
Coimbra, 08.07.2025
Alexandra Guiné (Juíza Desembargadora relatora)
Sandra Ferreira (Juiz Desembargador 1.º adjunto)
Maria da Conceição Miranda (Juíza Desembargadora 2.ª adjunta)
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TRC
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https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/0ded5e6001c15c3680258cde003d6edd?OpenDocument
|
1,750,809,600,000
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CONFIRMADA A DECISÃO RECORRIDA
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1242/25.1T8STR.E1
|
1242/25.1T8STR.E1
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MANUEL BARGADO
|
Sumário
:
I - A qualidade de herdeiro legitimário em vida do autor da sucessão não lhe atribui qualquer direito subjetivo à quota-parte que constituirá a sua quota legitimária, configurando uma mera expetativa jurídica titulada à sua porção legitimária.
II - O facto de os autores da sucessão terem doado à requerida, sua filha, por conta da quota disponível, imóveis de maior valor do que aquele que também doaram ao requerente, seu filho, por conta da mesma quota, não atribui ao requerente qualquer direito de crédito mediante arresto a seu favor em bens da requerida.
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[
"HERDEIRO",
"EXPECTATIVA JURÍDICA",
"DOAÇÃO",
"QUOTA DISPONÍVEL"
] |
Proc. nº 1242/25.1T8STR.E1
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora
I - RELATÓRIO
AA
e mulher,
BB
, instauraram procedimento cautelar de arresto contra
CC
, pedindo que seja decretado o arresto dos seguintes bens imóveis:
a) Fração autónoma designada pela letra “B”, que corresponde a uma garagem na cave do prédio urbano sito na Rua Dr. Fanhais, ..., freguesia de Nossa Sra. de Fátima, concelho do Entroncamento, inscrita na respetiva matriz predial urbana sob o Art.º Urbano nº ...11, à data com o valor patrimonial de € 3.828,38, e descrita na C. R. Predial do Entroncamento sob o nº ...51, com a licença de utilização nº 99, emitida para todo o prédio, em 15.09.2005;
b) Fração autónoma designada pela letra “F”, que corresponde o segundo andar esquerdo com arrecadação no sótão do prédio urbano sito no Gaveto da Rua Dr. Fanhais nº ... com a Rua Martim Moniz, freguesia de Nossa Sra. de Fátima, concelho do Entroncamento, inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o Art.º Urbano nº ...67, à data com o valor patrimonial de € 86.056,27, e descrito na C. R. Predial do Entroncamento sob o nº ...36, com a licença de utilização nº 21/2004, emitida para todo o prédio, pela respetiva Câmara Municipal, em 10.03.2004;
c) Fração autónoma designada pela letra “F”, que corresponde à garagem com o nº 6 do prédio urbano sito na Rua Feliciano Castilho, nºs. ..., freguesia de Nossa Sra. De Fátima, concelho do Entroncamento, inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o Art.º Urbano nº ...87, à data com o valor patrimonial de €2.320,38, e descrito na C. R. Predial do Entroncamento sob o nº ...94, com a licença de utilização nº 93, emitida para todo o prédio, pela respetiva Câmara Municipal, em 19.11.1996;
d) Fração autónoma designada pela letra “J”, que corresponde ao rés-do-chão esquerdo com arrecadação no sótão com o nº 6, situada no hall esquerdo e terraço ao nível da varanda, fração esta que faz parte do prédio urbano sito na Rua Feliciano Castilho, nºs. ..., freguesia de Nossa Sra. de Fátima, concelho do Entroncamento, inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o Art.º Urbano nº ...87, à data com o valor patrimonial de €48.460,00, e descrito na C. R. Predial do Entroncamento sob o nº ...94, com a licença de utilização nº 93, emitida para todo o prédio, pela respetiva Câmara Municipal, em 19.11.1996.
Alegam, resumidamente, que:
- O Requerente e a Requerida são irmãos e únicos filhos de DD e EE, os quais, em 21.12.2004, fizeram a doação por conta da quota disponível ao Requerente, do prédio urbano situado em Casal Pinheiro, freguesia da Freixianda, do concelho de Ourém, o qual, à data, tinha um valor patrimonial de € 5.381,63, tendo os mesmos, em 09.05.2013, doado à filha, aqui Requerida, por conta das suas quotas disponíveis e com dispensa da colação, quatro frações autónomas que identificam.
- Em 23.10.2013, cinco meses passados sobre esta última doação, a Requerida vendeu aquelas frações ao seu primo FF, pelo preço de € 140.664,65, correspondente à soma do valor patrimonial de todas as frações, sendo que em 06.01.2020, a Requerida comprou tais frações ao referido primo, pelo mesmo preço de € 140.664,65.
- Os pais do Requerente e da Requerida foram declarados insolventes, sendo que o respetivo processo se iniciou em 2013 e apenas veio a ser encerrado em 01.06.2023.
- Os pais do Requerente e da Requerida, têm ambos setenta e sete anos de idade e, em virtude do referido processo de insolvência, ficaram sem quaisquer bens, vivendo exclusivamente das respetivas pensões de reforma, de valor muito reduzido, desde a data em que a sua insolvência foi decretada, não sendo expectável que venham a constituir novo património, quer pela idade que têm, quer pela sua saúde e, ainda, pela respetiva situação económica.
- O Requerente receia que, aquando do falecimento dos pais e logo que o Requerente e a Requerida estejam em condições de proceder à partilha dos bens deixados em herança, os bens originariamente doados à Requerida, já não sejam, nessa data, propriedade da mesma, o que muito prejudicará o Requerente e o impossibilitará de se pagar do crédito que ele tem sobre a Requerida, de pelo menos € 67.641,50, considerando os valores dos bens doados a cada um.
- O comportamento da Requerida é pouco confiável, já que, tanto ela como os pais, sujeitaram a respetiva doação a um absoluto sigilo, nunca tendo comentado ou sequer consultado o Requerente a esse propósito.
- Acresce que a Requerida ficou viúva em novembro de 2023, sendo que o seu falecido marido era a única fonte de rendimento do agregado familiar, visto que a Requerida nunca teve um emprego, nem desempenhou, durante a sua vida, qualquer atividade profissional remunerada.
- Por força das dificuldades sentidas ocasionadas pela falta do rendimento auferido pelo seu falecido marido, desde o seu falecimento, a Requerida tem-se desdobrado a propor ações judiciais e a realizar várias diligências, com vista à partilha dos bens de que o falecido marido era herdeiro em conjunto com o seu único irmão.
- Tais diligências, porém, não têm decorrido com a celeridade pretendida pela Requerida e também elas importam encargos, aos quais vêm acrescer as muitas despesas normais e correntes do agregado familiar da Requerida, já que ambos os filhos da Requerida estão a residir fora da casa de morada de família, frequentando a filha mais velha o curso de Medicina em Lisboa, e o filho mais novo está no segundo ano de Medicina em Coimbra, vivendo ambos em quartos/casas arrendadas e sem rendimentos.
- Se a Requerida optar – como se prevê que seja a sua única alternativa – pela venda das ditas frações, o Requerente deixará de poder concretizar o supracitado “acerto de contas” entre as doações realizadas pelos seus pais, pois à data da partilha dos bens por óbito dos pais de ambos, a Requerida já não irá, com toda a certeza, dispor do dinheiro resultante da respetiva venda, considerando as elevadas despesas fixas mensais que tem ao seu encargo.
- Tiveram ainda os Requerentes conhecimento de que a Requerida anda a oferecer para venda bens que constituem ainda o acervo a partilhar no âmbito do Proc. 419/24..., por valores baixos e “quase oferecidos”.
Foi de seguida proferida decisão em cujo dispositivo se consignou:
«
Atento o exposto, quer pelas razões factuais, quer pelo enquadramento jurídico supra invocado, indefere-se liminarmente o presente procedimento cautelar, por ser manifestamente improcedente, ao abrigo das disposições conjugadas dos arts. 363/1º, 364º/1, 365º/1, 368º, 391º/1, 392º/1 e 590º/1, todos do CPC.
»
Inconformados com tal decisão vieram os Requerentes recorrer da mesma, culminando as alegações por si apresentadas com as conclusões que se transcrevem:
«A) Os Recorrentes não concordam e não se conformam com a decisão de Indeferimento Liminar do Procedimento Cautelar de Arresto, que o julgou manifestamente improcedente ao abrigo das disposições conjugadas dos Artºs. dos Artºs. 363º nº 1, 364º nº 1, 365º nº 1, 368º, 391º nº 1, 392º nº 1 e 590º nº 1, todos do C.P.C., porquanto dela vêm recorrer.
B) O Indeferimento Liminar só se justifica e deve ser aplicado em casos muito específicos, nos quais se verifique a existência de “vícios substanciais ou formais de tal modo graves que permitem antever, logo nesta fase, a improcedência inequívoca da pretensão…”, entendendo os Recorrentes que não se verifica no caso concreto.
C) Entendem os Recorrentes que está verificado no caso concreto o Direito de Crédito do Recorrente, porque ele já existe, é real, perfeitamente contabilizável e, por isso, com proteção jurídica;
D) Não é uma mera expectativa juridicamente atendível a dos Recorrentes, mas antes um Direito já adquirido e que lhes está legalmente conferido, uma vez que é certa e está definida na Lei a qualidade de herdeiros de ambos os irmãos: Recorrente e Recorrida; os quais serão sempre Herdeiros, independentemente do valor e dimensão do património hereditário que lhes venha a ser deixado pelos pais e que venha a existir no momento da abertura da sucessão.
E) Ao formalizarem as Doações – Docs. 1 e 2 juntos com o Requerimento Inicial do Arresto -, os pais de ambos – Recorrente e Recorrido – quiseram de forma clara e inquestionável privilegiar a Recorrida em detrimento do seu irmão, aqui Recorrente.
F) Sendo que os pais do Recorrente e da Recorrida têm já avançada idade – 77 anos -, vários problemas de saúde, não dispõem de rendimentos para lá das magras reformas e forma declarados insolventes – cujo encerramento ocorreu em 2023 -, e, por isso, perderam todos os bens de que dispunham, para pagamento aos credores, tudo razões que inviabilizam a aquisição de novos bens que eles, oportunamente, venham a deixar em herança a Recorrente e Recorrida.
G) Ao privilegiarem ou beneficiarem a Recorrida em prejuízo do Recorrente, através das citadas Doações (Docs. 1 e 2 com a PI do Arresto), prejudicaram-nos enquanto seus herdeiros legitimários, desrespeitando a forma justa e igual como as legítimas de ambos os filhos deveriam ser preenchidas no futuro, aquando da abertura da sucessão.
H) O Arresto é, pois, a única forma dos Recorrentes garantirem o crédito que detêm sobre a Recorrida, o qual nasceu da partilha antecipada e em vida realizada pelos pais de ambos e concretizada através das citadas Doações – Docs. 1 e 2 com a PI do Arresto -.
I) Ainda que aqui nos bastássemos com o entendimento de tal crédito apenas como uma “expectativa juridicamente atendível”, ainda assim e também esta tem proteção legislativa, como escreveu o Prof. Inocêncio Galvão Telles (in “Direito das Sucessões”, Ed. de 1971, pág. 98), que a denominou de “esperança fortalecida pela intervenção do legislador…”
J) Porquanto, entendem os Recorrentes, que o primeiro requisito – probabilidade séria da existência do direito de crédito do Recorrente – está preenchido, sem dúvidas, no caso concreto.
K) Quanto ao segundo requisito, previsto no nº 1 do Art.º 391º do C.P.C. e no Art.º 619º do C.C. – justo receio de perda da garantia patrimonial -, está, também ele, verificado no caso concreto, uma vez que os comportamentos da Recorrida, as suas atuais condições de vida, o facto de não haver outros bens que sejam sua propriedade, o valor consideravelmente elevado do crédito do Recorrente e a eminente dissipação de património por parte da Requerida - que o Recorrente tem como certa e muito próxima -, fazem antever que, se o Recorrente nada fizer, venha ele, de facto, a perder a garantia patrimonial de receber o pagamento do crédito que detém sobre a sua irmã, aqui Recorrida.
L) A Jurisprudência e a Doutrina têm entendido que este segundo requisito – justo receio ou “periculum in mora” – “decorre de actuações ou comportamentos do devedor que revelem ser difícil ou impossível a cobrança do crédito…” e, no caso concreto, ficou alegado que o marido da Recorrida, que era a única fonte de rendimento do Agregado Familiar, faleceu; as despesas de todo o agregado, muito elevadas, estão, nesta altura, apenas a expensas exclusivas da Recorrida; esta, nunca trabalhou nem auferiu qualquer vencimento ou rendimento mensal; a Recorrida, vive apenas de uma pequena pensão de viuvez e não tem quaisquer bens à excepção das Frações cujo Arresto se pretende ver decretado; recentemente, no Proc. de Inventário nº 419/24..., a correr no Juízo Local Cível do Tribunal de Ourém, concretamente na Audiência do dia 22-04-2025, não foi viabilizado um acordo entre a Recorrida e a outra parte, pelo que os bens que irão resultar desse inventário em favor da aqui Recorrida e que ela poderia vender, ainda irão demorar a integrar o património da Recorrida, tendo chegado ao conhecimento do Recorrente que, ainda assim, a Recorrida desde logo começou a tentar negociar esses bens, mesmo ainda que não partilhados, no próprio dia 22-04-2025.
M) Perante as atuais circunstâncias da Recorrida e uma vez que os bens que estão em partilha no Proc. 419/24 ainda demorarão a integrar o património da Recorrida, não havendo possibilidade de ela concretizar as negociações que já iniciou, é lógico que os únicos bens de que ela poderá dispor no seu atual momento de emergência económica e financeira, são os bens cujo Arresto se pretende, melhor identificados no Requerimento Inicial, os quais estão registados em seu nome próprio e sem quaisquer ónus ou encargos, porquanto perfeitamente livres para uma venda imediata.
N) A venda eminente pela Recorrida das Fracções cujo Arresto aqui se pretende, a concretizar-se e nada se fazendo para a evitar – como acontece com o presente Arresto -, irá tornar impossível a cobrança do seu crédito pelo Recorrente, porquanto existe e está perfunctoriamente alegado e provado o justo receio de perda de garantia patrimonial pelo Recorrente.
O) Também a urgência do recurso ao Arresto está verificada, já que apenas no passado dia 22-04-2025, após a Audiência no Proc. nº 419/24..., tiveram os Recorrentes conhecimento, por tereiros, da existência e prosseguimento desses Autos e de que nos mesmos ficou frustrada qualquer tentativa de acordo entre a Recorrida e seu cunhado e, por isso, só nessa data os Recorrentes souberam que não está para já uma decisão final nesse Inventário e a distribuição entre as partes dos bens que aí constam, circunstância que anulou qualquer hipótese de concretização das negociações já iniciadas pela Recorrida relativamente àqueles bens, que lhe permitissem realizar dinheiro para fazer face aos seus constrangimentos financeiros, pelo que, com a frustração da dita tentativa de acordo, não resta à Recorrida outra alternativa que não seja a venda dos seus únicos bens pessoais, ou seja, a venda das Frações cujo Arresto aqui se requere.
NORMAS VIOLADAS:
- Art.º 391º do C.P.C.
- Artº. 392º do C.P.C.
- Art.º 619º C.C.
- Art.º 590º do C.P.C.
(…).
Nestes termos e nos melhores de Direito, (…), deverá o presente Recurso obter total provimento e, em consequência, ser revogada a Sentença que indeferiu liminarmente o Procedimento Cautelar de Arresto, por o julgar manifestamente improcedente, substituindo-a por outra decisão que decrete o Procedimento Cautelar de Arresto ou, caso assim se não entenda, seja a Douta Decisão proferida e ora Recorrida revogada e substituída por outra que ordene o normal e ulterior andamento processual, designadamente convidando os Recorrentes a uma melhor concretização do alegado no Requerimento Inicial do Procedimento Cautelar de Arresto.»
Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), são as seguintes as questões a decidir:
- se o Requerente é titular de um crédito sobre a Requerida;
- reconhecendo-se a existência desse crédito, se foram alegados factos que demonstrem a existência de justo receio de perda da garantia patrimonial.
III – FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
Os factos que relevam na decisão do recurso, são os que constam do antecedente relatório.
O DIREITO
Dispõe o art. 391º, nº 1, do CPC, que «[o] credor que tenha justificado receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor».
O arresto «tem por finalidade evitar que determinado direito de crédito fique insatisfeito, por não se encontrarem, no património do devedor, bens suficientes para o pagamento»
1
.
Conforme o disposto no nº 1 do art. 619º do CC, o direito de requerer o arresto, é um direito conferido ao credor que tenha justo receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito. E sendo um direito conferido ao credor, caberá em primeiro lugar ao requerente demonstrar que o é à data do pedido, visto o arresto se destinar a garantir créditos atuais e não futuros
2
.
Só não será necessário que então o faça de um modo certo e seguro, já que a prova da existência do crédito nessas condições se pode reservar para a ação principal, sendo, porém, indispensável que pelo menos o demonstre em termos de probabilidade (
fumus boni juris
), de harmonia com o nº 1 do art. 392º do CPC, onde se estabelece que o requerente do arresto fundado no receio da perda da garantia patrimonial deduzirá os factos que tornem provável a existência do crédito e justifiquem o receio invocado.
São, assim, requisitos próprios do arresto, a probabilidade da existência do direito de crédito pedido na ação proposta, ou a propor, e o receio que o requerido lese, por forma grave e de reparação difícil, esse direito, dissipando a garantia patrimonial
3
.
Será que
in casu
, face ao alegado pelos Requerentes, se pode concluir pela séria probabilidade da existência do direito invocado?
A decisão recorrida respondeu negativamente à questão, com base na seguinte argumentação, que aqui se reproduz:
«
Estando aqui a falar, nos vertentes autos, em direitos do Requerente e Requerida enquanto herdeiros dos seus pais, importa destacar que o momento da abertura da sucessão tem uma importância primacial por a lei lhe ligar diversas consequências jurídicas relevantíssimas.
Assim, a sucessão, tal como configurada no art. 2024º do CC, abre-se no momento da morte do seu autor (art. 2031º do CC) e é nesse momento, e nunca antes, que é feito o chamamento dos herdeiros à titularidade das relações jurídicas do falecido (art. 2032º/1 do CC).
Concomitantemente, é a esse momento que se atende para saber quais os bens existentes no património do autor da sucessão e qual o valor desses bens para efeitos do cálculo da porção legitimária (cfr. artigo 2162º CC).
Em face deste enquadramento legal, neste momento não existe qualquer direito de crédito do Requerente e esposa à herança dos pais daquele. Os mesmos ainda estão vivos e, nessa medida, não existe sucessão (art. 2024º do CC), nem sucessores (art. 2032º/1 do CC). Existe, sim, uma expectativa juridicamente atendível do Requerente e Requerida de virem a herdar o património dos pais quando estes falecerem, mas é desconhecida a data em que tal facto, necessariamente, venha a acontecer, e a composição do património hereditário que exista no momento da abertura da sucessão.
Nada impede que os pais do Requerente e Requerida aumentem entretanto o seu património de forma que todas as contas feitas pelo Requerente saiam goradas. Basta que lhes saia um prémio milionário.
Será após a abertura da herança, e não antes, que o Requerente poderá fazer as contas que entenda por adequadas relativamente à composição do património hereditário e, entendendo-se credor da irmã, recorrer a uma ação de petição da herança, invocando a colação. Antes disso, não há qualidade de herdeiro, nem património hereditário definido que permita a formação do direito sobre a Requerida de que se arroga.
Por conseguinte, não existe qualquer direito de crédito dos Requerentes, neste momento, que possa ser atendido no vertente procedimento cautelar.
»
Os recorrentes insurgem-se contra tal decisão, reafirmando serem titulares do crédito invocado, mas sem razão, como se passa a demonstrar.
Embora haja uma porção dos seus bens de que o testador não pode dispor, por ser legalmente destinada aos seus herdeiros legitimários [artigo 2156º do Código Civil
4
], daqui não se pode retirar, como ensina Rabindranath Capelo de Sousa
5
, que os sucessíveis legitimários tenham em vida do autor da sucessão um direito subjetivo à quota-parte que constitui a sua porção legitimária ou, muito menos, um direito subjetivo aos bens em concreto do património hereditário que possam integrar a sua quota: em face dos concretos poderes ou faculdades jurídicas atribuídas pela lei a tais sucessíveis, estes têm em vida do autor da sucessão uma expetativa juridicamente titulada à sua porção legitimária.
A doutrina dominante qualifica tal situação como uma verdadeira expetativa jurídica
6
, assinalando, em geral, como manifestação da tutela dos sucessíveis legitimários em vida do autor da sucessão, a legitimidade atribuída aos herdeiros legitimários para arguirem a existência da simulação em vida do autor da sucessão, relativamente aos negócios por ele simuladamente feitos com o intuito de os prejudicar [art. 242º, nº 2, do CC].
Já no que concerne ao instituto de proteção dos sucessíveis legitimários - redução por inoficiosidade das liberalidades - embora tenha reflexos em vida do autor da sucessão, por impor a este o dever de não dispor da porção (quota) de bens destinada aos herdeiros legitimários, o meio concedido por lei para dar efetividade a tal dever opera somente após a abertura da sucessão: uma vez que a quota disponível e os sucessíveis legitimários só se fixam à data da abertura da sucessão, diferiu-se para esse momento a possibilidade de redução de liberalidades inoficiosas
7
.
Como se lê no Ac. do TRC de 08.07.2015
8
, «[s]endo vivo o autor da sucessão, a expetativa jurídica do sucessível legitimário só será objeto de tutela nos casos especificamente previstos na lei, não se lhe negando que, nos casos em que tal situação jurídica seja expressamente reconhecida, a tal direito corresponderá uma ação adequada a defendê-lo em juízo, bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da ação, nos termos do nº 2 do artigo 2º do CPC
9
.
Revertendo ao caso em apreço, não configurando os factos alegados a titularidade de algum direito de crédito por parte do Requerente - enquanto os seus pais forem vivos, serão eles os titulares do direito de crédito resultante de uma qualquer ofensa ao respetivo património - o pedido de decretamento de arresto a seu favor, em bens da Requerida, encontra-se destituído de fundamento.
Na verdade, «só em relação a direitos de crédito é possível deduzir esta providencia, já que ela visa precisamente a garantia do seu cumprimento…o perigo de insatisfação de direitos de diversa natureza (v.g. direitos reais) ou que, apesar de assentarem em direitos de crédito não comunguem no específico receio de perda da garantia patrimonial, deverão encontrar guarida noutros instrumentos»
10
.
Como se lê no citado Ac. do TRC de 08.07.2015, «[o] Arrolamento será o procedimento adequado a, em caso de justo receio de extravio ou dissipação de bens, obter a sua descrição, avaliação e depósito, podendo ser intentado por aquele que tenha, ou fundadamente espere vir a ter, direito a que lhe venha a ser entregue um certo número bens (cfr., no sentido da possibilidade de dedução de uma providência cautelar de arrolamento a intentar pelos herdeiros legitimários na pendencia de uma ação em que se invocasse a prodigalidade, se pronunciou António Abrantes Geraldes – Temas da Reforma do Processo Civil, IV Vol., pág. 268 e 269, nota 502 –, e ainda Acórdão do STJ de 13.10.1993, relatado por Folque de Gouveia, disponível in
www.dgsi.pt
.»
Não sendo necessário que o crédito respeite a uma obrigação certa, exigível e líquida, ou sequer indicação rigorosa e exata do respetivo montante, a titularidade do crédito terá de ser inequívoca, no sentido de ser o requerente o credor efetivo do requerido
11
.
Confirma-se assim o juízo ínsito na decisão recorrida de que, dos factos alegados no requerimento inicial, não resulta que o Requerente disponha de qualquer crédito suscetível de tutela por via de arresto, o que determina a improcedência do presente procedimento.
Fica, deste modo, prejudicado o conhecimento da questão atinente à verificação do justo receio de perda da garantia patrimonial (cfr. art. 608º, nº 2,
ex vi
art. 663º, nº 2, ambos do CPC).
Por conseguinte, o recurso improcede, não se mostrando violadas as normas invocadas pelos recorrentes ou quaisquer outras.
Vencidos no recurso, suportarão os requerentes/recorrentes as respetivas custas – art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC.
IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelos recorrentes.
*
Évora, 25 de junho de 2025
Manuel Bargado (Relator)
António Fernando Marques da Silva
Filipe Aveiro Marques
(documento com assinaturas eletrónicas)
______________________________________________
1. Alberto dos Reis,
Código de Processo Civil Anotado
, vol. II, p. 6.
↩︎
2. Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, in
Código Civil Anotado
, vol. I, p. 452 e Vaz Serra, in
Realização Coactiva da Prestação
, BMJ, nº 73, pp. 225 e ss.
↩︎
3. Cfr., por todos, o Acórdão do STJ de 29.05.2007, proc. 07A1674, in
www.dgsi.pt
.
↩︎
4. Doravante CC.
↩︎
5.
Lições de Direito das Sucessões
, Vol. I, 4ª ed., Coimbra Editora 2000, pp. 140 e 141, em especial nota 284, e p. 160, nota 335. Segundo o autor, o facto de a redução de liberalidades operar retroativamente, abrangendo as liberalidades feitas em vida do autor da sucessão e lhe parecer que a lei não outorgou tais meios em vida do
de cuius
apenas porque só no momento da sua morte se pode avaliar a quota dos legitimários e porque, correspondentemente, não lhe pareceu desejável cercear exageradamente os poderes de disposição do autor, levam-no a concluir que a morte do
de cuius
funciona como uma condição suspensiva de um direito ou faculdade jurídica pré-existente, enquadrável na ideia de uma expetativa juridicamente tutelada à sucessão.
↩︎
6. Cfr.,
inter alia
, Luís A. Carvalho Fernandes,
Lições de Direito das Sucessões
, Quid Iuris, 2ª ed., p. 379, que considera ainda uma forma de tutela do legitimário, embora mais difusa, em vida do
de cuius
, as limitações a este impostas em sede de livre disposição dos seus bens a título gratuito, seja por atos
inter
vivos
ou
mortis
causa
, reconhecendo embora que esse direito – de redução por inoficiosidade – só se torna efetivo após a morte do autor da sucessão. José de Oliveira Ascensão refere que se os legitimários têm uma segura expetativa jurídica logo que designados, para a generalidade dos efeitos, porém, a proteção é diferida -
Direito Civil Sucessões
, Coimbra Editora, p. 345.
↩︎
7. Assim, Maria Raquel Aleixo Antunes Rei,
Da Expectativa Jurídica
, p. 158, artigo disponível in
https://portal.oa.pt/upl/%7Bbe3a1a7b-a871-454a-885d-c405a2542c48%7D.pdf
. Precisamente por se tratar de uma mera expectativa, também a jurisprudência tem vindo a negar a possibilidade de, em vida dos doadores, ser peticionada a declaração de nulidade de uma doação, por inoficiosidade (Ac. do TRP de 26.01.2004, proc. 0355994), ou a negar legitimidade ao herdeiro legitimário para pedir a anulabilidade de uma doação, em vida da autora, com fundamento na incapacidade acidental desta (Ac. do TRL de 12.12.2013, proc. 282/13.8TVLSB.L1-6), ambos os arestos disponíveis in
www.dgsi.pt
.
↩︎
8. Proc. 749/15.3T8GRD.C1, in
www.dgsi.pt
., que aqui seguimos de perto.
↩︎
9. Para além do poder potestativo de invocar a nulidade de um negócio simulado que o prejudique, Maria Raquel Aleixo Antunes Rei salienta que a posição jurídica do sucessível legitimário em vida do autor da sucessão é composta ainda por uma série de situações jurídicas: poder de autorizar a venda a filhos ou netos pelos pais ou avós e de pedir a anulação da venda caso não hajam prestado o seu consentimento (art. 877º do CC); proteção reflexa decorrente do dever do autor da sucessão de não dispor gratuitamente da legítima objetiva (art. 2156º do CC); poder de dar o seu consentimento para qualquer partilha em vida (art. 2029º do CC); poder de exigir dos outros sucessíveis legitimários a composição da sua quota em dinheiro quando a sua qualidade de sucessível legitimário não existisse ou fosse desconhecida à data da partilha (art. 2029º, nº 2, do CC); dever de compor em dinheiro a quota legitimária de qualquer sucessível legitimário superveniente em relação a uma partilha em vida (art. 2029º, nº 2, do CC) – artigo citado, pp. 158 e 159.
↩︎
10. António Abrantes Geraldes,
Temas da Reforma do Processo Civil
, IV Vol., 2ª ed., Almedina, p. 179.
↩︎
11. Marco Carvalho Gonçalves, Providências Cautelares, 4ª ed., Almedina, pp. 226 a 229.
↩︎
|
TRE
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https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/1aaeb875d411a01480258cc20045c469?OpenDocument
|
1,762,128,000,000
| null |
513/24.9TXEVR-A.E1
|
513/24.9TXEVR-A.E1
|
CARLA OLIVEIRA
|
I - Encontrando-se o instituto do cancelamento provisório do registo criminal previsto apenas para as situações em que está em causa um dos fins previstos nos nºs 5 e 6, do art. 10º da Lei n.º 37/2015, de 5 de maio, e não sendo estes fins destinados às pessoas coletivas, importa concluir que a previsão do art.12º se limita às pessoas singulares.
II - O instituto do cancelamento provisório do registo criminal não éaplicável a pessoas coletivas, não sendo tal exclusão inconstitucional por violação do princípio da igualdade
III -O Legislador quis estabelecer um regime de excecionalidade do cancelamento provisório do registo criminal relativamente às pessoas singulares, fundado em juízos de readaptação, de avaliação do comportamento posterior e num juízo prognose favorável, que só é compatível com pessoas singulares.
IV - O fim pretendido pela lei com o cancelamento de registo provisório é facilitar a integração e a ressocialização do condenado em tempo inferior ao previsto para o cancelamento definitivo, sempre que se possa comprovar que aquele passou a adotar um comportamento adequado e conforme ao direito estabelecido, mostrando-se por isso “reabilitado” ou, nas palavras da lei, readaptado. E, tal avaliação e conceito, por ter subjacente uma reflexão e interiorização da conduta anterior que gera a alteração de postura, apenas se mostra compatível com a natureza da pessoa física ou humana, e não com a da pessoa coletiva.
|
[
"CANCELAMENTO PROVISÓRIO DO REGISTO CRIMINAL",
"ARTIGO 12.º DA LEI Nº 37/2015",
"DE 5 DE MAIO",
"PESSOAS COLETIVAS"
] |
Acórdão deliberado em Conferência
1. Relatório
1.1 Decisão recorrida
Por decisão de 28 de novembro de 2024 o Tribunal recorrido determinou, para fins de contratação pública (Código dos Contratos Públicos), o cancelamento provisório do registo criminal da sociedade “AA, Ldª” quanto à decisão condenatória proferida no processo:
- Processo comum singular nº 38/13.8…, do Juízo de Competência Genérica de … do Tribunal Judicial da Comarca de ….
*
1.2. Recurso
Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso, invocando, em sede de conclusões (síntese nossa):
«1.º- A Sentença recorrida de 28-11-2024, referência …, julgou procedente o pedido de cancelamento provisório do registo criminal e, em consequência, para fins de contratação pública (Código dos Contratos Públicos), determinou o cancelamento provisório do registo criminal da sociedade “AA Lda.” quanto à decisão condenatória proferida no seguinte processo:
- Processo comum singular nº 38/13.8…, do Juízo de Competência Genérica de … do Tribunal Judicial da Comarca de …
2.º- A decisão recorrida foi proferida após parecer do Ministério publico de 26.11.2024 que pugnou pelo indeferimento do requerimento porquanto o regime previsto no artigo 12.º da Lei n.º 37/2015, de 05 de maio (lei da identificação criminal), não é aplicável às pessoas coletivas.
3.º- Com efeito, citando o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 21-03-2024, processo 571/23.3TXEVR-A.E1, relatora Beatriz Borges, disponível em dgsi.pt:
“I - O instituto do cancelamento provisório do registo criminal não é aplicável a pessoas coletivas.
II - Tal exclusão não é inconstitucional (por violação do princípio da igualdade).”
4.º- Neste sentido, pugnamos pela posição que sustenta que o legislador quis estabelecer um regime de excecionalidade do cancelamento provisório do registo criminal relativamente às pessoas singulares, fundado em juízos de readaptação, de avaliação do comportamento posterior e num juízo prognose favorável, que só é compatível com pessoas singulares.
5.º- Citando o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 21-03-2024, processo 571/23.3TXEVR-A.E1, relatora Beatriz Borges, disponível em dgsi.pt, os “elementos literal, sistemático, racional/teleológico e histórico de interpretação todos apontam de forma clara no sentido” pugnado neste recurso.
6.º- O n.º 6 do artigo 10.º aponta de forma clara para atividades desenvolvidas por pessoas singulares.
7.º- Para além disso, importa sublinhar que existe uma medida especial de proteção de menores prevista na Lei n.º 113/2009, de 17 de setembro, que define um regime de não transcrição da competência do TEP e que só é aplicável a pessoas singulares que depende de uma perícia colegial (n.ºs 3, 4 e 5 da Lei n.º 113/2009, de 17 de setembro).
8.º- Pelo exposto, ao decidir naqueles termos, a douta Sentença recorrida violou o disposto no artigo 12.º da Lei n.º 37/2015, de 05 de maio, conjugado com o artigo 10.º n.ºs 5 e 6 do mesmo diploma, bem como nos artigos 229.º, n.º 1, e 233.º, n.º 1, ambos do CEPMPL.
9.º- Por último, sublinhar que não enferma de inconstitucionalidade a interpretação segundo a qual o artigo 12.º da Lei n.º 37/2015, de 5 de maio, exclui as pessoas coletivas do âmbito de aplicação do regime de cancelamento provisório do registo criminal.
10.º- Pelo exposto, deve o presunto recurso merecer provimento e, em consequência, deve a Douta Sentença ser revogada e substituída por Douto Acórdão que indefira o requerimento porquanto o regime previsto no artigo 12.º da Lei n.º 37/2015, de 05 de maio (lei da identificação criminal), não é aplicável às pessoas coletivas».
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1.3. Resposta
A requerente “AA, Lda” apresentou resposta, da qual extraiu as seguintes conclusões (resumo nosso):
- No que respeita ao cancelamento provisório do registo criminal, encontramos na jurisprudência duas tendências, sendo que a que se deve aplicar aos presentes autos é aquela de acordo com a qual o referido instituto é também aplicável às pessoas coletivas;
- O artº 229º do Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, não distingue entre pessoas coletivas, nem pessoas singulares prevendo ainda a possibilidade do pedido de cancelamento ser efetuado por “representante legal” do interessado;
- Existem pessoas coletivas cuja idoneidade é absolutamente essencial para concorrer a concursos públicos e desempenhar funções ou atividades cujo interesse público ou estatal seguido pelo seu objeto social seja relevante;
- No caso verificam-se todos os pressupostos de que depende o cancelamento provisório do registo e o respetivo pedido é legítimo de acordo com o fim pretendido pela requerente (contratação pública no âmbito do Código dos Contratos Públicos);
- Seguindo a orientação estabelecida no art. 9º do Código Civil, da leitura do art. 12º da LIC, o que resulta da sua letra é a delimitação do objeto do pedido de cancelamento provisório do registo criminal quando esteja em causa os fins especificados nos nºs 5 e 6 do artº 10º da mesma lei. Ou seja, o artº 12º da LIC não faz referência a pedidos efetuados apenas por pessoas singulares (na realidade não distingue entre pessoas singulares e pessoas coletivas) estando o seu âmbito definido apenas no que tange aos fins visados pelo registo criminal e seu respetivo cancelamento.
- É certo que o nº 5 do art. 10º da LIC faz referência a “pessoas singulares” mas há que compreender que o mesmo é composto por um total de 9 números, refere-se a várias situações, sendo que no seu nº 4 vem referido o certificado requerido por entidade estrangeira, o seu nº 3 refere-se o registo requerido pelas entidades identificadas no artº 8º nº 2 al.s a) a f), h) e i), nas quais se incluem os magistrados do MP e os tribunais, e no nº 7 vem previsto o certificado requerido por pessoas coletivas. Ou seja, o artº 10º da LIC, cuja epígrafe é precisamente “conteúdo dos certificados” prevê o âmbito de todo e qualquer certificado de acordo com todas as situações em que o certificado de registo criminal possa ser requerido por qualquer entidade, singular ou coletiva, nacional ou estrangeira. E faz a distinção consoante a natureza da pessoa que requer o registo com o fim de delimitar o âmbito do respetivo registo. Isto é, a função do artº 10º da LIC é tão só de definir o que deve constar do registo criminal em cada situação delimitada, sendo que o âmbito do registo varia consoante esteja em causa uma pessoa singular ou coletiva, uma entidade nacional ou estrangeira, um cidadão particular ou um organismo estatal.
- O art. 12º da LIC tem de ser conjugado com a Lei nº 115/2009, mais concretamente com o já citado artº 229º;
- Se se ficciona uma culpa de uma pessoa coletiva ao ponto de lhe imputar a prática de um crime e se se prevê a inscrição no registo criminal dessa condenação então não se pode retirar à pessoa coletiva a possibilidade dada às pessoas singulares de, verificando-se certas circunstâncias legalmente delineadas, pedir o cancelamento daquele registo para efeitos de poder exercer a atividade prevista no seu objeto social. Sob pena de se estar a violar o princípio da igualdade plasmado no artº 13º da Constituição da República Portuguesa
- E o facto das pessoas coletivas não poderem beneficiar, à semelhança das pessoas singulares, da faculdade da não transcrição de certos crimes no certificado do registo criminal não significa que não possam pedir o respetivo cancelamento. Antes, pelo contrário, se a pessoa coletiva condenada no âmbito de um processo crime em pena e eventual sanção acessória de índole criminal não pode beneficiar da faculdade prevista no artº 13º da LIC, por maioria de razão deverá, então, ser-lhe permitido requerer o cancelamento do seu registo criminal se se verificar os condicionalismos legais subjacentes a esse cancelamento.
- Tal caminho (e solução) é mesmo preconizado no site da Direção-Geral da Administração da Justiça onde formulando de modo próprio a pergunta:
“Existe alguma forma de limitar o conteúdo de um certificado pedido pela própria pessoa coletiva?” logo se apressa a responder aí consignando: “O Tribunal de Execução das Penas pode determinar o cancelamento total ou parcial das decisões que devessem constar de certificados do registo criminal pedidos pela própria pessoa coletiva. - Lei n.º 37/2015, de 5/5, art.º 12.º e Lei n.º 115/2009, arts. 229.º a 233.º.”
- As pessoas coletivas têm tanto direito a contratar serviços e trabalho com terceiros como as pessoas singulares e as razões que levam a não prejudicar as pessoas singulares com a não transcrição no registo criminal, são exatamente as mesmas para as pessoas coletivas.
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1.4 . Parecer
Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador Geral Adjunto emitiu parecer no qual, concordando com a resposta apresentada, se pronunciou pelo provimento do recurso.
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1.5. Resposta ao Parecer
A recorrida apresentou resposta ao parecer, na qual, no essencial, reproduziu os argumentos anteriormente invocados.
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2. Questões a decidir no recurso
A questão a apreciar é apenas a de saber se o artigo 12.º da Lei n.º 37/2015, de 5 de maio, exclui as pessoas coletivas do âmbito de aplicação do regime de cancelamento provisório do registo criminal.
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3. Fundamentação
3.1. Decisão recorrida
É o seguinte, o teor da decisão recorrida (transcrição):
« I – Relatório
A sociedade “AA Lda.” veio requerer o cancelamento provisório do seu registo criminal para fins de contratação pública (Código dos Contratos Públicos).
Por despacho exarado a fls. 26-26v foi o seu requerimento admitido liminarmente.
Os autos encontram-se instruídos com o certificado de registo criminal da requerente, tendo ainda sido realizadas as diligências instrutórias que se afiguraram pertinentes.
O Ministério Público emitiu parecer, manifestando a sua oposição ao requerido, por entender que o instituto do cancelamento provisório do registo criminal não é aplicável a pessoas colectivas – cfr. fls. 30.
Nada obstando ao conhecimento “de meritis”, cumpre proferir sentença.
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II – Fundamentação
II – A) Dos Factos
Realizada a instrução do processo, o tribunal considera provados, com interesse para a decisão, os seguintes factos:
1 - Por decisão proferida no âmbito dos autos de processo comum singular nº 38/13.8…, do Juízo de Competência Genérica de … do Tribunal Judicial da Comarca de …, datada de 28 de Outubro de 2016 e transitada em julgado a 22 de Outubro de 2029, a requerente “AA Lda.” foi condenada numa pena de 300 (trezentos) dias de multa, pela prática, em 20 de Novembro de 2013, de 1 (um) crime de detenção de arma proibida, tendo tal pena sido declarada extinta, pelo cumprimento, por despacho datado de 9 de Dezembro de 2021;
2 No referido processo a requerente não foi condenada no pagamento de indemnização de natureza civil;
3 Inexiste notícia de que contra a requerente se encontre pendente algum processo criminal;
4 A requerente tem como objecto social “a indústria e comércio de produtos pirotécnicos e como actividade secundária, o comércio a retalho de artigos para eventos como, por exemplo, brindes, lembranças, entre outros, sem predominância de produtos alimentares, bebidas ou tabaco”, pretendendo concorrer à contratação pública no âmbito do Código dos Contratos Públicos, por referência ao seu ramo de actividade.
Com interesse para a decisão, inexistem factos não provados.
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II – B) Motivação
II – B – 1) Motivação Fáctica
Para prova dos factos supra descritos o tribunal atendeu aos seguintes elementos constantes dos autos, analisados crítica e conjugadamente:
- Certificado de registo criminal da requerente – fls. 24-25;
- Cópia da sentença referida no ponto 1 dos factos provados – fls. 13 a 19;
- Cópia da certidão do registo comercial da requerente (através do código fornecido foi também consultada “online” a certidão permanente);
- Informações prestadas pelas autoridades judiciárias e pela entidade policial da área da sede da requerente – fls. 27 e 28.
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II – B – 2) Motivação de Direito
A Lei n.º 37/2015, de 5 de Maio, que estabelece o regime jurídico da identificação criminal, dispõe no seu art. 12º da seguinte forma:
«Sem prejuízo do disposto na Lei n.º 113/2009, de 17 de Setembro, estando em causa qualquer dos fins a que se destina o certificado requerido nos termos dos n.ºs 5 e 6 do artigo 10.º pode o tribunal de execução das penas determinar o cancelamento, total ou parcial, das decisões que dele deveriam constar, desde que:
a) Já tenham sido extintas as penas aplicadas;
b) O interessado se tiver comportado de forma que seja razoável supor encontrar-se readaptado; e
c) O interessado haja cumprido a obrigação de indemnizar o ofendido, justificado a sua extinção por qualquer meio legal ou provado a impossibilidade do seu cumprimento».
Conforme resulta do relatório da presente decisão, o Ministério Público opõe-se ao deferimento do requerido, por entender que o cancelamento provisório do registo criminal não é aplicável a pessoas colectivas.
Acontece que quanto a esse aspecto concreto o tribunal já tomou posição expressa no sentido da admissibilidade do cancelamento provisório do registo criminal quanto a pessoas colectivas, tendo no dia 6 de Novembro de 2024 proferido o despacho liminar que ora se reproduz na parte relevante (fls. 26-26v):
«A sociedade comercial “AA Lda.” veio requerer o cancelamento provisório do seu registo criminal para fins de contratação pública (Código dos Contratos Públicos).
No que respeita ao cancelamento provisório do registo criminal, encontramos na jurisprudência duas tendências:
- Uma que entende que tal instituto jurídico apenas se destina às pessoas singulares, mas já não às pessoas colectivas (assim, os Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22 de Setembro de 2021, 12 de Outubro de 2022 e 22 de Março de 2023 e o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19 de Outubro de 2020, respectivamente Proc. 279/21.0TXPRT-A.P1, Proc. 275/22.4TXPRT.A.P1, Proc. 159/22.6TXPRT-A.P1 e Proc. 68/15.IDFUN-B.L1-5, todos in www.dgsi.pt);
- Uma segunda de acordo com a qual o referido instituto é também aplicável às pessoas colectivas (neste sentido, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 10 de Dezembro de 2020 e 8 de Setembro de 2021, respectivamente Proc. 139/17.3IDLSB-A.L1-9 e Proc. 1975/20.9TXLSB-A.L1.3, ambos in www.dgsi.pt).
Ora, não obstante a inegável valia dos argumentos que sustentam a primeira tese, entendemos que a segunda é a única que se mostra consentânea com o actual regime jurídico da responsabilidade criminal das pessoas colectivas. Com efeito, a esse propósito, tal como referido no já mencionado Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 8 de Setembro de 2021, «o (…) artº 229º [do Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade] não distingue entre pessoas coletivas, nem pessoas singulares prevendo ainda a possibilidade do pedido de cancelamento ser efetuado por “representante legal” do interessado. E compreende-se que assim seja, sob pena de não fazer sentido levar a registo criminal as condenações de pessoas colectivas. Precisamente porque há pessoas coletivas cuja idoneidade é absolutamente essencial para concorrer a concursos públicos e desempenhar funções ou atividades cujo interesse público ou estatal seguido pelo seu objeto social seja relevante, que as suas condenações são levadas a registo».
Assim, admito liminarmente o requerimento de cancelamento provisório do registo criminal formulado pela aludida pessoa colectiva – art. 230º, nº 1, do CEPMPL».
Nada há a alterar em relação ao entendimento então vertido, pelo que se passará a apreciar os requisitos previstos nos supramencionado art. 12º da Lei n.º 37/2015, de 5 de Maio.
No caso dos autos, considerando os factos que resultaram provados, é isento de dúvidas que se mostra preenchido o requisito previsto na referida alínea a), sendo inaplicável o requisito a que alude a alínea c), pois no processo referido no ponto 1 dos factos provados a requerente não foi condenada no pagamento de indemnização de natureza civil.
No que tange ao requisito mencionado na alínea b), verifica-se que desde 20 de Novembro de 2013 (i.e., há mais de 11 anos) a requerente não voltou a prevaricar, tudo levando por isso a crer que se encontra readaptada (com as necessárias adaptações, uma vez que está em causa uma sociedade).
Por fim, atento o disposto no art. 229º, nº 1, do CEPMPL, há ainda que concluir no sentido de que o fundamento do pedido da requerente (fins de contratação pública no âmbito do Código dos Contratos Públicos) é legítimo.
Impõe-se, assim, deferir o requerido.
***
III – Decisão
Pelo exposto, julgo procedente o pedido e, em consequência, para fins de contratação pública (Código dos Contratos Públicos), determino o cancelamento provisório do registo criminal da sociedade “AA Lda.” quanto à decisão condenatória proferida no seguinte processo:
- Processo comum singular nº 38/13.8…, do Juízo de Competência Genérica de … do Tribunal Judicial da Comarca de … (…)»
*
3. 2 – Art. 12º, da Lei n.º 37/2015, de 5 de maio – aplicabilidade às pessoas coletivas.
Não subsistem quaisquer dúvidas que o diploma em referência respeita não só às pessoas singulares, como também às pessoas coletivas pois é nele que é regulado o regime da identificação criminal de ambas (com normas comuns e, também, com normas próprias e específicas para cada uma delas).
Assim, o que está em causa é saber se o instituto do cancelamento provisório, previsto no art.12º, se destina exclusivamente às pessoas singulares ou se também respeita às pessoas coletiva.
É o seguinte, o teor do citado preceito:
«Art. 12º
Cancelamento provisório
Sem prejuízo do disposto na Lei nº113/2009, de 17 de setembro, estando em causa qualquer dos fins a que se destina o certificado requerido nos termos dos nºs 5 e 6 do artigo 10º pode o tribunal de execução das penas determinar o cancelamento, total ou parcial, das decisões que dele deveriam constar, desde que:
a) Já tenham sido extintas as penas aplicadas;
b) O interessado se tiver comportado de forma que seja razoável supor encontrar-se readaptado; e
c) O interessado haja cumprido a obrigação de indemnizar o ofendido, justificado a sua extinção por qualquer meio legar ou provado a impossibilidade do seu cumprimento.»
Como se vê, este artigo não exclui de forma expressa e direta a sua aplicação às pessoas coletivas. Porém restringe “o cancelamento provisório” às situações em que está em causa um dos fins previstos nos nºs 5 e 6, do art. 10º.
Esta norma regula o conteúdo dos certificados de registo criminal e, os seus nºs 5 e 6, têm o seguinte teor: «5 - Sem prejuízo do disposto no número seguinte, os certificados do registo criminal requeridos por pessoas singulares para fins de emprego, público ou privado, ou para o exercício de profissão ou atividade em Portugal, devem conter apenas: a) As decisões de tribunais portugueses que decretem a demissão da função pública, proíbam o exercício de função pública, profissão ou atividade ou interditem esse exercício; b) As decisões que sejam consequência, complemento ou execução das indicadas na alínea anterior e não tenham como efeito o cancelamento do registo; c) As decisões com o conteúdo aludido nas alíneas a) e b) proferidas por tribunais de outro Estado membro ou de Estados terceiros, comunicadas pelas respetivas autoridades centrais, sem as reservas legalmente admissíveis.
6 - Os certificados do registo criminal requeridos por pessoas singulares para o exercício de qualquer profissão ou atividade para cujo exercício seja legalmente exigida a ausência, total ou parcial, de antecedentes criminais ou a avaliação da idoneidade da pessoa, ou que sejam requeridos para qualquer outra finalidade, contêm todas as decisões de tribunais portugueses vigentes, com exceção das decisões canceladas provisoriamente nos termos do artigo 12.º ou que não devam ser transcritas nos termos do artigo 13.º, bem como a revogação, a anulação ou a extinção da decisão de cancelamento, e ainda as decisões proferidas por tribunais de outro Estado membro ou de Estados terceiros, nas mesmas condições, devendo o requerente especificar a profissão ou atividade a exercer ou a outra finalidade para que o certificado é requerido.».
Desta redação resulta, literalmente, que as normas em causa não são aplicáveis às pessoas coletivas. E, a reforçar tal ideia, importa salientar o teor do nº7, do mesmo preceito: «7 - Os certificados do registo criminal requeridos por pessoas coletivas ou entidades equiparadas contêm todas as decisões de tribunais portugueses vigentes.».
Da conjugação dos diversos números do art. 10º, resulta que o conteúdo geral do certificado de registo criminal é aquele que se mostra previsto no nº1. Os nºs 5 e 6, clarificam concretamente o que consta dos certificados requeridos por pessoas singulares, que têm subjacente os fins específicos aí previstos: emprego, público ou privado, ou para o exercício de profissão ou atividade em Portugal (nº5) e o exercício de qualquer profissão ou atividade para cujo exercício seja legalmente exigida a ausência, total ou parcial, de antecedentes criminais (nº6). E, em ambos os casos, são previstas as exceções (aos elementos a constar do certificado) e que são precisamente, no essencial, os casos de cancelamento provisório do registo e de não transcrição da condenação (arts. 12º e 13º).
E, não só nesses números é mencionado expressamente que os mesmos são aplicáveis às pessoas singulares como também, no nº7, é prevista igual situação para as pessoas coletivas (concretização do que contém o certificado de registo criminal), dizendo-se apenas que estes contêm todas as decisões de tribunais portugueses vigentes e sem aí formular qualquer distinção tendo em conta o fim a que o certificado se destina e também sem estabelecer qualquer exceção ao regime geral, designadamente as mesmas, ou parte delas, que são previstas para as pessoas singulares. Da interpretação literal e sistemática do preceito em análise resulta, desta forma, que as situações previstas nos nºs 5 e 6 não são aplicáveis às pessoas coletivas. Aliás, se o fossem, bastaria que nesses números as mesmas fossem mencionadas. E, nesse caso, o nº7, não teria razão de ser. A própria existência deste, com o conteúdo que apresenta – um regime distinto do especialmente previsto para as pessoas singulares – afasta a aplicação daqueles às pessoas coletivas. Desta forma, e encontrando-se o instituto do cancelamento provisório previsto apenas para as situações em que está em causa um dos fins previstos nos nºs 5 e 6, do art. 10º, e não sendo estes fins destinados às pessoas coletivas, importa concluir que a previsão do art.12º se limita às pessoas singulares.
E tal compreende-se perfeitamente pois o fim pretendido pela lei com o cancelamento de registo provisório é facilitar a integração e a ressocialização do condenado em tempo inferior ao previsto para o cancelamento definitivo, sempre que se possa comprovar que aquele passou a adotar um comportamento adequado e conforme ao direito estabelecido, mostrando-se por isso “reabilitado” ou, nas palavras da lei, readaptado. E, tal avaliação e conceito, por ter subjacente uma reflexão e interiorização da conduta anterior que gera a alteração de postura, apenas se mostra compatível com a natureza da pessoa física ou humana, e não com a da pessoa coletiva.
Ainda a favor da posição aqui adotada, importa também considerar que a legislação anterior, quanto a tal matéria, a Lei nº57/98, de 18/8, na versão introduzida pela Lei nº114/2009, de 22/9, admitiu a aplicação do instituto do cancelamento provisório às pessoas coletivas. Ora, a entrada em vigor da atual lei, que apresenta uma solução distinta, apoiada na literalidade expressa nas normas em causa, apenas pode significar que foi intenção do legislador alterar o regime anteriormente vigente. Caso assim não fosse, teria definido de forma distinta os pressupostos do cancelamento provisório – designadamente não remetendo esse regime para as situações expressamente previstas para as pessoas singulares (nos moldes já explanados).
Importa ainda salientar que, pese embora o art. 229º, do Cód. De Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade (que determina a finalidade e legitimidade para o requerimento de cancelamento do registo provisório) efetivamente não distinga entre pessoa singular e pessoa coletiva, falando até de representante legal do interessado, tal não constitui fundamento para afastar a posição que defendemos. Com efeito, não só esse preceito é de natureza processual, enquanto a Lei 37/15, designadamente os seus arts. 10º e 12º reveste natureza substantiva (sendo por isso esta que estabelece os requisitos e pressupostos de aplicação do instituto em causa), como também esta é posterior àquela, a qual foi publicada em momento anterior, numa fase em que, como já se disse, a lei estendia o regime aqui em causa às pessoas coletivas.
E, pese embora, corresponda à realidade que – tal como alegado pela recorrida – no site da DGAJ conste a indicação de que, de acordo com Lei n.º 37/2015, de 5/5, art.º 12º e Lei nº 115/2009, arts. 229.º a 233.º, a pessoa coletiva pode obter o cancelamento das decisões que devessem constar do certificado do registo criminal, tal facto não constitui um argumento a favor de tal tese. É que, como é sabido, não cabe a essa Direção Geral, nem a qualquer outro organismo governamental, a interpretação da lei e, muito menos, a vinculação dos tribunais no sentido dessa mesma interpretação. Quando muito poderá revelar uma intenção que poderá vir a determinar uma futura alteração legislativa que consagre uma vontade manifestada. Não mais do que isso.
Por último, importa ressalvar que a posição aqui em causa não se mostra violadora do princípio constitucional da igualdade. A este propósito, cumpre atentar ao teor do Ac. nº559/2022, de 20 de setembro, do Tribunal Constitucional que, embora a respeito de questão distinta, mas em tudo semelhante, decidiu não julgar inconstitucional a norma contida no artigo 13.º da Lei n.º 37/2015, de 5 de maio, interpretado no sentido segundo o qual a possibilidade de não transcrição de decisões condenatórias ali prevista não é aplicável a pessoas coletivas. E, no que respeita à questão da igualdade. pode-se ler, nessa mesma decisão, o seguinte:
Para o que ora importa apreciar, recorde-se que é jurisprudência estabilizada que a Constituição só proíbe o tratamento diferenciado de situações quando o mesmo se apresente arbitrário, sem fundamento material, havendo que precisar o sentido da igualdade jurídica. A este propósito, pode ler-se no Acórdão n.º 362/2016, seguindo o curso de inúmeras decisões anteriores concordantes:
“[…]
Numa perspetiva de igualdade material ou substantiva – aquela que subjaz ao artigo 13.º, n.º 1, da Constituição e que se traduz na igualdade através da lei –, a igualdade jurídica corresponde a um conceito relativo e valorativo assente numa comparação de situações: estas, na medida em que sejam consideradas iguais, devem ser tratadas igualmente; e, na medida em que sejam desiguais, devem ser tratadas desigualmente, segundo a medida da desigualdade. Tal implica a determinação prévia da igualdade ou desigualdade das situações em causa, porquanto no plano da realidade factual não existem situações absolutamente iguais. Para tanto, é necessário comparar situações em função de um certo ponto de vista. Por isso, a comparação indispensável ao juízo de igualdade exige pelo menos três elementos: duas situações ou objetos que se comparam em função de um aspeto que se destaca do todo e que serve de termo de comparação (tertium comparationis). Este termo – o «terceiro (elemento) da comparação» – corresponde à qualidade ou característica que é comum às situações ou objetos a comparar; é o pressuposto da respetiva comparabilidade. Assim, o juízo de igualdade significa fazer sobressair ou destacar elementos comuns a dois ou mais objetos diferentes, de modo a permitir a sua integração num conjunto ou conceito comum (genus proximum).
Porém, a Constituição não proíbe todo e qualquer tratamento diferenciado. Proíbe, isso sim, as discriminações negativas atentatórias da (igual) dignidade da pessoa humana e as diferenças de tratamento sem uma qualquer razão justificativa e, como tal, arbitrárias. Nesse sentido, afirmou-se no Acórdão n.º 39/88:
‘A igualdade não é, porém, igualitarismo. É, antes, igualdade proporcional. Exige que se tratem por igual as situações substancialmente iguais e que, a situações substancialmente desiguais, se dê tratamento desigual, mas proporcionado: a justiça, como princípio objetivo, “reconduz-se, na sua essência, a uma ideia de igualdade, no sentido de proporcionalidade” – acentua Rui de Alarcão (Introdução ao Estudo do Direito, Coimbra, lições policopiadas de 1972, p. 29).
O princípio da igualdade não proíbe, pois, que a lei estabeleça distinções. Proíbe, isso sim, o arbítrio; ou seja: proíbe as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, que o mesmo é dizer sem qualquer justificação razoável, segundo critérios de valor objetivo, constitucionalmente relevantes. Proíbe também que se tratem por igual situações essencialmente desiguais. E proíbe ainda a discriminação; ou seja: as diferenciações de tratamento fundadas em categorias meramente subjetivas, como são as indicadas, exemplificativamente, no n.º 2 do artigo 13.º.
Respeitados estes limites, o legislador goza de inteira liberdade para estabelecer tratamentos diferenciados.
O princípio da igualdade, enquanto proibição do arbítrio e da discriminação, só é, assim, violado quando as medidas legislativas contendo diferenciações de tratamento se apresentem como arbitrárias, por carecerem de fundamento material bastante.’
A comparação a que a recorrente alude faz-se entre os condenados que são pessoas singulares e aqueles que são pessoas coletivas.
Não suscitará dúvida que as pessoas coletivas e as pessoas singulares não se encontram, enquanto destinatários das normas penais, em posições rigorosamente semelhantes, a partir das quais se possa construir um argumento de (des)igualdade.»
Assim, e em suma, entende-se que o disposto no art. 12º, da Lei n.º 37/2015, de 5 de maio não é aplicável às pessoas coletivas. Neste mesmo sentido podem-se ver, entre outros, as seguintes decisões: Ac. do TRP, de 12/10/22, Relator: Pedro Vaz Pato; Decisão Sumária do TRE, de 21/3/24, Relatora: Beatriz Borges; Ac. TRP de 22/3/23, Relator: Raúl Esteves; Ac. do TRL de 20/12/23, Relatora: Cristina Almeida e Sousa, todos em www.dgsi.pt. Em sentido contrário: Ac.TRL, de 8/9/21, Relatora: Florbela Sebastião e Silva; Ac. TRL, de 10/10/20, Relator: Calheiros da Gama.
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4 - DECISÃO
Pelo exposto, concede-se provimento ao recurso, revogando-se o despacho recorrido e, em consequência, indefere-se o pedido de cancelamento provisório do registo criminal, solicitado pela requerente.
Sem custas.
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Évora, 11 de março de 2025
Carla Oliveira (Relatora)
Carla Francisco (1ª Adjunta)
Mafalda Sequinho dos Santos (2ª Adjunta)
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TRE
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https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/7b788ec159c623e680258c5e0035114f?OpenDocument
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1,747,785,600,000
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NÃO PROVIDO
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4003/23.9T9LRS.L1-3
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4003/23.9T9LRS.L1-3
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CARLOS ALEXANDRE
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I – Da acusação não consta a data em que a arguida foi notificada para entregar a sua carta de condução, qual o prazo que lhe foi concedido para o efeito, quem foi a entidade que emitiu a ordem para a arguida proceder à entrega da carta de condução, sob a cominação de, não o fazendo, incorrer no crime de desobediência, bem como, não se especifica que tipo de decisão administrativa estava em causa, por referência à contraordenação praticada.
II - Todas estas omissões na peça acusatória em presença, não podem ser colmatas em sede de julgamento, através do instituto de alteração não substancial de factos.
III – Bem andou o Tribunal
a quo
quando, ao amparo do disposto no artigo 311º, nºs 2, alínea a) e nº 3, alínea d) do CPP, rejeitou a acusação pública, por se encontrar manifestamente infundada, dado que os factos, imputados à arguida, na forma em que se encontram descritos naquela peça, não contendo os elementos objectivos do tipo de crime imputado, não constituem crime.
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[
"DESOBEDIÊNCIA",
"ACUSAÇÃO",
"REJEIÇÃO",
"MANIFESTAMENTE INFUNDADA"
] |
Acordam os Juízes que constituem a Conferência nesta 3ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
O Ministério Público recorreu do despacho proferido pelo Juízo Local Criminal de Loures – Juiz 3, que ao abrigo do disposto no artigo 311º, nº 2, alínea a) e nº3, alínea d), do CPP, decidiu rejeitar a acusação pública, por entender que “os factos imputados à arguida, tal e qual se encontram descritos, não constituem crime”.
O Ministério Público apresentou motivação, formulando as seguintes conclusões:
1º. O Ministério Público não se conforma com o despacho proferido
a quo
REF.ª 162881479 o qual decidiu recusar a acusação pública que descreveu os factos da seguinte forma:
“No âmbito do processo de contraordenação n.º 003309975, por decisão administrativa notificada em 10/09/2021, a arguida foi condenada, na sanção acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 60 (sessenta) dias. Não obstante ter sido notificada para entregar a sua carta de condução, a arguida não o fez. Foi a arguida advertida que, caso não procedesse à entrega da carta, incorreria na prática de um crime de desobediência. A arguida não procedeu à entrega voluntária da carta de condução tal como lhe fora determinado. Embora soubesse que tal ordem era emanada pela autoridade competente, quis, mesmo assim, não acatar tal decisão. A arguida previu e quis não cumprir aquela ordem sabendo que a mesma lhe tinha sido dada por quem tinha poderes para o efeito, que tinha sido regularmente transmitida e quais as legais consequências do seu não acatamento. Sabia o arguido que tal conduta lhe estava vedada por lei penal e agiu de forma livre, deliberada e Consciente”.
2º.
Entendeu, em suma, o Tribunal
a quo
que “
Percorrendo a acusação em causa constatamos que a mesma não descreve todos os factos integrativos do crime de desobediência imputado à arguida, e designadamente todos os elementos objectivos do
tipo. Com
efeito, a acusação omite qual data em que a arguida foi notificada para entregar a sua carta de condução, e qual o prazo quelhe foi concedido para o efeito, factos esses imprescindíveis para aferir da consumação do ilícito em apreço e do termo do prazo prescricional do procedimento criminal. A acusação omite ainda quem foi a entidade que emitiu a ordem para a arguida proceder à entrega da carta de condução, sob pena de cometer o crime de desobediência, por forma a aferir da legalidade formal e substancial da ordem e da competência da autoridade ou funcionário para a sua emissão, sendo certo que se desconhece, de igual modo, por não ter sido alegado na acusação, quem foi a entidade que proferiu a decisão administrativa, e se foi ou não com a notificação de tal decisão que a arguida foi notificada para entregar a sua carta de condução à entidade competente, e se a contra-ordenação em causa era de natureza rodoviária, por forma a aferir se existe uma disposição legal que comine a desobediência quanto à não entrega da carta de condução, e que tal decisão administrativa fosse definitiva ou exequível ou, por outras palavras, que já estivesse transitada em julgado, e em que
data. Com
efeito, na situação de infracção rodoviária, cumpre salientar que ao longo das várias alíneas do nº 1 do art.º 181º do Código da Estrada, que tem por epígrafe “Decisão condenatória”, são enunciados os parâmetros que devem fazer parte de uma decisão condenatória. E mais consta do nº 2 deste artigo 180º que: “A decisão deve ainda constar que: “a) A condenação se torna definitiva e exequível se não for judicialmente impugnada por escrito, constando de alegações e conclusões, no prazo de 15 dias úteis após o seu conhecimento e junto da autoridade administrativa que aplicou a coima; b) (...)”.Estabelece também o art.º 182º do Código da Estrada, que tem por epígrafe “Cumprimento da decisão”: 1- A coima e as custas são pagas no prazo de 15 dias a contar da data em que a decisão se torna definitiva, devendo o pagamento efetuar-se nas modalidades fixadas em regulamento. 2- (...) 3 - Sendo aplicada sanção acessória, o seu cumprimento deve ser iniciado no prazo previsto no nº 1, do seguinte modo: a) Tratando-se de inibição de conduzir efetiva, pela entrega do título de condução à entidade competente; (...)”. Dispõe ainda o art.º 160º do Código da Estrada (que tem por epígrafe “Outros casos de apreensão de títulos de condução”): “1 - Os títulos de condução devem ser apreendidos para cumprimento da cassação do título, proibição ou inibição de conduzir. 2 – (...) 3 - Quando haja lugar à apreensão do título de condução, o condutor é notificado para, no prazo de 15 dias úteis, o entregar à entidade competente, sob pena de crime de desobediência, devendo, nos casos previstos no n.º 1, esta notificação ser efetuada com a notificação da decisão. 4.- Sem prejuízo da punição por crime de desobediência, se o condutor não proceder à entrega do título de condução nos termos do número anterior, pode a entidade competente determinar a sua apreensão, através da autoridade de fiscalização e seus agentes.” Da conjugação de todos estes normativos do Código da Estrada decorre que a decisão administrativa, caso não tenha sido judicialmente impugnada, apenas se torna definitiva decorridos que sejam 15 dias após a respectiva notificação ao arguido, correndo a partir dessa altura também um prazo de 15 dias úteis para entregar a carta de condução, sob pena de não fazendo incorrer na prática de um crime de desobediência (um outro crime de desobediência caso a não entregue voluntariamente neste último prazo). Ora, as apontadas omissões da acusação nunca poderiam ser colmatadas em sede de julgamento por simples recurso ao artigo 358.º do CPP – alteração não substancial dos factos. Teremos, assim, de concluir que os factos imputados à arguida, tal e qual se encontram descritos na acusação, não constituem crime, e designadamente o que ali lhe é imputado, pelo que deverá tal acusação ser rejeitada, por manifestamente infundada. Nesta conformidade, decide-se ao abrigo do disposto no artigo 311º, nº 2, alínea a) e nº 3, alínea d), do CPP, rejeitar a acusação pública, por manifestamente infundada, uma vez que os factos imputados à arguida, tal e qual se encontram descritos, não constituem crime
.
3º.
A questão que se suscita reconduz-se à apreciação do despacho que julgou manifestamente infundada a acusação proferida pelo Ministério Público por os factos nela descritos não consubstanciarem a prática de crime.
4º. Dispõe o artigo 283.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, se durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente, o Ministério Público deduz acusação contra aquele.
5º. O n.º 3 do mesmo preceito, na parte que ora importa, dispõe que a acusação contém, sob pena de nulidade “
b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo, e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada”.
6º. Resulta do artigo 311.º, n.º 2, al. a), do Código de Processo Penal que, recebidos os autos no Tribunal, sem que tenha havido lugar a instrução, a acusação deverá ser rejeitada se for de considerar manifestamente infundada, concretizando o n.º 3 do mesmo preceito os quatro motivos que podem levar à conclusão de se estar perante acusação manifestamente infundada: quando não contenha a identificação do arguido; quando não contenha a narração dos factos; se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou se os factos não constituírem crime. 7º. A acusação só poderá considerar-se manifestamente infundada se se verificarem os “vícios estruturais graves” enunciados no n
º
3 do art.º 311
º
do Código de Processo Penal se não for apta para servir de base a uma sentença condenatória, o que desde logo afasta a possibilidade de rejeição liminar da acusação por manifestamente infundada quando os vícios de que eventualmente padeça não sejam estruturais e graves.
8º. O princípio da acusação constitui um princípio fundamental do processo penal e beneficia de tutela constitucional – artigo 32.º, n.º 5 da Constituição da República, significando, essencialmente, que «só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por parte de um órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento».
9º. Uma das consequências da estrutura acusatória do processo criminal consiste precisamente nesta “vinculação temática”: os factos descritos na acusação (normativamente entendidos) definem o objecto do processo que, por sua vez, delimita os poderes de cognição do tribunal e o âmbito do caso julgado.
10º. Da consagração da estrutura acusatória resulta inadmissível que o juiz possa ordenar ao Ministério Público os termos em que deve formular acusação. Por maioria de razão, não poderá o juiz suprir os vícios de que a acusação padeça.
11º. O fundamento da inexistência de factos na acusação que constituam crime só pode ser aferido diante do texto da acusação, quando faltem os elementos típicos objectivos e subjectivos de qualquer ilícito criminal da lei penal Portuguesa ou quando se trate de conduta penalmente irrelevante.
12º. O conceito de acusação «manifestamente infundada», assente na atipicidade da conduta imputada, implica um juízo sobre o mérito de uma acusação que, formalmente válida, possa ser manifestamente desmerecedora de julgamento, não justificando o debate, sendo que o tribunal é livre de aplicar o direito, mas não pode antecipar a decisão da causa para o momento do recebimento da acusação, devendo apenas rejeitá-la quando ela for manifestamente infundada, ou seja, quando não constitua manifestamente crime.
13º. Ora, ainda que se possa discutir se foi feito de forma imperfeita ou não, a acusação contendo descritos os elementos objectivos e subjectivos do ilícito em apreço, não pode afirmar-se que os factos nela descritos não constituem crime e ainda que possa vir a improceder, tal desfecho mais não é do que o resultado de um juízo de mérito, valorativo, feito em sede própria.
14º. Com
efeito, tendo em conta a estrutura acusatória do nosso processo penal, o juiz não pode julgar do mérito da acusação, ajuizando sobre a atipicidade da conduta imputada, aquando do despacho de saneamento do processo, proferido ao abrigo do citado art.º 311º, do Código de Processo Penal.
15º. No que concerne ao caso específico do crime de desobediência, a acusação deduzida foi considerada manifestamente infundada, por o Mmº Juiz ter entendido, em suma, que não foram descritos na peça acusatória todos os elementos objectivos do crime de desobediência, mediante a narração dos respectivos factos.
16º. Com
efeito, o Mmº Juiz a quo considerou que da acusação não constam descritos os elementos objectivos do tipo de ilícito.
17º. Consideramos, contudo, que, no caso, tal factualidade está implícita na factualidade constante da acusação e documentação junta com aquele documento.
18º. O artigo 348 n.º 1 alínea b) do CP estabelece que:
“Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se: (...) b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.”
19º. O crime de desobediência previsto e punível pelo citado artigo 348.º tem como elementos objectivos do tipo (a) existência de ordem ou mandado de autoridade ou funcionário, na acepção do artigo 386.º do Código Penal, impondo uma determinada conduta, um dever de acção ou omissão, (b) a sua legalidade material e formal, (c) a competência de quem a emite, (d) comunicação regular da ordem ao destinatário e (e) incumprimento da ordem ou mandado.
20º. No caso em apreço, exactamente porque consta da acusação que o arguido, sabia que tinha que acatar a ordem emanada pela entidade competente de entrega, da sua carta de condução, sendo que o arguido conhecia qual era a entidade e dentro do prazo concedido e se quis eximir ao cumprimento, não o fazendo, agindo de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punível por lei penal.
21º. Tal pressupõe, naturalmente, que o arguido o podia fazer, isto é, que tinha os documentos na sua disponibilidade, ou posse, e não os quis entregar, não faltando, por isso, a invocada alegação de facto que consubstancia o elemento típico objectivo do crime de desobediência. Isto porque, ainda que se possa aceitar que os factos pudessem apresentar um maior aprofundamento, a realidade é que, ainda que de forma sintética estão descritos no libelo acusatório e indiciados por todos os elementos documentais juntos.
22º. É sabido, por elementar, que, de facto, só desobedece quem, tendo na sua mão ou na sua disponibilidade os documentos intimados, os não entrega, após a legítima ordem recebida e que só com essa ordem existe o dever legal de entrega dos documentos
23º. É lógico que só se pode e deve não querer entregar algo que se tenha na nossa disponibilidade ou posse e que tal ordem provenha da respectiva autoridade competente para o efeito.
24º. Nesta medida, face à matéria de facto descrita na acusação pública, importa concluir que se mostra preenchida na sua plenitude a tipicidade objectiva e subjectiva do imputado crime de desobediência.
25º. Quem sabe que, ao não entregar documentos, após uma notificação por entidade idónea, pode incorrer em responsabilidade criminal pelo crime de desobediência, assim sabendo que violava ordem regular, sabendo ainda que devia obediência à mesma, sempre agindo de forma deliberada, livre e consciente e com conhecimento do carácter criminoso da sua omissão, só pode ter indubitavelmente compreendido a ordem e os comandos que lhe foram transmitidos.
26º. O arguido foi interpelado a entregar a carta de condução. Foi advertido de que, caso não o fizesse, cometia um crime de desobediência. Sabia da ilicitude do acto, dela tendo consciência e voluntariamente decidiu não entregar a carta.
27º. O arguido representou a realização do facto (sabia que não entregar a carta de condução o fazia incorrer na prática de um crime de desobediência) e tinha intenção de o praticar (que exteriorizou, não a entregando).
28º. A existência de um prazo para entrega, cuja referência não é quantificada, não constitui facto integrativo dos elementos do tipo.
29º. Não é a existência de um prazo que confere a legalidade à ordem emanada e, como tal, a não quantificação de tal prazo - ainda que, implicitamente, do texto da acusação se perceba que existia, efectivamente, um prazo para o efeito - não pode ser considerado, salvo o devido respeito, como fundamento de rejeição.
30º. Em suma, pese embora seja discutível se o texto da acusação pudesse ser mais claro e completo, cremos que a mesma descreve o núcleo irredutível do tipo legal de crime imputado ao arguido, constituído pelos seus elementos objectivos e subjectivos e que a factualidade gravitante de tal núcleo, por lhe ser acessória, poderá ser apurada em sede de julgamento, mediante aplicação do disposto no art.º 358.º, do C. P. Penal. 31º. A irrelevância penal dos factos imputados ao arguido, conducente à rejeição da acusação nos termos do artigo 311.º, n.º 2, al. a), e n.º 3, al. d), do Código de Processo Penal, tem de ser manifesta e absolutamente inequívoca. No caso concreto, em momento algum, poderá ser referido que não se indicia a verificação do crime imputado no libelo acusatório.
32º. Por tudo o exposto, o despacho de acusação encontrava-se circunstanciado em modo, tempo e lugar, realizado a descrição dos factos susceptíveis de indiciar a prática de crime de desobediência, permitindo ao arguido a apreensão da factualidade, sendo certo que a conhece em face de já ter sido confrontado com os elementos documentais juntos aos autos.
33º. A decisão opera em juízos conclusivos sem suporte objectivo, extravasando o poder de sindicância dos vícios graves, ou seja, daqueles que podem fulminar a acusação de tal modo que, a sua verificação permite a apreensão de que não foi, efectivamente praticado um crime. Salvo o devido respeito, mas não se percebe como, em face da descrição factual plasmada na acusação pública, o Tribunal
a quo
entendeu
ab initio
que não foi praticado um crime.
34º. Na senda da jurisprudência supra transcrita, sempre diremos que a irrelevância penal dos factos imputados ao arguido, tem de ser manifesta, indiscutível, evidente, inequívoca, não bastando que seja meramente discutível em sede de produção de prova, cabendo sempre ao julgador, após a realização da mesma, a subsunção dos factos como provados e não provados e, a aplicação cabal do direito
35º. Salvo o devido respeito, não é justificável o decidido pelo Tribunal
a quo
nos presentes autos, conforme supra explanamos, pelo que o despacho recorrido, ao rejeitar a acusação proferida, com a fundamentação acima transcrita, incorreu na violação dos artigos 348.º, n.º 1, al. b), do C. Penal e 311.º, n.º 2, al. a), e n.º 3, al. d), do Código de Processo Penal e artigo 32.º, n.º 5, do Constituição da República Portuguesa, devendo, assim, ser revogado e substituído por outro que receba o libelo acusatório, ordenando o prosseguimento dos autos nos termos previstos no artigo. 311.º-A, do Código de Processo Penal.
A arguida AA não apresentou resposta.
O Ministério Público junto deste Tribunal da Relação de Lisboa, emitiu parecer em 12/03/2025, corroborando a posição expressa em primeira instância.
Os autos foram a vistos e à conferência.
Do âmbito do recurso e da decisão recorrida:
O âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo Recorrente da motivação apresentada, só sendo lícito ao Tribunal ad quem, apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410º n.º 2 do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito – cfr. Ac. do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19/10/1995, DR I-A Série, de 28/12/1995 e artigos 403º nº 1 e 412º nºs 1 e 2, ambos do CPP.
Em face da motivação, são as seguintes as questões a considerar:
- O despacho recorrido violou os artigos 348º, nº 1, alínea b), do CP e 311º, nº 2, alínea a), e nº 3, alínea d), do CPP e artigo 32º, nº 5, da CRP?
O despacho proferido tem o seguinte teor:
Dispõe o artigo 311º, do Código de Processo Penal, que:
“1- Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.
2 - Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a. De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
b. De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos dos artigos 284º, nº 1, e 285º, nº 3 respectivamente”.
3 - Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
a. Quando não contenha a identificação do arguido;
b. Quando não contenha a narração dos factos;
c. Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
d. Se os factos não constituírem crime”.
In casu
constatamos que a Digna Magistrada do MP deduziu a acusação pública contra a arguida AA, pelos factos ali constantes, imputando-lhes a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de desobediência, p. e p. pelo art.º 348º, n.º 1, alínea b), do Código Penal.
--Na referida acusação são imputados à arguida os seguintes factos:
“No âmbito do processo de contraordenação n.º 003309975, por decisão administrativa notificada em 10/09/2021, a arguida foi condenada, na sanção acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 60 (sessenta) dias.
Não obstante ter sido notificada para entregar a sua carta de condução, a arguida não o fez.
Foi a arguida advertida que, caso não procedesse à entrega da carta, incorreria na prática de um crime de desobediência.
A arguida não procedeu à entrega voluntária da carta de condução tal como lhe fora determinado.
Embora soubesse que tal ordem era emanada pela autoridade competente, quis, mesmo assim, não acatar tal decisão.
A arguida previu e quis não cumprir aquela ordem sabendo que a mesma lhe tinha sido dada por quem tinha poderes para o efeito, que tinha sido regularmente transmitida e quais as legais consequências do seu não acatamento.
Sabia o arguido que tal conduta lhe estava vedada por lei penal e agiu de forma livre, deliberada e consciente”.
Nos termos do disposto no art.º 283.º n.º 3 do Código de Processo a acusação deduzida pelo MP, deve conter os requisitos ali aludidos nas alíneas a) e b), sob pena de nulidade. Entre esses requisitos encontra-se «
A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada
» (art.º 283.º n.º 3, al. b) do Código de Processo Penal).
No caso vertente os factos que fundamentam a aplicação à arguida de uma pena ou de uma medida de segurança são aqueles que preenchem os elementos objectivos e subjectivos do tipo de ilícito do crime que lhe é imputado.
Dispõe o artigo 348º, nº 1, do Código Penal que
“quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se: a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação”
.
Os elementos constitutivos do tipo legal de desobediência simples imputado à arguida, nos termos do citado artigo 348º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, consistem na existência de uma ordem ou mandado formal e substancialmente legal ou legítima emanada da autoridade ou agente competente para o fazer, regularmente comunicada ao agente (aqui se abrangendo, naqueles casos em que não existe disposição legal que considere a conduta como crime, a cominação da punição) na falta de obediência à mesma.
Cumpre ainda aqui salientar que a ordem ou mandado cujo não acatamento se reprime há-de ser substancialmente legitima, ou seja, há-de necessariamente surgir em presença de uma disposição legal que autorize a sua emissão nos exactos termos em que foi realizada ou, na ausência de disposição legal, na sequência e no âmbito do exercício dos poderes para um tal efeito discricionariamente reconhecidos ao funcionário emitente ou autoridade expedidora. Para além da legitimidade substantiva, a ordem ou o mandado tem que ter validade formal.
São, assim, elementos objetivos do tipo previsto na alínea b) do citado n.º 1 do artigo 348º: a ordem ou mandado; a sua legalidade formal e substancial; a competência da autoridade ou funcionário para a sua emissão; a regularidade da sua comunicação ao destinatário; a cominação expressa da autoridade ou funcionário emitente da ordem ou mandado, a conferir à conduta transgressora, o carácter de desobediência (alínea b); o conhecimento pelo agente dessa ordem; a possibilidade de cumprimento da ordem. E este último requisito surge como evidente se tivermos em conta o princípio ad impossibilita nemo tenutur (Ninguém é obrigado ao impossível), só se devendo obediência a ordens possíveis de cumprir, sendo a possibilidade aferida pela situação e capacidades do destinatário da ordem, bastando quanto ao elemento subjectivo o dolo na sua forma genérica, ou seja o destinatário da ordem representar o facto que preenche o tipo de crime (elemento cognitivo) e actuar com intenção de o realizar (elemento volitivo), independentemente da finalidade visada pelo agente (neste sentido Maia Gonçalves, Código Penal Português, 1995, 8ª ed., pág. 964 e seguintes).
Percorrendo a acusação em causa constatamos que a mesma não descreve todos os factos integrativos do crime de desobediência imputado à arguida, e designadamente todos os elementos objectivos do tipo.
Com efeito, a acusação omite qual data em que a arguida foi notificada para entregar a sua carta de condução, e qual o prazo que lhe foi concedido para o efeito, factos esses imprescindíveis para aferir da consumação do ilícito em apreço e do termo do prazo prescricional do procedimento criminal.
A acusação omite ainda quem foi a entidade que emitiu a ordem para a arguida proceder à entrega da carta de condução, sob pena de cometer o crime de desobediência, por forma a aferir da legalidade formal e substancial da ordem e da competência da autoridade ou funcionário para a sua emissão, sendo certo que se desconhece, de igual modo, por não ter sido alegado na acusação, quem foi a entidade que proferiu a decisão administrativa, e se foi ou não com a notificação de tal decisão que a arguida foi notificada para entregar a sua carta de condução à entidade competente, e se a contra-ordenação em causa era de natureza rodoviária, por forma a aferir se existe uma disposição legal que comine a desobediência quanto à não entrega da carta de condução, e que tal decisão administrativa fosse definitiva ou exequível ou, por outras palavras, que já estivesse transitada em julgado, e em que data.
Com efeito, na situação de infracção rodoviária, cumpre salientar que ao longo das várias alíneas do nº 1 do art.º 181º do Código da Estrada, que tem por epígrafe “Decisão condenatória”, são enunciados os parâmetros que devem fazer parte de uma decisão condenatória.
E mais consta do nº 2 deste artigo 180º que: “A decisão deve ainda constar que: “a) A condenação se torna definitiva e exequível se não for judicialmente impugnada por escrito, constando de alegações e conclusões, no prazo de 15 dias úteis após o seu conhecimento e junto da autoridade administrativa que aplicou a coima; b) (...)”.
Estabelece também o art.º 182º do Código da Estrada, que tem por epígrafe “Cumprimento da decisão”: 1- A coima e as custas são pagas no prazo de 15 dias a contar da data em que a decisão se torna definitiva, devendo o pagamento efetuar-se nas modalidades fixadas em regulamento.
2- (...)
3 - Sendo aplicada sanção acessória, o seu cumprimento deve ser iniciado no prazo previsto no nº 1, do seguinte modo:
a) Tratando-se de inibição de conduzir efetiva, pela entrega do título de condução à entidade competente; (...)”.
Dispõe ainda o art.º 160º do Código da Estrada (que tem por epígrafe “Outros casos de apreensão de títulos de condução”): “1 - Os títulos de condução devem ser apreendidos para cumprimento da cassação do título, proibição ou inibição de conduzir.
2 – (...)
3 - Quando haja lugar à apreensão do título de condução, o condutor é notificado para, no prazo de 15 dias úteis, o entregar à entidade competente, sob pena de crime de desobediência, devendo, nos casos previstos no n.º 1, esta notificação ser efetuada com a notificação da decisão.
4 - Sem prejuízo da punição por crime de desobediência, se o condutor não proceder à entrega do título de condução nos termos do número anterior, pode a entidade competente determinar a sua apreensão, através da autoridade de fiscalização e seus agentes.”
Da conjugação de todos estes normativos do Código da Estrada decorre que a decisão administrativa, caso não tenha sido judicialmente impugnada, apenas se torna definitiva decorridos que sejam 15 dias após a respectiva notificação ao arguido, correndo a partir dessa altura também um prazo de 15 dias úteis para entregar a carta de condução, sob pena de não fazendo incorrer na prática de um crime de desobediência (um outro crime de desobediência caso a não entregue voluntariamente neste último prazo).
Ora, as apontadas omissões da acusação nunca poderiam ser colmatadas em sede de julgamento por simples recurso ao artigo 358.º do CPP – alteração não substancial dos factos.
Teremos, assim, de concluir que os factos imputados à arguida, tal e qual se encontram descritos na acusação, não constituem crime, e designadamente o que ali lhe é imputado, pelo que deverá tal acusação ser rejeitada, por manifestamente infundada.
Nesta conformidade, decide-se ao abrigo do disposto no artigo 311º, nº 2, alínea a) e nº 3, alínea d), do CPP, rejeitar a acusação pública, por manifestamente infundada, uma vez que os factos imputados à arguida, tal e qual se encontram descritos
Vejamos então:
Estatui o artigo 283º, nº 3 do CPP os requisitos que a peça acusatória deve conter, sob pena de nulidade:
“a) As indicações tendentes à identificação do arguido;
b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;
c) As circunstâncias relevantes para a atenuação especial da pena que deve ser aplicada ao arguido ou para a dispensa da pena em que este deve ser condenado;
d) A indicação das disposições legais aplicáveis;
e) O rol com o máximo de 20 testemunhas, com a respetiva identificação, discriminando-se as que só devam depor sobre os aspetos referidos no n.º 2 do artigo 128.º, as quais não podem exceder o número de cinco;
f) A indicação dos peritos e consultores técnicos a serem ouvidos em julgamento, com a respectiva identificação;
g) A indicação de outras provas a produzir ou a requerer;
h) A indicação do relatório social ou de informação dos serviços de reinserção social, quando o arguido seja menor, salvo quando não se mostre ainda junto e seja prescindível em função do superior interesse do menor;
i) A data e assinatura.”
Por sua vez o despacho acusatório tem o seguinte teor:
O Ministério Público acusa para julgamento em Processo Comum com intervenção do Tribunal Singular:
AA, nascida a .../.../1964, filha de BB e de CC, natural de ..., casada, ..., residente na ..., titular do C.C. n.º ... – TIR a fls. 30
Porquanto indiciam suficientemente os autos,
No âmbito do processo de contraordenação n.º 003309975, por decisão administrativa notificada em 10/09/2021, a arguida foi condenada, na sanção acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 60 (sessenta) dias.
Não obstante ter sido notificada para entregar a sua carta de condução, a arguida não o fez.
Foi a arguida advertida que, caso não procedesse à entrega da carta, incorreria na prática de um crime de desobediência.
A arguida não procedeu à entrega voluntária da carta de condução tal como lhe fora determinado.
Embora soubesse que tal ordem era emanada pela autoridade competente, quis, mesmo assim, não acatar tal decisão.
A arguida previu e quis não cumprir aquela ordem sabendo que a mesma lhe tinha sido dada por quem tinha poderes para o efeito, que tinha sido regularmente transmitida e quais as legais consequências do seu não acatamento.
Sabia o arguido que tal conduta lhe estava vedada por lei penal e agiu de forma livre, deliberada e consciente.
Incorreu a arguida na prática, como autor material e na forma consumada, de:
- um crime de desobediência, previsto e punível pelo artigo 348.º n.º 1 alínea b) do Código Penal.
Prova:
Documental:
a dos autos, maxime:
- expediente de fls. 2-17;
- RIC de fls. 15 v.-16.
Analisada esta peça, conclui este Tribunal de Recurso que nela não consta a data em que a arguida foi notificada para entregar a sua carta de condução, qual o prazo que lhe foi concedido para o efeito, quem foi a entidade que emitiu a ordem para a arguida proceder à entrega da carta de condução, sob a cominação de, não o fazendo, incorrer no crime de desobediência, bem como, não se especifica que tipo de decisão administrativa estava em causa, por referência à contraordenação praticada, porquanto, se se tratar ,como tudo inculca, de uma contraordenação de natureza rodoviária, haveria de aplicar-se as normas do nº 1 do artigo 181º do CE, quanto ao conteúdo de decisão condenatória e ao artigo 182º do mesmo diploma, no que diz respeito à forma de cumprimentos das sanções aplicadas.
Todas estas omissões na peça acusatória em presença, não podem ser colmatas em sede de julgamento, através do instituto de alteração não substancial de factos.
Consequentemente, bem andou o Tribunal
a quo
quando, ao amparo do disposto no artigo 311º, nºs 2, alínea a) e nº 3, alínea d) do CPP, rejeitou a acusação pública, por se encontrar manifestamente infundada, dado que os factos, imputados à arguida, na forma em que se encontram descritos naquela peça, não contendo os elementos objectivos do tipo de crime imputado, não constituem crime.
Destarte, o recurso tem que improceder.
Dispositivo:
Por todo o exposto, acordam os Juízes que compõem a 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, julgar totalmente não provido o recurso e, consequentemente, mantem-se o despacho recorrido.
Sem custas.
Acórdão elaborado pelo Primeiro signatário em processador de texto que reviu integralmente, sendo assinado pelo próprio e pelas Desembargadoras Adjuntas.
Lisboa, 21 de Maio de 2025
Carlos Alexandre
Rosa Vasconcelos
Hermengarda do Valle-Frias
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TRL
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https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/886ada52d303136280258ca0005243ea?OpenDocument
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1,745,280,000,000
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NÃO PROVIDO
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11/25.3PCAMD-A.L1-5
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11/25.3PCAMD-A.L1-5
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ESTER PACHECO DOS SANTOS
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1 – As necessidades processuais de natureza cautelar a que as medidas de coação procuram dar resposta resultam da existência dos perigos elencados nas três alíneas do artigo 204.º do CPP.
2 – Olhando às circunstâncias em apreço, de onde sobressai que volvido menos de um mês em que foi presente a interrogatório judicial o arguido tornou a incorrer na prática de um crime da mesma natureza (furto), equivalente a uma nova resolução, mostra-se mais que justificada a invocação de um perigo de continuação da atividade criminosa.
3- De igual modo, encontra-se acerto na afirmação relativa à verificação de perigo de grave perturbação da ordem e da tranquilidade públicas em face da atividade desenvolvida pelo arguido em tão curto período. É que de facto o arguido investe sobre o património alheio, com nefastas consequências para os respetivos proprietários, afetando este tipo de criminalidade profundamente o sentimento de segurança.
4 - Ou seja, a medida de coação privativa da liberdade aplicada ao arguido, a que corresponde finalidades estritamente cautelares, mostra-se em conexão com os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade – art. 193.º do CPP -, bem como de acordo com o estatuído nos arts. 191.º, 192.º e 204.º do mesmo diploma legal.
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[
"MEDIDA DE COAÇÃO",
"CRIME DE FURTO",
"CONTINUAÇÃO DA ATIVIDADE CRIMINOSA",
"2ª INSTÂNCIA",
"PERTURBAÇÃO DA ORDEM E TRANQUILIDADE PÚBLICAS"
] |
Em conferência, acordam os Juízes na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I – Relatório
1.
No Juízo de Instrução Criminal da Amadora, após primeiro interrogatório judicial de arguido detido, foi imposta ao arguido
AA
, por despacho judicial de 29 de janeiro de 2025, a medida de coação de
prisão preventiva
e de obrigação de realização de tratamento às dependências de álcool e de estupefaciente, para além das obrigações decorrentes do TIR, a substituir por OPHVE, se se viabilizar.
2. Recurso Arguido
Recorreu o arguido, pugnando pela revogação da decisão proferida, retirando da respetiva motivação as conclusões que se transcrevem:
I. –
O arguido foi presente a Tribunal de Instrução Criminal de Sintra (serviço de Turno) no dia 29-01-2025, Tribunal que no dia 29-01-2025 e, em sede de primeiro Interrogatório Judicial, decretou a medida de coação de prisão preventiva e obrigação de realização de tratamento às suas dependências de álcool e de estupefaciente, para além das obrigações decorrentes do TIR que prestou, a substituir por OPHVE, se se viabilizar, nos termos do disposto nos artigos 191° a 194°, 196°, 200°, n° 1, al. f), 201°, 202.°, n.° 1, al. d), 203°, n° 2 e 204.°, n° 1, al. c) do CPP, ao arguido AA enquanto suspeito da prática de um crime de furto qualificado, p. e p. pela conjugação do disposto nos artigos 203.°, n.° 1 e 204.°, n.° 1, alínea f) e n.° 2, alínea e) do Código Penal no âmbito do processo n° 11/25.3 PCAMD e um crime de furto qualificado, na forma tentada, p. e p. pela conjugação do disposto nos artigos 203.°, n.° 1, 204.°, n.° 2, alínea e) e 202.°, alíneas d) e), com os artigos 22.°, n.°s 1 e 2, alínea b), 23.°, n.°s 1 e 2 e 73.°, todos do Código Penal - processo n° 92/25.0PHAMD.
II.
- O objecto do recurso versa sobre toda a matéria do despacho proferido em 29-01-2025, nos presentes autos com o n.° de processo 92/25.0PHAMD do Juízo de Instrução Criminal da Amadora, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste Amadora, da l.
a
Secção do DIAP da Amadora e, tendo sido aplicada a medida de coação de prisão preventiva ao arguido AA no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste - Sintra, Sintra - Serviço de Turno, Sintra.
III.
- O recorrente não se conforma com a aplicação da medida de coação de prisão preventiva.
IV.
- O recorrente nunca se furtou à justiça, tendo sempre mantido no âmbito da sua detenção e do interrogatório judicial, um comportamento adequado, contrito, respeitoso e colaborante com a justiça.
V.
- Podendo concluir-se que os factos que vêm indiciados referentes ao arguido AA a confirmarem-se não serão suficientes para aplicação de uma pena de prisão efectiva.
VI.
- Fazendo um juízo de prognose não se vislumbra ser o recorrente condenado em prisão, nem ser previsível essa condenação, pelo único fato de se ter introduzido no estabelecimento, onde existem bens móveis de valor superior a 102,00 € (cento e dois euros).
VII.
- Antes de ser preso, o arguido não trabalhava, sendo consumidor de canábis, conforme as declarações pelo mesmo prestadas, tendo admitido os factos, no conspecto das suas condições socioeconómicas, bem como no consentimento prestado para realização de adequado tratamento aos seus consumos de canábis.
VIII.
- Na aplicação das medidas de coação devem ser tidos em conta os princípios que orientam o Direito Penal, designadamente o princípio da adequação e da proporcionalidade, conforme dispõe o art.° 193.° do C.P.P.
IX.
- As medidas de coação, porque impostas a quem se presume inocente, não devem ultrapassar o suportável.
X.
- Ora, no caso em apreço, a medida de coação de prisão preventiva, prejudica o direito fundamental do arguido, designadamente o seu direito à liberdade.
XI.
- Todos os elementos da sua família o apoiam, tendo ficado completamente incrédulos, com a situação de reclusão, em consequência da investigação.
XII.
- O arguido, embora não esteja a exercer uma actividade profissional, tem hábitos de trabalho.
XIII.
- O recorrente está inserido na sociedade do ponto de vista familiar.
XIV.
- O art.° 204.° do C.P.P. dispõe que nenhuma medida de coação, com exceção do termo de identidade e residência, pode ser aplicada se, em concreto, se não verificar fuga ou perigo de fuga; perigo de perturbação do decurso do inquérito ou instrução; perigo, em razão da natureza ou personalidade do arguido, de perturbação da ordem ou tranquilidade públicas ou continuação da actividade criminal.
XV.
- O art.° 27.°, n.° 1 da Constituição da República dispõe que o Princípio da liberdade do cidadão integra o nosso ordenamento jurídico, sendo a base de um Estado de Direito.
XVI.
- Ora, ao arguido, foi limitado este princípio da liberdade do cidadão, estando o mesmo integrado socialmente!
XVII.
- Dispõem os artigos 191.°, n.° 1, e 193.°, n.° 1, do C.PP. que “a liberdade das pessoas só pode ser limitada total ou parcialmente, em função das exigências processuais de natureza cautelar, pelas medidas de coação e de garantia patrimonial previstas na lei”
XVIII.
- E, “as medidas de coação e de garantia patrimonial a aplicar em concreto devem ser necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.”
XIX.
- Assim, deve ter-se em conta que a aplicação da medida de coação maxime prisão preventiva deve reger-se e obedecer aos princípios da adequação e da proporcionalidade.
XX.
- Sendo a prisão preventiva a medida de coação mais gravosa e de aplicação de natureza excepcional, só quando todas as outras medidas de coação se revelarem inadequadas é que se poderá aplicar a medida de coação prisão preventiva.
XXI.
- No caso em concreto, não se verificam os pressupostos para aplicação da medida de coação de prisão preventiva a AA
XXII.
- O tribunal” a quo” fundamentou a aplicação da prisão preventiva ao arguido AA por entender que se observa no caso em concreto perigo de continuação de actividade criminosa, e igualmente perigo de perturbação da ordem pública.
XXIII.
- No caso em concreto o tribunal “ a quo” baseia-se em juízos abstractos, não concretizados em fatos.
XXIV.
- Não há um único facto referido pelo tribunal “ a quo” que sirva para fundamentar a aplicação da medida de coação de prisão preventiva,
XXV.
- Por outro lado, o perigo ou o enorme perigo de continuação de actividade criminosa, e igualmente o perigo de perturbação da ordem pública, são perigos que embora urge acautelar, devem ser aferidos a partir de elementos factuais que o indiciem e, não, de mera presunção (abstracta ou genérica), não cabendo aqui juízos de mera possibilidade ou hipotéticos, só mesmo o risco efectivo de perigo de continuação de actividade criminosa é que poderia justificar a aplicação da medida de prisão preventiva, conforme Acórdão da RC, de 02-06-99, citado no Acórdão da RC de 19-01-2011 in
www.dgsi.pt
XXVI.
- No caso em concreto do arguido AA não foi mencionado pelo tribunal “ a quo” factos susceptíveis de permitir a aplicação de medida tão gravosa ao recorrente, tendo a mesmo assentado em meros juízos abstractos, não concretizados em factos tal como impõe o disposto no artigo 204.°, do C.P.P.
XXVII.
- A inserção familiar e social do recorrente não foi aferida nem tida em conta para a aplicação da medida de coação pelo tribunal “ a quo”.
XXVIII.
- Ainda o facto do arguido ter prestado declarações, ter assumido a prática dos factos imputados, demonstrando arrependimento, não foi aferido nem tido em conta para a aplicação da medida de coação pelo tribunal “ a quo”.
XXIX.
- O recorrente tem na sua família uma base muito forte que o apoia incondicionalmente, revelando-se esta muito eficaz para afastamento do recorrente de qualquer conduta ilícita.
XXX.
- O facto de o arguido se ter introduzido no estabelecimento, onde existem bens móveis de valor superior a 102,00 €., e da sua intercepção pelo órgão de polícia criminal,
XXXI.
- Continua a ser completamente descabido qualificar o arguido como autor de um crime de furto qualificado, mesmo na forma tentada.
XXXII.
- Estes elementos, não são senão
meios para obtenção de prova,
não sendo eles, os
meios de prova
.
XXXIII.
- Na verdade, o arguido AA
não pode ser considerado como Autor de um crime de furto qualificado, mesmo na forma tentada porque nada foi encontrado na sua posse.
XXXIV.
- Uma simples introdução em estabelecimento não serve para qualificar o arguido AA como Autor de um crime de furto qualificado, mesmo na forma tentada.
XXXV.
- Nenhum bem móvel de valor superior a 102,00 € e decorrente da intercepção pelo órgão de polícia criminal foi apreendido ao arguido, demonstrando-se que o arguido não praticava a actividade criminosa pela qual é indiciado.
XXXVI.
- Não existe nos autos nenhum fato que justifique que o arguido tenha praticado os factos imputados.
XXXVII.
- A plena inserção familiar do recorrente impede a aplicação no caso em concreto da medida coactiva de prisão preventiva.
XXXVIII.
- Mostra-se assim, a prisão preventiva aplicada ao arguido, a medida de coação desproporcional e desadequada face aos fatos indiciados em sede de investigação.
XXXIX.
- A prognose e as sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas ao arguido, não se coadunam com a prisão preventiva que agora lhe foi aplicada.
XL.
- In casu, perante os factos constantes do processo é pouco provável que seja aplicada ao arguido, no caso de condenação, a prisão efectiva.
XLI.
- Os princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade não foram observados pelo Tribunal “ a quo” aquando da aplicação da medida de coação ao arguido.
XLII.
- Assim, a aplicação ao arguido da medida de coação de prisão preventiva é ilegal por violação dos art.°s 18.°, n.°2, 28.°, n.° 2 e 32.°, n.°2, da Constituição da República Portuguesa e, por violação dos art.°s 191.°, n.° 1, 192.°, n.°2, 193.°, 202.° e 204.°, do Código Processo Penal.
XLIII.
- Caso Vossas Excelências considerem aplicável a medida de coação de obrigação de apresentação periódica (cfr. art.° 198.°C.P.P.) a mesma poderá ser cumprida impondo-se ao arguido apresentação diária no órgão de polícia criminal próximo do local onde reside.
Face ao exposto, deverá o presente recurso ser considerado procedente, e em consequência deverá o douto despacho recorrido ser revogado por violar o disposto nos art.°s l8.°, n.°2, 28.°, n.° 2 e 32.°, n.°2, da Constituição da República Portuguesa e, por violar o disposto nos art.°s 191.°, n.° 1, 192.°, n.°2, 193.°, 202.° e 204.°, do Código Processo Penal, sendo ao arguido aplicada outra medida de coação que respeite os princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade.
Caso Vossas Excelências considerem aplicável a medida de coação de obrigação de apresentação periódica (cfr. art.° 198.°C.P.P.) a mesma poderá ser cumprida impondo-se ao arguido apresentação diária no órgão de polícia criminal próximo do local onde reside.
3.
O Ministério Público apresentou resposta ao recurso interposto pelo arguido, pugnando pela sua improcedência, mas sem formular conclusões.
4.
Nesta Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, acompanhando a resposta do Ministério Público junto da 1.ª instância, no sentido de que o recurso não merece provimento.
5.
Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
1. Objeto do recurso
De acordo com o estatuído no art. 412.º do CPP e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal
ad quem
deve apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no art. 410.º n.º 2 CPP.
No caso concreto, face às conclusões extraídas pelo arguido da motivação do recurso interposto, cumpre apreciar as seguintes questões:
• Da insuficiência de indícios quanto à prática pelo arguido de um crime de furto qualificado sob a forma tentada (factos de 29.01.2025, NUIPC 92/25.0PHAMD);
• Da desnecessidade, inadequação e desproporcionalidade da medida de coação privativa da liberdade aplicada ao caso concreto.
2. Motivos da detenção – Factos imputados (despacho de apresentação)
[NUIPC 11/25.3PCAMD]
1.
No dia ........2024, em execução de um plano previamente elaborado, AA dirigiu-se ao estabelecimento de restauração e bebidas, denominado "...", sito na Rua... explorado por BB e propriedade de CC, com o propósito de no mesmo entrar e daí retirar os objetos e valores que encontrasse e que lhe interessassem, a fim de os fazer seus.
2.
Aí chegado, AA, através de modo não concretamente apurado, logrou partir o vidro da porta de entrada do referido estabelecimento, que se encontrava trancada, logrando assim entrar no mesmo, sem o consentimento do seu proprietário.
3.
Já dentro do referido estabelecimento, AA percorreu o referido espaço, retirando e levando consigo, fazendo seus, uma televisão da marca ..., no valor de €135.00 (cento e trinta e cinco euros) uma bebida espirituosa da marca ..., no valor de €300,00 (trezentos euros) e uma bebida espirituosa da marca ..., no valor de €15.00 (quinze euros), perfazendo o montante total de €450,00 (quatrocentos e cinquenta euros).
4.
Já na posse dos referidos objetos, AA abandonou o local, levando-os consigo
[NUIPC
92/25.0PHAMD]
5.
Renovando os seus intentos de fazer seus objetos e/ou valores monetários que não lhe pertenciam, e que se encontravam no interior de estabelecimentos de restauração e bebidas, AA, no dia 29.01.2025, pelas 01:30h, dirigiu-se à ..., na ....
6.
Ali chegado, AA dirigiu-se ao estabelecimento de restauração e bebidas ..., sito no ... pertencente à sociedade ... e explorado por DD e por EE.
7.
Após, AA olhou em seu redor e, não detetando a presença de qualquer indivíduo, dirigiu-se ao muro existente nas traseiras da loja sita no n.º …, e trepou o mesmo, assim se introduzindo no respetivo terreno.
8.
De seguida, AA colocou uma t-shirt sobre a cabeça, assim ocultando o seu rosto, dirigiu-se à porta em vidro de acesso ao estabelecimento … e desferiu-lhe uma pancada, assim quebrando o referido vidro.
9.
Ato contínuo, AA introduziu-se no estabelecimento, onde existem bens móveis de valor superior a 102,00 €.
10.
De seguida, foi AA abordado por agentes da P.S.P., que se encontravam nas imediações a vigiar o estabelecimento de restauração e bebidas …, o qual já havia sido alvo de subtração de artigos em data não apurada, mas entre os dias ... e ... de ... de 2025.
11.
Ao atuar da forma descrita em ........2025, AA agiu com intenção concretizada de se apropriar de bens que sabia não lhe pertencerem, bem como sabia que, para o conseguir, teria de se introduzir no estabelecimento "..." através de arrombamento, como fez, bem sabendo que, desse modo, agiria contra a vontade da sua proprietária e lhe causaria prejuízo, o que sucedeu.
12.
Ao agir nos moldes descritos em 29.01.2025, AA agiu com renovação do propósito de fazer seus os valores e objetos que existissem em estabelecimento de restauração e bebidas, sabendo que os mesmos não lhe pertenciam e que agia contra a vontade e em prejuízo dos seus legítimos proprietários, bem sabendo que, para tanto, teria de escalar um muro e arrombar a porta de acesso ao restaurante …, o que fez, apenas não logrando fazer seus quaisquer objetos que se encontravam no seu interior por motivos alheios à sua vontade.
13.
O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei.
3. Despacho recorrido
É do seguinte teor o despacho recorrido, conforme consta do auto de 1.º interrogatório judicial de arguido detido:
Julgo válida a detenção do arguido, efectuada numa situação de flagrante delito, tendo sido cumprido o prazo legal de apresentação a primeiro interrogatório judicial – artigos 254.º n.º 1 al. a), 255º, nº 1, al. a) e 256º, nºs 1 e 2 todos do C.P.P..
Indiciam os autos a prática pelo arguido dos factos narrados no despacho de apresentação, que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais, e olhando a razões de economia e celeridade processuais, assim, igualmente se remetendo para os meios probatórios indicados no despacho de apresentação do arguido, aduzindo-se as declarações pelo mesmo prestadas, tendo admitido os factos, no conspecto das suas condições socioeconómicas, bem como no consentimento prestado para realização de adequado tratamento aos seus consumos de canábis.
Assim, mais se indiciam os seguintes factos:
Os factos referentes ao processo nº 11/25.3 PCAMD tiveram lugar em ...-...-2025.
O arguido sofreu já condenação pela prática em ...-...-2017 de um crime de furto qualificado, por sentença de 6-7-2018, transitada em julgado em 29-11-2021, na pena de 6 meses de prisão, suspensa pelo período de 1 ano, mediante regime de prova.
No dia ...-...-2025 o arguido foi submetido a primeiro interrogatório judicial de arguido detido, no processo nº 11/25.3 PCAMD, aí tendo ficado obrigado a efectuar apresentações semanais.
O arguido é consumidor de canábis.
O arguido consente na realização de tratamento deste consumo.
A morada indicada pelo arguido para efeitos de TIR é de uma amiga que o recebeu e que lhe fornece o essencial para sua sobrevivência.
O arguido não efetua qualquer tipo de trabalho, sequer “biscates”, pelo menos há cerca de 1 ano.
Ocupa seus dias deambulando pela sua “zona”.
O arguido não sofre de doença que o incapacite.
Indiciam, assim, os autos, a prática pelo arguido
•
um crime de furto qualificado
, p. e p. pela conjugação do disposto nos artigos 203.º, n.º 1 e 204.º, n.º 1, alínea f) e n.º 2, alínea e) do Código Penal – processo nº 11/25.3 PCAMD; e
•
um crime de
furto qualificado, na forma tentada
, p. e p. pela conjugação do disposto nos artigos 203.º, n.º 1, 204.º, n.º 2, alínea e) e 202.º, alíneas d) e e), com os artigos 22.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), 23.º, n.ºs 1 e 2 e 73.º, todos do Código Penal – processo nº
92/25.0 PHAMD.
No presente interrogatório judicial o arguido pretendeu prestar declarações quanto aos factos, bem como quanto às condições socioeconómicas, tendo confessado os factos, a sua desocupação, os seus consumos, não sofrendo de doença que o incapacite.
O acervo probatório já compilado em sede de inquérito não deixa margem para dúvidas sobre o cometimento dos factos pelo arguido, que os admitiu, tendo, aliás, sido detido na situação de flagrante delito no curso da madrugada, louvando-se o tribunal no vertido pelo opc no auto de notícia por detenção.
O auto de apreensão de objectos ao arguido, os fotogramas dos ferimentos com que ficou e do dano no estabelecimento comercial.
São de temer, sobretudo, os perigos de continuação da actividade criminosa, bem como o de grave perturbação da ordem e da tranquilidade públicas, em especial nas zonas onde o arguido praticou os factos e por onde deambula, mantendo-se desocupado e a cometer este tipo de factos, pois, para estes lograr, não se inibirá de tornar a investir sobre o património alheio, com nefastas consequências para os respectivos proprietários, como o foi no caso dos autos, pois para além dos bens apropriados ou de que iria apropriar-se, poderá danificar os bens alheios, como o fez.
Note-se que o arguido não labora desde há cerca de 1 ano, sendo consumidor de substâncias para cuja aquisição apenas o cometimento de factos da mesma natureza o garantirá, aliás, cremos, ser esse o percurso de vida do arguido.
Apenas a privação da liberdade do arguido, em estabelecimento prisional, salvaguardará tais perigos e se mostrará consentânea com os princípios da necessidade, adequação, necessidade, proporcionalidade e actualidade.
Em contexto prisional e posto que o arguido prestou consentimento para tratamento, deverá, também, o arguido efectuar tratamento dos seus consumos.
O Tribunal ponderará a OPHVE se, elaborado o competente relatório, vier a apurar-se a reunião de condições para o efeito.
Por tudo o exposto, o arguido aguardará os ulteriores termos processuais na situação de prisão preventiva e obrigação de realização de tratamento às suas dependências de álcool e de estupefaciente, para além das obrigações decorrentes do TIR que prestou, a substituir por OPHVE, se se viabilizar.
Tudo nos termos do disposto nos artigos
191º a 194º, 196º, 200º, nº 1, al. f), 201º, 202.º, n.º 1, al. d), 203º, nº 2 e 204.º, nº 1, al. c) do CPP.
Passe mandados de condução do arguido ao estabelecimento prisional.
Notifique, e se necessário for, cumpra o disposto no artº 194º, nº 10 do C.P.P..
Solicite à DGRSPVE a elaboração do competente relatório social para eventual substituição por OPHVE.
Remeta os autos para ulterior tramitação ao DIAP.
Comunique ao o.p.c. competente para receber as apresentações a que se mostrava obrigado o arguido.
Comunique.
***
3. Apreciando
Essencialmente, considera o recorrente que não se verificam as condições e pressupostos legais para aplicação da medida de coação de prisão preventiva a que foi sujeito no passado dia 29 de janeiro de 2025.
Porém, desenvolve a sua “contestação” no pressuposto de que apenas se mostra indiciado pela prática de um crime de furto qualificado sob a forma tentada, quando é certo mostrar-se ainda indiciado pela prática de um crime de furto qualificado, p. e p. pela conjugação do disposto nos artigos 203.º, n.º 1 e 204.º, n.º 1, alínea f) e n.º 2, alínea e) do Código Penal – NUIPC 11/25.3 PCAMD.
Ou seja, a indiciação pelo mesmo tipo de crime, agora sob a forma tentada, reporta-se a factos posteriores, correspondentes ao NUIPC 92/25.0 PHAMD, entretanto apensado aos presentes (cf. termo de 29.01.2025, ref. 155537049).
Nessa medida, a sujeição do arguido à medida de coação preventiva surge enquadrada, para além do mais, no disposto no art. 203.º, n.º 2, al. b) do CPP (
“Quando houver fortes indícios de que, após a aplicação de medida de coação, o arguido cometeu crime doloso da mesma natureza, punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos”
), pois que o arguido parece ignorar que no dia ........2025 foi submetido a primeiro interrogatório judicial, neste processo principal com o n.º 11/25.3PCAMD, tendo então ficado sujeito à obrigação de apresentação periódica semanal no posto policial da área da sua residência.
Sem prejuízo, pese embora tenha admitido os factos, pugna o recorrente pela insuficiência de indícios quanto à prática de um crime de furto qualificado sob a forma tentada, uma vez que nada foi encontrado na sua posse.
Melhor dizendo, na sua perspetiva
“uma simples introdução em estabelecimento”
não serve para qualificar o furto, mesmo na forma tentada, uma vez que nenhum bem móvel de valor superior a 102,00€ foi apreendido na sua posse.
Ou seja, o tribunal
a quo
errou na apreciação dos elementos de prova e respetiva subsunção jurídica.
Vejamos.
Como é sabido, a ocorrência de indícios da prática de um crime é condição da aplicação de todas as medidas de coação.
Porém, o arguido nem sequer contesta, nos termos que de facto se mostram indiciados nos autos, que se introduziu no estabelecimento.
O que considera é que se tratou apenas disso, sendo que nada lhe foi apreendido.
Contudo, olhando à respetiva indiciação, é evidente que a mesma é tudo menos apenas denunciadora de uma simples introdução.
É que o arguido a realizou com recurso a arrombamento e escalamento, logo de acordo com uma atitude compatível de quem pretende quebrar uma detenção originária, desconhecendo-se-lhe qualquer outra explicação plausível.
Acresce, que a simples circunstância de não ter constituído uma nova detenção é- -lhe completamente alheia, pois que a tanto se deveu a abordagem policial.
Melhor dizendo, a intenção de apropriação esteve sempre presente, coexistindo com o escalamento e arrobamento, mostrando-se indiciados atos de execução de um crime de furto qualificado (cf. art. 22.º do CP) e, como tal, existe tentativa da prática do mesmo, punível nos termos do disposto no art. 23.º do Código Penal.
No mais, caso não venha a ser possível quantificar o valor da(s) coisa(s) móvel(eis) tentada(s) subtrair, o mesmo deverá considerar-se como diminuto, por mais favorável ao agente (art. 204.º, n.º 4 do CP).
Contudo, tal entendimento não reflete o estado dos autos à data da prolação do despacho recorrido, pois que não se vê, de acordo com regras da normalidade, em que medida não existirão bens móveis de valor superior a 102,00€ no interior de um estabelecimento de restauração e bebidas em exploração, sendo, aliás, referido no respetivo auto de notícia por detenção que aí se encontravam bens superiores a esse valor (
“A título de exemplo encontravam-se diversos televisores com valor superior a 2000 (…)”
).
Assim considerando,
e sem prejuízo de melhor investigação
, certo é que à data da prolação do despacho recorrido não se consegue explicar de outra forma os elementos de prova carreados para os autos.
Perante esses indícios que também nós consideramos fortes, nenhum reparo cumpre realizar ao despacho recorrido ao concluir pela indiciada prática, por parte do arguido, em concurso real, de
um crime de crime de furto qualificado
, p. e p. pela conjugação do disposto nos artigos 203.º, n.º 1 e 204.º, n.º 1, alínea f) e n.º 2, alínea e) do Código Penal (processo n.º 11/25.3 PCAMD), e de um crime de
furto qualificado, na forma tentada
, p. e p. pela conjugação do disposto nos artigos 203.º, n.º 1, 204.º, n.º 2, alínea e) e 202.º, alíneas d) e e), com os artigos 22.º, 23.º e 73.º, todos do Código Penal (processo n.º 92/25.0 PHAMD), porquanto, com base naqueles, a probabilidade de condenação é, pelo menos, maior do que a de absolvição.
Aqui chegados, sabemos que as necessidades processuais de natureza cautelar a que as medidas de coação procuram dar resposta resultam da existência dos perigos elencados nas três alíneas do artigo 204.º do CPP.
No caso dos autos, o despacho recorrido fundamentou a aplicação da medida de coação de prisão preventiva ao arguido naqueles a que se refere a al. c) da disposição legal em apreço, ou seja, nos
perigos de continuação da atividade criminosa e de grave perturbação da tranquilidade pública
.
Ora, olhando às circunstâncias em apreço, de onde sobressai que volvido menos de um mês em que foi presente a interrogatório judicial o arguido tornou a incorrer na prática de um crime da mesma natureza, equivalente a uma nova resolução, mostra-se mais que justificada a invocação de um perigo de continuação da atividade criminosa, sendo ainda certo registar o recorrente uma condenação anterior associada à prática de criminalidade patrimonial.
De igual modo, encontra-se acerto no afirmado pela decisão recorrida quanto à verificação de perigo de grave perturbação da ordem e da tranquilidade públicas em face da atividade desenvolvida pelo arguido em tão curto período – factos de ... e ... de ...de 2025 (e não de ... de ... de 2024, como por lapso se refere nos factos narrados no despacho de apresentação, transcritos no auto de interrogatório).
É que de facto o arguido investe sobre o património alheio, com nefastas consequências para os respetivos proprietários, afetando este tipo de criminalidade profundamente o sentimento de segurança.
Nessa medida, afigura-se-nos que a medida de coação imposta, que aliás se ponderou, se se viabilizar, substituir pela de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica, não se mostra desproporcionada à gravidade dos factos e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.
Na verdade, da análise que realizamos não verificamos qualquer excepção que permitisse convocar outras medidas cautelares menos gravosas, designadamente o simples termo de identidade e residência conjugado com obrigação de apresentação periódica, diária, junto do OPC da área da residência, sendo tanto em razão dos enunciados perigos que igualmente julgamos verificados e face à sua comprovada ineficácia.
Ou seja, a medida de coação privativa da liberdade aplicada ao arguido, a que corresponde
finalidades estritamente cautelares
, mostra-se em conexão com os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade – art. 193.º do CPP -, bem como de acordo com o estatuído nos arts. 191.º, 192.º e 204.º do mesmo diploma legal.
Em conclusão, encontram-se preenchidos os pressupostos legalmente exigidos para que ao arguido recorrente pudesse ser aplicada a medida de coação em causa - art. 202.º, n.º 1, al. d) e 203.º, n.º 2 do CPP.
Nessa medida, nenhum reparo cumpre realizar ao despacho recorrido, sendo o mesmo de manter.
III – Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar
improcedente
o recurso interposto pelo arguido
AA
confirmando a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC´s.
Notifique.
*
Comunique-se de imediato à 1ª instância, com cópia.
*
Lisboa, 22 de abril de 2025
(texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94.º, n.º 2 do Código de Processo Penal)
Ester Pacheco dos Santos
Ana Cristina Cardoso
Pedro José Esteves de Brito
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TRL
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